THIAGO LIMA BREUS
THIAGO LIMA BREUS
O GOVERNO POR CONTRATO(S)
E A CONCRETIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS HORIZONTAIS COMO MECANISMO DE JUSTIÇA DISTRIBUTIVA
Curitiba 2015
THIAGO LIMA BREUS
O GOVERNO POR CONTRATO(S)
E A CONCRETIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS HORIZONTAIS COMO MECANISMO DE JUSTIÇA DISTRIBUTIVA
Tese apresentada como requisito Parcial à obtenção do grau de Doutor em Direito do Estado, Programa de Pós-graduação em Direito, Faculdade de Direito, Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Professor Doutor Egon Bockmann Moreira.
Curitiba 2015
TERMO DE APROVAÇÃO
TIIIAGO LIMA BREUS
O GOVERNO POR XXXXXXXX(S)
E A CONCRETIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS HORIZONTAIS COMO MECANISMO DE JUSTIÇA DISTRIBUTIVA
Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Direito do Estado no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná, pela seguinte banca examinadora:
Orientador:
\Profes^oí Doutor Egon fe■xxxxxxx Xxxxxxx / Faculdâíte^e Direito da Unive«adade Fecierahlo Paraná /
Membros:
Professor Doutor Xxxxxx Xxx Xxxxxxxx
Faculdade de Direito da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx/Direito GV
Professor Doutor Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná
o C l*
Professora Doutora Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxxxx
ade de Direito da Universidade Federal do Paraná
Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná
Curitiba (PR), em 14 de agosto de 2015.
Para a Bruna,
por algo mais que justiça.
“Se a reta é o caminho mais curto entre dois pontos, a curva é o que faz o concreto buscar o infinito”.
Xxxxx Xxxxxxxx
AGRADECIMENTOS
Em uma tarde, na Biblioteca da Faculdade de Direito da UFPR, o estudante de 1º ano do Curso de Direito deparou-se, sobre uma mesa de estudos, com duas obras que lhe chamaram atenção, a despeito de seu desgaste e das anotações nas suas margens. Um tinha uma capa vermelha, outro azulada. O primeiro era O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, de Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx. O segundo chamava-se Direito Administrativo Brasileiro, de Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxx. Ambos possuíam um índice remissivo enorme e tratavam de matérias totalmente ignoradas pelo aluno.
Ao ver a cena, um veterano, quarto-anista, politicamente engajado, não recomendara as leituras; para ele, os textos eram ultrapassados e a matéria, burocrática.
Mesmo assim, naquela tarde, o interesse do estudante pelos dois livros aconteceu de maneira instantânea e surpreendente, a ponto de que é possível se afirmar, tal como no clichê correspondente, que foram aqueles livros que encontraram o leitor, não o leitor que os achou.
Sem ainda saber, aquele estudante dava suas primeiras incursões em temas nos quais posteriormente desenvolveria sua monografia de conclusão de curso, sua dissertação de mestrado e, agora, sua tese de doutorado. Passados mais de 15 anos, aquele momento não sai da memória. E desde aquele dia, há muito a agradecer, em especial à Universidade Federal do Paraná e à toda a sua comunidade acadêmica.
Aos professores, aos servidores e aos colegas estudantes, meu muito obrigado! Em especial, à Professora Doutora Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxxxx, ao Professor Doutor Xxxx Xxxxx Xxxxxx e ao Professor Doutor Egon Bockmann Moreira que, ao longo destes anos, além de transmitir seus conhecimentos e exemplos de conduta, aceitaram o mister da minha orientação acadêmica.
As primeiras ideias desta investigação têm origem logo após a defesa da Dissertação de Mestrado do autor, em 2006, quando o tema das políticas públicas emergiu para o Direito Público brasileiro com uma série de novas e instigantes questões. Foi, todavia, como ouvinte no Curso ministrado em 2011 pelo Prof. Dr. Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx intitulado Contratos Públicos de Xxxxx Xxxxx: Desafios Jurídico-Políticos, na Universidade Clássica de Lisboa/Portugal que as ideias aqui contidas começaram a tomar forma.
Para o desenvolvimento do texto, o período de pesquisa realizado em meados de 2014 na Universidade de Coimbra/Portugal e as referências bibliográficas indicadas pelos
Professores Doutores Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxx Xxxxxx Xxxxx foram fundamentais. Igualmente essenciais foram as obras produzidas sobre contratação pública pelo CEDIPRE – Centro de Estudos de Direito Público e Regulação da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e generosamente cedidas pelo Prof. Dr. Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx.
Grande contribuição para o desenvolvimento do tema relativo às contratações públicas estratégicas adveio do Seminário de Contratação Pública realizado em julho de 2014 em Vigo/Espanha sob a orientação da Professora Doutora Xxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx e da pesquisa realizada na Universidade de Bolonha/Itália, em abril de 2015.
A todos, a minha mais sincera gratidão.
Reitero meus agradecimentos ao Prof. Dr. Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx pela confiança depositada, pela orientação segura e pelos conselhos acadêmicos inestimáveis.
Anos após o 1º encontro com os livros de capa vermelha e azul, aquele estudante tornou-se docente e passou a indicar aos novos acadêmicos, novos livros, com novas capas azuis e vermelhas. Aos meus alunos de Gestão Pública da UFPR, de Direito Administrativo do IFPR e do Curso Prof. Xxxx Xxxxxx, que me fazem me dar ao máximo em cada aula, meu muito obrigado!
À Profa. Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx, segue minha gratidão especial pelo inestimável apoio e gestão compartilhada da coordenação de cursos de Educação à Distância do IFPR. Diante de tantas adversidades, a sua permanência na linha de frente simplesmente por acreditar em uma educação à distância, pública, inclusiva e de qualidade, merece um destaque especial.
Ao Dr. Xxxxxxx Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxxxx, bibliófilo inveterado, meu agradecimento penhorado pela parceria na advocacia e por sempre ter à mão e me emprestar, com desprendimento, um livro novo, ainda não lido.
Por fim, um agradecimento mais do que especial à Bruna. O mundo do direito nos uniu. No percurso do seu mestrado e do meu doutorado, formamos uma família. É por você que a cada dia busco fazer o meu melhor.
RESUMO
A presente investigação tem por premissa o reconhecimento da contratualização pública como principal técnica contemporânea de implementação de políticas públicas de caráter desenvolvimentista. Sob a designação de governo por contrato(s), apresenta-se a possibilidade da Administração empregar a chamada contratação pública estratégica consistente na adição de finalidades contratuais acessórias, transversais e/ou horizontais no bojo dos contratos públicos. Contudo, ainda que consentânea com os escopos constitucionais fundamentais, a satisfação de políticas secundárias por meio da contratação pública pode se apresentar extremamente problemática, porque pode conduzir à majoração dos custos e, por consequência, à mitigação do best value for money contratual. Por definição, as políticas horizontais estabelecem os objetivos de compromisso de sustentabilidade e de equilíbrio de cada comunidade e, como tais, representam opções para cada governo. Elas impõem o dever de ponderação entre os sacrifícios em matéria de eficiência e os objetivos de políticas públicas a serem concretizados por meio dos contratos públicos. Diante disso, são apresentadas duas hipóteses: (i) Qual é o grau de autonomia pública para a Administração fixar (ou não) políticas públicas horizontais nos seus contratos? (ii) As políticas públicas horizontais devem ser implementadas mesmo que atenuem a eficiência econômica estrita do contrato? A proposta, apresentada para enfrentar as supracitadas problemáticas, pressupõe o reconhecimento de que cada comunidade política deve procurar, à luz de seus valores constitucionais, os tradeoffs e/ou os equilíbrios que considere adequados entre as preocupações de eficiência e as preocupações de justiça a serem alcançados. Com base nestes elementos, o argumento defendido é o de que, em virtude do papel protagonista assumido pelos contratos públicos na Administração contemporânea, eles passam a funcionar (isto é, a ser e a estar funcionalizados) como técnica de alcance de uma justiça não exclusivamente comutativa (de equilíbrio e alcance de objetivos entre as partes), mas também de caráter distributivo, o que fundamenta o recurso às políticas públicas contratuais horizontais. Ademais, a título de proposição, são apresentados determinados limites e possibilidades, assim como critérios para a aderência das políticas horizontais aos contratos públicos. Busca-se, ao final, demonstrar que a caracterização dos contratos públicos na contemporaneidade não pode mais ser exclusivamente atribuída pelos critérios tradicionais, como o subjetivo, do serviço público ou da exorbitância, mas deve considerar a satisfação de fins supra partes e o equilíbrio de múltiplas equações que não se restringem à manutenção econômico-financeira; vale dizer, a contratação pública contemporânea é assim designada pela unidade de múltiplos e proporcionais conteúdos, os quais são responsáveis por elevar a avença administrativa a também atuar como instrumento de satisfação de uma justiça distributiva.
Palavras-chave: Contratos Públicos; Governo por contrato(s); Políticas Públicas; Contratação Pública Estratégica; Políticas Públicas Horizontais; Justiça Comutativa; Justiça Distributiva.
ABSTRACT
This study is premised on the recognition of public contracting as one of the main modern techniques for implementing developmental public policies. Designated as government by contract(s), it presents the possibility of the Administration employing so-called strategic public procurement, consistent with the addition of ancillary contractual purposes – transverse and/or horizontal among public contracts. Nevertheless, although consistent with fundamental constitutional objectives, the success of secondary policies through public procurement can be problematic, as they can lead to increased costs and therefore not represent best value for money. As such, two hypotheses are presented: (i) what is the degree of autonomy to which the public administration should be able to set (or not) horizontal public policies in their contracts? (ii) Should horizontal policies still be implemented, given they mitigate strict economic efficiency? The proposal presented to address the aforementioned propositions presupposes the recognition of the fact that each political community should, in light of its constitutional values, seek tradeoffs and balances that it considers appropriate, amid concerns that both efficiency and fairness be achieved. By definition, horizontal policies constitute commitments for sustainability and balance in each community and, as such, represent policy options for each government to address. They impose a duty to weigh up both sacrifices in terms of efficiency and public policy objectives to be pursued through public contracts. On this basis, the theory defended here is that, given the leading role played by public procurement in modern administration, the contracts go on to function (i.e. both in permanent and temporary ways) as techniques for achieving fairness not exclusively in a commutative manner (balanced and with goals set by the parties involved), but also in a distributive way, acting as a basis for resources to be assigned for horizontal contractual policies. Moreover, by way of example, some limitations and possibilities are presented, as well as criteria for adhering horizontal policies to public procurement. In the end, this study seeks to show that the characterization of administrative contracts in modern times can no longer be assigned solely by traditional criteria, such as subjective decision-making, whether a particular policy serves the public or is excessively priced, but should instead consider the success of goals beyond those set by the parties involved, as well as balancing multiple considerations not restricted to economic and financial stability; it is worth mentioning that modern public contracting is therefore assigned by uniting multiple, proportional policy content, which is responsible for raising the administrative covenant so that it also acts as an instrument for achieving distributive justice.
Keywords: Public Procurement; Government by contract(s); Public Policy; Strategic Public Procurement; Horizontal Public Policy; Commutative Justice; Distributive Justice. Contractual Equations.
RESUMEN
Esta investigación tiene por premisa el reconocimiento de la contractualización pública como principal técnica contemporánea de implementación de las políticas públicas con carácter de desarrollista. Con la designación de gobierno por contrato(s), se presenta la posibilidad de la Administración utilizar la llamada contratación pública estratégica que consiste en añadir fines contractuales accesorios en el interior de los contratos públicos. No obstante, aún que consentáneo con los objetivos constitucionales fundamentales, la satisfacción de políticas secundarias por medio de la contratación pública puede presentarse extremamente problemática, porque puede conducir al aumento de los costes y, por ende, a la mitigación del best value for money contractual. Por definición, las políticas horizontales establecen los objetivos de compromiso de sostenibilidad y de equilibrio de cada comunidad y, como tales, representan opciones para cada gobierno. Ellas imponen el deber de ponderación entre los sacrificios en materia de eficiencia y los objetivos de políticas públicas a ser concretizados por medio de los contratos públicos. Ante eso, se presentan dos hipótesis:
(i) ¿Cuál es el grado de autonomía pública para la Administración fijar (o no) políticas públicas horizontales en sus contratos? (ii) ¿Por atenuar la eficiencia económica estricta, las políticas públicas horizontales deberían ser, aún así, implementadas? La propuesta presentada para enfrentar las problemáticas anteriormente mencionadas, presupone el reconocimiento de que cada comunidad política debe buscar, a la luz de sus valores constitucionales, los tradeoffs y/o los equilibrios que considere adecuados entre las preocupaciones de eficiencia y las preocupaciones de justicia a ser alcanzados. Con base en estos elementos, el argumento defendido es el de que, en virtud del papel protagonista asumido por los contratos públicos en la administración contemporánea, ellos pasan a funcionar (esto es, a ser y a estar funcionalizados) como técnica de alcance de una justicia no exclusivamente conmutativa (de equilibrio y alcance de objetivos entre las partes), pero también de carácter distributivo, lo que fundamenta el recurso a las políticas públicas contractuales horizontales. Además, a título de proposición, se presentan determinados límites y posibilidades, así como criterios para la adherencia de las políticas horizontales a los contratos públicos. Al final, se busca demostrar que la caracterización de los contratos administrativos en la contemporaneidad no puede más ser exclusivamente atribuida por los criterios tradicionales, como el subjetivo, del servicio público o de la exorbitancia, pero debe considerar la satisfacción de fines supra partes y el equilibrio de múltiples ecuaciones que se restringen al mantenimiento económico-financiero; es decir, la contratación pública contemporánea es así designada por la unidad de múltiplos y proporcionales contenidos, los cuales son responsables por elevar el acuerdo administrativo a también actuar como instrumento de satisfacción de una justicia distributiva.
Palabras-Llave: Contratos Públicos; Gobierno por contrato (s); Políticas Públicas; Contratación Pública Estratégica; Políticas Públicas Horizontales; Justicia Conmutativa; Justicia Distributiva.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
PARTE I – O AMBIENTE DE DESENVOLVIMENTO E DE CONSOLIDAÇÃO DO CONTRATO PÚBLICO. 12
CAPÍTULO I – O GOVERNO POR CONTRATO(S): A ARQUITETÔNICA DE UMA ADMINISTRAÇÃO CONTRATUAL 14
1.1. Do contrato social ao governo por contrato(s): A base bilateral da ideia de governo. 15
1.2. A aplicação da ideia do governo por contrato(s) e o outsourcing da gestão pública norte-americana 21
1.3. O governo por contrato(s) faz surgir uma nova tarefa administrativa: a gestão de contratos. 25
1.4. Algumas razões para a crescente adesão à ideia de governo por contrato(s). 28
1.4.1. Variações históricas nos instrumentos de ação administrativa e o recurso à contratualização em substituição aos tradicionais atos unilaterais de autoridade. 28
1.4.2. O recurso ao contrato por “razão de princípio”: dever de satisfação dos objetivos fundamentais da República, direta ou indiretamente. 32
1.4.3. Da Prestação à Garantia: Revisão do modo de realização dos afazeres estatais a partir da ampliação da contratação pública 34
1.5. Private Opportunity ou Public Benefit? O governo por contrato(s) e a “partilha otimizada” de tarefas entre Estado e Sociedade sob responsabilidade estatal com o objetivo da realização dos direitos, interesses e necessidades públicas. 37
1.6. A experiência brasileira do governo por contrato(s) e a introdução legislativa de novas formas de consensualização e contratualização administrativas. 43
1.7. Efeitos da implantação gradual do governo por contrato(s) 46
1.7.1. A ativação do potencial privado para a realização de tarefas públicas 47
1.7.2. Maior flexibilidade do contrato na composição de relações jurídicas: ampliação de efeitos jurídicos produzidos com base na avença. 49
1.7.3. Delegação da normatização concreta de cada negócio jurídico da lei para o contrato. 51
1.7.4. Ampliação da margem de consensualidade, com estipulação de cláusulas na fase pré- contratual 52
1.7.5. Introdução de contratos atípicos com diversidade de objetos 54
1.7.6. Uso de contratos por desempenho, nos quais o contratado se vincula a metas de desempenho, com a possibilidade de remuneração variável 56
1.7.7. Flexibilidade na alocação de riscos com estipulação da repartição de ganhos de eficiência para o Estado. 58
1.7.8. Multiplicação de acordos de cooperação 59
1.8. Algumas objeções quanto ao emprego ampliado dos contratos como instrumento de governo. 60
1.8.1. O soi-disant problema da mitigação e/ou “alienação” do poder administrativo. 61
1.8.2. A chamada “barganha” de poderes (e/ou funções) administrativas 61
1.9. O Contrato Público e a Política Pública como mecanismos de ação da Administração contemporânea 62
1.10. A título de conclusão parcial: A possibilidade de implementação de políticas públicas por meio de contratos públicos. 73
CAPÍTULO II – OS CONTRATOS DO GOVERNO: A MODELAGEM DA CONTRATAÇÃO ADMINISTRATIVA A PARTIR DA AUTONOMIA PÚBLICA SOB A “LÓGICA DA FUNÇÃO” E A “LÓGICA DO CONTRATO”. 77
2.1. A Distinção entre ato administrativo e contrato público: a vontade entre os planos da validade e da existência. 80
2.2. A noção usual de contrato e a sua adjetivação contemporânea: público, privado ou administrativo e a necessidade de adoção do regime jurídico mais apropriado para o alcance dos objetivos administrativos fundamentais. 82
2.2. As repercussões da má-recepção da figura contratual pelo Direito Administrativo: a pretensão de um regime jurídico único e o caráter relativo das obrigações contratuais. 91
2.4. Por que denominar o contrato administrativo brasileiro, em sentido amplo, de contrato público? 95
2.5. A modelagem contemporânea dos contratos públicos e a liberdade de criação de efeitos jurídico-administrativos por meio de contratos. 97
2.5.1. A liberdade de criação de efeitos pela Administração no âmbito dos contratos públicos: o delineamento da ideia de autonomia pública 100
2.6. O contrato público-administrativo: entre a lógica da função e a lógica do contrato. 103
2.7. Da relativização de efeitos à eficácia para além das partes contratantes nos contratos entre particulares: pela renovação do diálogo entre contrato público e contrato privado. 104
2.8. A plurissignificação contemporânea dos contratos públicos. 111
2.8.1. Significado administrativo como ferramenta de gestão. 111
2.8.2. Significado político como expressão de realização de necessidades, direitos e interesses públicos 113
2.8.3. Significado jurídico como causa de obrigações 113
2.8.4. Significado normativo como fonte de direito. 115
2.8.5. Significado econômico como técnica de desenvolvimento. 116
2.8.6. Significado processual como princípio de seleção do contratado. 117
2.8.7. Significado filosófico como panorama das justiças comutativa e distributiva. 117
PARTE II - AS TRANSFORMAÇÕES DO CONTRATO PÚBLICO A PARTIR DO SEU EMPREGO COMO INSTRUMENTO DE GOVERNO. 119
CAPÍTULO III - A RE-FUNCIONALIZAÇÃO DOS CONTRATOS PÚBLICOS: LIMITES E POSSIBILIDADES DA INCLUSÃO DE POLÍTICAS HORIZONTAIS NOS CONTRATOS CELEBRADOS PELA ADMINISTRAÇÃO. 120
3.1. Primeiramente a questão terminológica: Políticas acessórias, secundárias e/ou horizontais? 124
3.2. A função primeira da contratação pública: o atendimento imediato das necessidades de custeio e de utilidades para a gestão pública, por meio dos contratos públicos de primeira geração, de fornecimento ou de colaboração. 127
3.3. A segunda função da contratação pública: a delegação do exercício de atividades públicas para os particulares, por meio de contratos públicos de segunda geração ou de concessão. 128
3.4. A “descoberta” da relevância socioeconômica da contratação pública e o aproveitamento de suas externalidades positivas. 130
3.5. A instrumentalização da contratação pública como re-funcionalização dos contratos públicos a partir da introdução de fins acessórios, secundários e/ou horizontais. 133
3.6. O movimento do Green Public Procurement como precursor das políticas públicas horizontais. 143
3.7. O Desenvolvimento Nacional Sustentável Como Finalidade da Contratação Púbica Brasileira 146
3.8. A delimitação da contratação mais vantajosa à luz do desenvolvimento nacional sustentável. 156
3.9. As políticas públicas horizontais no âmbito dos contratos administrativos: a contratação pública estratégica implementada legislativamente no Brasil 161
3.9.1. As políticas públicas horizontais estabelecidas pelo Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte 162
3.9.2 Critérios de Preferência para as propostas de contratação que propiciem maior economia de energia, água e outros recursos naturais e a redução da emissão de gases de efeitos estufa e de resíduos. 165
3.9.3. A Margem de Preferência para produtos manufaturados e serviços nacionais que atendam normas técnicas brasileiras de qualidade. 165
3.10. O problema da mitigação do best value for money e o dilema eficiência econômica versus finalidade pública e objetivos constitucionais: uma dificuldade decorrente da vagueza da ideia de sustentabilidade 166
3.11. Sumário de objeções à inserção de políticas públicas horizontais nos contratos públicos. 172
3.11.1. Possibilidade de falseamento da função primária da contratação pública, que seria a obtenção de mais por menos 173
3.11.2. Criação de complexidade adicional e aumento da burocracia no processo de contratação. 174
3.11.3. Aumento de preço dos contratos pela repercussão do custo do cumprimento destas medidas e redução do número de potenciais concorrentes 174
3.11.4. Maior grau de politização da contratação pública e possibilidade de escolhas discricionárias e até situações de abuso de poder 175
3.11.5. Possibilidade de restrições ao princípio da igualdade de acesso à contratação pública, por formalizar uma barreira de entrada. 175
3.12. Critérios para a aferição da inserção de políticas horizontais na esfera da contratação pública 176
3.12.1. O Fundamento legal 177
3.12.2. Causa Sistemática, pertinência e ligação ao objeto do contrato. 177
3.12.3. Proporcionalidade. 178
3.13. Em síntese: a coexistência entre a regulação por contrato (instrumentalizada para fins de políticas horizontais) e a regulação legislativa e por agência. 179
3.14. Conclusões parciais 180
CAPÍTULO IV - A CARACTERIZAÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS CONTRATOS PÚBLICOS: A JUSTIÇA (CONTRATUAL) DISTRIBUTIVA COMO ELEMENTO DE IDENTIFICAÇÃO DOS CONTRATOS PÚBLICOS 182
4.1. A controvérsia a propósito da caracterização do contrato público e de seus elementos essenciais. 185
4.2. A justiça distributiva como critério essencial (não acidental) da contratação pública contemporância 188
4.3. As questões ideológicas subjacentes a um ideal de justiça adjetivado. 192
4.4. Esferas de Justiça na Filosofia Política Contemporânea 195
4.5. Elementos de justificação para a intervenção (ou atuação) estatal por meio da contratação pública 201
4.5.1. Elementos de cunho filosófico. 201
4.5.2. Elementos de cunho econômico. 203
4.6. Justiça Comutativa versus Justiça Distributiva na esfera da Contratação Pública 205
4.7. A função social do contrato e a sua relação com a ideia de justiça contratual distributiva 207
4.8. A máxima do “quem contrata não contrata só com quem contrata e o que contrata” e os efeitos das relações jurídicas multilaterais e/ou poligonais nos contratos públicos: a demonstração da presença da justiça contratual distributiva. 213
4.9. A ideia da Justiça contratual como gênero e as ideias de justiça comutativa e de justiça distributiva como espécies. 216
4.10. A justiça contratual comutativa realizada pela intangibilidade do equilíbrio econômico-financeiro. 217
4.11. A justiça contratual distributiva concretizada pelo equilíbrio da multiplicidade equacional do contrato público contemporâneo. 220
4.11.1. A Equação Social ou Política Pública Contratual de satisfação de todos os interesses envolvidos no contrato. 221
4.11.2. A Equação Ética ou Política Pública de Transparência, Probidade e Anticorrupção. 223
4.11.3. A Equação Tecnológica ou política pública de qualidade atualizada de produtos e serviços. 226
4.11.4. A Equação Ambiental ou política pública de preservação e conservação ambiental 227
4.11.5. A Equação Econômica ou política pública de equilíbrio de preços. 228
4.11.6. A Equação Financeira ou política pública de financiamento de infraestruturas
públicas 229
4.12. Teoria da Sujeição à Distributividade: Proposta de critério para a qualificação de um contrato como contrato público. 230
4.13. At last, but not at least, Justiça distributiva, Contratação Pública e Desenvolvimento. 235
CONCLUSÕES 239
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, observa-se a crescente adesão à ideia de administração por contrato1 na qual o contrato público-administrativo assume um papel efetivamente protagonista no exercício da atividade governamental,2 a ponto de se bem destacar que, “na Administração Pública atual, administrar é, sobretudo, contratar”.3
De ferramenta e/ou engrenagem destinada prioritariamente ao atendimento imediato das necessidades de custeio e de utilidades para a gestão pública, o contrato público passa a ser empregado, sobretudo, como mecanismo de regulação da colaboração dos particulares com a Administração para a consecução de finalidades públicas,4 isto é, os contratos deixam de funcionar tão-só como instrumento técnico-jurídico para o exercício de atividades-meio e passam a servir diretamente para a prossecução de atividades-fim.5
Neste movimento, também designado de governo por contrato(s), surgem aplicações consideradas “inovadoras”6 para o contrato na gestão pública, destacando-se o emprego sistemático de formas de externalização (contracting out, outsourcing) de funções públicas, o recurso à contratação interna (contratação in house) entre entidades da Administração Pública,7 a utilização do contrato como instrumento de regulação pública8 e como substitutivo de sanções administrativas, tais como os acordos substitutivos nas sanções regulatórias, os termos de ajustamento de conduta, compromissos de cessação de prática na
1 Sobre a atividade de “administrar por contratos” ver as obras de: AUBY, Xxxx-Xxxxxxx. Comparative aproaches in the rise of contract in the public sphere. Public Xxx, Xxxxxx, 0000, p. 41.; e XXXXXXXXX,
M. Government by Contract and public law, In: Public Law, 1994, p.89.
2 Cfr.: XXXXXX, Xxxxxxx X., Governing by contract: challenges and opportunities for public managers.
Washington: CQ Press, 2003, p. 46.
3 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx; JURKSAITIS, Xxxxxxxxx Xxxxxx. Apresentação. In: XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx; XXXXXXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx. (coord.) Contratos Públicos e Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 13.
4 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. Autoridade e Consenso no Contrato Administrativo. Coimbra: Coimbra editora, 2001, p. 01.
5 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Do Contrato Administrativo à Administração Contratual. In: Revista do Advogado. Volume 107, São Paulo, AASP, dezembro de 2009, p.74.
6 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxx. The new public contracting: regulation, responsiveness, relationality. Oxford: Oxford University Press, 2006, p.03.
7 No Brasil, a contratação interna pode ser exemplificada nos contratos de gestão. O fenômeno relativo à governança por contratos internos é exaustivamente delineado por XXXXXX, Xxx. Accoutability: a public law analysis of government by contract. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 34 e seguintes.
8 Cfr.: XXXXXXXXX, Xxxxx. Reflexões sobre o Estado Regulador e o Estado Contratante. Coimbra: Coimbra editora, 2013, p. 14 e seguintes.
esfera concorrencial, dentre outros.
O reconhecimento da ascensão do contrato como instrumento fundamental de governo impõe ao Direito Administrativo contemporâneo o desafio de se amoldar a essa nova arquitetônica administrativa, na qual a proliferação do contrato demanda uma cultura administrativa apta a compatibilizar tanto o consenso9 que o instituto contratual reclama, quanto a autoridade da Administração, que a finalidade pública pressupõe.10
Se, de um lado, a finalidade pública contratualizada deve ser alcançada, o que funciona como justificativa para uma certa posição jurídica sobranceira da Administração em relação ao contratado; de outro, esses poderes podem pôr em causa a evolução da relação contratual tal como inicial e consensualmente idealizada, ensejando a todos danos emergentes, inclusive à própria Administração.11 Portanto, a adequada conformação entre a “lógica da função” e a “lógica do contrato” nestas relações jurídicas é um imperativo atual, pois a assimetria jurídica entre os contratantes ainda pode ser considerada o “ponto dramático”12 dos contratos públicos.
