A Proibição de Comportamento Contraditório no Âmbito da Administração Pública: A Tutela da Confiança nas Relações Jurídico-Administrativas
A Proibição de Comportamento Contraditório no Âmbito da Administração Pública: A Tutela da Confiança nas Relações Jurídico-Administrativas
Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx
Procurador Federal. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade de Brasília (UnB). Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).
I. PRINCÍPIO DE PROIBIÇÃO AO COMPORTAMENTO CONTRADITÓ- RIO: CONTEÚDO JURÍDICO E FUNDAMENTOS NORMATIVOS NO DI- REITO BRASILEIRO
I.1 - O direito positivo brasileiro e o venire contra factum proprium
Muito embora doutrina especializada tenha aprofundado o estudo do princípio de proibição ao comportamento contraditório, tendo alcan- çado inclusive a formulação de pressupostos para a adequada aplicação do princípio, e conquanto a jurisprudência também já reconheça a exis- tência do nemo potest venire contra factum proprium, fazendo-o incidir nos casos concretos, o fato é que o princípio nunca chegou a ser enuncia- do expressamente em lei.
Com efeito, o Código Civil brasileiro de 19161 não cuidou do princípio, omissão que não foi sanada pela vigente codificação civil2. A carência de grandes inovações do novo estatuto civil se deveu, em boa medida, pela falta de atualidade do projeto que deu origem ao novel diploma. Real- mente, por se amparar em projeto elaborado na década de 1970, mui- to antes, portanto, da nova ordem constitucional inaugurada em 1988, o vigorante Código Civil nasceu desatualizado, não tendo se ocupado das
1 Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916.
2 Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
grandes conquistas constitucionais da contemporaneidade que tutelam com maior ênfase a personalidade humana e os valores existenciais do que a propriedade e os valores patrimoniais.3
Sem embargo das críticas feitas ao vigorante Código Civil4, fato é que nenhum outro diploma legal – incluindo-se aí a vigente Constituição da República (CRFB/88) – regula expressa e especificamente um princípio geral de proibição ao comportamento contraditório. Cabe registrar que, no Direito Processual, a regra da preclusão lógica, consistente na perda de uma faculdade processual pela prática de ato incompatível com a conduta anterior da mesma parte5, muito embora não cuide especificamente do referido princípio, materializa, no âmbito da relação processual, a incidên- cia da vedação de venire contra factum proprium. Nesse sentido, é a lição de Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, verbis:
a ninguém é dado usar as vias recursais para perseguir deter- minado fim, se o obstáculo se originou de ato praticado por aquele mesmo que pretende impugná-lo; no fundo, trata-se de aspecto particular do princípio que proíbe o venire contra factum proprium, e o impedimento ao recurso, em perspecti- va dogmática, subsume-se na figura denominada preclusão lógica, que consiste, como é sabido, na perda de um direito ou de uma faculdade processual pelo fato de se haver realiza- do atividade incompatível com o respectivo exercício6
3 Para maior aprofundamento, v. XXXXXXXX, Xxxxxxx. “O novo Código Civil: duro golpe na recente experiência cons- titucional brasileira”. Editorial à Revista Trimestral de Direito Civil, v. 7. Rio de Janeiro: Renovar, 2001..
4 A referência que ora se faz aos Códigos Civis decorre da circunstância de que em tais diplomas legais historicamen- te constam – principalmente em suas partes gerais – as disposições relativas à teoria geral do Direito. São inúmeros os exemplos que figuram no vigorante Código Civil: as regras sobre fatos, atos e negócios jurídicos; boa-fé objetiva; abuso de direito; prescrição e decadência etc. Por tal razão, a sede própria para se cuidar da proibição de comporta- mento contraditório seria no referido diploma legal.
5 Prescreve o art. 264 do vigente Código de Processo Civil (Lei nº 5869, de 11 de janeiro de 1973), verbis: “Feita a citação, é defeso ao autor modificar o pedido ou a causa de pedir, sem o consentimento do réu, mantendo-se as mesmas partes, salvo as substituições permitidas por lei. Parágrafo único. A alteração do pedido ou da causa de pedir em nenhuma hipótese será permitida após o saneamento do processo”.
6 Comentários ao Código de Processo Civil, v. V. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 340. Na mesma linha de orientação, já decidiu o C. Superior Tribunal de Justiça, litteris: “O agravante foi alcançado por sua própria conduta anterior. Venire contra factum proprium, como bem definiram os antigos romanos, ao resumir a vedação jurídica às posições contraditórias. Esse princípio do Direito Privado é aplicável ao Direito Público, mormente ao Direito Proces- sual, que exige a lealdade e o comportamento coerente dos litigantes. Essa privatização principiológica do Direito Público, como tem sido defendida na Segunda Turma pelo Min. Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx, atende aos pressupostos da eticidade e da moralidade. 6. Não poderia a agravante, sob o color de uma perícia, desejar o melhor dos dois mundos. Ajuizar ações é algo que envolve risco (para as partes) e custo (para a Sociedade, que mantém o Poder Judiciário). O processo não há de ser transformado em instrumento de claudicação e de tergiversação. A escolha pela via judiciária exige de quem postula a necessária responsabilidade na dedução de seus pedidos”. (AgRg no REsp 946499/SP, Segunda Turma, Relator: Ministro Xxxxxxxx Xxxxxxx, DJ 05/11/2007 p. 257, REVPRO v. 154 p. 176).
Conquanto seja um princípio não regulado expressamente por ne- nhum diploma normativo vigente em nosso país, a proibição de compor- tamento contraditório surge justamente em decorrência da circunstância de que as fórmulas legais são insuficientes para resolver todos os conflitos surgidos na sociedade. 7
Sabe-se que o Direito Constitucional contemporâneo é marcado pela pós-modernidade ou pós-positivismo.8 Com efeito, a Modernidade, identificada com o positivismo jurídico, procurou alcançar objetividade científica, equiparando o Direito à Lei, promovendo seu afastamento da filosofia e de novas reflexões, havendo dominado a ciência jurídica da pri- meira metade do século XX. Amparando-se em princípios de justiça que se supunham universalmente válidos, fomentou a deflagração de revo- luções liberais e a formulação de Constituições e Códigos escritos. Seu ocaso é associado à derrota do fascismo, do nazismo, bem como às desu- manidades praticadas na 2a Guerra Mundial sob amparo da legalidade (de que são exemplos marcantes o campo de concentração de Treblinka e a explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagazaki).
Após a 2a Grande Guerra, as reflexões sobre eticidade e a incidência dos valores e princípios passam a ocupar mais intensamente o pensamen- to jurídico. Surge, então, a pós-modernidade, quadra em que se encontra o Direito contemporâneo, na qual há o rompimento com a pretensão utó- pica da Modernidade de justificar apenas através da razão o que seriam as verdades eternas, imutáveis, da ciência.9
A partir do abandono histórico do jusnaturalismo e do fracasso po- lítico do positivismo jurídico associado à Modernidade, abriu-se espaço para novas reflexões no campo do Direito, no qual se incluem a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de sua relação com os va- lores e regras.10
7 Vale transcrever a acurada advertência do jurista Xxxxxxxxxx Xxxxxxx, para quem “se o exegeta ficar adstrito aos termos da norma expressa, limitando-se a invocar o dura lex sed lex, sem que se esforce no sentido de humanizar, tanto quanto possível, o Direito, poderá contribuir para que muitos ponham em dúvida a superior finalidade da lei, que deve ter por escopo a proteção da sociedade, garantindo-lhe uma subsistência jurídica, mas atendendo tam- bém, de modo razoável, aos sagrados interesses e às respeitáveis conveniências individuais”. “A lei, a jurisprudência e o bom senso”. In: A força eterna do Direito, v. 1. Rio de Janeiro: Peneluc, 1996, p. 46.
8 Por todos, cf. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 247 e ss.
9 Cf. XXXXXXXX XXXXX, Menelick de. A trajetória da Filosofia do Direito na Modernidade. Brasília/DF: CEAD/UnB, 2008. 20 p. (Pós-graduação em Direito Público). Disponível em: <xxxx://xxxxxx.xxxx.xxx.xx/xxx/xxxx.xxx/0/Xxxxxx- teca/Semana_4/ Texto_base_semana_4.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2008, p. 1.
10 Para maior aprofundamento, v. XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. A Reconstrução democrática do Direito Público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 1-39.
A falta de lei expressa, portanto, não induz à conclusão da inexis- tência do referido princípio jurídico de proibição de comportamento con- traditório. Apenas exige uma investigação mais profunda para demonstrar a sua aplicabilidade em nosso país, cabendo ao intérprete e aplicador das normas jurídicas – seja o magistrado, seja o administrador público -, ten- do em vista a força normativa dos princípios, fazer incidir o princípio em ordem a densificar os fundamentos que lhe conferem juridicidade: soli- dariedade social, segurança jurídica, boa-fé objetiva, tutela da confiança, todos decorrentes da dignidade humana, fundamento que alicerça “todos os direitos constitucionalmente consagrados”.11
I.2 - Fundamentos do nemo potest venire contra factum proprium
A Constituição da República de 1988 elegeu como um dos seus objetivos a solidariedade social (art. 3º, I, última parte, CRFB/88). Dessa cláusula pode-se extrair um dos fundamentos constitucionais da vedação para agir de maneira contraditória. Com efeito, ao erigi-lo ao patamar constitucional, a vigente Constituição da República atribuiu ao princípio da solidariedade social não apenas o sentimento de identificação com os problemas de outrem, que leva as pessoas a se ajudarem mutuamente, mas, especialmente, impôs a todos o dever de consideração da posição alheia no universo das relações jurídicas.
Assim, tendo sido formulado como um meio de se impedir que o comportamento incoerente fira a legítima confiança das pessoas, o nemo potest venire contra factum proprium significa instrumento de densifica- ção do objetivo constitucional de solidariedade social, havendo, dessa maneira, nas precisas palavras de Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, “direta vinculação entre a solidariedade social e o princípio de proibição ao comportamento contraditório”.12
Outro fundamento de índole constitucional do nemo potest venire contra factum proprium é o megaprincípio da segurança jurídica13, erigida
11 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxx de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Ed. Livraria
Almeidina: Coimbra, 1998, p. 102.
