RESUMO
Limiares de Minimis e Interesse Transfronteiriço Certo no Direito da
União Europeia e no Direito Português da Contratação Pública
Xxxxxx X. Proença1
RESUMO
Se é verdade que as diretivas europeias sobre contratação pública – bem assim a norma nacional que as transpôs para a ordem jurídica do Estado português (o Código dos Contratos Públicos, doravante CCP) – encontram a sua aplicação obrigatória condicionada, entre outros aspetos, pelos valores dos contratos públicos a celebrar, os quais, em princípio e em razão do respetivo objeto, deverão, portanto, atingir ou ultrapassar os respetivos limiares de minimis naquelas previstos, assim revelando dimensão transfronteiriça, não é menos verdade que, mesmo ficando aquém desses limiares, tais contratos estarão inevitavelmente sujeitos ao direito da União Europeia (adiante UE), designadamente às regras relativas às liberdades fundamentais de circulação de mercadorias, serviços e estabelecimentos, bem como aos princípios, como os da igualdade e não discriminação, bem assim ao princípio da concorrência, previstos no Tratado sobre o Funcionamento da UE (doravante TFUE), ficando inclusivamente submetidos às aludidas diretivas se revestirem interesse transfronteiriço certo, conceito de origem jurisprudencial, entretanto consagrado nas mencionadas diretivas e, mais tarde, no CCP.
1 Licenciado, Mestre e Doutor (PhD) em Direito; Professor Xxxxxxx do ISCAL-IPL; Professor Auxiliar da UAL; Jurista no Tribunal de Contas.
SUMÁRIO
1. Introdução; 2. Âmbito de aplicação obrigatório das diretivas europeias sobre contratação pública e sua repercussão no CCP; 2.1. Entidades e tipos de contratos públicos sujeitos aos procedimentos pré-contratuais previstos nas diretivas e no CCP; 2.2. Os limiares de minimis; 2.2.1. Os limiares previstos nas diretivas; 2.2.2. A revisão dos limiares previstos nas diretivas; 2.2.3. O acolhimento dos limiares no CCP; 3. Posicionamento das instituições europeias sobre contratos públicos excluídos do âmbito de aplicação obrigatório das diretivas; 3.1. A jurisprudência do TJ;
3.2. A Comunicação Interpretativa de 2006 da Comissão sobre contratos públicos excluídos do âmbito de aplicação obrigatório das diretivas; 4. O conceito de interesse transfronteiriço certo; 4.1. A construção do conceito de interesse transfronteiriço certo pelo TJ; 4.2. A consagração do conceito de interesse transfronteiriço certo nas diretivas sobre contratação pública de 2014; 4.3. A consolidação do conceito de interesse transfronteiriço certo na jurisprudência do TJ; 4.4. O conceito de interesse transfronteiriço certo na jurisprudência dos tribunais portugueses; 4.4.1. Na jurisdição financeira; 4.4.2. Na jurisdição administrativa; 5. Enfim, o conceito de interesse transfronteiriço certo no CCP em (mais) uma ocasião perdida para a sua consagração mais robusta; 5.1. A consagração do interesse transfronteiriço certo no domínio dos contratos reservados (artigo 54.º-A do CCP); 5.2. A conveniência na consagração do interesse transfronteiriço certo no domínio das limitações à escolha das entidades convidadas (artigo 113.º do CCP); 6. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O ano de 2008 destacou-se, no plano legislativo português relativo à atividade contratual da Administração Pública, pela aprovação do Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, o qual aprovou o CCP, estabeleceu a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo, resultante de uma profunda e decisiva influência europeia, dado o mencionado Código ter transposto, para a ordem jurídica portuguesa, duas diretivas comunitárias sobre contratação pública. Em causa estava, como assumido no preâmbulo do aludido Decreto-Lei, a transposição da Diretiva n.º 2004/17/CE (“Diretiva Setores”) e da Diretiva n.º 2004/18/CE (“Diretiva Clássica”), ambas do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março, alteradas pela Diretiva n.º 2005/51/CE, da Comissão Europeia (adiante Comissão), de 7 de Setembro, e retificadas pela Diretiva n.º 2005/75/CE, do Parlamento Europeu e da Comissão, de 16 de Novembro, as quais tiveram por destinatários todos os Estados membros da UE, que assim estavam, como decorre do terceiro parágrafo do artigo 288.º do TFUE, obrigados à respetiva transposição para as suas ordens jurídicas1.
Aquelas diretivas foram, entretanto, revogadas, tendo-lhes sucedido outras duas: as Diretivas 2014/24/UE (nova “Diretiva Clássica”, revogatória da Diretiva n.º 2004/18/CE) e 2014/25/UE (nova “Diretiva Setores”, que revogou a Diretiva n.º 2004/17/CE), igualmente do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, que o CCP transpôs através da revisão operada pelo Decreto- Lei n.º 111-B/2017 de 31 de agosto [que, outrossim, transpôs a Diretiva 2014/23/UE (“Diretiva Concessões”) de autoria e data coincidentes com as aquelas].
Variadíssimos aspetos avultam nas diretivas europeias sobre contratação pública, um dos quais reside nos chamados limiares de minimis, isto é, montantes pecuniários mínimos abaixo dos quais os Estados membros não estão obrigados a aplicar as normas europeias, previstas naqueles atos de direito da União e objeto de transposição para as respetivas ordens jurídicas internas, sobre procedimentos pré-contratuais. Ainda assim, esta afirmação não se trata de uma verdade insofismável, uma vez que a necessidade de aplicação das normas europeias impositivas de determinando(s) tipo(s) de procedimento(s) de adjudicatório(s) também pode decorrer de o contrato público sub judice revestir
1 Entre nós, recorde-se que decorre do n.º 8 do artigo 112.º da Constituição da República Portuguesa que “A transposição de actos jurídicos da União Europeia para a ordem jurídica interna assume a forma de lei, decreto-lei ou, nos termos do disposto no n.º 4, decreto legislativo regional”, assim se impondo que, em Portugal, a transposição das diretivas europeias ocorra mediante ato legislativo, conforme se extrai da conjugação daquele n.º com o n.º 1 do mesmo preceito.
interesse transfronteiriço certo (ou real)2, conceito de construção pretoriana pelo Tribunal de Justiça (adiante TJ), o qual começou por merecer consagração nas diretivas de 2014 e que em 2022 obteve, finalmente, positivação no CCP, ainda que apenas no artigo 54.º-A, atinente aos “contratos reservados”.
2. Âmbito de aplicação obrigatório das diretivas europeias sobre contratação pública e sua repercussão no CCP
Enquanto instrumentos de harmonização das legislações nacionais, as diretivas europeias sobre contratação pública preveem procedimentos, comuns aos Estados membros, com vista à formação, onde naturalmente se inclui a celebração, de alguns contratos públicos. Por outras palavras, tais atos de direito da UE derivado (ou secundário) contêm normas que, em função de um determinado procedimento prévio à celebração de um certo contrato público, regulam uma sequência ordenada de atos visando a adjudicação desse mesmo contrato a um cocontratante privado, o qual pode ser um agente económico oriundo de qualquer Estado membro da UE ou até de países terceiros. Não tendo de ser coincidentes entre os Estados membros, dado não resultarem de regulamento(s) europeu(s), mas antes de diretivas, as legislações nacionais de transposição devem ser próximas e cumprir os objetivos definidos vinculativamente naquelas, sem embargo da liberdade em relação aos meios e à forma de que os aludidos Estados beneficiam, que igualmente caracteriza as diretivas europeias.
Mediante essas diretivas, bem como as respetivas e imprescindíveis transposições nacionais para as ordens jurídicas dos Estados membros, em causa está o respeito não apenas de algumas liberdades fundamentais consagradas pelo TFUE, como a liberdade de circulação de mercadorias, a livre prestação de serviços e a liberdade de estabelecimento, como também de alguns princípios fundamentais do direito da União, como os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação, do reconhecimento mútuo, da proporcionalidade e da transparência, destacados logo na abertura da Diretiva 2014/24/UE3, sem esquecer o princípio da livre e sã concorrência, enfatizado no início da Diretiva 2014/25/UE4.
Sucede, porém, que a aplicação obrigatória dos procedimentos de formação de contratos públicos previstos e regulados nas mencionadas diretivas europeias encontra-se condicionada não
2 Sem embargo de poder resultar, ainda, do próprio direito nacional, que, mediante opção político-legislativa, pode sempre ser mais consagrador do princípio da concorrência, logo preconizador de procedimentos pré-contratuais abertos a operadores económicos que atuem no mercado interno europeu e divulgados mediante a publicação de anúncios no Jornal Oficial da UE (JOUE).
3 Vide o respetivo primeiro considerando.
4 Vide o respetivo segundo considerando.
apenas (i) pelos tipos de contratos públicos pretendidos (o que corresponde ao seu âmbito de aplicação objetivo), como também (ii) pela natureza das entidades adjudicantes (onde se vislumbra o âmbito de aplicação subjetivo), bem assim ainda, pressupondo que o contrato público desejado se subsume a um dos tipos contratuais sujeitos às referidas diretivas e que a entidade adjudicante está sujeita a estas,
(iii) pelos valores dos contratos públicos pretendidos atingirem, ou superarem, os limiares de minimis
(onde se constata um âmbito de aplicação obrigatório).