O presente estudo pressupõe a necessidade de adequação jurídica entre essas duas “lógicas” no direito contratual público, mas pretende ir além no exame das categorias jurídicas que conformam o movimento do governo por contrato(s).
Nesse itinerário, partindo do direito contratual público, pretende-se desvelar os modelos de repartição de tarefas e do compartilhamento de responsabilidades entre as especialidades pública e privada que emergem na contemporaneidade. A rigor, eles buscam aproveitar, em máxima medida possível, a capacidade privada para servir a objetivos públicos, a partir do acionamento do “potencial endógeno da sociedade”, bem como do
9 Nesse sentido, destaca Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx que “(...) o contrato administrativo continua bem actual e, surpreendentemente, a dualidade em que ele sempre se baseou – consenso e autoridade – é até um dos sinais distintivos do direito administrativo do nosso tempo. In: O Contrato Administrativo: Uma instituição do direito administrativo do nosso tempo. Coimbra: Almedina, 2002, p. 09 e seguintes.
10 Nesse passo, aduz Odete Medauar que “(...) no quadro de atenuação do caráter unilateral e impositivo do agir administrativo, no pano de fundo da efetivação da democracia no exercício do poder, na esteira da busca do diálogo, do consenso, da negociação, do acordo, da mediação, emergiram técnicas contratuais, também denominadas consensuais ou convencionais ou cooperativas ou colaborativas, cujas características fogem a vários elementos dos contratos administrativos clássicos. In: MEDAUAR, Odete. Nota sobre a contratualização na atividade administrativa. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, mar./ago. 2012.
11 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx. Introdução: Reflexões iniciais a partir dos 10 anos da lei das PPP. In: Parcerias Público-Privadas: Reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004. XXXXXX XXXXX, Xxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx. (coord.). São Paulo: Editora XX, 0000, p. 40.
12 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx. Introdução..., p. 40.
patrimônio de conhecimentos, da capacidade criativa e da aptidão dos atores privados para a solução de problemas.13
Nesse sentido, a eventual negação – inclusive de caráter ideológico – ao imperativo recente do governo por contrato(s) pode conduzir a situações de índole fática e de natureza jurídica nas quais os escopos éticos e funcionais constitucionalmente atribuídos à Administração Pública não sejam atendidos.14 Isso porque, nos últimos anos, os contratos públicos se tornaram a forma por excelência de implementação de políticas públicas de caráter desenvolvimentista e, por conseguinte, passaram a receber uma atenção muito mais intensa por parte da literatura jus publicística.
Esse destaque deriva também do fato de que os contratos públicos representam dimensão indiscutível do PIB (Produto Interno Bruto) de todos os países. De acordo com Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxx, “em países em vias de desenvolvimento e em economias em transição com setores econômicos privados subdesenvolvidos, a proporção dos contratos públicos em relação ao PIB pode ser de 40%”.15 Nos Estados Unidos, os contratos públicos equivalem a cerca de 20% do PIB anual. Em 2009, na União Europeia, a contratação pública correspondeu a 19,4% do PIB de 27 países membros.16
No Brasil, excetuados os contratos públicos de parceria, concessão e permissão de serviços públicos, as compras públicas (aquisições de bens e serviços) da União, Estados e Municípios representaram aproximadamente 6,7% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2007. Em 2012, as compras da Administração representaram mais de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro17. Incluídos todos os arranjos contratuais dos quais Estado brasileiro participa, alcança-se o índice de 21,5% do PIB de 201218, de modo que, nos últimos anos,
13 XXXXXXXXX, Xxxxx. Entidades Privadas com Poderes Públicos: O exercício de poderes públicos de autoridade por entidades privadas com funções administrativas. Coimbra: Almedina, 2008, p. 14.
14 Nesse sentido: XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. A relação jurídica fundada em contrato administrativo. In:
Cadernos de Justiça Administrativa. IX Seminário de Justiça Administrativa. nº 64. Jul/ago. 2007, p. 36.
15 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. A Contratação Pública como instrumento de política econômica. Coimbra: Almedina, 2013, p. 14.
16 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. A Contratação..., p. 193-194.
17 Gestão da Execução de Contratos Administrativos pelo Poder Público. Xxxxx Xxxxxxxxx (coord.) In: Brasil. Ministério da Justiça. Secretaria de Assuntos Legislativos Mecanismos jurídicos para a modernização e transparência da gestão pública. Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos. v. 2.Brasília: Ministério da Justiça, 2013, p.18,
18 Cfr.: Relatório de Contas Nacionais Trimestrais do IBGE, referência PIB - 2013.
verifica-se um crescimento vertiginoso da participação da contratação pública em relação ao montante total da riqueza produzida anualmente no país.
A contratação pública tem funcionado, ademais, como base e forma de financiamento de todos os grandes investimentos atuais em infraestrutura, como portos, aeroportos, rodovias, energia elétrica, gasodutos etc, assim como nos planos de mobilidade e de urbanização.
Por conseguinte, a verificação de que, no mundo em geral e no Brasil em particular, “contracting out is in”19 é irrefutável. A mera constatação quantitativa do fenômeno, porém, diz pouco. É impositivo que sejam examinados os efeitos e as consequências da ampliação da contratação pública como mecanismo de ação estatal propriamente dito e não apenas como atividade instrumental.
Por meio de contratos públicos de concessão, por exemplo, o Estado transfere a responsabilidade direta da prestação do serviço, mas, por igual, retém o controle das variáveis atinentes ao cumprimento do contrato. Nestes contratos incidem elementos políticos, econômicos, jurídicos e sociais nos quais o Estado, inequivocamente, deve se fazer presente, regulando, controlando, assegurando e garantindo os direitos e obrigações dos protagonistas do serviço: tanto os prestadores (e/ou fornecedores), quanto os usuários e cidadãos.
Esses contratos não se limitam a estabelecer o conteúdo das obrigações ou a prestação objeto do contrato. Eles vão muito além, pois determinam, ao mesmo tempo, as condições em que devem se desenvolver as prestações, as metas de qualidade e extensão do serviço a ser prestado, os pagamentos a serem feitos, a modernização e permanente atualização dos meios materiais e técnicos relativos à prestação, as tecnologias a serem empregadas etc.20
É nesse modelo de Administração Pública que exsurge a figura de um contrato público, no qual, paralelamente ao seu escopo nuclear, são adicionadas finalidades contratuais acessórias ou suplementares, transversais ou horizontais, ao objeto primeiro das prestações contratuais, mas igualmente presente no bojo e no contexto da sua celebração.21
19 GREVE, C; XXXXXXX, Xxxxx. Contracts as reinvented institutions in the public sector: a cross-cultural comparison. Westport: Pareger Publishers, 2005, p. 02.
20 XXXXX, Xxxxxxx. Ecuaciones de los contratos públicos. 2ª. edição. Buenos Aires – Madrid – Mexico: Hispania libros, 2008. p. 87.
21 XXXXXXXXX, Xxxxx. A regulação do mercado da contratação pública. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 3, n. 3, p. 201-208, mar./ago. 2013.
A contratação pública se converte, nessa conjuntura, como uma (nova) oportunidade para o Estado desenvolver finalidades públicas que, até então, seriam realizadas por outros meios tradicionais de ação estatal, tais como políticas públicas realizadas pelos próprios agentes estatais. Vale dizer, sob o governo por contrato(s), a Administração pode pretender a adjudicação de um objeto primário, como uma obra pública, a obtenção de um bem, a prestação de um serviço público ou a exploração de um empreendimento e, simultaneamente, a promoção também de fins paralelos ao do contrato, tais como, a inovação, a preservação ambiental, o desenvolvimento da produção industrial, a melhoria do emprego, da saúde pública, das condições sociais e, em especial, a inclusão de grupos hipossuficientes.22
A inserção de finalidades paralelas à pretensão original não tem o condão de desnaturar a avença celebrada. Ao contrário, a partir delas é possível a reafirmação da “lógica da função” pública, também na esfera do instrumento contratual.
Desde as suas raízes privadas, tem-se que um contrato deve atender um equilíbrio entre as partes, isto é, deve ser balanceado, equitativo, no sentido de satisfazer fins de uma justiça comutativa. Essa perspectiva ainda é central no direito dos contratos, sejam eles de natureza privada ou público-administrativa; vide, por exemplo, a permanente preocupação teórica e prática acerca da necessidade da intangibilidade do equilíbrio econômico- financeiro dos contratos. Contudo, os contratos públicos que emergem do movimento do governo por contrato(s), não podem se bastar na garantia de uma justiça exclusivamente de cariz comutativo. Em virtude do papel protagonista assumido por eles na gestão pública contemporânea, passam esses contratos a funcionar (isto é, a ser e a estar funcionalizados) como técnica de alcance de uma justiça também de caráter distributivo.
Nesse sentido, a tessitura jurídica contemporânea do Estado e também do contrato público impõe a este último, como instrumento e afazer substancial estatal, a obrigação de realizar uma justiça distributiva que deveria ser ínsita a qualquer tarefa estatal, mas que, até pouco tempo atrás, estava fora do escopo da conformação (ou de visualização) do contrato público.
A justiça contratual mencionada não pode ser entendida apenas como resultado do equilíbrio entre as partes. Na sua vertente distributiva, ela contempla a satisfação de fins supra partes, uma vez que as relações jurídicas contidas na contratação pública
22 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. A Contratação..., p. 19.
contemporânea podem ser consideradas multilaterais e/ou poligonais e o equilíbrio de múltiplas equações formadas pelas diversas partes contidas no contrato não se restringe à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro. Como se pretende demonstrar na presente investigação, a nota distintiva dos contratos públicos na contemporaneidade é dada pela unidade de múltiplos e proporcionais conteúdos, os quais são responsáveis por elevar a avença administrativa a também atuar, ao lado das demais tarefas estatais, como um instrumento de satisfação de uma justiça de índole distributiva.
Embora pareça atrativa na teoria e aplicável na prática, sobretudo em virtude da sua consonância com a pauta axiológica da Constituição Federal de 1988, a utilização da contratação pública para fins de políticas públicas consideradas alheias ao objetivo imediato da celebração do contrato pode se apresentar, em certa medida, de maneira problemática. Isso porque podem surgir dificuldades desde o processo de seleção do contratado, em virtude da eleição de preferências impróprias entre propostas, até consistir em um possível excesso de intervenção das entidades públicas contratantes em opções de organização interna dos contratados, como políticas salariais ou métodos de produção, no caso de políticas públicas sociais.
Há outras críticas plausíveis que devem ser analisadas. Em última análise, a introdução de objetivos de política secundária nos contratos públicos pode resultar no aumento de preços pela repercussão do custo do cumprimento destas medidas pelos agentes econômicos, de forma a demonstrar certo grau de ineficácia destas políticas levadas a efeito no contexto da contratação pública.23
É claro que essas finalidades subsidiárias, mediatas e/ou horizontais não podem prejudicar os fins imediatos do contrato, relativos à obtenção das utilidades necessárias e em condições adequadas para a Administração, com igual respeito ao direito do contratado e dos usuários, nos termos da normatização aplicável. Além disso, a insistência excessiva em objetivos de política acessória e/ou secundária pode, por exemplo, contribuir para o desequilíbrio financeiro do setor contratante.
Pode-se aludir, ademais, que a contratação desprovida da prossecução de objetivos de política horizontal ou secundária, primo occuli, parece ser mais eficiente, uma vez que a adição de outros objetivos mediatos poderia conduzir a uma mitigação da ideia do best value
23 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx. A Formação dos Contratos Públicos: Uma concorrência ajustada ao interesse público. Lisboa: AAFDL, 2013, p. 401.
for money, se este for tomado a partir de uma perspectiva econômica estrita.
Como se pretende demonstrar no curso do trabalho, a possibilidade de mitigação do value for money não significa que tais políticas acessórias devam ser evitadas.24 Ao contrário. Explica-se: a eficiência econômica voltada a seu objetivo principal, em princípio, pode ser cega do ponto de vista dos ideais de justiça.25 No Estado contemporâneo, com objetivos fundamentais expressos e estabelecidos constitucionalmente, v.g., no Brasil, no artigo 3º da CF/88, esta forma de cegueira quanto à justiça da realização, contudo, não pode ser permitida.26
Cabe, portanto, a cada comunidade política procurar, à luz da sua axiologia constitucional, o ponto de equilíbrio entre os deveres e as preocupações de eficiência administrativa e as inquietações a propósito dos ideais de justiça que deverão ser alcançados.27
Por definição, as políticas públicas horizontais constituem uma proposta de compromisso de sustentabilidade e de equilíbrio de cada comunidade e, como tais, representam opções (políticas) para cada governo. Soluções de compromisso, como as contidas nas políticas públicas inseridas na contratação pública contemporânea, impõem o dever de ponderação entre os sacrifícios em matéria de eficiência e os objetivos de políticas públicas a serem concretizados.28
Vislumbra-se que o objetivo estabelecido nesse estudo, para além de confrontar e buscar compor as tradicionais dicotomias público e privado, poder e contrato, autoridade e consenso, função e autonomia, políticas centrais e políticas secundárias, pretende compatibilizar a ideia de uma igualdade e/ou justiça puramente comutativa, a priori ou “a
24 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. A Contratação..., p. 19.
25 Para a satisfação da eficiência econômica, bastaria per se, o alcance ótimo da finalidade. Cfr.: XXXXXX, Xxxxxxx X. A Economia da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 108 e seguintes. Contudo, como destacam Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx e Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx, não se pode “(...) advogar a substituição de valores plasmados em dispositivos constitucionais e legais por um critério de eficiência, lido à luz da escola econômica neoclássica, especialmente a de Chicago. Já foi demonstrado que tal viés não contribui para a solução de dilemas relevantes da sociedade brasileira, seja por seu neutralismo ético em face das disparidades de renda entre os distintos atores sociais, seja pelo simplismo de determinadas presunções que sustentam seu edifício teórico”. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx. Análise Econômica do Direito e Possibilidades Aplicativas no Brasil. In: Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Belo Horizonte, ano 03, nº 9, jan. / mar. 2005, p. 68.
26 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx. A Formação..., p. 401.
27 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx. A Formação..., p. 401.
28 XXXXXX, Xxxxx. Procurement in the EU – A Practitioner’s guide. 2ª ed., Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 390.
partida”, com uma ideia de igualdade e/ou justiça distributiva, efetiva, a posteriori ou “à chegada”, que passou a ser intrínseca à contratação pública contemporânea e que pode, atualmente, servir como modo de que qualificação de uma avença pública como tal.
Eis o cerne do presente trabalho. Parte-se do movimento atual, intenso e progressivo de incorporação do discurso e da prática contratual no agir administrativo, para visualizar que o emprego da via contratual tem o condão de produzir mais resultados do que o esperado inicialmente. Os resultados alcançados por meio da ampliação da contratação não dizem respeito exclusivamente à Administração ou aos contratados, mas à toda a coletividade. A contratação pública sob esta perspectiva possui uma eficácia multiplicativa, não encontrada em todos os meios de ação estatal o que, per se, justifica uma investigação mais detalhada sob este prisma.
Na primeira parte, denominada de A Ambiência de Desenvolvimento e Consolidação do Contrato Público, o desenvolvimento da tese contempla inicialmente a demonstração de que a ideia de governo por contrato(s) é difundida em todos os sistemas de Administração Pública na contemporaneidade, não cabendo mais questionamentos sobre a sua existência. Vale dizer, demonstra-se que não parece mais ser útil per se o exame das vantagens ou desvantagens da contratualização governamental, já ela ocupa um lugar central no Direito Público contemporâneo. Antes disso, sugere-se que, ao invés de se arguir se ela é boa ou má, útil ou inútil, deve-se buscar o desenvolvimento do direito dos contratos públicos para o aprimoramento, a facilitação e o accountability das atividades governamentais nessa área.29
Para tanto, no capítulo I, são analisados alguns elementos que conduzem à crescente adesão à ideia de governo por contrato(s), bem como alguns efeitos decorrentes do emprego mais intenso dos contratos na gestão pública atual, tais como: (i) o acionamento do potencial privado para a realização de tarefas públicas; (ii) a maior flexibilidade do contrato na composição de relações jurídicas; (iii) o alargamento do rol de efeitos jurídicos produzidos com base no contrato; (iv) o deslocamento da norma da lei para o contrato; (v) a maior margem de consensualidade, inclusive com cláusulas contratuais estabelecidas no âmbito de uma fase pré-contratual de negociação; (iv) a introdução de contratos atípicos com a multiplicidade de objetos; (vii) a possibilidade do uso de contratos por desempenho, em que o contratado se vincula a metas de desempenho; (viii) a maior flexibilidade na alocação de riscos, com a estipulação da repartição de ganhos de eficiência para o Estado; (ix) a
29 XXXXXX, Xxxx. The Public Law of government contracts. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 331.
possibilidade de flexibilização do regime de equilíbrio econômico e financeiro; e (x) a multiplicação de contratos de cooperação.30
Ao final desse capítulo, analisa-se a possibilidade de implementação de políticas públicas por meio da contratação pública de longa duração.
Ainda nessa parte, mas no capítulo II, examina-se a atual configuração de alguns aspectos centrais do Direito brasileiro dos contratos públicos; em especial, a questão relacionada à nomenclatura dos contratos, assim como questões atinentes ao grau de autonomia pública contratual, ao dilema oriundo da divisão entre a “lógica da função” e a “lógica do contrato” presentes nas relações jurídicas estatais de consenso e aos elementos e atributos que definem os contratos públicos e, especialmente, em que medida as teorias jusprivatistas de liberdade contratual e autonomia se aplicariam às avenças públicas.
Encerra-se esse capítulo, com alusão à plurissignificação contemporânea dos contratos públicos, na medida em que eles passam a assumir no contexto do governo por contrato(s) em grau semelhante, os significados de ferramenta de gestão, de expressão de interesses públicos, de causa de obrigações, de fonte de direito, de técnica de desenvolvimento, de forma de resolução de conflitos, de princípio de seleção do contratado e de cenário das justiças comutativa e distributiva.
Na segunda parte do trabalho, designada As Transformações do Contrato Público a Partir do seu Emprego como Instrumento de Governo, são examinadas as modificações ocorridas nos contratos públicos a partir do seu emprego como atividade finalística da Administração.31 Em especial, como pode ocorrer a prossecução de políticas públicas secundárias, acessórias e/ou horizontais por meio dos contratos públicos.
No terceiro capítulo, argumenta-se que, a partir da busca de fins extracontratuais, o contrato público deixa de ser considerado exclusivamente objeto de regulação (caso em que a regulação ocorreria por agência) e passa a funcionar, per se, como agente e/ou mecanismo de regulação pública (caso em que a regulação ocorre por meio do próprio contrato público).32
30 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Do Contrato Administrativo..., p.79-80.
31 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. O Contrato Administrativo como Instrumento de Governo. In: Xxxxx Xxxxxxxxx (Coord.) Estudos de Contratação Pública. Vol. IV. Coimbra: Coimbra editora, 2010, p. 12 e seguintes.
32 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Regulação Administrativa e Contrato. In: Revista de Direito Público da Economia. Ano 9, nº 35, jul-set.2011, p. 124 e seguintes.
Nessa perspectiva, fundamenta-se que a inserção de finalidades acessórias no âmbito da contratação pública pretende o aproveitamento e, mais, a própria “internalização”, na medida das possibilidades jurídicas, sociais e econômicas, das chamadas “externalidades positivas” (spillover effects) como escopo do próprio contrato33 e, dessa forma, “o contrato tenderá a fixar relações ‘preços-quantidades’ que tendem a se aproximar do ótimo social”.34
Como a possibilidade de se lançar mão de políticas secundárias no âmbito da contratação pública pressupõe a submissão a alguns critérios, entre os quais o coeficiente do vínculo entre a política secundária em relação ao objeto central, o postulado da proporcionalidade e a justificação da política secundária em motivos de interesse coletivo, eles serão analisados para fins de verificação da pertinência entre a prossecução da política pública horizontal e a finalidade primeira (e o objetivo imediato) do contrato celebrado.
No quarto capítulo, tomando-se por premissa a utilização do contrato como instrumento de governo e da inserção, no seu escopo, de políticas horizontais, passa-se a aludir ao critério da sujeição à distributividade (e aos ideários de uma justiça contratual distributiva) como proposta para a qualificação de uma avença estatal como contrato público, a título de complementação dos critérios tradicionais de definição destes módulos convencionais.
Ao final, são apresentadas algumas aplicações de políticas públicas horizontais, as quais corroboram o papel dos contratos públicos como instrumento de realização de ideais de justiça distributiva. As políticas públicas apresentadas, inseridas no bojo das avenças, de forma explícita ou implícita, representam também, de certa forma, algumas equações dos contratos públicos, os quais, na contemporaneidade, não se bastam na garantia da intangibilidade da equação econômico-financeira – que se mantém mais hígida do que nunca
– mas devem por igual, satisfazer outros fins para que se adequem às exigências contemporâneas, ainda que previstas desde 1988, a partir da promulgação da Constituição Federal.
Cumpre destacar, ainda, que a presente investigação não tem por objetivo promover uma revisão integral da bibliografia nacional e estrangeira atinente aos contratos públicos e o seu emprego contemporâneo, o que, nos seus estreitos contornos temporais e demarcações
33 Cfr.: XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx de. A Admissibilidade de políticas secundárias na contratação pública: a consideração de fatores ambientais e sociais. In: Estudos de Direito Público. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 127 e seguintes.
34 XXXXXX, Xxxxxxxx. Introdução à Economia. 3ª ed., Coimbra: Almedina, 2006, p. 553.
físicas seria impossível. Chamou para si, no entanto, o dever acadêmico de sistematizar as fontes e as mediações mais relevantes para delinear um fio-condutor hábil a demonstrar um retrato plausível dos contratos públicos contemporâneos e a possibilidade do seu emprego para a realização de uma justiça de cariz distributivo.
PARTE I – O AMBIENTE DE DESENVOLVIMENTO E DE CONSOLIDAÇÃO DO CONTRATO PÚBLICO.
“[Que] adoráveis propósitos aqueles dos juristas que nos dizem: ‘O Estado é isso, a Nação, aquilo’. Lá vão eles com a fita métrica na mão: ‘Cintura, tanto... Ombros, tanto...!’ Acabada a roupa, grito de triunfo: ‘Como cai bem!’ Ora, o que é, no entanto, que cai?”35
“Os contratos públicos não são distintos dos contratos privados. As obrigações que cada um suporta são tuteladas pelo Direito e os contratos públicos são governados pelos mesmos cânones de interpretação aplicados aos contratos entre pessoas naturais”.36
Nesta primeira parte, busca-se evidenciar o ambiente social, político e, sobretudo, jurídico no qual os contratos públicos emergem como instrumento por excelência de ação administrativa.
Para tanto, são examinadas algumas das múltiplas circunstâncias que propiciam a adesão ao movimento contemporâneo de governo por contrato(s) e os efeitos dele decorrentes nos mais diversos modelos de Administração Pública, como, v.g., a possibilidade de contratualização das políticas públicas para além do período constitucionalmente estabelecido para o mandatos dos agentes políticos, em especial dos chefes do Poder Executivo de todas as esferas da Federação.
Constitui ainda objeto da primeira parte da investigação a análise da atual feição dos contratos públicos no Brasil, com destaque às questões atinentes à sua natureza, margem de liberdade, grau de autonomia (pública) contratual e consequente nomenclatura, atualizada.
Ademais, argumenta-se que, em última análise, a permanente busca doutrinária pela
autonomização dos contratos públicos em relação aos contratos privados levou a que,
35 XXXXXX, Xxxxxx. Honra e Pátria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 28.
36 XXXXXXXX, Xxxxx. A Treatise on the Law of Public Contracts. Boston: Litlle Xxxxx, 1988, p. 273.
atualmente, o direito público brasileiro dos contratos não dialogue abertamente com o direito contemporâneo dos contratos privados – distinto sobremaneira da matriz contratual clássica, do qual o contrato público historicamente quis se libertar.
No afã de se definir em bases próprias, a doutrina do contrato administrativo permanece, pois, dialogando com um modelo de contrato privado próprio do século XIX, que já morreu. Com isso, perde-se a possibilidade do emprego de (novos) elementos e categorias importantes já trabalhados no âmbito da contratação civilista, empresarial e do consumidor para o bom desenvolvimento das relações contratuais realizadas pela Administração, tais como novas metodologias interpretativas dos contratos de adesão e de cláusulas contratuais, de mutação em matéria interpretativa, de inovações no regime de invalidação de cláusulas com a manutenção das avenças etc.
Propugna-se, por conseguinte, pelo reestabelecimento deste diálogo, nos termos delineados a seguir, no capítulo II.
CAPÍTULO I – O GOVERNO POR CONTRATO(S): A ARQUITETÔNICA DE UMA ADMINISTRAÇÃO CONTRATUAL
“(...) em tempo algum foi possível conduzir o governo civil ou as guerras internas ou externas deste reino sem recurso à aquisição e bens e serviços a cidadãos privados”.37
“(...) porque se o direito é a locomotiva que dá impulso às políticas públicas, não deixa também de ser o conjunto dos carris por onde estas devem circular”.38
O objetivo deste capítulo é demonstrar que a contratação pública assumiu um papel de relevância inquestionável na Administração contemporânea em substituição (ou, ao menos, complementação) às tradicionais formas unilaterais de ação administrativa, de modo que, nos últimos anos e nas diferentes nações – a despeito das diferenças entre os sistemas jurídicos e as organizações administrativas – tornou-se corriqueira a referência à ideia do exercício da atividade governamental por meio dos contratos.39
37 XXXXXX, Xxxxx. Government Contracts. Harmondsworth: Penguim, 1978, p. 37.
38 XXXXXX, Xxxxx xx Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxx. Direito das Políticas Públicas. Coimbra: Almedina, 2009, p. 58.
39 Argumentam, nesse sentido, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx e Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx que “(...) o peso do setor público na procura de bens e serviços em nenhum momento da história terá sido tão significativo como na nossa contemporaneidade. Para isto concorrem circunstâncias de várias ordem: por um lado, a apologia do “recuo” do Estado, de migração para um modelo de Estado menos intervencionista, que consagrou a ideia de que “é melhor comprar do que produzir”; depois, uma certa glorificação da eficiência e da perícia do setor privado que explicou a conveniência na ativação do potencial privado para servir o interesse público; além disso, as restrições e condicionantes de natureza financeira, que incentivaram os modelos de entrega a pessoas privadas da responsabilidade pela realização de investimentos de grande porte em bens públicos; a “descoberta” de que as compras públicas podem ser também um instrumento de regulação pública da economia, fazendo emergir o que se designa por utilização estratégica da contratação pública, por exemplo para fomentar de certas produções em detrimento de outras (vejam-se as compras ecológicas). Estes são apenas alguns dentre múltiplos fatores que explicam e justificam a alusão ao Estado do nosso tempo como um Contracting State. O “Estado contratante” suscita problemas jurídicos com novos contornos, que, em geral, reclamam soluções inovadoras e ponderadas dos legisladores e que, paradoxalmente, comportam novas exigências para o Estado: eis o que ocorre nos planos da garantia da ética e da integridade das licitações ou do combate à corrupção e aos casos de conflitos de interesses, ou com a garantia da igualdade de acesso e de condições de concorrência entre os operadores econômicos, ou, em plano já diferente, com a proteção do interesse público financeiro (best value for Money) ou, o que é o mesmo, dos interesses dos contribuintes. Mas os novos problemas suscitados não se limitam às licitações: quanto mais contrata, mais o Estado fica dependente dos contratantes; ora, isto impõe uma cautela redobrada com o desenho de uma reforçada
Consoante afirma Xxxxxx Xxx Xxxxxxxx, “o mundo das contratações públicas está em ebulição”, e representa um locus das grandes inovações do direito público contemporâneo, tendo se transformado em verdadeira “vedete” do direito administrativo.40 Assim torna-se impositivo o seu exame mais detalhado, a começar pela visualização de que o agir estatal bilateral, tal como regularmente apresentado na ação contratual, encontra-se no cerne do contratualismo moderno que alicerça o modus vivendi contemporâneo. Na sequência, examinam-se algumas causas para a implementação do governo por contrato(s) e alguns os efeitos dele decorrentes,
1.1. Do contrato social ao governo por contrato(s): A base bilateral da ideia de governo.
Governo é um substantivo. Dificilmente, em uma frase, o signo governo está desacompanhado de um ou mais adjetivos. Tal como o substantivo estado, atualmente, a ideia de governo demanda um complemento,41 sob pena de parecer desprovido de sentido per se em determinada frase ou texto.