12 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. A proibição de comportamento contraditório – tutela da confiança e venire contra factum proprium. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 107.
13 A expressão é de Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx, quando aduz: “Trata-se, portanto, a segurança jurídica, de um megaprincípio do Direito, o cimento das civilizações, que, entre outras importantes derivações relevantes para o Direito Administrativo, informa o princípio da confiança legítima, o princípio da boa-fé objetiva, o instituto de presunção de validade dos atos do Poder Público e a teoria da evidência”. Curso de Direito Administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 79.
a princípio e valor constitucional pela vigente Constituição da República, que consagra a inviolabilidade à segurança no caput do seu art. 5º (com- preendendo, como espécie, indubitavelmente, a segurança nas relações jurídicas), e assevera em seu preâmbulo que a instituição de um Estado Democrático se destina também a assegurá-la14. A proibição de agir con- traditoriamente vai ao encontro da exigência comum de estabilidade das relações jurídicas, porquanto a possibilidade de frustrar legítimas expec- tativas contraria o anseio coletivo pela paz social e frustra a própria finali- dade do Direito, que é o de promovê-la.
Além dos referidos fundamentos constitucionais, a proibição do comportamento contraditório tem por fundamento a boa-fé objetiva, ins- trumento de tutela da confiança legítima, princípio previsto no vigorante Código Civil (CC/2002) em seus artigos 113 e 422. O Código Civil revogado, na sua parte geral, não aludia uma única vez à boa-fé, nem mesmo como regra de interpretação dos negócios jurídicos. A boa-fé era apenas consi- derada como um preceito ético e por isso deveria estar aninhada na men- te das pessoas e não no texto legal. A boa-fé não era, assim, entendida como um conceito jurídico, mas um conceito ético; pertencia ao mundo da moral, e, portanto, era considerada apenas no seu aspecto subjetivo, isto é, não era uma regra obrigatória de conduta, não consubstanciava um dever jurídico.
Pelo novel diploma, a interpretação dos negócios jurídicos será feita conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração (art. 113, CC/2002), ou seja, a boa-fé foi erigida a regra de hermenêutica dos negó- cios jurídicos. Além de encerrar uma regra de interpretação, a boa-fé ob- jetiva foi alçada pelo vigente estatuto civil também como dever jurídico de comportamento das partes (art. 422, CC/2002), segundo a qual em todo e qualquer contrato, e ao longo de toda a sua execução, as partes são obrigadas a guardar a mais estreita transparência e probidade, o que já não constitui regra de hermenêutica, mas sim de conduta, vale dizer,
14 Como já tivemos a oportunidade de assinalar alhures, não é destituída de importância a inclusão da segurança jurídica no preâmbulo da Constituição, posto que essa revela os valores que inspiraram o constituinte originário na elaboração da Lei Maior (“Do prazo prescricional para o ajuizamento de ação civil pública”. Revista da AGU nº 20. Brasília-DF, abr./jun. 2009, p. 229). Nesta pauta, vale repisar lição de Xxxxxxx Xxxxxxx no sentido de que “o preâmbu- lo, como vimos, não contém normas, regras objetivas de direito, mas, tão-somente, princípios, enunciados teóricos, de caráter político, filosófico ou religioso, que integram a Constituição. Se as normas contidas nos artigos do estatuto supremo constituem, por assim dizer, o corpo da Constituição, é bem de ver que os princípios que se enunciam no preâmbulo, são o seu espírito. ‘Não é uma peça inútil ou de mero ornato na construção dela – sustentava Xxxx Xxxxxxxx – as simples palavras que o constituem, resumem e proclamam o pensamento primordial e os intuitos dos que a arquitetaram (Comentário à Constituição Federal, p. 2)”’. XXXXXXX, Xxxxxxx. Curso de Direito constitucional.
2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 97-98.
xxxxx xx xxxx, verdadeiro comando aos contratantes. A boa-fé passa a ser uma cláusula geral implícita de todo e qualquer negócio jurídico. A tercei- ra e última função atribuída pelo novel diploma, a boa-fé objetiva consiste em servir o preceito como limitador dos direitos subjetivos, impedindo o seu exercício abusivo.15 Com efeito, a concretização da teoria do abuso de direito impõe a consideração de que os direitos subjetivos são limitados pelo seu fim econômico ou social, pelos bons costumes e, principalmen- te, pela boa-fé (art. 187, CC/2002). Nesta pauta, cumpre registrar segura lição de Xxxxxxx Xxxxxxx, litteris:
[A]o condicionar o seu exercício a parâmetros de boa-fé, bons costumes e à finalidade sócio-econômica, o legislador submeteu os direitos – individuais e coletivos – aos valores sociais que estes conceitos exprimem. (...) Todo e qualquer ato jurídico que desrespeite tais valores, ainda que não seja ilícito por falta de previsão legal, pode ser qualificado como abusivo, ensejando a correspondente responsabilização16
Não poderíamos encerrar o presente tópico sem antes ressaltar que todos e tais princípios, aqui identificados como fundamentos jurídi- cos para a proibição de comportamento contraditório, convergem para a concretização da dignidade humana. Se tivéssemos que reconhecer uma norma como a mais importante na fisiologia constitucional, seria a cláu- sula geral de tutela da dignidade da pessoa humana, inscrita como funda- mento da República Federativa do Brasil, consoante dispõe o inciso III do art. 1º da Constituição Federal vigorante. Como se sabe, encerra a digni- dade da pessoa humana não apenas um critério de revelação de direitos implícitos, como também um critério exegético para interpretação dos direitos fundamentais já constantes da Constituição. Tal princípio informa todos os direitos e deveres inscritos no ordenamento e, consectariamen- te, condiciona a atividade do Poder Público, ao qual compete não apenas respeitar a dignidade humana mas, para além desse dever, cumpre con- ferir máxima efetividade ao princípio. Nesse sentido, asseverou Xxxxxx Xxxxxxxx, in verbis:
15 Sobre a tríplice função da boa-fé objetiva vide FARIAS, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; XXXXXXXXX, Xxxxxx. Direito civil –
teoria geral. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 511.
16 “Abuso do Direito no código de 2002. Relativização de direitos na ótica civil-constitucional”. In: XXXXXXXX, Xxxxx- vo (coord.). A parte geral do novo código civil – estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 394.
O princípio da dignidade da pessoa humana representa o epi- centro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos so- bre todo o ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas também toda a miríade de relações privadas que se desenvolvem no seio da sociedade civil e do mercado.17
I.3 - Instrumentalização jurídica do nemo potest venire contra factum proprium: pressupostos gerais para a aplicação do princípio
A aplicação do princípio da vedação ao comportamento contradi- tório pressupõe a ocorrência cumulativa de quatro eventos: (i) uma con- duta inicial – o factum proprium; (ii) a confiança legítima de outrem na preservação do sentido objetivamente extraído do factum proprium; (iii) o comportamento contraditório em relação ao sentido objetivo da condu- ta inicial; (iv) dano efetivo ou potencial. Passaremos, doravante, a cuidar separadamente de cada um desses pressupostos.
Muito embora a doutrina tenha cunhado a expressão factum pro- prium para se referir à conduta inicial, obviamente que a locução quer referir apenas à atuação humana e não, como induz o primeiro vocábulo, aos fatos jurídicos em sentido estrito, isto é, aos eventos da natureza. O que se exige, para a instrumentalização jurídica do princípio de proibição de comportamento contraditório, é que tenha havido um comportamen- to humano inicial, oriundo da vontade humana.
Essa conduta inicial que dá origem à aplicação da proibição do comportamento contraditório nem tampouco pode ser enquadrada na categoria de ato jurídico, mesmo considerado em seu sentido amplo, eis que ao factum proprium, diversamente do que ocorre aos atos jurídi- cos em geral, o ordenamento ou a vontade não atribui efeitos jurídicos específicos.18 Os efeitos que se atribuem à conduta inicial decorrem da necessidade de proteção à confiança legítima de outrem, amparada na expectativa de preservação do comportamento inicial. Daí haver Ander- son Xxxxxxxxx sintetizado, com precisão, que o factum proprium “não é jurídico, torna-se jurídico”.19
17 A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 59-60.
18 Sabe-se que os atos jurídicos em sentido estrito produzem efeitos ex lege, independentemente da vontade, ao passo que os efeitos dos negócios jurídicos produzem-se ex volutate. Por todos, cf. XXXXXXX, Xxxxxx X. Domingues de. Teoria geral da relação jurídica, v. II. Coimbra: Almedina, 1983, p. 8.
19 O eminente civilista enuncia exemplos elucidativos de factum proprium, litteris: “o comportamento concreto de uma das partes à margem das disposições contratuais, a sustentação de um certo sentido na interpretação de uma norma qualquer, as negociações preliminares a um contrato e qualquer outra conduta que não seja em si declarada
Por tais razões, o comportamento inicial também não se confun- de com o ato ilícito. Em se tratando de ilicitude, o ordenamento jurídico equacionará a questão, impondo ao fato as consequências jurídicas pre- vistas nos textos legais. A ilicitude não constitui, dessa forma, o próprio factum proprium, mas decorre da sua posterior contrariedade e do con- sequente ferimento à confiança legítima.20
Em sua origem, a conduta inicial seria um comportamento juridica- mente irrelevante, não destinado a produzir efeitos jurídicos imediatos. Todavia, ante a ausência de disposição legal expressa tendente a impe- dir ou punir a prática do comportamento contraditório em relação a essa conduta inicial, será por meio da aplicação do nemo potest venire contra factum proprium que será possível conferir consequências jurídicas à atu- ação contraditória, lesiva da confiança alheia. O espaço de incidência do princípio, portanto, é o das situações não resolvidas pelas formulações le- gais. Isto é: o princípio da proibição de comportamento contraditório ser- ve para fazer atuar a justiça material – aí especialmente compreendidos os seus fundamentos principais: solidariedade social, segurança jurídica, boa-fé, tutela da confiança – nos casos de violação à confiança legítima não solucionados pelo formalismo do direito positivado.
