NOTAS SOBRE A REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA E O CONTRATO DE MANDATO*
NOTAS SOBRE A REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA E O CONTRATO DE MANDATO*
Main Aspects Regarding Voluntary Representation and the Mandate Agreement
Xxxxxxx Xxxxxxxx Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sócio do Escritório Xxxxxxx Xxxxxxxx Advogados.
Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx Professora de Direito Civil e do Consumidor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Sócia do Escritório Xxxxxxx Xxxxxxxx Advogados.
Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar os principais contornos da representação voluntária e do mandato, bem como identificar, no âmbito da disciplina do contrato de mandato, a normativa que é própria da técnica da representação no direito brasileiro. Ao reconhecer a autonomia da representação voluntária, o Código Civil de 2002 remeteu sua disciplina à parte especial, em que desponta o mandato como o tipo contratual por excelência a tratar da representação. Por isso a necessidade de se apartarem os preceitos próprios do mandato daqueles pertinentes à representação voluntária e que, consequentemente, aplicar-se-ão sempre que esta estiver presente, independentemente de estar associada a contrato de mandato.
Palavras-chave: Contrato de mandato. Representação voluntária. Procuração. Ratificação. Outorga de poderes.
Abstract: The present article aims to analyze the main aspects regarding voluntary representation and mandate agreement, as well as to identify, within the discipline of mandate agreement, the rules particularly applicable to representation according to Brazilian law. In expressing the autonomy of voluntary representation, the Civil Code of 2002 directed its discipline to the special part, in which the mandate agreement appears as the typified contract, par excellence, to regulate representation. Therefore, it’s necessary to distinguish the rules regarding mandate agreement from those related to voluntary representation, which, consequently, will be applicable to any case of voluntary representation, regardless of its association with a mandate agreement.
Keywords: Mandate agreement; voluntary representation; proxy; ratification; granting powers.
Sumário: Introdução – 1 Autonomia da representação voluntária no Código Civil de 2002 – 2 Elementos essenciais do mandato e da representação – 3 Disciplina da representação voluntária – 3.1 Procuração
∗ Os autores agradecem a atenta e crítica colaboração do mestrando Xxxxxxxxx xx Xxxxx Xxxxxx, do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UERJ, e do bolsista de iniciação científica Xxxxx Xxxxxx
Cortazio. O trabalho se integra à pesquisa dos autores no Grupo de Pesquisa “Direito Civil na Unidade do Ordenamento: elementos para uma interpretação civil-constitucional do direito privado”, regularmente cadastrado no CNPq: <xxx.xxxx.xx/xxx/xxxxxxxxxxxx/0000000000000000>.
é o instrumento da representação, não do mandato – 3.2 Abstração da outorga de poderes: autonomia da representação em relação ao negócio subjacente – 3.3 O princípio da atração da forma aplica-se à representação, não ao mandato – 3.4 Substabelecimento – 3.5 Procuração (não mandato) em termos gerais ou especiais – 3.6 Procuração (não mandato) em causa própria – 3.7 Irrevogabilidade da outorga de poderes quando associada a outros contratos – 3.8 Ratificação e teoria da aparência – Conclusão
Introdução
A diferenciação entre representação e mandato torna-se imperiosa a partir da consagração da autonomia desses institutos, devendo-se identificar a disciplina pertinente a cada um deles. Essa tarefa mostra-se especialmente árdua porque a representação, embora autônoma em relação ao mandato, é essencial a este, tendo o legislador, por isso, regulamentado a representação voluntária no âmbito do contrato de mandato. Para que seja possível separar o regramento de cada um, afigura-se necessário efetuar análise funcional, que atente para o papel de- sempenhado por esses institutos nas relações privadas e a tutela que para tanto necessitam.
Diversos preceitos situados na disciplina do mandato aplicam-se independen- temente da existência deste, vez que se associam ao negócio jurídico unilateral que tem por escopo habilitar uma pessoa a agir em nome de outra, vinculando-a diretamente aos terceiros com quem tratar. Essas normas referem-se à represen- tação voluntária, que encerra técnica autônoma em relação ao negócio subjacen- te, o qual pode ou não ser o contrato de mandato.
Busca-se, com o presente artigo, efetuar exame funcional das normas que, compondo a disciplina do mandato, nela se inserem por força da representação e que, por tal razão, são aplicáveis sempre que esteja presente essa técnica, independentemente de a qual contrato ela se vincula.
1 Autonomia da representação voluntária no Código Civil de 2002
Sob a vigência do Código Civil de 1916 havia dúvidas acerca da autonomia da representação voluntária em relação ao mandato, haja vista que os institutos foram tratados conjuntamente no âmbito do contrato de mandato.1 No diploma
1 San Xxxxx Xxxxxx defendia que a representação seria a “ideia suprema do mandato, além de só a ele pertencer entre todas as espécies de contrato”, de modo que “o mandato é a maneira de fazer-se a
de 2002, por outro lado, há inequívoca consagração da representação voluntária como instituto autônomo,2 embora essencial ao mandato. Dessa forma, não há, no direito brasileiro, mandato desprovido de representação,3 mas pode haver re- presentação sem mandato.
Nada obstante a independência da representação voluntária, o Código Civil não separou, na parte geral, a disciplina que lhe é própria, remetendo-a, nos termos do art. 120 do Código Civil,4 à parte especial, em que desponta como paradigma da representação voluntária o contrato de mandato. Daí a importância de o intérprete, por ocasião da análise do contrato de mandato, separar aquilo que é próprio do tipo contratual em questão das normas que, a rigor, regulam a representação voluntária como técnica em si.
A despeito da mudança aparentemente cosmética da disciplina do mandato contida no Código Civil de 1916 para o Código Civil atual, a transformação afigura-se profunda, em virtude da consagração da representação como instituto autônomo. Cabe ao intérprete, assim, em obediência ao art. 120 do Código Civil, separar e sistematizar, a partir dos dispositivos topograficamente situados no contrato de mandato, aquilo que é pertinente à representação, e que será, portanto, imediata- mente aplicável a qualquer outro ajuste que se valha desta técnica.5
representação direta voluntária” (DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil. v. II. Rio de Janeiro: Xx. Xxx, 0000. p. 369-370). A favor da autonomia da representação no que tange ao mandato, cf. XXXXXXXXX, Xxxxxx. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. v. 5. Rio de Janeiro: Paulo de Azevedo, 1957. p. 24.
2 O Código Civil de 2002 tratou da representação em capítulo próprio, inserido no Título I (Do Negócio Jurídico) do Livro III (Dos Fatos Jurídicos), nos arts. 115 a 120, atribuindo-lhe inequívoca autonomia. Acerca da autonomia da representação em relação ao mandato, cf. XXXXXXXX, Xxxxxxx. Comentários ao novo Código Civil, op. cit., p. 19-22; e XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. A representação no Código Civil (arts. 115- 120). In: XXXXXXXX, Xxxxxxx (Coord.). O Código Civil na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 265-288.
3 O art. 653 do Código Civil, ao definir o contrato de mandato, deixa claro que integra sua essência a ideia de representação. É ver-se: “Opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato”. Sobre o tema, cf. XXXXXXXX, Xxxxxxx. Comentários ao novo Código Civil. v. X. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 25-45. As partes podem, nada obstante, entabular negócio atípico em que se utilizem da disciplina do contrato de mandato sem a técnica da representação.
