DIOCÉLIA ANTÔNIA SOARES DO NASCIMENTO TRABALHO E AUTONOMIA EM CAMPO DE DOMÍNIO MASCULINO
Universidade Federal do Pará
Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - Amazônia Oriental
Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas
DIOCÉLIA XXXXXXX XXXXXX XX XXXXXXXXXX
TRABALHO E AUTONOMIA EM CAMPO DE DOMÍNIO MASCULINO
Mulheres que têm contratos de produção com agroindústrias de dendê em São Domingos do Capim-PA
Belém 2017
TRABALHO E AUTONOMIA EM CAMPO DE DOMÍNIO MASCULINO
Mulheres que têm contratos de produção com agroindústrias de dendê em São Domingos do Capim-PA
Dissertação apresentada para obtenção do grau de Mestre em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável. Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas, Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Pará. Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Amazônia Oriental.
Área de concentração: Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável. Orientadora Profª. Drª. Dalva Maria da Mota
Belém 2017
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) –
Biblioteca do NCADR/UFPA
Xxxxxxxxxx, Diocélia Xxxxxxx Xxxxxx do
Trabalho e autonomia em campo de domínio masculino: mulheres que têm contratos de produção com agroindústrias de dendê em São Domingos do Capim-PA / Diocélia Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxxxx. - 2017.
135 f.: il. ; 30 cm Inclui bibliografias
Orientadora: Xxxxx Xxxxx xx Xxxx
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Pará, Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural, Programa de Pós- Graduação em Agriculturas Amazônicas, Belém, 2017.
1. Mulheres – São Domingos do Capim (PA). 2. Mulheres – condições sociais. 3. Agroindústria – dendê – São Domingos do Capim (PA). 4.Trabalhadores rurais. I. Título.
CDD 22. ed. 331.4098115
TRABALHO E AUTONOMIA EM CAMPO DE DOMÍNIO MASCULINO
Mulheres que têm contratos de produção com agroindústrias de dendê em São Domingos do Capim-PA
Dissertação apresentada para obtenção do grau de Mestre em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável. Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas, Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Pará. Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Amazônia Oriental.
Área de concentração: Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável
Data da aprovação. Belém - PA: _27_/_06_/_2017_
Banca Examinadora
Drª. Xxxxx Xxxxx xx Xxxx (Orientadora) Embrapa Amazônia Oriental-MAFDS
Drª. Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx (Titular externo) Núcleo de Pesquisa Sobre Agricultura Familiar- UFSC
Drª. Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxx (Titular externo) Universidade Federal do Pará - PPGSA
Drº. Xxxxxxxx Xxxxxxx (Suplente) Universidade Federal do Pará- IFCH
Às trabalhadoras e aos trabalhadores rurais, a vocês dedico este trabalho com imenso sentimento de gratidão.
AGRADECIMENTOS
Tenho tanto a agradecer que seria impossível caber nestas páginas o tamanho do carinho, gratidão e alegria que sinto ao me lembrar daqueles que me ajudaram a construir este trabalho sobre as mulheres trabalhadoras rurais.
Então irei começar pela minha mãe, meu pai e meus irmãos, por representarem meu porto seguro, pela compreensão e carinho com que trataram minha ausência neste período.
Com amor e profunda admiração, agradeço à amiga Xxxxx Xxxxxxxx, pelo incentivo e apoio incondicional em minha caminhada acadêmica e vida pessoal.
Uma homenagem sincera à minha orientadora Drª Xxxxx Xxxx, pela sabedoria e preciosa orientação de uma mestra que ama ensinar. Obrigada pelo exemplo, dedicação e comprometimento social. Seus preciosos exemplos, conselhos, críticas e sugestões foram cruciais no fio condutor deste trabalho. Gratidão por tudo.
Aos mestres do Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural: Xxxxx Xxxxxxxxx, Xxxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxx Xxxxxxxxxx, Xxxxx Xxxxx, Gutemberg Guerra, Xxxxxxx Xxxxx e Xxxxxx Xxxxx, pela confiança e por compartilharmos uma realidade de compromisso social, crescimento intelectual e empenho incansável no decorrer do curso.
Aos que encontrei no caminho e me auxiliaram com informações e indicações para localizar as mulheres com as quais desenvolvi a pesquisa: Xxxxxx, gerente da Marborges Agroindústria S.A; Abraão, técnico agrícola do STTR, ambos em Garrafão do Norte; a presidente e a secretária do STTR de São Domingos do Capim: Xxxx e Selma; ao Xxxxx Xxxxxx, técnico agrícola da ADM, pelas informações valiosas de campo, mapas e localização das mulheres em São Domingos do Capim.
Ao seu Bio, dona Xxxxxx e família (Perseverança), pelas inúmeras vezes em que fiquei no conforto desse lar, aliás, como eu dizia a eles, na minha casa. Muito obrigada, seu Bio, pela disponibilidade de me acompanhar nas diferentes localidades até encontrar a maioria das mulheres – e quando não encontrávamos, voltávamos de novo, juntos na Pop que mais andou nesta pesquisa, com poeira ou lama, fazendo sol ou chuva.
Xxxx Xxxx, seu Jotão e Xxxxx (Rancho Fundo), por me cederem um quartinho quente e macio, pelas longas horas de conversas, afetos e descontração. Quanto à pequena Xxxxx, nem tenho palavras para descrevê-la de tão linda, inteligente e observadora que é. Obrigada por ser minha companheirinha de visita até a casa das mulheres foco de minha pesquisa na localidade.
Ao seu Vilázio, dona Xxxxx e Xxxxxxx (Vale do Ariacaua), por me acolherem em sua casa, por me acompanharem pelas andanças no assentamento com inúmeros problemas que me impossibilitariam transitar sozinha localmente. Obrigada pelas comidas gostosas feitas à lenha, pelo afeto e amizade.
Às mulheres integradas quero, além de um agradecimento fraterno, dar- lhes o reconhecimento de quem elas são. Gostaria de lembrá-las das quão preciosas foram para que o resultado final de todo o nosso trabalho fosse esta dissertação. Sem suas informações, embora tímidas e muitas vezes com medo de não saberem me informar, não seria possível levantar dados e informações que resultassem neste trabalho final. Xxxxxxxx por me receberem em suas casas, pelos cafezinhos, por deixarem seus afazeres para me receber e ter um diálogo, por dividirem comigo um pedacinho da historia de vida e trabalho de cada uma de vocês, pelos sorrisos, pelos abraços apertados e pelos convites de retorno às suas casas.
Aos companheiros da turma do MAFDS 2015: Xxxxxx, Xxxxxx, Xxxxxxx, Xxxxx, Xxxxxxxxx, Xxxxxx, Xxxxxxx, Xxxxxxx, Xxxxxxx, Xxxxx, Xxxxxx, Xxxxxxx, Xxxxx, Xxxxxx e Xxxxxx, com quem compartilhei conhecimentos, alegrias, muitas gargalhadas, comida boa, sonhos, experiências, protestos Fora Temer e Ocupa UFPA.
Aos companheiros de casa Xxxxxx Xxxxx e Xxxx Xxxxxxx, pela acolhida, convivência, contribuições, cervejas, amizade e apoio imensurável.
Aos amigos Xxxxxxxx Xxxxxxxx e Vitor Bragança, cuja amizade me aquece o coração até mesmo por longas distâncias.
À banca de qualificação: Xxxxxxxx Xxxxx-Maués e Xxxxx Xxxxxx, pelas contribuições, críticas e sugestões dadas na fase inicial da pesquisa, cruciais nas definições do recorte metodológico e analítico.
À Universidade Federal do Pará, pelo espaço cedido, pela circulação de conhecimento e principalmente por proporcionar o desenvolvimento intelectual, tecnológico e humano da região amazônica.
Ao CNPq, pela concessão da bolsa de mestrado a nós, discentes que dedicamos parte de nossas vidas pesquisando e trazendo ao debate a realidade social deste país.
“Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”.
Xxxx Xxxxxxxxxx
RESUMO
O objetivo desta dissertação foi analisar a relação entre o trabalho e autonomia das mulheres cujos contratos de produção com agroindústrias de dendê estão em seus nomes. O universo empírico foi o município de São Domingos do Capim, Nordeste Paraense, no qual 11% dos contratos de produção foram firmados no nome das mulheres. A abordagem utilizada foi predominantemente qualitativa, no qual foram realizadas entrevistas (abertas e semiestruturadas) e observações. Com base no tratamento dos dados obtidos em campo e posterior sistematização das entrevistas, os principais resultados foram relativos a: 1) as diferentes razões pelas quais os contratos foram feitos em seus nomes; 2) participação nas atividades produtivas do dendê; 3) maior participação em espaços públicos e ampliação na rede de contatos. As principais conclusões mostram que ter um contrato no próprio nome não significa ter autonomia, muito embora mudanças ocorram com novas possibilidades de produção e participação em espaços públicos.
As mulheres vivenciam experiências diferentes, mas não contestam oralmente a divisão sexual do trabalho ou a própria autonomia.
Palavras-chave: mulheres integradas, agricultura sob contrato, dendeicultura.
ABSTRACT
The objective of this dissertation was to analise the relation between work and autonomy of women whom production contracts with dendê agroindustry are assigned by them. The empiric universe was the city of São Domingos do Capim, northeast of Pará, within 11% of production contracts were assigned by women. The used treatment was generally qualitative by a case study within interviews were done (open and half-structured) and observations. Based in working of obtain field data and posterior interviews systematization, the main results were in relation to: 1) the different reasons by these contracts were made in their names; 2) the participation in public spaces and contacts net growing. The main conclusions show that having a contract in their own name does not mean having autonomy, although changes happen with new possibilities of production and participation in public spaces.
The women live different experiences, but do not contest verbally the sexual division of work or their self-autonomy.
Keywords: integrated women, agriculture under contract, dendeicultura.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Tabela 1: Censo demográfico da população de São Domingos do Capim-PA
.............................................................................................................................45
Figura 1: Mapa de localização das mulheres com contratos de produção. 49
Tabela 2: Trabalho das mulheres nos cultivos no passado em São Domingos do Capim. 66
Gráfico 1: Razões para a assinatura do contrato em nome das mulheres
para a produção de dendê 68
Tabela 3: Características das mulheres com contratos de produção a partir da decisão própria. 69
Tabela 4: Características das mulheres com contratos de produção a partir da decisão de um homem. 71
Tabela 5: Características das mulheres com contratos de produção a partir da decisãfamiliar. 72
Tabela 6: Características das mulheres que não conseguiram explicar os motivos do contrato ser em seu nome. 73
Tabela 7: Atividades realizadas pelas mulheres no cultivo do dendê em São Domingos do Capim. 83
Gráfico 2: Participação e não participação em reuniões promovidas pela empresa agroindustrial 92
Gráfico 3: Atividades realizadas pelas mulheres na dendeicultura sob contrato. 98
Gráfico 4: Responsável pela organização do itinerário técnico no grupo com decisão própria. 101
Gráfico 5: Organização do itinerário técnico a partir da decisão de um homem da família. 102
Tabela 8: Recebimento de recursos relacionados ao dendê. 104
Gráfico 6: Gestão sobre os recursos financeiros a partir da decisão própria. 105
Gráfico 7: Gestão sobre os recursos financeiros a partir da decisão familiar. 107
Gráfico 8: Procedência dos recursos financeiros das famílias das mulheres
com contrato. 108
LISTA DE SIGLAS
ABRAPALMA - Associação Brasileira de Produtores de Palma AFINS - Projeto Agricultura Familiar e Inclusão Social
DAP – Declaração de Aptidão ao Pronaf
FETAGRI - Federação dos Trabalhadores na Agricultura IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDESP – Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social do Pará. MIQCB - Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu PA - Projeto de Assentamento
PNPB - Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel
PRONAF Eco - Programa Nacional de Agricultura Familiar com crédito para a implantação do cultivo do dendê e seringueira
PSOP - Programa de Produção Sustentável de Óleo de Palma STTR - Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 16
2. REFERENCIAL TEÓRICO 20
2.1 TRABALHO FAMILIAR 20
2.2 MULHERES E AUTONOMIA 24
2.1.1 Sobre autonomia 24
2.1.2 Autonomia de mulheres 32
3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 39
3.1 MOTIVAÇÃO PARA O TEMA DA PESQUISA 39
3.2 A REGIÃO DE PESQUISA 41
3.2.1 O lugar de pesquisa: São Domingos do Capim 43
3.3 A PESQUISA 50
3.3.1. Observações 55
3.3.2 Entrevistas 56
3.3.3 Sistematização e Análise de dados 57
4. MULHERES COM CONTRATOS DE PRODUÇÃO 60
4.1 ATIVIDADES COTIDIANAS ANTES DA IMPLANTAÇÃO DO DENDÊ 63
4.2 O ADVENTO DO DENDÊ 67
4.2.1 As mulheres com contratos em seus nomes: quais as
razões? 68
4.2.2 Perfil das mulheres com contratos de produção 74
4.2.3 Acesso aos contratos e crédito 77
4.3 ATIVIDADES COTIDIANAS APÓS A IMPLANTAÇÃO DO DENDÊ 81
5. “AGORA EU SAÍ DO PORTE DE DONA DE CASA”: novas atividades das mulheres 85
5.1 A IMPORTÂNCIA DE TER UM CONTRATO DE PRODUÇÃO 85
5.2 A PARTICIPAÇÃO EM ESPAÇOS PÚBLICOS, AMPLIAÇÃO
DA REDE DE CONTATOS 89
5.3 ORGANIZAÇÃO E REALIZAÇÃO DO ITINERÁRIO TÉCNICO 95
5.4 USO DOS RECURSOS FINANCEIROS 104
6. CONCLUSÕES 111
7. REFERÊNCIAS 115
APÊNDICE 131
1. INTRODUÇÃO
Após as minhas primeiras visitas de campo ao Nordeste Paraense em 2015, certifiquei-me de que existiam mulheres que eram titulares de contratos de produção para o cultivo de dendê (Elaeis guineensis Jacq) em estabelecimentos familiares, não obstante a tendência de masculinização do trabalho (SAMPAIO, 2014; RIBEIRO, 2016) e da consideração do trabalho delas como “ajuda” na dendeicultura. Nos contratos, elas são responsáveis legais pelo projeto perante a agroindústria de dendê e aos compromissos assumidos com o banco para o financiamento da produção.
Mediante tal constatação, nesta dissertação analiso a questão do trabalho e autonomia de mulheres que têm contratos para a produção de dendê no estado do Pará, maior produtor de dendê do Brasil (MONTEIRO, 2013). Parto da hipótese de que a ocorrência de contratos de integração em nome das mulheres influencia na organização do trabalho e, consequentemente, na autonomia destas, tanto no seio familiar como fora deste.
O contexto do estudo é marcado pela constatação de que, nos últimos anos, se verificou o aumento significativo de relações de integração entre agricultores familiares e empresas agroindustriais de dendê na região (SAMPAIO, 2014; VIEIRA, 2015). Porém, a maior parte dos contratos é firmada em nome do homem, em decorrência deles serem predominantemente os detentores da propriedade da terra na América Latina e considerados como chefes de família (DEERE e LEÓN, 2002).
O debate sobre o trabalho da mulher no espaço rural tem sido frequentemente analisado sob a ótica da “invisibilidade” (XXXXXX; XXXXXXX, 2007) e da “ajuda” (XXXXXX XX, 1983; XXXXX-XXXXX, 1993; XXXXXXXXX; XXXXXXXXX, 2002;
XXXXXX, 2004; LIMA, 2012; XXXXX 2013; XXXXXXXXX; MOTA, 2014). As
explicações para tal fenômeno residem no fato de que as atividades realizadas pelas mulheres no âmbito doméstico não são consideradas trabalho. Por sua vez, as atividades na produção geralmente são caracterizadas como “ajuda”, mesmo quando elas executam atividades semelhantes às dos homens e trabalham por igual período. Isso mostra a histórica relação de desigualdade entre as esferas da produção e reprodução (HIRATA, 2002; XXXXXXXX, 2013; XXXXXXX, 1987).
Diferentemente dessa visão, os estudos que tratam do trabalho e autonomia feminina destacam o engajamento produtivo das mulheres rurais e não dissociam as esferas produtivas e reprodutivas, mas as consideram como adaptações frente às mudanças impostas pelos meios externos à família (MANESCHY, 2013; HENN, 2013).
Nessa perspectiva, o debate sobre a autonomia se dá a partir de múltiplos sentidos na literatura, geralmente associado às relações econômicas, provavelmente porque há consenso quanto à dificuldade de conquistá-la sem qualquer forma de suporte financeiro. Para uns, a autonomia é sinônimo da possível recompensa adquirida pelo trabalho dentro ou fora do espaço doméstico que permite a obtenção de recursos financeiros, seja através da ampliação das atividades produtivas para autoconsumo, valorizadas pelo mercado consumidor, (WEDIG, 2009), seja através de atividades produtivas desenvolvidas por meio do acesso a créditos agrícolas (DAJUI, 2006; ZORZI, 2008).
Para outros, a autonomia é relacionada ao poder de decisão quanto 1) à organização do trabalho e uso dos recursos dele provenientes (FERNANDES; MOTA, 2014; VALE, 2015); 2) à participação em processos de decisão e autonomia física relativa às decisões quanto ao próprio corpo, em se tratando da maternidade (XXXXXX, 2011); 3) ao empoderamento (sob a perspectiva financeira), incentivado por políticas públicas para a agricultura familiar, dando às mulheres poder de decisão equivalente ao dos homens, melhoria das condições de vida, controle dos recursos adquiridos com o trabalho e rompimento com a hierarquia familiar e estrutural (SHEFLER, 2013).
Os diferentes olhares têm em comum o fato de terem como pano de fundo as mudanças sociais experimentadas nas últimas décadas pela mulher, que assume o papel de trabalhadora com reconhecimento social, contrariando a lógica que atribui o papel de provedor somente ao homem (XXXXXX; KERGOAT, 2007).
Mediante a constatação de que, em diferentes estudos sobre trabalho, autores compreendem a autonomia necessariamente através da concepção econômica, bem como a confirmação de que mulheres com contratos de produção são
“invisibilizadas” nos estudos sobre a dendeicultura, me propus a analisar a própria percepção de autonomia das mulheres no trabalho.
O objetivo geral da dissertação é analisar a relação entre trabalho e autonomia das mulheres que têm contratos de produção em seus nomes com a agroindústria do dendê em São Domingos do Capim no Nordeste Paraense. Para tal, os objetivos específicos são: i) traçar o perfil das mulheres que têm contratos de produção em seus nomes; ii) identificar e analisar quais são os motivos que as influenciaram a terem os contratos em seus nomes e iii) analisar se a titularidade influenciou em mudanças nas esferas doméstica e pública.
A dissertação está composta pela introdução e mais quatro capítulos. No primeiro capítulo, intitulado Referencial Teórico, apresento as concepções sobre o trabalho e autonomia para, em seguida, verifico como tais concepções iluminam os estudos sobre a mulher no meio rural.
No segundo capítulo, Procedimentos metodológicos, apresento a metodologia utilizada para a delimitação do tema, contextualização da dendeicultura no município, as etapas de pesquisa, levantamento, obtenção, tratamento e análise dos dados fundamentais para refletir sobre os aspectos relevantes deste estudo.
No terceiro capítulo, chamado Mulheres com contratos de produção, elaboro uma tipologia a partir dos motivos explicitados pelas mulheres para que os contratos fossem realizados em seus nomes, discutindo as semelhanças e particularidades por grupo, focalizando principalmente as diferentes atividades em que elas trabalham no cultivo do dendê.
No quarto capítulo, denominado Agora eu saí do porte de dona de casa, apresentei as principais dimensões de autonomia apreendidas na pesquisa empírica, a saber: importância de ter o contrato no próprio nome, ampliação na rede de contatos, participação em espaços públicos e a própria percepção de autonomia, entre outros.
As Conclusões foram feitas baseadas em reflexões sobre cada capítulo e em diálogos destes com a literatura, bem como em minha apropriação dos conceitos e discussões que me guiaram no decorrer da construção.
Por fim, desejo que esta dissertação possa contribuir para reflexões sobre o papel das mulheres rurais, que, assim como os homens, estão envolvidas com os contratos de integração para a produção de dendê, mas cujas vozes precisam ecoar mais fortemente nos trabalhos realizados por pesquisadores, discentes, técnicos e demais gestores que atuam no meio rural.
2. REFERENCIAL TEÓRICO
O objetivo deste capítulo é apresentar o referencial teórico que fundamentou a elaboração desta dissertação.
O referencial teórico está constituído pelo debate sobre trabalho familiar, mulheres e autonomia. O primeiro tópico está centrado no trabalho familiar na agricultura, com destaque para a divisão sexual do trabalho e as hierarquias instituídas entre os membros da família. No segundo tópico, abordamos as reflexões sobre autonomia em diferentes esferas, que vão da família até os espaços públicos, além dos diferentes conceitos e suas implicações teóricas. Em todos esses campos temáticos, centro-me no lugar e nos papéis ocupados pelas mulheres.
2.1 TRABALHO FAMILIAR
Por trabalho familiar compreendo aquele que é realizado pela família ou por parte de seus membros, segundo uma divisão baseada em sexo, idade e geração (XXXXXX XX, 1983, BRUMER, 2004). Nessa perspectiva, o trabalho da família se materializa quando há matéria-prima, instrumento de trabalho e força de trabalho humana (principalmente familiar), com intenção de atingir a satisfação das necessidades da família (XXXXXXXX, 2007).
Na literatura clássica sobre as sociedades camponesas, Xxxx Xxxx (1976) mostrou que “uma unidade doméstica de tal complexidade poderá mostrar considerável divisão de trabalho” (1976, p. 95). O autor especifica que cada membro dentro da unidade doméstica trabalha na produção, respeitando sua idade e gênero, ao mesmo tempo em que há trabalhos de ajuda mútua. Contudo, tais divisões e complementaridades no trabalho não ocorrem sem tensões, seja ela entre homens e mulheres ou entre pais e filhos, pois em ambos os casos, a autoridade masculina predomina sobre os demais membros.
Xxxxxx Xxxxxx (1979) enfatiza que a organização do trabalho familiar se baseia no trabalho dos membros da família, no qual cada um possui obrigações, funções e responsabilidades no processo de produção na propriedade, cuja administração é competência do chefe de família, o pai.