2.1. Entidades e tipos de contratos públicos sujeitos aos procedimentos pré-contratuais previstos nas diretivas e no CCP
Nessa medida, e de forma muito telegráfica, o artigo 2.º da Diretiva 2004/17/CE, com repercussão no artigo 2.º do CCP, previa o conceito de “entidades adjudicantes”, epígrafe partilhada por ambas as disposições. Do conceito próximo, para não dizermos coincidente, “autoridades adjudicantes” ocupam-se o artigo 3.º da Diretiva 2014/25/UE, que revogou aquela, e a alínea 1) do n.º 1 do artigo 2.º da Diretiva 2014/24/UE, mantendo-se, no entanto, a epígrafe do mencionado artigo 2.º do CCP.
Muito resumidamente também, as diretivas comunitárias sobre contratação pública delimitam, positiva e negativamente, os contratos públicos cujas celebração e formação estão sujeitas aos procedimentos pré-contratuais nelas previstos, natural e igualmente com efeitos ao nível do CCP. Assim, na Diretiva 2004/17/CE encontrávamos (nos artigos 3.º a 9.º5) as “atividades” que delimitavam os objetos dos contratos públicos a ela sujeitos, ao mesmo tempo que também se previam (nos artigos 18.º a 30.º6) os “contratos e concessões e contratos sujeitos a regimes especiais” e, por isso, excluídos do âmbito de aplicação (objetivo) da anterior “Diretiva Setores”. Tais matérias encontram-se atualmente tratadas na Diretiva 2014/25/UE (nos artigos 7.º a 14.º, relativos às “atividades”; e nos artigos 18.º a 35.º alusivos aos “contratos excluídos e concursos de conceção”), que revogou aquela.
5 Nomeadamente, gás, combustível para aquecimento e eletricidade (artigo 3.º), água (artigo 4.º), serviços de transporte (artigo 5.º), serviços postais (artigo 6.º).
6 Designadamente, concessões de obras ou de serviços (artigo 18.º), contratos celebrados para efeitos de revenda ou locação a terceiros (artigo 19.º), contratos celebrados com fins que não correspondam à prossecução de uma atividade abrangida ou à prossecução em países terceiros de uma atividade abrangida (artigo 20.º) ou contratos secretos ou que exigem medidas de segurança especiais (artigo 21.º), etc.
De igual forma, na Diretiva 2004/18/CE também se vislumbravam “contratos excluídos” (era esta a epígrafe da Secção 3 do Capítulo II, desdobrada entre os artigos 12.º a 18.º7) do seu âmbito de aplicação, objeto de tratamento na Diretiva 2014/24/UE (artigos 7.º a 12.º8, nos quais se desdobra a Secção 3, epigrafada de “exclusões”, do Capítulo I do Título I) que lhe sucedeu e correspondente à atual “Diretiva Clássica”.
Nessa medida, o artigo 4.º do CCP prevê os aí epigrafados “contratos excluídos”, ou seja, um elenco de vínculos onde, mesmo que uma das partes seja um contraente público, não se verifica a respetiva sujeição ao CCP9; da mesma forma que o artigo 5.º consagra a chamada “contratação excluída” e os n.os 1, 2 e 5 do artigo 5.º-A contemplam os “contratos no âmbito do setor público” (outra subespécie da contratação excluída, a chamada contratação in house10), aos quais não se aplica a Parte II do CCP, relativa aos procedimentos de formação de contratos públicos.
2.2. Os limiares de minimis
Nesta lógica de existência de contratos públicos sujeitos a procedimentos adjudicatórios cujas regras foram objeto de harmonização pelas diretivas europeias sobre contratação pública e consequente aproximação – mediante transposição das mesmas – das legislações nacionais dos Estados membros da União, encontramos também os chamados “limiares de minimis”, isto é, valores previstos nas referidas diretivas abaixo dos quais não é obrigatório (ou, se se preferir, alternativamente, atingidos ou ultrapassados esses valores, passará a ser), por força destas, que as entidades adjudicantes observem os procedimentos pré-contratuais determinados nas diretivas, com vista à formação, onde se insere a respetiva celebração, de contratos públicos.
Tal não excluirá, portanto, que tal obrigatoriedade possa derivar de normas nacionais, naturalmente adotadas de acordo com a opção político-legislativa de cada Estado membro; da mesma forma que, a fortiori ratione, também será de conceber que as entidades adjudicantes, apesar de não estarem juridicamente obrigadas, optem (nomeadamente, por razões de transparência, concorrência
7 A título meramente exemplificativo, contratos adjudicados nos sectores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais (artigo 12.º), exclusões específicas no domínio das telecomunicações (artigo 13.º) ou contratos secretos ou que exigem medidas de segurança especiais (artigo 14.º).
8 V.g. contratos nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais (artigo 7.º) ou exclusões específicas no domínio das comunicações eletrónica (artigo 8.º)
9 De que são exemplos os contratos de trabalho em funções públicas ou os contratos individuais de trabalho [cfr. alínea
a) do n.º 2].
10 A qual se traduz em contratos públicos internos, isto é, contratos celebrados entre duas entidades públicas e em que uma é um prolongamento da outra, razão pela qual a atividade da entidade adjudicada é controlada pela entidade adjudicante. Quer dizer: esta controla aquela ou aquela depende desta.
mais aberta, prossecução do interesse público, boa gestão de dinheiro público, entre outras) por seguir esses procedimentos adjudicatórios, os quais são abertos à concorrência internacional e, por isso, publicitados mediante anúncio no Jornal Oficial da União Europeia (doravante JOUE).
Por outras palavras, pressupondo que estamos (i) diante de entidades (ou autoridades) adjudicantes sujeitas às regras europeias da contratação pública, sem embargo da necessidade de transposição das mesmas para as ordens jurídicas nacionais, porquanto as diretivas a isso obrigam; bem assim (ii) perante contratos públicos cujo objeto não se encontra excluído (ou, pela positiva, cujo objeto se encontra submetido) das referidas regras11, em Portugal rececionadas através do CCP; o facto de os valores dos referidos contratos perfazerem ou ultrapassarem tais limiares de minimis, fixados nas diretivas e acolhidos no CCP, obrigará as entidades adjudicantes nacionais a optar pelo procedimento de concurso público, ou concurso limitado por prévia qualificação, mediante publicação internacional de anúncio no JOUE12.
Nestes casos, portanto, os procedimentos pré-contratuais devem estar sujeitos à concorrência internacional (e, a fortiori, também expostos à concorrência nacional), o que se alcança mediante concurso público e/ou concurso limitado por prévia qualificação, divulgados através de anúncio publicado no JOUE, sem embargo da publicidade que igualmente deva ser promovida pela entidade adjudicante mediante publicação de anúncio no jornal oficial do Estado português (o Diário da República).
Alargada a um prisma internacional, esta publicidade visa (i) alcançar um nível concorrencial mais aberto, centralizado e transparente, comparativamente àquele que decorreria da publicidade “apenas” na publicação oficial de um Estado, o qual se estende a todos os potenciais interessados que atuem no mercado interno europeu, dessa forma prosseguindo-se uma melhor utilização dos dinheiros públicos, além do que (ii) efetiva melhor as liberdades de circulação fundamentais (v.g. mercadorias, prestadores de serviços), previstas no TFUE e presentes no aludido mercado. Sendo mais abrangente, a publicidade no JOUE dispensa a publicidade feita através do Diário da República, a qual assumirá caráter meramente facultativo13.
11 V.g. empreitadas de obras públicas, serviços, fornecimentos, outros fornecimentos e serviços nos setores da água, energia, transportes.
12 Correspondendo à publicação oficial da UE, o JOUE tem periodicidade diária e divide-se em duas séries, a série L (Legislação) para os atos vinculativos e a série C (Comunicações e informações) para os atos não vinculativos. Dentro da série C existem duas subséries: CA e CI; a série L contém uma subsérie: a LI. O JOUE contempla ainda um Suplemento, correspondendo, portanto, a uma espécie de “Série S”, no qual são publicados os anúncios de abertura de procedimentos pré-contratuais com vista à celebração de contratos públicos de valores superiores aos limiares europeus.
13 Cfr. acórdãos (n.os 12/2017, 13/2017 e 16/2017, todos da 1.ª Secção/PL) do Tribunal de Contas de 19 e 26 de abril de 2017, os quais serão retomados, infra, no ponto 4.4.1..
Já os procedimentos de ajuste direto e de consulta prévia, “reservados” para contratos públicos de valores mais baixos, caracterizam-se por serem fechados à concorrência, sendo realizados através de convite e sem necessidade de publicação de anúncios.
2.2.1. Os limiares previstos nas diretivas
Aqui chegados, encontra-se contextualizada a razão pela qual os termos “limiar” e “limiares” proliferam por dezenas de vezes nas diretivas europeias sobre contratação pública14.
Num périplo que não tem a pretensão de ser exaustivo, vejamos alguns exemplos nas diretivas de 2014, começando pelos considerandos.
Na Diretiva (“Clássica”) 2014/24/UE, o segundo parágrafo e o início do terceiro parágrafo do considerando 114 referem:
“Os serviços à pessoa de valor inferior a este limiar não terão, em condições normais, interesse para os prestadores de serviços de outros Estados-Membros (…)
Os contratos relativos a serviços à pessoa de montante superior a este limiar deverão cumprir regras de transparência definidas a nível da União.”.