4 Art. 120, Código Civil: “Os requisitos e os efeitos da representação legal são os estabelecidos nas normas respectivas; os da representação voluntária são os da Parte Especial deste Código”.
5 Sobre o tema, seja consentido remeter a XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Autonomia da representação voluntária no direito brasileiro e determinação da disciplina que lhe é aplicável. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, v. 72, p. 5-18, 2016.
2 Elementos essenciais do mandato e da representação
Pelo contrato de mandato, o mandatário recebe poderes do mandante para agir em nome e no interesse deste (art. 653 do Código Civil). A atuação do man- datário em nome do mandante é da essência do contrato de mandato, de maneira que a representação integra sua causa.6 Por força da representação, o mandante encontra-se diretamente vinculado a terceiros com quem o mandatário, em seu nome, contratar, como se o mandante atuasse diretamente. Eis aí a peculiaridade da atividade do mandatário: atua não só por conta e no interesse do mandante, mas, ao agir em nome deste, compromete-o diretamente para com aqueles com quem contrata, de modo que o mandante, e não o mandatário, torna-se parte nos negócios celebrados com terceiros.
A confiança desponta como elemento essencial ao mandato, uma vez que o mandatário atua não apenas em nome, mas no interesse do mandante. Na medida em que a fidúcia depositada pelo mandante no mandatário poderá, a qualquer tempo, desaparecer, atribui-se ao mandante a possibilidade de revogar ad nutum os poderes conferidos ao mandatário e extinguir o vínculo contratual.7 Mostra-se significativo que, para o exercício do direito de revogação, não importa ser o mandato gratuito ou oneroso, tampouco a prévia fixação de prazo contratual ou o tipo e a extensão dos poderes conferidos. O direito do mandante de revogar o mandato consiste, em uma palavra, em prerrogativa fundamental. Nessa direção, a violação, pelo mandante, de eventual cláusula de irrevogabilidade aposta no contrato implica apenas o pagamento de perdas e danos em favor do mandatário prejudicado (art. 683 do Código Civil). As hipóteses de irrevogabilidade dos po- deres outorgados, consoante se abordará, referem-se à representação aposta a negócio jurídico diverso do contrato de mandato (ver item 3.7, infra).
A representação, por sua vez, consubstancia técnica de atuação em nome
de outrem que tem como núcleo central a contemplatio domini, isto é, o agir declaradamente em nome alheio, de maneira que os terceiros que tratam com o representante consideram estarem vinculados ao representado, que figura como
6 Sobre a importância da causa para a qualificação do contrato, cf. XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx; XXXXX XX XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx et al. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. v. II. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 12-13; XXXXXXXX, Xxxxxxx. Questões controvertidas so- bre o contrato de corretagem. In: Temas de Direito Civil. t. I. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 149; XXXXX XX XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx. O procedimento de qualificação dos contratos e a dupla configuração do mútuo no direito civil brasileiro. Revista Forense, v. 309, p. 33 et seq., 1990.; XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Causa do contrato x Função social do contrato: estudo comparativo sobre o controle da autonomia negocial. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro v. 43, p. 33-75, 2010.
7 Como destaca Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx, “em qualquer tempo, pois, e sem necessidade de justificar a sua atitude, o mandante tem a faculdade de revogar ad nutum os poderes, e unilateralmente por termo ao contrato” (Instituições de Direito Civil. v. III. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 378).
parte nos ajustes entabulados. A contemplatio domini consiste justamente na atuação ostensiva do representante (não em nome próprio, mas) em nome do representado.
A representação voluntária deriva da vontade do representado, que outorga ao representante poderes para agir em seu nome e vinculá-lo diretamente às rela- ções jurídicas com terceiros.8 A outorga de poderes consubstancia negócio jurídico unilateral, do qual não nascem deveres jurídicos para o representante. A maneira como o representante deve agir e os deveres que lhe são impostos decorrem da relação jurídica base (mandato ou outro negócio) que regula a representação. Por outras palavras, a representação, como técnica de atuação em nome de outrem, apenas diz com os limites de vinculação do representado para com terceiros pelo agir do representante.9 O negócio ao qual se associa a representação voluntária (relação jurídica base) é que determina os atos e comportamentos esperados do representante.
3 Disciplina da representação voluntária
3.1 Procuração é o instrumento da representação, não do mandato
Já o primeiro artigo do contrato de mandato traz norma acerca da técnica da representação. De acordo com o art. 653, “opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar inte- resses. A procuração é o instrumento do mandato”. A procuração consubstancia ato unilateral de outorga de poderes que habilita um sujeito (representante) a atuar em nome de outrem (representado), vinculando-o diretamente aos terceiros com quem em seu nome tratar. Basta a manifestação de vontade do representado no sentido de conferir ao representante poderes para que, agindo este em nome do representado, torne-o parte nos ajustes que entabular, de maneira que os efeitos dos atos praticados pelo representante em nome do representado recaiam diretamente na esfera jurídica deste. Dessa forma, não é necessária a aceitação
8 “Em sua forma direta ou própria, a representação importa outorga de poderes a alguém para concluir atos jurídicos cujos efeitos correspondem à pessoa em nome da qual foram praticados” (XXXXX, Xxxxxxx. Contratos. Atualizado por Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx x Xxxxxxxxx xx Xxxxxxxxx Xxxxxx. Xxx xx Xxxxxxx: Forense, 2007. p. 424). “Na representação própria ou direta, o representante age em nome do represen- tado, recaindo os efeitos jurídicos do negócio celebrado diretamente na esfera jurídica deste” (XXXXXXXX, Xxxxxxx. Comentários ao novo Código Civil, op. cit., p. 6).
9 XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Autonomia da representação voluntária no direito brasileiro e determinação da disciplina que lhe é aplicável, op. cit., p. 7.
do representante ao ato de outorga de poderes e tampouco o representante vira parte nos negócios que concretizar em nome do representado.
De outro lado, o mandato, por sua natureza contratual, pressupõe a conver- gência de vontades entre mandante e mandatário, assumindo ambas as partes direitos e deveres aos quais consensualmente se vinculam. Enquanto o represen- tante age em nome do representado, o mandatário age em nome e no interesse do mandante. A maneira com que o representante deve agir associa-se aos de- veres que assumiu na relação jurídica à qual se submete a outorga de poderes. A procuração em si mesma não traduz essa relação jurídica, apenas habilita o representante a agir em nome do representado, vinculando-o diretamente nos ajustes que em seu nome praticar. Assim, a procuração, negócio jurídico unilateral por essência, não poderia, sequer em tese, consubstanciar o instrumento de um contrato, negócio jurídico sempre bilateral na sua formação, e por isso configura instrumento da representação, não do mandato.10
A procuração, repise-se, conta com a manifestação de vontade exclusiva- mente do representado, não cabendo ao representante “aceitar” os poderes que lhe foram conferidos. Cuida-se de negócio jurídico unilateral que tem por escopo habilitar o representante a vincular diretamente a esfera jurídica do representado em relação às pessoas com quem, em nome deste, tratar. A forma de atuação e os deveres a que se submete o representante são regulados pelas disposições do contrato a que se associa a representação, o qual pode ser o mandato ou qualquer outro ajuste, típico ou atípico.
