Temas de direito dos seguros O contrato e a apólice de seguro
Temas de direito dos seguros O contrato e a apólice de seguro
Xxxxxxxxx Xxxx Rego
O termo «contrato» é vulgarmente usado pelos juristas numa multiplicidade de acepções. Antes de mais, temos a clássica distinção entre o contrato – e, mais amplamente, o negócio jurídico – enquanto acto produtor de norma e enquanto norma produzida pelo acto.1 Usa-se o termo na primeira acepção quando se fala, por exemplo, na celebração de um contrato. Estão em causa comportamentos humanos a que o direito atribui determinados efeitos jurídicos. Tais efeitos jurídicos, na medida em que resultem do exercício da autonomia privada, configuram a chamada lex contractus. É esta a segunda daquelas acepções: o contrato enquanto texto, enquanto resultado da interpretação. É nessa acepção que o termo se usa quando se fala, por exemplo, na vigência do contrato.2
Esta duplicidade de acepções é comum às várias línguas modernas que conheço, sendo o contrato uma categoria comum aos principais ordenamentos jurídicos contemporâneos. No entanto, a verdade é que o exacto alcance do termo «contrato» não é o mesmo em toda a parte. Estas duas acepções apresentam variantes nacionais ou regionais, consoante o exacto alcance do termo nos respectivos ordenamentos jurídicos, apesar de uma aparente convergência linguística levar juristas portugueses, franceses, ingleses, alemães, espanhóis ou italianos a traduzir sem hesitação o português «contrato» pelo francês contrat, o inglês contract, o italiano contratto, o espanhol contrato ou o alemão Vertrag. Entre as principais diferenças que as figuras apresentam nos vários ordenamentos jurídicos será de sublinhar a circunstância de a categoria franco-italiana do contrato, em que se filia a nossa, abarcar os negócios geradores, quer de efeitos obrigacionais, quer de efeitos reais, cingindo-se a categoria alemã aos efeitos obrigacionais, fora do domínio dos negócios dispositivos, enquanto a categoria anglo-americana se centra na figura da promessa e não tanto na de obrigação. Mas existem várias outras diferenças – pense-se, por exemplo, no requisito inglês da consideration que, tradicionalmente, afasta do universo dos contratos os negócios gratuitos.3
1 As expressões são de H. KELSEN, Teoria pura do direito, 2.ª ed., Viena 1960, orig. 1934, trad. J. Xxxxxxxx Xxxxxxx e rev. Xxxx Xxxxxx x’Xxxxxxx, 7.ª ed., Xxxxxxx 0000, pp. 288-289. Cfr. ainda L. DÍEZ-PICAZO, Fundamentos del derecho civil patrimonial, I, 6.ª ed., Pamplona 2007, p. 139.
2 Os exemplos também são de H. KELSEN, cit. supra n. 1, pp. 288-289.
3 Sobre o tema, cfr. R. Sacco/ G. De Nova, Il contratto, I, 3.ª ed., Turim 2004, pp. 51 ss (Xxxxxxxx e fenotipi in tema di contratto). Sobre a dissociação, característica do direito alemão, entre negócios obrigacionais (Verpflichtungsgeschäfte) e negócios dispositivos (Verfügungsgeschäfte), cfr. K. LARENZ / M. XXXX, Allgemeiner Teil des bürgerlichen Rechts, 9.ª ed., Munique 2004, pp. 410-418. Quanto à categoria anglo-americana do contrato, importa ter em conta de que, para além dos contratos que configuram uma troca de promessas, existem ainda os chamados unilateral contracts – (historicamente, os primeiros a gozar de protecção), dentro dos quais se distinguem os casos de an act for a promise e os casos de a promise for an act, em que a correspectividade existe, não entre duas promessas, mas entre uma promessa e uma conduta não vinculada que, ela própria, tem a dupla natureza de prestação contratual e de declaração negocial, correspondendo, consoante os casos, a uma proposta ou a uma aceitação. Cfr., por todos, X. XXXXXXX, Xxxxx’x law of contract, 27.ª ed., Oxford 1998, pp. 28-29. Cabem, por exemplo, nesta categoria alguns negócios entre nós classificados como negócios unilaterais e não como contratos – por exemplo as promessas públicas (art. 459.º CC).
Finalmente, numa terceira acepção, temos o contrato enquanto documento.4 O contrato de seguro é um dos poucos, senão mesmo o único, em que a prática recorre a expressões distintas para fazer referência, por um lado, ao contrato de seguro em qualquer uma das duas primeiras acepções e, por outro lado, ao documento de que as partes fazem uso para celebrar o contrato ou em que este se reduz a escrito, a que se usa chamar «apólice de seguro».5 A apólice é, assim, o documento escrito que exprime um contrato de seguro.6 Este artigo explora a distinção entre as figuras e procura traçar o regime da apólice de seguro à luz da nova lei do contrato de seguro.
1. A lei nova descreve, não os deveres típicos mas, mais amplamente, o conteúdo típico de um contrato de seguro, como é próprio de um ordenamento jurídico que não reduz o contrato ao seu conteúdo obrigacional.7 Não existe, na ordem jurídica nacional, uma definição legal de contrato de seguro.8 Ainda que assim não fosse, o contrato de seguro pode assumir distintas feições, consoante os efeitos para que é definido ou descrito.9 Tendo em vista, apenas, o direito
4 Sobre a distinção tripartida entre o acto, o conteúdo e o documento, veja-se, por todos, C. XXXXXXXX XX XXXXXXX, Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, Coimbra 1992, pp. 309 ss (§ 15). O autor faz ainda referência à distinção entre os documentos constitutivos, que são aqueles mediantes os quais o negócio é celebrado, e os documentos reprodutivos, que são aqueles em que um negócio previamente celebrado é reduzido a escrito (p. 319), na senda de J. XXXX XXXXXXX, Teoria geral do direito civil, II, Coimbra 1959, pp. 81-85. Já W. N. XXXXXXX, Os conceitos jurídicos fundamentais aplicados na argumentação judicial, orig. New Haven 1913 e 1917, trad. M. Lima Rego, Lisboa 2008, pp. 17-25, distinguia o contrato enquanto acto e o contrato enquanto norma juridicamente constituída em resultado desse acto, e contrastava os factos operativos e os factos probatórios, frisando a distinção entre o instrumento físico oferecido à inspecção do tribunal e o contrato a que diria respeito. Para o autor, o documento gastara toda a sua força operativa no momento em que fora produzido, sobrevivendo a esse momento apenas enquanto prova. Semelhante distinção conceptual tripartida foi traçada, uns anos depois, por A. L. XXXXXX, Xxxxxx on contracts, Xxxxxxxx XX 0000, pp. 4-6 (§ 3).
5 O uso não é constante, sendo frequentes os diplomas legais em que o termo «apólice» é usado sem rigor. Assim não sucede na LCS. Por vezes, recorre-se ao termo «apólice» para fazer referência ao acto ou ao seu conteúdo, mas o inverso é raro: a referência ao documento faz-se em regra com o termo «apólice». Para além da definição do n.º 2 do art. 32.º LCS, cfr. ainda as referências constantes dos arts. 18.º, 23.º/3 e 4, 32.º/3, 34.º a 38.º, 48.º/3, 51.º/1 ou 63.º, todos da LCS. A excepção parece ser o art. 158.º/b) LCS. Que se compreende, por fazer referência a terminologia consagrada na indústria seguradora, se bem que pouco rigorosa. Não são os documentos que são
«abertos» ou «flutuantes» mas, naturalmente, os próprios contratos, não enquanto actos produtores de norma mas enquanto norma produzida pelos actos. Em língua alemã, verifica-se o mesmo fenómeno, usando-se palavras distintas para designar, por um lado, o contrato enquanto acto produtor de norma e a norma produzida pelo acto (Versicherungsvertrag) e, por outro lado, o documento (Versicherungsschein ou Police). Cfr. J. PRÖLSS em PRÖLSS/MARTIN, Versicherungsvertragsgesetz, 28.ª ed., Munique 2010, anotação ao § 3, p. 109, m. 1. Já nos países de expressão inglesa o termo policy parece designar, indistintamente, quer o acto, quer o seu conteúdo, quer o documento que o reproduz.