De outros considerandos, que também se identificam, extrai-se o seguinte:
“(115) Do mesmo modo, os serviços de hotelaria e de restauração apenas são habitualmente oferecidos por operadores que se encontram no local específico de prestação desses serviços, tendo, por conseguinte, uma dimensão transfronteiriça limitada. Por conseguinte, os referidos serviços apenas deverão ser abrangidos pelo regime simplificado a partir de um limiar de 750 000 EUR. Os grandes contratos de serviços de hotelaria e de restauração superiores a este limiar podem revestir-se de interesse para vários operadores económicos, designadamente agências de viagens e outros intermediários, também a nível transfronteiriço.
(116) De igual modo, determinados serviços jurídicos dizem exclusivamente respeito a questões de mero direito nacional, sendo em geral oferecidos apenas por operadores localizados no Estado- Membro em causa e tendo por isso também uma dimensão transfronteira[s] limitada. Por conseguinte, os referidos serviços apenas deverão ser abrangidos pelo regime simplificado a partir de um limiar de 750 000 EUR. Os grandes contratos de serviços jurídicos superiores a este limiar podem revestir-se de interesse para vários operadores económicos, designadamente gabinetes jurídicos internacionais,
14 Uma breve pesquisa “por termos” permite encontrar 64 “resultados” na Diretiva 2014/24/UE e 57 “resultados” na Diretiva 2014/25/UE.
também a nível transfronteiras, em particular quando envolvam questões jurídicas que decorram ou surjam no contexto do direito da União ou do direito internacional, ou que impliquem mais de um país.”.
Esta matéria encontra depois refração ao nível do articulado, porquanto o n.º 1 do artigo 1.º da Diretiva 2014/24/UE, epigrafado “Objeto e âmbito de aplicação”, estipula que:
“A presente diretiva estabelece as regras aplicáveis aos procedimentos de contratação adotados por autoridades adjudicantes relativamente a contratos públicos e a concursos de conceção cujo valor estimado não seja inferior aos limiares definidos no artigo 4.º.”.
Sob a epígrafe “Montantes limiares” e mediante um corpo subdividido em quatro alíneas, esse artigo 4.º estabelece:
“A presente diretiva aplica-se aos contratos cujo valor estimado, sem imposto sobre o valor acrescentado (IVA), seja igual ou superior aos seguintes limiares:
a) 5 186 000 EUR para os contratos de empreitada de obras públicas;
b) 134 000 EUR para os contratos públicos de fornecimento e de serviços adjudicados por autoridades governamentais centrais e concursos para trabalhos de conceção organizados por essas autoridades; quando os contratos públicos de fornecimento forem adjudicados por autoridades adjudicantes que operem no domínio da defesa, este limiar só se aplica aos contratos relativos a produtos mencionados no Anexo III;
c) 207 000 EUR para os contratos públicos de fornecimento e de serviços adjudicados por autoridades adjudicantes subcentrais e concursos para trabalhos de conceção organizados por essas autoridades; quando os contratos públicos de fornecimento forem adjudicados por autoridades adjudicantes que operem no domínio da defesa, esse limiar só se aplica aos contratos relativos a produtos mencionados no Anexo III;
d) 750 000 EUR para os contratos públicos de serviços relativos a serviços sociais e outros serviços específicos enumerados no Anexo XIV.”.
Ainda na Diretiva 2014/24/UE, as alíneas a) e b) do respetivo artigo 13.º, epigrafado de “Contratos subsidiados pelas autoridades adjudicantes”, consagram mais dois limiares de minimis, a saber:
- € 5 186 000, para “contratos de empreitada de obras subsidiados diretamente em mais de 50 % pelas autoridades adjudicantes”, que envolvam “atividades de engenharia civil enumeradas no Anexo II” e “obras de construção de hospitais, instalações desportivas, recreativas e de ocupação dos tempos livres, estabelecimentos escolares e universitários e edifícios para uso administrativo”, bem assim:
- € 207 000, para “contratos de serviços subsidiados diretamente em mais de 50 % pelas autoridades adjudicantes (…), quando estejam associados a um contrato de empreitada de obras na aceção da alínea a)”.
Paralelamente, na Diretiva 2014/25/UE (“Setores”), o segundo parágrafo e o início do terceiro parágrafo do considerando 120 estabelecem:
“No contexto específico dos contratos públicos celebrados nestes setores, os serviços à pessoa de valor inferior a este limiar não terão, em condições normais, interesse para os prestadores de serviços dos outros Estados-Membros (…).
Os contratos relativos a serviços à pessoa de montante superior a este limiar deverão cumprir regras de transparência definidas a nível da União.”.
Similarmente à Diretiva 2014/24/UE, de outros considerandos da Diretiva 2014/25/UE também se extrai que:
“(121) Do mesmo modo, os serviços de hotelaria e de restauração apenas são habitualmente oferecidos por operadores que se encontram no local específico de prestação desses serviços, tendo, por conseguinte, uma dimensão transfronteira[s] limitada. Por conseguinte, os referidos serviços apenas deverão ser abrangidos pelo regime simplificado a partir de um limiar de 1 000 000 EUR. Os grandes contratos de serviços de hotelaria e de restauração superiores a este limiar podem revestir-se de interesse para vários operadores económicos, designadamente agências de viagens e outros intermediários, também a nível transfronteiriço.”.
(122) De igual modo, determinados serviços jurídicos dizem exclusivamente respeito a questões de mero direito nacional, sendo em geral oferecidos apenas por operadores localizados no Estado-Membro em causa e tendo por isso também uma dimensão transfronteiriça limitada. Por conseguinte, os referidos serviços apenas deverão ser abrangidos pelo regime simplificado a partir de um limiar de 1 000 000 EUR. Os grandes contratos de serviços jurídicos superiores a este limiar podem revestir-se de interesse para vários operadores económicos, designadamente gabinetes jurídicos internacionais, também a nível transfronteiriço, em particular quando envolvam questões jurídicas que decorram ou surjam no contexto do direito da União ou do direito internacional, ou que impliquem mais de um país.”.
Tal como sucede com a Diretiva 2014/24/UE, o artigo 1.º da Diretiva 2014/25/UE delimita o respetivo “objeto e âmbito de aplicação”, determinando no respetivo n.º 1 que:
“A presente diretiva estabelece regras para os procedimentos aplicáveis aos contratos celebrados pelas entidades adjudicantes no respeitante aos contratos e aos concursos de conceção cujo valor estimado não seja inferior aos limiares definidos no artigo 15.º”.
Epigrafado de “Montantes limiares”, esse artigo 15.º da Diretiva 2014/25/EU determina que:
“Salvo por força das exclusões previstas nos artigos 18.º a 23.º ou de uma decisão ao abrigo do artigo 34.º relativamente ao exercício da atividade em causa, a presente diretiva aplica-se aos contratos cujo valor estimado, sem imposto sobre o valor acrescentado (IVA), seja igual ou superior aos seguintes limiares:
a) 414 000 EUR para os contratos de fornecimento de bens e prestação de serviços e para os concursos de conceção;
b) 5 186 000 EUR para os contratos de empreitada de obras;
c) 1 000 000 EUR para os contratos de prestação de serviços sociais e outros serviços específicos enumerados no Anexo XVII.”.
Note-se que tanto dos considerados como dos artigos transcritos decorre, por um lado, a dimensão transfronteiriça dos contratos sujeitos às regras europeias sobre contração pública resultante de os mesmos igualarem ou ultrapassarem os limiares de minimis; sobretudo do citado considerado 114 da Diretiva 2014/24/UE também avulta, por outro lado, a possibilidade de alguns contratos públicos apresentarem interesse transfronteiriço, mesmo que os valores envolvidos fiquem aquém dos aludidos limiares.
2.2.2. A revisão dos limiares previstos nas diretivas
Exprimindo montantes pecuniários, logo sujeitos à inevitável depreciação monetária, os limiares não permanecem imutáveis, devendo ser revistos bianualmente. É o que se prevê nos artigos 6.º e 17.º, respetivamente, da Diretiva 2014/24/UE e da Diretiva 2014/25/UE. Destarte, a Comissão tem aprovado regulamentos delegados com os quais atualiza os montantes dos limiares comunitários.
Os mais recentes regulamentos datam de 10 de novembro de 2021 e foram (i) o Regulamento Delegado (UE) 2021/1952, relativo aos contratos públicos de empreitada de obras públicas, de fornecimentos de bens, de prestação de serviços e de concursos de conceção (o qual atualizou os limiares previstos na Diretiva 2014/24/UE) e (ii) o Regulamento Delegado (UE) 2021/1953, referente
aos contratos celebrados pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais (que atualizou os limiares previstos na Diretiva 2014/25/UE)15.
Com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2022, atualmente, os limiares de minimis previstos nos artigos 4.º e 13.º da Diretiva 2014/24/UE cifram-se em € 5 382 000 [relativamente às alíneas a) de ambos os artigos], € 140 000 [o referente à alínea b) do artigo 4.º] e € 215 000 [o atinente às alíneas
c) dos dois artigos]; os limiares previstos no artigo 15.º da Diretiva 2014/25/UE são de € 431 000 [o relativo à alínea a)] e € 5 382 000 [o referente à alínea b)].