Não há, assim, deveres que exsurgem ao representante pelo só fato de ter recebido poderes para agir em nome de outrem. Tais deveres remontam à relação jurídica contratual que obriga as partes, para a qual o representante manifestou sua anuência quanto aos encargos e responsabilidades assumidos. Por isso que se mostra equivocado considerar que o representante deve agir no interesse do representado, como se tal conduta fosse ínsita à representação. A rigor, a atua- ção do representante deve respeitar o ajustado com o representado no negócio jurídico subjacente que ensejou a outorga, o que não necessariamente significa promoção dos interesses do representado. Já o mandatário (representante), pelo tipo contratual do mandato, deve agir no interesse do mandante (representado).
10 Cf. PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de direito privado. t. XLIII. Atualizado por Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx e Xxxxx Xxxxxxx. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 58; XXXX XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxx. A representação no negócio jurídico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 82. Na lição de Xxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxxx: “A procuração não cria uma obrigação para o procurador de praticar atos, mas o poder de agir em nome do outorgante, diferenciando-se, nesse aspecto, do mandato, em que o mandatário tem a obrigação de praticar atos jurídicos no interesse do mandante” (ASCENSÃO, Xxxx xx Xxxxxxxx. Direito Civil. v. II. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 233).
Isso porque é da essência do contrato de mandato o propósito de cooperação jurídica e a tutela, pelo mandatário, dos interesses do mandante.11
A despeito da literalidade de alguns dispositivos do Código Civil,12 que alu- dem à atuação do mandatário no próprio interesse, tais preceitos, a rigor, incidem quando não há contrato de mandato, mas representação associada a outro ajuste entabulado pelas partes, daí a irrevogabilidade dos poderes outorgados e a possi- bilidade de atuação do representante no interesse próprio ou de outrem (ver item
3.7 do presente artigo).
3.2 Abstração da outorga de poderes: autonomia da representação em relação ao negócio subjacente
Em virtude de a outorga de poderes não se confundir com a relação jurídica base à que se associa e da qual surgem os deveres aos quais se vincula o repre- sentante, estabeleceu o legislador a autonomia da representação quanto ao negó- cio subjacente. Significa dizer que, agindo o representante dentro dos limites dos poderes que lhe foram conferidos, o representado encontra-se obrigado para com terceiros de boa-fé, independentemente de a atuação do representante ter des- respeitado alguma cláusula contratual ou instrução transmitida pelo representado. Nessa direção, o art. 679 do Código Civil estipula norma que se aplica a todos os ajustes que se utilizem da técnica da representação. Eis a dicção do
preceito:
Ainda que o mandatário contrarie as instruções do mandante, se não exceder os limites do mandato, ficará o mandante obrigado para com aqueles com quem o seu procurador contratou; mas terá contra este ação pelas perdas e danos resultantes da inobservância das instruções.
A norma trata da autonomia da representação frente à relação jurídica base. Entende-se por esta última o ajuste que vai regular o modo de exercício dos po- deres outorgados, podendo ser o mandato ou outro negócio típico ou atípico. A outorga, consoante se destacou, por traduzir negócio jurídico unilateral, não rege
11 Cf., sobre o propósito de cooperação jurídica do mandato, XXXXXXXX, Xxxxxxx. Comentários ao novo Código Civil, op. cit., p. 27-28; XXXXXXXXX, Xxxxxx. Direito civil. v. III. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 295; XXXXX XXXXX, Xxxxxx Xxxxx xx. Curso de direito civil. v. 4. 4. ed. Atualizada por Xxxx Xxxxx Santa Maria. Rio de Janeiro: Xxxxxxx Xxxxxx, 1993. p. 304; XXXXXXXXX, Xxxxxx. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, op. cit., p. 37.
12 Cf. arts. 684 e 686, parágrafo único, do Código Civil.
a atuação do representante, apenas habilita-o a como tal agir, vinculando o re- presentado para com terceiros. Os direitos e deveres atribuídos ao representante encontram-se no negócio jurídico subjacente que, em última análise, justifica a própria outorga de poderes e a representação.
Na medida em que a relação jurídica base pode ser variada e dinâmica, o legislador estabeleceu a abstração da representação,13 de modo que a atuação do representante dentro dos limites dos poderes que lhe foram conferidos obriga o representado, independentemente da violação a qualquer preceito contido no ne- gócio jurídico subjacente que justificou a outorga de poderes. Trata-se de relevante salvaguarda para terceiros de boa-fé.
Embora o dispositivo aluda a mandato, aplica-se a qualquer negócio jurídico que se utilize da técnica da representação. Dessa forma, sempre que o represen- tante estiver devidamente habilitado para a prática do ato realizado, o represen- tado estará vinculado aos terceiros de boa-fé, independentemente de qualquer violação contratual, que traduz problema interno entre contratante e contratado, inoponível aos terceiros de boa-fé.
Há de se diferenciar, nesse contexto, o excesso de poderes e o abuso de poderes.14 Aquele ocorre todas as vezes que o representante extrapola os poderes outorgados, de maneira que sua atuação não vincula o representado, a menos que este ratifique o ato praticado pelo representante ou incida a teoria da aparência.15 O abuso de poderes, a seu turno, manifesta-se quando o representante, no âmbito dos poderes que lhe foram outorgados – estando, assim, plenamente habilitado à
13 Cf. PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de direito privado. t. XLIII. op. cit., p. 62. Nas palavras de Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx: “Se o comitente houver fornecido ao representante instruções especiais, em apartado ou reservadas, a obrigação contraída nos limites das outorgas tem plena vigência, ainda que em afronta às instruções, porque são inconfundíveis umas e outras; os poderes definem a representação e o terceiro deve conhecê-los ao tratar com o mandatário, ao passo que as instruções podem ser legitimamen- te ignoradas por aquele, destinando-se a regular as relações particulares entre mandatário e mandante” (XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições de Direito Civil. v. III. Op. cit., 2013, p. 376-377). “Agravo de instrumento. Transação celebrada por mandatário regularmente constituído nos autos e imbuído de po- deres especiais para transigir, receber e dar quitação. Ausência de revogação do mandato. Oposição da mandante quanto aos termos do acordo que não pode prevalecer, em razão do disposto nos artigos 679 e 686 do Código Civil. Desavenças entre mandante e mandatário que deve ser resolvida extra-autos. [...]” (TJRJ, 2ª CC, AI 2007.002.11205, Rel. Des. Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, julg. 23.05.2007). Ver também TJRJ, 16ª CC, AI 0003407-58.2013.8.19.0000, Rel. Des. Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, julg. 04.06.2013; TJSP, 14ª CDP, Ap. Civ.0025282-23.2011.8.26.0562, Rel. Des. Xxxxxx Xxxxx, julg. 03.12.2014; TJSP, 25ª CDP, Ap. Cív. 0133621-75.2009.8.26.0100, Rel. Des. Xxxxxx Xxxx, julg. 07.11.2012.
14 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Comentários ao novo Código Civil, op. cit., p. 85-86; PONTES DE MIRANDA, F. C.
Tratado de direito privado. t. XLIII. Op. cit., p. 135.