O mesmo conteúdo apontado por Xxxxxx (1979) pode ser encontrado nas obras de Xxxxxxx (1979) e Xxxxxx XX (1983) nas áreas de plantation, na Zona da Mata Pernambucana, nas décadas de 1970 e 1980. Segundo os autores, ali o trabalho familiar era realizado majoritariamente pelos membros da unidade familiar. Porém, seriam os homens os responsáveis pela divisão de tarefas e atividades mercantis, isto é, o controle dos bens da produção e o poder de decisão estavam a cargo do homem responsável sobre os demais membros da família, o que o caracterizava como o detentor de uma autonomia econômica.
Em geral, o roçado é predominantemente o local de materialização da autonomia masculina, embora sejam comuns atividades próprias ou até específicas para mulheres. A percepção do trabalho feminino como “ajuda” continua, cristalizada, pois o trabalho no roçado pertence ao campo das atividades masculinas (XXXXXXXXX; XXXXXXXXX, 2002).
Em trabalho mais recente, Xxxxxx XX e Xxxxxxx (2009) ressaltaram que o trabalho na exploração agrícola ocupa lugar central na lógica familiar, segundo a qual a unidade de produção se materializa no roçado, e a unidade de consumo, na casa, designadas pela separação dos domínios masculino e feminino. A divisão do produto do trabalho é, pois, socializada pelo consumo da família.
Os autores ressaltam também que o equilíbrio entre a unidade de produção e consumo não necessariamente se dá. Essa relação implica na relativização da composição do grupo doméstico, dependendo da idade (crianças ou idosos), gênero (masculino ou feminino) e estado físico (saudável ou doente). Portanto essas relações não são estáticas, podendo variar e se redefinir conforme o ciclo doméstico:
Partiremos de uma observação frequente sobre grupos domésticos camponeses: ressalta-se a indissociabilidade entre a unidade de produção e a unidade de consumo, pois tanto uma como a outra fazem apelo aos mesmos membros da família e estão regidas pelos mesmos padrões de autoridade doméstica (XXXXX XX; HEREDIA, 2009, p. 223).
Apesar do consenso sobre a participação de todos os membros da família na produção, isso não significa que todos possuem igual reconhecimento sobre seu trabalho, pois cabe ao homem decidir sobre as atividades agrícolas, uma vez que este representa a autoridade familiar.
Quanto à autoridade masculina, Xxxx Xxxxx (1995) destaca que as relações patriarcais com predomínio sobre as organizações sociais são baseadas na supremacia masculina. Nesse sentido, tanto mulheres podem ser subordinadas hierarquicamente aos homens, quanto os jovens e crianças aos homens mais velhos.
Ademais, os valores patriarcais consideram as atividades masculinas como sendo aquelas de maior valor, em detrimento das atividades dos demais membros familiares. Nessa perspectiva, embora as mulheres geralmente desenvolvam atividades em todo o processo produtivo, o debate indica que mulheres e crianças não trabalham, mas somente “ajudam” (HEREDIA, 1979; XXXXXX XX, 1983).
Além de também trabalharem na produção, as mulheres cuidam da organização e do consumo familiar, e em ambos os casos estão submetidas à hierarquia familiar e de gênero, presente não somente no seio familiar, mas na sociedade como um todo (XXXXXXX, 1987; MOTTA-MAUÉS, 1993; XXXXXX; XXXXXXX, 2007; XXXXXXXXXX, 2007; XXXXXXXXX; XXXXXXXXX, 2002).
Vale notar que a hierarquia familiar se estrutura em torno de duas categorias: "pai de família" e "mãe de família". O primeiro, além de encarnar a família como um todo, é o detentor do saber que torna possível o processo de trabalho. É ele que "governa" o processo de trabalho. É ele também que toma as decisões relativas à comercialização da produção, embora dessas decisões participe, informalmente e nunca em espaço público, a mulher (XXXXXXXXX; XXXXXXXXX, 2002, p. 35).
Para Kergoat (2003) e Ávila (2010), as características que delimitam o lugar de mulher ou de homem e, consequentemente, a esfera produtiva associada ao homem permitem que o mesmo goze de privilégios com elevados valores sociais no campo político, religioso e militar. Nas análises de Xxxxxx (2011), tais privilégios concedidos ao homem caracterizam uma das formas de autonomia, especificamente por ele poder participar das decisões coletivas do grupo do qual faz parte.
No Amazonas, as especificidades do campesinato foram estudadas por Xxxxxxxx (2007), que observou que “a unidade de produção familiar camponesa produz e reproduz suas condições de existência” (WITKOSKI, 2007, p. 167). O autor afirma também que todos os membros da família participam das atividades essenciais para garantir sua reprodução social. Por meio do seu trabalho, o
camponês mantém a unidade familiar, mas não o faz apenas com a produção voltada ao consumo interno, mas em conjunto com a venda de mercadorias (fruto do seu trabalho) ao meio externo, indispensáveis para compra de alimentos e produtos industrializados (XXXXXX XX, 1983).
No Pará, o estudo de Xxxxx e Mota (2012) caracteriza o trabalho de agricultores familiares no nordeste paraense como organizado a partir de relações de gênero e hierarquia. Além disso, é socialmente aceito que alguns membros da família trabalhem em atividades fora do estabelecimento de origem. As autoras observaram a existência da noção de trabalho leve e pesado, como descrito por Xxxxxxx (1987), ou seja, as atividades ligadas à esfera produtiva são consideradas “pesadas”.
Ademais, homens e mulheres trabalham no “leve” ou “pesado” em determinadas circunstâncias. Assim também ocorre com a noção de trabalho “leve” nas atividades reprodutivas que são desempenhadas por ambos os sexos. Consequentemente, concluíram que essas noções podem estar alicerçadas em concepções culturais elaboradas em um plano simbólico da sociedade estudada, e não ao esforço meramente físico.
Todavia, em casos de falta de mão de obra familiar, Xxxxx e Xxxx (2012) evidenciaram que há uma flexibilização dos diferentes papéis assumidos pelos membros da família, relativizando a divisão sexual do trabalho como estratégia familiar para complementar as atividades da unidade de produção e alcançar o equilíbrio. “Assim, embora os discursos dos entrevistados reforcem a idealização de que trabalho de mulher é “serviço de casa” e trabalho de homem é “trabalho pesado na roça”, essa naturalização é desconstruída na prática diária do trabalho” (XXXXX; MOTA, 2012, p. 211).
Na área de expansão da dendeicultura, no nordeste paraense, local foco do presente estudo, Ribeiro (2016) fez uma comparação entre as atividades que eram realizadas antes e depois da implantação do dendê em uma comunidade rural. Os resultados mostram que no passado os homens trabalhavam nas atividades do roçado e na venda dos produtos, enquanto as mulheres realizavam os serviços domésticos e a colheita da pimenta do reino. Este último era caracterizado como “ajuda”.
Após a implantação do dendê, ocorreu uma reorganização do trabalho agrícola, com a substituição de parte da mão de obra familiar por mão de obra contratada. Nesse processo, as mulheres, especialmente as casadas, foram excluídas dos trabalhos agrícolas, passando a se dedicar predominantemente aos trabalhos domésticos, enquanto as mais jovens dedicavam-se ao trabalho agrícola assalariado e aos estudos. O trabalho no dendê dentro dos estabelecimentos familiares foi descrito como atividade masculina.
A partir do referencial acima exposto, pude observar nos diferentes estudos que as mulheres geralmente são associadas diretamente à esfera de reprodução, com responsabilidade sobre os cuidados com a casa e família (preparo dos alimentos, limpeza, produção de pequenos animais, educação dos filhos, cuidados com os idosos etc.), e que seu trabalho nos diferentes sistemas produtivos (agricultura, pecuária, extrativismo, etc.) são considerados como “ajuda”.
Nesta pesquisa reflito para além de tais constatações consolidadas a respeito dos papéis atribuídos às mulheres em razão das atividades e mudanças que as mulheres com contratos de produção têm vivenciado, contrastando inclusive com os papéis que lhes são socialmente atribuídos.
2.2 MULHERES E AUTONOMIA
Apresentarei as bases teóricas que me guiaram nas análises das entrevistas, bem como nas diferentes compreensões e significados de autonomia. Ressalto em especial as análises de Xxxxxxx (1997), Haque et. al (2011), Terssac (2012), Xxxx e Xxxxxxx (2013), Xxxxxx e Xxxxxxx (2002), Xxxxxx (2011), Xxxxx; Xxxxx e Xxxxxxx (1998), Xxxxxxxx e Xxxxxxxxx (2001), Pequeno (2006), Xxxx (2010), Gohn (2004), Mota (1990), entre outros.
2.1.1 Sobre autonomia
Ao buscar na literatura compreensões sobre autonomia, constatei a real complexidade que envolve o conceito – isso sem considerar sua concepção e utilização nas ações dos indivíduos. Terssac (2012) argumenta que tal conceito possui reduzido referencial teórico em sociologia, dicionários, vocabulários e
manuais. Contudo, na biologia e psicologia, o termo possui um campo maior de discussão.
Segre, Xxxxx e Xxxxxxx (1998) acrescentam ainda que, a partir dos anos 80, houve uma problematização em torno da utilização do prefixo auto por pesquisadores das ciências humanas e naturais. Segundo os autores, o uso linguístico extensivo do termo “autonomia” em diferentes ciências rompe com o “uso normativo dos humanos e suas instituições” (1998, p.4), tal como foi proposto por Xxxx, dificultando a aplicação do conceito de autonomia para fenômenos que envolvem as relações sociais.
No dicionário básico de Filosofia, os autores Xxxxxxxx e Xxxxxxxxx (2001) citam que foi Xxxx um dos pioneiros a explicar o conceito de autonomia. Na sua definição, a autonomia compreende a vontade e autodeterminação de um indivíduo de se governar conforme sua própria lei, respeitando sua razão prática, de tal forma que os interesses externos não sejam limitantes da própria vontade.
Da mesma forma, Xxxxxxx (1997) corrobora com Xxxxxxxx e Xxxxxxxxx (2001) quanto à “condição de o sujeito determinar-se por si mesmo, segundo suas próprias leis” (2011, p. 27). Todavia, a autonomia ultrapassa a decisão sobre as determinações individuais, mas como a capacidade de criar suas próprias leis:
Para que lei e liberdade possam estar associadas, é necessário distinguirem-se as boas leis das más. As primeiras são estabelecidas pelos e para os sujeitos livres; as segundas são o meio de opressão dos fortes sobre os fracos. A autonomia aparece, então, não como a capacidade de se agir segundo a lei, mas de se definir a própria lei (CATTANI, 1997, p. 27).
Interessante notar que, embora Xxxxxxx (1997) disserte sobre a autonomia do sujeito, ao longo do texto essa ideia vai se diluindo em questões referentes ao coletivismo, e demonstra como tal conceito foi amplamente discutido em casos de trabalhadores em “situações de enfrentamento às formas econômicas e sociais dominantes” (1997, p. 28). Ou seja, os indivíduos coletivos (e não individuais) deveriam ser capazes de determinar suas próprias leis pelas quais iriam se submeter.
Para Terssac (2012), sociólogo francês, a “autonomia é a capacidade de se conduzir segundo as suas próprias regras construídas à margem ou contra o
sistema de regras oficiais”. Desse modo, o autor vai ao encontro com a teorização de Xxxxxxx (1997), que especifica a autonomia como uma utopia libertária que desperta, de maneira espontânea ou induzida, as reivindicações e mecanismos de enfrentamento às hierarquias opressoras, racionalidades produtivas e normas consideradas arbitrárias aos trabalhadores.
Segundo a minha compreensão, os autores se complementam em parte, pois ambos concordam que a autonomia constitui-se contra um sistema de regras que os oprime. No entanto, Terssac (2012) acrescentou ao conceito de autonomia a capacidade estratégica de afirmação das escolhas dos indivíduos, porque envolve relações de poder.
A noção de autonomia em questão, segundo Terssac (2012), é vinculada à noção do ator racional e estratégico e de recusa a qualquer determinismo, a priori, porque os atores não são diluídos em uma vida social, mas enraizados em jogos de relação de poder que se constroem nas zonas de incerteza nas quais cada um tenta obter do outro aquilo que atende aos seus interesses.
Em outro sentido, Xxxxx Xxxxxx (2006), socióloga portuguesa, retrata a ideia de autonomia segundo as diferentes formas de organização do trabalho. Para Kovàcs, a autonomia no trabalho difundida pelo modelo neoliberal teoricamente proporciona a autodeterminação no cumprimento das funções, na realização das atividades e no espaço de decisão, e ação nos procedimentos de trabalho. Porém, Xxxxxx demonstra como é complexo retratar a autonomia nesses moldes, uma vez que é pautada em um individualismo-emancipação (no qual o próprio indivíduo é responsável pelo sucesso ou fracasso), relacionado principalmente com o lucro em um curto prazo e com a redução ao máximo dos direitos trabalhistas.
No campo do Direito, a autonomia é discutida a partir do ponto de vista moral do sujeito. Conforme Pequeno (2006), a definição de autonomia tem sua origem no grego autos (próprio, a si mesmo) com o substantivo nomos (lei, norma ou regra), manifestando a habilidade de cada cidadão (ou cidade) de se autogerir, executar suas leis e estabelecer as diretrizes para orientar seu desempenho.
O autor reconhece a importância e atualidade do conceito, porém, aponta a dificuldade em colocá-lo em prática no cotidiano, uma vez que a capacidade da
autonomia do sujeito necessita de inúmeras variáveis, como ressalta: “circunstâncias da ação, motivação voluntária, escolha consciente, percepção sensorial, decisão independente, interesse e desejo de se inserir num mundo moralmente compartilhado” (2006, p. 196).
Xxxx (2010) apresenta a autonomia como o principal conceito para caracterizar os termos de pessoa de direito, cidadania e moral universalista. Para esse autor a autonomia se apresenta em razões diferenciais que podem ser desvendadas conforme sua origem, tais como: autonomia ética, autonomia jurídica, autonomia política e autonomia moral. Para Melo (2010), o termo “autonomia” está inserido em contextos diferenciados e não se pode, como base na justiça, serem observadas por um único viés, haja vista que possui concepções amplas.
Além disso, segundo Pequeno (2006), a autonomia por si só não é capaz de determinar o destino do próprio homem, mas tão somente quando é associada ao sujeito e à moral, uma vez que “a autonomia se manifesta quando o indivíduo cumpre a obrigação imposta pela lei moral, enquanto produto da razão prática”. Nesse quesito, diferencia-se bastante das interpretações feitas por Xxxxxxx (1997) e Terssac (2012), em que a autonomia é uma forma de combate e desconstrução de normas predeterminadas e impostas por setores sociais dominantes, supondo novas reformulações das estruturas de poder e lhes desobedecendo.
Xxxxx, Xxxxx e Xxxxxxx (1998), pesquisando o contexto histórico, semântico e filosófico do princípio de autonomia, explicam que, em sentido amplo, o princípio de autonomia tem seu surgimento no advento do cristianismo, quando ocorreu uma ruptura com a tradição considerada pagã, constituindo assim uma identidade:
"A passagem de um universo animado por tais forças a um mundo conhecido racionalmente – ainda que em parte – configura um trajeto de autonomização. No entanto, o pensamento cristão, ao cunhar a noção de alma individual criada por Deus, fez do homem uma criatura diretamente relacionada com o criador, e neste sentido liberta, ao menos em princípio, das injunções naturais [...]” (XXXXX; XXXXX; XXXXXXX, 1998, p. 2)
Os autores salientam que o imaginário construído em torno da autonomia, tais como propostos na tradição da cultura moderna (com a evolução tecnocientífica e humanístico-individualista), representava a relevância que o sujeito assumia diante da sua vida, sua emancipação, não apenas na busca pela compreensão racional do
mundo, mas, sobretudo por dominá-lo e submetê-lo aos propósitos humanos por vias do exercício da razão abstrata e independente.
Em contraponto às diferentes abordagens e interpretações do conceito de autonomia na literatura, Haque et al. (2011) realizaram um estudo comparativo da aplicabilidade do conceito de autonomia e empoderamento com mulheres em Bangladesh. Os autores concluíram que “a frequência de utilização de um termo técnico tem sido inversamente proporcional à compreensão de seu significado” (tradução minha). Usualmente o que ocorre é a generalização do termo “autonomia”, frequentemente associada/confundida com empoderamento, igualdade de gênero etc, em pesquisas com contextos e situações diversas, o que amplia as dificuldades de se demarcar os fundamentos do conceito. Tal generalização detectei na literatura disponível no Brasil.
Romano e Xxxxxxx (2002) também notaram essa superposição entre os conceitos de autonomia e empoderamento, e especifica que as diferenças são caracterizadas por suas origens e abrangências, bem distintas entre si. Segundo tais autores, o empoderamento é, além de um conceito, uma categoria/abordagem, um meio e um fim aplicado em situações de pobreza extrema com objetivo de superá-la, além de induzir possíveis transformações nas relações de poder. Dessa forma:
“O empoderamento dos pobres e das comunidades viria a ocorrer pela conquista plena dos direitos de cidadania. Ou seja, da capacidade de um ator, individual ou coletivo, usar seus recursos econômicos, sociais, políticos e culturais para atuar com responsabilidade no espaço público na defesa de seus direitos, influenciando as ações do Estado na distribuição dos serviços e recursos públicos” (ROMANO; ANTUNES, 2002, p. 6).
Os autores ressaltam que, nas últimas décadas, tanto o conceito quanto a abordagem de empoderamento foram gradativamente usurpados por agências e organizações financeiras multilaterais, deteriorando seu caráter político, e passando a ser um espaço em disputa no campo ideológico de desenvolvimento.
Dessa forma, entende-se que, os métodos empregados para analisar os elementos da autonomia individual são geralmente misturados com as abordagens ou instrumentos cujos objetivos principais seriam o empoderamento, que essencialmente seriam utilizados para caracterizar os interesses grupais e organizações civis, e não individuais.
Ainda assim, apesar dos conceitos de autonomia e empoderamento apresentarem-se como paradoxais, sobrepostos e até trocados, na perspectiva de Terssac (2012), é possivel interpretar autonomia também sob outros pontos de vista, como por exemplo, quando se emprega o termo independência, que é sinônimo de autonomia para o autor.
Assim, prara além das interpretações conceituais, na visão de Xxxxx, Xxxxx e Xxxxxxx (1998), há diversas formas de se estruturar o pensamento, e não raro ocorrem insuficiências nos conceitos quando são transportados para a realidade objetiva, pois “nem sempre a coerência lógica das definições espelha a complexidade da realidade” (1998, p. 1), causando inclusive dificuldades no manuseio e aplicação em estudos concretos.
No plano mais operacional, nas últimas décadas têm ocorrido mobilidades em diversos setores da sociedade em busca da autonomia a nível global. Esses movimentos têm sido utilizados como um passaporte para possíveis transformações e equilíbrio social, principalmente em sociedades com extremas desiguladades sociais que marginalizam parte considerável da população do acesso aos direitos básicos.
Por conseguinte, a demanda por autonomia dos cidadãos tem ganhado visibilidade tanto pela pressão social, através da participação da sociedade civil em esferas públicas, via conselhos, fóruns, redes e articulações (GOHN, 2004), como pela criação e acesso a políticas púbilcas e sociais, como, por exemplo: aposentadoria (PAULILO, 2000), o Programa Bolsa Família (REGO; PINZANI 2013), bem como pela disputa por território (SPINELLI, 2010; DIEZ, 2012). Dessa forma, a definição de autonomia, além de complexa, está em constante reforma quanto ao próprio conceito e sua execução.
A pesquisa de Xxxx (2004) sobre empoderamento e participação da comunidade em políticas sociais, e a de Gohn (2008) acerca dos movimentos sociais na América Latina, seus desdobramentos e pautas de luta detectaram e problematizaram as mudanças de interpretações teóricas que discutem a autonomia dos movimentos sociais e como tais mudanças de foco nos conceitos utilizados influenciam nos objetivos dos mesmos.
Xxxx (2004) fez uma análise dos princípios, definições e mudanças que alguns conceitos vêm sofrendo ao longo dos anos e esclarece que os termos “sociedade civil e esfera pública”, “empoderamento”, “capital social” e “participação” são reformulados conforme os “momentos da conjuntura política nacional e as trajetórias das lutas políticas e sociais do país” (2004, p. 21).
De forma geral, entre as décadas de 1970 e 1980 (período em que estava ocorrendo a transição democrática no Brasil e na América Latina), a autonomia não significava um conceito em si, mas um meio através do qual a sociedade civil realizava suas articulações e se organizava independentemente de e até contra o estado (GOHN, 2004). Como é retratado neste parágrafo:
A democracia direta e participativa, exercitada de forma autônoma, nos locais de moradia, trabalho, estudo etc. era tida como o modelo ideal para a construção de uma contra-hegemonia ao poder dominante. Participar das práticas de organização da sociedade civil significava um ato de desobediência civil e de resistência ao regime político predominante (GOHN, 2004, p. 22).
Com efeito, a autonomia inclusive fornecia um discurso tático para se esquivar de acordos falsos, para se preservarem os fundamentos, pelo menos em parte, do perfil dos movimentos sociais organizados e evitar que houvesse a penetração e perpetuação de práticas antidemocráticas estatais (GOHN, 2004; 2008). Porém, com a saída dos militares e o retorno do regime democrático, os movimentos sociais deslocou a autonomia do eixo central da luta pela construção de uma sociedade justa e igualitária e passaram a almejar a inclusão e o acesso a politicas públicas, brigando por espaços dentro das estruturas do Estado e não mais contra o mesmo (GOHN, 2004; 2008).
No México, Spinelli (2010) e Diez (2012) estudaram o movimento zapatista, que luta pela autonomia em territórios no estado de Chiapas. Nesse movimento os próprios zapatistas constroem suas propostas autônomas. Longe de seguir regras do Estado, eles buscam construir suas ações nas práticas democráticas, tal como uma construção constante no processo de lutas e experiências.
Segundo Xxxx (2012), os zapatistas empenham-se em elaborar a autonomia em cooperação com outros atores sociais presentes no território pelo qual lutam,
mas, ao contrário das relações históricas que ainda ocorrem, evitam relações de poder e subordinação para estabelecer relações mais equlibradas.
O movimento zapatista vai no sentido oposto das observações feitas por Xxxx (2004) no que diz respeito aos rumos do processo de autonomia que os países vêm tomando após a abertura democrática. Enquanto as organizações da sociedade civil no Brasil passaram a disputar espaços institucionais do Estado via políticas públicas, o movimento zapatista orienta-se para romper relações com o Estado e partidos políticos.