Os limiares previstos na alínea d) do artigo 4.º da Diretiva 2014/24/UE (€ 750 000) e na alínea
c) do artigo 15.º da Diretiva 2014/25/UE (€ 1 000 000) têm permanecido inalterados.
2.2.3. O acolhimento dos limiares no CCP
O legislador português transpôs para a ordem jurídica nacional as diretivas europeias de 2004 sobre contratação pública ao aprovar, através do Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, o CCP. E, naturalmente, não poderia ser insensível à matéria dos limiares de minimis, sob pena de manifesta transposição incorreta.
Ainda assim, a versão originária do Código não continha, no respetivo articulado, qualquer preceito que transpusesse para a ordem jurídica portuguesa os artigos das diretivas referentes aos limiares, o qual só veio a ser inserido no mesmo com a aprovação do Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto, que procedeu à nona alteração ao CCP.
Não obstante, no preâmbulo do Código, tal como aprovado em 2008, já se lia:
“Relativamente à escolha dos procedimentos em função de critérios materiais, o legislador nacional surge à partida condicionado pelas directivas comunitárias - pelo menos acima dos limiares por elas previstos e para os contratos a elas sujeitos - restando, por isso, uma reduzida margem de opção legislativa.”.
Já o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, integrando a redação originária deste, prevê a matéria da publicitação da atualização dos limiares.
Entre outros exemplos que, igualmente, poderíamos dar, o n.º 1 do artigo 6.º-A16 do CCP exclui, bem como inclui, do âmbito de aplicação da sua Parte II alguns contratos públicos (os relativos a
15 O Regulamento Delegado (UE) 2021/1951, referente aos contratos de concessão de serviços públicos e de obras públicas, fez o mesmo em relação aos limiares previstos na Diretiva 2014/23/UE.
16 Transpondo os artigos 74.º da Diretiva 24/2014/UE e 91.º da Diretiva 25/2014/UE.
“serviços sociais e de outros serviços específicos”) em função de os respetivos valores serem inferiores (cenário de exclusão), ou iguais ou superiores (cenário de inclusão), aos limiares; ao passo que as subalíneas i), iv) e v) da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do CCP incluem, tal como excluem, do mencionado âmbito de aplicação alguns contratos públicos nos sectores da água, energia, dos transportes e serviços postais em função de os seus valores igualarem ou ultrapassarem (cenário de inclusão), ou se situarem abaixo (cenário de exclusão), determinados limiares.
Através do artigo 474.º do CCP, epigrafado “Montantes dos limiares europeus” e aditado a este pelo artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto, o Estado português transpôs para a respetiva ordem jurídica nacional, primeiramente, os artigos 16.º e 7.º das diretivas, respetivamente, 2004/17/CE e 2004/18/CE e, atualmente, os artigos 4.º e 15.º das diretivas de 2014/24/UE e 2014/25/UE (e ainda o artigo 8.º da Diretiva 2014/23/UE). Transcreve-se a redação do artigo 474.º do CCP:
“1 - Os montantes dos limiares europeus, para efeito de publicitação obrigatória de anúncio no Jornal Oficial da União Europeia, são os previstos no artigo 8.º da Diretiva 2014/23/UE, no artigo 4.º da Diretiva 2014/24/UE e no artigo 15.º da Diretiva 2014/25/UE, os quais se reproduzem nos números seguintes, na redação que lhes foi dada pelo Regulamento Delegado (UE) 2019/1827, pelo Regulamento Delegado (UE) 2019/1828 e pelo Regulamento Delegado (UE) 2019/1829.
2 - O montante do limiar previsto para os contratos de concessão de serviços públicos e de obras públicas é de (euro) 5 350 000.
3 - Os montantes dos limiares previstos para os contratos públicos são os seguintes:
a (euro) 5 350 000, para os contratos de empreitada de obras públicas;
b) (euro) 139 000, para os contratos públicos de fornecimento de bens, prestação de serviços e de concursos de conceção, adjudicados pelo Estado;
c) (euro) 214 000, para os contratos referidos na alínea anterior, adjudicados por outras entidades adjudicantes;
d) (euro) 750 000, para os contratos públicos relativos a serviços sociais e outros serviços específicos enumerados no anexo ix ao presente Código.
4 - Os montantes dos limiares previstos para os contratos públicos celebrados pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais são os seguintes:
a) (euro) 5 350 000, para os contratos de empreitada de obras públicas;
b) (euro) 428 000, para os contratos públicos de fornecimento de bens, prestação de serviços e de concursos de conceção;
c) (euro) 1 000 000, para os contratos públicos relativos a serviços sociais e outros serviços específicos enumerados no anexo ix ao presente Código.
5 - A revisão dos montantes dos limiares referidos nos números anteriores por ato delegado da Comissão Europeia determina a modificação do presente artigo e é divulgada no portal dos contratos públicos.”.
Para além dos limiares europeus de minimis, cujo atingimento é determinante para efeitos de publicação no JOUE – sem embargo da publicidade que deva ser feita também no Diário da República17 – dos respetivos anúncios de lançamento de procedimentos abertos à concorrência (i.e, concurso público e concurso limitado por prévia qualificação) e sujeitos a publicidade internacional (n.os 1 a 4), o artigo 474.º do CCP contempla ainda a vicissitude de sujeição de tais limiares a atualizações (n.º 5).
Naturalmente, as revisões dos limiares de minimis operadas através dos regulamentos delegados aprovados pela Comissão determinam, igualmente, a atualização daqueles valores. Acompanhando os montantes fixados nos mencionados regulamentos, atualmente, os limiares previstos no artigo 474.º do CCP cifram-se em: € 5 382 000 [relativamente ao n.º 2 e às alíneas a) dos n.os 3 e 4]; € 140 000 [respeitante à alínea b) do n.º 3]; € 215 000 [atinente à alínea c) do n.º 3]; e € 431 000 [referente à alínea b) do n.º 4].
Relativamente aos limiares de minimis previstos na alínea d) do artigo 4.º da Diretiva 2014/24/UE e na alínea c) do artigo 15.º da Diretiva 2014/25/UE (respetivamente € 750 000 e € 1 000 000), permanecendo inalterados, mantêm-se os correspondentes valores previstos na alínea d) do n.º 3 e na alínea c) do n.º 4 do artigo 474.º do CCP.
3. Posicionamento das instituições europeias sobre contratos públicos excluídos do âmbito de aplicação obrigatório das diretivas
Sucede, porém, que sobretudo do direito da União em geral, mas também do direito europeu da contratação pública em especial – esta última, ainda assim, uma realidade mais vasta e que não se cinge às diretivas sobre a matéria – decorre, igualmente, que os contratos públicos de valor inferior
17 Vide, nomeadamente, o n.º 1 do artigo 130.º e o n.º 6 do artigo 131.º (para o procedimento pré-contratual de concurso público) e o n.º 1 do artigo 162.º (para o procedimento pré-contratual de concurso limitado por prévia qualificação), ambos do CCP.
aos limiares de minimis de aplicação das diretivas europeias sobre tal matéria podem, outrossim, assumir relevância transfronteiriça europeia.
Antes do mais, delimitemos o âmbito de aplicação do direito da UE em geral do âmbito de aplicação das diretivas europeias sobre contratação pública: não é pelo facto de alguns contratos públicos não atingirem os limiares previstos nestas, estando por isso, em princípio, excluídos do seu âmbito de aplicação, que os mesmos também estão excluídos do âmbito de aplicação do direito da UE em geral, naturalmente mais vasto do que aquele.
3.1. A jurisprudência do TJ
O TJ construiu, desde cedo, uma linha jurisprudencial na qual esclareceu que o facto de alguns contratos públicos estarem excluídos do âmbito de aplicação obrigatório das diretivas europeias sobre contratação pública, em razão, designadamente, (i) dos respetivos objetos ou (ii) dos seus valores se situarem abaixo dos limiares delas constantes, não isenta tais vínculos e inerentes procedimentos pré- contratuais das demais regras comunitárias, decorrentes sobretudo dos Tratados, nas quais se destacam vários princípios, designadamente o princípio da proibição da discriminação em razão da nacionalidade18 e os princípios da concorrência e da transparência19.
Referindo-se aos limiares de minimis previstos nas diretivas sobre contratação pública, o TJ mais aclarou que:
“no âmbito da adjudicação de um contrato cujo montante não atinge o referido valor, devem ser respeitadas as regras fundamentais do Tratado e, em especial, o princípio da igualdade de tratamento. O elemento de distinção relativamente aos contratos cujo montante ultrapassa o limiar fixado nas disposições da Directiva 2004/18 consiste em só estes últimos estarem sujeitos aos procedimentos especiais e rigorosos previstos nessas disposições”20.
18 Assim sucedeu nos acórdãos Telaustria e Telefonadress, de 7 de dezembro de 2000, processo X-000/00, Xxx. 0000, X- 00000; Comissão vs. França, de 20 de outubro de 2005, processo C-264/03, Col. 2005, I-08831; Parking Brixen, de 13 de outubro de 2005, processo C-458/03, Col. 2005, I-08585.