15 A legítima aparência de representação, motivada pelo emprego do nome xxxxxx, aliada à conduta culposa ou dolosa daquele em cujo nome se atuou, tem o condão de vinculá-lo aos negócios celebrados por aquele que, em razão das circunstâncias, efetivamente o representou. Tutela-se a legítima confiança do terceiro de boa-fé em favor da segurança das relações jurídicas, convertendo-se a representação aparente em efetiva representação. Sobre a teoria da aparência, cf. item 3.8, infra.
prática do ato –, contraria o ajuste celebrado com o representado, violando, dessa forma, a relação jurídica base. Neste caso, o representado encontra-se obrigado para com os terceiros de boa-fé, mas possui em face do representante ação para se ressarcir dos danos sofridos.
3.3 O princípio da atração da forma aplica-se à representação, não ao mandato
A imprecisão terminológica é verificada em vários artigos do Código Civil quando se referem à “outorga de mandato”. O mandato, dada sua natureza con- tratual, não é suscetível de outorga, ato unilateral, mas constitui-se mediante convergência de vontades do mandante e do mandatário, caracterizando-se como contrato consensual (ver item 3.1, supra).
O art. 657 do Código Civil instituiu o princípio da atração da forma ao esti- pular que “a outorga do mandato está sujeita à forma exigida por lei para o ato a ser praticado. Não se admite mandato verbal quando o ato deva ser celebrado por escrito”.
A outorga de poderes habilita o representante à prática de certo ato, enten- dendo o legislador por bem que essa habilitação deva revestir-se das mesmas formalidades do ato a ser praticado.16 Na medida em que a forma exigida por lei tem por escopo garantir a segurança da operação e chamar a atenção das partes para a seriedade do ato a ser realizado,17 essa função restaria comprometida se a outorga de poderes de representação pudesse revestir forma diversa do ato que ao final vinculará o representado. Daí a atração da forma estabelecida pelo legislador de 2002, que encerrou as controvérsias outrora existentes acerca da forma a ser observada pela procuração.18
Em definitivo, a outorga de poderes não requer forma especial, podendo ser inclusive verbal e tácita.19 Mas se o ato a ser praticado mediante representação não
16 “A opção legislativa visou a conferir maior segurança às transações privadas, na medida em que, não raro, ocorriam fraudes envolvendo a transferência da propriedade imobiliária com falsa procuração, passada por instrumento particular” (TEPEDINO, Xxxxxxx. Comentários ao novo Código Civil, op. cit., p. 64).
17 “A garantia da parte e a certeza da vicissitude – que representam o interesse prevalecente – são obtidas mediante a técnica do formalismo” (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 454-455). Confira também: XXXXXXXXXX, Xxxxxx. Forma dei negozi e formalismo degli interpreti. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1987. p. 151-152. Na doutrina brasileira, cf. XXXXXX, Xxxxxxxxx. Direito civil: introdução. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 425: “Ao exigir a forma vinculada, a lei tem por objetivo: a) garantir a autenticidade do ato; b) chamar a atenção das partes para a seriedade do ato que estão praticando; c) facilitar a publicidade do negócio jurídico”.
18 Cf. XXXXX XXXXX, Xxxxxx Xxxxx xx. Curso de direito civil. v. IV. Op. cit., p. 300-301.
19 Outro dispositivo pertinente à disciplina da representação voluntária é o art. 656, in verbis: “O mandato pode ser expresso ou tácito, verbal ou escrito”.
for de forma livre, exigindo específica formalidade, aí a outorga que habilita o repre- sentante a agir em nome do representado deve revestir a mesma formalidade,20 formalidade esta, note-se, que se aplica apenas à concessão de poderes, não já ao negócio subjacente que fundamenta a representação, o qual pode ser o man- dato ou outro ajuste, típico ou atípico.
O art. 655 do Código Civil, em uma primeira leitura, pode parecer contradi- tório com o princípio da atração da forma. Isso porque estabelece que, “ainda quando se outorgue mandato por instrumento público, pode substabelecer-se mediante instrumento particular”. O preceito deve ser interpretado no sentido de que, quando as partes adotarem facultativamente o instrumento público, não sen- do mandamento legal a adoção dessa formalidade, o substabelecimento pode ocorrer mediante instrumento particular.21 Ou seja, o art. 655 consubstancia regra hermenêutica aplicável sempre que o instrumento público para a outorga houver sido adotado por livre impulso das partes, não já quando a forma decorrer de im- posição legal, pois neste caso o substabelecimento deve revestir a mesma forma, já que traduz outorga de poderes, ainda que derivada.
3.4 Substabelecimento
O substabelecimento, que é próprio da técnica da representação, ocorre quando o representante outorga, com base nos poderes que previamente lhe fo- ram concedidos, poderes para outra pessoa agir em nome do representado,22 o que pode se dar com ou sem reserva de poderes.23 O substabelecimento sem reservas equivale à renúncia, pelo substabelecente, dos poderes que lhe foram conferidos, despindo-se da condição de representante.24 Já quando o substabele- cimento é feito com reservas, o substabelecente mantém sua qualidade de repre- sentante, adicionando novo representante à relação jurídica, o substabelecido.25
20 Na medida em que a ratificação traduz outorga de poderes, a ela também se aplica o princípio da atração da forma. Sobre o princípio da atração da forma, cf. XXXXXXXX, Xxxxxxx. Comentários ao novo Código Civil, op. cit., p. 56-58; PONTES DE XXXXXXX, F. C. Tratado de direito privado. t. XLIII. Op. cit., p. 142; XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições de Direito Civil. v. III. Op. cit., p. 370. Cf. também STJ, REsp 1575048/SP, 4ª T., Rel. Min. Xxxxx Xxxxx, julg. 23.02.2016.
21 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Comentários ao novo Código Civil, op. cit., p. 57-58.
22 V. XXXXXXXXX, Xxxxxx. Direito civil. v. III. Op. cit., p. 291; e XXXXX, Xxxxxxx. Contratos, op. cit., p. 436.
23 “O substabelecimento, com reserva de poderes, associa o substabelecido ao mandatário na execução do mandato. Sem reserva de poderes, afasta o procurador do negócio” (BEVILAQUA, Xxxxxx. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. v. 5. Op. cit., p. 62).
24 “O substabelecimento sem reserva de poderes, por si só, importa renúncia ao mandato judicial, sendo desne- cessária manifestação expressa do substabelecente no sentido de que deixará de representar o outorgante. [...]” (STJ, 6ª T., HC 326.861/SP, Rel. Min. Xxxxxxx Xxxxxxx (Des. Convocado do TJSP), julg. 24.11.2015).
25 “O substabelecimento com reserva de iguais poderes não importa na extinção do mandato. Mandante- substabelecente que continua a exercer o mandato e, por isso, permanece obrigado a prestar contas à
O substabelecimento é usualmente admitido como forma de otimizar a repre- sentação.26 A responsabilidade do representante varia conforme o negócio subja- cente seja omisso, autorize, ou vede o substabelecimento. Se a vedação constar no instrumento de procuração, o substabelecimento não tem o condão de vincular o representado aos atos praticados pelo substabelecido, por configurar excesso de poderes.
O art. 667 do Código Civil27 regula a responsabilidade do representante nas hipóteses de substabelecimento, o que se aplica não apenas ao contrato de man- dato, mas à representação voluntária em geral. O preceito traz quatro situações:
(i) o contrato autoriza o substabelecimento pelo representante; (ii) o contrato é omisso quanto à possibilidade de substabelecimento pelo representante; (iii) o contrato veda o substabelecimento pelo representante; (iv) a vedação ao substa- belecimento encontra-se na própria procuração, isto é, no instrumento que habilita o representante a atuar em nome do representado.