6 Cfr. o art. 362.º CC (2.ª parte).
7 Art. 1.º LCS. Veja-se, distintamente, o expediente alemão de substituir uma definição pela simples referência, desta feita aos deveres típicos do contrato, no § 1 VVG. O tema das atribuições das partes num contrato de seguro foi por mim desenvolvido em Contrato de seguro e terceiros. Estudo de direito civil, Coimbra 2010, pp. 309 ss (cap. 4).
8 O art. 5.º/i) do DL n.º 144/2006, de 31 de Julho, que contém o novo regime jurídico da mediação de seguros, parece propor uma definição, mas logo se verifica que apenas a pressupõe, ao afirmar que, naquele diploma, as referências ao contrato de seguro deverão ser entendidas como incluindo, para além do contrato de seguro propriamente dito – que não define – as demais operações nessa sede indicadas. P. XXXXXX XXXXXXXX em P. XXXXXX XXXXXXXX e outros, Lei do contrato de seguro – Anotada, 2.ª ed., Xxxxxxx 0000, anotação ao art. 1.º, p. 40, considera «prudente a omissão de um conceito de seguro, seguindo a máxima omnis definitio in iure periculosa est».
9 Vários, e em número crescente, são os autores que vão defendendo a inexistência de um conceito absoluto de seguro. Cfr., por exemplo, X. XXXXXXXXX, «Wesen und Begriff der Versicherung im Privatversicherungsrecht» em Aktuelle Probleme des Unternehmensrecht. Festschrift Xxxxxxx Xxxxx zum 65. Geburtstag, M. Xxxxxxxx, X. X. Hügel e W. Xxxxxxx (eds.), Viena 1993, pp. 551-578, a p. 553. J. WÄLDER, Über das Wesen der Versicherung. Ein methodologischer Beitrag zur Diskussion um den Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, Xxxxxx 0000, pp. 82-84, expõe e analisa, numa perspectiva metodológica, o que identifica como as doze principais posições na literatura jurídica e económica de expressão germânica sobre as notas necessárias no conceito de seguro. Chama a atenção para a diversidade de propósitos subjacentes às várias definições formais propostas. Observa que quase todos os autores se propõem encontrar «o» conceito de seguro, discutindo-se e criticando-se uns aos outros, sem se dar suficiente conta, com raras excepções, da diversidade de propósitos subjacentes às suas definições: se se trata de uma definição na perspectiva económica,
contratual dos seguros, ensaiou-se, noutra sede, a seguinte definição: seguro é o contrato pelo qual uma parte, mediante retribuição, suporta um risco económico da outra parte ou de terceiro, obrigando-se a dotar a contraparte ou o terceiro dos meios adequados à supressão ou atenuação de consequências negativas reais ou potenciais da verificação de um determinado facto.10 Sem pretensões de exaustividade, pretendeu-se com esta definição identificar o núcleo comum a todas as classes de seguro.11
O preceito faz referência às partes no contrato de seguro sem as definir, neste ou em qualquer outro ponto da lei do contrato de seguro. Ambas são de designação relativamente pacífica em língua portuguesa. As diferenças são mínimas e sem consequências teóricas ou práticas: encontramos actualmente referências, por um lado, a «segurador» ou «seguradora» e a «empresa de seguros» e, por outro lado, a «tomador do seguro» e a «tomador de seguro». Parece-nos correcta a escolha do termo «segurador» por ficar mais claro que se faz referência àquela parte que, num contrato de seguro, aceita cobrir um dado risco, seja ela quem for, e não apenas às entidades que como tal se intitulem ou que se encontrem devidamente autorizadas para o exercício da actividade seguradora em Portugal. Com efeito, os contratos de seguro celebrados por entidades não autorizadas, ainda que nulos, são contratos de seguro, e não «pretensos contratos de seguro».12 Também parece correcta a escolha da designação «tomador do seguro», visto que se trata da função do sujeito num específico contrato de seguro e não de uma qualificação que lhe seja genericamente atribuída.13
Do lado do segurador, o preceito refere (i) a cobertura de um risco; e (ii) a obrigação de realizar a prestação convencionada em caso de verificação daquilo a que podemos chamar «sinistro». Reservou-se, e bem, o uso do verbo «obrigar» para a segunda valência, sem no entanto deixar de fazer referência à primeira, que, enquanto mero estado de vinculação do segurador, não deixa de
na perspectiva jurídica, dentro desta do ponto de vista do direito contratual ou institucional dos seguros, e por aí em diante. E. W. XXXXXXXXX, Cases and materials on the law of insurance, 4.ª ed., Xxxxxxxx XX 0000, p. 2, afirmava que à pergunta «O que é o seguro?» só podia responder-se com outra pergunta: «Porque quer sabê-lo?». H. L. WEYERS/
M. WANDT, Versicherungsvertragsgesetz, 3.ª ed., Colónia 2003, p. 5, afirmam, em jeito de resumo, que o conteúdo dos conceitos legais não é necessariamente o mesmo, consoante esteja em causa, designadamente, o regime da actividade seguradora ou o do contrato de seguro. Os autores salientam as finalidades bem distintas de ambos os diplomas: a Versicherungsaufsichtsgesetz, prosseguindo essencialmente finalidades de direito público, e a Versicherungsvertragsgesetz, de direito privado. Em Portugal, cfr. ainda a separação de ambos os domínios que era feita por A. AZEVEDO, «Seguro» em Verbo Enciclopédia luso-brasileira de cultura, XVI, Lisboa 1994, cc. 1675-1677, a c. 1676.
10 M. LIMA REGO, cit. supra n. 7, p. 66. Salvo na referência, menos rigorosa, ao segurado, esta proposta não se distancia da definição oferecida no Ac. TJCE 25.02.1999, Proc. C-349/96; Col. Jur. 1999 p. I-00973 (Card Protection Plan Ltd (CPP) v Commissioners of Customs & Excise): «[C]omo é geralmente aceite, uma operação de seguros caracteriza-se pelo facto de o segurador, mediante o pagamento de um prémio pelo segurado, se comprometer a fornecer a este último, em caso de realização do risco coberto, a prestação acordada por ocasião da celebração do contrato». Cfr., na mesma obra da autora, a doutrina portuguesa e estrangeira referida, respectivamente, nas nn. 91 e 92.
11 B. FARSACI, «Le teoriche sul contratto di assicurazione» (2007) 74 Assicurazioni 57-91, p. 89, observa que o contrato de seguro, desde a sua origem até aos nossos dias, se desenvolveu progressivamente em extensão e em profundidade, sem contudo se afastar do «núcleo comum» que ainda constitui o seu fundamento essencial: o seguro do risco alheio contra o pagamento de um prémio. O autor, a cujo pensamento adiro, acrescenta que, actualmente, devemos ficar-nos pela identificação desse «núcleo comum» a todas as formas de seguro.
12 Preâmbulo da LCS (V). Cfr., para uma crítica à assimilação entre os planos da qualificação de um contrato como um seguro e da admissibilidade de um contrato de seguro, M. LIMA REGO, cit. supra n. 7, no texto junto e na própria n. 38.
13 Não obstante de aceitação indisputada, é de generalização muito recente, na língua portuguesa, a expressão
«tomador do seguro». Cfr., no entanto, um exemplo do seu uso em XXXXX XXXXXXXX, Teoria e prática dos seguros, Lisboa 1953, pp. 6 e 39. O CCom (de 1888) utilizava o termo «segurado», alternadamente, e aparentemente sem grande critério, com os sentidos de tomador do seguro e de segurado. Cfr., v.g., os arts. 429.º («factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro») e 430.º («o segurado pode ressegurar por outrem o prémio do seguro») CCom. A expressão «tomador do seguro» é de origem germânica (Versicherungsnehmer). Veja-se, por exemplo, X. XXXXXXXXX, Xxxxxxxxxxxxxxxxxx, X, Xxxxxxx 0000, p. 182.
corresponder a uma atribuição do segurador, que, ao integrar o sinalagma contratual, corresponde à verdadeira contrapartida do pagamento do prémio. A ela se refere, pois, o termo
«correspondente» que qualifica o prémio.14
Do lado do tomador do seguro, o preceito faz referência, a nosso ver com menos propriedade, à
«obrigação» de pagar o prémio. Na verdade, nem sempre o tomador contrai uma obrigação de pagar o prémio.15 Todavia, tanto nos casos em que o pagamento do prémio corresponde a um pressuposto de eficácia do contrato de seguro, quanto naqueles em que corresponde ao cumprimento de um verdadeiro e próprio dever de prestar, estamos sempre perante uma prestação – uma conduta positiva ou negativa – mas que, nos primeiros casos, não corresponde ao cumprimento de uma obrigação. Em todos os casos, há uma atribuição do tomador ao segurador, pelo que podemos concluir que o contrato de seguro é, em todas as suas modalidades, necessariamente, um contrato oneroso.