19 Assim ocorreu no acórdão Coname, de 21 de julho de 2005, processo C-231/03, Col. 2005, I-07287.
20 Cfr. acórdão SECAP e Santorso, de 15 de maio de 2008, processos C-147/06 e 148/06, Col. 2008, I-2565, considerandos n.os 19 e 20.
3.2. A Comunicação Interpretativa de 2006 da Comissão sobre contratos públicos excluídos do âmbito de aplicação obrigatório das diretivas
Cumprirá, a este título, lembrar também a “Comunicação Interpretativa da Comissão Europeia relativa ao direito comunitário aplicável à adjudicação de contratos não abrangidos ou só parcialmente abrangidos pelas Directivas comunitárias”, de 1 de agosto de 200621, segundo a qual:
“… ainda que tais contratos estejam excluídos do âmbito de aplicação das diretivas comunitárias relativas aos contratos públicos, as entidades adjudicantes que os celebram estão, no entanto, obrigadas a respeitar as regras fundamentais do Tratado”.
Onde se destacam os princípios resultantes deste, mais acrescentando, destarte, que se:
“a entidade adjudicante chegar à conclusão que o contrato em questão é pertinente para o mercado interno, terá de proceder à respetiva adjudicação no respeito dos princípios fundamentais do direito comunitário”.
Do elenco desses princípios constam o princípio da igualdade e não discriminação, o princípio da transparência, o princípio da concorrência, o princípio da proporcionalidade e o princípio do reconhecimento mútuo, sem esquecer as liberdades de circulação (para este efeito, maxime de mercadorias, prestadores de serviços e estabelecimentos) tidas como fundamentais, matéria, aliás, prevista e regulada no TFUE, logo com um âmbito de aplicação genérico e não restrito aos domínios da contratação pública.
4. O CONCEITO DE INTERESSE TRANSFRONTEIRIÇO CERTO
É nesta lógica, segundo a qual nem todos os contratos públicos deterão dimensão (ou interesse) transfronteiriça(o), já que se alguns pura e simplesmente não a apresentarão, outros revelá-la-ão embora limitadamente, que o TJ formulou o conceito de interesse transfronteiriço certo, com o qual pretendeu alertar para o carácter não absoluto das regras europeias, e conexamente das regras nacionais que as transpõem, alusivas aos limiares de minimis, esclarecendo que alguns contratos públicos, cujos valores mesmo não atingindo tais limiares, poderão, ainda assim, revelar certo (ou real) interesse (ou dimensão) transfronteiriço(a)22.
21 Publicada no Jornal Oficial da UE, Série C, com o n.º 179/2.
22 Cfr. Xxxxx Xxxxxx X. X. INÊS, Os princípios da contratação pública: o princípio da concorrência, CEDIPRE (Centro de Estudos de Direito Público e Regulação da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) On line/34, Xxxxxxx, 0000, p. 24, disponível in public_34.pdf (xx.xx).
Na verdade, e dependendo sempre das circunstâncias do caso concreto, determinados contratos públicos de valor inferior aos limiares de aplicação das diretivas europeias sobre contratação pública poderão, mesmo assim, assumir relevância transfronteiriça europeia. Quer dizer: não é pelo simples facto de alguns contratos públicos terem valores inferiores àqueles limiares, situando-se, por esse facto, fora do âmbito de aplicação obrigatório daquelas diretivas, que os referidos contratos serão irrelevantes, certamente e antes do mais, para o próprio direito da UE (como, aliás, acima se viu) e, eventualmente, também para as próprias diretivas europeias sobre contratação pública, apesar de as mesmas preverem limiares de minimis, os quais, afinal, apenas em princípio condicionam a respetiva aplicação.
4.1. A construção do conceito de interesse transfronteiriço certo pelo XX
Coloca-se, no entanto, a questão de saber qual o critério de identificação dos contratos públicos de valores mais reduzidos (subentenda-se: valores situados abaixo dos limiares comunitários) que, ainda assim, devem estar sujeitos a uma obrigação de concorrência mais alargada, isto é, estendida ao mercado interno europeu, decorrente da publicação do anúncio de abertura do concurso público (ou concurso limitado por prévia qualificação) no JOUE e não apenas, no que concerne a Portugal, no Diário da República. Com efeito, a segurança, confiança e certeza jurídicas impõem que se saiba determinar, à partida, qual a fronteira entre os contratos públicos sujeitos à obrigação concorrencial restrita ao respetivo mercado nacional (no nosso caso, o português) e os contratos públicos sujeitos à obrigação concorrencial alargada ao mercado interno europeu.
Para tal, muito contribuiu uma linha jurisprudencial europeia que, podendo ser dividida em três fases, culminou com a formulação do conceito de interesse transfronteiriço certo.
O protagonismo inicial foi do Tribunal Geral23, que, na primeira etapa, decidiu que aquela determinação seria casuística, a realizar, num primeiro momento, pela entidade adjudicante e, posteriormente, pelo juiz (nacional) do contrato público sub judice, o qual estaria autorizado, pelo direito da UE, a criar normas derrogatórias das disposições legais reguladoras dos contratos públicos24.
23 Juntamente com o TJ e com os tribunais especializados (em razão da matéria e de que foi exemplo o Tribunal da Função Pública, criado em 2004 e extinto em 2016) que porventura venham a ser criados, formam a instituição jurisdicional da UE, ou seja, o Tribunal de Justiça da UE (TJUE). Cfr. Xxxxxx Xxxxxxxx PROENÇA, Tutela Jurisdicional Efetiva no Direito da União Europeia. Dimensões Teoréticas e Práticas, Lisboa, 2017, pp. 118 e ss.
24 Cfr. acórdão Alemanha vs. Comissão, de 28 de maio de 2010, processo T-258/06, Col. 2010, p. 214 (vide considerandos 91 e 96).
Na segunda fase foi já o TJ a decidir pela necessidade de se alcançar um critério mais seguro de determinação dos contratos públicos sujeitos aos “princípios gerais da contratação pública”25.
Na derradeira etapa o TJ construiu o conceito de interesse transfronteiriço certo, recorrendo a ele para concretizar a aplicação dos princípios gerais da contratação pública que formulara na etapa anterior. Ou seja, perante contratos públicos que, comprovadamente, apresentem interesse transfronteiriço certo, a entidade adjudicante estará obrigada, em última instância pelo juiz nacional do contrato público, a aplicar procedimentos adjudicatórios (ou pré-contratuais) concorrenciais marcados pelos princípios gerais do TFUE26.
Assim foi aclarado no acórdão Serrantoni e Consorzio stabile edili27, nos seguintes termos:
“O direito comunitário deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, a qual, no procedimento de adjudicação de um contrato público cujo montante não atinge o limiar previsto no artigo 7.º, n.º 1, alínea c), da Directiva 2004/18, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, mas que reveste um interesse transfronteiriço certo, prevê a exclusão automática da participação nesse procedimento e a aplicação de sanções penais tanto a um consórcio estável, na acepção da legislação nacional, como às empresas que sejam membros deste, quando estas últimas tenham apresentado propostas concorrentes da proposta desse consórcio, no âmbito do mesmo procedimento, mesmo não tendo a proposta do referido consórcio sido apresentada por conta e no interesse dessas empresas”28.
4.2. A consagração do conceito de interesse transfronteiriço certo nas diretivas sobre contratação pública de 2014
O conceito de interesse transfronteiriço certo, de origem pretoriana como se comprova, veio inclusivamente a merecer acolhimento por parte dos legisladores (Parlamento Europeu e Conselho) da UE nas diretivas europeias sobre contratação pública de 2014.
25 Cfr. acórdão Comissão vs. Irlanda, do TJ, de 13 de novembro de 2007, proferido no processo X-000/00, Xxx. 0000, X- 00000 (considerandos 26, 29 e 35).
26 Nessa tarefa, caso os órgãos jurisdicionais nacionais se deparem com dúvidas sobre a interpretação de tal conceito, ou de outros com ele conexos (v.g. os princípios gerais da contratação pública), poderão questionar o TJ mediante o instrumento processual das questões prejudiciais (vulgo reenvio prejudicial, previsto no artigo 267.º do TFUE).
27 Xxxxxxx do TJ, de 23 de dezembro de 2009, no processo C-376/08, Col. 2009, I-12169.
28 Considerando 46, bem assim respetiva decisão; o “negrito” (ou xxxx) é nosso.
Destarte, no terceiro parágrafo do considerando 114 da Diretiva 2014/24/UE (“Clássica”), já atrás parcialmente citado, refere-se o seguinte:
“Os serviços à pessoa de valor inferior a este limiar não terão, em condições normais, interesse para os prestadores de serviços de outros Estados-Membros, salvo se existirem indicações concretas em contrário, nomeadamente um financiamento da União para projetos transfronteiriços” (sublinhados nossos).
Igualmente, o segundo parágrafo do considerando 120 da Diretiva 2014/25/UE (“Setores”), igualmente transcrito em parte, apresenta, mutatis mutandis, redação idêntica:
“No contexto específico dos contratos públicos celebrados nestes setores, os serviços à pessoa de valor inferior a este limiar não terão, em condições normais, interesse para os prestadores de serviços dos outros Estados-Membros, salvo se existirem indicações concretas em contrário, nomeadamente o financiamento da União, no caso dos projetos transfronteiriços (sublinhados nossos).