No primeiro caso, a teor do §2º do art. 667,28 o substabelecente apenas responde pelos atos praticados pelo substabelecido se houver agido com culpa na escolha deste ou nas instruções transmitidas. De outra parte, na hipótese de
sua mandante (art. 668, do CC/2002 e art. 34, XXI, do Estatuto da Advocacia)” (TJSP, 27ª CDP, Ap. Cív. 9149675-06.2008.8.26.0000, Rel. Des. Morais Pucci, julg. 27.08.2013).
26 A despeito da natureza personalíssima do contrato de mandato, vez que fundado na confiança, admite-se o substabelecimento. Nessa esteira, cf. XXXXXXXXX, Xxxx xx Xxxxx: “Sendo o mandato baseado na con- fiança do mandante, parece lógico que somente o mandatário o deve pessoalmente desempenhar, sem se fazer substituir por outra pessoa. Todavia, esta substituição pode tornar-se indispensável, no interesse do próprio mandante; pode ser um dos atos necessários ao bom desempenho do mandato, necessidade que somente o mandatário, conforme as circunstâncias ou urgências do caso, poderá apreciar” (Tratado de Direito Civil, v. VII, t. II, São Paulo: Xxx Xxxxxxx, 1955. p. 585-586). Cf. também XXXXX XXXXX, Xxxxxx Xxxxx xx. Curso de direito civil. v. IV. op. cit., p. 305.
27 Art. 667 do Código Civil: “O mandatário é obrigado a aplicar toda sua diligência habitual na execução do mandato, e a indenizar qualquer prejuízo causado por culpa sua ou daquele a quem substabelecer, sem autorização, poderes que devia exercer pessoalmente. §1º Se, não obstante proibição do mandante, o mandatário se fizer substituir na execução do mandato, responderá ao seu constituinte pelos prejuízos ocorridos sob a gerência do substituto, embora provenientes de caso fortuito, salvo provando que o caso teria sobrevindo, ainda que não tivesse havido substabelecimento. §2º Havendo poderes de substabe- lecer, só serão imputáveis ao mandatário os danos causados pelo substabelecido, se tiver agido com culpa na escolha deste ou nas instruções dadas a ele. §3º Se a proibição de substabelecer constar da procuração, os atos praticados pelo substabelecido não obrigam o mandante, salvo ratificação expressa, que retroagirá à data do ato. §4º Sendo omissa a procuração quanto ao substabelecimento, o procurador será responsável se o substabelecido proceder culposamente”.
28 “Sobreleva destacar, ainda, a norma insculpida no art. 667, §2º, do Código Civil, que mais se aplica ao presente caso, em que, havendo poderes de substabelecer expressamente consignado na procuração acostada a fls. 70, ao mandatário apenas serão imputáveis os danos causados pelo substabelecido, se tiver agido com culpa na escolha deste ou nas instruções dadas a ele. Como se pode observar, eventual sanção será imposta apenas ao mandatário substabelecente, nada se falando em nulidade decorrente do ato, posto que os credores não podem ser prejudicados por questões que envolvem matéria relacionada ao mandante e ao mandatário” (TJSP, 26ª CDP, AI 2226154-18.2015.8.26.0000, Rel. Des. Xxxxxxx Xxxxx, julg. 17.12.2015).
omissão quanto à possibilidade de substabelecimento, o substabelecente respon- de por todos os atos culposos praticados pelo substabelecido (§4º).29
Já se houver vedação ao substabelecimento, deve-se diferenciar se a proibi- ção encontra-se na procuração ou apenas na relação subjacente entre represen- tante e representado. Se estiver na procuração, o substabelecimento configurará ato praticado em excesso de poderes e, por isso, não terá o condão de vincular o representado (§3º). Por outro lado, se a vedação estiver no contrato (ou nas instru- ções transmitidas pelo representado ao representante), haverá (não já excesso, mas) abuso de poderes, de maneira que o representado deve respeitar todos os atos praticados pelo substabelecido dentro dos poderes transmitidos, embora tenha ação de perdas e danos com base na violação contratual perpetrada pelo representante/substabelecente. Veja-se que o legislador responsabiliza o subs- tabelecente que age contra o pactuado mesmo na hipótese de fortuito ou força maior, a menos que este prove que o dano adviria ainda que não tivesse havido substabelecimento (§1º).30
A abstração da representação em relação ao negócio subjacente, examinada no item 3.2, explica o diverso tratamento legislativo do art. 667 quanto à vedação ao substabelecimento: se estiver na procuração, o substabelecimento representa- rá excesso de poderes e não terá o condão de vincular o representado; se estiver apenas no negócio subjacente, haverá abuso de poder e, em razão da abstração da representação, vinculará o representado, que, nada obstante, conserva ação indenizatória em face do representante/substabelecente nos termos previstos em lei (art. 667, §1º, CC).
3.5 Procuração (não mandato) em termos gerais ou especiais
Novamente o Código Civil, no art. 661,31 refere-se ao mandato quando, a ri- gor, deveria aludir ao negócio jurídico unilateral de outorga de poderes. Aduz o pre- ceito que a procuração em termos gerais só confere poderes de administração.32 Significa que o representante só pode praticar atos que visem à preservação dos
29 “Omissão quanto a outorga de poderes ao mandatário para substabelecer. Aplicação do teor do artigo 667, §4º, do Código Civil. Validade dos atos praticados pelo substabelecido. Reconhecimento. Recurso im- provido” (TJSP, 32ª CDP, Ap. 0015886-72.2010.8.26.0007, Rel. Des. Xxxxx xx Xxxxx, julg. 09.05.2013).
30 Trata-se da relevância negativa da causa virtual, a qual pode ser invocada, nas hipóteses legais, pelo autor da causa real para excluir sua obrigação de indenizar. Sobre o tema, cf. XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxx. O problema do nexo causal na responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 207-265.
31 Art. 661, caput, do Código Civil: “O mandato em termos gerais só confere poderes de administração”.
32 “Entende-se por atos de administração os necessários e suficientes a conservar determinados bens, sem implicar a alteração de sua medida ou substância” (XXXXXXXX, Xxxxxxx. Comentários ao novo Código Civil, op. cit., p. 73-74).
direitos do representado, não podendo alienar ou onerar bens. Advirta-se que a alienação pode se revelar medida de administração quando se estiver diante de bens perecíveis,33 de sorte que individuar o que consubstancia ato de mera admi- nistração deve ser feito à luz do concreto regulamento de interesses.
Para a prática de atos que exorbitem a administração ordinária, o Código Civil exige poderes expressos e especiais, isto é, expressa e especificamente outorgados para a concretização de certos atos.34 A lista constante no art. 661,
§1º,35 não é taxativa, havendo outras hipóteses, como o casamento,36 em que são exigidos poderes expressos e especiais. Cuida-se de norma que se coaduna com o princípio da atração da forma já examinado, pois também tem por objetivo garantir a segurança e chamar a atenção do representado para a seriedade de certos atos ao demandar específica e expressa autorização para sua prática.
3.6 Procuração (não mandato) em causa própria
A procuração em causa própria tem previsão no art. 685 do Código Civil: “Conferido o mandato com a cláusula ‘em causa própria’, a sua revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o man- datário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais”.