O risco coberto pelo segurador pode ser do próprio tomador do seguro ou de terceiro – em todos os casos, será sempre do segurado, que, nestes últimos casos, será um terceiro-segurado.16 A verificação do risco corresponde à ocorrência daquilo que no preceito se designa por «evento aleatório».17 O qualificativo parece ser usado, neste contexto, como um sinónimo de «incerto». Não poderia ter o sentido de «fortuito», pois nem sempre o evento que desempenha no contrato a função de sinistro será de carácter fortuito. Ainda menos poderia tomar-se o termo como uma referência à álea, porquanto, se o seguro é sem dúvida um contrato aleatório, o risco não é, ele próprio, «aleatório».
O evento cuja verificação dá azo ao pagamento da prestação convencionada deve estar previsto no contrato – com efeito, fora do contrato um evento é apenas um evento. Os factos, em si mesmo considerados, não têm unidade nem juridicidade. São as pessoas que, ao pensar e descrever esses factos, os individualizam no seio da realidade complexa em que se inserem e lhes atribuem relevância jurídica, transformando-os em sinistros, com a celebração de um contrato de seguro. O sinistro – quando acontecer – será assim um facto jurídico, um «evento» que o direito considera relevante e a que, por isso, associa determinados efeitos. É a realidade apta a, integrando uma previsão normativa, desencadear a sua estatuição. É o contrato que o transforma em «sinistro».
O preceito foge ao termo «indemnização». Optou-se fazer referência, sem a qualificar, à
«prestação convencionada». Esta escolha dever-se-á à circunstância de nem todos os seguros se encontrarem subordinados ao princípio indemnizatório.18 Na elaboração desta lei, ter-se-á feito sentir uma preocupação de reservar para o domínio dos seguros de danos as referências a uma
«indemnização».19 Na verdade, em sentido próprio, só existe obrigação de indemnizar quando o que se pretende é eliminar um dano sofrido em esfera alheia, embora haja nos seguros alguma tradição de recorrer a este termo num sentido mais amplo. Importa, contudo, esclarecer que, mesmo nos seguros subordinados ao princípio indemnizatório, estamos em presença de uma
14 Cfr. M. XXXX XXXX, «O prémio» (infra, pp. …).
15 Cfr. M. XXXX XXXX, «O prémio» (infra, pp. …).
16 Cfr. M. LIMA REGO, cit. supra n. 7, pp. 46-48 e 708 ss (cap. 7.2). Sobre o conceito e as características do risco de seguro, cfr. as pp. 67 ss (cap. 2). Cfr. ainda, da autora, «O risco e suas vicissitudes» (infra, pp. …).
17 Cfr. ainda o art. 173.º LCS.
18 Só os seguros de danos o estão. Cfr. o art. 128.º LCS. Houve aqui uma clara intenção de demarcação da chamada teoria indemnizatória do seguro, negando-se que todos os contratos de seguro devam desempenhar, necessariamente, uma «função» indemnizatória. Sobre o tema, cfr. M. LIMA REGO, cit. supra n. 7, pp. 222 ss (cap. 3.2.4).
19 Que foi este o critério na escolha da expressão resulta de uma leitura do diploma na sua totalidade, e em particular do disposto no n.º 2 do art. 175.º LCS.
obrigação de prestar, e não de uma obrigação de indemnizar, não se aplicando aos seguros o regime desta última.20
2. A doutrina alemã alerta para uma discreta revolução operada pela nova lei em matéria de celebração do contrato. A norma em causa é a que se retira da primeira parte do § 7 I VVG,21 que corresponde, no essencial, ao n.º 1 do art. 21.º LCS. Conclui a doutrina alemã pela inadmissibilidade, à luz da nova lei, do chamado «modelo da apólice», tradicionalmente seguido na celebração de contratos de seguro, de acordo com o qual o segurador apenas facultaria ao candidato a tomador do seguro uma súmula das condições do seguro antes de este preencher e entregar a sua proposta de seguro, e por vezes nem isso, só mais tarde, ao aceitar a proposta, remetendo a apólice ao tomador do seguro.22
Entre nós, não obstante ser prática relativamente generalizada no mercado segurador, esse modo de celebrar o contrato já não seria de admitir, atendendo, desde logo, às regras gerais de formação dos contratos, e em especial ao disposto nos arts. 4.º e 5.º LCCG. A nova lei vem reforçar essa proibição. Embora em grande parte o n.º 1 do art. 21.º LCS venha suceder ao n.º 1 do art. 179.º RGES, que substituiu, a verdade é que este apenas exigia o fornecimento, ao candidato a tomador do seguro, das informações no mesmo preceito enumeradas, ao passo que no n.º 1 do art. 21.º LCS se exige agora do segurador que este informe o candidato a tomador do seguro «das condições do contrato», entre as quais se contam as que o preceito, exemplificativamente, enuncia. As «condições do contrato» correspondem ao conteúdo do contrato na sua totalidade, o que aproxima a nova formulação do referido preceito da lei alemã.
Não há incompatibilidade entre esta exigência e a do art. 34.º/1 LCS. Muito embora o segurador deva informar o candidato a tomador do seguro, antes de este emitir a sua declaração negocial, de todas as condições que irão integrar o contrato de seguro, nesse momento ainda não existe algo a que possamos chamar «apólice». Esta só surge em momento ulterior, aquando ou nos dias seguintes à conclusão do contrato. Os deveres são de natureza distinta: num dos casos temos um dever de informar e no outro estamos perante um dever de entrega de um documento. 23
Importa sublinhar que são distintos o plano da prestação de informação sobre o conteúdo do contrato, que pode satisfazer-se com uma declaração de ciência, e o da formação do contrato, em que está em causa a emissão de declarações negociais. Uma mesma declaração pode cumprir em simultâneo ambas as funções, que nesse caso se complementam. Ao exigir ao segurador que, a título meramente informativo, este faculte ao candidato a tomador, na íntegra, as condições do contrato, a lei coloca-se em linha com o que já resultava destoutro plano, que tem como
20 Xxxxxx x art. 562.º CC. Em acréscimo, recorre-se nos seguros a um conceito real de dano, distinto do que se usa no contexto da responsabilidade civil. Sobre esta distinção, que não cabe aqui aprofundar, entre os conceitos patrimonial e real de dano, cfr. H. XXXXXX, Summen- und Xxxxxxxxxxxxx, Xxxxxxxx 0000, a pp. 30-31. Descontando outros autores mais antigos, cfr. ainda G. WINTER, «Versicherungsvertragsrecht, Risikobeschreibungen und – beschränkungen» em Handwörterbuch der Versicherung, D. Xxxxx, X. Helten, P. Koch e R. Xxxxxxx (eds.), Karlsruhe 1988, pp. 1203-1209, a p. 1207; ou M. N. XXXXXX, Der Begriff des versicherten Interesses und seine Auswirkungen auf die Versicherung für fremde Rechnung, Karlsruhe 1997, p. 90. Embora fora do contexto específico dos seguros, veja-se também a obra de referência de H. XXXXX/ X. XXXXXXXXX, Xxxxxxxxxxxxxx, 0.x ed., Tubinga 2003, pp. 69-70.
21 «O segurador deve comunicar ao tomador do seguro, de forma escrita e com a devida antecedência em relação à emissão, por este, da sua declaração negocial, o conteúdo do contrato, incluindo as condições gerais (…)».