De certa forma, é possível se afirmar que o mal-estar cotidianamente externado a propósito da imagem de governo pode ser explicado na medida em que as práticas governamentais contemporâneas não têm sido perfeitamente adequadas à tábua axiológica constitucional42 correspondente (i) à plena organização e alocação adequada dos meios públicos, (ii) à realização de direção e à execução da Administração Pública no sentido de dotá-la de maior eficiência e (iii) à coordenação e ao planejamento estratégico da ação coletiva, em diversos níveis e abrangências, tomada em um prazo vasto o suficiente para a
“responsabilidade pública de gestão de contratos”, posto que, em larga medida, a função do “Estado contratante” se cifra em acompanhar e vigiar o que, em execução do contrato, vão fazendo os contratantes privados. In: Editorial. Revista de Contratos Públicos – RCP. Belo Horizonte, ano 1. nº 1, mar./ago. 2012.
40 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx. Apresentação. In: Contratações Públicas e seu Controle. Xxxxxx Xxx Xxxxxxxx (Org.) São Paulo: Malheiros, 2013, p. 04.
41 Conforme Xxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx “(...) um Estado carecedor de adjectivos indica um claro mal-estar do próprio Estado. Parece não ter substância. Apela a algumas qualidades. É tudo ou nada. É uma fórmula passe-partout. Não tem ADN. Precisa de impressões. Já não é o grito de batalha. É um argumento. De categoria política passa a topos argumentativo. Será assim? Ousemos fazer uma provocação: diz-me o adjectivo do Estado e eu dir-te-ei que Estado tens ou queres”. XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxx. Estado Adjectivado e Teoria da Constituição. In: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Volume 03. Curitiba: Academia Brasileira de Direito Constitucional, 2003, p. 456.
42 XXXXX, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 33.
realização dos seus objetivos e efetivada em um horizonte temporal breve para a manutenção da credibilidade no processo.43
Nos últimos anos, sem embargo dos inequívocos avanços institucionais ocorridos; em especial, no Brasil, onde as eleições regulares, as agendas políticas progressivamente mais responsivas e o controle judicial tem sido muito mais atuante, há a percepção coletiva de que o desenvolvimento social decorre muito mais da libertação de forças sociais e econômicas latentes do que de ações e medidas coordenadas e planejadas de natureza governamental.44
Uma nova atribuição de sentido ou a substantivação da ideia de governo pode perpassar pela compreensão de seu papel contemporâneo, na forma colocada por Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx, que compreende o funcionamento do governo “enquanto disparador e condutor de processos de transformação, com o emprego de meios próprios do Estado ou postos à sua disposição, ou seja, os modos pelos quais se dá a conversão do impulso político em ação governamental, exposta à participação e ao contraditório social e à incidência das normas e controles de maneira geral”.45
A atribuição de novos sentidos à ideia de governo, em especial, levando a cabo suas funções através de diferentes arranjos, por meios próprios ou postos à sua disposição, para a prossecução direta de direitos ou a organização de formas econômicas e sociais aptas a realizá-los (prossecução indireta), demanda a análise prévia – ainda que breve – da compreensão clássica e/ou tradicional da atividade governamental.
Na esfera da ciência política, a rigor, governar significa titularizar uma posição de comando, a partir da qual é possível a tomada de decisões associadas ao exercício de poder.46
No caderno federalista nº 51, Xxxxx Xxxxxxx questiona “(...) o que é o governo em si próprio senão a maior de todas as reflexões sobre a natureza humana?”47 A pergunta a propósito de qual seria a melhor configuração de um governo ou a mais adequada gestão das
43 XXXXX, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx. Fundamentos..., p. 33. 44 XXXXX, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx. Fundamentos..., p. 33. 45 XXXXX, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx. Fundamentos..., p. 33.
46 De acordo com Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, o governo se constitui de (...) um corpo intermediário estabelecido entre súditos e o soberano, para permitir sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil, como política”. In: XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. O Contrato Social. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 72.
47 XXXXXXX, Xxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxxxx; XXX, Xxxx. O Federalista. In: Os Clássicos da Política. Xxxxxxxxx Xxxxxxx (org.). 5ª ed., São Paulo: Ática, 1995, p. 46.
coisas comuns ou dos bens públicos sempre esteve no imaginário popular, razão pela qual, desde as sociedades clássicas, incalculáveis formas de governo, vale dizer, de exercício do poder de decidir em nome e em (des)favor xxxxxx, foram levadas a efeito.
Na atualidade, porém, ao ser questionado acerca de qual seria a melhor forma de governo, invariavelmente o interlocutor lançaria mão de alguma tese com sentido ou fundamento contratualista, com fundamento histórico e filosófico na modernidade. Vale dizer, a concepção que em geral se exprime, é o de base bilateral para o exercício do poder político estatal.
A busca de superação do estado de natureza, a partir do processo de desencantamento e racionalização do mundo, levou a que o ideal moderno de emancipação, no sentido de conquistar a natureza e subordiná-la às necessidades humanas, ocorresse a partir da regulação (disciplina) estatal. Da guerra de todos-contra-todos passou-se à pretensão de uma coexistência baseada na previsibilidade e na calculabilidade que a ciência seria capaz de atestar e o Estado capaz de garantir. Com a população se deslocando do campo para as cidades, a percepção da prevalência da lei do mais forte gradativamente passa a ser suplantada, ao menos no campo do imaginário, pelos sentimentos de segurança, de certeza e de garantia,48 obtidos pelo império da lei e sua aplicação irrestrita a todos.
A noção do contrato social, de inspiração predominantemente rousseauniana, apresenta-se no sentido de que os indivíduos abririam mão de sua liberdade individual e passariam estar submetidos à guarida estatal, a partir da sua adesão à vontade geral.49
É claro que não se pode absolutizar as idealizações acima, como sendo o leitmotiv exclusivo dos atuais quadros políticos-jurídicos, mas, ao lado da ascensão da burguesia na sua luta contra as formas absolutistas de governo, própria do século das luzes, foi essa ordem de ideias que contribuiu para a consolidação das formas jurídicas, políticas e sociais a partir das quais foram forjadas as aparelhagens estatais contemporâneas.50
48 No idioma germânico, as pessoas passaram a viver em sociedade em busca do sentimento de Sicherheit, que em sua tradução ao idioma português significa tanto segurança, quanto certeza e garantia. Para Xxxxxxx Xxxxx, em linhas bastante gerais, a concepção de mal-estar da civilização decorre da opção majoritária pela repressão da felicidade que seria inerente a um certo Estado de natureza, em favor do sentimento de Sicherheit. Cfr.: XXXXX, Xxxxxxx. Mal-estar da Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 64 e XXXXXX, Xxxxxxx. Em Busca da Política. Rio de Janeiro: Xxxxx Xxxxx, 2000, p. 26.
49 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. O Contrato..., p. 29.
50 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxx. Direito Público e Sociedade Técnica. Coimbra: Atlântida editora, 1969, p. 39.
A submissão à ideia de uma vontade geral sob a contrapartida da proteção circunscrita por lei conforma um padrão civilizatório que molda a forma de ser e conviver contemporânea. Não é difícil se denotar neste contexto que a regulação social estruturada nos pilares da modernidade é sempre bilateral:51 (i) na esfera pública, há a obrigação política vertical entre o cidadão e o estado; (ii) no mercado, existe a obrigação horizontal individual e antagônica entre os contratantes; (iii) na comunidade, há a obrigação política horizontal solidária entre membros da comunidade e associações.
As bilateralidades acima ratificam o papel relevante do chamado teorema do consenso, pacto ou contrato na compreensão do Estado Democrático e da ordem jurídica dele derivada, na medida em que o Estado e a sua ordem jurídica se reconduzem à “reunião das vontades particulares”.52 Isso significa afirmar que qualquer autoridade no exercício de atividade estatal estaria, em princípio, vinculada a decidir tal como se as suas decisões fossem obra da vontade reunida de todo o povo e, de outro lado, o cidadão deva se considerar kantianamente como se ele próprio tivesse participado na elaboração delas, na forma da máxima volenti non fit iniuria (a quem consente não se faz injustiça).
Os governos nos Estados Constitucionais53 exprimem a sua legitimidade por meio da fórmula “todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido”. A partir dela, como o poder soberano decorre do povo, impõe-se aos governos, ao menos, (i) prescrever e ordenar condutas por meio de seus órgãos; (ii) restringir e adequar os comportamentos desviantes por meio de seu aparato coativo instituído para tornar o monopólio da força a expressão de
51 XXXXXX, Xxxxxxxxxx Xxxxx. A Crítica da Razão Indolente: Contra o desperdício da Experiência. Para um novo senso comum: A ciência, o direito e a política na transição paradigmática. Volume 1. 3ª ed., São Paulo: Cortez, 2001, p. 50.
52 XXXXXXX XX XXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. A Ideia de contrato no centro do universo jurídico-político.
In: Estudos de Contratação Pública. Vol. I. Coord.: Xxxxx Xxxxxxxxx. Coimbra: Coimbra editora, 2008, p. 07.
53 A noção de Estado Constitucional pode ser tomada, como se explicita no presente trabalho, como similar a do Estado Democrático de Direito, submetido à uma Carta Constitucional rígida, que garante a supremacia dos Direitos Fundamentais. Nesse sentido, argumenta Xxxxx Xxxxx que “o moderno Estado pluralista, enquanto expressão de um modelo oposto ao Estado totalitário, afirmando ser um Estado de Direito democrático ou democrático de Direito, é, por definição, um ‘Estado de Direitos fundamentais’: trata-se de um Estado baseado no respeito pela dignidade da pessoa humana e ao serviço da garantia da inviolabilidade dessa mesma dignidade inerente a cada pessoa individual e concreta”. In: XXXXX, Xxxxx. A Crise do “Estado de Direitos Fundamentais” In: Lições de Direito Constitucional em Homenagem ao Jurista Xxxxx Xxxxxx. Xxxx Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx. (orgs.) São Paulo: Saraiva, 2005, p. 179. Na mesma linha, tomada como diretriz para o presente trabalho, argumenta Xxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx que “qualquer que seja o conceito e a justificação do Estado – e existem vários conceitos e várias justificações – o Estado só se concebe hoje como Estado Constitucional”. Para o autor, as duas grandes qualidades do Estado Constitucional são o Estado de Direito e Estado Democrático. In: XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxx. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed., Coimbra: Livraria Almedina, 1999, p. 89.
sua soberania; e (iii) assegurar os direitos fundamentais, que deixam de significar apenas atributos transindividuais e passam a razão de ser estatal.54
Nos governos dos Estados Constitucionais, a concretização das atividades acima, em especial, aqueles relacionados à prossecução de direitos fundamentais, demanda um agir governamental baseado em ações, de índole positiva e negativa, que é chamado de government by policies — governo por políticas ou diretrizes, que se contrapõe à forma de atuação designado por government by law — governo por leis,55 cujo alcance circunscrito na via normativa, mostra-se insuficiente na efetivação dos fins que legitimam e validam o próprio governo.
Nesse sentido, o government by policies, próprio do arquetípico estatal contemporâneo, demanda o recurso a todos os meios de ação capazes da prossecução das políticas a ele cominadas. O contrato público, nesse influxo, passa a ser um deles. Não um instrumento meramente adicional, acessório, suplementar, posto à disposição da Administração, mas, possivelmente, como adiante restará demonstrado, o principal instrumento de concretização de políticas estatais, seja, v.g., em virtude da crescente demanda de salvaguarda e implementação de direitos fundamentais pela população, sejam em razão da posição de permanente crise fiscal estatal.
Na atualidade, o emprego dos contratos públicos acentuou-se de tal modo que passou a ser banal a alusão tanto à ideia de “governo por contrato(s)”56, quanto de “Administração pactuada”57 ou ainda de “Administração por acordos”.58 A expansão de tais figuras foi de tal monta que, de acordo com Xxxxx Xxxxxxx, além da expressão governar por contrato, administrar por pactos ou acordos, nasceram outras, como: direito administrativo cooperativo, contratualização das políticas públicas, administração consensualizada, dentre
54 XXXXXXXXX, Xxxxx. A Nova Separação de Poderes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 11 e seguintes.
55 COMPARATO. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade das políticas públicas. In: BANDEIRA DE XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx (Org.). Estudos em homenagem a Xxxxxxx Xxxxxxx: direito administrativo e constitucional, p. 351.
56 XXXXXX, Xxxxxxx X., Governing by contract: challenges and opportunities for public managers.
Washington: CQ Press, 2003, p. 46.
57 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. Autoridade e Consenso no Contrato Administrativo. Coimbra: Coimbra editora, 2001, p. 01
58 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Diritto amministrativo. 2ª ed. Milano: Giuffrè, 1988, p. 215.
outras.59
Se, de acordo com Xxxxx Xxxxxx Comparato, a implementação do Estado Constitucional e a realização de seus objetivos de salvaguarda de direitos fundamentais, impôs a superação do paradigma do government by law (governo por leis) pelo government by policies (governo por políticas, ações e/ou diretrizes), é possível se referir hoje à complementação desta última forma de ação estatal pelo government by contract (governo por contratos).
A Administração contratualizada e/ou pactuada, nesse passo, opõe-se ao modelo tradicional de gestão administrativa, centralizado e burocrático, na medida em que a estrutura organizacional weberiana não se apresenta atualmente mais capaz per se de estabelecer estruturas de diálogo que permitam à Administração compor os interesses antagônicos e divergentes entre grupos e entidades sociais e sanar os conflitos que caberia a ela arbitrar.
Nesse sentido, em consonância com Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxx, na sociedade técnica, complexa, a boa administração não comporta a arrogância e autossuficiência tradicionais, próprias do paradigma weberiano, como também, não admite a desconfiança e a passividade de um cidadão que se conforme em ser, como lhe atribuem, a condição de um mero administrado.60
Nesse quadro, é que passou a ganhar aplicação a ideia de administração concertada nos anos oitenta do século passado, buscando a troca de pontos de vista e de negociação entre a Administração e os interessados, com o objetivo de se encontrar uma linha de conduta apropriada à solução dos problemas que surgem em cada um dos âmbitos, público e privado e que acaba, na atualidade, juntamente com outros elementos, desembocando na denominada Administração contratual ou governo por contrato(s).
Nessa linha, uma cultura administrativa do diálogo ganha prestígio, no sentido de que o Estado passa a conduzir suas ações de modo a favorecer a visualização de que o modelo de ação bipolar Estado-cidadão cede lugar ao padrão multipolar, sob o qual “os interesses privados coincidentes com interesses públicos comunitários estão em conflito com
59 XXXXXXX, Xxxxx. Nota sobre a contratualização na atividade administrativa. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, mar./ago. 2012, p. 11.
60 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxx. Direito Público e Sociedade Técnica. Coimbra: Atlântida editora, 1969, p. 39.
outros interesses públicos, de natureza nacional. Não há distinção ou oposição público- privado, assim como não há uma superioridade do momento público sobre o privado”.61
Xxxx Xxxxxxx e Xxxxxx Xxxxx argumentam que o Estado atual é, inequivocamente, um “contracting state”, uma vez que ele interiorizou a “cultura do contrato” como forma de realização de seus fins institucionais.62 A contratação pública assumiu, nesse influxo, um papel decisivo na “(...) reconfiguração do papel do Estado e no estabelecimento de pontes de cooperação com as entidades privadas”.63 Vale dizer, é por meio da contratação pública e, por conseguinte, lançando mão dos esforços e potenciais privados, que o Estado passa a ter condições, de fato, de alcançar os fins delineados a ele pela Constituição.
Há, nessa perspectiva, o fortalecimento da negociação na esfera da Administração, por meio de mecanismos convencionais. De acordo com Xxxxxx Xxxxxxx, assume no Estado contemporâneo a negociação em lugar do procedimento, a liberdade das formas em lugar da tipicidade, a permuta em lugar da ponderação.64 Eis o que adiante se buscará demonstrar.
1.2. A aplicação da ideia do governo por contrato(s) e o outsourcing da gestão pública norte-americana.
Em Nevasca65, obra publicada originalmente em 1992, Xxxx Xxxxxxxxxx narra a cidade de Los Angeles no ano de 2010 desprovida de qualquer ação de caráter de estatal. Os bairros são privados e as comunidades administradas por organizações-franquia, os “franchulados” (franquias-consulados), de natureza empresarial privada.
No ano 2028, a cidade norte-americana de Detroit celebra um contrato com o conglomerado multinacional OmniCorp com o objetivo de que a companhia, em áreas degradadas, promova a urbanização e a edificação de uma cidade utópica, a “Delta City”,
00 XXXXXXX, Xxxxxx. Xx xxxxx publica: nuevos paradigmas para el Estado. In: XXXXXXX, Xxxxxx. Las crisis del Estado. Buenos Aires: Xxxxxxx Xxxxxx, 0000, p. 159.
62 XXXXXXX, Xxxx; XXXXX, Xxxxxx. Reframing the outsourcing debates. In: XXXXXXX, Xxxx; XXXXX, Xxxxxx. Outsourcing and American Democracy. Cambridge and London: Harvard University Press, 2009, p. 16.
63 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Entidades Privadas com Poderes Públicos: O exercício de poderes públicos de autoridade por entidades privadas com funções administrativas. Coimbra: Almedina, 2008, p. 330.
00 XXXXXXX, Xxxxxx. Xx xxxxx publica..., p. 157.
65 XXXXXXXXXX, Xxxx. Nevasca. São Paulo: Editora Aleph, 2002.
que por ela (OminiCorp) será gerida. Em contrapartida, a empresa passa a deter o controle de forças militares e se utilizará de um ciborgue privado, Robocop, que irá atuar na área da segurança pública. O Robocop é programado para seguir três diretivas: (i) servir ao interesse público; (ii) proteger os inocentes; (iii) cumprir a lei.
Se há na ficção norte-americana a difusão da ideia de uma gestão privada dos bens coletivos, é porque tal ordem de ideias possui (algum) respaldo na realidade. Ao tratar do tema, a ficção literária e cinematográfica ilustra uma realidade futura. Contudo, consoante aludem Xxxx Xxxxxxx e Xxxxxx Xxxxx, o exercício privado de poderes de autoridade públicos constitui uma realidade presente.66
Vivemos em uma era de quase irrestrita delegação e/ou de terceirização de atividades governamentais, denominada de governo por contrato(s). A partir desta impressionante constatação, Xxxx Xxxxxxx e Xxxxxx Xxxxx, abrem obra na qual buscam enquadrar a configuração contemporânea da gestão pública estadunidense; nela, uma grande gama de serviços essenciais e de administração – consideradas inerentes ao âmbito estatal – como a regulação e o planejamento de políticas, passaram, nos últimos anos, a ser desempenhadas por entidades privadas.67
Nos Estados Unidos da América, a literatura destaca a existência do fenômeno de gestão pública por meio de terceirização de mão-de-obra desde o pós-guerra. A partir de 11 de setembro de 2001, contudo, é que o chamado governo por contrato(s) passou a ser uma forma de gestão administrativa estrutural e não meramente conjuntural na Administração federal e local.
Em princípio, os modelos de gestão por contratos convergiram no sentido de se reservar as funções “core” (centrais) como o poder regulamentar, para as entidades públicas, deixando as funções não essenciais e/ou periféricas – ainda que consideradas estatais propriamente ditas – a serem exercidas por agentes privados. Este paradigma de gestão em que há delegação de atividades-meio a particulares é aceito com certo consenso, inclusive entre os críticos da terceirização.
66 XXXXXXX, Xxxx; XXXXX, Xxxxxx. Outsourcing and American Democracy. Cambridge and London: Harvard University Press, 2009.
67 XXXXXXX, Xxxx; XXXXX, Xxxxxx. Reframing the outsourcing debates. In: XXXXXXX, Xxxx; XXXXX, Xxxxxx. Outsourcing and American Democracy. Cambridge and London: Harvard University Press, 2009, p. 01.
A rigor, nos EUA, as funções “core” não poderiam ser delegadas a entidades privadas. Este entendimento prevaleceu durante muito tempo por determinação da Suprema Corte, que alicerçava seu entendimento expresso nos julgados em uma declaração de Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx – ainda que voltada ao contexto do direito concorrencial – para quem “(...) a liberdade de uma democracia não é segura se as pessoas tolerarem o crescimento do poder privado para um ponto em que ele se tornar mais forte do que o próprio estado democrático (...)”.68
Contudo, tem-se verificado atualmente naquele país, sob o signo da Administração por contratos, muito mais do isso. Funções e atividades estatais até então consideradas propriamente sensíveis, porque submetidas ao crivo democrático,69 estão atualmente sob exercício privado, como a seleção de alvos militares, interrogatórios de detidos, controle de fronteiras,70 elaboração de sistemas de vigilância, gestão de operações de inteligência, controle de acesso a dados militares e informações públicas confidenciais,71 além de expressiva participação de civis contratados para atuar em zona de batalha, inclusive como combatentes.72
Nos últimos anos, o fenômeno acima cresceu de modo tão exponencial que se menciona inclusive a ocorrência de um outsourcing (delegação e/ou terceirização) da própria soberania daquele país.73 Se, incontáveis são os exemplos de delegação de funções estatais às pessoas privadas, ganha ênfase a gestão privada integral da cidade de Sandy Springs,74 na Geórgia, EUA, abaixo ilustrada.
68 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx X., Recommendations to the Congress to Curb Monopolies and the Concentration of Economic Power (Apr. 29, 1938). In: Public Papers of The Presidents of the United States. Washington: Xxxxxx X. Rosenman ed., 1990.
69 XXXXXX, Xxxxxx. The Siren is Calling: Economic and Ideological Trends Toward Privatization of Public Police Forces. In: University of Miami Law Review. Vol. 633. Mai/2014. p. 636.
70 XXXXXXX, Xxxxxx. Selling State Borders. In: University of Pennsylvania Law Review. Vol. 162, Jan/2014, p. 241.
71 XXXXX, Xxxxxxxx X. Government by Contract and the Structural Constitution. In: University of Baltimore Legal Studies Research Paper. nº. 12, 2012, p. 493.
72 XXXXXXX, Xxx. Government By Contract: The White House Needs Capacity to Review and Revise the Legacy of 20th Century Reform. In: Presidential Management Capacity to Respond to 21st Century Challenges, p. 05.
73 Este é o contexto da obra de Xxxx Xxxxxxx, que descreve que o corpo de pessoas privadas contratas pela Administração constitui hoje um efetivo “quarto poder estatal”. XXXXXXX, Xxxx. Outsourcing Sovereignty. New York: Cambridge University Press, 2007.
74 xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxx.xxx/. Acesso em 15 de outubro de 2014.
Na cidade de cerca de noventa e três mil habitantes, por determinação da Constituição da Geórgia, os policiais e bombeiros são obrigatoriamente “trabalhadores públicos”. E, em razão da ausência de previsão normativa sobre o regime jurídico dos demais empregados, nenhuma outra categoria de agentes é propriamente estatal.
Exceto os trabalhadores das corporações acima, todas as demais atividades públicas são realizadas por agentes privados e por empresas contratadas por apenas outros 7 (sete) empregados públicos na área administrativa, que exercem a sua atividade de natureza governamental em tempo integral. Na cidade, inclusive a Corte de Justiça é privada, na forma de uma câmara de arbitragem, sendo que os magistrados, independentes do Poder Público (Poder Executivo), são eleitos e remunerados por uma taxa honorária fixa.75 A ordenação territorial, a concessão de licenças para edificação, a gestão de águas, a coleta de lixo e todos os demais serviços locais são prestadas por empresas privadas, algumas com sede em outros estados norte-americanos, inclusive. A própria fiscalização da prestação destes serviços é levada a efeito por outras empresas privadas contratadas por Sandy Springs.
A terceirização radical de Sandy Springs se iniciou em 5 de dezembro de 2005, a partir da sua independência do Condado de Fulton County. Há um folclore entre os habitantes locais, os quais afirmam que, naquela data, a cidade não proclamou a sua independência como seria de praxe; ela assinou um contrato. Há que se destacar, todavia, que o seu modelo radical deriva essencialmente do fato de que a região na qual Sandy Springs se estabeleceu era formada por um subúrbio rico de Fulton County, com uma base de arrecadação fiscal territorial ampla, no qual poucos moradores eram dependentes de apoio ou de serviços sociais, de forma que o seu exemplo acaba não podendo ser ampliado, mesmo nos EUA, no qual, como visto, o paradigma de governo por contrato(s) mais se desenvolveu.
No Brasil, tal modelo de gestão, quase que totalmente terceirizado, não poderia ser aplicado, a toda evidência. O sistema constitucional pátrio assegura que, em regra, a investidura nos cargos, empregos e funções públicas depende de aprovação prévia em concurso público76 e estabelece, ademais, um regime jurídico próprio para os membros de
75 xxxx://xxx.xxxxxxxxx.xxx/xxxx/00000000. Acesso em 15 de outubro de 2014.
76 O artigo 37 da Constituição Federal de 1988 assim estabelece: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”. Por sua vez, o artigo 39, determina: A União, os
Poder, os detentores de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais, inclusive no que concerne à sua remuneração, fixada por meio do subsídio. Vale dizer, as atividades inerentes às funções fins dos poderes (ou funções) são indelegáveis.
Sem embargo do regime constitucional brasileiro fixar limites à delegação das atividades estatais, ainda que não se trate de fenômeno recente, o atual escopo e a escala de delegação de atividades públicas para pessoas privadas não encontra precedentes históricos, o que reclama novos instrumentos que se mostrem hábeis a adequar o exercício destes poderes públicos exercidos por entidades privadas aos valores sociais e constitucionais de cada nação.
1.3. O governo por contrato(s) faz surgir uma nova tarefa administrativa: a gestão de contratos.
A onipresença de contratados privados no cerne da gestão pública demanda das entidades públicas instrumentos que propiciem o adequado acompanhamento dos contratos, a implementação de sistemas de transparência e o accountability intrínseco a esta forma de gestão. Tornam-se centrais no governo contemporâneo o aprimoramento dos processos de pré-contratação e de negociação contratual, os ferramentais de rescisão contratual, passando pelo instrumental jurídico de gerenciamento da execução da atividade delegada e de responsabilização.77
Nesse contexto, é que emerge uma nova tarefa para a Administração: a gestão de contratos.78 É preciso, de acordo com Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx que, tanto no nível operativo quanto no âmbito administrativo, os entes contratantes formem uma cultura administrativa
Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas.
§ 4º O membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI.
77 XXXXXXX, Xxxx; XXXXX, Xxxxxx. Reframing the outsourcing debates. In: XXXXXXX, Xxxx; XXXXX, Xxxxxx. Outsourcing and American Democracy. Cambridge and London: Harvard University Press, 2009, p. 07.