Resulta claro, dessa forma, que a atuação do princípio da proibi- ção ao comportamento contraditório pressupõe a existência da confiança legítima de outrem na preservação do sentido objetivo do factum pro- prium. Para que se conclua pela existência desse pressuposto, se faz indis- pensável aferir se houve adesão à conduta inicial e, portanto, se foi criada a legítima expectativa de preservação do sentido desse comportamento. Diz-se que a confiança deve ser legítima, isto é, deve decorrer natu- ralmente, razoavelmente, da conduta inicial. Assim, nos casos em que, ao tempo da prática da conduta, o agente do comportamento enuncia ou ob-
vinculante pelo ordenamento jurídico positivo. Por outro lado, a celebração de um contrato ou a emissão de uma promessa de recompensa não configuram tecnicamente um factum proprium, porque são já considerados vincu- lantes pelo direito positivo. (...) O rompimento de um vínculo jurídico (rectius: juridicamente estabelecido) já atrai a sanção do direito, pelo que perde sentido qualquer invocação de proteção à confiança em um comportamento coerente”. Op. cit., pp. 134/135.
20 Cumpre registrar julgado oriundo do C. Superior Tribunal de Justiça, in verbis: "Promessa de compra e venda. Consentimento da mulher. Atos posteriores. Venire contra factum proprium. Boa-fé. A mulher que deixa de assinar o contrato de promessa de compra e venda juntamente com o marido, mas depois disso, em juízo, expressamente admite a existência e validade do contrato, fundamento para a denunciação de outra lide, e nada impugna contra a execução do contrato durante mais de 17 anos, tempo em que os promissários compradores exerceram pacifica- mente a posse sobre o imóvel, não pode depois se opor ao pedido de fornecimento de escritura definitiva. Doutrina dos atos próprios. Art. 132 do CC. 3. Recurso conhecido e provido". (Superior Tribunal de Justiça, REsp n. 95539/ SP. Relator Min. Xxx Xxxxxx xx Xxxxxx, Data da Decisão 03/09/1996, Órgão Julgador: Quarta Turma, Fonte DJ Data: 14/10/1996, p. 39.015).
jetivamente sugere que poderá modificá-la, ou quando, desde a sua rea- lização, espera-se que a conduta inicial provavelmente não se confirmará, não haverá legítima confiança, podendo haver, isto sim, má-fé (ou mesmo ingenuidade excessiva) de quem alega haver criado fundada expectativa. A incidência do nemo potest venire contra factum proprium pres- supõe, ainda, que ocorra de fato a contrariedade em relação ao senti- do objetivo de uma conduta anterior, geradora de confiança legítima em outrem. Em outras palavras: deve ser perquirido se houve a ruptura da confiança em razão do comportamento contraditório. Segundo Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx, a contradição com a conduta anterior se situa dentro da ideia de incompatibilidade, definida de acordo com o critério imperante na consciência social.21 O exame deve ser objetivo, desconsiderando a inten-
ção do agente das condutas: desde que a incompatibilidade gere a quebra da confiança legítima, estará atendido o pressuposto do comportamento contraditório para efeitos de aplicação do nemo potest venire contra factum proprium.
O objeto da tutela do princípio não é a coerência entre os compor- tamentos, mas, sim, a confiança que a conduta inicial provocou, preser- vando-se a lealdade entre o agente e o destinatário da conduta. Elucidati- vo, nesse sentido, o magistério de Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxx, verbis:
Na proibição do venire incorre quem exerce posição jurídica em contradição com o comportamento exercido anterior- mente, verificando-se a ocorrência de dois comportamentos de uma mesma pessoa, diferidos no tempo, sendo o primei- ro (o factum proprium) contrariado pelo segundo. Consiste, pois, numa vedação genérica à deslealdade22
Além da conduta inicial, da confiança legítima e do comportamento contraditório, mais um pressuposto deve ser atendido para operar a inci- dência do nemo potest venire contra factum proprium: o dano efetivo ou potencial em decorrência da quebra da confiança. Sem dano latente, não há o que se impedir; sem prejuízo concreto, nada haverá a ser reparado.
21 XXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx. El princípio general de la buena fe en el Derecho Administrativo. 3. ed. Madrid: Civitas, 1999, p. 207-208.
22 A ilicitude derivada do exercício contraditório de um direito: o renascer do venire contra factum propium. Revista Forense n. 376. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 110.
Assim, a incompatibilidade entre comportamentos e a ruptura da confiança só justificam a atuação do princípio se houver dano ou ameaça de dano a outrem imputável ao comportamento contraditório. Compreendem-se na ideia de dano tanto a lesão patrimonial, decorrente da redução na esfera patrimonial, quanto a moral, isto é, imaterial e psicológica, derivada da violação à dignidade humana. 23
I.4 - Formas da tutela instrumentalizada pelo princípio de proibição ao comportamento contraditório
Visto que tanto o dano potencial – isto é, o dano latente, que se encontra na iminência de ocorrer – quanto o efetivo ensejam a incidência do princípio de proibição ao comportamento contraditório, pode-se dizer que duas são as formas da tutela operada pelo princípio sob esse ângulo: preventiva ou repressiva.
Indubitavelmente que a forma preventiva, decorrente da aplicação do princípio ante a ameaça de dano, é a mais eficaz, tendo em vista que, nesse caso, não terá ocorrido concretamente qualquer prejuízo. Aqui, o nemo potest venire contra factum proprium irá incidir para impedir que o comportamento contraditório seja praticado. Essa espécie de tutela se funda, portanto, na ameaça ao direito. Processualmente, essa modalidade de pretensão poderá ser deduzida por meio de ações inibitórias específi- cas, previstas pelo ordenamento jurídico (de que é exemplo o mandado de segurança preventivo), nada impedindo a utilização de ação inibitória genérica, fundada no art. 5º, XXXV, CRFB/88.24
Questão tormentosa para a efetivação da tutela inibitória – isto é, nas demandas cujo objeto seja prevenir a futura lesão – é relativa à prova da demonstração da probabilidade de ocorrência do dano ou mesmo do ato contrário ao direito. Nesta hipótese, será sempre necessária a com- provação de uma conduta concreta que esteja a pôr em risco o direito do autor. Usando os mesmos critérios utilizados por Xxxx Xxxxxx para a utilização do mandado de segurança preventivo, pode-se afirmar que a probabilidade de ocorrência do dano demonstra-se a partir de “atos pre- paratórios ou indícios razoáveis, a tendência de praticar atos, ou omitir-se
23 Cf. XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 795.
24 Cf., por todos, XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxx. Manual do processo de conhecimento. 3. ed.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 343.
a fazê-lo, de tal forma que, a conservar-se este propósito, a lesão de direi- to se torne efetiva”.25 Xxxx xxx Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx, ao também cuidar dos critérios objetivos para a admissibilidade do mandado de segurança na modalidade preventiva, fixa diretrizes que podem seguramente ser uti- lizadas para aferir se a prática do comportamento contraditório deve ou não ser impedida. Nas palavras do ilustre administrativa:
o primeiro deles é o da realidade, pelo qual o impetrante de- monstra realmente que o ato vai ser produzido; o outro é o da objetividade, segundo o qual a ameaça de lesão deve ser séria, não se fundando em meras suposições; o último é o da atualidade, que indica que a ameaça é iminente e deve estar presente no momento da ação, não servindo, pois, ameaças pretéritas e já ultrapassadas.26
A tutela repressiva será necessária nas hipóteses em que a conduta contraditória houver provocado o dano efetivo, nada havendo a se impe- dir. No direito contemporâneo, que privilegia a execução específica e a concreta satisfação dos interesses, a tutela repressiva deve ser utilizada subsidiariamente, apenas nos casos em que a forma preventiva não tenha mais utilidade, isto é, quando a inibição ou o desfazimento da conduta que se pretendeu impedir não seja mais viável ou torne impossível o re- torno ao status quo ante.
25 “Mandado de Segurança Preventivo”. Revista de direito administrativo, v. 61. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Xxxxxx, 1960, p. 220.
26 Manual de Direito Administrativo. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 815, grifos no original. Em se tra- tando de mandado de segurança, já houve polêmica acerca da hipótese em que, impetrado o competente mandado de segurança preventivo, a autoridade, ainda assim, praticasse o ato que se visava a impedir. Havia, nestes casos, quem defendesse ter perdido a impetração seu objeto com a simples prática do ato pelo Poder Público. O impetran- te, de acordo com este entendimento, deveria modificar a modalidade da garantia impetrada, ajuizando, portanto, novo mandado de segurança, na espécie repressiva. A jurisprudência atual, no entanto, atendendo à lógica e aos postulados do Direito processual brasileiro, notadamente aos princípios da efetividade, da instrumentalidade e da economia processual, considera que o mandado não ficará prejudicado caso praticado o ato que se visa a impedir, “devendo este ser anulado e desconstituído na hipótese de concessão da segurança” (XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. Man- dado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, habeas data, ação direta de inconsti- tucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade e argüição de descumprimento de preceito fundamental. 23ª ed. atual. por Xxxxxxx Xxxx e Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 24). O eminente autor ainda relaciona julgados do Colendo Superior Tribunal de Justiça no sentido do texto (RMS 5.051-3-RJ, Relator o Ministro Xxx Xxxxxxxxxx, RSTJ 75/165; RMS 6.130-RJ, Relator o Ministro Xxxxx Xxxxxxx, RSTJ 119/566). Para maior aprofundamento do assunto, v. FACCI, 2004, p. 42-44. Obviamente que a mesma solução deve ser observada nos casos de aplicação do princípio de proibição de comportamento contraditório na modalidade preventiva em que, posteriormente, seja concretamente praticada a conduta que se procurou impedir.