O “mandato em causa própria” subverte as principais normas sobre o con- trato de mandato. Não por outra razão Xxxxxx Xxxxxxxxx afirmava que a cláusula in rem suam é “desnaturadora do mandato”.37 Com efeito, o “mandato em causa própria” é irrevogável, não se extingue pela morte de qualquer das partes, o man- datário não tem o dever de prestar contas, age em seu próprio interesse e pode transferir para si os bens objeto do mandato, tendo poderes ilimitados.
33 “Compreendem-se na administração ordinária os atos de gerência, que não importam alienação, exceto dos bens de fácil deterioração e dos que se destinam a ser alienados” (BEVILAQUA, Xxxxxx. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. v. 5. Op. cit., p. 33).
34 Cf. XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições de Direito Civil, v. XXX, op. cit., p. 371; e XXXXXXXX XXXXXX, X.
X. xx. Código civil brasileiro interpretado. v. XVIII. Rio de Janeiro: Livraria Xxxxxxx Xxxxxx, 1961. p. 164-165.
35 Art. 661 do Código Civil, §1º: “Para alienar, hipotecar, transigir, ou praticar outros quaisquer atos que exorbitem da administração ordinária, depende a procuração de poderes especiais e expressos”.
36 Art. 1.542 do Código Civil: “O casamento pode celebrar-se mediante procuração, por instrumento público, com poderes especiais”. Exigem-se poderes expressos e especiais para emitir cheques (TJRJ, 6ª CC., Ap. Cív. 2002.001.00270, Rel. Des. Xxxx Xxxxxxx, julg. 07.05.2002); receber e dar quitação (STJ, 5ª T., RMS 14.214/SP, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxxxxx, julg. 06.08.2002); prestar fiança (TJMG, 8ª CC., Ap. Cív. 1.0153.09.094994-9/001, Rel. Des. Xxxxxx xx Xxxxx, julg. 14.04.2011).
37 XXXXXXXXX, Xxxxxx. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. v. 5. Op. cit., p. 52.
O contrato de mandato, por outro lado, tem por escopo tutelar os interesses do mandante, obedecendo a propósito de cooperação jurídica, já que o mandatário age quando o mandante não quer, não pode ou não sabe agir. O mandato apresen- ta intensa base fiduciária, calcando-se na confiança que o mandante deposita no mandatário.38 Por tal razão, é revogável ad nutum, ao ponto de não caber execução específica para a cláusula de irrevogabilidade do mandato, mas tão somente per- das e danos.39 Além disso, extingue-se com a morte do mandante ou do manda- tário, haja vista seu caráter personalíssimo.40 Também de especial importância é o dever do mandatário de prestar contas, pois gere interesse alheio, o qual deve, ainda, transferir ao mandante todas as vantagens provenientes do mandato, por qualquer título que seja.41
O “mandato em causa própria”, a seu turno, destoa completamente desse norte, podendo o mandatário transferir para si os bens móveis e imóveis objeto do mandato. Do seu escopo translatício decorre sua irrevogabilidade e a atuação do mandatário no seu exclusivo interesse, a afastar o dever de prestação de contas. Como se percebe, o “mandato em causa própria” contraria toda a essência tipológica do contrato de mandato. Isso porque, a rigor, não se trata de mandato, mas de representação em causa própria, em que a procuração operacionaliza negócio indireto,42 por meio do qual a técnica da representação é utilizada para
xxxxxxxxxx negócio jurídico translatício.
Por isso que o “mandato em causa própria” é irrevogável, pois associado a negócio jurídico obrigatório para as partes, insuscetível de revogação ou denúncia, como a doação, a compra e venda, a permuta, a cessão de crédito. Também pela mesma razão inexiste o dever de prestação de contas a cargo do representante, já que este não gere interesse alheio. Por se tratar de negócio no interesse do representante, que adquire para si o bem ou direito objeto do “mandato”, é que a procuração in rem suam não se extingue com a morte de qualquer das partes.
38 “O mandato é um contrato intuitu personae, em virtude de se fundar na confiança do mandante quanto à idoneidade técnica e moral do seu mandatário” (XXXXX XXXXX, Xxxxxx Xxxxx xx. Curso de Direito Civil. v.
IV. op. cit., p. 281). “O elemento subjetivo da confiança governa o comportamento do mandatário desde a formação do contrato até a sua extinção. Só a alguém em quem se confia se concedem poderes para a prática de negócios jurídicos ou administração de interesses” (XXXXX, Xxxxxxx. Contratos, op. cit., p. 427).
39 “Art. 683. Quando o mandato contiver a cláusula de irrevogabilidade e o mandante o revogar, pagará perdas e danos”.
40 “Art. 682. Cessa o mandato: [...] II – pela morte ou interdição de uma das partes”. Na doutrina, cf. XXXXXXXXX, Xxxxxx. Direito civil. v. III. op. cit., p. 304; e XXXXX, Xxxxxxx. Contratos, op. cit., p. 432.
41 “Art. 668. O mandatário é obrigado a dar contas de sua gerência ao mandante, transferindo-lhe as vanta- gens provenientes do mandato, por qualquer título que seja”. Cf. sobre o tema: XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições de direito civil. v. III. Op. cit., p. 373; e PONTES DE XXXXXXX, F. C. Tratado de Direito Privado. t. XLIII. Op. cit., p. 114-117.
42 Cf. XXXXXXXX, Xxxxxxx. Comentários ao novo Código Civil, op. cit., p. 171. Acerca da noção de negócio indireto, cf. XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Do negócio fiduciário à fidúcia, São Paulo: Atlas, 2014. p. 9-11.
Xxxxx-se de negócio indireto, servindo a outorga de poderes, a rigor, para viabilizar negócio jurídico translativo.
3.7 Irrevogabilidade da outorga de poderes quando associada a outros contratos
O contrato de mandato, em sua essência, é revogável, pois se funda na confiança depositada pelo mandante no mandatário, a qual, se faltar, justifica a extinção unilateral do ajuste.43 Corrobora tal entendimento o preceituado no art. 683 do Código Civil, segundo o qual “quando o mandato contiver a cláusula de irrevogabilidade e o mandante o revogar, pagará perdas e danos”. Não há execu- ção específica da cláusula de irrevogabilidade, haja vista a intensa base fiduciária do contrato de mandato, devendo sua inobservância ser resolvida em perdas e danos.
Diante disso pode soar contraditório o quanto disposto pelo Código Civil em relação ao “mandato em causa própria”, objeto do item 3.6 supra, bem como no que tange à irrevogabilidade do “mandato” que contenha poderes de cumprimento ou confirmação de negócios encetados (art. 686, parágrafo único),44 ou em que a cláusula de irrevogabilidade seja condição de negócio jurídico bilateral ou tenha sido estipulada no exclusivo interesse do mandatário (art. 684).45 Esses casos podem parecer exceção à revogabilidade ad nutum do contrato de mandato, mas não o são. Isso porque esses artigos não tratam do contrato de mandato, mas da representação vinculada a outro negócio jurídico.46
A irrevogabilidade decorre da aderência da outorga de poderes a negócio insuscetível de revogação ou denúncia. Não se trata, em definitivo, de mandato irrevogável, mas de outorga de poderes que, por se relacionar a ajuste diverso do mandato, que não pode ser unilateralmente extinto por qualquer das partes, afigura-se insuscetível de revogação.47
43 “Por fim, o contrato de mandato é feito intuitu personae, e, acrescentamos, de natureza revogável ad nu- tum do mandante. Esses dois característicos são ligados por uma relação de causa e efeito. O mandato é um contrato intuitu personae, em virtude de se fundar na confiança do mandante quanto à idoneidade técnica e moral do seu mandatário. Tanto que desapareça ou tenha motivos para não estar dela seguro, concede-lhe a lei o poder de revogar ad nutum os poderes representativos concedidos” (XXXXX XXXXX, Xxxxxx Xxxxx xx. Curso de direito civil. v. IV. Op. cit., p. 281). Cf. também: XXXXXXXX, Xxxxxxxxxx xx Xxxxxx. Curso de direito civil. v. 5. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 287-288.