78 Cfr.: XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Gestão de Contratos Públicos em Tempos de Crise. In: Xxxxx Xxxxxxxxx (Coord.) Estudos de Contratação Pública. Vol. III. Coimbra: Coimbra editora, 2010, p. 05 e seguintes.
adequada à composição dos interesses e conflitos inerentes ao relacionamento entre as especialidades pública e privada.79
Consoante destaca Xxxxx Xxxx Xxxxxx, surgem como atividade ínsita à gestão de contratos, o planejamento, as medidas preventivas e corretivas, o acompanhamento e a fiscalização, tanto da execução, quanto da regular extinção do contrato. Assim, resta inequívoco que a atividade de gerenciamento contratual relaciona-se a todos os aspectos inerentes à elaboração dos contratos públicos, em especial quanto à definição do objeto a ser contratado; à prestação de sua garantia; à observância da vigência; às eventuais possibilidades ou necessidades de alterações contratuais; às possibilidades materiais e formais de revisão, ao reajuste, à repactuação e ao reequilíbrio econômico e financeiro; à execução contratual propriamente dita; ao recebimento do objeto; à rescisão e à eventualidade da aplicação de sanções.80
Na sistemática brasileira de execução dos contratos público-administrativos (que conforma o exercício da gestão contratual pública), a performance do contrato é acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração especialmente designado, sendo inclusive permitida, nos termos do artigo 67, da Lei 8.666/93, a contratação de terceiros para o desempenho desta atividade, com o objetivo de assistir e subsidiar o fiscal do contrato de informações pertinentes a essa atribuição.
Destarte, sob o paradigma do governo por contrato(s), a gestão contratual compreendida como tarefa administrativa destaca o exercício fundamental de duas figuras indispensáveis: a do fiscal de execução do contrato, que garante a fidelidade ao que fora projetado e a do gestor do contrato, responsável por zelar para que “a execução, além de ser fiel (eficiência), produza os resultados públicos planejados (eficácia)”. O gestor do contrato passa a funcionar, em síntese, como curador da eficiência na atividade contratual da Administração Pública.81
Sob esse enfoque, o contrato (e a sua gestão) passam a ser vistos, portanto, como uma forma “consensual e parceira de administrar e de melhorar as relações com os cidadãos e
79 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Gestão..., p. 07.
80 XXXXXX, Xxxxx Xxxx. Gestão de contratos administrativos. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 3, n. 5, mar./ago. 2014, p. 21.
81 XXXXXXX XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxxx. Da responsabilidade de agentes públicos e privados nos processos administrativos de licitação e contratação. São Paulo: Ed. NDJ, 2012, p. 262.
entre as pessoas públicas”.82 Destacam os autores que, nessa perspectiva, a terceirização não diminui a carga governamental, ela o altera e pode, excepcionalmente, até aumentá-la.83
Assim, com a ampliação do aparato administrativo para o exercício adequado da gestão e fiscalização dos contratos que celebra, é possível se denotar que a ideia de governo por contrato(s) não se trata de uma sistemática apenas conjuntural de administração.
Se nos EUA, pode restar alguma dúvida sobre a consolidação plena da gestão ou do governo por contrato(s), ela encaminha-se, a passadas largas, para se tornar a sistemática estrutural de gestão pública, uma vez que, de um lado, as demandas por serviços públicos se apresentam cada vez mais intensas e, de outro, o governo não pode pretender realizar tudo o que seus cidadãos ambicionam que ele faça, sem se transformar em um gigante que os cidadãos, em sua maioria, recusar-se-iam a apoiar.84
A partir do acima exposto, pode-se sustentar que, na literatura europeia85 e nos estudos estadunidenses de direito público, a ideia contida na expressão governo por contrato(s)86 é reconhecida por apresentar uma ampla gama de sentidos. Em geral, é tida como um conjunto de arranjos institucionais87 que (i) podem ocorrer entre entidades públicas exclusivamente, permitindo, v.g., a descentralização e/ou delegação interna de funções e/ou tarefas estatais e (ii) podem articular mecanismos de cooperação entre pessoas públicas e privadas, seja por meio de contratos tradicionais de fornecimento de bens e de contratação de mão de obra, seja através de sistemas complexos de prestação de serviços públicos por pessoas privadas, como as múltiplas formas de concessão de serviços e/ou obras públicas e permissões.
82 De acordo com Xxxxxxxxxx Xxxxxx-Xxxxxxxx: “As relações são consentidas mais que prescritas. Elas se tecem em rede mais do que de modo piramidal. É um enfoque pluralista e consensual da ação pública que se manifesta pela externalização, regulação e negociação”. In: MORAND-XXXXXXXX, Xxxxxxxxxx. Droit administratif. 12ª ed. Paris, 2011. p. 384.
83 XXXXXXX, Xxxx; XXXXX, Xxxxxx. Reframing the outsourcing debates. In: XXXXXXX, Xxxx; XXXXX, Xxxxxx. Outsourcing and American Democracy. Cambridge and London: Harvard University Press, 2009, p. 07.
84 XXXXXXX, Xxxx; XXXXX, Xxxxxx. Reframing…, p. 15.
85 Nos países europeus, usualmente, a noção tem sido empregada nos últimos anos em conjunto com a noção de “nova contratação pública”, na medida em que ambas designariam, dentro das suas múltiplas acepções, a assunção por particulares do desempenho de um amplo leque de atribuições e incumbências públicas que outrora eram de incumbência exclusivamente pública, como atividades de certificação.
86 Na literatura norte-americana, para além da ideia de outsourcing (terceirização) trata-se de fenômeno mais abrangente, chamado de government by contract; contract administration e contract management.
87 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxx. The new public contracting: regulation, responsiveness, relationality. Oxford & New York: Oxford University Press, 2006, p.03.
Não resta dúvida, portanto, que o exame do movimento do governo por contrato(s) e suas repercussões tanto no âmbito público quanto na esfera privada apresenta-se de maneira essencial, em especial, dos seus elementos causais e de suas consequências, consoante abaixo expendido.
1.4. Algumas razões para a crescente adesão à ideia de governo por contrato(s).
Ao lado das vias tradicionais de conexão entre os arranjos institucionais público- público e público-privado, com o objetivo de satisfação das finalidades estatais, a adesão à um governo por contrato(s) ou à administração pública por contratos, com a consequente ampliação da contratualização na esfera pública, tem auferido grande proeminência, não como efeito de uma única causa, mas como decorrência de múltiplos elementos. O exame dos elementos reputados mais atuantes para o vasto emprego do contrato como instrumento de governo88 será levado a efeito a seguir.
1.4.1. Variações históricas nos instrumentos de ação administrativa e o recurso à contratualização em substituição aos tradicionais atos unilaterais de autoridade.
Na virada do século XX e principalmente por força das consequências da 1ª grande guerra, eclodiram na Europa movimentos políticos de matriz socialdemocrata ou laboral em resposta à intensa pobreza em que viviam as massas proletárias oriundas do movimento de industrialização e que preconizavam uma intervenção estatal alargada em domínios que até então não pertenciam à esfera pública.89
Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx, nesse sentido, que “a industrialização e a evolução tecnológica, a concentração de um grande número de pessoas num espaço reduzido dentro das grandes cidades, a pobreza de boa parte da população impuseram ao Estado uma
88Cfr.: XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. O Contrato Administrativo como Instrumento de Governo. In: Xxxxx Xxxxxxxxx (Coord.) Estudos de Contratação Pública. Vol. IV. Coimbra: Coimbra editora, 2010, p. 12.
89 XXXXXX, Xxxx Xxxxxx-Mota. Contratos sobre o exercício de poderes públicos: O exercício contratualizado do poder administrativo de decisão unilateral. Coimbra: Coimbra, 2011, p. 22 e seguintes.
intervenção cotidiana em matéria social e a prestação aos cidadãos de bens e serviços diversos nos domínios econômico, social e cultural”.90
As matrizes do Estado de Direito e do Direito Administrativo, projetadas a partir do quadro político institucional do século XIX, tinham por principal objetivo a limitação do Poder do Estado em face da sociedade, ou seja, a ausência de intervenção estatal nos assuntos privados. Essa finalidade instrumental atribuída aos aparatos estatais tinha por substrato axiológico a ideia liberal de um certo primado do privado sob o público, o qual, como esfera residual ao privado, tinha por função exclusiva garantir a intangibilidade do âmbito privado, que era reduzido à propriedade ou, formalmente, à possibilidade de apropriação de bens.91
Contudo, com o advento do que, após o primeiro quarto do século XX, foi denominado de Estado Social, as fronteiras da dicotomia público versus privado foram gradativamente se esmaecendo, porquanto, de um lado, ampliou-se sobremaneira a intervenção direta do Estado na esfera privada — mais especificamente, na economia — e, de outro, houve uma ampliação da intervenção legislativa nas relações entre os particulares, com o escopo de, visando à tutela das situações jurídicas em que a igualdade formal não se apresentava de modo suficiente para atender às demandas sociais, promover a igualdade substancial entre os indivíduos.92
É nesse quadro social, cujo marco temporal é coincidente nos países de desenvolvimento tardio como o Brasil apenas após o término da Segunda Guerra Mundial, que se afirma que a ação de governo do Estado teria passado a não ser mais apenas a gerência de fatos conjunturais, mas também e, sobretudo, a busca pelo planejamento do futuro, com
90 XXXXXX, Xxxxxxx. Droit Administratif Allemand. Paris: L.G.D.J., 1994, p. 24.
91 Argumenta Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx Ruzyk que na Modernidade “evidenciam-se, pois, claramente, duas espacialidades bem definidas: de um lado, o amplo lugar de liberdade individual, conservado do Estado de natureza, regido pelas leis naturais, e de outro, residualmente, o espaço do Estado, que tem como principal finalidade assegurar a plenitude dessa liberdade natural, fazendo valerem as leis e evitando o Estado de guerra. Portanto, se o Estado intervier no espaço reservado ao indivíduo, estará contrariando a própria razão de sua existência. Seus limites são, pois, bem definidos e se colocam na exterioridade do espaço de liberdade individual. Situa-se, aí, o gérmen do pensamento fundante do Estado liberal, ao identificar duas esferas bem delineadas: a do indivíduo, como um amplo e intangível espaço de liberdade, e a do Estado, restrito à necessidade assecuratória daquelas mesmas liberdades. Daí a origem da racionalidade que informa a dicotomia entre público e privado, que se coloca na Modernidade. Não parece temerário dizer, nessa esteira, que o Estado para Xxxxx existe em uma dimensão residual em relação ao privado. O Estado existe em função do privado, como elemento assecuratório das liberdades do indivíduo, centradas na ideia de propriedade como direito natural por excelência”. In: XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx. Xxxxx e a formação da racionalidade do Estado Moderno: o individualismo proprietário entre o público e o privado. In: XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx (Org.). Repensando a Teoria do Estado. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 70.
92 Sob esse prisma, pode-se referir à Constitucionalização do Direito Civil, que representou, nas palavras de Xxxx Xxxxx Xxxxxx, uma verdadeira virada de Xxxxxxxxx, colocando a pessoa no centro do sistema jurídico.
o estabelecimento de políticas de médio e longo prazo. Por conseguinte, as formas clássicas da Teoria do Estado e do Direito Administrativo, moldadas à luz dos valores político- institucionais do século XIX, tornaram-se insuficientes para as necessidades prestacionais do Estado Social, cujos caracteres relativos à implementação positiva de certas condições materiais essenciais à manutenção de uma vida digna constituem deveres fundamentais.
Assim, a necessidade de superação do quadro de inércia social anterior, próprio do État Gendarme, associado às demandas decorrentes da marcha da industrialização, o impacto do crescimento demográfico e o agravamento das disparidades sociais, conforme explicitam Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx e Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxx, produziu uma série novas reivindicações, impondo ao Estado um papel mais ativo na realização de uma justiça social. O ideal absenteísta do Estado liberal não respondia mais, satisfatoriamente, às exigências daquele momento. Uma nova compreensão do relacionamento Estado/sociedade levou os poderes públicos a assumir o dever de operar para que a sociedade lograsse superar as suas angústias estruturais. Daí o progressivo estabelecimento pelos Estados de seguros sociais variados, importando intervenção intensa na vida econômica e a orientação das ações estatais por objetivos de justiça social.93
Essa alteração a propósito das atribuições da Administração suscita inevitável exame relativo aos seus instrumentos e modos de atuação, notadamente a partir de dois planos.
O primeiro diz respeito à alteração das funções e da própria estrutura do ato administrativo, que passa a poder ser utilizado de modo menos imperativo. Nesse contexto, surge o conceito de ato favorável, que é insuscetível de execução coativa, como por exemplo, os auxílios, as subvenções, os subsídios etc.
O segundo reflete-se no desenvolvimento do processo administrativo,94 uma vez que
o ato deixa de ser compreendido como oriundo de uma vontade individual da Administração e passa a manifestar o resultado de um processo de concertação e harmonização de múltiplos interesses que interagem na situação concreta.
Essas transformações na estrutura do instrumento de ação administrativa por excelência decorrem do fato de que a realização das vastíssimas tarefas incumbidas à
93 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx. XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011, p. 223.
94 Sobre o tema, por todos, XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Processo Administrativo (Princípios Constitucionais e a Lei 9.784/1999). 4ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2010.
Administração não poderia ser obtida sem a colaboração espontânea dos particulares. Nesse sentido, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx e Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx destacam que “o ato unilateral assegura eficazmente a submissão, mas é incapaz de suscitar o entusiasmo e o desejo de colaboração”.95
Ademais, a partir do momento em que se passa a exigir da Administração resultados concretos, torna-se inviável a permanente conflituosidade com a esfera privada, própria do período anterior, de cariz liberal, com sua ação impositiva, unilateral e autoritária. A Administração passa aí a elaborar mecanismos que lhe permitam obter dos administrados a aceitação antecipada das soluções que preconiza, em vistas da criação de consensos e a redução da litigiosidade.96
Vê-se, portanto, que a Administração passa a ser encarregada de gerir e fornecer um amplo espectro de serviços essenciais e de assegurar o desenvolvimento de múltiplas políticas públicas, de forma que passa a ocorrer um aumento da contratualização administrativa para o fornecimento de bens e serviços a ela. O ato administrativo, pois, não se coadunaria mais com as necessidades de flexibilidade e eficácia que se impõem sobre a Administração encarregada de realizar um leque amplo de direitos, interesses e necessidades públicas, que se amoldam a um modelo de estado social.
Nesse sentido, é possível afirmar que a natureza autoritária do ato administrativo passa a ter uma conotação estigmatizante97, da qual a Administração procura se libertar, haja vista que ela passa a estar sujeita à avaliação da população que influencia a aceitação social de quem exerce o poder.
Ademais, interessante é o destaque de que foi “a necessidade, a conveniência ou a debilidade, mais do que proposições éticas, jurídica ou políticas – que propiciaram que, em inúmeras ocasiões, o poder acordasse decisões com aqueles obrigados a acatá-las”.98 Isso porque o ato administrativo, essencialmente típico, não oferece respostas aptas às situações atípicas e complexas próprias das sociedades plurais contemporâneas.
95 XXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXX XXXXXXXXX, Xxxxx. Curso de Derecho Administrativo. Vol. I., 8ª. Ed., Madrid: Civitas, 1997, p. 623.
96 XXXXXX, Xxxx Xxxxxx-Xxxx. Contratos sobre o exercício de poderes públicos: O exercício contratualizado do poder administrativo de decisão unilateral. Coimbra: Coimbra, 2011, p. 25.
97 KIRKBY, Xxxx Xxxxxx-Xxxx. Contratos..., p. 25.
98 BUSTILLO BOLADO, Xxxxxxx X.; XXXXXX XXXXX, Xxxx Xxxxx. Los convenios urbanísticos entre las administraciones locales y los particulares. 3ª ed., Navarra: Aranzadi, 2001, p. 25.
Todos esses fatores concorrem para a afirmação gradual da Administração concertada ou contratualizada, que se caracteriza, essencialmente, pelo recurso sistemático às formas de atuação que privilegiam a via consensual, em detrimento a outras de caráter unilateral.
Ressalta-se, no entanto, que consoante afirma Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx, a Administração não “perde” sua natureza jurídica ao atuar por vias consensuais.99 Isso porque “a aplicação de regras de ordem privada não significa que a Administração tenha se libertado dos seus constrangimentos constitucionais. Nestes casos continua a haver uma atuação funcionalizada, amplamente controlada por mecanismos de natureza pública”.100
1.4.2. O recurso ao contrato por “razão de princípio”: dever de satisfação dos objetivos fundamentais da República, direta ou indiretamente.
Na atualidade, são impostas cada vez mais restrições e limites para a contratação de pessoal próprio pelos entes administrativos,101 assim como condicionantes financeiras e restrições legais para o financiamento de obras de grande porte via realização de despesa pública.
Ao lado disso, há a crescente demanda social por serviços e bens, além da possibilidade de colocação da potencialidade privada para a satisfação destas demandas e necessidades de incumbência estatal acarretada pelas contratações públicas. Ou seja, ainda que a maior parte dos estudos justifique a crescente contratualização da Administração em fundamentos econômicos; há sólidos fundamentos políticos, jurídicos e sociais que igualmente lhe dão alicerce. Portanto, a justificação unidimensional de cariz exclusivamente econômico para a ampliação do governar por contratos(s) é insuficiente. Antes de tudo, a ampla contratualização se impõe por razões de princípio.102
99 GUIMARÃES, Bernardo Strobel. O Exercício da Função Administrativa e o Direito Privado. Tese de doutoramento defendida perante a Universidade de São Paulo (USP) sob a orientação da Profa. Dra. Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xx Xxxxxx. Mimeografada. São Paulo, 2010, p. 201.
100 GUIMARÃES, Bernardo Strobel. O Exercício..., p. 201.
101 Nos EUA, a tendência para se permitir um maior envolvimento privado no exercício de poderes públicos decorre da pressão política para se manter em níveis adequados o número de agentes públicos.
102 XXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXX, Xxxxxxxx. Droit Administratif. 8ª ed., Paris: Economica, 2007, p. 467.
É possível afirmar que essa imposição de ordem principiológica, nos países em desenvolvimento como o Brasil, emerge como resposta aos anseios pela implementação de direitos fundamentais, dos valores constitucionais e da necessidade inadiável de implementação de infraestruturas públicas de mobilidade e acessibilidade, extremamente precárias.103
Ainda que importante, o “quem prestará” passa a ser substituído pelo “quando será prestado”, em especial nestes países, como o Brasil, cujo déficit de implementação e salvaguarda de direitos fundamentais ainda é manifesto. No país, a tradicional expressão de Xxxxxxxx Xxxxxx, para quem, “(...) direitos nós já temos, o que precisamos é implementá- los”104 permanece absolutamente atual.
No Brasil, é possível se acenar sobre a existência de novas demandas internas e pressões externas às quais o Estado de Direito, burocrático e legalista, não dá mais conta e o novo Estado Constitucional, voltado à concretização dos valores constitucionais e à realização plena dos Direitos Fundamentais, não conseguiu deixar de ser, ainda, um projeto.105 A realidade social brasileira é farta na revelação de exemplos de como o Estado Constitucional ainda permanece como um projeto: em todas as regiões metropolitanas do país é saliente a existência de áreas em que há absoluta miséria, sem se mencionar as localidades afastadas em que não se tem notícia ainda nem mesmo do exercício dos direitos liberais clássicos consagrados pelo Estado de Direito.
A premência na realização de direitos e na prossecução de infraestruturas mínimas impõem-se aos governos, que precisam se desincumbir de maneira inadiável destes deveres. Nesse sentido, a alusão de que “(...) a concepção de um Estado que faz diretamente já não é hoje rigorosa, porque o Estado faz, mas cada vez mais deixa fazer (...)”.106 Dito de outro
103 Sobre o tema Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx Xxxx e Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxx aludem que “(...) é notório que, em condições de subdesenvolvimento, há agravada escassez de recursos para a implementação de políticas sociais em vista de crises fiscais e financeiras e, muito frequentemente, graus elevados de concentração de riqueza”. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx; XXXXXXX XXXX, Xxxx Xxxxx xx XXXXX; XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxxx. Universalização das Telecomunicações nos Brasil. In: Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Ano 1, nº 1, jan. /fev. /mar. 2003. Belo Horizonte: Fórum, 2003, p. 11.
104 XXXXXX, Xxxxxxxx. A era dos direitos. 11ª. ed. Trad. De Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx. São Paulo: Campus, 1993, p. 23.
105 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. O Estado contemporâneo, os direitos fundamentais e a redefinição da supremacia do interesse público. In: XXXXXXXX, Xxxxxx (Org). Interesses Públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005,
p. XVIII.
106 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx. A Formação dos Contratos Públicos: Uma concorrência ajustada ao interesse público. Lisboa: AAFDL, 2013, p. 27.
modo, seja por autolegitimação, seja pela possibilidade fática, econômica e jurídica, os governos demandam o imediato exercício de determinadas funções públicas por agentes privados. E o elemento hábil a formalizar essa relação público-privada é a contratação pública.
O recurso ao contrato, assim, tem crescido exponencialmente, o que comporta que alguns autores o nomeiem como o primeiro mecanismo de ação administrativa,107 envolvendo uma transformação profunda dos mecanismos de funcionamento da administração. De prestadora, ela passa a contratante de prestadores de serviços e gestora destes contratos.108 Assim, o contrato público passa a ser “transformado no modus agendi do Estado social”.109
Nesse passo, “(...) administrar constitui, em larga medida, uma atividade consistente em gerir redes de contratos e em assegurar que os parceiros privados cumpram as obrigações assumidas (responsabilidade de garantia)”.110 Essa atividade, a gestão de contratos, passa a se constituir em missão ou tarefa estatal de grande envergadura, a ponto de que o substantivo Estado, sempre adjetivado, pode passar a receber novos complementos, tais como Estado comprador,111 Estado contratual,112 Estado distribuidor de utilidades pelos particulares,113 Estado garantia, dentre outros.
1.4.3. Da Prestação à Garantia: Revisão do modo de realização dos afazeres estatais a partir da ampliação da contratação pública.
107 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx; JURKSAITIS, Xxxxxxxxx Xxxxxx. Apresentação. In: XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx; XXXXXXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx. (coord.) Contratos Públicos e Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 13.
108 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Gestão de contratos em tempos de crise. In: Xxxxx Xxxxxxxxx (Coord.)
Estudos de Contratação Pública. Vol. III. Coimbra: Coimbra editora, 2010, p. 21.
109 NABAIS, Xxxx Xxxxxxxx. Contratos Fiscais. Coimbra: Coimbra editora, 1994, p. 16.
110 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Gestão de contratos..., p. 26.
111 XXXXXXXXXX, Xxxxx. Lo Stato Compratore: L’acquisto di beni e servizi nelle pubbliche amministrazioni. Bologna: Il Mulino, 2007.
112 XXXX, Xxxx-Xxxxxxx. Comparative Aprproaches th the Rise of Contract in the Public Sphere. Public Xxx, Xxxxxx, 0000, p. 41.
113 XXXXX, Xxxxxxx. I procedimenti amministrativi di valutazione comparativa concorrenziale. Padova: Cedam, 2002, p. 07.
A ideia de governo por contratos traz em si, também, a caracterização do Estado como garantia.114 Isto é, a ausência da prestação direta de bens e serviços públicos pelo aparato público, típica do Estado prestador, não enseja, por evidente, a sua irresponsabilidade no plano jurídico, pois cabe a ele o indeclinável dever de “assegurar” ou de “garantir” a realização de certos fins, como a implementação de direitos, a promoção do bem-estar, a redução das desigualdades sociais etc, ainda que por particulares.115
De acordo com Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx, o surgimento do Estado garantia só se tornou plausível quando se denotou que a ausência da prestação direta de certos serviços públicos pelo Estado não corresponderia ao declínio da responsabilidade jurídico-constitucional pela realização dos fins e interesses compromissados constitucionalmente.116
No Brasil, nos termos do artigo 175, da Constituição Federal de 1988, a responsabilidade estatal neste particular formaliza-se na medida que a titularidade dos serviços públicos correspondem à sua incumbência indelegável. A prestação da atividade, do serviço é que poderá ser direta ou indireta, por meio de concessão ou permissão, mas o dever, a missão, o encargo é sempre estatal.117
Sobre a delegação de serviços públicos e, mais especificamente, sobre as concessões, argumenta Xxxxxx Xxxxx Xxxxx que “a tensão entre a urgência de satisfazer as novas necessidades públicas – exigências de uma sociedade progressivamente urbana e industrial
– e as concepções ideológicas imperantes de signo liberal será resolvida mediante um mecanismo genial: a concessão administrativa. Na concessão o Estado encontrará uma fórmula que lhe permitirá tornar compatíveis uma e outra postura; de uma parte, se entenderá que o Estado é o titular de ditas atividades; o dominus dos serviços públicos. De outra, se
114 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Entidades Privadas com Poderes Públicos: O exercício de poderes públicos de autoridade por entidades privadas com funções administrativas. Coimbra: Almedina, 2008, p. 159
115 Crítica contundente ao modelo de Estado designado por garantia foi levada a efeito por Xxxxxxx Xxxx Xxxxxx Xxxxx. Para o autor, o Estado garantia, em última análise, “tem o dever de garantir ao capital privado as condições para que ele possa produzir os serviços públicos sem solução de continuidade, isto é, à margem das incertezas da vida econômica”. AVELÃS XXXXX, Xxxxxxx Xxxx. Do estado regulador ao estado garantidor. In: Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Ano 9, nº 34, abr. / jun. 2011. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 80.
116 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Entidades Privadas..., p. 159.
117 Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx aduz que “(...) o instituto da concessão se presta a que o Poder Público cometa aos particulares o desempenho de uma atribuição sua, sem que abdique da correspondente responsabilidade. XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx. Concessões. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2015, p. 160.
entenderá que o Estado não deve gerir tais serviços diretamente e utilizará a concessão como fórmula-ponte que permitirá dirigir sem geri-los diretamente”.118
Nesse sentido é que se pode afirmar sobre o Estado garantia que “(...) a transferência de tarefas para os sujeitos privados não significou um abandono da responsabilidade estatal perante os compromissos com o interesse público inerente à realização do princípio da socialidade e de outros fins constitucionais do Estado”.119
Em última análise, o dever estatal de garantia corresponderia à salvaguarda e implementação dos direitos fundamentais.
A execução de tarefas públicas por pessoas privadas, a partir do recurso ao contrato, exige do Estado um papel tanto mais intenso quanto maior for o risco de não satisfação dos direitos fundamentais e dos objetivos estatais. Sob o modelo do Estado de garantia, novas tarefas públicas despontam para o Estado, como a regulação e a supervisão das atuações privadas no âmbito dos serviços públicos.
Investido o Estado em uma posição de garante, sob a qual ele induz, orienta, fiscaliza e sanciona, os agentes privados passam a assumir uma posição de atores relevantes na realização dos direitos, interesses e necessidades públicas, pois a partir da concessão estatal, eles se veem investidos em um papel executivo relevante na concretização destes interesses, na produção de bens e na realização de fins que o Estado tem o dever constitucional de garantir.120
Assim, público e privado não podem ser considerados inimigos e/ou opostos. São, nos termos de Vitor Rhein Schirato, parceiros para o alcance de finalidades comuns; ambos concorrem para a realização do interesse público, considerando-se suas mais diversas vertentes.121
118 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx. Princípios de Derecho Público Económico. Granada: Comares, 2001, p. 491.
119 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxx. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed., Coimbra: Livraria Almedina, 1999, p. 353.
120 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Entidades Privadas com Poderes Públicos: O exercício de poderes públicos de autoridade por entidades privadas com funções administrativas. Coimbra: Almedina, 2008, p. 160.