Para os homens e mulheres zapatistas, a autonomia constitui-se no cerne do debate político não como uma norma preestabelecida, mas sob os múltiplos debates e experiências legítimas que englobam princípios iniciais históricos aliados a novos debates que têm surgido ao longo do processo de construção da autonomia (DIEZ, 2012). Entre os novos debates, o autor faz referência aos aspectos regionais, étnicos, culturais, históricos, políticos, religiosos e organizativos que estão presentes entre as diversas experiências constitutivas do movimento, que almeja se constituir como plural e não homogêneo.
Além disso, Xxxxxxxx (2010) e Diez (2012) concordam que o caráter autonômico do movimento constitui-se como estratégia de resistência diante das práticas autoritárias de instituições estatais e privadas que excluem os povos indígenas do campo dos direitos sociais, principalmente do acesso à terra.
Em meio aos estudos do meio rural brasileiro dedicados à compreensão da autonomia dos camponeses, Mota (1990) realizou sua pesquisa em duas comunidades rurais do estado de Sergipe. Nesse trabalho a autora analisa as diferentes estratégias de sobrevivência e resistência dos agricultores envolvidos em um projeto de modernização agrícola, proposto pelo governo do estado na região do semiárido.
Mota (1990) chamou de “autonomia relativa” o jogo de forças sociais que proporcionava ora avanços, ora recuos nas relações entre camponeses e Estado. Além disso, a autora detectou que a “autonomia relativa” depende das particularidades de cada grupo doméstico, das responsabilidades de organização política dos agricultores, bem como da força empregada pelas ações do Estado,
contribuindo para um fluxo “de avanços e recuos das partes envolvidas, durante o desenvolvimento do projeto”.
Ainda assim, nesse jogo de interesses, o Estado tenta de diferentes formas subordinar os agricultores, enquanto estes também tentam se adequar aos interesses do Estado e, de algum modo, atender aos seus próprios interesses.
Como descreveu Xxxxxxx Xxxxxx (1984) em seu estudo sobre a subordinação do camponês ao capital: “A autonomia do trabalho camponês necessariamente está determinada pelo modelo de produção capitalista e pelas exigências que a dominação deste impõe ao produtor simples de mercadorias”. Com essa observação, o autor compartilha com Mota (1990) o fato de sublinhar o jogo de forças existente entre as partes envolvidas, que buscam ao máximo extrair da outra aquilo de que necessita. No entanto, para Xxxxxxx Xxxxxx (1984), a autonomia do trabalho camponês revela-se somente como aspecto ideológico vigente apenas em suas representações, como uma autonomia definitiva que só se realiza na consciência do camponês, na proporção em que este se fundamenta subjetivamente em sua posição de proprietário independente das situações do proprietário do trabalho, pois está subordinado às diversas forças que o cerca.
Com o aporte da literatura, somados aos meus resultados de pesquisa, é de suma importância compreender que o conceito de autonomia é flexibilizado em suas diferentes aplicações e contextos, uma vez que os sujeitos nos quais buscamos entender o termo também estão inseridos em uma rede de relações sociais e, portanto, teoricamente possuem, além da autonomia coletiva, sua autonomia individual.
2.1.2 Autonomia de mulheres
Nesta dissertação busco compreender as diferentes perspectivas de autonomia de mulheres. Inicio com reflexões relacionadas aos movimentos sociais, analiso estudos de caso que apresentam características que alargam as possibilidades de interpretação das situações deste estudo e finalizo com a definição de um conceito.
Considerando a literatura sobre as mulheres no meio rural e autonomia, destaco os estudos voltados para o tema produzidos principalmente após a década
de 1980, quando o debate da autonomia feminina no meio rural, via de regra, esteve associado aos movimentos sociais (FERRANTE et al, 2013; HENN, 2013), ao acesso às políticas públicas (ZORZI, 2008; XXXXXXX, 2009; XXXXXXXXX; 2009) e ao reconhecimento social (ESMERALDO, 2008).
Em se tratando dos movimentos sociais, a participação das mulheres se fez presente nas organizações sindicais rurais para exigir do Estado condições necessárias para a reprodução do seu modo de vida (ESMERALDO, 2013) no auge da modernização da agricultura nos anos 1980. Naquele contexto, havia a intensificação da expropriação de grande parte da população rural, contrariando os interesses do conjunto dos trabalhadores rurais (WANDERLEY, 2009; AGUIAR, 2015).
Apesar da participação feminina nas lutas sociais e políticas pelo reconhecimento dos agricultores como sujeitos políticos (XXXXXXXXXX, 2009; MEDEIROS; PAULILO, 2013; XXXXXXXXX, 2013), as mulheres foram excluídas dos direitos sociais conquistados no processo, uma vez que os sindicatos eram predominantemente representados por homens (XXXXXXXXXX, 2009; XXXXXXXXX, 2013). Assim, esse período não propiciou o desenvolvimento de questões referentes à divisão sexual do trabalho rural, tampouco de questões concernentes à autonomia feminina. Começava-se assim, um processo de questionamento e luta por autonomia para as mulheres do meio rural.
De maneira geral, nesse mesmo período ocorriam manifestações feministas de representantes da classe média de outros países em prol do reconhecimento da identidade e da sua cultura (DEERE; LÓN, 2002). A iniciativa contribuiu para que as mulheres rurais no Brasil se engajassem na luta por direitos e constituíssem suas próprias bandeiras de luta pela garantia ao acesso a políticas públicas em diferentes regiões (DEERE ; LÓN, 2002).
Como menciona Xxxxxxxxxx (2013), as mulheres rurais engajadas em movimentos sociais exerceram papel essencial na busca pelo reconhecimento do trabalho feminino, da autonomia e da necessidade de relações menos desiguais na família e na sociedade como um todo. Segundo Siliprandi (2013):
Constituíram-se assim, ao longo da década, os Movimentos de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTRs) ou de Agricultoras (MMAs), principalmente no Sul e no Nordeste do país (alguns dos quais se unificaram na década de 2000, sob o nome de Movimento de Mulheres Camponesas, MMC, ingressando na Via Campesina); a Articulação das Quebradeiras de Xxxx Xxxxxx no Norte-Nordeste (que viria a se transformar, na década de 1990, no Movimento Interestadual de Quebradeiras de Xxxx Xxxxxx, MIQCB); e, posteriormente, diversas organizações de representações específicas (de pescadoras, indígenas e quilombolas, entre outras) (SILIPRANDI, 2013, p. 333).
Para Xxxxxxxxxx (2013), as mobilizações em torno da criação de organizações e movimentos de mulheres ocorreram, ainda na década de 1980, em função da oposição às hierarquias sindicais que atribuíam aos homens posições e papéis de poder, razão pela qual foi necessário criar espaços que se privilegiassem as especificidades femininas.
As demandas de mulheres rurais por: 1) direito de acesso a políticas públicas com demandas específicas, desde a aposentadoria, ainda na década de 1980, até as recentes políticas de fortalecimento e acesso a novos mercados; 2) geração de recursos financeiros; e 3) engajamento em redes produtivas proporcionam ganhos não apenas materiais, mas contribuem para que elas obtenham autonomia econômica (CINTRÃO; SILIPRANDI, 2011).
Em relação ao acesso a políticas públicas, estas parecem estar sendo uma das portas de entrada para o exercício de autonomia das mulheres, seja ela de cunho financeiro, pessoal, político ou de participação coletiva.
Em se tratando dos estudos de caso, encontrei no estudo de Xxxxxx (2011), baseada em informações secundárias obtidas através do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – e informações da Fundação Xxxxxx Xxxxxx, a caracterização de autonomia feminina sob a tríade dos aspectos físicos, econômicos e de decisões. A autora qualificou autonomia feminina como a competência de poder decidir sobre sua própria vida, de acordo com seus próprios desejos dentro de um contexto histórico. Porém, na realidade essa compreensão de autonomia não é suficiente para abarcar a realidade das mulheres rurais, seja pelas especificidades da família, seja pela falta de perspectivas e oportunidades que elas possuem de maneira diferenciada ou ainda pela própria noção de autonomia que possuem.
Xxxxxxx (2002), em sua pesquisa sobre trabalhadoras assalariadas, constatou que naquele contexto a autonomia seria a possibilidade de adquirir consciência dos direitos e deveres perante a lei, desenvolver comunicação e socialização com pessoas de diferentes opiniões, participar no orçamento familiar, e conquistar liberdade para administrar e satisfazer seus desejos próprios a partir dos recursos obtidos com o trabalho.
Da mesma forma, Vale (2015) atribui autonomia às catadoras de xxxx xxxxxx pelo fato delas serem capazes de decidir os processos do seu trabalho, tais como: “horário, jornada, ritmo de trabalho, pausa, liberdade sobre o que fazer no trabalho”. Além disso, a autora constatou que a autonomia só ocorre de fato em contextos no qual a mulher possa exercer seus direitos sem privações físicas, sociais e econômicas.
Sob outro olhar, o trabalho de Xxxxxxx (2013) sobre as quebradeiras de coco babaçu retrata a visibilidade das mulheres a partir de sua organização como movimento social organizado no MIQCB (Movimento Interestadual das Quebradeiras de Xxxx Xxxxxx). A autonomia na produção e comercialização foi alcançada após o engajamento político e participação em cursos de formação, encontros e seminários, que incluíam em suas discussões temas como mobilização e economia do babaçu e traziam ao dialogo as desigualdades de gênero.
Enquanto Vale (2015) caracterizou autonomia como uma relação mais equilibrada entre os membros da família no que diz respeito aos processos do trabalho e usufruto dos direitos, Xxxxxxx (2013) enfatiza que só é possível às mulheres alcançá-la quando há engajamento político, o que traz à luz a subordinação da quais muitas delas são vítimas e consequentemente a necessidade da sua superação.
Em outro estudo, Xxxxxxxxx e Mota (2014) pesquisaram a autonomia de mulheres que trabalham no extrativismo da mangaba na localidade de Espírito Santo, município de Maracanã, Pará. As autoras enfocaram a definição de autonomia a partir da visão das próprias mulheres como sendo:
“Por autonomia, compreende-se a possibilidade de autodeterminação do indivíduo para organizar seu trabalho, definindo os propósitos e agindo em consequência deles, como a capacidade de gerar renda e de decidir a
forma como ela será utilizada, para gastos próprios ou não” (XXXXXXXXX; MOTA, 2014, p. 10).
Para as autoras, a autonomia é caracterizada não somente pela obtenção de renda, mas principalmente pela “autodeterminação para organizar e desenvolver o seu trabalho”, o que se compara à noção proposta por Vale (2015).
Xxxxxxx (2009), estudando mulheres que contraíram o crédito rural para a pecuária em Moçambique, constatou que a escolha havia sido influenciada por fatores de caráter econômico após a guerra civil ocorrida no país. A autora analisou que mudanças nas relações socioeconômicas nos processos produtivos e círculos de tomadas de decisões e de ocupação de cargos comunitários possibilitaram maior participação e autonomia feminina para aquelas que adquiriram o crédito. Como consequência do acesso ao crédito, diminuiu a dependência financeira do marido e aumentou a possibilidade de autonomia. Segundo a autora:
Essa repercussão permite antever que a autonomia das mulheres é vista como surgimento de um “fenômeno anormal’, mas, sobretudo revela que o sistema de trocas matrimoniais, em seu conjunto, está sofrendo uma transformação profunda e que é preciso identificar as suas causas essenciais (XXXXXXX, 2009, p. 100).
No Rio Grande do Sul, Zorzi (2008) e Xxxxxxxxx (2009) estudaram as contribuições do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf-Mulher) na vida das mulheres. A primeira autora mostrou que o acesso ao crédito permite que a mulher obtenha renda financeira e negociações fora do espaço doméstico. Porém, não influenciou na modificação, a priori, das relações desempenhadas por homens e mulheres envolvidas no processo.
Para a segunda autora, o crédito propiciou à mulher um reconhecimento nas atividades produtivas e algumas modificações na divisão sexual do trabalho na propriedade. Contudo, a lógica de operacionalização dos recursos, na maioria dos casos, continua sob a posse do homem (marido ou filho mais velho).
Nesse sentido, é muito provável que uma parte desse recurso é reinvestida na lavoura; mas a outra parte apenas é administrada pelas mulheres, quando este é destinado, sobretudo, para cobrir as “despesas de casa”; pois geralmente são elas as responsáveis pelas compras necessárias como, o “rancho” do dia a dia (XXXXXXXXX, 2009, p. 146).
Os estudos elencados neste tópico trazem, a meu ver, uma contribuição importante acerca do acesso às políticas públicas de crédito e questionamentos
interessantes sobre as mudanças na relação entre o trabalho e a autonomia das mulheres no meio rural. É notório que, nos casos aqui apresentados, ocorrem maior participação das mulheres nas tomadas de decisão e aumento da autoestima e da autonomia econômica nos processos de produção, sem que, no entanto, haja modificações no que diz respeito à posição social da mulher na hierarquia familiar. Ou seja, a obtenção do crédito aumenta a possibilidade das mulheres de acessar recursos financeiros, mas não necessariamente garante que elas possam participar e decidir sobre os recursos gerados com seu trabalho.
Para além da maior participação no controle da produção e comercialização, as quebradeiras de xxxx xxxxxx valorizam a questão da educação formal como forma de problematizar a desigualdade de gênero e a transformação de práticas patriarcais, inclusive a busca por autonomia na família (XXXXXXX, 2013).
Nos estudos revisados, a autonomia é conceituada e tratada metodologicamente de diferentes maneiras, relativizando a noção de autonomia e associando-a tanto à distribuição dos bens financeiros quanto a recursos da produção e gestão dos bens adquiridos pelo trabalho de homens e mulheres. Ou seja, a autonomia feminina foi tratada em campos distintos que contribuíram para o presente estudo na medida em que permitem o tratamento dos dados com diferentes perspectivas.
Nesta pesquisa, compreende-se autonomia de acordo com as interpretações que as mulheres possuem de si próprias, a partir das experiências vivenciadas no trabalho, na família e na esfera pública. Dito de outra forma, autonomia é a capacidade das mulheres contarem suas vidas sem serem descritas e interpretadas por outros sujeitos que não apresentam o mesmo ponto de vista sobre suas escolhas.
Na narrativa do trabalho das mulheres na dendeicultura sob contratos de produção, busquei investigar se há autonomia sobre as decisões, nas diferentes formas de participação nas atividades produtivas do dendê, na participação em reuniões, e no aumento do contato com pessoas externas ao convívio familiar e local.
Compreender o conceito de autonomia a partir do ponto de vista das mulheres com contratos de produção é assimilar como a inserção do universo feminino em contextos e rede de relações sociais externas à família é capaz de incluí-las de fato nesse universo masculino, e até que ponto tal inserção proporciona a livre iniciativa de tomar decisões individuais, exercendo seus poderes de escolha contrários às leis instituídas, mesmo quando estão envoltas de relações familiares em que elas não são a autoridade maior.
Vale ressaltar que neste estudo não considerei autonomia como a liberdade absoluta para escolher suas próprias regras, mas como a liberdade das mulheres de acessar determinados pontos críticos das relações familiares (decisão sobre o itinerário técnico, participação em reuniões e controle financeiro), através dos quais elas possam exercer sua autonomia pessoal, embora incompleta. Enfim, a autonomia é uma condição relacional no tempo e no espaço.
3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
O objetivo deste capítulo é apresentar os passos metodológicos encadeados para o desenvolvimento da pesquisa em si, almejando analisar o trabalho e a autonomia de mulheres que têm os contratos de produção com agroindústrias de dendê em seus nomes.
Apresentarei o processo de construção do estudo desde a definição do objeto de pesquisa, as motivações, a obtenção dos dados relevantes até a sistematização e análise dos dados para a materialização desta dissertação. Além da delimitação da unidade de análise, faço uma breve descrição histórica, econômica e social de São Domingos do Capim, município onde foi realizada a pesquisa.
3.1 MOTIVAÇÃO PARA O TEMA DA PESQUISA
Meu interesse pelo tema de pesquisa “trabalho e autonomia de mulheres que possuem contratos de produção com a agroindústria de dendê” surgiu após os primeiros contatos no campo durante o curso de especialização em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agroambiental na Amazônia (2013/2014), quando realizei um estudo sobre a podridão da mandioca1 (Manihot esculentum Crantz) em um assentamento em São Domingos do Capim. Nesse período identifiquei uma mulher encarregada pela gestão das atividades para a produção de dendê no estabelecimento familiar. Isto é, as atividades eram realizadas sob a sua responsabilidade. Tratava-se de Açucena, 59 anos, casada, mãe de 08 filhos. O
1 Conhecida na região como podridão da mandioca, é uma doença que se caracteriza pela podridão radicular das raízes da mandioca. A doença ocorre pela ação de dois fatores principais: por agentes infecciosos (considerado o mais grave), e outro ocasionado por mecanismos fisiológicos da própria planta (Xxxxxx, et al., 2002). No primeiro caso, os agentes infecciosos,, acredita-se que, já habitam o solo e ocorrem em inúmeras espécies cultivadas, e os sintomas são amplos em todos os casos (Michereff, et. al., 2005). Geralmente as raízes das plantas afetadas, parcial ou total, passam por um processo de necrose de seus tecidos radiculares e posteriormente morrem (Xxxxxxxxx, et. al., 2005). Em muitos casos, a podridão pode apresentar sintomas leves e impactos mínimos para o desenvolvimento da planta e em outros pode causar morte instantânea na planta (Xxxxxxxxx, et. al., 2005). No segundo caso, para Xxxxxxxx, et al. (2006), a incidência da podridão fica mais evidente em períodos chuvosos em áreas com solos adensados, com tendência a encharcamentos temporários nas épocas em que a precipitação é mais elevada.
Na literatura consultada, foi notório que, apesar dos prejuízos causados pela doença, não existe consenso sobre seus agentes causais mais comuns, intensidade da doença, contabilidade das perdas ocorridas, bem como as características de resistência das variedades plantadas na região Norte (Oliveira, et. al., 2006).
contrato havia sido realizado em nome do marido com a agroindústria, porém, quem fazia toda a gestão do dendê no lote da família era Açucena.
O encontro me permitiu questionar sobre a participação da mulher naquela experiência, especialmente quanto à autonomia na coordenação das atividades, considerando que na literatura revisada predominam análises sobre a atuação dos homens nos estabelecimentos familiares produtores de dendê (SAMPAIO, 2014; XXXXXXX, 2016; XXXXXX, 2015; PONTES, 2014). Sob outra perspectiva, o tema me instigou pela minha experiência pessoal, considerando que na minha família são frequentes os casos de monoparentalidade feminina em que as mulheres atuam com muita autonomia para o aprovisionamento da família.
Na condição de aluna do Mestrado em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável, constatei os primeiros casos de mulheres com contratos de produção em seus nomes após as viagens de campo, realizadas em julho e dezembro de 2015 em diferentes municípios que têm agricultores familiares integrados à agroindústrias no Nordeste Paraense como parte do trabalho do Projeto Agricultura Familiar e Inclusão Social (AFInS2). Essas viagens aconteceram no decorrer de 17 dias3 divididos em três campos. Nessas ocasiões visitei seis municípios nos quais entrevistei, em caráter exploratório, 15 mulheres com contratos de produção em seus nomes. O contato com elas foi fundamental para ter certeza da existência e dimensão do fenômeno.
Mediante a dispersão de residência das mulheres e dificuldades de deslocamento para chegar aos seus estabelecimentos, decidi que o meu estudo deveria ser centrado em um município.
No meu modo de ver, o fato de o contrato estar em nome das mulheres foi algo atrativo, do ponto de vista tanto teórico quanto empírico, nas diferentes interações
2Projeto AFInS – Agricultura Familiar e Inclusão Social é a sigla de um projeto de pesquisa financiado pela Embrapa sob o título Integração da Agricultura Familiar na Produção do Dendê no Pará: Possibilidade de Inclusão Social? A execução do projeto ocorre por meio de parcerias com a Universidade Federal do Pará-UFPA e Sindicatos Rurais do Nordeste paraense no período 2014/2017. A pesquisa privilegia: i) Agricultores e agricultoras familiares que têm contrato de integração à agroindústria de dendê; ii) Jovens que trabalham nos estabelecimentos familiares e como assalariados; e iii) Moradores das vilas situadas no entorno dos monocultivos. O sistema agrário, os estabelecimentos (grupos domésticos e sistemas de produção) e as vilas são as principais referências empíricas.
3 As viagens ocorreram entre os dias: 21 a 28 de julho (São Domingos do Capim); 01 e 05 de dezembro (Garrafão do Norte, Capitão Poço e Bonito) e; entre 17 a 22 de dezembro (Acará, Tomé- Açu, São Domingos do Capim).
que ocorreram ao longo da pesquisa entre mim (como pesquisadora) e elas (meu interesse de pesquisa). Pude observar nos seus relatos sobre quando os técnicos e agentes financiadores visitavam suas famílias a frequente referência à interação entre estes e seus familiares, o que apontou o fato de que essas mulheres, em muitos casos, não assumiam que participavam dessas interações, mesmo que a titularidade do contrato estivesse em seus nomes. Revelava-se assim uma dupla estrutura familiar, na qual, de um lado havia o aparente domínio masculino, uma vez que muitas vezes elas afirmavam que o seu trabalho nas atividades agrícolas eram apenas “ajuda” aos maridos, e de outro, uma preponderância feminina, segundo a qual as mulheres eram vistas como chefes de família.
Atentando para esse debate e analisando o trabalho e a autonomia das mulheres com contratos de produção do dendê, as perguntas que buscarei responder são: Por que as mulheres têm contratos em seus nomes? A mulher que têm o contrato em seu nome possui autodeterminação para organizar e desenvolver o trabalho? Como a participação em diferentes esferas da vida social e política influenciam no exercício da autonomia? Por quê?
3.2 A REGIÃO DE PESQUISA
O Nordeste Paraense é a região de colonização mais antiga do estado do Pará, com uma população aproximada de 734.545 habitantes, conforme o Censo do IBGE (2010). Consiste em uma das regiões mais populosas do estado, com densidade demográfica aproximada de 19, 6% (SILVA et al., 2006; TOZI, 2007).