22 J. PRÖLSS, cit. supra n. 5, anotação ao § 7, p. 138, m. 2; H. XXXXXXXXXX, «Das Vertragsabschlussverfahren nach neuem VVG» (2008) 59 VersR 717-724; W. RÖMER, «La reforma xxx xxxxxxx xxx xxxxxxxx xx xxxxxx xx xx Xxxxxxxxx Xxxxxxx de Alemania» (2008) 270 Revista de Derecho Mercantil 1515-1539, a pp. 1520-1523; e X. X. XXXX,
«Zum Abschluss des Versicherungsvertrags – Alternativen zum Antragsmodell?» (2007) 58 VersR 21-26. Na Alemanha como em Portugal, a restrição não se aplica aos seguros de grandes riscos. Cfr. o n.º 2 do art. 13.º LCS. Na Alemanha, cfr. o § 7 V VVG. Cfr. H. XXXXXXXXXX, cit., p. 723.
23 Cfr. infra o texto a junto à n. 24.
corolário a necessidade de as declarações das partes incidirem sobre o conteúdo integral do contrato, não valendo, pois, como conteúdo o que não constar dessas declarações.
O tratamento desta questão na perspectiva dos deveres de informação apresenta uma importante vantagem em comparação com o seu tratamento em sede de formação do contrato, ao permitir, pelo menos em tese, o recurso a um leque mais amplo de meios de tutela do tomador e do segurado. Não devemos esquecer-nos de que, nos contratos celebrados por via de cláusulas contratuais gerais, é frequente escassearem as estipulações das partes que foram objecto de negociação individual. Com efeito, incluem-se muitas vezes nas cláusulas contratuais gerais, não apenas as disposições favoráveis ao predisponente, mas também algumas que lhe são desfavoráveis. Nesse caso, mostra-se insuficiente a consequência da sua não inclusão no contrato, por não terem sido contempladas nas declarações negociais das partes. No entanto, a protecção que a nova lei do contrato de seguro parece oferecer ao tomador do seguro com a constituição de deveres de informação sofreu algumas investidas, mais ou menos veladas, de sentido claramente inverso, havendo que usar de cautela na interpretação e aplicação conjugada de todos estes preceitos.
Veja-se, por exemplo, o caso da «menção comprovativa», a constar necessariamente da proposta de seguro, de que as informações foram prestadas pelo segurador ao tomador do seguro antes de este se vincular.24 Esta regra, que não é nova,25 sob a aparência de mais uma imposição ao segurador, vem na verdade colocar ao seu dispor um modo simples e eficaz de se desonerar da prova de que cumpriu, efectivamente, o seu dever de informar, sendo certo que será muito reduzida a probabilidade de um candidato a tomador do seguro se recusar a assinar uma proposta de seguro com fundamento no incumprimento deste dever de informar. Por outro lado, porém, esta exigência perde muito do seu impacto na medida em que, sempre que o tomador do seguro deva qualificar-se como um consumidor, terá de cair ante a proibição absoluta do art. 21.º/e) LCCG.26
Regressando ao tema da formação do contrato, a doutrina alemã identifica os modelos que passariam o crivo da lei nova, dando ênfase aos que designa por «modelo da proposta» e por
«modelo do convite a contratar».27 No primeiro, as minutas de toda a documentação contratual são desde logo disponibilizadas ao candidato a tomador do seguro, antes mesmo de este emitir a sua proposta. À entrega da proposta pelo tomador segue-se, como no modelo antigo, a aceitação do segurador. No segundo, o documento inicialmente preenchido e entregue pelo candidato a tomador do seguro corresponde a um convite a contratar, e não a uma proposta contratual, sendo esta emitida pelo segurador, depois de analisado o convite. A proposta do segurador inclui uma versão integral da apólice de seguro, dispondo o tomador, uma vez mais, de toda a informação relevante para decidir se aceita a proposta do segurador. Segundo a doutrina germânica, actualmente, ambos os modelos se praticam no mercado, não sendo ainda previsível qual dos dois virá a impor-se. No nosso ordenamento jurídico, e não obstante a nova exigência ora em análise, a verdade é que, noutros pontos da lei, continua a partir-se do princípio de que a proposta de um contrato de seguro pertence ao tomador do seguro, cabendo a sua aceitação ao segurador.28 Assim, é natural que venha a impor-se entre nós o modelo da proposta, actualmente já com alguma expressão no mercado.
24 Art. 21.º/5 LCS.
25 Para as versões anteriores desta regra, cfr. o art. 179.º/2 RGES e o art. 3.º/2 RTAS (que o preceito veio substituir).
26 Cfr. o art. 3.º LCS.
27 Cfr. J. PRÖLSS, cit. supra n. 5, anotação ao § 7, pp. 139-140, mm. 7-10; H. STOCKMEIER, cit. supra n. 22, pp. 719- 720; e X. RÖMER, cit. supra n. 22, a pp. 1520-1523.
28 Cfr. o próprio art. 21.º LCS (no seu n.º 5).
3. O contrato de seguro não está sujeito a forma escrita.29 Impera, neste domínio, a liberdade de forma que já decorreria do art. 219.º CC. Simplesmente, uma vez celebrado o contrato, se a forma escrita não tiver sido usada pelas partes, o segurador tem o dever de reduzi-lo a escrito, de datar e assinar esse documento escrito e de entregá-lo ao tomador do seguro.30 Nessa medida, importa distinguir entre as apólices que correspondem ao documento constitutivo de um contrato de seguro e aquelas que configuram um documento reprodutivo de um contrato de seguro previamente celebrado.31
O suporte material do documento escrito poderá não ser o papel, admitindo-se que a redução a escrito conste de suporte electrónico duradouro.32 Mais precisamente, admitem-se como apólices todos os objectos elaborados com o fim de reproduzir o conteúdo normativo do contrato, desde que a reprodução seja (i) escrita e (ii) duradoura.33 A assinatura pode ser substituída por simples reprodução mecânica.34 Assim, o segurador pode, por exemplo, enviar a apólice ao tomador do seguro por correio electrónico, se este tiver assentido e lhe tiver facultado, para o efeito, o respectivo endereço. Pode ainda entregá-la em mão em suporte electrónico (CD-ROM, disco USB ou equivalente). Mas a lei já não lhe permite exonerar-se deste seu dever se complementar a entrega de apenas uma parte da documentação com uma indicação da página da internet onde o tomador poderá descarregar as condições gerais da apólice. Esse modo de prestar a informação é insuficiente, quer porque os conteúdos disponibilizados na internet são voláteis, não oferecendo garantias de durabilidade em versão inalterada, quer porque a lei exige um acto de entrega.35 O acto de descarregar um ficheiro da internet já poderá ser qualificado como envolvendo uma entrega por parte do segurador, assim satisfazendo as exigências da lei, se ao tomador for facultado o acesso a um portal do segurador mediante a atribuição de uma identificação pessoal e de uma palavra-passe que lhe garantam, de forma segura, o acesso em permanência aos documentos que compõem a sua apólice.36
De uma forma geral, pode dizer-se que a apólice desempenha para o tomador uma função informativa sobre o teor do contrato e uma função facilitadora da sua execução.37 Centrando- nos na função facilitadora da execução do contrato, em abstracto podemos conceber a apólice:
(i) como documento probatório; (ii) como título de legitimação; e (iii) como título de crédito.38 A
29 Art. 32.º/1 LCS. O regime anterior não era tão claro. A interpretação dominante, quer na doutrina, quer na jurisprudência retirava do art. 426.º CCom uma exigência de forma escrita. Contudo, em rigor, o preceito poderia ser interpretado no sentido que corresponde ao regime actual, na medida em que se exigia que o contrato de seguro fosse «reduzido a escrito» mas não, literalmente, que fosse celebrado por escrito. Tal como hoje, exigia-se ainda que a apólice fosse datada e assinada pelo segurador. Em defesa de que o art. 32.º LCS não veio trazer novidade, apenas clarificar o que já era o sentido do art. 426.º CCom, cfr. M. LIMA REGO, cit. supra n. 7, n. 805. Cfr. ainda, embora sem tomar partido sobre a correcta interpretação do art. 426.º CCom, o que sobre a matéria se diz no preâmbulo (V). Na Alemanha, veja-se, em sentido idêntico ao do nosso preceito, o disposto no § 3 I VVG (nesta matéria a lei nova não trouxe novidade, sendo o regime o mesmo antes e depois de 2008). Mais longe foi o art. 2:301 PEICL (que determina a desnecessidade da forma escrita e mesmo da redução do contrato a escrito).