Quer dizer: os contratos de prestação de serviços de valor inferior aos limiares de minimis previstos nas diretivas não apresentarão, em princípio (ou “em condições normais” na semântica das diretivas), interesse transfronteiriço (“para os prestadores de serviços dos outros Estados-Membros” na redação das diretivas). No entanto, a situação concreta poderá revelar a existência de circunstâncias (v.g. a existência de um financiamento comunitário) que permitam concluir pela presença de interesse transfronteiriço certo.
Da mesma forma, e partilhando os segmentos seguintes, os considerandos 117 da Diretiva 2014/24/UE e 123 da Diretiva 2014/25/UE referem a possibilidade de existência de “um certo interesse transfronteiriço”:
“A experiência demonstrou que vários outros serviços, como os serviços de socorro, os serviços de combate a incêndios e os serviços prisionais, habitualmente só apresentam um certo interesse transfronteiriço a partir do momento em que adquirem uma massa crítica suficiente mercê do seu valor relativamente elevado. Na medida em que não sejam excluídos do âmbito de aplicação da diretiva, tais serviços deverão ser incluídos ao abrigo do regime simplificado. Na medida em que a sua prestação se baseie efetivamente em contratos, outras categorias de serviços, como os…” (sublinhados nossos).
Variando, in fine, em função dos respetivos objetos contratuais e limiares de minimis, acrescenta-se a possibilidade de tal “certo interesse transfronteiriço” estar presente, ainda que o valor
contratual fique aquém dos respetivos limiares mínimos, apesar de tal cenário, naturalmente, não constituir a regra:
“… serviços das administrações públicas ou a prestação de serviços à comunidade, só a partir de um limiar de 750 000 EUR seriam normalmente suscetíveis de apresentar um interesse transfronteiriço, pelo que apenas deverão ficar sujeitas ao regime simplificado.” (lê-se na segunda parte do considerando 117 da Diretiva 2014/24/UE; sublinhado nosso);
“… serviços de investigação e de segurança, só a partir de um limiar de 1 000 000 EUR serão normalmente suscetíveis de apresentar um interesse transfronteiriço, pelo que apenas deverão ficar sujeitas ao regime simplificado.” (observa-se na segunda parte do considerando 123 da Diretiva 2014/25/UE; sublinhado nossos).
Afastada que se encontra a posição plasmada na primeira fase atrás referida (de criação de normas pela via jurisprudencial derrogatórias das disposições nacionais, no nosso caso constantes do CCP), das diretivas europeias resulta, também, a inexistência de automatismos que permitam ao juiz nacional do contrato público em análise presumir que determinados contratos de valor inferior aos limiares comunitários devem ficar sujeitos a procedimentos concorrenciais abertos. Em vez disso, ao referido juiz compete enunciar as “indicações concretas” (é esta, aliás, como se viu, a semântica empregue nas duas diretivas) que lhe permitam concluir pela presença de um interesse transfronteiriço certo, as quais poderão ser ou “um financiamento da União” (como as diretivas europeias também indicam) ou outras, em decorrência do advérbio de modo “nomeadamente”, mas sempre tomando em linha de conta as circunstâncias do caso concreto29.
Ainda que tal não seja a regra, o que aliás bem se compreende pela previsão de limiares de minimis que delimitam o âmbito de aplicação obrigatório dos procedimentos pré-contratuais previstos nas diretivas europeias sobre contratação pública, a possibilidade de o interesse transfronteiriço certo estar presente deve ser indagada sempre que as circunstâncias do caso concreto (v.g. a presença no contrato público de um elemento de conexão com a dimensão transfronteiriça) o aconselhem.
29 Xxxx XXXXX XXXXXXXXX, Os contratos reservados no artigo 54.º-A da Lei n.º 30/2021, de 21 de maio, in Xxxxx Xxxx XXXXXXXXXX, Ana Gouveia MARTINS e Xxxxx XXXXXXXXX XXXXXXX, Atas da Conferência, A Revisão do Código dos Contratos Públicos de 2021, Lisboa, 2021, p. 163 e 164.
4.3. A consolidação do conceito de interesse transfronteiriço certo na jurisprudência do TJ
Após a respetiva consagração, o TJ operou à consolidação do conceito de interesse transfronteiriço certo. Com este desiderato encontramos o acórdão Oftalma Hospital30, no qual o TJ acrescentou que:
“Quando adjudica um contrato público de serviços, que está abrangido pelo artigo 9.º da Diretiva 92/50/CEE do Conselho, de 18 de junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços, conforme alterada pela Diretiva 97/52/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de outubro de 1997, e que, consequentemente, está, em princípio, sujeito apenas aos artigos 14.º e 16.º desta diretiva, uma entidade adjudicante deve todavia conformar-se igualmente com as regras fundamentais e com os princípios gerais do Tratado FUE, em especial, com os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação em razão da nacionalidade, bem como com a obrigação de transparência deles decorrente, desde que, na data da sua adjudicação, esse contrato apresente um caráter transfronteiriço certo, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar”31.
Relativamente à sua determinação ou verificação, no acórdão Tecnoedi Costruzioni32, o TJ esclareceu ainda que a existência de interesse transfronteiriço certo:
“… não pode ser deduzida hipoteticamente de determinados elementos que, considerados de maneira abstrata, poderiam constituir indícios nesse sentido, mas deve decorrer de maneira positiva de uma apreciação concreta das circunstâncias do contrato em causa (…). Isto implica que não se pode considerar que está constituído um interesse transfronteiriço certo com base em elementos que não excluem a sua existência, mas deve ser considerado como tal quando a sua natureza transfronteiriça é demonstrada com base em elementos objetivos e concordantes”33.
Neste aresto o TJ mais aduziu que podiam constituir critérios objetivos suscetíveis de caracterizar a existência de um interesse transfronteiriço certo, nomeadamente:
“… a importância económica do contrato em causa, conjugada com o local de execução das obras ou ainda as características técnicas do contrato e as características específicas dos produtos em causa. Neste contexto, pode igualmente ser tomada em conta a existência de
30 Acórdão de 19 de abril de 2018, processo C-65/17, Col. 2018, 263.
31 Considerando n.º 46 e respetiva decisão; destaque a “negrito” nosso.
32 Acórdão de 6 de outubro de 2016, processo C-318/15, Col. 2016, 747.
33 Considerando n.º 22.
denúncias apresentadas por operadores situados em Estados-Membros diferentes do da entidade adjudicante, na condição de que seja verificado que estas são reais e não fictícias”34.
Tendo acrescentado, no supracitado acórdão Oftalma Hospital, que:
“Além disso, a circunstância de, à data de adjudicação do contrato em causa no processo principal, estarem ou não já assegurados serviços de saúde similares por entidades estabelecidas noutros Estados-Membros pode também constituir um elemento a tomar em consideração”35.
Resulta, portanto, da jurisprudência do TJ que a presença de interesse transfronteiriço certo deverá ser aferida, casuisticamente, pelo juiz nacional do contrato público sub judice. Essa determinação implica, portanto, a análise das circunstâncias do caso concreto, nomeadamente a existência de financiamento europeu para projetos transfronteiriços, o que, aliás, foi positivado nas diretivas europeias sobre contratação pública, ou o facto de a execução contratual ocorrer junto à fronteira entre dois Estados membros da UE (sem embargo de outros elementos de conexão com a dimensão transfronteiriça).
A pertinência da verificação de interesse transfronteiriço certo avulta, especialmente, quando os valores contratuais envolvidos, ficando aquém, se aproximam dos limiares de minimis previstos nas diretivas comunitárias.
4.4. O conceito de interesse transfronteiriço certo na jurisprudência dos tribunais portugueses
4.4.1. Na jurisdição financeira
Em sede de fiscalização prévia e mediante acórdão proferido em 12 de julho de 201136, o Tribunal de Contas (TdC) alertou que num procedimento adjudicatório de ajuste direto com convite a três entidades (quer dizer, num procedimento pré-contratual fechado à concorrência, logo desprovido de anúncio publicado em jornal oficial), com vista à celebração de um contrato de empreitada de obra pública no valor de € 1.406.920,45, a entidade adjudicante, ainda que excluída da aplicação da Parte II do CCP37, deveria ter observado os princípios da igualdade, transparência e
34 Considerando n.º 20.
35 Considerando n.º 40.
36 Xxxxxxx n.º 16/11, da 1.ª Secção/PL, proferido no processo 387/2011; Recurso Ordinário n.º 21/2011.
37 Além do valor do contrato ser inferior ao limiar previsto nas diretivas europeias sobre contratação pública, o que excluía a exigência de publicidade internacional, a entidade adjudicante tratava-se de um hospital público com a
concorrência, decorrentes do direito da UE e acolhidos no artigo 1.º do Código38, os quais, além do mais, são princípios constitucionais e administrativos, razão pela qual a mesma não procedeu a uma avaliação devida das circunstâncias da situação concreta, uma vez que a expressão financeira do contrato era suscetível de envolver um elevado interesse económico para agentes económicos de outros Estados membros39.