O surgimento dos municípios mais antigos está intimamente ligado às grandes incursões portuguesas que exploravam a região através dos rios (SILVA et al., 2006; XXXXXXX et al., 2011; MORAES, 2012). Destacam-se principalmente dois momentos distintos dos processos de migração e ocupação. O primeiro, ainda no século XVII, decorrente das expedições portuguesas através dos Rios Guamá e Capim, que culminou com o fluxo migratório e surgimento de cidades como São Miguel do Guamá e Irituia, após a divisão das cidades de Ourém, Bujaru e Tomé- Açu (XXXXXXX et al., 2011). O segundo, ao longo da segunda metade do século
XX. A abertura das rodovias Belém – Brasília (BR – 010) e Pará – Maranhão (BR – 222) impulsionou um segundo fluxo migratório de outras regiões do país, culminando
com a fundação dos municípios de Capitão Poço, Paragominas, Rondon do Pará, Garrafão do Norte, Mãe do Rio e Dom Elizeu (BARBOSA et al., 2011).
Com uma economia predominantemente primária, as atividades agropecuárias contribuem com 15% do Produto Interno Bruto (PIB)4 da região, das quais se destacam a agricultura, pecuária e pesca (XXXXX, 2006; XXXXXXX et al., 2011).
Nas duas últimas décadas, sob acalorado debate entre adeptos e críticos, a região se tornou palco da expansão da dendeicultura nos solos amazônicos sob argumentos oficiais de desenvolvimento com o aproveitamento de áreas degradadas e redução de problemas ambientais e socioeconômicos por meio do reflorestamento e distribuição de renda as populações rurais. Dessa forma, a produção agroindustrial do dendê chegou incentivada e financiada pelo Estado através de políticas públicas específicas, tais como o Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB) (SILVA, 2016) e o Programa Sustentável de Óleo de Palma (PSOP).
Contudo, analises feitas por Xxxxx e Bastos (2014), Xxxx (2015) e Xxxxxxxx Xxxx (2017) mostram que tais discursos desenvolvimentistas ligados à expansão da dendeicultura, na prática não se sustentam. Pelo contrário, segundo os autores, com a implantação do dendeicultura houve o fortalecimento do agronegócio, subordinação dos agricultores integrados e concentração de terras em diferentes níveis.
Segundo Brandão e Shoneveld (2015), a área plantada na região equivale a 244,137 ha, em que 85% do monocultivo pertence a 9 agroindústrias, enquanto apenas 15% encontram-se em estabelecimentos familiares que mantêm relações de integração com as agroindústrias.
De acordo com Monteiro (2013), a área de expansão da dendeicultura no Pará abrange os municípios de Acará, Concórdia, Moju, Tomé-Açu, Tailândia; Benevides, Santa Isabel do Pará, São Domingos do Capim, Castanhal, Igarapé-Açu, Baião, Igarapé Miri, Mocajuba, Cametá, dentre outros.
4Segundo Gama et al.,(2015), as atividades socioeconômicas da região contribuem com 9,7% do PIB do estado, o que representa R$ 8.852.245,00. Com destaques para o setor de serviços (72,8%), indústria (11,26%) e agropecuária (15,45%).
Nesse contexto, a produção do dendê em larga escala visa atender a demandas alimentares e de cosméticos e, atualmente, também tem sido procurado como componente para o processamento de agrocombustíveis. Pela versatilidade e valor no mercado, o óleo de dendê é atualmente o mais consumido no mundo.
Os maiores produtores de dendê no mundo são a Indonésia, Malásia e Tailândia. Na América Latina, a Colômbia lidera, seguida pelo Equador, Honduras e Brasil. Para atender às demandas internas, o Brasil importa óleo de dendê, mas pretende ampliar a sua área de cultivos, e o Pará é o estado no qual esse processo tem sido mais intenso.
Após um estudo exploratório na região produtora de dendê, escolhi o município de São Domingos do Capim para a realização da pesquisa. A escolha por um único município se deu pela possibilidade de analisar os diferentes processos que se instituem para a expansão da dendeicultura entre o poder municipal, as empresas agroindustriais e os sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais.
Embora a busca por compreensões mais abrangentes seja necessária, a definição de trabalhar em apenas um município permite melhor apreensão da realidade local, uma vez que torna possível alcançar todas as mulheres com contratos de produção em seus nomes. Ademais, o sindicato de São Domingos do Capim tem predominantemente mulheres na sua diretoria, com a coexistência de diferentes percepções quanto à dendeicultura.
3.2.1 O lugar de pesquisa: São Domingos do Capim
O município localiza-se ao nordeste do estado, pertencendo à mesorregião do Nordeste Paraense e à microrregião do Guamá (IBGE, 1990). A distância da sede municipal até a capital paraense é de 130 km, com latitude sul 01º 40’ 45’’ e longitude oeste 47º 46’ 17’’ de Greenwich (WGr). Faz limites com São Miguel do Guamá ao norte, Irituia e Mãe do Rio ao leste, Aurora do Pará ao sul, e com Tomé- Açu, Bujaru e Concórdia do Pará a oeste.
A população da região apresenta características fenotípicas marcantes como resultado da forte miscigenação que ocorreu em períodos anteriores entre populações indígenas destribalizadas, escravos afro-brasileiros e os portugueses
que administraram a região do rio Capim entre os séculos XVII ao XIX (RODRIGUES apud MEDINA, 2003, p. 19-20). É notório perceber tal miscigenação ao observarmos os biótipos das pessoas de pele negra com olhos claros, ou seja, são resultados da miscigenação entre pessoas com características distintas que povoaram a região.
Nos séculos citados, a produção agrícola era baseada no sistema de plantation5 (principalmente cana e cacau) em várias áreas da Amazônia, incluindo São Domingos do Capim. Foram feitos vários empreendimentos na região para que pudessem atender às demandas da coroa portuguesa. Nesse processo foram se constituindo sítios, retiros, fazendas, vilas e povoados (XXXXXXX XXXXX xxxx XXXXXX, 2012, p. 100).
São Domingos do Capim atualmente possui especificidades rurais, como referidos no último levantamento do censo populacional, com o número de pessoas que residem no meio rural superior ao de pessoas que vivem no núcleo urbano do município, como pode ser observado na tabela abaixo:
Tabela 1: Censo demográfico da população de São Domingos do Capim-PA.
População | Rural | Urbana | Total |
Nº Habitante | 23.257 | 6.589 | 29.846 |
% | 87.93 | 22.07 | 100 |
Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 2010.
Elaboração: Adaptado do IDESP, 2014.
A vida social do município é apreendida nas diferentes manifestações socioculturais, seja na culinária, edificações nos espaços da cidade (desde a sede municipal até as localizadas ao longo dos rios, tais como: antigas igrejas, engenhos de cana-de-açúcar), nas crenças, nos hábitos e costumes da população local (XXXXX, 2006). Segundo o autor, essa construção social consiste em uma herança de diferentes “formas e conteúdos presentes nas relações sócio-espaciais do
5Plantation consiste em um tipo de sistema agrícola caracterizado pela monocultura voltado principalmente para exportação, com grande exploração da mão de obra escrava e latifúndios.
município, a exemplo da dimensão ribeirinha apropriada pela prática do turismo” (SOUZA, pág. 108, 2006).
Os moradores do município possuem uma forte relação com os rios Guamá e Capim. As famílias que moram nas proximidades dos rios se deslocam de barco até a sede municipal para comercializarem seus produtos e comprarem outras mercadorias de consumo alimentício e outros produtos voltados para a garantia da reprodução familiar, e a viagem depende da distância das comunidades até a sede municipal (SILVA et al., 2006). Além da utilização dos rios como via de transporte de pessoas e mercadorias, é comum observar as famílias utilizarem-nos para atividades de lazer, tais como tomar banho e pescar.
Os rios também fazem parte das representações sócio-espaciais do imaginário popular local, representando em valores simbólicos, culturais, religiosos e econômicos, constituindo-se em relações mais que ambientais entre as pessoas e o rio.
O fenômeno da Pororoca6 tem atraído turistas de todo o Brasil para apreciar e surfar em seus rios, convertendo-se inclusive em uma atração econômica e cultural de relevância para o município em determinados períodos do ano (XXXXX, 2006; XXXXX, 2006; XXXXXXX, et al., 2011). Sobre a pororoca, Xxxxx (2006) explica:
De início, a lenda mencionava três botinhos, personagens da relação amorosa entre a índia e o animal, o boto transformado em homem. Porém, com a reelaboração cultural e a interação das diversas espacialidades historicamente construídas no espaço local surgiu no processo de desenvolvimento da tradição oral a presença dos três “pretinhos” da pororoca. De botinhos a pretinhos, as representações referem-se à presença negra e às suas aventuras, peripécias. Para pensar as vivências e o cotidiano ribeirinho faz-se necessário incluir a presença negra e seu simbolismo cultural nas representações sócio-espaciais transportadas nos rios Capim e Guamá quando da manifestação do fenômeno da pororoca.
Porém, a economia do município gira em torno da produção de mandioca, que assim como na maioria da região Norte, destaca-se como principal fonte de alimento e comercialização das populações amazônicas (RIBEIRO, et al., 1999; XXXXX, 2006). Os derivados da mandioca constituem elementos característicos da culinária
6 Corresponde a um fenômeno de causas naturais atráves da coalisão das águas de um rio com o oceano, após a elevação dos níveis das águas oceânicas (SOUZA, 2006), e tal confronto dessas águas favorece o surgimento de grandes ondas que podem atingir diferentes tamanhos e velocidades das mais variadas.
regional, originando pratos regionais como o pato no tucupi, a tapioca, o tacacá, a carimã, o biju, a maniçoba, entre outros (EMBRAPA, 2013). Mas o seu principal produto é a farinha, que é produzida tanto para o consumo como para a venda, consistindo assim na principal atividade dos sistemas produtivos familiares do meio rural da região Norte (OLIVEIRA JR, et al., 2005).
Em São Domingos do Capim, além da produção de farinha, as atividades agrícolas mais frequentes são o cultivo de pimenta-do-reino (Ppiper nigrum, L.), coco (Cocos nucifera), banana (Xxxx xxxxxxxxxxx), mamão (Carioca papaya, L.), a pecuária e os serviços na sede municipal (SOUZA, 2006; IBGE, 2012). O extrativismo de açaí (Euterpe oleracea Mart.) e a produção de dendê também constam na pauta das atividades.
O incentivo para a instalação da dendeicultura no município remete ao ano de 2010 (GOMES; XXXXXXXXX, 2016). A introdução da dendeicultura na região apresentou repercussão considerável após o lançamento do Programa Nacional de Produção Sustentável de Xxxx xx Xxxxx (PSOP) pelo então presidente Xxxx Xxxxxx Xxxx xx Xxxxx, que ocorreu no município de Xxxx-Xxx (SAMPAIO, 2014, MONTEIRO, 2013; XXXXX, 2015; XXXXX; XXXXXXXXX, 2016).
No ocorrido, vários atores locais de municípios do nordeste paraense e representantes de organizações sociais estavam presentes, tais como sindicatos e associações rurais, a exemplo: FETAGRI (Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará), STTR (Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais), Prefeituras Municipais, INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o BASA (Banco da Amazônia) e representantes de agroindústrias que atuam no ramo de produção de dendê (SAMPAIO, 2014; XXXXX; XXXXXXXXX, 2016).
Nos anos seguintes a prefeitura de São Domingos do Capim assinou acordo de cooperação com a EMATER (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural) com a intenção de estimular a efetivação dos procedimentos necessários à execução de assistência técnica aos agricultores familiares interessados na integração com as agroindústrias (XXXXX; XXXXXXXXX 2016).
Esse evento mobilizou diferentes esferas dos setores púbicos da região (governos federal, estadual e municipal), entidades e agências de fomento à pesquisa, empresas privadas e representantes de agricultores (MONTEIRO, 2013; SAMPAIO, 2014; 2014; XXXXX; MAGALHÃES, 2016). Cabe ressaltar que nessas circunstancias a empresa ADM7 (Xxxxxx Xxxxxxx Midland) objetivou construir uma usina de processamento de dendê na comunidade de Perseverança, em São Domingos do Capim, em parceria com diferentes atores sociais e representantes do estado (NAHUM; BASTOS, 2014; NAHUM; XXXXXX, 2014). Ainda segundo Xxxxx e Bastos (2014), a promessa declarada pela ADM contava com a produção de 600 famílias com contratos de produção (cada agricultor poderia plantar até 10 ha em suas terras), respondendo por 50% da produção, enquanto que a outra metade seria produzida em terras próprias da empresa, totalizando 12.000 ha de plantio na região.
A partir disso, os agricultores familiares de São Domingos do Capim, assim como em toda a região, foram convencidos a se integrarem à dendeicultura por meio
7A empresa se comprometeu a construir a usina de processamento com uma capacidade de esmagar até 60 toneladas de cachos de frutos frescos (CFF) por hora. Caso fosse efetivado tal empreendimento, a ADM teria o monopólio local de uma área de 24 mil hectares, considerada a reserva legal (NAHUM; BASTOS, 2014).
de um contrato de produção com as agroindústrias atuantes na região. No total, 226 agricultores familiares assinaram o contrato, sendo 87% assinados pelos homens, e 13% pelas mulheres até o ano de 2015 (BANCO DA AMAZÔNIA, 2015).
No total, 30 mulheres têm contratos de integração em seus nomes em São Domingos do Capim (mapa 1). Os seus contratos são com as empresas ADM (Acher Daniels Midland) e Biopalma (Biolpama da Amazônia S.A.) a partir de 2010.
49
Mapa 1: Mapa de localização das mulheres com contratos de produção, São Domingos do Capim, PA.
Dentre os compromissos contratuais, elas são responsáveis pela gestão do cultivo de dendê no estabelecimento junto à agroindústria e pelo financiamento com o banco.
3.3 A PESQUISA
As primeiras viagens ocorreram pela busca de pessoas que possivelmente conheciam mulheres cujos contratos para a produção de dendê estavam em seus nomes. Busquei informações no STTRs de São Domingos do Capim e não obtive êxito, indo direto ao assentamento PA Terra Nova, local onde já havia estudado anteriormente e identificado uma mulher trabalhando nas atividades da dendeicultura sob contrato. A partir dai, visitei agricultoras que nem sempre tinham contratos nos seus nomes. Utilizei ônibus de linha, geralmente de Castanhal à São Domingos do Capim e de lá até as localidades fui de moto. Geralmente me hospedei na casa de agricultoras que aceitavam me receber em suas residências por determinado período.
Nas localidades não há transporte coletivo, e meu deslocamento foi realizado com mototaxistas que cobravam determinado valor para fazer as viagens até as residências das agricultoras e depois retornar ao local em que eu estava hospedada. Após localizar uma parte considerável de mulheres cujos contratos estavam em seus nomes, e fazer amizade com agricultores residentes nas localidades, consegui que elas me ajudasse na identificação das demais e arranjos foram postos em prática para novos deslocamentos como, por ex. colocar gasolina em uma moto de alguém da localidade sem ter que pagar corridas. Geralmente preparava algo para comer durante o dia, uma vez que só retornaria a noite.
As estradas vicinais não possuem asfalto, poeira em excesso e nos períodos chuvosos havia dificuldades em trafegar, algumas vezes enfrentando problemas mecânicos nas motocicletas, outras vezes dificuldades em se locomover devido ao excesso de lama nas estradas.
Além disso, um dos principais problemas enfrentados durante as entrevistas foi a insegurança que me acompanhou em parte considerável da pesquisa de
campo. Foi constante relatos de casos de estupros, roubos a residências e tráfico de drogas em algumas localidades.
No geral, visitei 17 localidades para a realização desta pesquisa, quais sejam: Nova Luz, Santa Maria 04, São Sebastião, Filadélfia, Nova Caminhada, Rancho Fundo, Baixo Palheta, Nova Betel, Nova Esperança do Bentil, Xxx Xxxx xx Xxxxxxxx, Xxxx Xxx Xxxxxx (XX 00), Xx em Deus, São Benedito do Jaboticacá, Catita, Manteiga, Monte Sinai e Bom Jesus.Tais nomes possuem significados para seus habitantes, desde passagens bíblicas, nomes da antiga fazenda do qual a comunidade surgiu, até nomes de santos, entre eles, os mais comuns.
A mais antiga localidade é São Benedito do Jaboticacá que data de 1910, e a mais recente é denominada de Baixo Palheta, criada em 2008 e assim batizada após seus moradores criarem a localidade, separando-se do projeto de assentamento (PA) Palheta.
Ao todo, 13 das 17 localidades (76%) formaram-se a partir da fundação de uma comunidade católica devido às longas distâncias que os primeiros moradores percorriam até as localidades mais próximas para participar das celebrações religiosas. Foi comum um morador antigo doar uma área de sua terra para construir uma igreja, que se materializava por meio de doações em dinheiro ou da venda de animais por meio de bingos, festividades e doações feitas através de promessas.
Aos poucos, os moradores migraram para as proximidades do local onde se situam as igrejas, formando um pequeno aglomerado de casas ao longo de uma rua principal não pavimentada, com presença de núcleos familiares extensos ou nucleares com relações de convivência muito próximas.
Nas localidades recém-formadas, moradores abriam pequenas mercearias, geralmente com um bar, oficina de bicicletas e motos e demarcavam um campo de futebol. Importante frisar que as escolas começam a funcionar nos “barracões” construídos ao lado da igreja e são organizadas pelos próprios agricultores, com professores voluntários e até os auxiliares que prepararam a merenda para os alunos. Esse processo foi bastante mencionado sobre o surgimento das localidades, que após esforço dos moradores para o reconhecimento formal das mesmas pelos órgãos municípios e/ou federais, passaram a construir e até regularizar as escolas e
contratar professores que não são moradores da localidade, causando, algumas vezes, discórdia entre os moradores e o poder municipal devido às constantes faltas dos profissionais.
Se a igreja católica era predominante no momento da fundação das localidades, nos dias atuais predominam as igrejas evangélicas, do mesmo modo como, conforme identificado por Xxxxxxx (2016), no Nordeste Paraense.
É principalmente em torno das igrejas que ocorrem as socializações entre os membros de uma mesma localidade. É nas celebrações religiosas que as pessoas se encontram para reforçar seus credos religiosos e conversar sobre suas vidas e até planejar tarefas religiosas. As celebrações católicas ocorrem geralmente aos domingos, enquanto nas igrejas evangélicas ocorrem em maiores proporções, pelo menos duas vezes na semana.
As festividades de cada localidade se diferenciam segundo a orientação religiosa. Para os católicos, ocorrem uma vez por ano e comemoram o Círio de Nazaré ou algum santo padroeiro, momento em que são convidados parentes, amigos e pessoas de outras localidades próximas para participar de missas, procissões, leilões e bailes. Para os evangélicos, sobressaem as datas comemorativas do cristianismo e o ano novo. As festividades ocorrem no interior da própria igreja.
Os igarapés são ambientes de lazer, embora não sejam todas as localidades que os possuem. Os moradores limpam seus arredores, constroem pequenos degraus para descerem até o fundo. São ambientes de trabalho e divertimento onde muitas vezes há um banco dentro do próprio igarapé para as mulheres lavarem roupas enquanto os filhos pequenos tomam banho e se divertem. Nos finais de semana, é um lugar de banho e de consumo de bebidas alcoólicas acompanhadas de churrasquinhos.
As localidades possuem entre 13 e 40 núcleos familiares, mas quando eles me informaram sobre as localidades, não se referiam somente ao espaço geográfico em torno do povoado, mas também em relação aos moradores que vivem no estabelecimento familiar que muitas vezes é afastado do centro da localidade. É comum as famílias terem uma casa no centro da localidade e outra no lote, e se
revezarem em decorrência de estudo e fases do trabalho familiar. Apenas uma localidade não possui energia elétrica, mas nem todas possuem água encanada (isso somente para o centro das localidades, não foram mencionados esses serviços em relação aos lotes).
Observei que em todas as localidades existem pequenas mercearias, normalmente em um dos compartimentos na frente da casa. É comum a venda de alimentos industrializados, querosene, bebidas alcoólicas e até combustível, uma vez que é muito comum a propriedade de motos nesses locais. As oficinas de moto também são encontradas frequentemente. E em poucos casos encontrei casas de farinha comunitária, uma vez que cada família costuma tê-las no estabelecimento familiar.
O principal meio de transporte nas localidades são as motocicletas, geralmente conduzidas por jovens. O número de acidentes chama a atenção e não é raro ver jovens rapazes em reabilitação e até casos de falecimento. O transporte escolar conduz os alunos do ensino fundamental e médio até a escola mais próxima, podendo ser em outras localidades, sede municipal ou até em outro município. É comum ter um ônibus para levar os agricultores uma ou duas vezes por semana para a feira para vender seus produtos em São Domingos do Capim ou de Concórdia do Pará. Nas localidades mais distantes também são usados barcos para transportar a produção.
O principal produto é a farinha de mandioca. Também observei que há compradores que negociam direto com os produtores, indo buscar a produção nas residências. Portanto, coexistem diferentes canais de comercialização.
As estradas vicinais estão em condições ruins de trafegabilidade, com muitos buracos no caminho e algumas partes alagadas. Devido aos igarapés que cortam as estradas foram feitas várias pontes, com madeira geralmente doada pelos agricultores, que precisam de reforma e manutenção. Uma delas estava interditada.
Durante a pesquisa de campo foi comum ouvir casos de violência contra a mulher (soube, durante minha pesquisa, que uma mulher que seria por mim entrevistada foi assassinada), assaltos e roubos a residências. Xxxxxxx relataram terem medo de andar sozinhas por algumas estradas vicinais, além de evitarem comprar motocicletas novas por medo de serem roubadas ou até mesmo
assassinadas. Entrevistados associaram todos os tipos de violência com a incidência da plantação de maconha no local e do tráfico de drogas.
A pesquisa deu-se segundo a abordagem qualitativa, para dar suporte à problemática de pesquisa e alcançar os objetivos propostos na investigação. Como analisa Xxxxxx et al. (2008):
Um estudo qualitativo examina em profundidade e em extensão as qualidades de um fenômeno. Essa abordagem utiliza, como procedimento de coleta de dados, por exemplo, entrevistas e observações em diferentes modalidades, mas cuja característica recorrente é sua menor rigidez, em comparação com o questionário padronizado, pois permite ao informante maior liberdade de manifestação e, o pesquisador, identificar e compreender dimensões subjetivas da ação humana (BRUMER et al., 2008, p. 137).
Tendo em vista o contato direto com mulheres para a construção da dissertação, a abordagem qualitativa foi conveniente para eu apreender as manifestações pessoais de cada entrevistada sobre o trabalho e autonomia, uma vez que tal abordagem me permitiu refletir sobre os novos elementos que sugiram no decorrer da pesquisa.