30 Sobre o dever de entrega da apólice ao tomador do seguro, cfr. o art. 34.º LCS.
31 Cfr. supra a n. 1.
32 N.º 2 do art. 34.º LCS. C. XXXXXXXX XX XXXXXXX, cit. supra n. 4, II, pp. 672-673, n. 25, tratou a questão de saber se os documentos electrónicos satisfariam os requisitos da forma escrita, dando à questão uma resposta afirmativa. Actualmente a questão é pacífica.
33 Cfr. a segunda parte do art. 362.º CC.
34 N.º 2 do art. 373.º CC.
35 Cfr. o n.º 2 do art. 32.º e o art. 34.º LCS. Neste sentido, H. STOCKMEIER, cit. supra n. 22, pp. 717-718. Cfr. ainda
J. PRÖLSS, cit. supra n. 5, anotação ao § 3, pp. 109-110, m. 3; e.
36 Neste sentido, X. STOCKMEIER, cit. supra n. 22, p. 719.
37 Cfr. H. LANGENBERG, Die Versicherungspolice. Eine rechtsvergleichende Darstellung, Karlsruhe 1972, p. 23. Sobre as diversas naturezas que pode assumir a apólice nos principais sistemas jurídicos ocidentais, veja-se o estudo comparativo do autor a pp. 23-48.
38 Cfr. H. LANGENBERG, cit. supra n. 37, pp. 23-48. Segundo o autor, a qualidade de título de legitimação é reconhecida como autónoma nos direitos de matriz germânica e no direito italiano, mas não dos direitos de matriz
apólice será sempre, no mínimo, um documento probatório.39 Nalguns casos, poderá funcionar ainda como título de legitimação e/ou como título de crédito.40
Nos seguros colectivos, é usual a emissão de certificados individuais que, com maior ou menor grau de pormenor, reflectem as disposições contratuais aplicáveis à relação com cada um dos segurados.41 Não é hábito designar tais documentos por apólices, não obstante corresponderem, nalguns casos, à redução a escrito de verdadeiros contratos de seguro que o segurador celebra com cada um dos segurados.42
4. O segurador, a quem cabe emitir a apólice sempre que as partes não hajam celebrado o contrato por escrito e que, ainda que as partes o tenham feito, corresponde, na prática, ao predisponente do texto contratual, deve reduzir a escrito todas as condições do seguro, ou seja o conteúdo integral do acordo das partes,43 devendo ainda fazer constar da apólice toda uma série de informação, ainda que, em rigor, esta não haja sido objecto do acordo das partes.44
A lei faz uso de nomenclatura própria da prática comercial da actividade seguradora.45 De entre as cláusulas que compõem o contrato de seguro, é usual distinguir as condições gerais, especiais e particulares.46 As condições gerais correspondem ao conjunto de cláusulas assim designadas que o segurador elabora sem prévia negociação individual, e que se destinam a integrar os diversos contratos de seguro de um determinado ramo ou modalidade que o segurador venha a celebrar. São, evidentemente, cláusulas contratuais gerais, a elas se aplicando o disposto na LCCG.47
As condições especiais também são cláusulas contratuais gerais, uma vez que o tomador do seguro também não influi na sua redacção. A sua especialidade advém da circunstância de, por uma razão ou por outra, não virem necessariamente a integrar em bloco todos os contratos de uma determinada modalidade. Muitas vezes, correspondem a extensões de coberturas que os tomadores poderão ou não optar por incluir no seguro, a troco de uma contrapartida acrescida, funcionando o documento em que se inserem como um catálogo e sendo necessário consultar o documento com as condições particulares para saber quais das condições especiais constantes do catálogo integram, efectivamente, cada contrato. Outras vezes, correspondem a condições aplicáveis a uma submodalidade de seguros, mais restrita do que a modalidade regulada pelas condições gerais. Na medida em que, apesar de obedecerem a uma redacção do segurador, a inclusão das condições especiais no contrato resultar de uma escolha do tomador, em caso de conflito estas deverão prevalecer sobre as condições gerais, por aplicação do disposto no art. 7.º LCCG.
As condições particulares são normalmente aquelas disposições contratuais que variam, efectivamente, de contrato para contrato. Cabem nesta categoria, por exemplo, os elementos identificativos das pessoas ou coisas seguras, as coordenadas espácio-temporais do seguro e uma
francesa e no direito inglês, onde, nos seguros como em qualquer outro domínio, aparece necessariamente associada à qualidade de título de crédito (p. 29). O que se diz da apólice vale para os certificados de seguro que muitas vezes são emitidos, sobretudo, mas não só, em caso de pluralidade de co-segurados, e que contêm apenas um resumo das disposições relevantes para os co-segurados, documentos esses a que não se usa chamar apólice.
39 Cfr. o disposto no art. 376.º CC.
40 Cfr. infra o texto a seguir à n. 47.
41 Nos seguros contributivos, são maiores as exigências quanto à informação a prestar aos segurados. Cfr. o n.º 2 do art. 87.º LCS.
42 Para mais desenvolvimentos, cfr. M. XXXX XXXX, «Seguros colectivos e de grupo» (infra, pp. …).
43 Arts. 32.º/2 e 37.º/1 LCS.
44 Art. 37.º/2 e 3 LCS.
45 Art. 37.º/1 LCS.
46 Cfr. J. ENGRÁCIA ANTUNES, Direito dos contratos comerciais, Coimbra 2009, pp. 702-703.
47 Cfr. o art. 3.º LCS.
boa parte dos valores em causa, tais como o montante do prémio, os capitais seguros, as franquias. Muitas vezes, as condições particulares não correspondem a cláusulas completas,
«com princípio, meio e fim», limitando-se a acrescentar os elementos individualmente negociados e remetendo, quanto ao resto, para as condições gerais ou especiais aplicáveis. Outras vezes, também o documento correspondente às condições particulares contém em parte cláusulas contratuais gerais, visto que nem sempre tudo o que consta do documento que o segurador assim designa foi objecto de negociação individual. Uma vez mais, em caso de conflito, as condições particulares individualmente negociadas prevalecerão sobre as condições gerais ou especiais, por força do disposto no art. 7.º LCCG.
Para além das condições gerais, especiais e particulares, podem integrar o contrato outros documentos. Frequentemente, é o caso da proposta de seguro, do questionário ou de outros documentos que o tomador tenha preenchido e entregado ao segurador aquando da celebração do contrato, ou mesmo de trocas de correspondência entre o tomador e o segurador ou entre aquele e o mediador. Finalmente, no decurso da vigência do contrato, há muitas vezes que proceder à actualização de alguns dos elementos do seguro, que mais não seja para proceder a uma renovação do seguro por mais uma anuidade. Nessas circunstâncias, é usual a emissão das chamadas actas adicionais. Estas titulam as alterações a um contrato de seguro.
A propósito dos elementos que compõem o conteúdo mínimo da apólice, é de sublinhar o disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 37.º LCS. O preceito exige que o segurador dê à apólice o título de «apólice», e que identifique de forma completa os documentos que a compõem, deixando bem claro que o intuito do preceito é regular o conteúdo mínimo da apólice, ou seja, do documento escrito a ser entregue ao tomador, e não propriamente introduzir quaisquer exigências em relação ao conteúdo do contrato, conjunto de normas que constituem a auto- regulação das partes.
Esta alínea não trata, de todo, do conteúdo normativo do contrato, ou sequer daquilo sobre que incide o acordo das partes, mas apenas da informação que o segurador é obrigado a fazer constar da apólice. 48
A exigência de que da apólice conste a identificação completa dos documentos que a compõem é essencial, constituindo uma inovação importante da nova lei do contrato de seguro. A ideia subjacente a esta exigência foi a de acabar com as muitas incertezas antes sentidas por tomadores do seguro e por vezes até por seguradores quanto à composição integral dos contratos de seguro. Por um lado, esta prática facilita a identificação de eventuais falhas na documentação enviada por parte dos tomadores do seguro, que facilmente concluem se estão ou não na posse de todos os documentos. Por outro lado, a exigência de uma identificação completa de todos os documentos contratuais impede as referências genéricas às condições gerais, especiais e particulares aplicáveis, sendo agora necessário indicar cada um dos documentos de forma a não restarem dúvidas, por exemplo, sobre qual das versões de determinadas condições gerais integra um dado contrato, de entre as várias que vão sendo elaboradas ao longo do tempo por um mesmo segurador. Esta exigência será cumprida, por exemplo, se o segurador introduzir um sistema de identificação semelhante ao usado para os impressos da Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
Quanto às demais alíneas deste preceito, importa apenas notar, mais uma vez, que o que se exige ao segurador é a prestação de informação a fazer constar da apólice. Nalgumas das matérias enunciadas no preceito, as partes podem não ter afastado o regime legal supletivo, nada tendo acordado. Ainda assim, na ausência de uma disposição contratual, cabe ao segurador introduzir
48 O mesmo se diga das alíneas b) e c) do n.º 2 do art. 37.º LCS.
na apólice uma explicação sobre o regime legal supletivo, para dar cumprimento a este dever de informar.