44 Art. 686, parágrafo único, do Código Civil: “É irrevogável o mandato que contenha poderes de cumprimento ou confirmação de negócios encetados, aos quais se ache vinculado”.
45 Art. 684 do Código Civil: “Quando a cláusula de irrevogabilidade for condição de um negócio bilateral, ou tiver sido estipulada no exclusivo interesse do mandatário, a revogação do mandato será ineficaz”.
46 XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Autonomia da representação voluntária no direito brasileiro e determinação da disciplina que lhe é aplicável, op. cit., p. 16.
47 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Comentários ao novo Código Civil, op. cit., p. 168-169.
3.8 Ratificação e teoria da aparência
A ratificação consiste na aprovação, pelo representado, dos atos praticados pelo representante que agiu com excesso ou sem poderes, produzindo efeitos ex tunc, como se a falta de poderes nunca houvesse existido.48 Cuida-se de expe- diente que se associa à técnica da representação, não sendo particular à relação contratual de mandato. Ao ratificar, o representado manifesta, a posteriori, con- sentimento ao ato praticado pelo representante, suprindo a outorga de poderes e vinculando-se diretamente ao terceiro. Na ausência de ratificação, o ato a prin- cípio não terá o condão de obrigar o representado,49 o que significa dizer que o representante responderá pessoalmente perante o terceiro, sem que este tenha qualquer ação em face do representado.
O instituto da ratificação, por si só, revelou-se insuficiente à proteção de algumas situações jurídicas merecedoras de tutela, nas quais alguém contrata na legítima confiança de uma aparência, exteriorizada pelo suposto representante.50 Neste caso, o falsus procurator suscita em quem com ele contrata a confiança de que age autorizado pelo representado, ensejando a aparência de legítima repre- sentação.
Em tais circunstâncias, tutela-se a legítima confiança em favor da segurança das relações jurídicas, convertendo-se a representação aparente em efetiva repre- sentação.51 A tutela do terceiro que contrata com o representante aparente imputa ao representado as obrigações decorrentes do ato praticado pelo representante, de modo que não se pode proteger a confiança a qualquer custo. Tal ônus somen- te se justifica se o representado contribuiu, com sua ação ou omissão, para que a representação parecesse legítima.52
Além disso, exige-se também a boa-fé subjetiva do terceiro contratante para que haja a representação aparente. A convicção que anima seu espírito quanto à existência de representação constitui-se pressuposto subjetivo para que a repre- sentação aparente se torne efetiva representação, o que não poderá ocorrer se
48 V. art. 662 do Código Civil: “Os atos praticados por quem não tenha mandato, ou o tenha sem poderes suficientes, são ineficazes em relação àquele em cujo nome foram praticados, salvo se este os ratificar. Parágrafo único. A ratificação há de ser expressa, ou resultar de ato inequívoco, e retroagirá à data do ato”.
49 PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de direito privado. t. XLIII. Op. cit., p. 64.
50 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. A representação no Código Civil (arts. 115-120), op. cit., p. 283-285.
51 V. XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. A proteção pela aparência como princípio. In: XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxx de (Xxxxx.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 111-133; XXXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx. Tratado de los contratos. t. II. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores. p. 170-171.
52 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. A representação no Código Civil (arts. 115-120), op. cit., p. 286. No mesmo sentido aduz Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxx Xxxxxx: “Na representação aparente, apesar de não existir a manifestação da vontade do representado em outorgar poderes, a conduta dele, objetivamente considerada, contribui para formar no terceiro a convicção de ter sido outorgada procuração, no caso ausente, ponto que a distingue da procuração tácita” (XXXX XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxx. A Representação no Negócio Jurídico, op. cit., p. 103).
o terceiro agiu com xxxxxxx ou descuidadamente, invocando representação que sequer se fazia aparentar.53
A admissão da representação aparente mostra-se favorecida pela cláusula geral da boa-fé objetiva, a qual, informada pelo princípio da solidariedade cons- titucional, oferece novas possibilidades hermenêuticas e consagra, de maneira definitiva, as expectativas geradas, no contato social, pela legítima confiança.
Impõe-se, então, em determinados casos, a proteção do terceiro de boa-fé que tenha depositado legítima confiança na aparência de legitimidade do repre- sentante, para a qual tenha contribuído, com sua própria ação ou omissão, o re- presentado. Nessas hipóteses, a aparência mostra-se juridicamente prestigiada, reconhecendo-se a eficácia do ato sobre a esfera jurídica do representado, em nome da confiança anteriormente despertada no terceiro.54
A apuração do comportamento do representado, apto a deflagrar a teoria da aparência, prescinde do elemento intencional, cuja prova, extremamente difícil, acabaria por tornar inaplicável a teoria da aparência. Trata-se de aferir, de maneira objetiva, se a conduta do representado contribuiu para suscitar a legítima aparên- cia de representação, a justificar a proteção do terceiro em seu detrimento.
Caracterizar-se-á, desse modo, a representação aparente sempre que o com- portamento do representado afigurar-se compatível com a expectativa gerada no terceiro de boa-fé quanto ao poder de representação aparentemente ostentado por quem se passa por representante.
A representação aparente, vale notar, poderá ocorrer independentemente de a relação jurídica base configurar contrato de mandato. Ilustrativamente, reconhe- ce-se aplicação à teoria da aparência em casos envolvendo relação societária55 e no âmbito processual.56
53 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. A representação no Código Civil (arts. 115-120), op. cit., p. 286-287. Tal pressuposto subjetivo vem sendo exigido pelos Tribunais para a aplicação da teoria da aparência. Ilustrativamente, v. TJRJ, 10ª CC, Ap. Cív. 0007349-03.2006.8.19.0014, Rel. Des. Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx, julg. 11.07.2015; TJSP, 25ª CDP, Ap. Cív. 0001527-52.2012.8.26.0006, Rel. Des. Xxxx Xxxxxxxx, julg. 29.09.2016.
54 Conforme a jurisprudência consolidada do STJ, “é possível a aplicação da teoria da aparência para afastar suposto vício em negociação realizada por pessoa que se apresenta como habilitada para tanto, desde que o terceiro tenha firmado o ato de boa-fé” (STJ, 3ª T., Ag. no REsp 1.543.567/ES, Rel. Min. Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, julg. 23.08.2016). Na mesma direção: STJ, 3ª T., Ag. no REsp 1.548.642/ES, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxx, julg. 17.03.2016; TJRJ, 5ª CC, AI 0027203-73.2016.8.19.0000, Rel. Des. Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx, julg. 19.07.2016; TJRJ, 13ª CC, Ap. Cív. 0269594-90.2015.8.19.0001, Rel. Des. Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, julg. 13.04.2016; TJDF, 1ª T., Ap. Cív. 20130111749853, Rel. Des. Xxxxxx Xxxxxxx, julg. 16.09.2015.