II - O PAPEL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FACE À NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL
II.1 - A redefinição dos paradigmas do Direito Administrativo na contem- poraneidade
Xxxxxx Xxxx, ao publicar seu famoso estudo sobre a forma como evolui a ciência27, formulou a proposição teórica segundo a qual o conhe- cimento não progride evolutiva e pacificamente mas sim por rupturas, por grandes saltos, por profundas alterações de paradigmas, entendidos estes últimos como pré-compreensões que integram o pano de fundo da linguagem. Tal pano de fundo decorre de práticas sociais que a sociedade realiza cotidianamente sem se aperceber delas e que conformam o modo próprio de olhar, de crer. É com a mudança das condições paradigmáticas tradicionais que ocorrem as revoluções científicas e, consequentemente, o progresso da ciência. Sobre a ideia de paradigma, cumpre transcrever precisa lição de Xxxxxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxx, in verbis:
Tal noção apresenta um duplo aspecto. Por um lado, possibi- lita explicar o desenvolvimento científico como um processo que se verifica mediante rupturas, através da tematização e explicitação de aspectos centrais dos grandes esquemas ge- rais de pré-compreensões e visões-de-mundo, consubstan- ciados no pano-de-fundo naturalizado de silêncio assentado na gramática das práticas sociais, que a um só tempo tornam possível a linguagem, a comunicação, e limitam ou condicio- nam o nosso agir e a nossa percepção de nós mesmos e do mundo. Por outro, também padece de óbvias simplificações, que só são válidas na medida em que permitem que se apre- sentem essas grades seletivas gerais pressupostas nas visões de mundo prevalentes e tendencialmente hegemônicas em determinadas sociedades por certos períodos de tempo e em contextos determinados.28
No campo do Direito Administrativo, a nova interpretação decor- rente dos princípios constitucionais consagrados pela Constituição Fede- ral de 1988 representou importante ruptura com as antigas concepções
27 A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1994.
28 “A hermenêutica constitucional sob o paradigma do Estado Democrático de Direito”. Notícia do direito brasileiro.
Nova Série. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 6, 1999, p. 236-237.
teóricas aplicadas a esse ramo da ciência jurídica, até então impregnadas de formulações mais comprometidas com a preservação da autoridade da Administração Pública do que com a realização plena do Estado Democrá- tico de Direito. Com efeito, a evolução histórica do Direito Administrativo resulta da tensão dialética entre a lógica da autoridade (poder) e a lógica da liberdade (direitos individuais).29
A vigorante Constituição, ao firmar como fundamento da República a dignidade humana, enunciar extenso rol – registre-se: não taxativo (§ 2º do art. 5º, CRFB/88) – de princípios e garantias fundamentais e dedicar diversas normas à disciplina da Administração Pública, impôs uma relei- tura das antigas categorias jurídicas até então forjadas para afirmar, por exemplo, a supremacia do interesse público sobre o privado, a restrita vinculação positiva do administrador às leis infraconstitucionais e a im- possibilidade de controle judicial do mérito administrativo. Nesse sentido, é a assertiva de Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, verbis:
Por fim, mais decisivo que tudo para a constitucionalização do direito administrativo, foi a incidência no seu domínio dos princípios constitucionais – não apenas os específicos, mas sobretudo os de caráter geral, que se irradiam por todo o sistema jurídico. Também aqui, a partir da centralidade da dignidade humana e da preservação dos direitos fundamen- tais, alterou-se a qualidade das relações entre Administração e administrado, com a superação ou reformulação de para- digmas tradicionais.30
A doutrina administrativista clássica reiteradamente refere à su- premacia do interesse público sobre o interesse particular como “verda- deiro axioma reconhecível no Direito Público” 31, “objetivo primacial da Administração”32 e “grande princípio informativo do Direito Público”33. A concepção a respeito do princípio parte da premissa de que o interes- se público não se confundiria com os interesses pessoais dos integrantes
29 No sentido do texto, BINENBOJM, Xxxxxxx. “A constitucionalização do Direito Administrativo no Brasil: um inven- tário de avanços e retrocessos”. In: XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx (org.). A Reconstrução democrática do Direito Público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 500-501.
30 Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 374-375.
31 XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx de. Curso de Direito Administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 41.
32 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. Direito Administrativo Brasileiro. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p.43.
33 Cf. XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Direito Administrativo. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 20. No mesmo sentido,
v. XXXXXXXXX XXXXXX, Xxxx. Tratado de Direito Administrativo, v. 10, Rio de Janeiro: Forense, 1972, p. 39.
da sociedade, sendo que o primeiro estaria necessariamente identificado com a ideia de bem comum, coletivo, devendo prevalecer sobre o interes- se individual, particular, egoístico.
Todavia, com o processo de constitucionalização do Direito Admi- nistrativo – experimentado, a rigor, por todos os ramos do Direito34 –, que impôs o respeito e cumprimento pela Administração Pública dos valores erigidos a mandamentos constitucionais, tais como dignidade humana, justiça material, segurança, isonomia, bem-estar social etc., a realização do interesse público, muitas vezes, consistirá exatamente na tutela de in- teresses privados, de forma que esse amálgama conceitual formado pelo que se supõe ser interesse público, coletivo ou privado impede que se possa cogitar de uma supremacia a priori de um sobre o outro.35
Não negamos, assim, a existência de um interesse público, mas apenas não perfilhamos da ideia de que exista, no ordenamento, princí- pio que estabeleça a supremacia incondicional e apriorística de um valor, princípio ou direito sobre outros. Com efeito, partindo da premissa te- órica de Xxxxxx Xxxxxxx, segundo a qual há apenas uma única decisão correta para cada caso36, à Administração Pública incumbe, consideradas todas as circunstâncias de fato, o dever de extrair qual o interesse públi- co a ser promovido na hipótese enfrentada, considerando não apenas a inequívoca unicidade e irrepetibilidade de cada caso mas, sobretudo, a complexidade do ordenamento jurídico, composto de princípios e regras, de forma que a ordem jurídica deve ser reconstruída de todas as perspec- tivas possíveis com o propósito de alcançar a norma adequada capaz de produzir justiça material em cada caso específico.
Além disso, não se pode olvidar que o direito à igualdade (art. 5º, caput e inciso I, CRFB/88) incide também sobre as relações entre a Ad- ministração Pública e os particulares. Não se pode, assim, favorecer um grupo em detrimento de um grupo menor ou de apenas um indivíduo simplesmente sob o vago argumento do bem comum. A isonomia, como assim todos os direitos fundamentais, densifica o valor da dignidade da pessoa humana, alçado pela vigorante Constituição Federal a fundamento da República (artigo 1°, inciso III). 37
34 A esse respeito, v., por todos, XXXXXXX, 2009, p. 360-394.
35 Cf. BINENBOJM, Xxxxxxx Xxx Teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitu- cionalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar 2008, p. 308-311.
36 As formulações teóricas do autor, nesse sentido, encontram-se em suas obras Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002 e Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
37 Diversos dispositivos constitucionais materializam o princípio da dignidade da pessoa humana, de que são exem- plos, além da regra da igualdade, os direitos de acesso à educação, à justiça, a proibição de confisco, a vedação à
A constitucionalização do Direito Administrativo impôs, ainda, uma reformulação do princípio da legalidade estrita, passando a significar tal formulação que o administrador não está apenas positivamente vinculado às leis infraconstitucionais mas, também e principalmente, aos princípios e regras constitucionais. A legalidade administrativa, assim, consiste em mais um princípio inserido no âmbito dos princípios e regras constitucionais, dos quais, inegavelmente, também é destinatário o administrador público, competindo-lhe o dever de, mesmo na ausência de regra legal específica – tendo em vista a força normativa dos princípios constitucionais –, materia- lizar as normas constitucionais no caso concreto, em ordem a atender aos postulados de cidadania, solidariedade e, principalmente, justiça material, objetivos perseguidos, por mandamento constitucional, pela vigorante Re- pública Federativa do Brasil. Esse fenômeno tem levado parcela da doutri- na a aludir ao princípio da constitucionalidade ou da juridicidade.38
Além disso, o princípio da eficiência, introduzido pela Emenda Cons- titucional nº 19/1998 no caput do art. 37 da vigente Constituição, como um dos princípios vetores da Administração Pública em todas as esferas federativas, decorre da implementação do novo modelo de Estado, agora gerencial, através do qual é modificada a ideia de legalidade adotada no antigo modelo burocrático, segundo a qual a legalidade era o parâmetro definitivo acerca da validade de um ato da Administração Pública, restan- do em segundo plano a efetividade, isto é, o resultado prático de tal ação. O novo modelo de Estado deixa de controlar o procedimento legal em favor da qualidade dos resultados efetivamente obtidos pela conduta do Poder Público.39
Pode-se afirmar, a título de exemplo, que a juridicidade das agên- cias executivas e dos contratos de gestão se ampara, basicamente, na circunstância de que tais figuras estão em perfeita sintonia com o mo- delo de Estado plasmado na vigorante Constituição: gerencial, cuja fina- lidade é atingir a eficiência, esvaziando-se a importância da forma em favor do cumprimento dos fins impostos pela nova ordem constitucio-
prática de tortura, dentre muitos outros. Nesta pauta, cabe ressaltar que os direitos sociais consagrados no texto constitucional, também materializadores da dignidade humana, impõem prestações positivas ao Poder Público com vistas à sua plena realização, sendo que, dentre eles, o direito fundamental à saúde se destaca pela especial relevân- cia e gravidade: é pressuposto essencial para o pleno gozo e obtenção dos demais direitos fundamentais.
38 Por todos, v. XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. Op cit., p. 375-376 e BINENBOJM, Xxxxxxx. Op. cit., p. 311-313.
39 A respeito do modelo de Estado gerencial, v. XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. A noção de Administração Pública e os critérios de sua atuação. Brasília/DF: CEAD/UnB, 2009 34 p. (Pós-graduação em Direito Público). Dispo- nível em: <xxxx://xxxxxx.xxxx.xxx.xx/xxx/xxxx.xxx/ 9/Biblioteca/Textos-base/1_-_Texto-base_1.pdf>. Acesso em: 18 mar. 2009, p. 21-26.
nal. Assim, a constitucionalidade de tais figuras jurídicas decorre de seu fundamento sociopolítico: a reformulação do modelo de Estado, com redução do seu tamanho, deixando de agir diretamente e passando a intervir por regulação e através de parceria, tendo como finalidade pri- meira não mais cumprir formalmente o ordenamento, mas sim atingir o interesse público com eficiência.