É o caso previsto no art. 187.º/1/b) LCS. Não obstante a designação de «cláusula de incontestabilidade», está em causa um regime legal injuntivo que o segurador tem o dever de divulgar na apólice, e não uma verdadeira e própria cláusula do contrato de seguro, sem prejuízo da possibilidade de as partes estipularem um regime de incontestabilidade mais generoso para o tomador do seguro.49
Uma outra exigência sobre o modo de elaboração da apólice diz respeito ao maior destaque e dimensão dos caracteres usados pelo segurador para dispor sobre determinadas matérias.50 As matérias cuja regulação deve ser especialmente evidenciada na apólice são de tal forma abrangentes que em certos casos pode haver dificuldade em dar cumprimento ao preceito, pois são tantas as cláusulas a destacar que o destaque perde o seu efeito.51
Já vimos que, cabendo a uma das partes, como cabe neste caso ao segurador, a redução a escrito de todo o conteúdo do contrato, incluindo, naturalmente, quer as disposições favoráveis ao segurador, quer as que lhe são desfavoráveis, não bastaria, para protecção do tomador, a cominação da inoponibilidade ou da não inclusão no contrato das cláusulas pelo segurador.52 Essas consequências são complementadas, na esfera do tomador do seguro, não só pela constituição de um direito a uma indemnização nos termos gerais, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos, como sobretudo pelo reconhecimento dos seus direitos de resolver o contrato nos trinta dias subsequentes à recepção da apólice e de, a qualquer momento, exigir a correcção da apólice.53 A qualquer momento, ou seja, sem a restrição de um prazo de trinta dias.54 A resolução segue os termos da resolução por violação do direito de informação do tomador do seguro, o que se compreende, tendo em conta que, como vimos, também neste caso o que está em causa é a violação de um direito de informação. 55
49 Arts. 13.º/1 e 188.º/1 LCS.
50 Art. 37.º/3 LCS.
51 A esta exigência acrescem as do art. 36.º LCS.
52 Cfr. supra o texto junto à n. 18.
53 Este não é o local próprio para desenvolver o tema da responsabilidade civil do segurador pelo incumprimento dos de informação e de esclarecimento do segurador (art. 23.º/ LCS). Importa no entanto observar que não é evidente a extensão do dano a indemnizar ao abrigo deste preceito, atenta a remissão para «os termos gerais». Os
«termos gerais» serão os da culpa in contrahendo (art. 227.º CC). Os danos que o segurador poderá causar com o incumprimento destes deveres serão, por exemplo, os que sofre um tomador que não celebrou o seguro mais apropriado às suas circunstâncias e se viu a braços com um sinistro não coberto pelo seguro. Deverá o segurador indemnizar o tomador pelo seu interesse contratual positivo, ou seja deverá deixar o tomador na posição em que estaria se tivesse celebrado, com este ou outro segurador, o contrato mais apropriado às suas circunstâncias, caso em que o sinistro estaria coberto pelo seguro? Embora a matéria esteja longe de reunir um consenso na doutrina ou na jurisprudência, as hipóteses de culpa in contrahendo por violação de deveres de informação nos casos de celebração de contrato válido mas indesejado ou não correspondente às expectativas são aquelas em que a determinação da indemnização em função do interesse contratual positivo reúnem maior apoio, quer da doutrina, quer da jurisprudência. Neste sentido, P. XXXX XXXXX, Interesse contratual positivo e interesse contratual negativo, II, Coimbra 2009, pp. 1134-1145. Na Alemanha, a questão também não é pacífica. Cfr. H. STOCKMEIER, cit. supra n. 22, a p. 724, admite que a indemnização possa corresponder à satisfação, quer do interesse contratual negativo, correspondendo nesse caso ao valor integral dos prémios pagos, quer do interesse contratual positivo, calculando-se nesse caso em função do hipotético valor da prestação de um outro segurador.
54 Prazo esse consagrado, quer no art. 23.º, quer no art. 35.º, ambos da LCS.
55 Pode traçar-se um paralelo entre estas exigências de que determinada informação conste do documento denominado «apólice» e as exigências relativas ao documento que reproduz o acto institutivo de uma sociedade comercial, na expressão de R. XXXXX XXXXXX, «(Uma) introdução ao direito das sociedades» em Escritos sobre direito das sociedades, Coimbra 2008, pp. 9-79, maxime pp. 15-19. A lei exige que no acto institutivo se faça menção a certos elementos (art. 9.º CSC). Neste preceito misturam-se, sem grande rigor, comandos dirigidos ao acto e ao respectivo conteúdo normativo, que estabelecem os elementos mínimos sobre os quais devem incidir as estipulações das
5. É a apólice, como documento escrito que titula o contrato de seguro, e não este último, que podemos qualificar como nominativa, à ordem ou ao portador.56
A apólice, como se disse, desempenha para o tomador do seguro uma função informativa sobre o teor do contrato e uma função facilitadora da sua execução.57 No desempenho desta última função, a apólice pode funcionar como título de legitimação ou como título de crédito. Em Portugal, possivelmente por influência italiana, no domínio dos seguros terrestres as apólices à ordem e ao portador não correspondem a verdadeiros títulos de crédito, mas apenas a títulos ou sinais de legitimação.58
É claro que nunca poderiam ser títulos abstractos, mas esta circunstância, por si só, não impediria a sua qualificação como títulos de crédito causais.59 A razão de não poderem ser títulos abstractos reside em que não há uma verdadeira e própria incorporação de direitos nas apólices. Estas destinam-se, por um lado, a facilitar a cessão de créditos por parte do tomador ou do segurado, ou eventualmente do beneficiário, ou mesmo a cessão da posição contratual do tomador, ao dispensar o cumprimento de determinadas formalidades, bastando-se,
partes, sob pena de invalidade (arts. 42.º e 43.º CSC). A exigência tem ainda aplicação aos actos modificativos dos estatutos que venham a ter lugar durante a vida de uma sociedade comercial, que devem assegurar a subsistência do seu conteúdo mínimo. Mas o preceito, e outros que o complementam, não se esgotam nesta função, dirigindo ainda os seus comandos ao documento que reproduz os estatutos. Esse documento desempenha perante terceiros, e mesmo perante os sócios, um relevante papel informativo que importaria acautelar, tendo a lei constituído, por imposição comunitária, um dever de apresentação de uma versão actualizada dos estatutos, para arquivo na conservatória do registo comercial, sempre que se registem factos que o justifiquem (art. 59.º/2 CRCom). Por exemplo, num primeiro momento, exige a lei que do acto institutivo constem os nomes ou firmas dos sócios fundadores e outros dados identificativos destes. Trata-se de um comando fundamentalmente dirigido, não ao conteúdo normativo do acto institutivo, mas ao documento que o reproduz. É mais um caso de imposição de deveres de informação. A questão torna-se ainda mais evidente se se tiver em conta que, no caso das sociedades por quotas, a informação relativa aos sócios deve ir sendo actualizada nos estatutos (art. 199.º/a) CSC). Não há dúvida de que a transmissão de uma quota, acto jurídico que normalmente apenas envolve declarações negociais do transmitente e do adquirente, não configura uma alteração dos estatutos. O mesmo se passa com as alterações da sede dentro do território nacional que sejam da iniciativa da administração, em relação a todos os tipos sociais (art. 12.º/2 CSC), que também não configuram alterações dos estatutos (cfr. o «cumulativamente» no art. 85.º/1 CSC). Cfr., neste sentido, XXXX XXXXXXX, Alterações do contrato de sociedade, 2.ª ed., Xxxxxxx 0000, pp. 17-19 e 71-74.