00 X XXX, ao analisar caso em que se questionava a vinculação da sociedade a contrato firmado por quem não detinha poderes de representação conforme previsto no estatuto social, decidiu que não há se falar “que os estatutos sociais encontram-se publicados, sendo inescusável a terceiros o desconhecimento acerca do seu teor. Tal exigência, em realidade, testilha com a essência do Direito Comercial, que repele o formalismo exacerbado, em benefício do dinamismo do tráfego jurídico, da celeridade e segurança das relações mercantis. Impõe-se, na verdade, ‘oferecer proteção ao terceiro que, de boa-fé, celebre negócio jurídico com sociedade que seja representada por diretor ou sócio-gerente que aparente poderes bastan- tes’” (STJ, 4ª T., REsp 887.277/SC, Rel. Min. Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, julg. 04.11.2010).
00 X XXX já reconheceu a aplicação da teoria da aparência no caso de “citação recebida por funcionário de empresa terceirizada que prestava serviços ao réu” (STJ, 4ª T., AgRg no REsp 869.500/SP, Rel. Min. Hélio
Conclusão
O contrato de mandato consubstancia o paradigma da representação volun- tária no direito brasileiro. A atuação do mandatário em nome do mandante é da es- sência desse tipo contratual. A disciplina do mandato confunde-se historicamente com a da representação voluntária, o que suscitou dúvidas acerca da autonomia entre as duas figuras, só definitivamente dissipadas com o advento do Código Civil de 2002, que reconhece a autonomia da representação.
Uma vez consagrada a independência da representação em relação ao man- dato – não já deste para com aquela – surge a dificuldade de se identificar, no bojo do regramento do mandato, as normas que são próprias do tipo contratual daque- las que, a rigor, regulam a figura da representação em si, independentemente do vínculo contratual subjacente.
A individuação das normas aplicáveis à representação mostra-se de funda- mental importância no momento em que se reconhece a autonomia desta e se admite que possa estar presente em outros ajustes contratuais, não apenas no mandato. Daí a imperiosa necessidade de se delinearem os contornos do man- dato e da representação, a fim de se identificar a disciplina pertinente a cada um desses institutos, tendo sempre presente, no caso do mandato, sua inseparabili- dade, no direito brasileiro, da representação voluntária.
Consoante se verificou, as normas que regem a outorga de poderes aplicam- se à representação independentemente do contrato ao qual esta se associa. A ou- torga de poderes, repise-se, habilita um sujeito (representante) a atuar em nome de outrem (representado), mas não define a forma de atuação e os deveres a que se submete o representante, os quais são regulados pelas disposições do contrato ao qual se associa a representação (mandato ou qualquer outro ajuste, típico ou atípico).
Xxxxxxx Xxxxxxx, julg. 13.02.2007; STJ, Ag. 692.345/PR, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxxxx, julg. 26.9.2005). Da mesma forma, o STJ, ao analisar a tese da recorrente, segundo a qual haveria nulidade da citação na hipótese de carta citatória recebida por porteiro do prédio em que se localiza a sede da ré, aplicou a teoria da aparência, considerando válida a citação, vez que “a carta foi enviada ao endereço da ré constante no contrato celebrado entre as partes e a pessoa que recebeu assinou sem ressalvas” (STJ, AREsp 903.494/SP, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, julg. 31.08.2016). Do TJSP, extrai-se, nessa direção, orientação no sentido de que é “hígida a citação pelo correio, com o recebimento da carta por porteiro do condomínio, sem se exigir poder de representação” (TJSP, 7ª CDP, Ap. Cív. 1001408-34.2014.8.26.0126, Rel. Des. Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx, julg. 25.11.2016). No que diz respeito à questão processual, o CPC/2015 prevê, em seu art. 248, §4º, que “nos condomínios edilícios ou nos loteamentos com controle de acesso, será válida a entrega do mandado a funcionário da portaria responsável pelo recebimento de correspondência, que, entretanto, poderá recusar o recebimento, se declarar, por escrito, sob as penas da lei, que o destinatário da correspondência está ausente”.
Por isso a abstração da representação quanto à relação jurídica-base, o que significa dizer que a atuação do representante dentro dos limites dos poderes outorgados obriga o representado independentemente da violação a qualquer pre- ceito contido no negócio jurídico subjacente. A título ilustrativo, se a vedação ao substabelecimento consta apenas no negócio subjacente, verifica-se abuso (não já excesso) de poder, de maneira que o representado fica vinculado aos atos praticados pelo substabelecido, embora conserve ação indenizatória em face do representante/substabelecente. Note-se, ao propósito do substabelecimento, que os preceitos que o regem incidem em todas as hipóteses de representação, e não apenas quando existir contrato de mandato.
Também o princípio da atração da forma, positivado no art. 657 do CC, apli- ca-se não ao negócio subjacente que fundamenta a representação, mas à conces- são de poderes, devendo a outorga que habilita o representante a agir em nome do representado revestir a mesma formalidade do ato a ser praticado mediante representação, se este não for de forma livre. O art. 661 do CC regula os termos em que os poderes podem ser conferidos, ressaltando que a procuração em ter- mos gerais apenas atribui poderes de administração, sendo necessário, para os atos que exorbitem a administração ordinária, poderes expressos e especiais.
A ratificação, por sua vez, traduz outorga de poderes posterior ao ato, isto é, consentimento que supre a falta de poderes do representante, integrando, por isso, a disciplina da representação. No mesmo sentido, a teoria da aparência, uma vez presentes seus pressupostos de incidência, supre a efetiva outorga de poderes e, por conseguinte, aplica-se independentemente de haver mandato, com- pondo o regime jurídico da representação.
A procuração em causa própria, segundo se examinou, traduz negócio in- direto, por meio do qual se viabiliza, mediante representação, a transmissão de direitos. A disciplina da representação como instituto autônomo é completada, ainda, com a previsão de novas hipóteses de irrevogabilidade do mandato que, a rigor, como se analisou, configuram, tecnicamente, irrevogabilidade da outorga de poderes associada a contrato diverso do mandato, em relação ao qual não cabe revogação. Não há, vale repisar, mandato no interesse do mandatário ou como condição de negócio bilateral.
Portanto, deve o intérprete, ao se deparar com hipótese de representação vo- luntária, qualificar o ajuste no qual esta se insere, pois dele decorre o regulamento de interesses das partes e, conseguintemente, os deveres do representante e a atuação que dele é esperada. Dessa maneira, não se deve pressupor haver contrato de mandato pela só presença da representação voluntária, devendo-se identificar a relação jurídica à qual esta se vincula para, a partir daí, verificar os
deveres e direitos atribuídos de parte a parte. Isso sem prejuízo da imediata apli- cação das normas pertinentes à representação voluntária como instituto autôno- mo, que incidem independentemente do ajuste que deu origem à representação.
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Notas sobre a representação voluntária e o contrato de mandato. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 12, p. 17-36, abr./jun. 2017.
Recebido em: 03.01.2017 1º parecer em: 17.01.2017 2º parecer em: 10.03.2017