Ao longo do processo da dissertação foram realizadas pesquisas em sites acadêmicos da internet e bibliotecas que disponibilizaram literaturas sobre mulheres e trabalho na agricultura, autonomia, autonomia relativa, contratos de produção entre agricultoras(es) e agroindústrias, políticas de agrocombustíveis, e assuntos transversais necessários à compreensão do objeto de estudo.
Além da revisão na literatura, realizei levantamentos de fontes secundárias como IBGE, ABRAPALMA, FETAGRI e STTR dos municípios visitados a fim de registrar dados sobre o quantitativo, a localização, acesso e contatos de mulheres que têm o contrato de produção em seus nomes.
A pesquisa se deu com 30 (11% do total dos contratos com agricultores familiares no município) das mulheres que têm contrato de produção em seus nomes com agroindústrias do dendê assinados até o ano de 2015 (BANCO DA AMAZÔNIA, 2016). O número corresponde a todas as mulheres com contratos em seus nomes em São Domingos do Capim.
Visando o desenvolvimento da pesquisa, os meus campos se deram no ano de 2016 (12 a 17 de abril; 29 de abril e 03 de maio; 16 a 20 de junho; 22 a 26 de
outubro) e de 2017 (17 a 20 de fevereiro e 06 a 07 de março), totalizando 28 dias8.
Nos diferentes períodos em campo, entrevistei todas as mulheres com contratos de produção que residem no município. Todavia, o contato com elas foi menor do que o desejado, tanto pela dificuldade dos constantes deslocamentos feitos de ônibus, moto, táxi e a pé, como pela falta de contato prévio com as mulheres (na maioria das vezes eu não sabia o caminho das comunidades e ia perguntando pela estrada até encontrar). Compreendo que, ao visitar todas as mulheres, consegui cumprir o previsto. Entretanto, isso limitou o meu tempo com elas.
Para tal, utilizei observações e entrevistas abertas e semiestruturadas como principais procedimentos.
3.3.1. Observações
Este procedimento me permitiu observar principalmente o trabalho das mulheres no dendê, ou seja, dentro do próprio contexto estudado. Foi possível observar no dia-a-dia as atividades correlatas das mulheres no estabelecimento familiar e fora do mesmo.
A observação foi crucial no trabalho de campo para compreender as mais diversas situações ligadas ao trabalho e autonomia do cotidiano das mulheres, como, por exemplo, o trabalho no cultivo do dendê, as formas de negociação com os representantes da empresa e as relações entre os membros da família para observar indícios ou não de autonomia. Minha hospedagem na casa de algumas das mulheres, bem como minha estadia em outras residências, me possibilitou um maior esclarecimento do trabalho e autonomia dessas mulheres, uma vez que pude observar detalhes e situações reproduzidas em seus lares nas esferas da produção e reprodução.
Ademais, nos locais de conversas me atentei para as atitudes de aceitação quanto à minha presença quando da presença dos demais membros da família que
8 Aos quais se somam os 17 dias de campo da fase exploratória já especificados no item 3.1.
participam do diálogo. Nessa perspectiva o observador necessita estar alerta para qualquer tipo de conflito ou problema que ocorra entre os participantes da pesquisa (BECKER, 1994).
Como menciona Xxxxxx (1994, p. 121), “no processo de coleta de dados, o observador participante se engaja em várias atividades diferentes”. Para esse autor, o observador precisa se disponibilizar a conviver com o grupo no qual está investigando, possibilitando que sua presença já não cause interferências no conjunto de atividades do indivíduo participante.
Utilizei para o registro das observações e das minhas impressões um diário de campo no decorrer da minha estadia nas localidades para registar/anotar informações absorvidas no decorrer das entrevistas (visuais, perceptivas etc.) com o propósito de sistematizá-los e interpretá-los posteriormente.
3.3.2 Entrevistas
Ao longo da pesquisa foram realizadas entrevistas com roteiro com questões semiestruturadas e abertas para permitir o diálogo com as mulheres, segundo aspectos relevantes para o estudo (Apêndice A). As entrevistas foram concentradas principalmente na relação entre o contrato de produção ser em seu nome e sua percepção sobre seu trabalho e autonomia no cultivo do dendê, antes e após o contrato.
As questões semiestruturadas foram baseadas em um protocolo criado para que eu pudesse adquirir informações necessárias sobre o trabalho e autonomia das mulheres no processo produtivo do dendê. O protocolo consta do seguinte conteúdo: decisão em fazer o contrato no próprio nome, decisão sobre o itinerário técnico nas atividades de produção do dendê, satisfação em ter o contrato no próprio nome e percepção de autonomia.
As entrevistas com as mulheres seguiram a sequência: conversa livre sobre os objetivos da pesquisa e os meus compromissos como estudante de pós graduação, questões semiestruturas e, por último, as questões relativas ao tema trabalho e autonomia.
Durante as conversas livres esclareci que gostaria de conversar com as mulheres que têm o contrato, independentemente de serem elas ou não a realizar a gestão do dendê. Normalmente as conversas livres aconteceram com as mulheres e com a presença de parentes próximos que também participavam do diálogo. Essa situação ocorreu praticamente em todas as visitas, uma vez que não é comum elas participarem de entrevistas sobre as atividades agrícolas. Em algumas ocasiões, os homens presentes questionavam bastante a pesquisa e interrompiam a entrevista para informar que as mulheres não entendiam do assunto, pois, eram eles que resolviam os negócios da família. A atitude demonstra a concepção segundo a qual há supremacia das atividades produtivas sobre as reprodutivas e foi incorporada como importante tema na redação da dissertação.
O roteiro utilizado nas entrevistas foi formulado após as primeiras visitas de campo e aprofundamento da literatura sobre trabalho e autonomia feminina. A utilização dessa ferramenta foi essencial para o diálogo com as mulheres, uma vez que os tópicos nortearam as conversas, facilitando a troca de informações e permitindo que questões não percebidas no momento da elaboração do instrumento de pesquisa fossem abordadas e aprofundadas pela entrevistada. Também permitiu a comparação entre as diferentes características das mulheres entrevistadas.
Para a realização das entrevistas, solicitei o consentimento das participantes para a gravação das conversas. Entretanto, gravei apenas cinco entrevistas porque senti que na maioria das vezes, por ser nosso primeiro contato, elas geralmente não demonstravam estar confortáveis. Assim, anotei gestos, atitudes, motivações, sinais corporais e até o silêncio das entrevistadas em relação a algum assunto, para posterior análise e compreensão.
Fui recebida na maioria das vezes na sala das residências, na cozinha e algumas vezes no quintal, sempre envolta de parentes ou amigos das mulheres foco do estudo.
3.3.3 Sistematização e Análise de dados
Os dados obtidos em campo foram tratados cuidadosamente a cada retorno do local da pesquisa. Uma das minhas tarefas iniciais foi identificar as entrevistadas e
lhes atribuir nomes fictícios com denominações de flores para garantir o sigilo sobre suas identidades.
Os procedimentos ocorreram da seguinte maneira: entrevistas revisadas para análises e interpretação das respostas em diálogo com a literatura, realização de relatórios de campo, e observações das anotações do diário de campo para construir cronologias de eventos marcantes.
A sistematização dos dados das questões semiestruturadas foi feita em um banco de dados no Excel com a seleção de dados objetivos relevantes (nome, sexo, idade, quantidade de filhos etc.) para elaboração de análises e comparações qualitativas e quantitativas das entrevistas, e posteriormente elaboramos o perfil das mulheres cujos contratos estão em seus nomes. Com esses resultados, elaboramos gráficos, quadros e tabelas para auxiliar na visualização, análise e interpretação dos dados quantitativos obtidos em campo. Dentre estes, elaborei gráficos (participação das mulheres em diferentes atividades realizadas na dendeicultura, itinerário técnico etc.) e tabelas (perfil das mulheres, motivos para a assinatura do contrato, dentre outras).
Em se tratando do conteúdo das questões abertas, os sistematizei de modo vertical (cada entrevista na sua totalidade) e horizontal (o conjunto delas a partir da mesma questão), intercalando entre as leituras verticais referentes a cada entrevista e as leituras horizontais o conjunto delas, alternadamente (MICHELAT, 1987). Ou seja, na vertical analisamos individualmente cada entrevista das mulheres, considerando as características inerentes à sua trajetória de trabalho nas suas relações com a autonomia. Isso possibilitou a reflexão sobre questões em comum e o surgimento de elementos observados somente quando as entrevistas forem relacionadas entre si. Para Xxxxxxxx (1987, p. 206) “um elemento do ‘raciocínio’ pode faltar em uma entrevista e ser encontrado em outra. Um elemento que só apareceu em uma entrevista pode, assim, levar a um novo ‘questionamento’ do conjunto do material”.
Para visualizar padrões quanto às decisões para a assinatura dos contratos, optei pela elaboração de uma tipologia a partir dos quatro tipos de decisões que identifiquei no campo.
Todos os dados obtidos em campo foram simultaneamente examinados, categorizados e confrontados com o referencial teórico adotado no decorrer do processo de investigação.
A última etapa da dissertação foi o momento de escrever. Xxxxxxx Xxxxxxxx (2000), a escrita é a etapa de organização dos fatos observados durante a pesquisa de campo. Para Xxxxxxxx (2000), é através da escrita que o pensar se estrutura, criando soluções não observadas antes do ato de escrever. Esta foi a etapa em que o meu pensamento se estruturou e ganhou forma na escrita. Escrever e pensar caminharam de mãos dadas.
4. MULHERES COM CONTRATOS DE PRODUÇÃO
Neste capítulo tenho como objetivo identificar o perfil das mulheres e caracterizar as atividades realizadas pelo grupo doméstico, em especial as desempenhadas pelas mulheres com contratos de produção em seus nomes. Busco reconstruir, por meio das análises de entrevistas e observações de campo, as diferenças e semelhanças nas atividades (re)produtivas das mulheres dentro e fora dos estabelecimentos familiares antes e depois da implantação do cultivo de dendê. Ou seja, trabalharei com a relação passado/presente.
São mulheres com idade entre 23 a 81 anos. Elas se autodesignam agricultoras e aposentadas. Quanto ao nível de escolaridade, observei que 67% possuem o ensino fundamental incompleto (20 mulheres); 7% possuem o ensino médio completo (02 mulheres); e 3% possuem o ensino médio incompleto (apenas 01). Por outro lado, 23% das mulheres não frequentaram a escola, o que corresponde a 07 mulheres no total.
Com relação ao estado civil, 70% das entrevistadas são casadas; 13% são solteiras; viúvas representam 13%; e 4% são divorciadas, considerando o total de mulheres com contratos de produção. No que tange ao número de filhos vivos, 40% delas possuem entre 07 e 12 filhos; 26%, entre 04 e 06 filhos; 24% possuem entre 01 e 03 filhos; e 10% não possuem nenhum filho.
As mulheres nasceram e cresceram no meio rural, mudando-se algumas vezes para as periferias urbanas para trabalhar e estudar em casas de parentes ou conhecidos da sua família, e retornando, posteriormente, para as comunidades de origem, trajetória também vivenciada por jovens na região de Marajó (LIMA, 2012). Também são comuns os casos de mulheres que se mudaram para as localidades dos seus cônjuges após o casamento (XXXXXXXXX; XXXXXXXXX, 2002), ritual de passagem para o início de formação de um novo grupo doméstico.
O acesso à terra para estas mulheres se deu por diferentes caminhos. O mais comum é um dos cônjuges ter recebido, ao se casar, uma área de terra, ou então ter continuado trabalhando na área de terra dos pais (do rapaz ou da moça), onde, com autorização destes, constroem uma casa e trabalham até conseguir comprar sua
própria terra. Xxxxxx (2004) observou que a doação de uma área de terra aos jovens para produzir e usufruir dos benefícios do seu trabalho, de forma independente dos pais, ou com a “parceria familiar” (a família trabalha em conjunto e, posteriormente, os filhos casados recebem sua parcela na produção) são estratégias familiares após o casamento também no Rio Grande do Sul.
Os depoimentos nesta pesquisa mostraram que 20% das mulheres receberam doações de uma área para construir uma casa e plantar seus cultivos após o casamento, seja em terras do pai ou sogro, e permaneceram até os dias atuais. Os outros 80% compraram, trocaram ou conseguiram através de reforma agrária.
Em relação aos grupos domésticos, neste estudo, constatei no decorrer das análises que a grande maioria das famílias é constituída por grupos nucleares, tal como descrito por Xxxx Xxxx (1976, p. 88) e são basicamente formadas por “homem e mulher casados e sua prole morando na mesma residência”. Elas possuem em média 07 pessoas por família e correspondem a 70% dos casos. Em menor proporção, 30% são famílias extensas que agrupam em uma única estrutura certo número de famílias nucleares. Elas comportam novos grupos domésticos que ainda não possuem suas próprias terras e que construíram suas residências dentro dos lotes dos pais e compartilham dos meios de produção (WOLF, 1976; BRUMER, 2004).
Heredia (1979), em seu estudo sobre trabalho familiar de pequenos produtores no Nordeste do Brasil, mostra que além do núcleo familiar, muitas vezes reside com a família o pai ou mãe de um dos cônjuges. Para essa autora, o grupo doméstico, além de habitar no mesmo espaço físico, possui a especificidade da economia doméstica, que é coletiva e capaz de garantir a subsistência de seus membros.
No universo estudado, todas as mulheres pertencem a grupos familiares que possuem terra e os demais meios de produção, e dispõem da força de trabalho familiar para realizar os processos de trabalho (XXXXXX XX, 1983; XXXXXXX XXXXXX, 1984).
A principal atividade das famílias estudadas é a agricultura. O roçado é voltado para a produção de farinha, principal produto dos sistemas produtivos familiares do meio rural da região Norte, tanto para subsistência quanto para comercialização
(XXXXXXXX XX, et al., 2005). Além da mandioca, também são cultivados com maior frequência o feijão, o milho e o arroz, enquanto o açaí, pimenta do reino, urucum, cacau e teca são menos frequentes. Quanto ao cultivo do dendê, este é feito sob contrato de integração para a produção de gêneros alimentícios pelas agroindústrias. Após o início da produção, os cachos são cortados e entregues à empresa responsável (NAUM; BASTOS, 2014; XXXX et al., 2015; XXXXX, 2015; XXXXXX, 2015).
A área geográfica em que as mulheres residem corresponde a um conjunto de diferentes localidades no município de São Domingos do Capim. As estradas que dão acesso aos lugares onde elas vivem são vicinais, conhecidas pelos moradores como ramais, não possuem alfalto e, em alguns meses do ano, são de difícil trafegabilidade, necessitando constantemente de reparos, seja da prefeitura ou do INCRA, o que demora em ser atendido.
As casas em que elas residem são, em sua maioria, de alvenaria e em processo de construção e/ou ampliação (geralmente são casas que advêm da iniciativa de reforma agrária). Há casas também de taipa, principalmente nas localidades em que não houve assentamento. As casas podem se situar tanto nas sedes de localidades como nos estabelecimentos da família, neste caso, local de morada e produção.
As residências possuem serviço de energia elétrica (93,3%), mas não dispõem de água encanada, e assim os “poços de boca aberta”9 são frequentemente utilizados (muito comum na região). As famílias que possuem melhor condição financeira dispõem de poços artesianos, o que facilita as atividades do dia-a-dia, particularmente das mulheres, porque facilita a realização das tarefas domésticas e de higiene pessoal.
Os meios de transporte mais recorrentes são o ônibus escolar (transporte escolar público) e fretado (pago com valores simbólicos) para as feiras livres de
9 Poço de boca aberta é uma expressão utilizada pelos agricultores para os poços construídos de forma artesanal para captação de água subterrânea. Ou seja, as pessoas perfuram o solo verticalmente até chegar ao lençol freático, espera-se passar alguns dias da construção para que ocorra a limpeza da água (suja com os resíduos do próprio solo durante o trabalho de perfuração) para o consumo.
venda e compra de mercadorias. As motos e bicicletas também são comuns para o deslocamento dentro das localidades.
Tendo em vista a organização das famílias em torno do trabalho, analisei mais especificamente o trabalho das mulheres. Para isso, caracterizei as atividades no sistema produtivo em dois momentos distintos: antes e depois do cultivo do dendê no lote, como detalharei a seguir.
4.1 ATIVIDADES COTIDIANAS ANTES DA IMPLANTAÇÃO DO DENDÊ
Na Amazônia, as atividades realizadas pelas mulheres na agricultura familiar geralmente são associadas ao espaço da casa, consideradas como trabalho doméstico. Entretanto, elas possuem papel crucial para os seus grupos domésticos na coleta de produtos da biodiversidade (SIMONIAN, 2001, LIMA, 2012), no trabalho no roçado (MOTTA-MAÚES, 1993; XXXXXXX, 2009, XXXXXXX, 2016), na pesca (XXXXXXXX, 2013; XXXXXX; SIQUEIRA; DI XXXXX, 2014) no processamento de
produtos (RIBEIRO, 2016) e em atividades não agrícolas na cidade, como fazer compras, resolver assuntos escolares dos filhos ou documentos familiares e receber o Bolsa Família.
No contexto estudado, as atividades domésticas e determinadas tarefas no roçado são de responsabilidade das mulheres, tal qual em diferentes estudos em outras regiões e períodos. No geral, são elas que trabalham diariamente nas atividades realizadas em casa, o que quer dizer que elas cuidam da limpeza da casa, preparo dos alimentos, criação dos filhos e idosos, cuidados com os animais da família (animais de estimação principalmente).
De todas as entrevistadas, 83,3% são responsáveis pelos afazeres domésticos, recebendo auxílio constantemente dos filhos quando estes são crianças. Porém, na maioria das vezes, à medida que as crianças crescem, as meninas continuam nas tarefas domésticas, e os meninos auxiliam os homens nas tarefas do roçado. Na região do Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, Wedig e Menasche (2013) chamaram a atenção para a socialização de atividades para os filhos desde cedo, reproduzindo os mesmos modelos de socialização masculino e feminino, assim como constatado neste estudo.
Particularidades têm sido observadas no Pará quanto às mudanças decorrentes das transformações no espaço rural que afetam diretamente as relações de trabalho, principalmente na dinâmica de transmissão de saberes entre gerações. Xxxxxxx (2009) mostrou que tarefas realizadas pelas crianças na agricultura familiar sofreram alterações por causa das medidas e políticas públicas que enquadraram o trabalho das crianças na agricultura familiar no mesmo patamar da exploração do trabalho infantil, negando as especificidades desse modo de vida e transmissão de saberes. A autora relata a preocupação das mães em relação ao benefício do programa Bolsa Família na medida em que as exigências do mesmo pode desestruturar a socialização das crianças no trabalho agrícola, dificultando que elas acompanhem os pais nos trabalhos realizados pela família.
É importante destacar que, no que tange à criminalização do trabalho infantil, a participação das crianças e adolescentes não sofrem alterações na mesma proporção em todos os lugares. De forma geral, nos casos estudados, durante a realização da pesquisa foi frequente, entre as famílias que moram no estabelecimento agrícola, observar a participação das crianças nas atividades realizadas pela família, seja em casa, na produção de farinha ou no roçado. O mesmo não foi constatado nos centros das localidades, onde as famílias possuem outras dinâmicas, e, segundo as mães, as crianças dificilmente acompanham os adultos nas tarefas do roçado.
As tarefas realizadas pelas mulheres no âmbito doméstico têm papel fundamental para a reprodução do grupo doméstico (XXXXXX XX, 1983), mas não são consideradas trabalho quando comparado àquelas realizadas na produção. Apesar de muitas mulheres reconhecerem o caráter laboral das atividades domésticas, foi comum ouvir das próprias mulheres que seus afazeres domésticos não são trabalho. De modo geral, elas se apresentavam como donas de casa, e quando questionadas sobre as atividades agrícolas, referiam-se a si mesmas como “ajudantes” dos homens da família em tais atividades.
Para Xxxxxx e Kergoat (2007), as razões para tal diferenciação se definem na divisão sexual do trabalho alicerçada sobre os princípios de separação (trabalho de homem e trabalho de mulher) e hierarquia (trabalho masculino tem maior valor). Ou seja, na agricultura familiar convencionou-se a afirmar que o roçado é o local de
domínio do homem, e a casa é de domínio da mulher. Essa diferenciação atribui, por um lado, ao sexo masculino a esfera produtiva, e do outro lado, ao sexo feminino a esfera da reprodução e consequentemente a aceitação das funções feitas por homens como portadores de maior valor social (político, religioso, militar e etc.).
É por meio do trabalho no roçado que se garante a reprodução familiar, primeiro através da força de trabalho nas tarefas desempenhadas, e depois pelo consumo de seus membros. Assim como nas pesquisas de Xxxxxx XX, (1983); Xxxxxxx-Xxxxxx (1984); Xxxxxxx (1987); Xxxxxxxxx; Xxxxxxxxx (2002) e Xxxxxxx
(2009).
Essa visão é questionada nesse estudo quando se confirma a participação das mulheres em atividades do roçado, muito embora a visão segundo a qual o trabalho da mulher é uma “ajuda” ao grupo doméstico seja reforçada pelas próprias entrevistadas, ou seja, as próprias entrevistadas se “invisibilizam” quando se referem ao seu trabalho como “ajuda” ao grupo doméstico.
De algum modo, ao longo dos anos, essa visão foi reforçada por pesquisadores que estudam relações de hierarquia familiar ou socioeconômicas, ao que Neves e Motta-Maués (2013) chamou de “cegueira metodológica”. Até mesmo as mulheres com contratos de produção em seus nomes identificam-se como donas de casa que “só ajudam” os maridos na roça, ainda que pelo menos 60% dessas mulheres já trabalhassem nas atividades agrícolas antes e continuaram após o advento do dendê.
Tanto neste estudo quanto em outros, encontrei essa mesma percepção de “invisibilidade” do trabalho da mulher quando a produção se dá a partir trabalho familiar. No caso estudado por Xxxxx-Xxxxx (1993), em uma comunidade pesqueira em Vigia-PA, apesar de o roçado ser concebido predominantemente como feminino, há duas formas de representação das atividades do roçado: na primeira, própria comunidade vê as mulheres como as “donas da roça”; na segunda, nos espaços públicos a roça pertence aos homens, por serem eles os proprietários da terra. Motta-Maués (1993) relativiza o roçado como espaço masculino e demonstra que não é a natureza do trabalho que irá definir o que é trabalho ou não trabalho, mas a representação simbólica e social daqueles que o executam.