Nesse sentido, é a contundente lição de Xxxxx xx Xxxxxxxxxx
Xxxxxxx Xxxx, litteris:
Realmente, com o desenvolvimento dos conceitos da admi- nistração pública gerencial, que revelam grande influência do pragmatismo do direito público anglo-saxônico, passou-se a reconhecer não ser o bastante praticar-se atos que, simples- mente, estejam aptos a produzir os resultados dele esperados, o que atenderia ao conceito clássico de eficácia. Exigiu-se mais, que esses atos devam ser praticados com tais qualidades intrín- secas de excelência, que possibilitem lograr-se o melhor atendi- mento possível das finalidades para ele previstas em lei40
Assim, atualmente, ao administrador público não cumpre apenas aferir se há norma legal que impede ou autoriza a prática de determinado ato: somente nas hipóteses em que a conduta administrativa revelar-se eficiente é que deverá ser empreendida pela Administração Pública.
A nova ordem constitucional impôs, ainda, releitura da decantada regra da impossibilidade de controle judicial do mérito administrativo, eis que seria esse privativo da própria Administração Pública e não se sub- meteria à interferência do Poder Judiciário.41 Com a constitucionalização do Direito Administrativo, não se concebe mais a existência de liberdade decisória da Administração Pública infensa ou mesmo livre da incidência das regras e princípios constitucionais.42
Essas transformações vivenciadas pelo Direito Administrativo – que não se limitam aos fenômenos referidos neste tópico – decorrem do reco-
40 Op. cit., p. 106.
41 Afirmação encontrada, v.g., em XXXXXXXX XXXXX, Xxxx xxx Xxxxxx, Op. cit., p. 749.
42 Segue-se, aqui, posição defendida em BINENBOJM, Xxxxxxx. Op. cit., p. 314-316. No mesmo local, assevera o autor que existem graus de vinculação à juridicidade, conforme sejam os atos administrativos vinculados por regra (vinculação maior), por conceitos jurídicos indeterminados (vinculação intermediária) ou diretamente por princípios (vinculação menor). Daí decorre que o grau de controlabilidade judicial dos atos administrativos deverá ser propor- cional ao grau de vinculação da Administração Pública à juridicidade. Além disso, nas hipóteses em que, pela alta complexidade e especificidade da matéria, careça o Poder Judiciário de parâmetros seguros e objetivos para aferir a juridicidade do ato administrativo, menor deverá ser o controle exercido.
nhecimento da força normativa das normas constitucionais, cujos valores, princípios e regras se irradiam por todo o ordenamento jurídico. A Consti- tuição, assim, “outrora um documento meramente simbólico e desprovido de força normativa, veio a se materializar e tornar-se operativa”43, im- pondo a redefinição dos paradigmas até então isoladamente construídos pelos diversos ramos do Direito.
II.2 - O cidadão-administrado como foco principal do Direito Administra- tivo brasileiro contemporâneo.
A inequívoca modificação dos pressupostos teóricos do Direito Ad- ministrativo pela Constituição Federal de 1988 implicou em uma mudan- ça do foco principal da atuação da Administração Pública, antes calcada no melhor interesse do Estado e agora direcionada à realização plena da cidadania, alçada pela vigente Constituição Federal a fundamento da Re- pública (art. 1º, inciso II, CRFB/88). Como muito bem anotou, em sede doutrinária, Uadi Lammêgo Bulos, cidadania não consubstancia apenas a prerrogativa de exercício de direitos políticos, servindo também, como “critério a ser observado como indispensável ao gozo de certas prerro- gativas e garantias constitucionais”44, a partir da consideração de que o cidadão é partícipe da vida democrática do Estado.
Com essa mudança de perspectiva, o Direito Administrativo deixa de conferir maior atenção aos poderes unilaterais do Estado e aos atribu- tos do ato administrativo para direcionar o seu campo de estudo, princi- palmente à incidência dos princípios constitucionais nas relações jurídico- administrativas e ao dever de observância pelo Poder Público dos direitos fundamentais do cidadão-administrado. A partir da nova ordem constitu- cional, o objeto de investigação do Direito Administrativo contemporâneo passa a ser fundamentalmente a relação entre a Administração Pública e os administrados.
Sobre a mudança de perspectiva do Direito Administrativo imposta pela vigente Constituição, cumpre registrar inspirada síntese da publicista Xxxxxxxx Xxxxxxxx, in verbis:
Com efeito, de um direito administrativo calcado sobre as premissas da unilateralidade, da imperatividade e da supre-
43 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx; XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx. Curso de Direito Consti- tucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 180.
44 Constituição Federal anotada. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 82.
macia de um interesse público ditado essencialmente pela própria Administração, evoluiu-se – pois, inequivocamente, tratou-se de uma evolução – para um direito administrativo marcado pela ascensão do cidadão-administrado à condição de objeto central dos cuidados da disciplina e submisso aos princípios e direitos fundamentais. A Administração cedeu sua vez ao cidadão como foco principal das preocupações do direito administrativo.45
Esse novo enfoque no plano teórico do Direito Administrativo cor- responde, no plano prático, ao efetivo respeito pelo Estado dos direitos dos cidadãos, apoiando-se sempre no pressuposto de que o ser humano é um fim em si mesmo e nunca mero meio para atingir objetivos coleti- vos ou outros individuais. Assim, deve o Poder Público materializar, nas relações jurídico-administrativas, valores como democracia, moralidade, dignidade humana, consagrados pelo texto constitucional.
Como decorrência do dever de observância de tais imperativos constitucionais pela Administração Pública exsurge o princípio da cida- dania como afirmação do cidadão-administrado como o “protagonista político e jurídico do Estado”46, significando que ao cidadão cumpre não apenas exercer o papel de definir os fins, meios e limites das ações do Poder Público como, principalmente, ser o destinatário imediato dessas ações. Nessa direção, o constitucionalismo contemporâneo reclama a de- mocracia como exigência de efetiva participação dos sujeitos constitucio- nais, que passam a ocupar cumulativamente e de forma mais concreta os papéis de criadores e beneficiários das normas jurídicas.
No campo da hermenêutica, caminhando ao encontro do dever de aplicação das leis de forma compatível com as necessidades sociais, sobreleva de importância a mutação constitucional como técnica consis- tente na nova interpretação conferida às normas constitucionais sem que tenha havido modificação do seu texto. De fato, como adverte Xxxx Xxxxx- to Barroso, “a norma jurídica fornece ao intérprete apenas um início de
45 “Os limites constitucionais à autotutela administrativa: o dever de observância do contraditório e da ampla defesa antes da anulação de um ato administrativo ilegal e seus parâmetros”. In: XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx (org.). A Reconstrução democrática do Direito Público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 547-548. Recentemente assinalou o Supremo Tribunal Federal que “todo agente público está sob permanente vigília da cidadania. E quando o agente estatal não prima por todas as aparências de legalidade e legitimidade no seu atuar oficial, atrai contra si mais fortes suspeitas de um comportamento antijurídico francamente sindicável pelos cidadãos” ADPF 130/DF, Tribunal Pleno, Relator Ministro Xxxxxx Xxxxxx, Fonte: DJe-208 06-11-2009.
46 XXXXXXX XXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxxxx. Op. cit., p. 79.
solução, não contendo, no seu relato abstrato, todos os elementos para determinação do seu sentido”.47 Essa técnica, adotada pela Suprema Corte brasileira48, consubstancia exemplo contundente do dever de observância às aspirações sociais para a justa aplicação do ordenamento jurídico.
II.3 - Limites constitucionais à autotutela administrativa
Como se sabe, estando a Administração Pública sujeita ao ordena- mento jurídico, a ela compete exercer o controle de juridicidade dos seus atos, com a possibilidade de anular os ilegais e revogar os inconvenientes ou inoportunos, independentemente de prévia autorização pelo Poder Judiciário.
Esse poder, conhecido como autotutela administrativa, está con- sagrado em duas súmulas da jurisprudência dominante do Supremo Tri- bunal Federal, as quais, em síntese, afirmam que a Administração Pública pode anular os seus próprios atos quando eivados de vícios que os tor- nem ilegais, ou revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apre- ciação judicial.49
Considerando que tais enunciados foram editados pela Suprema Corte brasileira antes da Constituição Federal de 1988, atualmente se re- conhece que não apenas os direitos adquiridos, atos jurídicos perfeitos ou coisa julgada (art. 5º, XXVI, CRFB/88) encerram limites do exercício da autotutela administrativa, sendo certo que a nova ordem constitucional impôs ao Poder Público novos parâmetros para o desempenho válido dessa prerrogativa, tais como os princípios da moralidade administrativa (art. 37, caput, CRFB/88), da tutela à confiança legítima (art. 5º, caput, CRFB/88), da motivação dos atos administrativos (art. 93, X, CRFB/88), en- tre outros. Nesse sentido, é o magistério doutrinário de Almiro do Couto e Xxxxx, litteris:
É interessante seguir os passos dessa evolução. O ponto ini- cial da trajetória está na opinião amplamente divulgada na literatura jurídica de expressão alemã do início do século (séc. XX) de que, embora inexistente, na órbita da Adminis- tração Pública, o princípio da res judicata, a faculdade que
47 A Reconstrução democrática do Direito Público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 13.
48 v. HC-QO 86009/DF; Órgão Julgador: Primeira Turma; Relator(a): Min. XXXXXX XXXXXX; DJ 27.04.2007 p. 67. 49 Cf. Súmulas do STF de nºs 346 e 473.
tem o Poder Público de anular seus próprios atos tem limite não apenas nos direitos subjetivos regularmente gerados, mas também no interesse em proteger a boa-fé e a confiança (Xxxxx und Glauben) dos administrados.
(...)