121 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Concessões de Serviços Públicos e Investimentos em Infraestrutura no Brasil: Espetáculo ou Realidade. In: Contratos Públicos e Direito Administrativo. Xxxxxx Xxx Xxxxxxxx; Xxxxxxxxx xxxxxx Xxxxxxxxxx (organizadores). São Paulo: Malheiros, 2015, p. 144.
Neste cenário, a doutrina tem aludido à uma profusão semântica a propósito desta partilha, parceria e/ou “divisão de trabalho” entre Estado e atores privados. Nesta gramática, ganha destaque a ideia de partilha otimizada de tarefas entre Estado e Sociedade.
1.5. Private Opportunity ou Public Benefit? O governo por contrato(s) e a “partilha otimizada” de tarefas entre Estado e Sociedade sob responsabilidade estatal com o objetivo da realização dos direitos, interesses e necessidades públicas.
A adesão à ideia de um governo por contrato(s) pretende uma maior interação e partilha de tarefas entre Estado e Sociedade Civil, sob responsabilidade estatal. Ela recusa, destarte, uma racionalidade excludente entre as duas esferas, pois intenta preservar a racionalidade própria e inerente de cada um deles, aproveitando as respectivas vantagens. O contrato funciona, neste sentido, como instrumento de colaboração entre Estado e particulares para a prossecução de finalidades públicas, o que significa que, com a sua utilização, procura-se captar o interesse e a dinâmica privada para a prossecução de tarefas públicas, mas tendo o cuidado de evitar que as entidades privadas contratadas se transformem em free riders dos contribuintes.122
Ao contrário do que em um primeiro momento pode parecer, no sentido da diminuição do papel estatal, sob o signo do governo por contrato(s), a Administração pretende protagonizar um envolvimento mais ambicioso no espaço social, assumindo um dever institucional de assegurar ou de garantir determinados resultados e certas finalidades coletivas e sociais, mesmo quando a produção das utilidades que os realizem estejam sob o intento e/ou nas mãos de particulares.123
Em última análise, o contrato público emerge como um processo de regulamentação de relações de colaboração entre a Administração Pública e entidades privadas, funcionando
122 XXXXXXX XX XXXXX, Xxxxxx. Um novo direito administrativo? Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010, p. 63.
123 Cfr.: XXXXXXXX, C. M. The response of english public law to private actors in public governnce. In: XXXXXXX, X. The public-private law divide: potential for transformation? London: British Institute of International and Comparative Law, 2009. p.169.
como um instrumento de grande significado para também garantir resultados e não só em produzir diretamente resultados.124
Entretanto, se a contratualização se apresenta como um modo de prestação dos serviços públicos, ela traz em si uma série de dificuldades. Veja-se que, como destaca Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx, as ferramentas, os instrumentos necessários para a prestação de serviços públicos não são os mesmos que precisam ser empregados para administrar os contratos com quem irá prestar esses serviços,125 no caso, o agente privado delegatário.
A Administração precisa, por conseguinte, desenvolver uma competente administração dos contratos que subscreve, sob pena de que, na fase de execução ocorra a mitigação dos benefícios, assim como de toda a public value126que um bom contrato público propiciaria. Por conseguinte, o fenômeno do governo por contrato(s) retrata a necessidade de se dar relevância à execução e ao cumprimento dos objetivos do contrato público, isto é, trata-se de análise do desenvolvimento da relação jurídica derivada do contrato.
Não resta dúvida, pois, de que o crescente desenvolvimento dos mecanismos jurídicos de contratação pública “faz-se acompanhado de uma semântica jus-administrativa renovada, com a compreensão de fórmulas e conceitos-chave como os de ‘parceria público- privada’, de ‘partilha de responsabilidades’ ou de ‘Administração mista’ etc”.127
Estes conceitos-chave demonstram a convergência dos sistemas administrativos no sentido do incremento, cada vez maior, da participação de entidades privadas na prossecução dos interesses da coletividade. A atuação sistemática dos particulares em uma lógica de atuação concertada, de cooperação com as entidades públicas, por meio de processos de integração, osmose e até interpenetração caracterizam um relacionamento simbiótico entre Estado e Sociedade civil.128
Vê-se, assim, que a ideia de governo por contrato(s) implica na superação de uma visão dicotômica entre Estado e Sociedade, estruturada em uma lógica de confronto, adversidade e de recíproca suspeição. Sobrepuja-se, portanto, a tradicional visão que opõe,
124 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Reflexões sobre o Estado Regulador e o Estado Contratante. Coimbra: Coimbra editora, 2013, p. 126 e seguintes, p. 89.
125 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Reflexões..., p. 89.
126 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Reflexões..., p. 89.
127 XXXXXXXXX, Xxxxx. Entidades Privadas com Poderes Públicos: O exercício de poderes públicos de autoridade por entidades privadas com funções administrativas. Coimbra: Almedina, 2008, p. 139.
128 XXXXXXXXX, Xxxxx. Entidades..., p.142.
de um lado, o Estado detentor do monopólio do espaço público e sua atuação de interesse público e, de outro, a sociedade civil, pautada pelo direito privado, na qual os cidadãos titulares de seus interesses individuais e egoísticos não poderiam atuar na prossecução de interesses coletivos.
Essa perspectiva chegou a ser designada até mesmo como feminina,129 isto é, relacionada a uma Administração que ultrapassou a necessidade de se afirmar autoritariamente, diversificando as formas do agir administrativo, com o recurso à contratualização, ao pacto como alternativa à estatuição, ao concerto em superação à cominação.
Essa dinâmica, hábil a reordenar as funções estaduais e sociais, apresenta-se como a possibilidade de um aproveitamento, de mobilização e canalização dos recursos e das capacidades das ferramentas, dos meios, dos skills dos particulares para a realização dos objetivos públicos, sob a supervisão e garantia estatais.
Como acima já aludido, o recurso à sociedade para a satisfação de fins públicos não significa um descomprometimento estatal, um esvaziamento do seu âmbito. Muito ao contrário, ele atesta e reafirma a permanência e a continuidade das responsabilidades públicas na prossecução dos direitos, necessidades e interesses públicos.
Do ponto de vista histórico, é possível se aludir que a separação entre as espacialidades pública e privada encontram xxxxxxxx nas teorizações do Estado liberal clássico, sob as quais todas as ações do titular do poder político seriam reputadas legítimas e estariam infensas a qualquer controle desde que fundamentadas sob a rubrica do interesse público, genérico e abstrato. Nesta perspectiva, a espacialidade pública era circunscrita ao Estado e, de outro lado, a especialidade privada, relacionada aos particulares e ao mercado, possuía poucas áreas de comunicação com a pública.
Essa dicotomia entre o público e o privado, com a crescente atribuição de tarefas públicas aos agentes privados se esmaece, porquanto precisam Estado e Sociedade Civil atuar em conjunto para a efetiva concretização das finalidades cogentes estabelecidas pela Constituição.
Sob um modelo de Estado adjetivado de Constitucional, no qual há a fundamental interação público-privado acima mencionada, não há como se apartar, de maneira estanque
129 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxx. Os poderes do contraente público no código dos contratos públicos.
Coimbra: Coimbra editora, 2011, p. 09.
e definitiva, os espaços público e privado. Por isso, os ramos jurídicos voltados à disciplina das questões pertinentes ao Estado e à Sociedade Civil também não podem mais ser destacados entre si, pois possuem zonas de intercomunicação perenes, com o objetivo de se complementar de modo permanente para a busca dos fins comuns.
Com relação à função, ao escopo ou à finalidade da Administração, é importante ressaltar, conforme Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx no sentido de que a expressão “fins de imediata finalidade pública” parece preferível à de “fins de interesse público”, ainda que não haja contradição entre elas130. Isso porque todas as finalidades buscadas pela administração
– mesmo as respeitantes a tarefas ou necessidades de organização interna – são por definição de interesse público, mas com a expressão “imediata finalidade pública”, pretende-se delimitar a aptidão para satisfazer necessidades coletivas, isto é, necessidades sentidas desde logo e sempre pela população. Afastam-se assim os chamados negócios auxiliares, que se destinam apenas a satisfazer requisitos materiais de funcionamento dos serviços administrativos sem reflexo direto na específica prossecução de qualquer das atribuições da entidade a que pertencem.131
Nesse sentido, decorrente da aproximação entre o Direito Público e o Direito Privado, a noção de interesse público, sob a orientação da Constituição brasileira que delineia o Estado Constitucional, também possui a sua essência sobremaneira alterada, embora seja ainda empregada em profusão, tanto na teoria, quanto na prática.
Sob o paradigma do Estado Constitucional, não se pode visualizar a realização do chamado interesse público desvinculada da concretização igual de interesses privados, uma vez que são vedados interesses públicos transcendentais, isto é, que não guardem vinculação direta com a satisfação de direitos e interesses tanto individuais, quanto coletivos e/ou sociais. Além disso, face à multiplicidade de fins do Estado constitucional não parece mais adequado aludir-se apenas ao interesse público,132 senão nos interesses públicos, e, mais ainda, aos direitos, interesses e necessidades públicas, que representam os múltiplos objetivos a serem perseguidos (e/ou garantidos) pelo aparato estatal.
130 XXXXXXX XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Legalidade..., p. 379.
131 LAUBADÈRE, A; VENEZIA, J.C.; XXXXXXXX, X. Traité des Contracts Administratifs, 9ª ed., Paris, 1984, p. 191.
132 Cfr.: XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 192 e seguintes.
Outra mutação provocada no contexto da aplicação da ideia de interesse público diz respeito ao seu próprio conteúdo mínimo. À época do Estado liberal, era comum a menção ao interesse público como aquele que se identificava tão-só com o interesse do Estado, ou como o interesse da maioria da população.
Concepções dessa ordem, todavia, não podem mais ser aceitas. Em função da carga axiológica dos fins constitucionais, relacionados à dignidade da pessoa humana e aos Direitos Fundamentais, a noção de interesse público, que inequivocamente as representa, também assume uma conotação ético-valorativa, que não se satisfaz apenas por um critério de quantidade.133 Nesse passo, torna-se possível mencionar que um interesse se torna público, não por representar múltiplos interesses privados, mas por veicular, em seu bojo, os valores fundamentais estabelecidos pela Constituição. Desse modo, um interesse tido como público não pode ser objeto de transigência, pois a sua realização (e/ou garantia) pelo Estado torna-se imperativa. Situação diversa ocorre com os interesses privados, cuja realização está subsumida à esfera da autonomia privada de seu titular.
Com efeito, um interesse pode ser qualificado como público quando a sua não- realização gerar prejuízo a qualquer particular, isto porque as demandas efetivadas por imposição do interesse público veiculam valores que são intrinsecamente relacionados a princípios e Direitos Fundamentais, com especial destaque à dignidade da pessoa humana. A não realização de um interesse individual, que quase sempre veicula um interesse egoístico, referente tão-só à pessoa que o pratica e, caso seja deixado de ser realizado, não gera prejuízo a valor ou Direito Fundamental, pois inclusive é submetido a princípios como o da autonomia da vontade, ao passo que um interesse público jamais pode deixar de ser realizado, haja vista o fato de que, caso não seja efetivado, promove ofensa a valores fundamentais e à dignidade da pessoa humana.134
Alusivo ainda aos princípios decorrentes do interesse público, verifica-se que, nos últimos anos, o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado tem sido alvo de frequentes e pertinentes críticas.135 E isso porque, no regime jurídico do Estado
133 BREUS, Thiago Lima. Interesse Público: Um Instrumento Necessário à Concretização da Dignidade da Pessoa Humana. In: Revista da Academia Nacional de Direito Constitucional. Volume 5. Curitiba, 2004, p. 619.
134 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Conceito de interesse público e a personalização do direito administrativo. In: Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 26, 1999, p. 116.
135 Argumenta Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx que “não há um interesse público abstratamente considerado que deva prevalecer sobre os interesses particulares eventualmente envolvidos”. ARAGÃO. Xxxxxxxxx Xxxxxx. A supremacia do interesse público no advento do estado de direito e na hermenêutica do direito público
Constitucional adotado pela Constituição de 1988, nenhum Direito Fundamental é absoluto, de modo que o interesse público também não pode ser e, portanto, não pode preponderar, prima facie, sobre os interesses privados.
Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx que “(...) a Administração Pública, hoje, é muito menos uma adjudicadora de direitos previstos na lei e muito mais um árbitro de interesses públicos legítimos colidentes em cada situação concreta”. Nesse sentido, “(...) a questão que se põe é como, nesse contexto, conviver ou evitar que esta margem de arbitramento entre esses interesses colidentes seja a porta de entrada dos interesses particularísticos, de prevalência de interesses menores em detrimento dos interesses da coletividade”.136
Nessa perspectiva, para que a Administração Pública realize um interesse público, ela deve justificar a sua execução a partir de um juízo de ponderação entre todos os interesses e direitos envolvidos. Tal exame ponderativo tem por fim explicitar as razões pelas quais um interesse deve, realmente, ser efetivado. Em geral, essa motivação irá invariavelmente indicar os Direitos Fundamentais que serão promovidos ou protegidos.
Essa indicação dos direitos fundamentais que serão realizados não deve substituir por completo, contudo, a noção de interesse público nos fins do Estado delineados para a Administração Pública. Essa noção, bastante tradicional no Direito Público, sem embargo da sua problemática e abstração, possui uma índole inegavelmente universal, relacionada à coletividade, ao bem de todos, ao passo que os Direitos Fundamentais possuem uma estirpe que os aproxima antes da tutela particularizada dos direitos dos indivíduos, do que à sua realização coletiva.
Nesse passo, a permuta da expressão interesse público pela de direitos fundamentais, ou mesmo pela dignidade da pessoa humana como fins da atividade administrativa estatal, das suas tarefas e dos seus contratados pode significar, em alguma medida, um retrocesso, caso não seja indicado, em concreto, quais direitos fundamentais se estará, efetivamente, a realizar. Em outras palavras, se não for nomeado o Direito Fundamental a ser realizado, pode-se estar limitando os fins do Estado à satisfação restrita e exclusiva dos direitos políticos e individuais, ao passo que a noção de interesse público, edificada ao longo dos
contemporâneo. In: XXXXXXXX, Xxxxxx (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 04
136 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo: Malheiros, 2003, p.194.
anos, a despeito das suas inúmeras críticas no âmbito do direito nacional, contempla uma dimensão mais universalizante, que, inequivocamente, congrega também os direitos individuais, coletivos e sociais.137
Não remanesce dúvida, nesse passo, acerca da possibilidade de prossecução, por agentes privados, de finalidades consideradas de interesse público. O aprimoramento da colaboração público-privada, inclusive por meio da definição dos objetivos comuns, portanto, contribui para o crescimento da importância do contrato na vida administrativa, que atuará como instrumento dessa colaboração e alcance do objetivo final.
O contrato, como instrumento de regulamentação de relações entre entidades públicas e entidades privadas surge, assim, como meio de garantia da prestação estatal e de institucionalização da Administração, que passa a celebrá-los para o fim de dar conta de suas finalidades institucionais e regular a atuação do contratado, assegurando que ele cumpra as obrigações assumidas, necessárias para a própria legitimação social estatal.
1.6. A experiência brasileira do governo por contrato(s) e a introdução legislativa de novas formas de consensualização e contratualização administrativas.
Na doutrina brasileira, a expressão governo por contrato(s) ainda não ganhou o relevo encontrado na literatura estrangeira.138 Contudo, não há dúvida de que a ideia e os instrumentos de relacionamento contratual contidos no contexto de aplicação do governo por contrato(s) envolvem circunstâncias há muito previstas no ordenamento jurídico pátrio. Em virtude de que a atividade administrativa brasileira ocorre essencialmente de maneira
137 Cfr.: BREUS, Thiago Lima. Políticas Públicas..., p. 270.
138 Vide: XXXX, Xxxx-Xxxxxxx. Comparative aproaches in the rise of contract in the public sphere. Public Xxx, Xxxxxx, 0000. XXXXXXX, Xxxxxx. Selling State Borders. In: University of Pennsylvania Law Review. Vol. 162, Jan/2014. XXXXX, Xxxxxxxx X. Government by Contract and the Structural Constitution. In: University of Baltimore Legal Studies Research Paper. nº. 12, 2012. XXXXXXXXX, X. Government by Contract and public law, In: Public Law, 1994. XXXXXXX, Xxxx; XXXXX, Xxxxxx. Outsourcing and American Democracy. Cambridge and London: Harvard University Press, 2009. XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Entidades Privadas com Poderes Públicos: O exercício de poderes públicos de autoridade por entidades privadas com funções administrativas. Coimbra: Almedina, 2008. XXXXXXX, Xxx. Government By Contract: The White House Needs Capacity to Review and Revise the Legacy of 20th Century Reform. In: Presidential Management Capacity to Respond to 21st Century Challenges. XXXXXX, Xxxxxx. The Siren Is Calling: Economic and Ideological Trends Toward Privatization of Public Police Forces. In: University of Miami Law Review. Vol. 633. Mai/2014. p. 636. XXXXXXX, Xxxx. Outsourcing Sovereignty. New York: Cambridge University Press, 2007. XXXXXXX-XXXXX, Xxxxx. The new public contracting: regulation, responsiveness, relationality. Oxford & New York: Oxford University Press, 2006.
infra legal, o recurso à contratualização na esfera pública demanda prévio estabelecimento por lei. Por conseguinte, o exame das introduções legislativas nessa matéria se mostra relevante.
A partir da Constituição Federal de 1988, operaram-se múltiplas e simultâneas transformações no direito administrativo brasileiro. Na década de 90 do século passado, as leis federais nº 8.666/93 e nº 8.987/94, respectivamente, a Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos e a Lei de Concessões de Serviços Públicos alteraram profundamente o direito das contratações públicas, pois significaram o marco legal – em conformidade com a Constituição Federal – para o desenvolvimento de relações contratuais na esfera da Administração Pública.
A partir da Emenda Constitucional nº 19/98, a dinâmica das relações inter administrativas e das contratações entre entes públicos e privados, notadamente os do terceiro setor, desenvolveram-se exponencialmente. Nesse contexto, emergiram dois movimentos relevantes: (i) o relativo à consensualização e (ii) o que propugna pela contratualização da gestão pública,139 hábeis a conformar a presença do movimento do governo por contrato(s) no país.
De acordo com Xxxxxx Xxxxxxx, o movimento pela consensualização e pela contratualização brasileira constituem fenômenos distintos. Para o autor, a consensualização, como a própria expressão explicita, designa o emprego crescente de formas de busca de consenso nos processos decisórios estatais.140 Assim sendo, a consensualização é levada a efeito a partir de instrumentos processuais, estabelecidos previamente por lei, tais como audiências e consultas públicas, assim como conselhos compostos por representantes do Estado e da sociedade, bem como os contratos, incluindo desde as espécies clássicas de avenças administrativas até os novos acordos no exercício da atividade regulatória.
Vislumbra-se, de plano, que a gestão consensual é mais ampla que a gestão contratual, que acaba figurando como parte integrante da primeira, mas detém dinâmica própria. Não há dúvida de que se testemunha hoje a uma multiplicação de módulos convencionais no exercício das atividades administrativas brasileiras. O movimento atinge a gestão de serviços administrativos, nos acordos entre entidades públicas e no exercício da
139 MARRARA, Thiago. As cláusulas exorbitantes diante da contratualização administrativa. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 3, n. 3, mar./ago. 2013, p. 238 e seguintes.
140 MARRARA, Thiago. As cláusulas..., p. 239.
atividade de polícia, mas, sobretudo, na prestação de serviços públicos e na exploração de atividades econômicas.
Não se pode refutar, nesse passo, que a distribuição interna de competências por contrato entre os entes estatais se encontra sob o manto da expressão governo por contratos(s). O uso dos contratos de gestão141 empregados a partir do Plano de Reforma do Aparelho Estatal entre a Administração Direta e Autarquias e Fundações constituem exemplos inequívocos. Essa forma, porém, pode ser considerada como uma forma menos usual de governo por contrato(s).
No Brasil, a gama de instrumentos públicos contratuais, na última década, vem crescendo, ainda que a partir da modelagem clássica da lei federal nº 8.666/93, que tomou por base para todos os demais arranjos convencionais, o contrato de empreitada de obra pública.
A título de exemplo, a lei federal nº 11.079/04 instituiu a parceria público-privada e criou, para tanto, dois novos tipos de concessão: a concessão patrocinada e a concessão administrativa, contratos estes que se diferenciam da caracterização clássica da concessão de serviço público regulada pela lei federal nº 8.987/95.
Ademais, a lei federal nº 11.107/05 estabeleceu a disciplina jurídica dos consórcios públicos e disciplinou, dentre outras matérias, o regime de avenças entre entes federativos. Os consórcios públicos, no Brasil, envolvem a realização de atividades de interesse comum de dois ou mais entes federativos, de forma a inexistir, no âmbito desta relação jurídica, interesses contrapostos; eles expressam uma parceria público-público na gestão associada de serviços públicos de interesse comum. Reitere-se que a referida lei atribui natureza contratual aos consórcios, vide o exemplo do chamado contrato de rateio, por meio do qual os entes federativos consorciados alocam recursos ao consórcio que integram.
Além das anteriores, a lei federal nº 12.462/11 instituiu o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) destinado às licitações e contratos necessários à realização, no Brasil, dos grandes eventos esportivos internacionais de 2013 (Copa das Confederações), 2014 (Copa do Mundo) e 2016 (Jogos Olímpicos): o contrato de eficiência e/ou o contrato de remuneração variável. Nos termos do artigo 23, §§1º e 3º, da referida lei, o contrato de eficiência tem por objeto a prestação de serviços, podendo abranger a realização de obras e
141 Sobre o tema, por todos, ver: XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. Contrato de Gestão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
fornecimento de bens, visando a proporcionar economia à Administração, na forma de redução das despesas correntes. Nele, o agente privado é remunerado com base em percentual da economia obtida e o julgamento se efetua pelo maior retorno econômico. Em caso de não ocorrência da economia prevista, o particular contratado poderá ter desconto na sua remuneração, aplicação de multa por inexecução, dentre outras medidas.
Tratam-se de figuras e ferramentas legislativas recentes que inequivocamente estão subsumidas ao ideário de governo por contratos(s) e que reafirmam a sua incidência em escala, no Brasil.
Prosseguindo-se no exame das recentes alterações legislativas, merece menção a lei federal nº 13.089/15 que instituiu o Estatuto das Metrópoles e estabeleceu diretrizes para o planejamento, a gestão e a execução de políticas públicas em regiões metropolitanas e aglomerações urbanas instituídas pelos Estados. A norma regula múltiplos aspectos de governança inter federativa, com o objetivo de integrar e compartilhar responsabilidades entre entes da federação no planejamento e na execução de ações para o cumprimento de funções públicas, e institui instrumentos para a gestão compartilhada, incluindo a elaboração de planos de desenvolvimento urbano integrado, a criação de consórcios públicos, de convênios de cooperação, de parcerias público-público e de compensação inter federativa por serviços ambientais de competência comum.
Não se pode descurar que a contratualização público-público também se integra na noção de governo por contrato(s). Contudo, a construção de pontes entre Estado e Sociedade Civil, de forma a propiciar a cooperação sistemática entre atores públicos e privados no desenvolvimento de finalidades comuns pode ser tomada como a vertente forte e, assim, mais utilizada para a expressão governo por contrato(s).
No Brasil, como acima demonstrado, essa vertente passou a ser mais empregada a partir da edição da lei de concessões de serviço público (8.987/95) e da lei que previu as parcerias público-privadas (11.079/04), ambas responsáveis pelo estabelecimento de mecanismos de contratação pública de longa duração, adequadas, v.g., à amortização dos investimentos levados a efeito na concessão de serviços públicos a atores privados.
1.7. Efeitos da implantação gradual do governo por contrato(s).
A ampliação da contratualização da gestão pública, de um lado, é um fenômeno que decorre de múltiplas causas, algumas acima registradas. De outro, há uma série de efeitos que emanam do recurso ao contrato como instrumento de governo que merecem exame apartado, pois são capazes de influir na própria arquitetônica da gestão pública e do relacionamento público-privado contemporâneo.
Merece destaque que os efeitos abaixo sumariados são relacionados entre si, a partir da sua matriz, que é a necessidade posta à Administração contemporânea de se utilizar da via contratual para dar conta do atendimento de suas inumeráveis finalidades públicas. A seguir, serão examinadas determinadas implicações que se apresentam mais relevantes.
1.7.1. A ativação do potencial privado para a realização de tarefas públicas.
Não resta dúvida de que o exercício do governo por contrato(s) demonstra o interesse (e a necessidade) estatal de aproveitar a capacidade dos atores privados para a prossecução de fins públicos e de “despertar o potencial endógeno da Sociedade” para realizar seus objetivos.142
A rigor, trata-se de um apelo às capacidades privadas, por meio de estímulos, v.g., soft law, ou por meio da imposição de execução de atividades relacionadas com a salvaguarda e a implementação de direitos fundamentais, como, v.g., a proteção do meio ambiente, o auxílio a idosos e a pessoas portadoras de necessidade especiais etc.
No Brasil, a possibilidade do emprego dos recursos e dos meios privados para a realização de finalidades estatais se apresenta, pois, com escala a ser considerada, a partir da década de 90 do século passado. Com o surgimento das Organizações Sociais (O.S.)143 e das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (O.S.C.I.P)144, respectivamente, em
142 Nesta perspectiva, a ideia de governo por contrato(s) se aproxima à noção de direito administrativo dos negócios e se distancia do direito administrativo dos clips. XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx. O direito administrativo entre os clips e os negócios. In: Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Belo Horizonte, ano 05, nº 18, abr. / jun. 2007, p. 33 e seguintes.
143 Lei Federal nº 9.637/1998.
144 As Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público podem ser instituídas nos termos da Lei Federal nº 9.790/99 para o atendimento das seguintes finalidades, complementares e/ou suplementares à atuação estatal: promoção da assistência social; promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico; promoção gratuita da educação; promoção gratuita da saúde; promoção da segurança alimentar e nutricional; defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável; promoção do voluntariado; promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à pobreza;
1998 e 1999, houve um apelo à que a sociedade civil se mobilizasse para a realização de finalidades públicas de modo complementar aos entes estatais. O surgimento destas entidades se deu em um momento histórico em que se propugnava por uma redução do espectro de atuação estatal, contudo, não pode deixar de exemplificá-las como forma de ativação do potencial privado para a realização de finalidades públicas.
Antes disso, como atestam tanto o Sistema “Brás” de empresas estatais levado a efeito durante a “Era Vargas”145 quanto a ação exclusivamente estatal durante a ditadura militar, não se lançava mão da potencialidade privada para a realização de finalidades públicas, porque, de um lado, não havia instrumental jurídico apto e, de outro, porque não haviam empresas e conglomerados privados que pudessem, à época, apresentar condições econômicas e financeiras que lhes habilitassem a desenvolver no país tais atividades, restando ao Estado a sua implementação.
Esse “aproveitamento” da capacidade privada, no sentido de que os privados podem se destinar à realização dos interesses públicos, não guarda correspondência somente com o deslocamento da prestação de tarefas públicas por pessoas privadas. Ele pode ser decorrente também de uma espécie de reforço de uma responsabilidade inerente ao âmbito de atuação dos próprios agentes privados. Destaca Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx que a instituição de deveres de autoproteção, como, v.g., a contratação de auditores, as atividades de compliance e a adesão a sistemas de garantia de qualidade representam iniciativas que estão no âmbito privado e que destinam à defesa de seus direitos e interesses, mas também à proteção de interesses da coletividade.146
Estas últimas representam atividades cuja prossecução pelos agentes privados não substitui a ação estatal, embora a ativação do potencial privado neste âmbito tenha como resultado o alargamento das tarefas de proteção aos interesses públicos. A saúde147 e a
experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito; promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar; promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais; estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos.