Em 2011 o TJ ainda não havia construído o conceito de interesse transfronteiriço certo, razão pela qual o TdC não o pôde empregar. Ainda assim, na sua decisão, o órgão jurisdicional português teve em conta a anterior jurisprudência do TJ sobre contratos públicos excluídos do âmbito de aplicação obrigatório das diretivas europeias sobre contratação pública, e que atrás citámos, bem assim a Comunicação Interpretativa da Comissão Europeia relativa ao direito comunitário aplicável à adjudicação de contratos não abrangidos ou só parcialmente abrangidos pelas diretivas comunitárias, de 1 de agosto de 2006.
Igualmente em xxxx xx xxxxxxxxxxxx xxxxxx, xx xxxxxxx xx 00 xx xxxxx xx 000000, o TdC, invocando a jurisprudência consolidada do TJ41, lembrou que:
“a aplicação das regras fundamentais e dos princípios gerais do Tratado aos procedimentos de adjudicação dos contratos de montante inferior ao limiar de aplicação das disposições comunitárias pressupõe que os contratos em causa tenham um interesse transfronteiriço certo”.
Nos acórdãos proferidos em 19 de abril de 201742 e em 26 de abril do mesmo ano43, o TdC fundamentou na presença de interesse transfronteiriço certo a publicidade obrigatória no JOUE, do anúncio de abertura de procedimentos pré-contratuais com vista à celebração de contratos públicos,
natureza de Entidade Pública Empresarial logo, na altura, não se encontrando abrangida pela aplicação da Parte II do CCP por força do n.º 3, então em vigor, do artigo 5.º, pelo que não estava obrigada a lançar um procedimento pré- contratual aberto à concorrência (v.g. concurso público), optando pelo procedimento de ajuste direto, ainda que dirigindo o convite a três entidades.
38 Ainda de acordo com os pontos III e IV do sumário, “Só através de procedimentos concorrenciais abertos, e respeitando princípios como os da igualdade e da concorrência, é que se garante a todos os potenciais interessados em contratar, quer o mais vasto acesso aos procedimentos, quer a mais ampla observância de outros princípios que estão intimamente relacionados com aqueles: o da transparência e o da publicidade;
Ainda que não sejam aplicáveis os procedimentos estabelecidos nas Directivas comunitárias e no Código dos Contratos Públicos, as entidades públicas estão obrigadas a adoptar procedimentos de contratação que salvaguardem o respeito pelos princípios acima indicados e, designadamente, o da concorrência”.
39 Cfr. Xxxxx XXXXXXXX, Interesse Transfronteiriço Certo (no âmbito da contratação pública), in Xxxx XXXXX XXXXXXXXX (coordenação), Direito Internacional e Europeu da Contratação Pública, Lisboa, 2017, p. 55, disponível in eBook_ContratacaoPublica_IE_UL.pdf (xxxxx.xx).
40 Acórdão n.º 12/2017, da 1.ª Secção/PL, proferido no processo n.º 115/2016-SRAT; RO n.º 7/2017.
41 Casos, já citados, Comissão vs. Irlanda, SECAP e Santorso; e Serrantoni e Consorzio stabile edili.
42 Acórdão n.º 13/2017, da 1.ª Secção/PL, proferido no processo n.º 56/2016-SRATC; RO n.º 14/2016.
43 Xxxxxxx n.º 16/2017, da 1.ª Secção/PL, proferido no processo n.º 90/2016-SRA; RO n.º 20/2016.
por ser mais ampla e centralizada, de onde decorre o caráter meramente facultativo da publicidade nacional, de âmbito menos alargado.
4.4.2. Na jurisdição administrativa
Mediante um raciocínio que procurou conjugar a mencionada Comunicação Interpretativa da Comissão Europeia, agora já com o conceito de interesse transfronteiriço certo, tal como construído pelo TJ, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) referiu o seguinte:
“A circunstância das diretivas não serem aplicáveis aos procedimentos ou contratos não obstará à subordinação destes às referidas normas e princípios dos Tratados e aos princípios fundamentais de contratação pública exigindo-se, porém, para uma tal subordinação que tais procedimentos ou contratos revistam dum interesse transfronteiriço certo”44.
Na fundamentação45, o STA manifestou, por um lado, o cuidado de alicerçar aquela conclusão na jurisprudência consolidada do TJ46, da qual se extrai que:
“a circunstância das diretivas não serem aplicáveis aos procedimentos ou contratos não obstará à subordinação destes às referidas normas e princípios dos Tratados e aos princípios fundamentais de contratação pública exigindo-se, porém, para uma tal subordinação que tais procedimentos ou contratos revistam dum interesse transfronteiriço certo mercê de serem objetivamente suscetíveis de interessar aos operadores económicos estabelecidos em Estados-Membros diferentes do Estado a que pertence entidade adjudicante”.
Igualmente socorrendo-se da jurisprudência do TJ, o STA, por outro lado, também arrolou os principais critérios objetivos que contribuem para a determinação da existência, ou inexistência, de interesse transfronteiriço certo, a saber: (i) a importância económica do contrato47; (ii) as características do contrato48; (iii) o local geográfico da sua execução49; ou (iv) os seus aspetos
44 Acórdão da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 20 de outubro de 2016, processo 01472/14, disponível
in Acordão do Supremo Tribunal Administrativo (xxxx.xx), ponto II do sumário.
45 Cfr. pontos XXX a XXXV do acórdão, inseridos na respetiva fundamentação de direito.
46 O STA invocou os citados acórdãos SECAP e Santorso; Teleaustria e Telefonadress; Coname; Parking Brixen; e Comissão vs. Irlanda; e ainda os acórdãos Anav, de 06 de abril de 2006, processo C-410/04, Col. 2006, I-03303; ASM Brescia, de 17 de julho de 2008, processo C-347/06, Col. 2008, I-05641; Azienda sanitaria locale n.º 5 Spezzino, de 11 de dezembro de 2014, processo C-113/13, Col. 2014, 2440; Generali-Providencia Biztosító, de 18 de dezembro de 2014, processo C-470/13, Col. 2014, 2469; Enterprise Focused Solutions, 16 de abril de 2015, processo C-278/14, Col. 2015, 228; e UNIS, de 17 de novembro de 2015, processos C-25/14 e C-26/14, Col. 2015, 821.
47 Invocando os citados acórdãos Coname; e SECAP e Santorso,
48 Socorrendo-se do citado acórdão Enterprise Focused Solutions.
49 Evocando o citado acórdão ASM Brescia, mas também o acórdão Belgacom (processo C-221/12) de 14 de novembro de 2013, igualmente do TJ.
técnicos50, não deixando de alertar para o aspeto de a avaliação dever ser feita em função das características e circunstâncias do procedimento concreto, ou do contrato sub judice, e não hipotética nem abstratamente51.
5. Enfim, o conceito de interesse transfronteiriço certo no CCP em (mais) uma ocasião perdida para a sua consagração mais robusta
Até à revisão de 2022, o CCP foi alheio ao conceito de interesse transfronteiriço certo, pelo menos nunca o empregando expressamente, o que se pode justificar não apenas pela origem – pretoriana – deste ser posterior à aprovação, em 2008, daquele, mas também porque as diretivas de 2004 europeias sobre contratação pública, transpostas para o ordenamento português pelo mencionado Código não o empregavam (cronologicamente, aliás, nem poderiam). Além do mais, o Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto, que procedeu à nona alteração do CCP e transpôs as diretivas de 2014, que, como vimos, positivaram o referido conceito, esteve longe de merecer elogios da doutrina. A Lei n.º 30/2021, de 21 de maio, que aprovou medidas especiais de contratação pública e também alterou o CCP, correspondeu a mais uma ocasião perdida.
Note-se, contudo, que a ausência de consagração legislativa expressa, ao nível do CCP ou de um qualquer outro ato legislativo sobre contratação pública (v.g. Lei n.º 30/2021, de 21 de maio), não significa, de todo, a irrelevância de tal conceito na nossa ordem jurídica (aliás, nos ordenamentos dos Estados membros da União que, porventura, não o tenham positivado nas respetivas normas nacionais sobre contratação pública), dado o inquestionável valor da jurisprudência do TJ como fonte do direito da UE.
Uma das matérias, aliás, para a qual já se chamava a atenção, em termos de (in)compatibilidade do CCP com o direito da UE sobre contratação pública, precisamente por desconsiderar o conceito de interesse transfronteiriço certo, era a matéria dos contratos reservados52.
50 Lembrando o citado acórdão SECAP e Santorso.
51 De acordo com o aresto, “… uma tal aferição não pode ser deduzida hipoteticamente de determinados elementos que, considerados de maneira abstrata, poderiam constituir indícios nesse sentido, mas antes deve decorrer de maneira positiva duma apreciação concreta das circunstâncias do contrato em causa” (cfr. ponto XXXII do acórdão).
52 Cfr. Xxxxx XXXXX XXXXXXXXX, A reforma de 2021 do CCP em matéria de contratos reservados e de modificações objetivas de contratos, in Xxxxx XXXXX XXXXX, Xxxxxxx XXXXX, Xxxxx XXXXXX e Xxxxx XXXXXXXX, Comentário ao Código dos Contratos Públicos, Volume I, 4.ª edição, Lisboa, 2021, p. 48.