Esclarece Xxxx Xxxxxx que nenhum outro tema despertou maior interesse do que este, nos anos 50, na doutrina e na jurisprudência, para concluir que o princípio da possibilida- de de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa-fé e à segurança jurídi- ca. Informa ainda que a prevalência do princípio da legali- dade sobre o da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário por meios ilícitos por ele utilizados, com culpa sua, ou resulta de procedimento que gera sua responsabilidade. Nesses casos, não se pode falar em proteção à confiança do favorecido.50
Além desses limites de caráter substanciais, pode-se apontar como pré-requisitos de natureza procedimental para o exercício da autotutela pelo Poder Público os princípios da publicidade dos atos administrativos (art. 37, CRFB/88) e do devido processo legal (art. 5º, LIV, CRFB/88). Como corolários do devido processo legal, erigidos ao patamar de garantias constitucionais, a vigente Constituição impôs à Administração Pública o dever de assegurar efetivamente a ampla defesa e o contraditório aos liti- gantes em processo administrativo (art. 5º, LV, CRFB/8851). Na feliz síntese de Xxxxxxxx Xxxxx, o essencial é que a decisão a respeito da revisão do ato administrativo decorra de um procedimento regular e não de mera suposição antecipada da autoridade revisora.52 Significa que a lei deve ins- tituir os meios para a participação dos litigantes no processo administrativo, devendo o administrador público franquear esses meios, viabilizando,
50 “Os princípios da legalidade da administração pública e da segurança jurídica no Estado de Direito contem- porâneo”. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, v. 18, nº 46. Porto Alegre: Instituto de Informática Jurídica do Estado do Rio Grande do Sul, 1988, p.11-29.
51 Tais direitos foram também expressamente assegurados pela Lei 9.784/99, que rege as regras do processo ad- ministrativo no âmbito federal.
52 “Benefícios fiscais inválidos e a legítima expectativa dos contribuintes”. Revista Eletrônica de Direito Adminis- trativo Econômico, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 04, nov/dez/2005, jan 2006. internet: www. xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx. Acesso em 20/02/2008, p.3.
pelas partes interessadas, o exercício pleno de defesa e de influir eficaz- mente na decisão a ser prolatada no caso concreto.
Sabe-se que uma das principais funções dos direitos fundamentais é a de dar garantia ao indivíduo contra a invasão indevida do Estado em sua esfera de liberdade. A Constituição vigente, fundamento máximo de validade de toda a ordem jurídica, impõe valores e princípios de inafas- tável aplicação pelo Estado em qualquer uma de suas funções – seja no desempenho de atividade legislativa, jurisdicional e, assim, também pela Administração Pública. Assim, no que tange ao poder de anular e revisar seus próprios atos, o respeito aos princípios constitucionais acima enun- ciados impede que a Administração Pública promova a revisão dos pró- prios atos sem considerar os efeitos nocivos daí decorrentes53 e – princi- palmente quando se trate de ato favorável ao cidadão – sem respeitar os limites constitucionais de proteção ao administrado.
III - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DE PROIBIÇÃO AO COMPORTAMEN- TO CONTRADITÓRIO NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
III.1 - Fundamentos de juridicidade da oponibilidade do princípio de proibição de comportamento contraditório ao Poder Público. A teoria das autolimitações administrativas.
Verificados os fundamentos normativos do nemo potest venire con- tra factum proprium – identificados, principalmente, nos princípios da so- lidariedade social, segurança jurídica, boa-fé objetiva e respeito à dignida- de da pessoa humana – e definido o atual papel da Administração Pública ante os novos paradigmas do Direito Administrativo, cujo principal foco é o respeito ao cidadão-administrado, podemos afirmar positivamente a questão sobre a aplicação do princípio de proibição de comportamento contraditório na esfera das relações de Direito Público.
O problema pode ser encontrado em diversos aspectos das relações jurídico-administrativas, como ocorre nas situações, v.g., em que mais de um órgão da Administração Pública possua competência para fiscalizar determi- nada conduta levada a efeito por um particular, ensejando a possibilidade de serem praticados atos administrativos conflituosos. Ou ainda nos casos em que a Administração, modificando sua interpretação, pratica ato incompatí- vel com o anterior sem que tenha havido modificação no plano fático.
53 Cf. XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Op. cit., p. 248.
Em casos como esses, referidos apenas a título de exemplo, apli- ca-se a teoria das autolimitações administrativas54, que consubstancia a incidência do nemo potest venire contra factum proprium no âmbito da Administração Pública, impedindo que o Poder Público, ante os mesmos elementos de fato, adote entendimentos contraditórios ou em desacordo com os precedentes anteriormente firmados em sede administrativa.
Com efeito, ainda que, por hipótese, se pretenda restringir a apli- cabilidade da boa-fé objetiva às relações privadas, por se cuidar de princí- pio normativamente tratado pelo vigorante Código Civil (arts. 113, 187, e 422)55, deve-se admitir a aplicação do princípio de vedação ao comporta- mento contraditório nas relações jurídico-administrativas como decorrên- cia lógica da aplicação dos valores constitucionais da solidariedade social, segurança jurídica e dignidade humana e da observância dos princípios constitucionais dirigidos à Administração Pública, em especial a moralida- de administrativa (art. 37, caput, CRFB/88).
O princípio da moralidade administrativa, também consagrado pela Lei 9.784/99 como dever do Poder Público de “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé” (art. 2º, parágrafo único, IV), cons- titui pressuposto de juridicidade de todo e qualquer ato da Administra- ção Pública. Amparando-se em lição de Xxxxxxx Xxxxxxx, o mestre Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxx leciona que esse princípio impõe ao agente público um dever ético de honestidade e lisura na sua conduta, não se limitando a “decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o ho- nesto e o desonesto.”56. Na mesma direção, Xxxxx Xxxxxxx assevera que a moralidade administrativa abriga o princípio da boa-fé, vedando-se, nas relações administrativas, “toda atuação contrária à conduta reta, normal e honesta que cabe desejar no tráfego jurídico”.57
Ressalte-se que a conduta inquinada de imoralidade está expressa- mente sujeita à ação popular (art. 5º, LXXIII, CRFB/88 e Lei nº 4.717/65),
54 Por todos, v. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx. “Teoria das autolimitações administrativas: atos próprios, confiança legítima e contradição entre órgãos administrativos”. Revista de Direito do Estado nº 4. Rio de Janeiro: Renovar, outubro/dezembro de 2006, p. 231-244.
55 Entendimento que usamos apenas a título de argumentação, pois pensamos que o princípio da boa-fé objetiva rege todas as relações jurídicas, como expressão dos deveres de cooperação, respeito e lealdade que se impõem às partes de qualquer relação contratual, seja ela privada ou administrativa.
56 Op. cit., p. 83.
57 MODESTO. Paulo. “Controle jurídico do comportamento ético da Administração Pública no Brasil”. Revista Ele- trônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 10, jun/jul/ago/2007, Internet: xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx. Acesso em 10/03/2008, p. 7.
cuja legitimação ativa é conferida a qualquer cidadão. Muito embora res- peitável doutrina processual contemporânea impute o mau uso à ausên- cia de condições técnicas do cidadão para, em juízo, promover a efeti- va proteção do direito violado em face da Administração Pública ou de grandes sociedades empresárias58, a ação popular representa, conforme já tivemos oportunidade de afirmar alhures59, instrumental de inegável importância para a realização plena do Estado Democrático de Direito, ao conferir efetividade à democracia participativa como exercício da sobera- nia popular (artigos 1º e 14 da Constituição da República).
Pode-se afirmar, ainda, que o dever de coerência por parte da Ad- ministração Pública decorre também do princípio constitucional da igual- dade (art. 3º, IV, e art. 5º, caput e inciso I, CRFB/88), na medida em que a exigência de que sejam perpetradas as mesmas condutas ante as mesmas situações vai ao encontro da isonomia, que impõe igual tratamento a situ- ações iguais, não sendo lícito à Administração agir de outra forma quan- do presentes os mesmos elementos fáticos ou em situações jurídicas que contenham a mesma ratio.60 Nessa pauta, pode-se afirmar que o princípio da impessoalidade administrativa (art. 37, caput, CRFB/88), como proje- ção da isonomia, também encarta-se como fundamento normativo para a aplicação do princípio de vedação ao comportamento contraditório nas relações de Direito Público.
Ressalte-se que a incidência dos aludidos princípios constitucionais no âmbito das relações jurídico-administrativas, bem como o inafastá- vel dever de respeito pela Administração Pública dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos-administrados impedem que o Poder Público deixe de cumprir tais mandamentos constitucionais ao argumento da pro- teção ao erário.
Assim, a vetusta afirmação de que haveria um interesse público pri- xxxxx, identificado no interesse da sociedade, e outro secundário, que seria o interesse fazendário, de arrecadação e de proteção do patrimô- nio público61, embora possa conter algum valor científico, não serve como critério para determinar a esfera de atuação do Ministério Público e
00 Xxxxx xxxxxxx, x. XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxx, Op. cit., p. 786.
59 “Do prazo prescricional para o ajuizamento de ação civil pública”. Revista da AGU nº 20. Brasília-DF, abr./jun.
2009, p. 221.
60 No mesmo sentido, XXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx. El princípio general de la buena fe en el Derecho Administrativo. Madrid: Civitas, 1983, p. 122.
61 Essa classificação é oriunda de doutrina italiana, encontrada em ALESSI, Xxxxxx. Sistema istituzionale del diritto amministratitivo italiano. 3. ed., Xxxxx, Xxxxxxx, 1960, p. 197.
da Advocacia Pública62, eis que o papel do Estado na contemporaneida- de não se limita apenas a maximizar arrecadação e minimizar despesas, em contraposição ao que seriam os interesses da sociedade. Os princípios constitucionais nesta pauta enunciados impõem ao Estado também o pa- pel de promover justiça, segurança e bem-estar social.