Na minha pesquisa de campo, reconstruí a participação das mulheres em todas as atividades referentes ao roçado, contrariando até mesmo a própria forma que as mulheres se identificaram. Através dos cultivos é possível indicar a importância da participação feminina como mão de obra familiar necessária ao conjunto dos trabalhos realizados pela família, ou seja, 23 mulheres já realizam atividades específicas no roçado, com os cultivos discriminados na tabela 2:
Tabela 2: Trabalho das mulheres nos cultivos no passado em São Domingos do Capim.
Cultivos | Número de mulheres |
Mandioca | 08 |
Mandioca + Feijão + Milho | 05 |
Mandioca + Feijão + Milho + Arroz | 02 |
Mandioca + Açaí | 02 |
Mandioca + Milho | 01 |
Mandioca + Feijão | 01 |
Mandioca + Feijão + Arroz | 01 |
Mandioca + Milho + Açaí | 01 |
Mandioca + Feijão + Milho + Urucum | 01 |
Mandioca + Milho + Pimenta do reino | 01 |
Não trabalhavam na roça | 03 |
Não souberam explicar | 04 |
TOTAL | 30 |
Fonte: Pesquisa de campo, 2016.
Normalmente, elas trabalhavam no cultivo de mandioca, associado ou não a outras culturas. Na tabela 2 se percebe que 08 mulheres trabalhavam somente com o cultivo de mandioca, seguidas por aquelas que trabalhavam com mandioca, feijão e milho. As demais culturas associadas à mandioca foram citadas em menor quantidade.
Na pesquisa sobre a organização do trabalho familiar numa comunidade rural no Nordeste Paraense, Xxxxx e Mota (2013) analisaram minuciosamente as práticas diárias do trabalho, desconstruindo a idealização do que seria trabalho de mulher e trabalho de homem ao constatarem que a organização do trabalho é reestruturada dependendo da necessidade de força de trabalho.
Para Xxxxxxxxx (2008), há uma lógica dominante sobre a unidade doméstica e produtiva que sustenta as oposições entre homem e mulher, casa e roçado, público
e privado. Segundo a autora, os dois sistemas compõem os princípios que se ampliam e se sobrepõem, vinculando o homem com o mundo exterior e político, enquanto a mulher é reduzida aos espaços da família, da intimidade e do segredo. Apesar do esforço acadêmico de estudiosas e do político de mulheres rurais, essa visão tradicional ainda é reproduzida, seja pelos objetos de estudo observado, seja pelas próprias mulheres nesse espaço.
4.2 O ADVENTO DO DENDÊ
Como tratei no capítulo 2, nas últimas décadas ocorreu um processo de incentivo para o cultivo do dendê no município, promovido pelo governo federal e empresas estrangeiras com filiais no Brasil. Nessa perspectiva, para Xxxxx e Xxxxxxxxx (2016), o processo de expansão da dendeicultura foi capaz de mobilizar vários agentes, como cita nesse parágrafo:
A implantação do cultivo do dendê em grande escala no Estado do Pará, e mais especificamente, no território que integra o município de São Domingos do Capim, conta com ações desempenhadas pelo Estado (governos Federal, Estadual e Municipal); por instituições de pesquisa; por agências de fomento; e por organizações de representações de agricultores que entendem esse (mono) cultivo como uma possibilidade de desenvolvimento econômico e social para a região. Esta ação é, sobretudo, marcada por incentivos financeiros e políticos concedidos às empresas produtoras de óleo de palma (GOMES; MAGALHÃES, 2016, p. 2).
Esse processo gerou expectativas na população local. Inicialmente houve a mobilização de agricultores como divulgadores dos benefícios da dendeicultura, uma visita dos agricultores a Moju para visitar agricultores sob integração, e a divulgação da possibilidade de uma processadora se instalar de dendê na comunidade de Perseverança em São Domingos do Capim (NAUM; BASTOS, 2014). Ou seja, houve um peculiar processo de convencimento com “atenção especial” para os potenciais agricultores a terem contrato de produção através da divulgação das vantagens daí advindas (assistência técnica, crédito via Eco-Dendê e mercado).
Tudo isso num contexto em que as recorrentes perdas de produção causadas pela podridão da mandioca e as dificuldades de comercialização desestimulavam os agricultores a persistirem com o mesmo cultivo e os incentivava a buscar por
alternativas. Como afirmou Xxxxx (agricultora, 30 anos) “Eu já estava cansada de trabalhar com a mandioca e queria algo mais duradouro”.
Com o propósito de caracterizar os motivos pelas quais os contratos estão no nome das mulheres, elaborei uma tipologia a partir das diferentes razões argumentadas por elas, levando em consideração dados objetivos e as particularidades, tais como: idade, nível de escolaridade, estado civil e número de filhos e atividades assumidas após o contrato de produção.
4.2.1 As mulheres com contratos em seus nomes: quais as razões?
14%
33%
33%
20%
A fim de analisar as razões pelas quais as mulheres assinaram contratos de produção, elaborei uma tipologia agrupando as mulheres em quatro diferentes grupos: A) Mulheres que assinaram o contrato por decisão própria; B) Mulheres que assinaram o contrato por decisão de um homem da família (pai/filho/marido); C) Mulheres que assinaram o contrato por decisão familiar; e D) Mulheres que não conseguiram explicar por que o contrato está em seus nomes (gráfico 1).
Grupo com decisão própria
Grupo com decisão de um homem Grupo com decisão familiar
Grupo que não conseguiu explicar
Gráfico 1: Razões para a assinatura do contrato em nome das mulheres para a produção de dendê
Fonte: Pesquisa de campo, 2016.
A) Mulheres que assinaram o contrato por decisão própria
As mulheres nesse grupo possuem em comum a vontade de ter um projeto em seu nome, somam 10 mulheres e representam 33,5% do total (gráfico 1). Nas entrevistas foram citados diferentes motivos para a titularidade dos contratos de produção em seus nomes:
“Pensei em melhorar porque eu queria uma renda melhor, conforme o informado pela empresa. E mesmo assim, a roça não dava mais, estava morrendo tudo, e a gente precisa plantar outras coisas” (Xxxxxxxxx, 47 anos, divorciada, agricultora).
“Assisti na televisão que o Lula ia implantar o dendê na região de Tomé-açu e se viesse para cá eu iria pegar” (Xxxxxx, 50 anos, casada, agricultora).
Nas duas falas percebi a vontade dessas mulheres em investir em uma nova atividade pela possível geração de renda ou ampliação das atividades agrícolas. O fato é que elas também estão envolvidas nas decisões quanto à gestão das atividades ligadas à produção.
As mulheres com contratos de produção em seus nomes têm o seguinte perfil:
Tabela 3: Características das mulheres com contratos de produção a partir da decisão própria.
Nome fictício | Idade | Escolaridade | Estado Civil | Quant. de Filhos |
Amarílis | 71 | 8ª E.F.10 | União Estável | 02 |
Dália | 30 | 7ª e 8ª E.F. | Casada | 04 |
Sempre Viva | 31 | 6ª E. M.11 | Casada | 03 |
Íris | 36 | 4ª E. F | União Estável | 04 |
Bromélia | 46 | 5ª E.F. | Casada | 05 |
Margarida | 47 | 1ª E. F. | Divorciada | 07 |
Verônica | 49 | 2ª E. F. | União Estável | 02 |
Aurora | 50 | 1ª E.F. | Casada | 06 |
Hortência | 54 | 5ª E. F. | Casada | 07 |
Alfazema | 71 | 2ª E. F. | Viúva | 08 |
Fonte: Pesquisa de campo, 2016.
A tabela 3 mostra que neste grupo as mulheres têm em média 44 anos e, no geral, possuem o ensino fundamental incompleto. São todas casadas, com uma
10 A sigla E.F. está sendo utilizada para abreviar as séries do Ensino Fundamental.
11 A sigla E.M. está sendo utilizada para abreviar as séries do Ensino Médio.
média de 05 filhos. Por meio das entrevistas constatei que nesse grupo 03 mulheres já haviam adquirido créditos bancários em seus nomes para financiamento de atividades agropecuárias em momentos anteriores.
Após a integração com as agroindústrias, ocorreu uma reorganização nas tarefas realizadas por elas. Foi o que atestei ao concluir que quatro mulheres passaram a trabalhar com o dendê e, pelo menos, mais duas culturas (arroz, feijão, milho, açaí, pimenta do reino etc.); três trabalham somente com o dendê (nesse caso, duas mulheres deixaram de trabalhar com mandioca, e dedicam-se somente ao dendê); duas trabalham com o dendê e mandioca; e apenas uma trabalha só com a mandioca.
B) Mulheres que assinaram o contrato por decisão de um homem da família (pai/filho/marido ou irmão)
Esse grupo é constituído de mulheres que aceitaram o contrato no próprio nome após serem convencidas por um dos homens da família (pai, filho, marido ou irmão). Ao todo, representam 20% do total de mulheres com contratos (gráfico 1). De certo modo, ter o contrato no próprio nome pode significar prestígio para essas mulheres, assim como aquelas com decisão própria, porque são elas a quem se procura frequentemente para resolver as situações burocráticas referentes ao projeto do dendê, bem como pela assistência técnica, mesmo que seja para assinar documentos de rotina.
Conforme mostra o depoimento de uma mulher deste grupo, fazer o contrato no próprio nome foi uma estratégia para superar as dificuldades de um membro da família, sem, no entanto, não contrair um possível endividamento de tal membro, no caso, seu esposo:
“Já havia feito outros projetos no nome (xxxx e gado), e o marido não gosta de fazer empréstimos com o banco, mas tinha vontade de plantar o dendê e decidi fazer em meu nome” (Xxxx xx xxx, 45 anos, casada, agricultora).
Outro exemplo é o de Xxxxxxx (66 anos, viúva, aposentada), que fez o contrato porque os filhos queriam o projeto do dendê, mas não podiam realizá-lo em seus nomes devido à titularidade pertencer à Xxxxxxx. Mesmo que ela não tenha se
recusado ou decidido pelo contrato, durante a entrevista comentou sua participação em todas as reuniões promovidas sobre a dendeicultura.
A tabela abaixo apresenta o perfil das mulheres deste grupo:
Tabela 4: Características das mulheres com contratos de produção a partir da decisão de um homem.
Nome fictício | Idade | Escolaridade | Estado Civil | Quant. de Filhos |
Orquídea | 25 | E. M. C.12 | Casada | 0 |
Xxxxxxxx | 33 | 4ª E. F | União Estável | 02 |
Flor de lis | 45 | 4ª E. F | Casada | 05 |
Tulipa | 48 | 4ª E.F. | Casada | 04 |
Mimosa | 59 | 1ª E.F. | Solteira | 0 |
Nigella | 66 | N. F. E.13 | Viúva | 08 |
Fonte: Pesquisa de campo, 2016.
Como pode ser visto na tabela 4, a média de idade gira em torno de 46 anos. A maioria possui o ensino fundamental incompleto e também são casadas. A média de filhos nesse grupo foi de 4 por mulher.
Nesse grupo apenas um mulher já havia obtido crédito bancário para investir em atividades agropecuárias, mas sempre foi o marido quem desempenhou todas as atividades nesse espaço. Nesse caso, antes da família comprar o lote em que mora atualmente, o homem, esposo da entrevistada, era vaqueiro de uma fazenda nas redondezas da região, e pouco trabalhavam com o roçado. Somente após a compra da terra iniciaram as atividades de produção agrícola, mas, segundo ela, agora os filhos estão grandes, e ela não precisaria mais “ajudar” o marido nessas atividades.
Quanto às atividades de produção agrícola, três mulheres afirmaram não participar das mesmas, duas trabalham com mandioca e apenas uma trabalha com a mandioca e o dendê. Para as mulheres desse grupo, se não houve tantas mudanças para as atividades produtivas, não ocorreu o mesmo em relação às novas possibilidades de participação em espaços de circulação relacionados ao dendê.
12 A sigla E.M.C. está sendo utilizada para abreviar as séries d o Ensino Médio Completo.
13 A sigla N.C.E. está sendo utilizada para abreviar quem Não Frequentou a Escola.
C) Mulheres que assinaram o contrato por decisão familiar
Este grupo é formado por mulheres que, ao longo de conversas com familiares e amigos que já haviam plantado o dendê, resolveram, em conjunto com a família, fazer o contrato em seus nomes. Esse fato indica que, através de uma decisão familiar, os membros do grupo doméstico estavam buscando tentativas para continuar com o trabalho agrícola e permanecer na propriedade. Eles desejavam plantar algo além da roça de mandioca, que na região ocasiona recorrentes perdas na produção:
“A roça morria muito e queria algo que a gente pudesse ter algum lucro, daí resolvemos pegar esse dendê, até para os meninos trabalharem, né?” (Jasmim, 40 anos, casada, agricultora).
Esse grupo representa 33,3% (10 mulheres) e os seus perfis podem ser visualizado na tabela 5. Dentre os 4 grupos, é este o que representa a segunda colocação quanto ao envolvimento das mulheres nas atividades agrícolas.
Tabela 5: Características das mulheres com contratos de produção a partir da decisão familiar.
Nome fictício | Idade | Escolaridade | Estado Civil | Quant. de Filhos |
Papoula | 29 | Nível superior | Solteira | 0 |
Flor de lótus | 30 | 6ª E.F. | União Estável | 03 |
Astér | 37 | 8ª E. F. | Casada | 03 |
Gardênia | 38 | 8ª E. F. | União Estável | 08 |
Camélia | 39 | 1º E. M. | União Estável | 03 |
Jasmim | 40 | N. F. E. | Solteira | 07 |
Xxxxxxx | 40 | 4ª E.F. | Casada | 08 |
Petúnia | 60 | 2ª E. F. | Viúva | 09 |
Rosa | 76 | N. F. E. | Casada | 11 |
Gérbera | 81 | N. F. E. | Solteira | 06 |
Fonte: Pesquisa de campo, 2016.
Como podem ser observadas na tabela 5, elas têm em torno de 47 anos. O nível de escolaridade é diversificado: há desde mulheres que frequentaram a escola a mulheres que não concluíram o ensino fundamental, incluindo até uma que está cursando nível superior. A maioria é casada. Possuem em média 6 filhos.
Como no grupo com decisão de um homem, apenas uma já havia contraído crédito bancário para financiar atividades de produção agrícola. Este grupo, porém,
diferencia-se do anterior pelo fato de elas aqui se posicionarem favoravelmente em prol da escolha feita pelo grupo doméstico.
Assim, constatei que nem todas deste grupo trabalham nas atividades agrícolas atualmente. Quanto às que trabalham, elas combinam a mandioca, milho e dendê (2), mandioca e dendê (3), e mandioca, açaí e dendê (1). Quatro não trabalham em nenhuma atividade produtiva.
D) Xxxxxxxx que não conseguiram explicar porque o contrato está em seus nomes.
Esse grupo é constituído por mulheres que não conseguiram explicar por quais razões os contratos foram realizados em seus nomes. Representam 13% (4 mulheres). A tabela 6 mostra os perfis delas:
Tabela 6: Características das mulheres que não conseguiram explicar os motivos do contrato ser em seu nome.
Nome fictício | Idade | Escolaridade | Estado Civil | Quant. de Filhos |
Magnólia | 49 | 1ª E. F. | Casada | 12 |
Ivy | 50 | N.F.A. | União Estável | 06 |
Violeta | 54 | N.F.A. | Casada | 10 |
Edalvis | 72 | N.F.A. | Viúva | 09 |
Fonte: Pesquisa de campo, 2016.
As mulheres que compõem esse grupo têm maior média de idade no geral, em torno de 56 anos. Possuem o menor nível de escolaridade (não frequentaram a escola). A maioria é casada e com a maior média de filhos, em torno de 9, apresentando, portanto, características que ressaltam o fato de pertencerem a outra geração.
Pode-se atentar para o fato de que, nesta pesquisa, não foi possível levantar informações profundas capazes de nos fornecer explicações sobre as razões por que os contratos foram realizados em nomes das mulheres. São mulheres com problemas de saúde, que não trabalham no cultivo e que foram incapazes de explicar quaisquer fatos sobre o dendê no lote familiar. As informações básicas presentes sobre elas foram passadas por parentes.
4.2.2 Perfil das mulheres com contratos de produção
A faixa de idade das mulheres dos grupos com decisão própria, decisão de um homem e familiar está entre 40 a 50 anos. Num estudo de Xxxx e Xx Xxxxxxx (2008), as mulheres com idades próximas (entre 30 e 49 anos) representaram 56% das responsáveis pelos lotes oriundos da reforma agrária.
Como notou as autoras, nessa fase da vida há uma proporção elevada de mulheres com filhos adolescentes ou já adultos, que não dependem de cuidados exclusivos, permitindo-lhes uma dedicação aos trabalhos produtivos e reorganização das atividades domésticas. Resultados parcialmente parecidos foram analisados por Xxxxx (2006), que percebeu em sua pesquisa que, para as mulheres, as atividades produtivas se concentram na faixa etária compreendida entre 41 a 50. Ou seja, é o período em que as mulheres participaram mais ativamente dos programas de microfinanciamento para atividades agropecuárias, agroindustriais e artesanais.
Independente de qual seja o grupo a que as mulheres fazem parte, observei que mulheres com filhos pequenos possuem maiores dificuldades em sair de casa e deixar as crianças com terceiros para resolver qualquer problema. Até mesmo no roçado elas trabalham menos quando seus filhos estão pequenos. Esses fatores não são restritos ao meio rural, segundo o que relatou o panorama dos estudos de Xxxxxxxxx (2007) e Xxxxxx (2011) sobre a inserção das mulheres nas atividades do mercado de trabalho no Brasil, com a constatação de que os níveis de participação das mulheres nas atividades produtivas são menores quanto menor seja a idade dos filhos. Essa realidade também foi observada por Xxxxxxxx (2010) em duas comunidades rurais do Uruguai, em que as dificuldades de participação em reuniões comunitárias são justificadas pelo tempo dedicado aos cuidados com os filhos pequenos.
Como apontado por Xxxxxxxxx (2009) e Xxxxxx e Xxxxxx (2013), ambos no Rio Grande do Sul, as mulheres com maior idade (em todos os grupos), embora tenham força de trabalho reduzida, já contribuem financeiramente com a aposentadoria, essencial para equilibrar o orçamento familiar, principalmente com alimentos e remédios, e ainda ajudam os filhos e os netos que estão sob sua responsabilidade. Para Xxxxxxxx (2013), a aposentadoria feminina, além de possibilitar uma renda fixa,
contribui para que ocorram mudanças nas relações entre homens e mulheres na família e possibilita a elevação da autoestima destas.
O que chamou a minha atenção foi que as mulheres com maior idade, principalmente as viúvas, xxxxxx em trazer os filhos, que saíram para trabalhar em outros locais, de volta para a terra. Assim, segundo elas, plantaram o dendê para, que pelo menos um filho/a, possa se beneficiar dos seus resultados. Ou seja, é uma atividade para os filhos trabalharem, garantindo renda durante longo período, como foi prometido no ato da implantação da cultura.
Quanto ao número de filhos, as mulheres do grupo que não conseguiram explicar por que têm os contratos em seu nome têm a maior média de filhos (nove), seguidas pelo grupo com decisão familiar (seis) e o grupo com decisão própria (quatro). O grupo com menor número de filhos foi o de mulheres que assinaram o contrato a partir da decisão de um homem da família, com três filhos.
Segundo Xxxxxxx (2000), a queda do número de filhos se configura como tendência mundial, influenciando positivamente na participação das mulheres em atividades de produção agrícola. Muito embora esse fenômeno seja mundial, as taxas de diminuição se diferem entre as regiões geográficas de norte a sul e entre áreas urbanas e rurais no Brasil. Apesar da queda de fertilidade, os índices registrados na região norte e em áreas rurais continuam altas. Foi o que constatei ao identificar que a média do número de filhos das mulheres integradas está acima da nacional, enquanto nas pesquisas de Xxxxxxx (2006), Xxxxxxx (2012) e Xxxxxx e Xxxxxx (2013), a média foi de dois filhos na região Sudeste e Sul.
A redução do número de filhos vem acompanhando a queda em nível nacional das trabalhadoras rurais, como apontado por Xxxxxxx (2006) Xxxxxxx (2012) e Xxxxxx e Xxxxxx (2013). As mulheres jovens possuem menos filhos por opção, pois querem proporcionar investimentos maiores nos estudos dos filhos, sejam eles crianças ou adolescentes. O esforço desempenhado para a educação dos filhos demonstra a vontade das mães de proporcionar “qualificação” e consequentemente mais oportunidades à sua prole.
Em virtude da redução do número de filhos e da maior valorização da educação por parte das famílias, todas as crianças e adolescentes estão
frequentando a escola, seja na própria localidade, seja em localidades próximas ou na sede do município. Esse deslocamento depende do nível de escolaridade no qual elas estão matriculadas. Das crianças que estão nos anos iniciais do ensino fundamental, nove estudam em escolas municipais, na própria localidade ou em cidade próxima.
Em alguns casos constatei que há uma perspectiva de continuidade dos estudos após o ensino médio entre adolescentes e adultos e de permanência na propriedade. Esse resultado mostra-se na contramão dos achados de Xxxxxxx (2012), que observou que quanto maior o nível de escolaridade, menor serão as chances dos indivíduos permanecerem no meio rural.
Quanto ao nível de escolaridade das mulheres, nota-se que não há diferenças significativas entre os grupos, e no geral 67% possuem o ensino fundamental incompleto (20 mulheres); 7% possuem o ensino médio completo (2 mulheres) e 3% possuem o ensino médio incompleto (apenas 1). Por outro lado, 23% das mulheres não frequentaram a escola, o que corresponde a 7 mulheres no total.
As mulheres que não frequentaram a escola estão todas acima dos 40 anos de idade. E ao narrarem suas histórias, recordaram a precariedade de acesso às escolas (ressaltam a distância entre suas localidades e as escolas mais próximas, falta de transporte escolar e a condição financeira dos pais) como justificativas de não terem estudado. Xxxxxxx (2012), comparando as etapas escolares entre os homens e mulheres, constatou que as mulheres são mais propensas a seguirem estudando, apresentando inclusive maior nível de escolaridade que os homens. Examinando os dados da situação das mulheres no mercado de trabalho brasileiro, Xxxxxxxxx (2007) mostrou que, em média, a escolaridade das mulheres é visivelmente superior à dos homens, ultrapassando 11 anos de estudo a mais que eles, contudo, observei que no meio rural estudado, as mulheres possuem um baixo nível de escolaridade, além disso, há um contraste entre as mulheres mais jovens e mais idosas, onde as últimas possuem pouco ou não frequentaram a escola.