56 Art. 38.º LCS. Cfr. M. LIMA REGO, cit. supra n. 7, pp. 729-734 (cap. 7.2.3).
57 Cfr. supra o texto junto à n. 30.
58 Em Itália, a lei é clara no sentido de que os documentos que servem só para identificar o titular do direito à prestação, ou para permitir a sua transmissão sem observância das formalidades próprias da cessão, são meros
«documentos de legitimação» ou «títulos impróprios», não se lhes aplicando o regime dos títulos de crédito (cfr. o art. 2002 do Código Civil italiano). A doutrina é praticamente unânime ao negar às apólices, sejam elas à ordem ou ao portador, a natureza de verdadeiros títulos de crédito. Cfr. M. A. XXXXXXX XXXXXX em CIAN/XXXXXXXXX, Commentario breve al codice civile, 7.ª ed., Milão 2004, anotação ao art. 1889, p. 1884. A DONATI, Trattato del diritto delle assicurazioni private, II, Milão 1954, pp. 321-337, sustentava a natureza supletiva do disposto no art. 1889 do Código Civil italiano. A consequência era a de que as partes seriam livres para, derrogando-o, conceder às apólices a natureza de verdadeiros títulos de crédito. A posição era controversa no seio da doutrina. Sobre as apólices à ordem e ao portador no direito português, vejam-se L. XXXXX XXXXXXXXX, Comentário ao Código Comercial, II, Lisboa 1922, pp. 550-552; e X. X. XXXXXXXX XX XXXXXXX, O contrato de seguro no direito português e comparado, Lisboa 1971, pp. 43-
46. Na Alemanha, cfr. H. MÖLLER em BRUCK/MÖLLER, Kommentar zum Versicherungsvertragsgesetz und zu den Allgemeinen Versicherungsbedingungen unter Einschluß des Versicherungsvermittlerrechtes, I, 8.ª ed., Xxxxxx 0000, anotação ao
§ 4, pp. 167-172, mm. 1-19; e X. PRÖLSS, cit. supra n. 5, anotação ao § 4, p. 111, m. 1; e E. DEUTSCH,
Versicherungsvertragsrecht, 5.ª ed., Xxxxxxxxx 0000, pp. 49-50.
59 Neste sentido, a propósito do registo de valores mobiliários, cfr. C. XXXXXXXX XX XXXXXXX, «Registo de valores mobiliários» em Estudos em Memória do Professor Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx xxx Xxxxxx, X, Xxxxxxx 0000, pp. 873-960, a p. 933. Como não se põe em causa a sua natureza de negócios causais, não se geram dúvidas de que o regime da oponibilidade de meios de defesa não sofre por esse motivo qualquer alteração. Nalguns ordenamentos, eventuais dúvidas que houvesse foram afastadas de forma expressa. Cfr., por exemplo, em França, o art. L.112-6 do Código dos Seguros.
respectivamente, com o endosso ou a tradição.60 Por outro lado, destinam-se a facilitar o cumprimento do dever de prestar por parte do segurador – que, no entanto, poderá exigir ao portador prova adicional da titularidade do direito, ou exonerar-se mediante o cumprimento a quem mostre por outro meio, diverso da exibição da apólice, ser o verdadeiro credor da prestação.61 Do mesmo modo, conhecendo o segurador a identidade do verdadeiro titular, decorre do princípio da boa fé que não se exonera prestando a um não titular portador da apólice.62
Mas a questão fundamental é a da necessidade de aplicação do princípio indemnizatório nos seguros de danos, que não se coaduna com uma verdadeira e própria incorporação de direitos nas apólices à ordem e ao portador.63 Mediante o endosso de uma apólice à ordem ou a tradição de uma apólice ao portador, transmitem-se unicamente direitos de crédito ou, se o contrato assim o permitir, a posição contratual de tomador. Tratando-se de uma transmissão dos direitos do beneficiário, a transmissão implica a transmissão da posição de beneficiário. Contudo, tratando-se da transmissão dos direitos do segurado, a transmissão não implica – embora possa acompanhar – a transmissão da posição de segurado. O interesse seguro continua a pertencer ao cedente, se até aí lhe pertencia, não tendo o endosso ou tradição da apólice qualquer efeito translativo do interesse seguro.64 Tratando-se de seguros de danos, nem por isso deixará de aplicar-se o princípio indemnizatório, pelo que, embora o segurador possa exonerar-se pagando ao portador da apólice, este só estará a salvo, designadamente, de uma acção de restituição por enriquecimento sem causa, se tiver sofrido danos – ou, no mínimo, se for o legítimo cessionário de quem tenha sofrido danos.65
É claro que pode, por outra via, ocorrer em simultâneo a passagem do interesse seguro para o cessionário, o que é inclusive o caso mais frequente. A passagem do interesse seguro em simultâneo com o endosso da apólice ou com a sua tradição pode ocorrer, designadamente, nos seguros por conta de quem pertencer, visto que, nesse caso, a figura do segurado se define por remissão para a coisa segura, encontrando-se a sucessão na titularidade dos direitos assegurada por outra via, que não a do endosso ou tradição de uma apólice à ordem ou ao portador. Os dois mecanismos são frequentemente usados em complemento um do outro, dado ambos se destinarem, embora cada um a seu modo, a facilitar a mobilidade dos créditos de seguro.66
60 Art. 38.º/2 e 3 LCS. Esse significado também lhes é conferido por lei em Itália. A regra de que a transmissão das apólices à ordem ou ao portador importa a transmissão do crédito contra o segurador, com os efeitos da cessão, consta do art. 1889 do Código Civil italiano. Cfr. M. A. BIANCHI PITTER, cit. supra n. 57, p. 1884. A situação parece ser idêntica em Espanha (cfr. o art. 9 da Lei do Contrato de Seguro espanhola). Cfr. F. XXXXXXX XXXXXX (dir.), Ley de contrato de seguro. Comentarios a la Ley 50/1980, de 8 octubre, y sus modificaciones, Pamplona 1999, pp. 185-186.
61 Essa vertente das apólices ao portador é sublinhada na Alemanha. A lei alemã esclarece que a apólice ao portador se emite no interesse do segurador e não no interesse do próprio portador: a este não se reconhece, pelo simples facto de ser portador da apólice, o direito de exigir a prestação do segurador. O segurador é que se exonera se prestar ao portador de uma apólice, e não se encontra obrigado a prestar a não ser contra a devolução da apólice pelo respectivo portador. É o que decorre da conjugação do § 4 I VVG com o § 808 I e II BGB. Cfr. H. MÖLLER, cit. supra n. 57, anotação ao § 4, pp. 171-172, mm. 13-14.
62 Cfr. os arts. 102.º/1 e 103.º LCS. Neste sentido, H. MÖLLER, cit. supra x. 00, xxxxxxxx xx § 0, x. 000, x. 00; e X. PRÖLSS, cit. supra n. 5, anotação ao § 4, pp. 111-112, m. 2.
63 Cfr. o art. 128.º LCS.
64 Cfr. H. MÖLLER, cit. supra x. 00, xxxxxxxx xx § 0, x. 000, x. 00; e F. XXXXXXX XXXXXX, cit. supra n. 59, p. 185.
65 Cfr. o art. 128.º LCS. C. XXXXXXX, «L’intérêt d’assurance dans les polices au porteur et pour compte de qui il appartiendra» em Mélanges offerts à Xxxxxx Xxxxxxxx, Bruxelas 2003, pp. 737-739, sublinha que o interesse seguro é, nas apólices ao portador, o último reduto na defesa do respectivo carácter indemnizatório. Visto que o seguro por conta de quem pertencer se caracteriza pela indeterminação da pessoa do segurado, ante a multidão de eventuais segurados, o requisito do interesse «reveste uma importância capital». Constitui «a salvaguarda do segurador contra os abusos» e assegura o cumprimento do princípio indemnizatório (p. 747).