145 Sobre o período, ver: XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Concessões. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2015, p. 94 e seguintes e XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Anotações sobre a História do Direito Econômico Brasileiro (Parte I: 1930-1956). In: Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Belo Horizonte, ano 02, nº 6, abr. / jun. 2004, p. 69 e seguintes.
146 XXXXXXXXX, Xxxxx. Entidades Privadas com Poderes Públicos: O exercício de poderes públicos de autoridade por entidades privadas com funções administrativas. Coimbra: Almedina, 2008, p.162.
147 Sobre o direito fundamental à saúde e a sua e a complementação privada da sua prestação, dispõe a Constituição Federal, no artigo 196, que “ A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
educação148 no Brasil representam bons exemplos. Para além da prestação direta pelo Estado por decorrência constitucional, há a complementariedade da prestação por meio de agentes privados. Por conseguinte, o exercício da prestação por privados não significa, de modo algum, o abandono desta atividade pelo Estado.
A ativação das responsabilidades privadas no âmbito público pode resultar, também, em situações denominadas de “privatização implícita ou de fato”.149 A título de ilustração, pode-se aludir que, em decorrência da má-prestação de serviços e/ou ações estatais ou mesmo da inércia pública, podem emergir novos mercados, nos quais se comercializam serviços que seriam tradicionalmente levados a efeitos exclusivamente pelo Estado. Nesse âmbito, por exemplo, destacam-se os serviços de segurança privada amplamente difundidos no país.
1.7.2. Maior flexibilidade do contrato na composição de relações jurídicas: ampliação de efeitos jurídicos produzidos com base na avença.
Em relação ao ato administrativo, tomado como mecanismo até então por excelência de atuação da Administração Pública, o contrato, por sua natureza e estrutura jurídica, apresenta maior flexibilidade, o que lhe propicia uma maior eficácia na regulação do leque de situações que a Administração Pública é chamada a intervir, inclusive com a possibilidade de alargamento dos efeitos jurídicos que podem ou se desejam ver produzidos.150
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Por sua vez, o artigo 197 estabelece que são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. E, ainda, o artigo 199 assegura que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada e que as instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.
148 O artigo 205, da Constituição Federal estabelece que a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade. O artigo 209, a seu turno, assegura que o ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as condições de cumprimento das normas gerais da educação nacional e de autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.
149 XXXXXXXXX, Xxxxx. Entidades..., p.166.
150 KIRKBY, Xxxx Xxxxxx-Xxxx. Contratos sobre o exercício de poderes públicos: O exercício contratualizado do poder administrativo de decisão unilateral. Coimbra: Coimbra, 2011, p. 40.
O ato administrativo, por sua configuração unilateral e sua tipicidade, impõe maior rigidez na configuração jurídica pela Administração de situações em que ela é chamada a atuar. A cooperação do agente privado e a formalização de um consenso entre ele e o ente público oferecem maiores possibilidades de desenvolvimento, realização e otimização dos fins da Administração do que as que se verificariam no caso de uma atuação unilateral autoritária.151
De outro lado, sempre que, por opção legislativa, entenda-se cabível o contrato como forma de atuação administrativa, o ideal é se buscar a potencialização das suas virtudes, enquanto instrumento de criação normativa derivado do princípio da autonomia. Isso importa reconhecer, no caso dos contratos administrativos, que um único regime jurídico geral, previsto na lei, baseado na versão tradicional consolidada da teoria do contrato administrativo, não mais é hábil a resolver a complexidade dos fenômenos contratuais com os quais a Administração se depara.152
E, além da diversidade na previsão de regimes legais, há que se garantir maior flexibilidade ao administrador para acordar as prerrogativas da Administração no caso concreto de cada contratação, levando em conta a natureza do objeto contratual, sem que se abra mão da legalidade e do controle do exercício dessa discricionariedade.
Em um exemplo, imagine-se que foi submetida à Administração a realização de licenciamento de determinada atividade comercial. Sob a forma de atuação unilateral, a atuação do ente público seria binária: conceder-se-ia ou não a licença, o que talvez não ensejasse o atendimento integral ao interesse da coletividade. Já sob a forma contratual, pode o ente público estabelecer condicionamentos ao agente privado, impondo, v.g., ao particular prestações contratuais como contrapartida ao licenciamento, tais como infraestruturas de acessibilidade, de saneamento etc.
Em cenários como o acima ilustrado, o contrato se revela inequivocamente como um “dúctil, flexível e eficiente instrumento”153 de ação estatal, ao possibilitar a definição de uma disciplina integrada e coerente em cenários de complexidade, de modo a favorecer a racionalização da atuação administrativa e permitir uma maior aderência da realidade à
151 KIRKBY, Xxxx Xxxxxx-Xxxx. Contratos..., p. 41.
152 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxxx de. Contrato administrativo no Brasil: aspectos críticos da teoria e da prática. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 125-139, mar./ago. 2012
153 XXXXXX, Xxxx Xxxxxx-Xxxx. Contratos..., p. 42.
finalidade pública. Além disso, ele propicia uma inegável economia de esforços dos particulares em vista de se adequar aos constrangimentos jurídicos postos à sua atuação.
A via contratual, nesse sentido, apresenta vantagens inegáveis; além de se afastar do estigma normalmente associado à via autoritária e unilateral, ela tem a virtude de tutelar, de forma segura, o interesse positivo que a Administração possa ter na prestação do administrado.154
Não resta dúvida, portanto, que o contrato pode permitir o alargamento do leque de efeitos jurídicos produzidos, em virtude da sua maior flexibilidade em relação ao ato administrativo. Na segunda parte desta investigação, buscar-se-á demonstrar que a flexibilidade do contrato é um dos componentes que propicia a realização da chamada contratação pública estratégia, na qual os efeitos do contrato transcendem as partes contratantes e alcançam terceiros não envolvidos na avença, propiciando ganhos inerentes aos ideais de uma justiça de matriz distributiva.
1.7.3. Delegação da normatização concreta de cada negócio jurídico da lei para o contrato.
Como adiante será explicitado, o contrato público apresenta uma ambivalência, pois possui em seu próprio âmbito, duas lógicas paralelas: a “lógica da função” atinente ao dever estatal inescusável de satisfação de sua finalidade pública e a “lógica do contrato” relacionada à esfera negocial, que permite às partes, com fundamento na autonomia, estabelecer a próprio normatização concreta de cada negócio jurídico.
A “lógica da função” deriva do próprio modo de ser estatal, funcionalizado. Por sua vez, o âmbito negocial do contrato público representa a grande virtude com contrato como técnica de produção normativa,155 isto é, com a majoração da complexidade das demandas estatais, a disciplina jurídica do exercício de funções públicas por privados, por exemplo,
154 PAREJO XXXXXX, Xxxxxxx. La terminación convencional del procedimento administrativo como forma alternativa de desarollo de la atividade unilateral de la Administración. In: AAVV: Eficacia y Administración – Tres Estudios. Madrid: Xxxxxxx Xxxx, 1996, p. 29.
155 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxxx de. Contrato administrativo no Brasil: aspectos críticos da teoria e da prática. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, mar./ago. 2012, p. 127.
precisa ser detalhada individualmente, levando em conta as circunstâncias, os detalhes, do caso concreto.
A normatização legal, caracterizada pela generalidade, abstração e impessoalidade, própria da sua natureza, não tem o condão de dar conta das especificidades de cada demanda de interesse público a ser buscado por intermédio do contrato que, em consonância com a legislação aplicável, poderá melhor disciplinar a relação jurídica entabulada entre o ente público e o contratado privado ou entre entidades públicas.
1.7.4. Ampliação da margem de consensualidade, com estipulação de cláusulas na fase pré-contratual.
Apresenta-se, neste ponto, mais um efeito relevante da ampliação do emprego dos contratos públicos como técnica administrativa por excelência, de modo a demonstrar que a boa-fé156 e a confiança recíproca, como pressupostos para a ampliação da margem de consensualidade e a estipulação de cláusulas na fase pré-contratual são ingredientes fundamentais nas relações público-privadas.
De acordo com Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, “(...) a negociação pré-contratual, aqui entendida como aquela que pode se desenvolver entre a Administração Pública e o licitante vencedor no momento posterior à proclamação da proposta vencedora, mas anterior à celebração do contrato”157 é um dos itens mais relevantes para a eficiência das licitações e, por consequência, das contratações públicas.
O mútuo entrosamento entre ente público e contratado, no sentido de se aperfeiçoar a proposta proclamada vencedora, desde que entabulado sob uma perspectiva transparente e republicana, pode ensejar um benefício do tipo ganha-ganha: tanto a Administração é beneficiada, quanto o contratado, pois se poderá amoldar o contrato em vista do
156 Sobre o tema, ver: XXXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. A invalidade dos atos administrativos: uma construção teórica frente ao princípio da estrita legalidade e da boa-fé. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1998.
157 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Licitação Pública e a negociação pré-contratual: a necessidade do diálogo público-privado. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 61-74, set. 2012/fev. 2013.
aperfeiçoamento das condições de sua prestação, com a possível inibição de desequilíbrios econômico-financeiros, que suscitam, invariavelmente, perdas para todos.
Sem embargo, prevalece ainda no Brasil o ideário de que deveria haver a exclusão e a confrontação entre os interesses públicos e os interesses privados, pois a aproximação e, mais, a negociação público-privada poderia ensejar desvios de conduta e corrupção. No âmbito da contratação pública brasileira, “(...) autoridade, formalidade, hierarquia e intervenção persistem a ser algumas das palavras mais comuns — ao invés de igualdade, eficiência, colaboração e consenso”,158 que representam a sinergia necessária para o resultado a ser satisfeito pela contratação pública.
Por evidente que a negociação pré-contratação, mas pós-licitação, não pode significar a imposição unilateral de “vantagens” somente para a Administração; as quais, exigidas após a seleção da proposta vencedora, teriam o condão de, ou violar regra da concorrência ou possivelmente apenas obstar a regular execução do contrato.
De outro lado, as condições negociadas não podem se destinar a salvaguardar somente os objetivos do contratado, de forma a representar inequívoca “captura” da Administração pelo licitante vencedor, o qual, pela natural assimetria de informações, seria indevidamente beneficiado.
Denota-se, portanto, que a negociação pré-contratual se desenvolve em um ambiente que não é mais competitivo, mas colaborativo. O que leva a um ideal de ganho recíproco e colaborativo. Para tanto, o setor público e o contratado devem ser transparentes ao máximo na divulgação dos seus interesses, limites e prioridades (condições ideais para que ambas as partes ganhem com a negociação)159 e sejam alcançados a contento e à luz dos interesses públicos, os escopos da contratação.
Por conseguinte, a negociação pré-contratação, porém, pós-licitação, pode significar um incremento importante no sentido de se adequar as obrigações contratuais para o melhor alcance das finalidades públicas da relação jurídica entabulada.
158 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Licitação..., p. 62.
159 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Licitação Pública e a negociação pré-contratual: a necessidade do diálogo público-privado. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 61-74, set. 2012/fev. 2013.
1.7.5. Introdução de contratos atípicos com diversidade de objetos.
Como o movimento do governo por contrato(s) demonstra, a amplitude do uso dos contratos como instrumento de ação administrativa decorre, dentre outros fatores, pela dinâmica crescente que os interesses e as necessidades públicas de incumbência dos entes públicos apresentam. Da atuação estatal no campo da segurança nacional, passando pela indução à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico, pela proteção ambiental e pelo fomento à cultura, as atividades estatais, a cada dia, crescem em abrangência e intensidade. Esse engrandecimento torna absolutamente superados os modelos contratuais tradicionais.160
A busca por novas soluções de financiamento das utilidades públicas visando à prossecução de direitos fundamentais com o menor impacto fiscal possível conduz à procura de arranjos e relacionamentos contratuais que, ao mesmo tempo, sejam (i) adaptáveis às vicissitudes estatais; (ii) flexíveis quanto à permanente mutabilidade dos interesses envolvidos e (iii) assegurem o alcance das suas finalidades.
Não é mais plausível defender que a Administração só possa celebrar contratos de fornecimento de bens e serviços, de empreitada, de concessão tradicional e de parceria público-privada para o alcance de suas finalidades, até mesmo porque esse leque de alternativas contratuais disponibilizados tradicionalmente não dão conta mais de todos os desígnios postos à Administração, o que torna premente a busca por outras alternativas, muitas delas advindas, porque não, do direito privado.161
160 MARQUES NETO. Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Do Contrato..., p. 79-80.
161 Nesse sentido, argumenta Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx que a Administração, ao desfrutar de uma capacidade geral de agir segundo modelos de Direito Privado (como pessoa jurídica de direito público interno ela é capaz de atos de ordem privada, outorgada por lei nacional), ela pode se utilizar de instrumentos atípicos para se inter-relacionar com as demais pessoas jurídicas. De acordo com o autor, “isso é especialmente importante no âmbito dos contratos administrativos, onde, a partir dessa capacidade de ordem geral, a administração pode vir a substituir a regulação da lei pela regulação do instrumento que entabular”. XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx. O Exercício da Função Administrativa e o Direito Privado. Tese de doutoramento defendida perante a Universidade de São Paulo (USP) sob a orientação da Profa. Dra. Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xx Xxxxxx. Mimeografada. São Paulo, 2010, p. 2000.
De acordo com Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, “(...) a Administração não está jungida a pactuar apenas contratos típicos (nominados). Entendimento contrário conduziria a inviabilizar a atividade contratual da Administração Pública”.162
Mesmo que a Administração esteja sempre jungida à legalidade, não se pode argumentar que os modelos (tipos) de contratação pública necessariamente precisam ser definidos em lei. Nesse sentido, “(...) a lei concede autorização para o Estado contratar, mas não fornece parâmetros exaustivos dos modelos de contratação”.163
Esse entendimento é derivado do fato de que a própria legislação brasileira não disciplinou estritamente a tipicidade contratual. De acordo com Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx e Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx, ainda que seja detalhista e minuciosa, a lei federal nº 8.666 restringiu-se a disciplinar gêneros contratuais. Ela trata, basicamente, de “obras”, “serviços”, “compras” e “alienações”.164
A questão da atipicidade diz respeito também ao fato de que inexiste também um regime uniforme dos contratos públicos. Isso porque, consoante destaca Xxxxxx Xxx Xxxxxxxx, “o direito brasileiro está longe de ser homogêneo em relação ao tratamento dos contratos públicos. A lei nº 8.666/93, pretensamente geral, não constitui o único diploma legal sobre a matéria. Quando o contato envolve setores regulados, é necessário compreender o funcionamento de suas normas particulares para aí, estabelecer o regime jurídico aplicável”.165
Conforme xxxxx Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, “(...) a Lei não se preocupa, de modo específico, com o contrato de ‘transporte’, o que não significa vedação à sua utilização: trata- se de uma modalidade de prestação de serviços. Não há impedimento algum a que a Administração produza distintas espécies de ‘contratos de prestação de serviços’, cada qual com característicos próprios.166
162 XXXXXX XXXXX. Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 13ª ed. São Paulo: Dialética, 2009. p. 677-678.
163 XXXXXX XXXXX. Marçal. Comentários..., p. 677-678.
164 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx; CUNHA, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx. Locação de ativos. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 3, n. 3, p. 99-129, mar./ago. 2013.
165 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx; CÂMARA, Xxxxxxxx Xxxxxx. Uma crítica à tendência de uniformizar com princípios o regime dos contratos públicos. In: In: Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Ano 11, nº 41, jan. / mar. 2013. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 71.
166 XXXXXX XXXXX. Comentários..., p. 677-678
A adoção, portanto, de modelos contratuais atípicos que se mostram, no caso concreto, a solução mais adequada à prossecução da finalidade pública deve ser defendida. Neste sentido, importante é o entendimento exarado por Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx já em 1993, no sentido de que “(...) não há óbice constitucional algum a que o Poder Público, em regime de livre iniciativa, como é o nosso, se relacione com particulares empreendedores e acerte as fórmulas jurídicas idôneas para obter-lhes a colaboração mediante contrapartida econômica conveniente de parte a parte”.167
Portanto, à luz do exposto e conforme o entendimento de Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx e de Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx, a existência de modelos contratuais legislativamente endereçados na condição de contratos administrativos não tem o condão de vedar o emprego de formas contratuais atípicas168, a serem arranjadas em consonância com a legalidade e a finalidade pública a ser realizada.
1.7.6. Uso de contratos por desempenho, nos quais o contratado se vincula a metas de desempenho, com a possibilidade de remuneração variável.
Como decorrência, igualmente, da possibilidade do emprego de contratos como instrumento de gestão pública contemporânea, destaca-se, a partir da Edição do Regime Diferenciado de Contratação Pública (instituído pela Lei Federal nº 12.462/2011) a possibilidade do estabelecimento de contratos remunerados consoante o desempenho verificado, nos quais o contratado não se vincula a objetos previamente estipulados, mas a metas.
Consoante estabelece o artigo 10º, da lei federal nº 12.462/2011, os contratos públicos que tiverem por objeto a edificação de obras e a prestação de serviços, inclusive de engenharia, poderão instituir que a remuneração do contratado seja variável, em
167 BANDEIRA DE MELLO. Xxxxx Xxxxxxx. Obra pública a custo zero: instrumentos jurídicos para realização de obras públicas a custo financeiro zero. Revista Trimestral de Direito Público – RTDP. São Paulo, n. 3, p. 32-41, mar. 1993.p. 34.
168 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx; CUNHA, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx. Locação de ativos. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 3, n. 3, p. 99-129, mar./ago. 2013.
conformidade com o seu desempenho e segundo metas e padrões de qualidade, disponibilidade e critérios de sustentabilidade ambiental, anteriormente fixados.169
Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx e Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx destacam que, historicamente, no âmbito da contratação pública brasileira ainda “(...) são raras as configurações que envolvam variáveis de remuneração baseadas no desempenho do prestador”.170 Isso decorre do fato de que, tradicionalmente, as concessões brasileiras prestigiaram técnicas repressivas (v.g., multas e sanções administrativas) de ajustamento da conduta do contratado, no caso, do concessionário que não atingisse o desempenho suficiente, ao invés de estabelecer metas de qualidade pelo cumprimento de níveis de disponibilidade e de qualidade esperados.
Contudo, muito recentemente, a partir do Regime Diferenciado de Contratação, passou-se a prestigiar um modelo dinâmico de contratação, no qual a remuneração do contratado é baseada no alcance de determinados índices de produtividade e metas de eficiência (disponibilidade e qualidade). Assim, os estímulos (soft law contratual) deixam de ser exclusivamente repressivos e passam a ser também positivos.
Opera-se aqui o uso da lógica de incentivos nos diplomas normativos, que passa a se constituir em um mecanismo adequado para se buscar a implementação de políticas públicas sustentáveis no âmbito governamental. Esses incentivos podem se dar de diferentes formas, mas sempre objetivando reconhecer e valorizar os gestores e particulares contratados que tomarem iniciativa no sentido de promover a sustentabilidade, especialmente quando relacionado às compras públicas.
Nesse sentido, simultaneamente, passa a ser possível, em caso de mal desempenho, a aplicação de sanção ao contratado, mas, em caso de ampliação da sua eficiência, o incremento da sua remuneração, por meio da atribuição de um plus remuneratório, o que pode servir de instrumento de maximização da eficiência contratual.171
169 SCHWIND, Xxxxxx Xxxxxxxx. Remuneração variável e contratos de eficiência no Regime Diferenciado de Contratações Públicas. In: XXXXXX XXXXX, Xxxxxx; XXXXXXX, Xxxxx X. Guimarães (Coord.). O Regime Diferenciado de Contratações Públicas: comentários à Lei nº 12.462 e ao Decreto nº 7.581. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 169 e seguintes.
000XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Regime Diferenciado de Contrataçõe s: alguns apontamentos. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, mar./ago. 2012, p. 123.
171 Cfr.: XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Regime..., p. 123.
1.7.7. Flexibilidade na alocação de riscos com estipulação da repartição de ganhos de eficiência para o Estado.
A contratualização contemporânea do exercício da função administrativa permite também, nos contratos de longo prazo, a possibilidade de repartição dos riscos entre os contratantes. Vale dizer, considerando-se o risco como a possibilidade de ocorrências futuras que podem repercutir na execução do contrato, a partir de introdução legislativa expressa,172 passou a ser possível no Brasil a introdução de um sistema pré-estabelecido de responsabilidades no instrumento contratual.
Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxx destaca que, até pouco tempo atrás, a teoria das áleas era suficiente para explicar e justificar as incertezas, os riscos e as imprevisibilidades que poderiam advir durante a execução do contrato.173 Segundo o autor supracitado, em síntese, a álea ordinária era atribuída ao contratado, eis que ela estaria vinculada aos riscos próprios da atividade empresarial. Já a álea extraordinária, seja administrativa, decorrente de uma ação estatal, como é o caso da alteração unilateral, fato da administração ou fato do príncipe, seja econômica, oriunda de circunstâncias exógenas ao contrato e a própria vontade das partes, ensejariam o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, recaindo sobre o contratante o dever de promover os ajustes necessários para reposicionar o equilíbrio entre as prestações inicialmente estabelecidas entre as partes.174
As concepções acima, contudo, passam a ser superadas na medida em que a legislação aplicável aos contratos de longa duração passaram a estabelecer uma partilha de riscos definida objetivamente no instrumento contratual.
Nesses contratos contemporâneos, a partilha dos riscos pode gerar economia considerável em favor da própria entidade pública contratante, uma vez que a divisão de
172 Dispõe o artigo 5º, inciso III, da Lei Federal nº 11.079/2004 que as cláusulas dos contratos de parceria público-privada deverão prever, dentre outros, a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária.
173 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. A mutabilidade e incompletude na regulação por contrato e a função integrativa das Agências. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 3, n. 5, mar./ago. 2014, p. 67.
174 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. A mutabilidade..., p. 67.
riscos contratual permite que sejam estabilizadas, inclusive, algumas das incertezas que cercam (ou podem vir a atingir) determinadas contratações.175
Consoante sustenta Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, “o regime jurídico dos contratos tutela a alocação ex ante dos riscos, impondo limites a que as partes disponham sobre a assunção de certos riscos, assim como a sua definição ex post, delimitando, por exemplo, a responsabilidade das partes ante a materialização de riscos extracontratuais”.176
A possibilidade de alocação dos riscos entre contratante e contratado é possível de ser levada a efeito nos contratos públicos, em especial, nos que veiculam Parcerias Público- Privadas. Não há, em relação à repartição de riscos, vedação constitucional. Isso porque a previsão do artigo 5º, inciso III, da Lei Federal nº 11.079/2004 que dispõe sobre a possibilidade de repartição de riscos entre os contratantes é compatível com o disposto no artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, porquanto a intangibilidade da equação econômico-financeira, regra constitucional, não impede a livre disposição das partes em distribuir os riscos do contrato, pois ela protege o conteúdo econômico da proposta e veda as interferências arbitrárias ex post.
A rigor, o objetivo da (re)alocação de riscos é garantir uma maior eficiência ao contrato, diminuindo os custos de financiamento, razão pela qual não parecem mais se sustentar as objeções à sua realização e os argumentos de inconstitucionalidade dos dispositivos legais que a disciplinam.
1.7.8. Multiplicação de acordos de cooperação.
Os acordos de cooperação são também designados na literatura em idioma anglicano por Gentlemen’s agreements e representam os contratos firmados entre entidades integrantes da própria Administração.177
175 XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx da. Alocação de riscos em contratos de concessão comum e de PPPs: do Rebus Sic Stantibus ao Pacta Sunt Servanda? Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 3, n. 5, mar./ago. 2014, p. 34.
176 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Alocação de Riscos na PPP. In: Parcerias Público-Privadas: Reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004. XXXXXX XXXXX, Xxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx. (coord.). São Paulo: Editora XX, 0000, p. 234.
177 XXXXXXX XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos. Reimpressão. Coimbra: Almedina, 2013, p. 408.
No Brasil, esses acordos de cooperação recebem uma denominação muito variada, desde convênios administrativos, passando por contratos intra-administrativos e por contratos interadministrativos. Tal fato, relativo à designação das figuras, embaraça, de certo modo, a compreensão da natureza de cada negócio jurídico, acarretando posicionamentos controvertidos sobre algumas espécies desses ajustes. Ademais, não é incomum, por exemplo, no Brasil, os órgãos de controles constatarem contrato administrativo com roupagem e natureza de convênio administrativo.
Consoante sustenta Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx constituem exemplos de acordos de cooperação: o convênio, o consórcio administrativo, o contrato de repasse, o convênio de cooperação, o contrato de gestão, o termo de parceria, o consórcio público e o contrato de programa.178
A despeito da ausência de sistematização legislativa sobre as figuras acima, que muitas vezes se sobrepõem, o elemento que permite o seu agrupamento sob a noção de módulos convencionais de cooperação é “(...) a identidade de fins a que visam os parceiros, de modo a não se identificar situação de prestações contrapostas”.179
A maximização do emprego dos acordos de cooperação é sem dúvida coincidente com o movimento de governo por contrato(s). Eles partem da premissa da atuação conjugada e da comunhão de esforços entre entes públicos ou entre entes públicos e entidades privadas para o alcance de finalidade comuns. Nesse sentido, esses acordos devem ser compreendidos como instrumentos jurídicos hábeis a contribuir para o fomento e o desenvolvimento social.180
1.8. Algumas objeções quanto ao emprego ampliado dos contratos como instrumento de governo.
Ao lado dos múltiplos argumentos favoráveis ao emprego mais vasto dos contratos como instrumentos de gestão pública, bem como dos efeitos (externalidades positivas deles
178 XXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxx. Contrato Administrativo. São Paulo: Xxxxxxxx Xxxxx, 0000, p. 240.
179 XXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxx. Contrato..., p. 241.
180 XXXX, Xxxxxxx Xxxxx. Convênio Administrativo: Instrumento Jurídico Eficiente para o Fomento e Desenvolvimento do Estado. Curitiba: Juruá, 2013, p. 282.
decorrentes) exsurgem argumentos contrários; em especial, os que se fundamentam no receio de redução do espaço da atuação pública a partir do uso demasiado dos contratos no exercício da função pública.
1.8.1. O soi-disant problema da mitigação e/ou “alienação” do poder administrativo.
O problema contido neste tópico diz respeito à ideia de que, ao se vincular contratualmente, em princípio, a Administração alienaria seus poderes e prerrogativas de autoridade, mitigando a possibilidade de exercício de adequação da contratação às leituras dos direitos, necessidades e interesses públicos presentes.
Trata-se de uma objeção clássica (e bem conhecida) posta ao próprio surgimento do contrato público-administrativo, no sentido de que o exercício do poder público por meio de um contrato limitaria a capacidade do Estado de cumprir adequadamente as suas funções públicas, pois estaria sob uma teia de vinculações contratuais das quais dificilmente poderia se libertar, com a consequente perda e disponibilidade de seu poder.181
Evidentemente que, com a superação dos entendimentos exarados pelas escolas contrárias à possibilidade da celebração de contratos pela Administração, o problema acima restou superado. Em síntese, é preciso estabelecer a distinção entre a disposição de poder e a cessão do seu exercício em dado caso concreto. Ora, nos contratos públicos, a Administração não dispõe, nem cede a terceiros os seus poderes sobranceiros, nem os renuncia definitivamente, mas se vincula a um caso concreto, não havendo, por conseguinte, cessão ou alienação de poder administrativo, que habilite crítica consistente ao movimento do governo por contrato(s).
1.8.2. A chamada “barganha” de poderes (e/ou funções) administrativas.
Outro “receio” apresentado pela doutrina em relação à ampliação da contratualização pública diz respeito à possibilidade de a Administração encontrar uma “porta aberta”, a que
181 KIRKBY, Xxxx Xxxxxx-Xxxx. Contratos sobre o exercício de poderes públicos: O exercício contratualizado do poder administrativo de decisão unilateral. Coimbra: Coimbra, 2011, p. 53.
seus agentes possam coagir o particular, exigindo contraprestações, muitas vezes de caráter ilícito, em troca da concessão da possibilidade do exercício de poderes públicos ao privado.