5.1. A consagração do interesse transfronteiriço certo no domínio dos contratos reservados (artigo 54.º-A do CCP)
Aquele cenário alterou-se com o Decreto-Lei n.º 78/2022, de 7 de novembro, que alterou a Lei n.º 30/2021, de 21 de maio, que aprovou medidas especiais de contratação pública, o CCP e o Decreto- Lei n.º 60/2018, de 3 de agosto, que procedeu à simplificação de procedimentos administrativos necessários à prossecução de atividades de investigação e desenvolvimento, o qual consagrou, enfim, o conceito de interesse transfronteiriço certo no CCP, mais precisamente na parte final da alínea c) do n.º 1 do respetivo artigo 54.º-A.
De acordo com a renovada redação desta norma, a prerrogativa de as entidades adjudicantes reservarem a possibilidade de ser candidato ou concorrente continua a destinar-se a:
“Entidades com sede e atividade efetiva no território da entidade intermunicipal em que se localize a entidade adjudicante, em procedimentos promovidos por entidades intermunicipais, associações de autarquias locais, autarquias locais ou empresas locais para a formação de contratos de locação ou aquisição de bens ou móveis ou aquisição de serviços de uso corrente, de valor inferior ao limiar referido na alínea c) do n.º 3 do artigo 474.º…”.
Acrescentando-se, no entanto, o segmento:
“… e desde que os mesmos não revelem interesse transfronteiriço certo”53.
Neste aditamento reside uma das novidades54 da nova alínea c) do n.º 1 do artigo 54.º-A, atinente aos contratos reservados.
O interesse transfronteiriço certo foi ali positivado como requisito negativo cujo racional consiste em restringir a faculdade de as entidades adjudicantes reservarem a possibilidade de ser candidato ou concorrente em relação às entidades previstas na referida alínea c) do n.º 1 do artigo 54.º-A, o que melhor se compagina com o direito da UE, tanto no que tange aos seus princípios (v.g. da igualdade e não discriminação, da concorrência), como no que concerne às respetivas liberdades
53 Esta alteração mereceu, aliás, relevo logo no preâmbulo do Projeto de Decreto-Lei 32/XXIII/2022, incluído nos respetivos trabalhos preparatórios. Segundo o preâmbulo: “clarifica-se que a possibilidade de reservar contratos a determinadas entidades para a formação de um conjunto de contratos de uso corrente de valor inferior ao limiar das diretivas depende da circunstância de estes não revelarem interesse transfronteiriço certo”.
54 Por outro lado, a nova alínea c) do n.º 1 do artigo 54.º-A do CCP também suprimiu a menção à alínea “b) do n.º 4 [relativo à aquisição de alguns serviços] do artigo 474.º”, matéria onde, portanto, deixaram de ser possíveis, legalmente, “contratos reservados”, algo que melhor se compagina com as exigências do direito da UE da contratação pública, e com os princípios dele decorrentes, como sejam os da concorrência, imparcialidade, prossecução do interesse público e igualdade e não discriminação, tão caros à matéria da contratação pública em Portugal, como se retira do artigo 1.º-A do CCP.
fundamentais (de circulação mercadorias, prestadores de serviços e estabelecimentos) previstos no TFUE.
Refira-se ainda que o regime jurídico anterior configurava, manifestamente, uma situação suscetível de sujeitar o Estado português (i) quer às ações por incumprimento genericamente previstas nos artigos 258.º a 260.º do TFUE (a tramitar no TJ), (ii) quer a ações de responsabilidade civil extracontratual com vista à reparação de danos (a tramitar nos tribunais nacionais)55, na medida em que, com a aprovação e vigência de normas internas restritivas daquelas liberdades, o legislador nacional violou, inequivocamente, o direito da UE dos contratos públicos56 e em geral.
5.2. A conveniência na consagração do interesse transfronteiriço certo no domínio das limitações à escolha das entidades convidadas (artigo 113.º do CCP)
Não obstante, o legislador português poderia ter aproveitado a mesma oportunidade para consagrar o conceito de interesse transfronteiriço certo também, designadamente, no n.º 4 do artigo 113.º do CCP, o qual, derrogando o n.º 2 do mesmo artigo, relativo à “Escolha das entidades convidadas”, estabelece que nos “procedimentos de ajuste direto para a formação de contratos de locação ou aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços de uso corrente promovidos por autarquias locais”, não se aplica o limite quanto à contratação sucessiva dos mesmos adjudicatários (previsto naquele n.º 2) sempre que: i) a entidade convidada seja uma pessoa singular ou uma micro, pequena ou média empresa, devidamente certificada nos termos da lei, com sede e atividade efetiva no território do concelho em que se localize a entidade adjudicante; e ii) a entidade adjudicante demonstre fundamentadamente que, nesse território, não há outra fornecedora do tipo de bens ou serviços a locar ou a adquirir.
Nessa medida, justifica-se, por exemplo, a “adenda” no corpo do n.º 4 [ou a introdução de uma nova alínea c)] de um novo requisito negativo, semelhante ao que foi introduzido alínea c) do n.º 1 do artigo 54.º-A, alusivo à inexistência de interesse transfronteiriço certo57, assim se restringindo a prerrogativa, conferida às entidades adjudicantes, de escolherem “entidades às quais já tenham adjudicado, no ano económico em curso e nos dois anos económicos anteriores, na sequência de
55 Cfr. Xxxxxx Xxxxxxxx PROENÇA, op. cit., pp. 383 e ss. (para as ações por incumprimento) e pp. 629 e ss. (para as ações de indemnização).
56 Cfr. Xxxxx XXXXXXXXX XXXXXXX, op. cit., p. 50.
57 De iure constituendo, sugere-se uma possível redação para o n.º 4 do artigo 113.º do CCP: “O disposto no n.º 2 não se aplica aos procedimentos de ajuste direto para a formação de contratos de locação ou aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços de uso corrente, desde que os mesmos não revelem interesse transfronteiriço certo, promovidos por autarquias locais sempre que:…”.
consulta prévia ou ajuste direto adotados nos termos do disposto nas alíneas c) e d) do artigo 19.º e alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 20.º, consoante o caso, propostas para a celebração de contratos cujo preço contratual acumulado seja igual ou superior aos limites referidos naquelas alíneas”.
Até lá, manter-se-á o desrespeito, pelo Estado Português, do direito da UE, particularmente o referente aos contratos públicos58, com as potenciais consequências, já expostas, em termos de eventuais demandas quer em sede de ação por incumprimento, quer no âmbito de ações de indemnização.
6. Conclusão
Na determinação dos contratos públicos de valor abaixo dos limiares comunitários de minimis que determinam a sua sujeição obrigatória às diretivas europeias sobre contratação pública, nomeadamente aos respetivos procedimentos pré-contratuais, releva o conceito de interesse transfronteiriço certo, de formulação pretoriana, entretanto, positivado nas referidas diretivas.
Tratando-se de um conceito geral e indeterminado, o seu preenchimento será avaliado, caso a caso, em última instância pelo juiz nacional do contrato público sub judice, considerando a relevância económica do contrato (v.g. havendo financiamento europeu), mas também o local da sua execução (v.g. se for junto à fronteira entre dois Estados membros da UE) e as características técnicas do objeto (v.g. empreitada de obras públicas, serviço, fornecimento) do contrato público pretendido (sem embargo de outros possíveis elementos de conexão com a relevância transfronteiriça).
Trata-se ainda de um conceito cuja pertinência mais avulta, designadamente, quando os valores contratuais envolvidos, embora situando-se abaixo, se aproximem dos limiares comunitários previstos nas diretivas e, em Portugal, no artigo 474.º do CCP.
Mas não apenas: igualmente no âmbito de aplicação da Lei n.º 30/2021, de 21 de maio, que, além de alterar o CCP, também consagrou medidas especiais de contratação pública, quando os valores contratuais de empreitadas de obras públicas se aproximem dos € 750.000,00, definidos na alínea b) do seu artigo 2.º como limite máximo do procedimentos adjudicatórios de consulta prévia simplificada, será mais prudente e conforme ao direito da UE lançar um procedimento de concurso público ou concurso limitado por prévia qualificação simplificados, porventura com publicidade
58 Cfr. Xxxxx XXXXXXXXX XXXXXXX, op. cit., p. 51.
internacional, em vez de se optar pelo primeiro dos procedimentos adjudicatórios atrás referidos (que é um procedimento por convite, logo fechado à concorrência).
Apesar de, inquestionavelmente, merecer nota positiva, a consagração do conceito de interesse transfronteiriço certo nas alterações operadas ao CPP em 2022, cingida à disposição referente aos contratos reservados (artigo 54.º-A), legitima a ilação segundo a qual o legislador português foi parco, podendo-se conjeturar, de iure condendo, a sua positivação também, designadamente, no n.º 4 do artigo 113.º.
Ainda de iure constituento, uma consagração mais ambiciosa e, por ventura, mais compatível com o direito da UE sugere a consagração do conceito de interesse transfronteiriço certo no próprio artigo 474.º do CCP, referente aos limiares europeus, maxime no que tange a contratos cujos valores, embora situados abaixo, se aproximem desses limiares.
Da presença de interesse transfronteiriço certo decorre que os contratos públicos de valor abaixo dos limiares de minimis que determinam a sua sujeição obrigatória às diretivas europeias sobre contratação pública estejam, ainda assim, sujeitos a tais diretivas; no mínimo, estarão sujeitos ao direito da UE, designadamente aos princípios gerais dos Tratados e aos princípios específicos sobre contratação pública.