Com efeito, de acordo com o que defendemos no capítulo ante- rior, o foco principal de atuação da Administração Pública passou a ser o cidadão-administrado. A pessoa humana passou a ser o fim das ações administrativas, não o meio para obtenção de outros fins. Como órgão de representação e assessoramento jurídico do Estado, à Advocacia Pública incumbe não apenas promover a defesa do patrimônio públi- co mas, principalmente e com maior vigor, considerar como finalidade principal do Estado o pleno respeito aos direitos inerentes à pessoa hu- mana, pautando a sua atuação sempre em prol do exercício pleno da cidadania.63 Na mesma direção, cumpre transcrever a segura lição de Xxxxxxx Xxxxxxxxx, in verbis:
O Direito Administrativo percorreu, nas duas últimas déca- das, um itinerário de revisão das suas premissas axiológicas e de seus conceitos fundamentais. Esse processo resultou da reconstrução democrática das nossas instituições, a partir da promulgação da Constituição de 1988 e da vivência da de- mocracia no país. O Direito Administrativo recebeu os ventos benfazejos da constitucionalização do direito, tornando-se permeável ao sistema de direitos fundamentais e às exigên- cias democratizantes da Carta de 1988. Assim, a disciplina deixa de ser percebida como mero estatuto do poder, cons- tituído a serviço de seus detentores, para convolar-se em verdadeiro estatuto da cidadania, vocacionado à proteção e promoção de direitos dos cidadãos. De instrumento do poder, o Direito Administrativo assume a pretensão de instrumenta- lizá-lo em prol da realização de direitos e dos objetivos sociais constitucional e legalmente previstos.
62 Afirmação encontrada, por exemplo, em XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. Curso de Direito Constitucional Contemporâ- neo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 375.
63 Tive a oportunidade de registrar as mesmas conclusões em conferência que proferi em 22 de janeiro de 2009 no I Ciclo de Palestras sobre os 86 anos da Lei Xxxx Xxxxxx: evolução histórica da Previdência Pública no Brasil, realizado no Auditório da Gerência Executiva do INSS em Petrópolis/RJ.
(...)
O papel da Advocacia Pública é absolutamente decisivo e cru- cial para que os valores informativos do Estado democrático do direito sejam realizados. De um lado, a Advocacia Pública tem compromisso democrático, voltado à preservação da le- gitimidade política e da governabilidade. Sua tarefa, nesta vertente, é a de trabalhar pela viabilização jurídica das polí- ticas públicas determinadas por governos democraticamente eleitos. De outro lado, a Advocacia Pública tem um compro- misso jurídico, destinado à manutenção dos atos da Adminis- tração dentro das balizas da juridicidade. Trata-se, assim, de uma missão institucional bifronte, caracterizada pela aber- tura de possibilidades democráticas no horizonte dos limites impostos pelo ordenamento jurídico.64
Atenta ao novo papel do Estado na contemporaneidade e em cum- primento à sua missão constitucional de preservar a confiança legítima dos administrados, a Advocacia-Geral da União – Instituição da qual me orgulho de fazer parte – tem reiteradamente editado Súmulas que reco- nhecem direitos aos cidadãos, cabendo transcrever, no particular, a Sú- mula de nº 34, que enuncia que "não estão sujeitos à repetição os valores recebidos de boa-fé pelo servidor público, em decorrência de errônea ou inadequada interpretação da lei por parte da Administração Pública".65 Esse verbete é a afirmação da aplicação do nemo potest venire contra factum proprium no espaço das relações de Direito Público.
Essa postura da Advocacia-Geral da União é aferida não apenas nas súmulas editadas pelo Advogado-Geral da União, podendo ser atualmente encontrada nas diversas manifestações de seus membros, afinados com a missão constitucional do Estado de preservar direitos fundamentais, através de suas peças e pareceres jurídicos. A título de exemplo, trans- crevemos ementa referente a parecer gentilmente cedido pelo seu autor, o Procurador Federal Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx de Xxxxxx, em que se reconhece o dever da Administração Pública de respeitar a con- fiança legítima dos administrados, in verbis:
64 BINENBOJM, Xxxxxxx. “Advocacia Pública tem um compromisso democrático, voltado à preservação da legitimi- dade política e da governabilidade”. Entrevista publicada no Informativo UNAFE – União dos Advogados Públicos Federais do Brasil. Brasília/DF. Ano II, Edição 3, maio/2010 p. 4.
65 Editada em 16 de setembro de 2008. Publicada no DOU, Seção I, de 17/09; 18/09 e 19/09/2008.
“EMENTA: PROCESSO PARALISADO – INTERRUPÇÃO DO PRA- ZO PRESCRICIONAL PELO RECONHECIMENTO DO DIREITO DO REQUERENTE – NÃO OCORRÊNCIA DA SUSPENSÃO DO PRA- ZO EM RAZÃO DE PARALISAÇÃO INDEVIDA DO PROCESSO – INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO DO ART. 5º DO DECRETO 20.910/31 – PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA- PROI- BIÇÃO DE CONDUTA CONTRADITÓRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
1. A estabilidade das relações sociais e a segurança jurídica compõem o fundamento da prescrição, uma vez que o insti- tuto visa a impedir que o exercício de uma pretensão fique pendente de uma forma indefinida. Estabelece-se um lapso temporal para que a pretensão seja exercida. Transcorrido esse prazo sem qualquer diligência por parte de seu titular, o próprio ordenamento jurídico, que tutela a pretensão, con- cede à aquele que suporta a pretensão a possibilidade de obstruí-la, em nome da estabilidade das relações sociais (cf Xxxxxxx Xxxxxxxx et alli, in Código Civil Interpretado, Vol. I, p. 189, 1a Edição. Renovar)
2. A Administração agiu, com todas as vênias, de maneira abusiva ao não dar o devido andamento ao presente proce- dimento administrativo, violando, assim, o princípio da efici- ência administrativa, incluído no art. 37 caput da Constituição da República pela EC 19/98.
3. Boa-fé objetiva é cooperação e respeito, é conduta esperada e leal, tutelada em todas as relações sociais, onde os deve- res anexos são verdadeiras obrigações acessórias de conduta sendo vedado o comportamento contraditório (nemo potest venire contra factum proprio), por violar o princípio da boa-fé objetiva e a tutela da confiança.
4. É imperioso reconhecer que foi por ato omissivo exclusivo da Administração que gerou a demora no reconhecimento do direito da postulante, devendo o art. 5º do Dec. 20910/32 ser interpretado no sentido de que a não suspensão do prazo prescricional ocorrerá por negligência do titular do direito, e não por ineficiente atitude da Administração, sendo necessá- ria a devida filtragem constitucional do referido dispositivo,
para interpretá-lo à luz dos princípios do Direito Administra- tivo, previstos principalmente no art. 37 da Constituição da República.”66
É exatamente em virtude do novo papel do Estado que se afirma positivamente a possibilidade de aplicação da proibição de comporta- mento contraditório no âmbito das relações jurídico-administrativas: a in- cidência do princípio na esfera pública densifica os princípios consagrados pela nova ordem constitucional e cumpre o dever de respeito aos direitos e garantias fundamentais.
III.2 - Pressupostos específicos para a aplicação do princípio às relações
jurídico-administrativas
Analisamos no primeiro capítulo que, para a incidência do princípio de vedação ao comportamento contraditório, é necessário que sejam ve- rificados cumulativamente quatro pressupostos: (i) a conduta inicial; (ii) a confiança legítima de outrem na preservação do sentido objetivamente extraído da conduta inicial; (iii) o comportamento contraditório em rela- ção ao sentido objetivo da conduta inicial; (iv) dano efetivo ou potencial. Para que o princípio incida no âmbito das relações jurídico-admi- nistrativas, além de tais pressupostos, deve ser apurada, em especial, a
ocorrência dos requisitos da identidade subjetiva e objetiva.
Pelo requisito da identidade subjetiva, exige-se que o emissor do ato anterior e do ato posterior seja a mesma Administração Pública. Com efeito, para a incidência do princípio de proibição de comportamento contraditório, todos os órgãos integrantes da mesma pessoa jurídica de- vem atuar de forma coordenada, pelo que estará atendido o requisito da identidade subjetiva caso o ato administrativo praticado por um órgão contrarie precedente oriundo de outro da mesma Administração. Cumpre registrar a advertência feita pelo publicista Xxxxxxxxx Xxxxxx, para quem mesmo se tratando de incoerência entre atos praticados por entidades – e não apenas órgãos, desprovidos de personalidade jurídica – da mesma esfera da Federação, “não há de ser descartada a priori a aplicação da teoria, a depender do regime autonômico próprio e da vinculação minis- terial da entidade”.67
66 Parecer lançado no Processo administrativo autuado sob o nº 35318.000439/2005-66, Procuradoria Seccional
Federal de Niterói/RJ. 67 Op. cit., p. 235.
Assim, ainda que os atos contraditórios emanem de órgãos com competências diferentes, o critério para aferir a ocorrência do requisito da identidade subjetiva continuará sendo o da mesma Administração Pú- blica, cuja unidade não deixa de existir em virtude da sua divisão interna organizacional. Sabe-se que , por meio da criação de órgãos administrati- vos, o fenômeno da desconcentração tem como escopo apenas propiciar melhoria no desempenho das funções administrativas, preservando a uni- dade da pessoa jurídica de Direito Público da qual fazem parte.
Na mesma direção é a jurisprudência do C. Superior Tribunal de Justiça, de que é exemplo o julgado a seguir ementado, in verbis:
TRIBUTÁRIO – AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL - PRO- DUTORA DE SEMENTES - ALÍQUOTA REDUZIDA - ART. 278 DO RIR - ART. 30 DO DECRETO N. 81.877/78, QUE REGULAMENTA A LEI N. 6.507/77.
1. É fato incontroverso nos autos que a recorrida encontra-se registrada no Ministério da Agricultura como "produtora de sementes." É o próprio art. 30 do Decreto n. 81.877/78 que conceitua produtor de semente como "toda pessoa física ou jurídica devidamente credenciada pela entidade fiscalizado- ra, de acordo com as normas em vigor". Tendo a recorrida obtido o registro competente, não cabia à União indagar ou desclassificar essa situação jurídica sem o procedimento ade- quado, a fim de excetuá-la da alíquota reduzida descrita no art. 278 do RIR (Decreto n. 85.450/80).
2. Ademais, ao assim pretender fazer, está a União inserida em patente comportamento contraditório, vedado pelo orde- namento jurídico pátrio, pois a ninguém é dado venire contra factum proprium, tudo em razão da caracterização do abuso de direito. Assim, diante da especificidade do caso, sem razão a recorrente em seu especial, pois é o registro no órgão de fis- calização competente, diante do reconhecimento da própria União do cumprimento dos requisitos legais, que faz com que a pessoa jurídica ora recorrida seja qualificada como produ- tora de sementes.