A rigor, trata-se de um problema similar ao encontrado nas outras formas de atuação unilaterais da Administração, como o próprio ato administrativo.
Contudo, de partida, no caso dos contratos, a sua grande vantagem reside do fato de que o ente contratante pode se utilizar do acordo para obter resultados que não obteria por meio de um procedimento unilateral. Ou seja, a consensualidade, como nota distintiva dos contratos em relação aos atos unilaterais, permite, na medida em que propicia o estabelecimento individualizado de direitos e deveres, um grau de satisfação mais elevada dos direitos e interesses, tanto da Administração, quanto dos contratados, o que corrobora o uso dos contratos como mecanismo por excelência da função pública e afasta essa crítica.
Por conseguinte, não é a contratação pública per se a causa da chamada “barganha” de poderes e/ou funções administrativas. A possibilidade de ocorrência de atos ilícitos envolvendo a Administração pode ocorrer, em mesma medida, em qualquer dos âmbitos de atuação administrativa.
1.9. O Contrato Público e a Política Pública como mecanismos de ação da Administração contemporânea.
A adesão à ideia de governo por contrato(s) permite a visualização do contrato público para além do seu emprego como instrumento técnico-administrativo a partir do qual há o desembolso de recursos públicos em contrapartida ao recebimento de bens e/ou de serviços prestados ou ofertados pelo contratado.
Com a possibilidade de formalização de contratos de longo prazo, passou-se a autorizar que tanto o planejamento estatal, quanto a implementação de políticas públicas fossem concretizados também no bojo de contratos públicos.182
Nos contratos públicos de concessão de serviços públicos e de parcerias público- privadas torna-se possível o planejamento e a concretização de políticas públicas de longo prazo, as quais funcionam hoje como alicerce para o desenvolvimento social e econômico.
182 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. O Contrato Administrativo como Instrumento de Governo. In: Xxxxx Xxxxxxxxx (Coord.) Estudos de Contratação Pública. Vol. IV. Coimbra: Coimbra editora, 2010, p. 12.
Isso corresponde tanto à verdade que a própria Comissão Europeia reconhece que “(…) os contratos públicos são considerados um motor fundamental das políticas públicas”,183 em especial, em períodos de crise econômica e em locais desprovidos de infraestruturas essenciais para o pleno desenvolvimento social.
Ao estabelecer metas para o alcance de determinadas prioridades; ao fixar modos de integração e ao fixar critérios que podem implicar distribuição de riqueza, o contrato pode funcionar, de acordo com Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, como instrumento de governo e se destinar à implementação de políticas públicas.184
Quanto à noção jurídica de política pública, no entanto, importa destacar que, por sua abrangência, ela ainda carece de maior precisão técnica”.185 O que podem ser consideradas, enfim, políticas públicas?186 Qual é também o seu âmbito de manifestação?
De partida, pode-se argumentar que a política pública deve ser considerada como um dos mecanismos centrais e mais abrangentes de atuação da Administração com vistas à efetivação dos Direitos Fundamentais, sobretudo, dos direitos sociais, econômicos e culturais.
Como essa espécie de atuação estatal, ao longo do tempo, não se apresentou como um tema ontologicamente jurídico187, ela acabou não recebendo uma disciplina jurídica mais intensa, permanecendo o seu tratamento e a sua regência circunscrita ao campo do debate político.
183 Cfr. Resumo da avaliação de Impacto que acompanha a Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, COM (2012) 124, final, Bruxelas, 21.03.2012, p.2, in: http//:xxx.xxxxxx.xx. Acesso em 18 de dezembro de 2014.
184 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. O Contrato Administrativo..., p. 12.
185 COMPARATO. O Ministério Público na defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais. In: CUNHA, Xxxxxx Xxxxxxx da; XXXX, Xxxx Xxxxxxx (Org.). Estudos de direito constitucional: em homenagem a Xxxx Xxxxxx xx Xxxxx, p. 246.
186 Essa pergunta é realizada também por Xxxxxxx Xxxxx, para quem “essa indagação deveria se constituir no pórtico de qualquer debate jurídico sobre o tema, na medida em que a atividade judicial de revisão do conteúdo das políticas públicas deve ser estudada, com o objetivo de se evitar o transporte, puro e simples, das teorias que embasam a revisão judicial dos atos administrativos para o interior de um sistema político, o sistema Constitucional”. In: APPIO. Xxxxxxx. Controle judicial das políticas públicas no Brasil. Xxxxxxxx, Xxxxx, 0000, p. 133.
187 Como o próprio nome explicita, ainda que se voltem a proporcionar direitos, as políticas públicas, antes de possuir uma natureza jurídica, detêm uma índole política inafastável. Outrossim, elas não eram tidas como um tema essencialmente jurídico porque, como se demonstrará no curso do trabalho, eram submetidas a princípios e valores diversos dos mecanismos jurídicos tradicionais de realização dos Direitos Fundamentais, como os que informam os serviços públicos. Sobre a transformação dos fundamentos axiológicos normativos do Direito Administrativo e, igualmente, da Administração Pública contemporânea, interessante a obra de XXXXXX, Xxxx- Xxxxxx. La Déontologie de l’Administration. Paris: PUF, 1999. p. 13 e seguintes.
Na literatura estadunidense, as políticas públicas são examinadas, em geral, no âmbito da policy science, uma seção particular da ciência política, que recebeu impulso mais intenso com a ascensão do Estado de Bem-Estar norte-americano.188 Entre 1933 e 1961 sobressaíram as políticas governamentais fortemente intervencionistas no âmbito social e econômico. Essas medidas, conhecidas historicamente como New Deal, promoveram uma marcha estatizante na sociedade norte-americana, que somente se arrefeceu nos anos 1980. Portanto, a análise de políticas públicas, ao menos nos Estados Unidos da América, somente ascendeu em importância quando o Estado finalmente chamou para si a tarefa de ordenar a sociedade e prestar serviços públicos em larga escala.189
Nas ciências políticas e na doutrina jurídica, há uma multiplicidade de definições a propósito das políticas públicas, sendo que, a rigor, o único consenso existente entre os autores é o de que as políticas públicas derivariam de decisões governamentais e guardariam relação com as ações de governo.190 De modo geral, a doutrina jurídica brasileira, em especial do direito constitucional, compreende as políticas públicas como meios para a efetivação de direitos de cunho prestacional pelo Estado (direitos sociais em geral); não se poder olvidar, contudo, que elas se destinam também à efetivação de valores morais consagrados pela sociedade e também direitos não-fundamentais.
Este é um ponto que merece ser enfatizado, pois implica no reconhecimento de que os direitos sociais e os demais direitos fundamentais constituem o objetivo final de algumas das políticas públicas executadas pelo Estado. Contudo, a despeito desta perspectiva teleológica, ainda impera um clima de incerteza sobre a exata definição do que efetivamente seriam as políticas públicas.
Há autores que trabalham com o termo e renunciam expressamente a tentativa de formular de modo explícito uma definição.191 Há a possibilidade também de se sustentar que um conceito de políticas públicas consistiria numa redundância, porquanto a política seria essencialmente pública. Sem embargo disso, o seu emprego corrente na doutrina e na
188 XXXXX, Xxxxxx. Partners, not Rivals: Privatization and the Public Good. Massachusetts: Beacon Press, 2002, p. 37.
189 Cfr.: FONTE, Xxxxxx xx Xxxxx. Políticas Públicas e Direitos Fundamentais. 2ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 36.
190 XXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxx. Para Compreender a Política das Políticas Públicas. In: A Política das Políticas Públicas: Progresso econômico e social na América Latina. Banco Interamericano de Desenvolvimento e David Rockefeller Center for Latin America Studies (orgs.) . Rio de Janeiro: Xxxxxxxx, 0000, p. 13.
191 FONTE, Xxxxxx xx Xxxxx. Políticas Públicas..., p. 48.
jurisprudência quer indicar mais do que uma casual união de duas palavras com significações autônomas.192
Consoante sustenta Xxxx Xxxxxxx Xxxx, “a expressão políticas públicas designa todas as atuações do Estado, cobrindo todas as formas de intervenção do poder público na vida social”.193 Trata-se, inequivocamente, de uma definição abrangente que possui o condão de transformar, até mesmo, as decisões judiciais em espécies de política pública, já que elas se tratam de uma forma de intervenção do Estado na vida social. Exatamente isso é que concluiu o supracitado autor, para quem “o direito é também, ele próprio, uma política pública”.194
Nessa direção, porém de maneira mais circunscrita, pode-se afirmar que as políticas públicas compreendem as ações e programas voltados a dar efetividade aos comandos gerais impostos pela ordem jurídica que necessitam da ação estatal. Portanto, são exatamente as ações levadas a efeito pela Administração, inclusive veiculadas por meio de contratos públicos, que se encaixam nesta definição.
Para além desse afazer fundamental, relativo à efetivação das normas que veiculam direitos fundamentais sociais, dependentes de prestações estatais, consoante destaca Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxx, as políticas públicas também funcionam como instrumento de realização dos direitos fundamentais de primeira geração, por meio, por exemplo, da política de segurança pública (que objetiva a proteção da propriedade e das liberdades individuais), de terceira geração, através da política pública para o meio ambiente, e para direitos não- fundamentais, como, v.g., políticas públicas financeiras.195
Por conseguinte, as políticas públicas não se constituem um em fenômeno estritamente ligado aos direitos fundamentais prestacionais, ainda que esteja com eles inquestionavelmente relacionado, mas pertinente a um Estado que pretende atuar sobre (ou perante) a Sociedade por múltiplas razões; em especial, para dar conta de finalidades constitucionalmente estabelecidas e legitimar-se enquanto aparelho de representação popular. Para satisfazer essas múltiplas finalidades, utiliza-se de vários mecanismos e perspectivas de conhecimento distintas.
192 Cfr.: BREUS, Thiago Lima. Políticas Públicas no Estado Constitucional: Problemática da Concretização dos Direitos Fundamentais pela Administração Pública Brasileira Contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 211 e seguintes.
193 GRAU, Xxxx Xxxxxxx. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. 8ª ed., São Paulo: Malheiros, 2011, p. 16.
194 GRAU, Xxxx Xxxxxxx. O Direito..., p. 27.
195 FONTE, Xxxxxx xx Xxxxx. Políticas Públicas..., p. 52.
Diversos ramos do conhecimento jurídico têm se voltado ao exame das políticas públicas, em especial, (i) o direito constitucional, voltado essencialmente ao seu controle judicial e os limites do ativismo judiciário na concretização dos direitos fundamentais; (ii) o direito ambiental, em relação às políticas públicas de proteção ambiental; (iii) o direito financeiro, com relação às questões de custeio das políticas públicas, dentre outros. O direito administrativo, nos últimos anos, acolheu em seu âmbito, as políticas públicas como mecanismo de ação estatal. Nesse sentido, argumenta Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx que o estudo das políticas públicas deve se dar no âmbito do Direito Administrativo justamente porque este é o âmbito do Direito que se ocupa do estudo da instituição estatal, na sua vertente executiva, enquanto o Direito Constitucional se volta antes à disposição dos Direitos Fundamentais e da organização do aparato estatal.196
Ainda nesse contexto, Odete Medauar explicita que “se a disciplina jurídica da Administração pública centraliza-se no direito administrativo e se a Administração integra a organização estatal, evidente que o modo de ser e atuar do Estado e seus valores repercutem na configuração dos conceitos e institutos desse ramo do direito”.197
A crescente apreensão pelo direito administrativo dos caracteres que moldam as políticas públicas, entretanto, não significa a realização de uma “colonização” da política pelo direito, mas reflete a própria transformação do Estado198 que, sob um paradigma estritamente formal, passa a estar erigido sobre uma racionalidade que lhe confere um substrato substancial, no qual as políticas públicas deixam, por conseguinte, de se situar exclusivamente no âmbito da deliberação política para receber intensa circunscrição jurídica, em especial da Constituição.199
196 XXXXX, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 265.
197 MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 77.
198 A transformação do Estado a partir da Constituição e da Constituição a partir do Estado segue o que Xxxxxxxx Xxxxxxxxxx descreve como sendo o duplo movimento da história do Direito Público Moderno: Dalla ‘Constituzione’ allo ‘Stato’ e dallo ‘Stato’ alla ‘Constituzione’. In: XXXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Stato e Constituzione: Materiali per una Storia delle Dottrine Constituzionalli. Torino: G. Giappichelli Editore, 1993. p. 04.
199 Invariavelmente, de acordo com Xxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx, todas as Constituições pretendem, de uma forma ou de outra, conformar o político. As Constituições características do Estado Constitucional, denominadas como dirigentes, além disso, pretendem racionalizar a política, incorporando um elemento legitimador da política, que é o estabelecimento de metas e tarefas previstos no texto Constitucional. In: XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxx. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas. 2. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 28.
Como já visto, as próprias políticas públicas representam a modalidade de ação por excelência do atual modelo de Estado, denominado de Constitucional200, que passa a estar diretamente vinculado ao atendimento de uma série de objetivos axiológicos, relacionados à progressiva promoção de determinados fins, como a superação das desigualdades materiais presentes na sociedade, a realização de uma justiça substancial e a salvaguarda da democracia,201 que representam efetivas cláusulas de transformação social.
A ancoragem do Estado Constitucional a essas metas de caráter positivo, ao lado das proibições a ele impostas anteriormente, no entanto, resulta no alargamento das funções a serem desempenhadas pelo aparato estatal em face das atividades promovidas pelo Estado de Direito e, igualmente, exige a ampliação dos mecanismos de realização dos fins (v.g.: o emprego mais intenso da contratação pública como instrumento de governo) e dos seus instrumentos jurídicos de controle (v.g.: a gestão administrativa dos contratos públicos).
Eis uma das razões que explicam, de um lado, o recurso ao contrato público como mecanismo de realização de políticas públicas e, de outro, a necessidade posta à Administração de obter as skills necessárias para atuar como gestora destes contratos.
Sem embargo disso, o edifício do Direito Administrativo nacional, ainda que objeto de intensa renovação, permanece estruturado sob a formatação proveniente do ideário do Estado de Direito, que lhe deu origem, haja vista que se volta ao delineamento de uma Administração Pública, unitária e dotada de prerrogativas autoritárias, separada da sociedade civil e destinada à consecução de finalidades abstratas, como aquelas que se subsumem à monolítica fórmula do interesse público e que são buscadas, em geral, pela clássica figura do ato administrativo, unilateral, e seus mecanismos derivados.
Denota-se, assim, que, no plano dos valores, o tradicional Direito Administrativo apresenta um relativo descompasso com o modelo jurídico do Estado Constitucional,202 o
200 COMPARATO, Xxxxx Xxxxxx. Ensaio sobre o Juízo de Constitucionalidade das Políticas públicas. In: Estudos em Homenagem a Xxxxxxx Xxxxxxx. Direito Administrativo e Constitucional. Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx (org.) São Paulo: Malheiros, 1997. p. 351.
201 A indicação desses fins acabou por dar ensejo, como será adiante explicitado, ao Constitucionalismo contemporâneo, que se preocupa, além da realização desses fins, com a sua justificação e fundamentação, assim como com a sua compatibilidade com a democracia, cuja promoção e ampliação também representam um desses escopos. No Estado brasileiro, em um sentido geral, esses fins podem ser subsumidos ao disposto no preâmbulo, assim como no artigo 3° da Constituição Federal de 1988.
202 De acordo com Xxxx Xxxxxxx Xxxx, “o Direito Administrativo constituído pela nossa doutrina embalada pelo individualismo que, com marcas tão profundas, a caracteriza, é produto do liberalismo econômico do Estado no século XIX, ainda que sob a máscara do liberalismo político”. E é por isso que, o autor afirma que “urge reconstruirmos o Direito Administrativo como regulação da ação do Estado voltada à satisfação do social e não apenas como conjunto de regras que regula as relações dos particulares com a autoridade administrativa”,
qual estabelece objetivos passíveis de uma concretização maior que os fins estabelecidos pelo Estado de Direito e que devem ser perseguidos por esse Direito Administrativo. Para tanto, o Estado Constitucional também tem delineado as formas e os meios de alcance desses fins, que devem, portanto, ser objeto também dessa disciplina jurídica que se preocupa com a realização dos fins do Estado e que envolvem caracteres sócio jurídicos e políticos, como os contratos públicos e as políticas públicas.
Nessa linha, é plausível precisar que o marco temporal dessa transformação que erige tanto as políticas públicas quanto os contratos públicos como meios essenciais de atuação do Estado-governo,203 em face da sociedade e que inaugura o Estado Constitucional, se põe, no Brasil, com a promulgação da Carta Constitucional de 1988, que representou a instauração de uma nova ordem jurídica nacional, voltada à busca da superação do quadro fático e institucional anterior, desigual e autoritário.
No Brasil, não se pode olvidar, ademais, que o termo política pública tem sido empregado para designar os sistemas legais que definem competências administrativas, estabelecem diretrizes, princípios e regras e, em alguns casos, atribuem metas e prognosticam resultados específicos, por exemplo, as normas-gerais ou leis-quadro, instituidoras das políticas nacionais, normalmente inseridas no âmbito das competências administrativas comuns ou legislativas concorrentes previstas, respectivamente, nos artigos 23 e 24 da Constituição Federal de 1988.
No atual modelo constitucional brasileiro não há qualquer óbice à ação administrativa e a implementação destas políticas por meio dos contratos públicos. A Constituição Federal brasileira estabelece no artigo 21, nos incisos XI e XII que, entre o rol de competências da União, há a possibilidade de exploração, direta ou mediante autorização, concessão ou permissão, dos serviços de telecomunicações; dos serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens; dos serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais
isto é, para ele, “impõe-se substituirmos o Direito Administrativo/defesa do indivíduo por outro, um Direito Administrativo/organização do Estado, que não apenas proteja o indivíduo, mas, ademais, esteja a serviço da satisfação do social“. In: GRAU, Xxxx Xxxxxxx. O Estado, a Liberdade e o Direito Administrativo. In: Crítica Jurídica. Revista Latinoamericana de Política, Filosofia y Derecho. Número 21, Jul-dez/2002. p. 167.
203 Toma-se Estado-governo, na acepção de Xxxxxxxx Xxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxxxx e Xxxxxxxxxx Xxxxxxxx para os quais se pode definir Governo como o conjunto de pessoas que exercem o poder político e que determinam a orientação política de uma determinada sociedade”. Ressaltam, além disso, os autores que é preciso “acrescentar que o poder de Governo, sendo habitualmente institucionalizado, sobretudo na sociedade moderna, está normalmente associado à noção de Estado”. In: XXXXXX, Xxxxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxxxxx. Dicionário de Política. Brasília: Editora UnB, 1998. p. 553.
hidroenergéticos; da navegação aérea, aeroespacial e a infraestrutura aeroportuária; dos serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território; dos serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros e dos portos marítimos, fluviais e lacustres.
Ademais, nos termos do artigo 175, da Constituição Federal, incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Vale dizer, as atividades estatais que se apresentam, atualmente, de forma mais evidente para o cidadão (e até como condição necessária para o exercício da cidadania) são, no Brasil, de responsabilidade estatal, mas passíveis, em mesma medida, de serem prestados ou explorados por agentes privados.
Em regra, a concessão, a permissão e a autorização para a prestação de serviços públicos, a edificação de infraestruturas e a exploração de determinadas atividades econômicas especialmente relevantes para a população é levada a efeito por meio da contratação pública. Daí que se torna inafastável a satisfação dos fins delineados pela Constituição pela Administração, em especial, os relacionados à promoção de direitos fundamentais, que poderão ser objeto de prossecução pública (como adiante destacado) via contratualização.
Sob a égide do liberalismo, o edifício estatal foi arquitetado sob os ideais de inação e da não intervenção, uma vez que, sob essa perspectiva, não competia ao Estado guiar a sociedade civil para a realização de fins comuns. Nesse período, a primordial tarefa estatal consistia, de acordo com Xxxxx Xxxxxx Comparato, em propiciar, sob leis gerais, constantes e uniformes, condições de segurança – física e jurídica – à vida individual.204
Em oposição a isso, os Estados contemporâneos passaram a orientar a Sociedade Civil para a realização de fins e objetivos comuns e pré-determinados pela Constituição e a delinear os instrumentos e os meios mais adequados para o alcance desses escopos, cuja consecução passou a determinar a legitimidade do próprio Estado. À época do Estado liberal, a legitimação do aparato estatal competia, essencialmente, ao poder legislativo que, na qualidade de representante do povo, buscava dar expressão legal à soberania popular.205
204 COMPARATO, Xxxxx Xxxxxx. Ensaio sobre o Juízo de Constitucionalidade das Políticas públicas. In: Estudos em Homenagem a Xxxxxxx Xxxxxxx. Direito Administrativo e Constitucional. Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx (org.) São Paulo: Malheiros, 1997, p. 351.
205 COMPARATO, Xxxxx Xxxxxx. Ensaio..., p. 351.
Atualmente, contudo, a legitimidade estatal acaba por transcender a expressão legislativa da soberania popular e passa a repousar na satisfação progressiva das necessidades coletivas indicadas pela Constituição, a qual, a rigor, necessita ocorrer por meio da coordenação, promoção e da realização de políticas públicas voltadas a realizar essas finalidades.
Nesse diapasão, no Estado Constitucional, o papel da Administração Pública, que envolve as atividades do governo estatal, é ampliado, na medida em que a ela compete a concretização dos elementos normativos gerais e abstratos contidos no sistema jurídico, de modo que, para isso, ela deve promover a implementação de uma multiplicidade de ações e programas das mais diversas modalidades e um dos caminhos atuais que permitem essa realização é a via dos contratos públicos.
A contratação pública, por conseguinte, pode ser empregada para a satisfação dos direitos fundamentais, na medida em que ela veicule políticas públicas e essas políticas públicas, em sentido amplo, constituem como um meio perfeitamente adequado para a prossecução dos direitos fundamentais.
A rigor, há a possibilidade de se aplicar tanto um conceito amplo quanto uma noção restrita às políticas públicas. Na medida em que se passa a aplicar um conceito amplo às políticas públicas, como sendo um imprescindível mecanismo de ação estatal com vistas à realização dos direitos sociais, econômicos e culturais, e infraestruturas públicas significa tomá-las como um veículo privilegiado de realização desses escopos e direitos, tendo em vista serem eles os fins estabelecidos constitucionalmente para a Administração.
Em sentido oposto, porém, visualizando-se as políticas públicas como apenas mais uma das modalidades de ação do Estado em razão da dificuldade de sua caracterização por sua natureza jurídico-política, está-se a mitigar a importância de um instrumento de realização, v.g., dos direitos fundamentais, o que não se pode prescindir em face da realidade atual, em que não é difícil constatar que o Brasil é hoje um país mais injusto e desigual206 do que pobre e, por conseguinte, extremamente dependente de políticas garantidas pelo Estado
206 Até os anos 2000, os 10% mais ricos detinham 49,7% da renda nacional e os 5% mais ricos, 35,5%. Ainda que a desigualdade tenha reduzido nos últimos anos no Brasil, o país permanece profundamente desigual. Cfr.: XXXX XX XXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxx. Desigualdade e Pobreza no Brasil: Retrato de uma Estabilidade Inaceitável. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 15. Nº 42. Fevereiro de 2000, p. 141.
(até como meio de sua legitimação) para a superação desse nefasto quadro social.207
Ampliando-se, pois, as políticas públicas como o mecanismo por excelência de ação estatal, estar-se-á divulgando um discurso jurídico de efetivação das normas constitucionais, em especial dos direitos fundamentais, haja vista que eles terão um meio adequado e abrangente para serem realizados. Isso porque, consoante explicita Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx, “adotar a concepção das políticas públicas em direito consiste em aceitar um grau maior de interpenetração entre as esferas jurídica e política ou, em outras palavras, assumir a comunicação que há entre os dois subsistemas, reconhecendo e tornando públicos os processos dessa comunicação na estrutura burocrática do poder, Estado e Administração Pública”.208
E, consoante explicita a autora supracitada isso ocorre “seja atribuindo-se ao direito critérios de qualificação jurídica das decisões políticas, seja adotando-se no direito uma postura crescentemente substantiva e, portanto, mais informada por elementos da política”.209
Nesse contexto, se o Estado Constitucional significa a refundação de uma ordem constitucional pautada na supremacia da Constituição, na força normativa vinculante dos princípios e dos Direitos Fundamentais e na consolidação de um Estado como instrumento de efetivação de um modelo substancial de justiça, pautado pelas normas constitucionais, é necessária a formação de estruturas capazes de efetivamente concretizar essa nova ordem. E essa estrutura deve englobar uma atuação do Estado e uma plena e conjugada participação da sociedade civil.210 Aí o recurso ao contrato para veicular políticas públicas (como será objeto de fundamentação no capítulo III, a seguir) é essencial para que haja a adequada interação público-privada.
A ação estatal, que congrega a participação popular na tomada de decisão política,
207 Cfr.: XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Desigualdades regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Xxx Xxxxxxx, 2003, p. 33.
208 XXXXX, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 241-242.
209 XXXXX, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx. Direito..., p. 241-242.
210 Argumenta Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx que “importa ao Estado contemporâneo reforçar os vínculos com a sociedade civil, habilitando a organização administrativa para bem corresponder ao desafio de potencializar os efeitos positivos que a experiência com instrumentos participativos pode acarretar no desenvolvimento das ações estatais”. In: XXXXXXXX. Participação administrativa. A&C Revista de Direito Administrativo e Constitucional, p. 191. Cf. XXXXXX, Xxxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx. A Participação Popular na Administração Pública: o direito de reclamação. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000.
recebeu ampla referência na Carta Constitucional de 1988, que buscou promover uma descentralização do Poder Público e a promoção de uma regulação social das políticas, com o escopo de possibilitar uma efetiva interação entre a sociedade civil e o Poder Público, tanto no sentido da cooperação quanto no planejamento, no monitoramento e na avaliação das políticas públicas.211 O recurso ao contrato, como meio de prossecução de direitos fundamentais, mostra-se adequado para a promoção dessa interação entre Estado e Sociedade, entre público e privado.
As políticas públicas, nessa linha, inclusive quando veiculadas por contratos públicos, apresentam-se como um mecanismo efetivo de gestão pública.
Na atualidade, porém, as políticas públicas, ainda que utilizadas como um dos principais instrumentos da ação estatal, não são realizadas de forma convergente, integrada e articulada a fim de realizar os Direitos Fundamentais, as infraestruturas públicas e os objetivos da República. E isso não apenas porque há uma pluralidade de formas de políticas públicas, desde políticas distributivas, políticas redistributivas, políticas regulatórias e políticas constitutivas, mas porque é necessária uma alteração no padrão das políticas públicas, que precisam atuar de forma mais agregada e unificada, com vistas a promover o desenvolvimento social. Xxxxx Xxxxxx Comparato, nessa toada, sustenta que “(...) uma das grandes insuficiências da Teoria dos Direitos Humanos é o fato de não se haver ainda percebido que o objeto dos direitos econômicos, sociais e culturais é sempre uma política pública”.212
No Brasil há uma série de carências universalizadas relativas a direitos econômicos, sociais e culturais que não podem ser resolvidas e combatidas tão-somente por políticas setoriais, focalizadas,213 ao contrário, devem as políticas públicas ser tratadas de forma congruente, universal214 e articuladas e, porque não, entendidas como resultantes da
211 Nesse tocante é de se ressaltar que a política pública enquanto programa de ação governamental traduz-se no conjunto de atividades estatais compreendendo, desta forma, normas e atos, caracterizando-se como um “programa de ação governamental” visando à concretização dos direitos econômicos, sociais e culturais. In: COMPARATO. O Ministério Público na defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais. In: CUNHA, Xxxxxx Xxxxxxx da; XXXX, Xxxx Xxxxxxx (Org.). Estudos de direito constitucional: em homenagem a Xxxx Xxxxxx xx Xxxxx. Contudo a referida análise far-se-á principalmente no campo dos direitos prestacionais (sociais) dispostos no texto constitucional.