Esse fato é constatado nesta pesquisa com a situação de Xxxxx, 30 anos, casada. Ela está cursando a 8ª série do ensino fundamental. Essa mulher voltou a estudar após a realização do contrato em seu nome. Segundo ela, após tomar
consciência de não entender as cláusulas do contrato resolveu voltar para a escola e prosseguir estudando.
Com relação ao estado civil, analisei que, no grupo com decisão própria, todas as mulheres são casadas; no grupo com decisão de um homem, apenas uma é solteira, e a outra, viúva; no grupo com decisão familiar, há duas solteiras e uma viúva; e no grupo das que não conseguiram responder, há apenas uma viúva. Em suma, mais de 70% são casadas. Todavia, apesar de se considerar aqui neste estudo “casadas” todas aquelas que moram na mesma residência com um cônjuge, isso não corresponde à visão das mulheres entrevistadas. O fato de ter um cônjuge e morar na mesma residência não é considerado casamento, mas uma condição de “união estável”, pois para elas o casamento constitui um contrato registrado em cartório e/ou religioso.
Ao enfatizar a autodesignação das mulheres que assinaram contrato de produção de São Domingos do Capim, averiguei que 83% se dizem agricultoras, e 17% se autodesignam como aposentadas. Muitas autodesignarem-se como “donas de casa” e “ajudantes” do marido nos diferentes trabalhos realizados no estabelecimento familiar. É provável que as mulheres se identifiquem dentro de seu grupo geralmente com o termo “dona de casa”, responsáveis pelos afazeres domésticos, cuidados com a casa e os filhos, e vejam seu trabalho no roçado como “ajuda” ao marido.
Por outro lado, o termo “agricultora” é usado quando as mulheres buscam os benefícios sociais, tal como apontaram as pesquisas de Xxxxxx (2004) e Siliprandi (2009) sobre os direitos à previdência social (após a constituição de 1998): para solicitar tanto a aposentadoria como a licença-maternidade, é necessária a comprovação de sua condição de trabalhadora rural.
4.2.3 Acesso aos contratos e crédito
De modo geral, o processo de integração entre agricultores e agroindústria consiste em um sistema realizado sob contrato entre as partes envolvidas. Nesse caso, os agricultores se comprometem a produzir determinada matéria-prima dentro
dos quesitos exigidos pela agroindústria, enquanto esta se compromete a comprar toda a produção dos agricultores (XXXXXX, 2013).
Levando em consideração o processo de integração, Paulilo (1990) refere-se a tal relação entre camponeses e empresa como uma situação mercadológica. Assim, a autora caracteriza a integração como uma elevação de oportunidades que permitem a aquisição de insumos agrícolas e aproxima o produto final do mercado, mas também como um fator que traz ao debate o “campo de forças” entre os envolvidos.
Para que o contrato de integração seja realizado, o(a) agricultor(a) precisa possuir, além dos documentos básicos exigidos (CPF, Identidade, certidão de casamento) pela instituição financeira, a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) como requisito indispensável para ter acesso ao financiamento bancário em qualquer linha de crédito do PRONAF (PRONAF ECO)14. Além disso, é necessário ser dono da terra e possuir mão de obra familiar suficiente para trabalhar na produção.
Se por um lado, os critérios exigidos para a concessão do crédito referente ao Pronaf dificultam ao homem acessar o financiamento através de um contrato no próprio nome (documentos, dívidas com as agências bancárias ou saber assinar o contrato), por outro, são geralmente as mulheres entrevistadas que atendem aos requisitos e têm as documentações civis exigidas: carteira de identidade, CPF.
Diante desse novo cenário, ressalto os trabalhos de Xxxxxxx e Xxxxxxxxxx (2011); Siliprandi (2013) e Ferrante et al. (2013) e Xxxxx et al. (2014), que destacaram a criação do Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural (PNDTR)
14 PRONAF ECO – Linha de crédito destinado a financiar especificamente projetos para a cultura do dendê ou seringueira. O investimento do crédito consiste em custear as despesas com a implantação e manutenção da cultura até o quarto ano. O prazo de pagamento para a cultura do dendê é de 14 anos, incluindo até 6 (seis) de carência, enquanto para a seringueira são até 20 anos, com até 8 (oito) anos de carência. As taxas de juros são de 5,5% a.a, conforme o credito acionado. O limite do crédito para a cultura do dendê é de R$8.800,00 (oito mil e oitocentos reais) por hectare e para a seringueira R$16.500,00 (dezesseis mil e quinhentos reais) por hectare (CANAL RURAL, 2015).
como política em benefício das mulheres trabalhadoras por meio do acesso aos documentos básicos.
O que mais me chamou atenção foi a importância do título da terra, sem dúvida, amplamente contemplado nas vozes das entrevistadas. Além disso, as DAPs também foram emitidas em nome daquelas (es) que possuem a posse da terra em seu nome. Esses motivos podem ter influenciado a família a julgar as mulheres como mais propensas para acessar o crédito bancário. Nas narrativas das mulheres e, em alguns casos, de seus companheiros, eu pude inferir que em vários casos, mesmo que de modo implícito, a regularização fundiária influenciou a “escolha” do contrato de produção ter sido realizado em nome delas. Essa dimensão se articula e se complementa com a instrução normativa nº 38/2007 do INCRA, que tornou obrigatório a inclusão de mulheres como beneficiárias da reforma agrária.
Ou seja, o fato das mulheres serem beneficiárias da reforma agrária em conjunto com outras variáveis contribuiu, em parte, para que os contratos fossem realizados em seus nomes em São Domingos do Capim. Segundo Xxxx e Xx Xxxxxxx (2008), a titularidade da terra em nome da mulher e seu cônjuge (consta no documento, mas não é o principal) lhe possibilita o acesso a créditos agrícolas e maior participação na produção, inferindo-se assim, maior autonomia em relação às atividades produtivas.
A portaria nº 981/2003 do INCRA definiu que, em casos de separação dos cônjuges, o lote, se ainda estiver em fase de regularização fundiária, deverá ficar sob a posse da mulher, desde que ela seja a responsável pela guarda dos filhos. Foi o caso de Xxxxxxxxx (47 anos, agricultora), que após o divórcio ficou com o lote que pertencia à família e fez o contrato de produção para produção de dendê.
Por vezes, ter o documento da terra é uma das exigências para a aprovação do Pronaf Eco Dendê, condição que influenciou para acelerar o processo da obtenção do crédito, como esclareceram Hortência (54 anos, agricultora, casada) e Gardênia (38 anos, agricultora, casada), quando elucidaram que a terra está em seus nomes.
No âmbito da minha pesquisa, realizei um cruzamento dos dados obtidos em campo com a regularização fundiária da região, haja vista que 73% das mulheres
integradas residem em localidades que pertencem a assentamentos15 de reforma agrária criados a partir do ano 2000 no formato de regularização fundiária, peculiaridade da Amazônia. Outras 27% residem em localidades tradicionais16.
Segundo algumas entrevistadas, houve a sugestão de representantes da agroindústria para que o contrato de produção fosse realizado em seus nomes devido ao fato de elas saberem “assinar o nome”. Ou seja, o fato das mulheres terem estudado mais que os homens da família influenciaram a “decisão” de o contrato ser realizado em seus nomes. Essa justificativa, no entanto, não contempla todos os casos aqui estudados, pois há um percentual de 22% das entrevistadas que não estudaram e não sabem assinar o nome.
Observei também que as mulheres têm “pouca” preocupação quanto ao valor do projeto de financiamento bancário. Em muitos casos, elas não souberam me informar questões referentes ao financiamento sem antes verificar os papéis do contrato, inclusive o valor, taxas de juros e período para quitação. Mas no que diz respeito a esse tema, as mulheres não são uma exceção. Em sua pesquisa, Xxxxxx (2015) observou que em comunidades rurais no município de Moju e Tailândia, 56% dos agricultores não compreendiam as cláusulas do contrato de produção, sendo este problema generalizado, o que mostra a desproporcionalidade entre os agricultores e as agroindústrias.
Para determinadas mulheres, a titularidade da terra em seu nome contribuiu para que todos os projetos da família sejam feitos em seu nome. Os homens, nesses poucos casos, não gostam de se “endividar” com as agências bancárias, como ficou claro nessa conversa:
"Aqui é tudo no meu nome: terra e projetos. O marido não queria o dendê e eu queria [...] e fui à reunião, vi como seria e resolvi pegar” (Hortência, 54 anos, casada, agricultora).
15 Em São Domingos do Capim os assentamentos de reforma agrária são formados, em sua maioria, por antigas localidades, onde seus habitantes consideraram a regularização fundiária como a possibilidade de acesso a serviços básicos (aquisição de bens de trabalho, eletrodomésticos, instalação elétrica, abertura de estradas, construções de casas de alvenaria, água encanada, entre outros) e crédito.
16 As localidades tradicionais evidenciam-se no formato tradicional dos primeiros habitantes, com a particularidade de que eles conseguiram regularizar as suas terras independentemente do Estado.
Nesses casos as mulheres visam, por meio da instalação do projeto, melhorias na qualidade de vida da família, o que acaba por envolver todos os seus integrantes após realização do contrato de produção nas diferentes etapas do cultivo do dendê.
4.3 ATIVIDADES COTIDIANAS APÓS A IMPLANTAÇÃO DO DENDÊ
Após aprovados os trâmites legais para a implantação dos cultivos, foi realizada a escolha da área (entre 5 e 10 ha), realização do preparo da área e plantio. Há casos de agricultoras que, nesse processo, foram incentivadas a plantarem outros cultivos na área com o dendê, enquanto outras foram proibidas de fazer o mesmo. Como mostrou Mota et al. (2015):
No universo investigado, 70% dos agricultores afirmaram que o consórcio não é permitido pela empresa, sob diferentes argumentos, dentre os quais, a concorrência com o dendê (MOTA et al., 2015, p. 123).
Ademais, ocorreu um acompanhamento por parte dos técnicos responsáveis pela assistência técnica nos primeiros três anos após a implantação nos lotes da agricultura familiar. Devido às diversas dificuldades que ocorrem durante a fase de implantação do cultivo, muitos homens estão insatisfeitos com o dendê, diminuindo seu interesse e dedicação direta com o dendenzal.
Por outro lado, essas dificuldades aumentaram a preocupação e forçaram a maior inserção das mulheres nessas atividades, uma vez que na maioria dos casos, a possibilidade de ficar inadimplente com o banco, ficando com o “nome sujo”, causa preocupação para elas, impulsionando algumas a assumirem o controle sobre a gestão do novo cultivo. Foi o caso de Dália, Sempre Viva e Alfazema.
Além das atividades no lote, a realização das tarefas domésticas continua sob a responsabilidade das mulheres. Ou seja, os trabalhos domésticos como limpar, organizar a casa, preparar os alimentos e cuidar das crianças mais novas são compartilhados entre as mães e filhas adolescentes/adultas. Os rapazes participam das atividades agrícolas e, em alguns casos, na comercialização dos produtos do roçado. Além disso, eventualmente vendem a força de trabalho por meio de “diárias” para os vizinhos quando necessário.
Observei que ocorre o processo de socialização dos filhos na força de trabalho familiar na agricultura. Porém, é comum os jovens trabalharem somente um período do dia (durante a semana), pois o outro é dedicado aos estudos. Nessa fase da vida, as famílias inserem os filhos de acordo com a divisão sexual do trabalho nas atividades diárias, tal como descrito por Xxxxxx (2012): os filhos mais jovens dividem-se entre estudar e participar das atividades produtivas e reprodutivas.
Essa socialização de saberes faz parte da manutenção de papéis que serão desempenhados na vida adulta, tal como analisado por Xxxxxxx (1979). As atividades realizadas por cada membro do grupo doméstico representam a socialização segundo o sexo e geração. Assim, observa-se a concepção dos pares de oposição “casa-roçado” e “trabalho e o que não é trabalho”, bem como a manutenção da hierarquia presente na família, seja entre homem e mulher ou entre pais e filhos (HEREDIA, 1979; XXXXXXXXX, 0000; XXXXXXX, 2009).
Sampaio (2014), estudando 18 famílias com contratos de produção para o cultivo de dendê constatou que as atividades desenvolvidas com a produção têm elevado grau de penosidade, principalmente o coroamento das plantas e o rebaixo, e por isso ficavam sob responsabilidade dos homens. Diferentemente do autor, percebi que em alguns casos tanto mulheres quanto os homens dedicavam-se a atividades comuns, tais como adubação, colheita, e capina, muito embora a dendeicultura seja reafirmada em outros estudos como atividade preponderantemente masculina, levando em consideração principalmente a sua penosidade.
Durante minhas viagens de campo, ouvi com frequência a caracterização do que seria trabalho de homem e trabalho de mulher na dendeicultura. Para eles, o coroamento, o rebaixo das plantas e a coleta dos cachos são trabalhos de homem, por serem pesados, mas a adubação, coleta dos frutos e capina são atividades de mulher, por serem “leves”. Para elas há pouca diferenciação entre trabalhos de homens e de mulheres.
Quando analisei as entrevistas das mulheres, constatei que, embora não sejam todas, elas trabalham no cultivo do dendê e como mão de obra familiar, sendo
essenciais para a produção do dendê no estabelecimento familiar, conforme a tabela 7.
Tabela 7: Atividades realizadas pelas mulheres no cultivo do dendê em São Domingos do Capim.
Atividades no dendê | Grupo A | Grupo B | Grupo C | Grupo D* | Total | |
Absoluto | (%) | |||||
Plantio | 09 | 01 | 06 | - | 16 | 53 |
Roçagem | 07 | 0 | 04 | - | 11 | 36 |
Adubação | 09 | 01 | 07 | - | 17 | 56 |
Aplicação de agrotóxico | 05 | 01 | 03 | - | 09 | 25 |
Poda | 03 | 0 | 04 | - | 07 | 23 |
Coroamento | 04 | 01 | 02 | - | 07 | 23 |
Rebaixo | 04 | 0 | 02 | - | 06 | 20 |
Colheita | 01 | 0 | 01 | - | 02 | 06 |
Fonte: Pesquisa de campo, 2016.
Na tabela 7 é possível comprovar que as mulheres estão envolvidas nas diferentes atividades relacionadas ao dendê, principalmente aquelas do grupo A (com decisão própria).
Neste estudo, assim como Sampaio (2014) constatou em Tomé-açu, as mulheres concordaram que é nos primeiros anos do plantio que os trabalhos são intensos. Sampaio (2014) ressalta que é nesse período que a maior quantidade de recursos viabilizados pelo contrato é liberada.
Os trabalhos na fase de implantação são desenvolvidos praticamente com mão de obra exclusiva da família, demandando mais força de trabalho nos períodos de pico (coroamento e roçagem). Quando há necessidade de mão de obra, são contratados trabalhadores por meio de diárias.
Em contraste com resultados de Xxxxxx (2014), que observou que algumas etapas do cultivo do dendê são por excelência masculina, Sampaio (2014) e Xxxxxxx (2016) mostraram que as mulheres estariam envolvidas com os trabalhos mais leves. Eu pude constatar que as mulheres participam mais ativamente das atividades do dendê (poda, coroamento, adubação, e colheita para aquelas famílias que já estão nessa fase). Embora seja consensual entre elas a opinião de que o
trabalho é pesado para elas, ou ainda de que os homens desempenham melhor as atividades durante os trabalhos com o dendê, força de trabalho feminina está presente.
No próximo capítulo irei avançar nas compreensões de autonomia dessas mulheres e relativizar a “invisibilidade” vivenciada por elas nos diferentes trabalhos a que se dedicam em especial ao dendê, considerado até o momento como trabalho de homem.
5. “AGORA EU SAÍ DO PORTE DE DONA DE CASA”: novas atividades das mulheres
Neste capítulo analiso a relação entre o trabalho e autonomia de mulheres que têm contratos de integração em seus nomes para a produção de dendê. Utilizei aspectos relevantes das entrevistas quanto às tomadas de decisão e participação nas atividaddes produtivas, sociais e econômicas para verificar como essa nova condição influenciou em mudanças nos espaços familiar e público, com novos elementos para a produção e reprodução do grupo doméstico.
Ressalto que considero importante analisar os processos de autonomia feminina, acrescentando, no mínimo, aspectos presentes em algumas das três dimensões analisadas por Haque et al (2011): decisão sobre a família (cuidados com a saúde, planejamento familiar e tipos de alimentos que são consumidos), dimensão econômica (decisão de como gastar o dinheiro, decisão sobre as compras de bens materiais da família e compras domésticas para uso diário), e liberdade de movimento (sair para outros lugares fora do local que se vive, ir para um hospital, fazer compras sozinha e decidir sobre visitar parentes ou amigos sozinha).
Como no capítulo anterior, neste capítulo também me orientei, em alguns tópicos, na tipologia sobre a decisão para assinar o contrato para distinguir os grupos.
5.1 A IMPORTÂNCIA DE TER UM CONTRATO DE PRODUÇÃO
De início, constatei durante minha pesquisa de campo, a reação muitas vezes estranha das mulheres em falar sobre serem elas as titulares do contrato. Ora diziam-me não saber explicar, ora diziam-me que isso era assunto de homem, ou ainda chamavam seus companheiros para contribuir nas entrevistas. Percebi assim a timidez para explicar os motivos de suas escolhas, e ainda para dialogarem com técnicos e pesquisadores, em decorrência da privação histórica desse contato com o mundo externo ao familiar, uma vez que a concepção sobre os papéis masculinos e femininos é perceptível.
O trabalho de Xxxxxxx (2003) sobre herança da terra e a exclusão das mulheres desse processo mostrou que “espaço público e vergonha andam juntos na educação feminina”, fato experimentado durante os primeiros contatos que tive com as mulheres com contratos de produção em seus nomes. Porém, essa vergonha não significa que elas não soubessem relatar sobre suas escolhas (em 87% dos casos), mas que, por questão de respeito à hierarquia familiar, acreditam que deve caber ao homem, o chefe de família, fazer contato com o público. Segundo Xxxxxxx (2003) “as entrevistadas falam do “medo de falar bobagem”, pois sabem muito bem como o ridículo é uma arma poderosa”.
Quando perguntado, então, sobre a importância de se ter um contrato no próprio nome, houve um momento de reflexão que antecedeu as falas. A seguir vieram respostas das mais diversas:
“É algo novo que muda a cabeça da gente, a gente aprende a negociar e ver as dificuldades de um trabalho que as mulheres não tinham contato, a gente vai aprendendo a se virar com essas coisas” (Xxxxx, 30 anos, agricultora, casada).
“Melhorou muito depois que peguei o projeto, é a primeira vez que faço um projeto no meu nome. Estou aprendendo como funciona, mesmo quando meu marido não está por perto eu sei o que tem que pedir para os trabalhadores fazerem com o dendê” (Xxxxxxxx, 23 anos, agricultora, casada).
Já é o segundo projeto em meu nome, daí eu já sei direito como trabalhar com os documentos no banco. Além disso, a gente trabalha, e ter direito sobre o nosso trabalho é bom pra todos (Aurora, 50 anos, agricultora, casada).
O contrato é algo novo, diferente, e eu que sou a responsável por ele, faço de tudo pra ele dar certo e melhorar a vida da família (Xxxxxxx, 29 anos, agricultora, solteira).
Nestes quatro depoimentos atentei para a compreensão, por parte das mulheres, da importância de ter um contrato nos seus nomes como uma forma de “torná-las visíveis e mais valorizadas” (Xxxxxxx, 205, p. 2). Isso não quer dizer que seu trabalho no roçado de mandioca não tivesse importância para tais mulheres, mas que, a partir do contrato em seus nomes, elas estão de modo diferenciado reorganizando suas autoimagens, valorizando seu trabalho, adquirindo novos conhecimentos e principalmente reconhecendo as mudanças que esse processo lhes proporcionou. Na minha compreensão, o prenúncio de construção de autonomia se evidencia.
Para Romano e Antunes (2002), a autonomia consiste em um objetivo a ser alcançado em processos de empoderamento. Essa consideração tem suas bases nas relações de poder. Ou seja, a autonomia se concretiza na medida em que há mudanças perceptíveis nas relações de poder entre os sexos, contribuindo para que ocorram mudanças nas estruturas que reproduzem a hierarquia masculina na qual as mulheres estão subordinadas. Segundo os depoimentos, mudanças têm se dado nas relações entre elas e os outros.
Nos estudos que analisaram as diferentes dinâmicas sociais com mulheres que participavam de programas de crédito e cujos contratos são em seus nomes, a autonomia foi questionada nos diferentes processos de decisão, dentro e fora da família (BONI, 2005; DAJUÍ, 2006; XXXXXXXXX, 2008; XXXXXXXXX, 2009;
XXXXXXX, 2009; XXXXXXXXX, 2009; LUNARD, 2012).
Esses estudos possuem em comum o consenso quanto às mudanças materiais e simbólicas proporcionadas para as mulheres, possibilitando novos desafios e oportunidades de socialização. No entanto, argumentam que apesar de haver ganhos e conquistas, é necessário avaliar outros aspectos, além da aquisição econômica, geralmente interpretada como autonomia para as mulheres.
Os trabalhos na área de agroecologia, além de problematizar a divisão sexual do trabalho discutida nos trabalhos realizados com mulheres que receberam o crédito, trazem ao debate o empoderamento e autonomia feminina sob perspectivas feministas, por via do reconhecimento das atividades produtivas e reprodutivas da mulher para a reprodução familiar.
No artigo de Xxxxxxxx; Xxxxxxx e Xxxxxxx (2014), realizado no Nordeste, Sudeste e Sul dentro das perspectivas agroecológicas, as autoras concluíram que em processos de produção agroecológica geralmente ocorre conquistas para as mulheres. Entretanto, a autonomia (econômica e política) ficou evidente quando o processo produtivo foi vinculado à circulação de conhecimento, informações e participação em diferentes contextos.
Para Henn (2013), através da agricultura agroecológica se abrem caminhos para transformações sociais e incorporação de ideais e lutas, favorecendo, inclusive, transições positivas nas relações de gênero.