3. Agravo regimental improvido.68
68 AgRg no REsp 396489/PR, Segunda Turma, Relator: Ministro Xxxxxxxx Xxxxxxx, Fonte: DJe 26/03/2008.
Para atender ao requisito da identidade objetiva, é preciso que sejam similares as circunstâncias determinantes em que foram praticados os atos administrativos tidos por incoeren- tes. Usando expressão cunhada por Diez-Picazo, a identida- de objetiva será identificada a partir do exame da causa das condutas administrativas69, devendo haver similitude entre os elementos fáticos que ensejaram as atuações administra- tivas. Se as circunstâncias determinantes são as mesmas e a Administração decide de forma diferente, o ato incoerente é inválido por vulnerar todos os princípios que a teoria das autolimitações administrativas visa a preservar.
Nesse sentido, cumpre transcrever elucidativa ementa relativa a re- cente julgado oriundo do E. Tribunal Regional Federal da 2ª Região, litteris:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO CIVIL COMUM FEDERAL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DIS- CIPLINAR. ABANDONO DE CARGO E FALTAS AO SERVIÇO. ARQUIVAMENTO A PARTIR DE CONVENCIMENTO DOS AR- GUMENTOS DESENVOLVIDOS POR AQUELE. REALIZAÇÃO DE DESCONTOS EM SUA REMUNERAÇÃO A TÍTULO DE REPOSI- ÇÃO AO ERÁRIO. AUSÊNCIA DE JUSTIFICATIVA. PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO DA ASSUNÇÃO DE COMPORTAMENTOS CONTRADI- TÓRIOS ENTRE SI.
I. Tendo em vista que o abandono de cargo (assim como ocor- re com a inassiduidade habitual, nos termos do art. 139 da Lei n.º 8.112/1990) se revela como um grau (e, mais precisa- mente, o grau máximo) de faltas ao serviço, a elisão de tal situação jurídica, por parte da própria Ré, ao realizar arqui- vamento de PAD – processo administrativo disciplinar para se apurar tudo isso — convencendo-se dos argumentos desen- volvidos pela Autora sobre a forma de justificação de motivo de faltas ao serviço adotada por ela, e, por conseguinte, de- clarou a inexistência de responsabilidade administrativa da Autora pela suposta prática da indigitada conduta —, deixa de justificar a realização de descontos na remuneração da Auto-
69 DÍEZ−XXXXXX, Xxxx. Mª, “El precedente administrativo”, Revista de Administración Pública, Madrid, n. 98, mayo-
agosto de 1982, p. 99.
ra a título de reposição ao erário de vencimentos percebidos nos respectivos dias, com fundamento no art. 44, caput, II, dessa Lei, já que simplesmente não se reconhece a existência de uma causa que produza este efeito jurídico genérico.
II. Mesmo que assim não fosse, em aplicação do princípio da vedação da assunção de comportamentos contraditórios en- tre si (expresso através da máxima nemo potest venire contra factum proprium), não é tolerável, por parte da Ré, ou seja, da mesma entidade pública, na mesma conjuntura, diante de uma mesma conduta praticada pela Autora, reconhecer a licitude da forma de justificação de motivo de faltas ao ser- viço adotada por ela e, pari passu, realizar desconto em sua remuneração a título de reposição ao erário de vencimentos percebidos nos respectivos dias.70
III.3 - INSTRUMENTOS DE MATERIALIZAÇÃO DO PRINCÍPIO NA ESFE- RA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: AS SUBTEORIAS DOS ATOS PRÓ- PRIOS E DOS PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS.
Partindo da premissa – objeto de análise do capítulo anterior – de que a nova ordem constitucional impôs novos paradigmas ao Direito Ad- ministrativo, que repercutem sobre a atuação da Administração Pública e a intensidade do controle dos seus atos, podemos afirmar que a teoria das autolimitações administrativas encerra um conjunto de instrumentos complementares cujo escopo é o de assegurar a coerência e a isonomia no tratamento conferido pelo Poder Público aos cidadãos-administrados. Com efeito, não se admitindo mais a antiga ideia de que a Adminis- tração Pública possuiria espaços decisórios inteiramente imunes a qual- quer tipo de controle71, a teoria das autolimitações administrativas, proje- ção do princípio de proibição ao comportamento contraditório no âmbito das relações jurídico-administrativas, impõe que a Administração Pública, no desempenho de suas inúmeras funções, se autovincule aos atos por
ela praticados.
Dessa forma, ao dever de obediência aos atos administrativos ante- riormente praticados corresponde a proibição de exercício arbitrário, incoe-
70 Apelação Cível 420402, Sétima Turma Especializada, Relator Desembargador Federal Xxxxxx Xxxxxxxxxx, Fonte:
DJU - Data: 09/12/2008, p. 238.
71 Vide tópico 2.1.
rente e desigual por parte do Poder Público. A autolimitação administrativa visa a resguardar a segurança jurídica, ao garantir a vigência dos atos ante- riormente praticados pela Administração Pública, geradores da confiança legítima. Sobre a importância da estabilidade das relações jurídicas, trans- crevemos lição preciosa de Celso Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, litteris:
é sabido e ressabido que a ordem jurídica corresponde a um quadro normativo proposto precisamente para que as pessoas possam se orientar, sabendo pois, de antemão, o que devem ou o que podem fazer, tendo em vista as ulteriores conseqü- ências imputáveis a seus atos. O Direito propõe-se a ensejar uma certa estabilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social. Daí o chamado princípio da ‘segurança jurídica’, o qual, bem por isto, se não é o mais importante dentre todos os princípios gerais de Direito, é, indisputavelmente, um dos mais importantes entre eles. Os institutos da prescrição, da decadência, da preclusão (na esfera processual), do usuca- pião, da irretroatividade da lei, do direito adquirido, são ex- pressões concretas que bem revelam esta profunda aspiração à estabilidade, à segurança, conatural ao Direito. Tanto mais porque inúmeras dentre as relações compostas pelos sujeitos de direito constituem-se em vista do porvir e não apenas da imediatidade das situações, cumpre, como inafastável requi- sito de um ordenado convívio social, livre de abalos repentinos ou surpresas desconcertantes, que haja uma certa estabilida- de nas situações destarte constituídas.72
Como instrumentos de concretização da teoria das autolimita- ções administrativas, foram construídas as subteorias dos atos próprios e dos precedentes administrativos.73 A primeira pode ser arguida dentro da mesma relação jurídica, aplicada, assim, à mesma pessoa em favor da qual fora praticado o ato administrativo anterior, gerador da confiança le- gítima no seu beneficiário de que a Administração Pública não irá agir de modo contrário ao comportamento anterior. A teoria dos precedentes administrativos, por seu turno, incide sobre relações jurídicas distintas, invocada por pessoa diversa da alcançada pelo entendimento administra- tivo anterior.
72 Op. cit., p. 94.
73 Cf, por todos, o clássico estudo de DÍEZ−XXXXXX, Xxxx. Mª. Op. cit.
A teoria dos atos próprios já foi expressamente referida pelo C. Su- perior Tribunal de Justiça. No caso, discutia-se a possibilidade de a Admi- nistração Pública74, após firmar diversas promessas de compra e venda de lotes referentes a uma gleba de sua propriedade, promover a anulação dos aludidos contratos ao argumento de que o parcelamento não estava regularizado por falta de registro. Aquela E. Corte de Justiça concluiu pela falta de amparo jurídico à pretendida anulação contratual justamente em virtude do caráter contraditório dos atos levados a efeito pelo Poder Pú- blico, proibindo o comportamento contraditório com base na teoria dos atos próprios, in verbis:
LOTEAMENTO. MUNICÍPIO. PRETENSÃO DE ANULAÇÃO DO CONTRATO. BOA-FÉ. ATOS PRÓPRIOS.
- TENDO O MUNICÍPIO CELEBRADO CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE LOTE LOCALIZADO EM IMÓVEL DE SUA PROPRIEDADE, DESCABE O PEDIDO DE ANULAÇÃO DOS ATOS, SE POSSÍVEL A REGULARIZAÇÃO DO LOTEAMENTO QUE ELE MESMO ESTÁ PROMOVENDO. ART. 40 DA LEI 6.766/79.
- A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS IMPEDE QUE A ADMINIS- TRAÇÃO PÚBLICA RETORNE SOBRE OS PRÓPRIOS XXXXXX, PREJUDICANDO OS TERCEIROS QUE CONFIARAM NA REGU- LARIDADE DE SEU PROCEDIMENTO.
RECURSO NÃO CONHECIDO.75
Sobre a aplicação da teoria dos precedentes administrativos, cabe registrar a lição de Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xx Xxxxxx que, ao relacionar o prin- cípio da segurança jurídica à ideia de boa-fé objetiva, asseverou, litteris:
Se a Administração adotou determinada interpretação como a cor- reta e a aplicou a casos concretos, não pode depois vir a anular atos an- teriores, sob o pretexto de que os mesmos foram praticados com base em errônea interpretação. (...) Se a lei deve respeitar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, por respeito ao princípio da se- gurança jurídica, não é admissível que o administrado tenha seus direitos flutuando ao sabor das interpretações jurídicas variáveis no tempo.76
74 Naquele caso, o Município de Limeira, situado no Estado de São Paulo.
75 Ementa relativa ao REsp 141.879/SP, Relator: Ministro Xxx Xxxxxx xx Xxxxxx, Quarta Turma, julgado em
17.03.1998, DJ 22.06.1998, p. 90.
76 Direito Administrativo. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 85.
Muito embora a divisão da teoria das autolimitações administrati- vas em outras duas nomenclaturas tenha alguma relevância para a ciência do Direito, o fato é que tanto a subteoria dos atos próprios quanto a dos precedentes administrativos visam a preservar a coerência por parte do Poder Público, consistente no dever de observar no futuro a conduta es- perada a partir dos atos administrativos anteriores, realizando, assim, os fundamentos normativos do nemo potest venire contra factum proprium no âmbito da Administração Pública: solidariedade social, boa-fé, segu- rança jurídica, igualdade e moralidade administrativa.v