66 Cfr. C. DIERYCK, cit. supra n. 54, pp. 725-748. O autor analisa os mecanismos das apólices ao portador e dos seguros por conta de quem pertencer, que explica destinarem-se a agilizar o funcionamento dos seguros, sobretudo
A admissibilidade da emissão de apólices à ordem ou ao portador estende-se, pelo menos em teoria, às mais variadas modalidades de seguros de bens não pessoais, embora na realidade o recurso a este mecanismo seja mais frequente nos seguros associados ao transporte marítimo ou terrestre ou ao armazenamento de mercadorias – e nos seguros de vida, nos ordenamentos que, ao contrário do nosso, permitem essa prática.67 Não se percebe inteiramente a razão de ser da proibição de celebração de seguros de pessoas com apólices à ordem ou ao portador, quando neles se permite sem grandes restrições a cessão ou oneração de direitos e a cessão da posição contratual (embora esta se encontre vedada no caso de o tomador ser também pessoa segura).68 É certo que estas modalidades são pouco compatíveis com o funcionamento de um «registo central de contratos de seguro de vida e de acidentes pessoais».69 No entanto, teria sido mais sensato subtrair estas modalidades a esse regime do que ter simplesmente vedado a sua utilização.70 Nalguns dos mercados em que esta proibição não se verifica, é cada vez mais comum a celebração de seguros de vida com apólices à ordem ou ao portador.71
6. A atribuição ao tomador do seguro de um direito a receber um documento escrito que reproduza o conteúdo do contrato escrito traz consigo um ónus de verificação do seu teor nos trinta dias subsequentes à entrega.72 Uma vez decorrido este prazo, o tomador só poderá invocar eventuais desconformidades entre o acordo das partes e o texto da apólice na medida em que essas desconformidades resultem de documento escrito ou outro suporte duradouro.
no domínio do transporte de mercadorias, muitas vezes se combinando ambos os mecanismos numa única apólice. Há quem diga que o seguro por conta de quem pertencer é na realidade um seguro ao portador, mas o autor nota que os dois mecanismos são distintos, dado o primeiro respeitar às relações entre o segurador e o portador, dispensando este último de justificar o seu direito ao título, e o segundo ao modo de transmissão do título, dispensando formalidades que de contrário se exigiriam. Dir-se-ia, no entanto, ser mais correcto afirmar que no primeiro caso se dispensa o segurador de exigir outra prova do título, e não o segurado de o provar, e que no segundo caso se permite que a transmissão da qualidade de segurado ocorra por efeito da transmissão do interesse coberto pelo seguro, dispensando-se qualquer outra intervenção das partes, mas sem no entanto dispensarem o segurado, em qualquer dos casos, de fazer prova da sua efectiva titularidade do interesse seguro – o que, na prática, o segurador só exigirá em casos limitados.
67 Cfr. o art. 182.º LCS. Este preceito não consta das enumerações dos arts. 12.º e 13.º LCS. Contudo, nem por isso devemos concluir que se trate de disposição supletiva, como decorreria do disposto no art. 11.º LCS.
68 Cfr. os arts. 196.º e 197.º LCS.
69 DL n.º 384/2007, de 19 de Novembro.
70 Nos países de expressão francesa, onde o nosso legislador terá colhido inspiração, também se vedou o recurso às apólices ao portador no domínio dos seguros de vida. Cfr., em França, os arts. L.112-5 e L.132-6 do Código dos Seguros. A proibição é total no art. 94 da Lei do Contrato de Seguro belga, que parece ter sido a fonte de inspiração dos redactores materiais do nosso art. 182.º LCS. Cfr. X. X. XXXXX em P. XXXXXX XXXXXXXX e outros, cit. supra n. 8, anotação ao art. 182.º, p. 537. M. XXXXXXXX, Droit des assurances, 3.ª ed., Bruxelas 2006, p. 473, considera injustificada a proibição constante do referido preceito da lei belga. J.-M. BINON, Droit des assurances de personnes. Aspects civils, techniques et sociaux, Bruxelas 2007, pp. 39-40, m. 22, observa que na base do preceito estiveram considerações de ordem fiscal. Desconhecem-se os motivos que levaram a sua transposição para a nossa LCS.
71 P. HAVENGA, «Trading in second-hand life insurance policies» em Essays on tort, insurance law and society in honour of Xxxx X. Xxxxx, X, Estocolmo 2006, pp. 521-537, dá conta de um desenvolvimento recente que deu azo a um novo mercado mundial, baseado na venda da posição contratual de tomador com direito ao benefício por um preço superior ao valor dos prémios pagos e ao valor de resgate, no mercado de seguros de vida «em segunda mão» (p. 521). Na África do Sul, a esta prática chama-se negociação de second-hand policies. Nos EUA, chama-se assim ao mercado, mas os acordos correspondem aos chamados viatical settlements. No Reino Unido, fala-se antes em traded endowment policies (TEPS). Na Alemanha, em gebrauchten Policen (pp. 521-522). A prática começou nos EUA nos anos
80. Relaciona-se com o aparecimento do vírus do SIDA. Tratava-se, em geral, de pessoas doentes, com uma esperança de vida muito reduzida, e com pesados custos com a sua saúde. Esta terminologia é mais usada nos casos de uma redução drástica e repentina da esperança de vida, preferindo-se nos demais casos, de uma forma geral, a expressão life settlements, de conotação menos negativa. Cfr. R. H. JERRY II / D: R. RICHMOND, Understanding insurance law, 4.ª ed., Danvers 2007, pp. 356-359.
72 Art. 35.º LCS.
Nos trinta dias que se seguem à celebração do contrato, o tomador pode invocar quaisquer desconformidades que venha a detectar entre o texto da apólice e o acordado, ainda que apenas com base na sua memória. Em caso de divergência entre o tomador e o segurador sobre o conteúdo do contrato de seguro, as partes deverão fazer uso dos meios ao seu alcance para fazerem essa prova, sendo ainda de admitir a possibilidade de se concluir que afinal nenhum contrato chegou a ser celebrado, por ausência de um consenso entre as partes aquando da sua celebração.73 Antes de decorridos esses trinta dias, a apólice emitida pelo segurador não serve de meio de prova da declaração negocial do tomador, por não se tratar de um documento resultante da colaboração de ambas as partes, mas antes de um documento em que uma das partes – o segurador – reduz a escrito a sua leitura do acordado entre as partes. Aqui reside a importância da regra da consolidação. Esta é uma importante diferença entre os contratos celebrados por escrito assinado por ambas as partes, aos quais a regra da consolidação não tem aplicação, e os contratos só mais tarde reduzidos a escrito por uma das partes. Só aos primeiros se aplica na íntegra a regra geral do art. 393.º CC.
Com o decurso do prazo de trinta dias dá-se a consolidação do contrato, com o texto que consta da apólice. A partir desse momento, o tomador do seguro só pode invocar «divergências que resultem de documento escrito ou de outro suporte duradouro». Este regime corresponde a uma adaptação da regra geral do n.º 1 do art. 393.º CC. Esta foi pensada para os actos jurídicos sujeitos a forma escrita. Uma vez que os contratos de seguro são agora, indubitavelmente, consensuais, operando a exigência de redução a escrito em momento posterior, tornava-se necessário suspender, de certo modo, o funcionamento pleno desta regra probatória, que só faria sentido aplicar algum tempo depois da recepção da apólice pelo tomador do seguro.
A referência aos documentos escritos abrange, quer os instrumentos escritos em papel, quer os instrumentos escritos que constem de outro suporte duradouro, pelo que a referência final às divergências que resultem de «outro suporte duradouro» visa permitir o recurso a documentos não escritos tais como as gravações de voz ou de imagem e voz.
Não há contradição entre o disposto neste preceito e os arts. 4.º a 9.º da LCCG. De resto, em caso de conflito entre este e algum outro preceito de sentido diferente que conste da legislação sobre defesa do consumidor ou sobre contratos celebrados à distância, poderia surgir a dúvida sobre qual deles deveria prevalecer. A resposta a essa dúvida é-nos dada pela própria lei do contrato de seguro, nos termos da qual, em caso de conflito, devem prevalecer as disposições que constem de legislação sobre defesa do consumidor ou sobre contratos celebrados à distância.74
73 Cfr. o art. 232.º CC.
74 Art. 3.º LCS. Cfr. ainda o disposto no art. 19.º LCS.