212 COMPARATO. O Ministério Público na defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais. In: CUNHA, Xxxxxx Xxxxxxx da; XXXX, Xxxx Xxxxxxx (Org.). Estudos de direito constitucional em homenagem a Xxxx Xxxxxx xx Xxxxx, p. 249.
213 BREUS, Thiago Lima. Políticas Públicas..., p. 217 e seguintes.
214 Sobre a questão da universalização de direitos, ver: XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx; XXXXXXX XXXX, Xxxx Xxxxx xx XXXXX; XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxxx. Universalização das Telecomunicações nos Brasil. In:
contratação pública no contexto do governo por contrato(s).
As referidas políticas visando à realização de finalidades gerais, como o desenvolvimento, passaram, no Brasil, a ser objeto concreto de estudo a partir da década de
70. Com base em estudos levados a efeito no campo da ciência política, inicia-se um estudo no que tange ao processo de “fazer política pública” a partir das variáveis existentes, construindo-se modelos explicativos para a criação de política pública, com peculiar enfoque na sua formulação e posterior implementação.215
Impõem-se, logo, o planejamento e a execução de políticas públicas sociais, jurídicas e politicamente bem articuladas, para o fim da satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais, assim como do desenvolvimento.216 Por fim, pode-se destacar que a própria contratualização da Administração pode ser considerada uma política pública abrangente, buscando uma consensualização e interpenetração entre as espacialidades pública e privada voltada à satisfação de direitos, necessidades e/ou interesses públicos.
1.10. A título de conclusão parcial: A possibilidade de implementação de políticas públicas por meio de contratos públicos.
No Brasil, desde a década de 90 (noventa) do século passado, incontáveis políticas públicas de longo prazo são veiculadas por meio de contratos públicos. Desde instalações públicas (centros e conglomerados administrativos, hospitais e penitenciárias); passando por obras públicas (aeroportos, rodovias, estádios) e serviços públicos (energia, saneamento, coleta e tratamento de resíduos sólidos etc.) são objeto de prossecução por meio da contratação pública.
Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Ano 1, nº 1, jan. /fev. /mar. 2003. Belo Horizonte: Fórum, 2003, p. 09 e seguintes.
215 Xxx Xxxxx Xxxxxx divide as políticas em elaboração da agenda, especificação das alternativas, escolha de uma delas e, implementação da decisão. Assim dois são os fatores que interferem na construção da agenda governamental: “os participantes ativos e os processos pelos quais algumas alternativas e alguns itens se tornam proeminentes. In: XXXXXX, Xxx Xxxxx. Abordagens metodológicas em políticas públicas. RAP – Revista de Administração Pública, p. 6-8.
216 Segundo Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, “é necessária uma política deliberada de desenvolvimento, em que se garanta tanto o desenvolvimento econômico como o social, que, apesar de interdependentes, não há um sem o outro. O desenvolvimento só pode ocorrer com a transformação das estruturas sociais, o que faz com que o Estado desenvolvimentista deva ser um Estado mais capacitado e estruturado do que o Estado Social tradicional”. In: XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988, p. 67.
Atualmente, denota-se a presença de contratos públicos em qualquer ação estatal – de todas as esferas federativas – voltada a propiciar alguma utilidade ou satisfazer direito, necessidade e/ou interesse de caráter público.
Nos exemplos acima, os contratos públicos alicerçam um feixe de relações jurídicas entabuladas entre a Administração Pública, o contratado privado, os usuários do serviço e os cidadãos. Em razão das obras, serviços e políticas públicas acima demandarem elevadíssimos investimentos, o prazo contratual precisa ser extenso o suficiente para permitir o retorno (lucrativo) dos aportes realizados pelos agentes privados, de modo que a duração destes contratos supera, facilmente, a duração dos mandatos dos agentes políticos.
No Brasil, os contratos de concessão têm duração mínima de 15 e máxima de 35 anos, o que, no prazo máximo, corresponde a quase 9 (nove) mandatos seguidos de agentes políticos.217
Vislumbra-se, portanto, que a previsão e a implementação de políticas públicas por meio de contratos têm o condão de torná-las perenes, vale dizer, é possível que as escolhas em matérias de políticas públicas econômicas e sociais transcendam a temporalidade política e orçamentária. No atual panorama, um determinado agente político pode entabular uma política pública para determinado setor, contratualizá-la, isto é, delegar a execução da tarefa a particulares e, mesmo com o seu mandato encerrado, as suas concepções, os efeitos da política públicas e as consequências contratuais – boas ou más – permanecerão por longo tempo.218
Ainda mais porque a amplitude e a abrangência das modificações (a mutabilidade) nos contratos de longa duração, em especial, nas concessões e nas parcerias público-privadas ainda é, ainda, em certa medida, controvertida. No caso brasileiro, basta lembrar as polêmicas em torno das concessões rodoviárias que, a cada mudança de governo e, por conseguinte, de titular do exercício do poder concedente, há o anseio (nem sempre justificado por motivo público hábil a tal) pela realização de alterações (muitas vezes substanciais e ao completo arrepio do contrato) no escopo da relação jurídica.
217 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. O Contrato Administrativo como Instrumento de Governo. In: Xxxxx Xxxxxxxxx (Coord.) Estudos de Contratação Pública. Vol. IV. Coimbra: Coimbra editora, 2010, p. 13.
218 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. O Contrato Administrativo..., p.14.
Na experiência internacional, mostra-se interesse examinar as concepções diversas a propósito das possíveis alterações, ao longo do tempo, das políticas públicas contidas nos contratos de longa duração.
Historicamente, o primeiro caso paradigmático que retrata a modificação de um contrato de concessão (e por consequência, da política pública nele contida) é o contido no julgado do Conselho de Estado francês que, em 1910, julgou recurso relativo à Companhia Geral de Trens de Marselha.
No Aresto, o Conselho de Estado decidiu que a decisão do prefeito de Bouches-du- Rhône que havia, no curso da execução do contrato de concessão, fixado unilateralmente o horário de verão dos trens, em contrariedade ao contrato, deveria ser mantida, porquanto atendia requisitos de segurança e de comodidade dos passageiros, além de buscar assegurar, no interesse do público, o funcionamento normal do serviço. A par disso, o Conseil d’Etat reconheceu que a companhia de trens poderia apresentar um pedido de indenização, como reparação dos prejuízos decorrentes da decisão unilateral.219
Em sentido diverso do caso francês, informa Xxxxx Xxxxxx que o Tribunal de Contas português, em 2010, decidiu por “recusar visto prévio” – no sistema de jurisdição de contas lusitano, por ser considerado uma declaração de nulidade – a uma prorrogação contratual relativa ao recolhimento e transporte de resíduos sólidos da região de Sintra. Entendeu o Tribunal que, apesar do investimento realizado pelo contratado em razão da celebração do termo aditivo, não poderia haver a continuidade da prestação do serviço público por ele sob pena de violação do princípio da concorrência.220
Para além do debate entre a possibilidade de modificação da política pública e, por conseguinte do contrato de longa duração a partir do contratante ou do contratado, no contexto do governo por contrato(s) emerge a possibilidade dos usuários e da própria população, como destinatários da utilidade pública, de pleitear a adequação da política pública contratualizada. Como exemplo, cita-se a articulação da sociedade civil portuguesa que, em sentido contrário aos desígnios do ente público e dos particulares contratados, buscou intervir no contrato da obra do metrô de superfície do Rio Mondego, que contempla
219 XXXXXX, Xxxxx. Os Eléctricos de Marselha não chegaram a Sintra: O Tribunal de Contas e os Limites à Modificação dos Contratos. In: Revista de Contratos Públicos.Coimbra: Cedipre, ano 1, nº 3, set. 2011/dez. 2011, p. 28.
220 XXXXXX, Xxxxx. Os Eléctricos..., p. 29 e seguintes.
a região das cidades de Coimbra e Lousã, a qual, prevista inicialmente para durar 3 (três) anos, passados 15 (quinze) do início da obra, ainda não fora concluída.221
Não há dúvida de que a concepção e o planejamento de políticas públicas envolve a participação da sociedade civil. O mesmo se aplica à concepção dos contratos, os quais, de meras ferramentas de gestão para a obtenção de utilidades e necessidades internas, assumem papel primordial no exercício da função pública administrativa, em especial como interconexão das espacialidades pública e privada. A realização de audiências públicas, de mecanismos de consulta popular e de revisão social do contrato se apresentam como mecanismos adequados para a adequada realização de políticas públicas de longa duração e funcionar como instrumento de boa governança pública.
O exame dessa estrutura contratual que pode servir como instrumento de governo e como política pública de longa duração será levado a efeito no próximo capítulo.
221 ENCARNAÇÃO, Xxxxxx; REBELO, Xxxx. Como não decidir uma obra pública: um metro da razão ao erro. Coimbra: Xxxxxxxx, 0000.
CAPÍTULO II – OS CONTRATOS DO GOVERNO: A MODELAGEM DA CONTRATAÇÃO ADMINISTRATIVA A PARTIR DA AUTONOMIA PÚBLICA SOB A “LÓGICA DA FUNÇÃO” E A “LÓGICA DO CONTRATO”.
“A guerra é anterior ao comércio; porque a guerra e o comércio não são mais que dois meios diferentes de atingir o mesmo fim, o de possuir o que se deseja. O comércio não é mais do que uma homenagem prestada à força do possuidor pelo aspirante à posse. É uma tentativa de obter por acordo o que não se espera conquistar pela violência. Um homem que fosse sempre o mais forte nunca teria a ideia do comércio. É a experiência que, mostrando-lhe que a guerra, isto é, o emprego da sua força contra a força de outrem, o expõe a diversas resistências e bloqueios, o leva a recorrer ao comércio, isto é, a um meio mais suave e mais certo de alguém conseguir levar outrem a consentir naquilo que convém ao seu interesse. A guerra é a impulsão, o comércio é o cálculo. Mas por isso mesmo, é necessário que chegue uma época em que o comércio substitui a guerra. Nós chegamos a essa época”.222
Nos últimos anos, consoante explicitado anteriormente, o contrato público- administrativo foi alçado a um dos principais mecanismos de ação estatal para a prossecução das finalidades atribuídas aos entes públicos, a ponto de contribuir para a denominação deste próprio (e novo) modelo de gestão administrativa: o governo por contrato(s). De engrenagem, em geral, destinada para o suprimento de bens e serviços à Administração, passou a contratação pública a funcionar como mecanismo direto de satisfação das finalidades atribuídas à gestão pública.
222 XXXXXXXX, Xxxxxxxx. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. In: Textos Escolhidos de Xxxxxxxx Xxxxxxxx. São Paulo: Edição Saraiva, 1982, p. 03.
Há pouquíssimo tempo, entretanto, conforme revela a história do contrato público- administrativo, era corriqueiro o questionamento a propósito da sua própria existência.223
Sob o argumento de que a Administração (i) não era portadora de vontade própria, pois visava tão-só ao interesse público abstrato e (ii) não poderia figurar como mera parte contratual, sob pena de violação da soberania estatal, as relações por ela celebradas com os particulares não eram apreendidas como contratos stricto sensu, mas como atos jurídicos bilaterais, porquanto a liberdade de contratar e a igualdade de partes, elementos essenciais para a configuração estrutural de um contrato stricto sensu sob o paradigma tradicional, não se faziam presentes na configuração deste plano de acerto bilateral entre a Administração e o particular.
Com as progressivas previsões legais que passaram a autorizar os Estados a firmar contratos com os agentes privados na forma da legislação civil, emergiu a categoria dos chamados contratos da administração, que se opunham aos denominados atos administrativos bilaterais, os quais passaram, posteriormente, a serem aceitos como contratos administrativos.224
De partida, é possível se sustentar que a utilização da via contratual pela Administração perpassa, inicialmente, pelas hipóteses em que ela necessitava de bens e serviços para o exercício de suas atividades e não poderia mais – como fazia, em geral, no antigo regime – exigi-los compulsória e coercitivamente das pessoas privadas.
Ademais, nas situações em que o Estado não se dispõe a executar diretamente prestações, no caso do fornecimento de utilidades públicas, por exemplo, não resta alternativa senão contar com a colaboração dos particulares, por meio de contratos. Há também hipóteses nas quais a Administração detêm condições de desempenhar atividades por sua conta, entretanto, contrata a execução da tarefa por razões de economia de escala225, de eficiência e até por razões políticas e/ou de mercado.226
223 Cfr.: XXXXXXXXXX, Xxxxx Xxxx. Requiem pelo Contrato Administrativo. Coimbra: Almedina, 2003, p. 21 e seguintes.
224 Cfr.: XXXXXXXXXX, Xxxxx Xxxx. Requiem..., p. 21 e seguintes.
225 Sobre a aplicação da ideia de economia de escala na contratação pública, ver: XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx da. Economia de escala nas compras governamentais. In: In: Revista de Direito Público da Economia
– RDPE. Belo Horizonte, ano 08, nº 30, abr. / jun. 2010, p. 09 e seguintes.
226 XXXXXXXXXX, Xxxxxxxxx X. Dias. Contratos administrativos – Considerações sobre o regime contratual administrativo e a aplicação das competências exorbitantes. In: Revista de Contratos Públicos
– RCP, Belo Horizonte, ano 4, n. 6, set. 2014/fev. 2015, p. 99.
Tais fatos gradualmente contribuíram para a aceitação da atividade contratual da Administração. Atualmente, porém, diante inequívoca incorporação destes contratos na atividade administrativa, a contenda teórica a propósito da sua inserção como categoria do direito administrativo não precisa ser mais aprofundada.227 Trata-se de um dado fático. Simplesmente, os contratos administrativos adquiriram caracteres próprios e se moldaram à natureza do Direito do Estado.
Historicamente, na medida em que se passou a compreender que a categoria contrato não é mais pertencente exclusivamente ao direito privado ou qualquer outra ramificação didática do conhecimento jurídico, mas que se trata, a rigor, de um instituto jurídico, foram sendo entabulados diversos critérios capazes de distinguir os contratos público- administrativos dos demais contratos. Ao revestir o contrato, instituto jurídico, de certas características peculiares, haveria a conformação do contrato público-administrativo.228
Os contratos público-administrativos se constituiriam inicialmente, nesse passo, como espécies do gênero contrato bilateral, tendo por objeto, v.g., o fornecimento de bens, a prestação de serviços e a execução de uma obra por um particular etc. A formação do vínculo decorreria do atendimento de determinados requisitos específicos (dotação orçamentária, autorização específica, licitação, dentre outros), limitadores da margem de liberdade da administração para contratar.
A expressão os contratos do governo, como sugere o título desde capítulo, representa, portanto, o reconhecimento da autonomia da figura contratual no seio da Administração, assim como a amplitude dos modelos contratuais utilizados e a abrangência de áreas às quais são empregadas estas avenças.
Assim sendo, constituem objeto deste capítulo (i) o exame da nomenclatura atualmente empregada; (ii) o modo contemporâneo de formalização dos contratos público- administrativos; (iii) as repercussões decorrentes da pouca receptividade inicial da figura contratual pelo Direito Administrativo; (iv) a análise das lógicas subjacentes às funções
227 De acordo com Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx “o contrato é uma categoria jurídica que não pertence nem ao direito privado, nem ao direito público, com caráter de exclusividade. Insere-se no direito e como tal deve ser estudado”. XXXXXXXX XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Contrato Administrativo. In: Direito Administrativo Contemporâneo: Estudos em memória ao Professor Xxxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx. Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx (coord.), Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 279.
228 Tradicionalmente, é possível sumariar os elementos distintivos dos contratos administrativos como sendo:
(i) a presença das chamadas cláusulas exorbitantes; (ii) a inexistência da liberdade de contratar, tampouco (iii) a autonomia da vontade propriamente, pois a finalidade pública vincularia o agir da administração contratante.
destes contratos; (v) o grau de autonomia (autonomia pública contratual) de que dispõe a Administração para a celebração destes contratos e (vi) a sua plurissignificação contemporânea no contexto do direito administrativo.
2.1. Do Substantivo Contrato.
A etimologia da expressão contrato, em língua portuguesa, assim como dos demais idiomas latinos, advém da composição de dois elementos. O prefixo “com”, diz respeito às ideias de “junto de”, de “ estar próximo”, por sua vez, o radical “tractus” significa tanto a “ação de arrastar”, quanto confiança, fidelidade, sinceridade. O radical latino “tractus”, apresenta cognatos nos idiomas germânico e saxônico, respectivamente trauen e vertrauen e true e trust.229
Nessa perspectiva, a noção de contrato pode ser tomada como uma forma de arrastamento simultâneo, baseado na confiança recíproca. De acordo com Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxx, significa uma situação “(...) que impele duas vontades, oriundas de pontos diferentes, caminhando para o mesmo objetivo, atingindo-o, cruzando-se afinal, e partindo, novamente, em direções opostas”.230
Por conseguinte, por sua própria etimologia, o contrato, independentemente de sua adjetivação, pressupõe a confiança recíproca, a observância aos valores de lealdade e de compartilhamento de ideais.
2.1. A Distinção entre ato administrativo e contrato público: a vontade entre os planos da validade e da existência.
A compreensão do conteúdo do contrato público pressupõe a sua prévia distinção em relação ao instrumento técnico-jurídico tradicional de ação pública, o ato administrativo. Para tanto, é possível se afirmar que o critério de distinção entre o ato e o contrato depende do grau de colaboração do particular na estrutura do instrumento de atuação pública. Se, no
229 XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. Dicionário dos Contratos Públicos. Coimbra: Almedina, 2010, p. 134.
230 XXXXXXXX Xxxxxx, Xxxx. Tratado de Direito Administrativo: Teoria do Contrato Administrativo.
Volume III. 2ª ed., São Paulo: Forense, 2003, p. 11.
plano estrutural, a manifestação da vontade do particular surgir como requisito de existência, estar-se-á diante de um contrato.231
De outro lado, se a manifestação da vontade do particular apenas constituir um requisito de validade, no caso de atos dependentes de requerimento do interessado ou de eficácia, na hipótese de atos sujeitos ao consentimento, está-se diante de um ato administrativo.
É no plano estrutural, portanto, que a distinção entre ato e contrato administrativo se apresenta mais persuasiva.232 Em princípio, no contrato, as vontades são iguais como requisito de existência. No ato, são desiguais porque o poder constitutivo apenas assiste à vontade da Administração, uma vez que a vontade do particular funciona como “uma virtualidade integrativa da vontade constitutiva da Administração”.233
Nesse passo, é adequado sustentar que a natureza pública do contrato advém da virtualidade que este possui de criar, modificar ou extinguir relações jurídicas de direito público,234 nas quais os direitos e interesses de ambas as partes, contratante e contratado, emergem em análogo grau, formalizando uma relação jurídica administrativa.235
Assim sendo, é possível se aludir à superação da visão clássica do contrato público, que a compreende como “o acordo que tem como efeito principal (senão exclusivo) submeter o particular à vontade do Estado numa relação de subordinação especial: o particular obriga- se a cooperar com o Estado em tudo quanto seja necessário para a realização de um certo interesse público, sujeitando-se às ordens que para esse efeito receba, e o Estado em troca promete-lhe apoio, proteção jurídica e, normalmente, remuneração”.236
Em primeiro lugar, porque o contrato público tem o condão de criar, modificar ou extinguir relações inter ou intra administrativas. Em segundo lugar, porque o critério definidor do contrato não diz respeito exclusivamente aos polos da relação, mas também em relação ao objeto contido no contrato.
231 XXXXXXX XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Legalidade..., p. 350.
232 KIRKBY, Xxxx Xxxxxx-Xxxx. Contratos sobre o exercício de poderes públicos: O exercício contratualizado do poder administrativo de decisão unilateral. Coimbra: Coimbra, 2011, p. 41.
233 XXXXXXX XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Legalidade..., p. 350.
234 XXXXXXX XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Legalidade..., p. 362.
235 XXXXXXX XX XXXXX, Xxxxx. Em Busca do Acto Administrativo Perdido. Coimbra: Almedina, 1998, p. 149 e seguintes.
236 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Manual de Direito Administrativo. Vol. I. Coimbra: Xxxxxxxx, 0000, p. 576.
2.2. A noção usual de contrato e a sua adjetivação contemporânea: público, privado ou administrativo e a necessidade de adoção do regime jurídico mais apropriado para o alcance dos objetivos administrativos fundamentais.
Em princípio, a ideia de contrato é abstrata, genérica e corresponde a uma figura jurídica que, em sentido estrito, constitui um acordo de vontades (negócio jurídico bilateral ou plurilateral) com aptidão para produzir obrigações e sujeitar as partes à observância de condutas idôneas à satisfação dos interesses que regularam. Esta ideia, de fundamento jus privatístico encontra-se atualmente em vários ramos do direito, tais como civil, empresarial, administrativo, do trabalho etc.237
As instituições jurídicas são comuns aos diversos ramos do direito e, nessa perspectiva, é possível sustentar a superação das concepções que designam as figuras específicas do direito privado ou do direito público. A responsabilidade, o direito subjetivo, os contratos são categorias aplicáveis a todos os ramos. A essência dessas instituições é a mesma, ainda que com modulações substanciais e específicas em cada vertente do conhecimento jurídico.
Deste modo, o contrato, como gênero, não é disciplinado em sentido estrito pelo direito privado; não sendo, portanto, possível considerá-lo mais como instituição específica deste âmbito do conhecimento jurídico. O contrato é uma categoria jurídica que pode ser adjetivada de público, ou administrativo, quando se apresentam, em seu âmbito, certas mediações e modulações que têm o condão de lhe dar certas especificidades aptas a transformá-lo numa espécie do gênero, isto é, por suas características, ele passa a ter uma identidade própria.
As características que, em tese, delimitariam o contrato público, porém, provocaram intermináveis debates no âmbito do direito administrativo.238Na esfera do Direito Administrativo brasileiro, desde longa data, com o objetivo de se delimitar o conceito de contrato próprio deste ramo do direito, consolidou-se o entendimento de que os contratos firmados pela Administração Pública poderiam ser distinguidos entre os contratos
237 XXXXX, Xxxxxxx. Contratos. 9ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 04.
238 Sobre o tema, vide: XXXXXXXXXX, Xxxxx Xxxx. Requiem pelo Contrato Administrativo. Coimbra: Almedina, 2003, p. 21 e seguintes.
administrativos (sob regime de Direito Público) e os contratos da Administração (regido por normas de Direito Privado).239
Os primeiros são os contratos administrativos propriamente ditos, com a previsão de cláusulas exorbitantes, poderes extraordinários da Administração, possibilidade de rescisão unilateral, encampação etc. Por sua vez, os contratos da Administração seriam aqueles firmados pela Administração Pública conforme o regime “comum” do direito privado, sem qualquer das cláusulas, disposições e prerrogativas peculiares dos contratos administrativos, por exemplo, os contratos de locação de imóveis destinado à instalação da Administração e de seguro.240 Nessa perspectiva, existiriam dois tipos de contratos firmados pela Administração: os contratos administrativos propriamente ditos e os contratos parcialmente regidos pelo direito privado (Contratos da Administração).
Os regimes contratuais seriam diferenciados entre si a partir dos “poderes especiais” de que a Administração disporia, pois que os contratos administrativos propriamente ditos restariam caracterizados pela existência das chamadas cláusulas exorbitantes. Conforme Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xx Xxxxxx, “quando a Administração celebra contratos administrativos, as cláusulas exorbitantes existem implicitamente, ainda que não expressamente previstas; elas são indispensáveis para assegurar a posição de supremacia do Poder Público sobre o contratado e a prevalência do interesse público sobre o particular”.241
Por outro lado, em conformidade com a autora supracitada “quando a Administração celebra contratos de direito privado, [...] excepcionalmente algumas cláusulas exorbitantes podem constar, mas elas não resultam implicitamente do contrato; elas têm que ser expressamente previstas, com base em lei que derrogue o direito comum”.242
Em consonância com a concepção acima, adotada em grande parte dos estudos brasileiros de contratação pública, destaca Xxxxxxxxx Xxxx Xxxxxxxxxx que (i) os contratos
239 Argumenta Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx que a doutrina brasileira a propósito dos contratos administrativos acostumou-se como uma distinção que muito diz e que pouco explica, a distinção entre contratos administrativos e contratos da Administração. Segundo o autor, “trata-se de mais uma verdade absoluta do direito administrativo brasileiro, destinada a trazer solução para problemas criados pela teoria, que são insolúveis na prática, a partir da aplicação dessa mesma teoria, por mais paradoxal que possa parecer”. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Contratos administrativos e contratos da Administração Pública: pertinência da diferenciação? In: Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 2, n. 2, set. 2012/fev. 2013, p. 177.
240 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Contratos..., p. 178 e seguintes.
000 XX XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx. Direito administrativo. 21ª ed., São Paulo: Atlas, 2008, p.243.
000 XX XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx. Direito..., p.243.
administrativos seriam caracterizados por uma relação vertical entre os contratantes, operacionalizada por competências extraordinárias estabelecidas pelo Poder Público tanto sobre o contrato, quanto sobre o particular contratado; (ii) essas competências seriam inerentes ao contrato, de modo que nem mesmo precisariam estar expressas no instrumento contratual — constituiriam poderes implícitos aplicáveis à avença; (iii) a aplicação de tais competências corresponderia a um critério de classificação dos contratos da Administração Pública, pois parte das avenças (tidas como regidas pelo direito privado) em princípio seria alheia à aplicação de tais competências; e, (iv) ainda assim, essas mesmas competências poderiam surgir nos contratos da Administração regidos pelo direito privado, desde que neles expressamente previstas.243
Diante desse quadro, surgem as seguintes questões: (i) A existência de cláusulas exorbitantes seria “natural” ou “intrínseca” aos contratos administrativos (ou a parte deles) e, nessa medida, elas serviriam como critério de diferenciação de regimes contratuais? E, a incidência dessas competências seria automática ou dependeria de intermediação legal e administrativa?244
Diferentemente da doutrina, que estabelece alguns critérios – nem sempre precisos – para diferenciar as figuras, a legislação não oferece, inequivocamente, elementos hábeis a diferenciá-los, exceto a indicação do rol exemplificativo dos contratos celebrados pela Administração, que deteriam caráter privado. Nos termos do art. 62, §3º, I, Lei nº 8.666/93, são assim denominados os contratos de seguro, de financiamento, de locação em que o Poder Público seja locatário.245
De maneira colidente, o artigo 62, § 3º, da mesma lei, estabelece que a esses contratos (de caráter privado), são aplicáveis as competências extraordinárias da Administração. Isto é, mesmo nos contratos disciplinados “predominantemente, por norma de direito privado”, há a incidência expressa das chamadas cláusulas exorbitantes, próprias do outro regime contratual, que é o do contrato administrativo, em sentido estrito.
Por outro lado, o artigo 54, da Lei nº 8.666/93 dispõe que são aplicáveis aos contratos administrativos “(...) supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as
243 XXXXXXXXXX, Xxxxxxxxx X. Dias. Contratos..., p. 104-105.
244 Sobre a evolução das figuras contratuais no Direito brasileiro, ver: MENEZES DE ALMEIDA, Xxxxxxxx Xxxx. Contrato Administrativo. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 155 e seguintes.
245 A lei federal nº 8.666/93 expressamente estabelece expressamente que os contratos de seguro, de financiamento e de locação em que o Poder Público seja locatário são regidos por norma de direito privado.