Como visto, no campo da agroecologia os estudos mostram que é possível provocar mudanças nas estruturas de poder das famílias agricultoras, proporcionando inclusive autonomia para as mulheres, seja do ponto de vista dos conhecimentos já acumulados ou adquiridos, ou do da equidade de gênero. No entanto, é de suma importância que as pautas do feminismo estejam presentes nesse modelo de produção, com um real embate quanto às questões da subordinação às quais as mulheres são historicamente submetidas (SILIPRANDI, 2009; XXXXX, 2016).
Bem diferente do que ocorre com os projetos de cunho agroecológico, as mulheres com contratos de produção em seus nomes em nenhum momento demonstraram buscar mudanças nas estruturas de poder, nem relação com as pautas feministas que questionam seu papel na família. Mas diante de seus depoimentos constatei que ocorrem pequenas mudanças nas relações familiares e com diferentes atores sociais, assemelhando-se ao que a literatura aponta como processos de autonomia.
De acordo com a definição de Xxxxxx e Xxxxxxx (2002), a autonomia forma- se a partir de processos que levam às transformações no nível pessoal. Segundo os autores, a autonomia, assim como o controle dos recursos e a autoridade sobre as decisões que interferem sobre a vida dos indivíduos, é constituída a partir de mecanismos influenciados pelo empoderamento.
Ou seja, o empoderamento, muito utilizado por ONGs, movimentos sociais, programas governamentais e até empresariais é uma categoria/abordagem que tem como questão central as mudanças nas relações de poder, seja entre indivíduos, indivíduos e estado, entre outros. Análise esta diferente da adotada nesta pesquisa, uma vez que interpretei autonomia como a capacidade de interpretação da visão da própria mulher, e não de mudanças estruturais.
Do ponto de vista das mudanças identificadas neste estudo, e pelo fato do conceito de autonomia ser observado em variadas ações, ela é, segundo a definição
de Xxxxxxx e Xxxxxx (2016), processual e relacional porque depende dos caminhos e reconfigurações construídas entre as partes envolvidas. Ou seja, observei que parte considerável das mulheres com contratos de produção, em particular, tem experimentado mudanças que ultrapassam os papéis socialmente assumidos, quer seja no estabelecimento familiar, quer seja em outros espaços.
Sobre a participação no trabalho associada à titularidade do contrato, as mulheres reconhecem a importância do seu trabalho. Nos nossos diálogos foi possível observar como tal importância concilia-se com várias dimensões de autonomia. Para explanar meu ponto de vista, destacarei alguns trechos de entrevistas entre as mulheres:
“Eu resolvo tudo, aprendi a me virar. O meu marido não se envolve com coisas grandes, se eu não fizesse o contrato eles nunca iriam sair do serviço da mandioca” (Xxxxx, 30 anos, casada, agricultora).
“Todos os documentos do lote estão em meu nome, o meu marido não gosta de se envolver em nada disso, e o gado também está no meu nome” (Hortência, 54 anos, agricultora, casada).
O fato de o contrato estar em meu nome está fazendo com que projeto vá para frente, se fosse no nome do meu marido talvez nem desse certo (Xxxx xx xxxxx, 30 anos, agricultora, casada).
O próximo item irá destacar a participação em espaços públicos e a ampliação da rede de contatos, uma vez que foram pontos mais destacados pelas mulheres.
5.2 A PARTICIPAÇÃO EM ESPAÇOS PÚBLICOS, AMPLIAÇÃO DA REDE DE CONTATOS
Partindo do pressuposto de que a ampliação da participação em espaços públicos contribuiu para a conquista de autonomia, busquei reconstituir as diferentes participações fora do ambiente familiar, na expectativa de entender se a titularidade do contrato tem influência ou não na conquista da autonomia.
Em relação à participação em reuniões realizadas pelas empresas agroindustriais, constatei que 76% (23) mulheres participaram das reuniões e ou cursos sobre a dendeicultura e temas relacionados. Os eventos foram realizados nas sedes de diferentes associações de localidades em que as agricultoras residem.
Dessa forma, acaba ocorrendo constantes movimentos de deslocamento para as agricultoras integradas para a participação nesses eventos da empresa.
Esses encontros foram realizados com objetivos de esclarecer a relação empresa/agricultores (as), informações sobre a produção e habilidades técnicas para o trabalho no cultivo do dendê. As mulheres entrevistadas informaram que nesses eventos adquiriram novos conhecimentos, tanto sobre agricultura quanto sobre assuntos específicos para a produção do dendê. Essas atividades que eram, antes, restritas aos homens no espaço público, agora são compartilhadas com as mulheres integradas, que passam a interagir, para além do contexto familiar, com o âmbito público.
É interessante frisar que, para as mulheres titulares do contrato de produção, essa interação com diferentes atores passou a ocorrer com maior frequência após a realização do contrato. Embora elas não se sintam livres para falar, ainda sim, elas estão processando informações e as colocando em prática no trabalho, como observado no relato de Xxxxxxxx (71 anos, aposentada, viúva) “escutava o que era para fazer e o que não era. Para conversar com os técnicos da empresa sobre as dificuldades”, e/ou os repassando aos familiares, como foi o caso de Xxxxxxx (66 anos, aposentada, viúva), quando disse que “os filhos trabalham conforme ela orienta, pois foi a forma que os técnicos ensinaram”.
Segundo Xxxxxxx (2013), a participação das mulheres em reuniões de associações e sindicatos contribui para maior inserção das mesmas em atividades produtivas realizadas no âmbito familiar em conjunto com relações que envolvem economia e trabalho.
No entendimento de Cintrão e Xxxxxxxxx (2011), a participação em viagens ou feiras livres proporciona sociabilidade às mulheres em espaços geralmente ocupados por homens, funcionando para elas como fator de valorização, pois deixam de atuar somente no espaço doméstico. Há também quem considere que as mulheres, ao sair do espaço doméstico para participar de eventos em diferentes espaços públicos, ganham autoestima e independência nos espaços políticos (MARONHAS et al., 2014).
Sempre Viva (31 anos, agricultora, casada) afirmou que participa das reuniões para saber o que está acontecendo, cobrar as coisas prometidas pela empresa e ainda não cumpridas e, principalmente, conversar com os outros produtores sobre as dificuldades impostas pela nova cultura.
Além disso, esses espaços são propícios para trocas de informações sobre o desenvolvimento do dendê nos lotes, problemas no roçado e observação das dificuldades enfrentadas, conforme relatam algumas entrevistadas:
“A gente aprende muita coisa, como plantar, os problemas que a gente têm e como resolver, o que os outros que plantam estão dizendo” (Xxxxxx, 40 anos, agricultora, casada).
“Para saber o que precisamos fazer, sobre como está ocorrendo o trabalho das outras pessoas, as dificuldades em comum” (Petúnia, 60 anos, aposentada, viúva).
“Participo porque fico sabendo o que se passa e o que não se passa com o dendê em outros cantos, o que está acontecendo” (Xxxxxx, 50 anos, agricultora, casada).
Os depoimentos exaltam o processo de socialização do qual as mulheres participam. Além disso, através das reuniões ocorreu também o contato com pessoas de diferentes lugares, trajetórias de vida e pontos de vista sobre a dendeicultura.
Ao todo, 77% das mulheres confirmaram que, após o contrato no próprio nome, ocorreram variadas formas de socialização com pessoas de diferentes instituições e localidades, além do compartilhamento de conhecimentos e experiências com os próprios vizinhos. Assim, constatei que ocorreu a ampliação na rede de contatos com pessoas externas ao ambiente familiar em todos os três primeiros grupos da tipologia (com decisão própria, decisão do homem e decisão familiar).
Há de se considerar uma questão de autonomia que foi discutida no trabalho de Xxxxx (2006) à luz da situação vivenciada pelas mulheres acompanhadas neste estudo. Segundo a autora, através do acesso ao crédito, as mulheres são estimuladas a participar de outros espaços além da família e comunidade, a desenvolver diferentes formas de apropriação de conhecimentos sobre sua produção, e a terem novas expectativas de acesso a bens materiais e culturais.
Também constatei que, independente do modo de decisão para a obtenção do cultivo do dendê (decisão própria, do homem ou familiar), são elas a participarem das reuniões e cursos (gráfico 2). Ou seja, não faz diferença os motivos para ter o contrato no nome para irem nesses eventos, mas que a possibilidade de participação nos mesmos propicia um processo de ressignificações e aprendizado para essas mulheres.
A pesquisa de Xxxxxxx e Xxxxxx (2016) expõe a reflexão quanto à importância da convocação para reuniões e participações em projetos sociais para mulheres cujas famílias são beneficiárias do Programa Bolsa Família. De acordo com as autoras, essa chamada para as mães produz processos capazes de aumentar a inclusão política em espaços onde até então elas não circulavam, tais como reuniões e participação em projetos sociais. Da mesma forma ocorreu com as entrevistadas neste estudo quanto às convocações para reuniões e eventos além do ambiente familiar e local.
Nº de mulheres
Os resultados encontrados por Xxxxxxx e Xxxxxx (2016) comparam-se aos depoimentos das mulheres com contratos de produção, pois constatei que o contrato, assim como o benefício do Bolsa Família, favorece a participação em outros espaços e o contato com outras pessoas, como mostra o gráfico 2.
10
9
8
7
6
5
4
3
2
1
0
90%
80%
Participação em reuniões promovidas pela empresa
66%
100%
20%
34%
10%
Não participação em reuniões promovidas pela empresa
Decisão própria Decisão do Decisão Não
Homem Familiar conseguiram
explicar
Gráfico 2: Participação e não participação em reuniões promovidas pela empresa agroindustrial.
Fonte: Pesquisa de campo, 2016.
Segundo o gráfico 2, 70% (21 mulheres) entre os grupos com decisão própria, decisão do homem e familiar participaram das reuniões, provavelmente por elas serem as titulares dos contratos e se acharem no dever de participar sempre que possível desses eventos. Xxxxxxx (40 anos, agricultora, casada) explicou que, devido ao projeto estar em seu nome, ela sempre é convocada para as reuniões, e acha bom saber as coisas sobre o dendê, tais como o manejo, adubação e segurança do trabalho.
Por outro lado, 30% (7 mulheres) das entrevistadas não frequentaram as reuniões. Os motivos, entre outros, são: a distância do local da residência até a associação e impossibilidade de deixar filhos ainda pequenos outro familiar. Nesses casos, geralmente é um familiar quem participa ou ainda, vizinhos que também plantam o dendê e que participam e depois informam sobre o ocorrido. Há casos também de mulheres que não se interessam pelo plantio, pois participam apenas formalmente nos contratos de produção.
Para as mulheres que participaram das reuniões, o reconhecimento do aprendizado adquirido nesses eventos é perceptível em seus depoimentos, ou seja, elas valorizam o papel que assumiram em um espaço hegemonicamente masculino, principalmente no contexto rural. As mulheres demonstraram ter adquirido novas técnicas produtivas e que, segundo uma agricultora, “aprendeu na prática como trabalhar no dendê”, conforme ressaltado nos depoimentos abaixo:
“Aprendi a adubar, o itinerário técnico, o tempo de florescência, período de xxxxx e adubar, usar pueraria” (Sempre Viva, 31 anos, agricultora, casada).
Porque os cuidados que a gente não tinha e agora tem, as normas de segurança do trabalho, o adubo e o veneno. A gente vai aprendendo, foram tantas coisas novas” (Xxxx, 36 anos, agricultora, casada).
“Porque eu aprendi muito sobre a segurança do trabalho, criação de peixes. Eu fui a quatro palestras, todas muito legais, e a gente aprende muito, por exemplo, como usar o veneno, tirar o cacho e organizar as ferramentas. E quando a gente paga diária tem por obrigação dizer como tem que ser feito” (Margarida, 47 anos, solteira, agricultora).
Esses depoimentos possuem em comum a afirmação na fala das agricultoras sobre o acesso aos novos conhecimentos. Na maioria dos casos elas eram privadas de conhecimento das técnicas produtivas transmitidas em cursos e oficinas, uma vez que geralmente eram homens a participarem de tais eventos nas localidades e
STTRs. Até mesmo quando a família recebe visitas técnicas, a interação técnico/agricultor ocorre quase sempre com a figura masculina, ficando as mulheres com papel secundarizado quanto aos meios produtivos, devido ao homem ser considerado o “chefe de família”.
Ressalto então que a participação das mulheres nas reuniões, ao mesmo tempo em que amplia o contato com outros agentes além da família, rompe com o modelo hegemônico no qual as mulheres ocupam lugar somente na reprodução do grupo doméstico, enquanto os homens participam dos processos produtivos e externos à família (XXXXX; MOTTA-MAUÉS, 2013).
Retornando ao núcleo familiar, as aprendizagens adquiridas pelas mulheres através do contato com diferentes atores na esfera pública são socializadas com a família e amigos. Portanto, observei mudanças nas relações baseadas na hierarquia familiar, no qual geralmente são homens a fazer esse diálogo entre o público e privado. Ou seja, ao participarem das reuniões essas mulheres não somente aprendem as diferentes maneiras de trabalhar com o cultivo do dendê como também representam a fonte de trocas de conhecimentos e experiências entre o público e sua família.
A participação em esferas públicas também tem sido influenciada por meio da obtenção do crédito através do Pronaf Eco Dendê. As mulheres assumiram a responsabilidade de resolver as questões bancárias, tais como abrir uma conta no banco no próprio nome, receber as parcelas do financiamento e assinar os papéis referentes ao contrato. Além disso, elas também são responsáveis por procurar a empresa agroindustrial responsável pelo plantio caso haja algum problema na produção.
Nesse sentido, assim como apontado por Xxxxxx e Xxxxxx (2013), as situações de ir ao banco e participar de reuniões em sindicatos apresentam um novo panorama para as mulheres, embora ainda cause vergonha e constrangimento devido ao contato reduzido das mulheres nesses ambientes. As autoras analisam essa participação das mulheres na esfera pública como positiva. Da mesma forma, considero positivo o fato das mulheres entrevistadas possuírem suas contas bancárias e participarem de diferentes eventos em que elas desempenhem papéis para além dos papéis femininos assumidos perante a família.
Na pesquisa de Xxxxxxxxx (2009), a partir do crédito as mulheres passaram a transitar em diferentes espaços públicos, socialmente designados aos homens. Segundo a autora, ser a titular do crédito e possuir uma conta bancária própria lhes permitiram uma inserção em outras esferas da vida externa ao ambiente doméstico, proporcionando reconhecimento social e contato com os agentes de mediação de diferentes instituições. O mesmo foi constatado com as mulheres titulares dos contratos de produção neste estudo.
Concordo com Xxxx (2013) que o movimento das mulheres em diferentes espaços físico-sociais proporciona múltiplas percepções sobre seu papel na família e a subordinação no qual veladamente permanecem. A mobilidade social, assim como percebido neste estudo, proporciona a circulação em espaços até então pouco frequentados por elas, com possibilidades de caminhos em direção à autonomia física, ou seja, frequentar lugares e fazer tarefas sozinhas.
5.3 ORGANIZAÇÃO E REALIZAÇÃO DO ITINERÁRIO TÉCNICO
A participação, organização e realização do trabalho no dendê destaca-se por ser uma questão, muitas vezes, em que as mulheres são “invisibilizadas” nas diferentes atividades do processo produtivo sob o pressuposto de que o trabalho é “pesado”.
O fato de o trabalho das mulheres na dendeicultura sob contrato ser descrito na literatura como “ajuda” ao marido/parente geralmente é reafirmado a partir dos discursos dos agricultores e reproduzido nos estudos sobre o tema. Dessa forma, os estudos sobre a dendeicultura corroboram com a “invisibilidade” das funções exercidas por elas, principalmente sobre o itinerário técnico. Como demonstrou Xxxxxx (2015) a partir das entrevistas com os produtores de dendê:
Segundo os produtores, esse modelo de relação com a unidade de produção ocorria no início do projeto de “integração”, quando todos os membros da família entre homens e mulheres iam para o projeto de dendê trabalhar, na abertura da área, no plantio, na capina e coroamento das
mudas. Isto é, nos três primeiros anos em que o dendê não estava produtivo e exigia muito trabalho para manutenção da unidade de produção. Posteriormente, percebe-se que com o aumento da produtividade das unidades de produção “integradas” e da renda advinda da produção, as mulheres e os filhos deixam de trabalhar nas unidades de produção, sendo substituídos pela contratação de mão de obra local (XXXXXX, 2015, p.114).
Sampaio (2014), assim como Xxxxxx (2015), concluiu que o trabalho com a dendeicultura é preponderantemente masculino. Porém, em ambos os casos, questiono quem foi o entrevistado da família, uma vez que as entrevistas ocorrem geralmente com os homens, considerados os chefes de família. Eles falam do trabalho familiar de forma hierarquizada, ou seja, as respostas são dadas conforme suas próprias visões do que seja trabalho de homem e trabalho de mulher.
Os argumentos arrolados para o porquê das atividades na dendeicultura serem consideradas trabalho masculino trazem dois motivos. O primeiro deles diz respeito ao caráter de trabalho pesado, portanto é citado como trabalho de homem, como mostrou Xxxxxx (2014) no estudo em que descreveu as atividades no cultivo do dendê: “não observei mulheres realizando o coroamento químico, este trabalho é por excelência, masculino” (PONTES, 2014, p. 22). Embora o número seja reduzido, identifiquei que 23% (07 mulheres) realizam o coroamento químico. Portanto, há mulheres que o realizam também.
Em comunicação pessoal com um pesquisador que estuda a dendeicultura na região do Nordeste Paraense, este me revelou que, após visitar mais de 900 estabelecimentos agrícolas, ele nunca havia observado mulheres trabalhando no dendê, reiterando a falta de análises sobre o trabalho destas nas atividades do cultivo do dendê, uma vez que ele entrevistou somente homens.
O segundo motivo, para Xxxxx e Motta-Maués (2013), parece tratar-se de um problema sociológico. As autoras problematizaram o fato de que muitos autores que estudam especificamente mulheres rurais assumem a definição de Xxxx Xxxxx (1989) sobre as dimensões socialmente construtivas das relações de gênero, levando em consideração a naturalização das atribuições baseadas nas diferenças biológicas entre os sexos. Outro ponto interessante são os vínculos entre o trabalho produtivo e a concepção de autonomia dos indivíduos providos de recursos
financeiros, tal como em sociedades capitalistas baseadas em trocas mercantis (XXXXX E MOTTA-MAUÉS, 2013).
As autoras sugerem ainda que os papéis desempenhados pelas mulheres rurais devem ser analisados não somente do ponto de vista das situações empíricas, mas, sobretudo no próprio fazer intelectual, nos processos de construção das unidades de análises e observações.
Tendo como base os estudos sobre a dendeicultura e os resultados da minha pesquisa, reitero a penosidade do trabalho, relatado tanto por homens, quanto por mulheres. Mas a problemática dessa constatação decorre da grande visibilidade dada aos homens, assim, minimizando a participação das mulheres no processo.
A noção de “pesado” na dendeicultura é associada ao homem, o que relaciono às constatações feitas por Xxxxxxx (1987), para quem a noção de “leve” ou “pesado” depende de quem realiza o trabalho e não da penosidade do trabalho. Ou seja, não é a natureza do trabalho que determina ser trabalho de homem ou de mulher, mas as concepções presentes no imaginário popular, intimamente relacionado às hierarquizações que servem de alicerce para a divisão sexual do trabalho entre os membros da família.
Xxxxxxx (57 anos, agricultor), representante de uma associação de uma das localidades que visitei, quando perguntado sobre o que as mulheres fazem no plantio, ele disse que “até agora elas não fazem nada”. Segue um trecho de seu depoimento:
Entrevistadora: O que as mulheres fazem no plantio do dendê? Narciso: Até agora aqui não fazem nada.
Entrevistadora: Não fazem nada?
Narciso: Até agora aqui não fazem nada. Aí vai chegar uma hora em que elas vão fazer o trabalho de “leve”. No caso da dona Xxxxxxxx, quando começar o corte, ela vai juntar muita fruta do dendê, que quando a gente corta ele debulha um pouco (o cacho do dendê). Aí a gente [os homens] pega um bisaco e sai juntando. Aí tem mulher também que ela trabalha no dendê direto. Ela faz poda, coroa no veneno.
Mais adiante na entrevista, pergunta-se se o trabalho é pesado, ele responde:
Narciso: É pesado. Para falar a verdade, o serviço do dendê é pesado. Todo tempo o serviço do dendê é pesado. O mais maneiro é juntar a fruta. Lá dentro só corta o cacho. É 30 kg o cacho, quando cai lá no chão se esparrama um pouco no chão, aí a mulher bota o bisaco e vai juntando. Vai juntando no bisaquinho.
Nesse caso, o trabalho, por ser pesado, foi exposto como sendo “de homem”, anulando a presença feminina nos trabalhos que envolvem a forma de trabalho familiar, obscurecendo inclusive, o trabalho pesado do qual as mulheres também participam.
Ao analisar os depoimentos das mulheres integradas, foi possível relativizar esse discurso segundo o qual a dendeicultura sob integração é predominantemente masculina. As mulheres desempenham diferentes atividades (gráfico 3), indo além do que apontam as análises feitas em outros estudos com agricultores integrados, em que as mulheres foram citadas como responsáveis somente pela adubação, colheita, anotações da produção e tarefas bancárias (SAMPAIO, 2014).
18
16
14
12
10
8
6
4
2
0
53%
56%
36%
30%
23% 23% 20%
6%
Atividades
Nº de mulheres
Gráfico 3: Atividades realizadas pelas mulheres na dendeicultura sob contrato.
Fonte: Pesquisa de campo, 2016.
Segundo o gráfico 3, as mulheres trabalham em todas as atividades do cultivo do dendê, muito embora haja uma variação quanto ao número por atividades. Dessa forma, 56% (17 mulheres) trabalham principalmente na adubação, seguida do plantio 53% (16 mulheres). Os cultivos ainda estão nos anos iniciais, e apenas 6% (02 mulheres) afirmaram já terem realizado a colheita.
A entrevista com Xxxxxxxxx (47 anos, casada, agricultora) demonstra como a mesma está envolvida com as atividades agrícolas do dendê, e segundo ela, mesmo que não esteja no trabalho braçal, gosta de estar envolvida no meio observando. Esse trecho reproduz sua fala em uma das entrevistas:
Entrevistadora: Ô dona Xxxxxxxxx, assim, do trabalho no dendê, o que a senhora faz lá dentro?
Margarida: Olha, eu só não faço botar veneno. Mas tirar, eu aprendi tirar, limpar, eu aprendi limpar, só não posso mais colocar veneno
Entrevistadora: Por quê?