O associativismo docente na regulamentação do estatuto econômico da profissão: contratos de trabalho e registro profissional (1932-1945)
O associativismo docente na regulamentação do estatuto econômico da profissão: contratos de trabalho e registro profissional (1932-1945)
Resumo
Apresentamos as políticas públicas destinadas à regular o estatuto econômico do magistério particular de ensino secundário, em face do contexto histórico de organização das relações trabalhistas e da expansão do setor privado no ensino no pós-1930. A partir da atuação do associativismo docente, examinamos as correlações de força entre órgãos do Governo, empregadores e magistério particular na definição de contratos de trabalho, registro profissional e salário, posto que a legislação é produto de relações sociais e de poder. Sob a égide do governo federal, estas relações foram canalizadas para o interior das agências estatais, o que, contudo, não anulou as dimensões de conflito intra-estatais e entre sujeitos coletivos organizados que encaminharam suas propostas, manifestaram resistências, articularam alianças e disputaram a hegemonia do processo decisório.
Palavras-chave: Estado, Magistério, Ensino Secundário.
Abstract
The public politics intended to regulate the economic statute of private teaching in secondary education are presented concerning the historic context of the organization of the working relations and the expansion of the private sector in teaching post-1930. From the performance of teaching association, we examine the correlations of forces between the government agencies, employers and private teaching in the definition of working contract, professional register and salary, as the legislation is the product of social relations and power. Under the aegis of the federal government, these relations were canalized to the interior of the state agencies, which, however, did not abolish the dimensions of inter-state conflicts and among organized collective subjects that conducted their proposals, expressed resistance, articulated alliances and disputed the hegemony of the decision-making process.
Keywords: State, Teaching, Secondary Education.
∗ Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Mestre em Educação. Bolsista CAPES.
Até a década de 1930 não existiam políticas públicas de abrangência nacional para formação do magistério do ensino secundário. Portanto, os professores particulares deste ensino eram “profissionais liberais”, lecionavam em salas alugadas, regulavam os custos e funcionamento do serviço que prestavam, posto que não havia regulamentação oficial sobre o exercício do magistério. Porém, os docentes não viviam apenas das aulas particulares, lecionavam também em cursos e colégios, nos quais recebiam por aula ministrada. Podemos afirmar que eram autônomos e empregados, constituindo uma categoria profissional “semi- assalariada” (COELHO, 1988).
Xxxxx Xxxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxx (2005) situam a Reforma Xxxxxxxxx Xxxxxx0 como o início do processo de delimitação do espaço profissional do magistério de ensino secundário no Brasil. Xxxxxxxxx, porém, que as Reformas Pombalinas e o Império também promoveram iniciativas destinadas a controlar e regular o ofício do magistério. O que ocorre, a partir de 1931, é um processo de profissionalização influenciado pela industrialização do país e consolidação do capitalismo, e também em conformidade com o projeto hegemônico do regime.
A Reforma Xxxxxxxxx Xxxxxx tornou regular o curso secundário, isto é, a freqüência aos cursos seriados foi postulada como obrigatória para os candidatos ao ingresso, mediante vestibulares, no ensino superior. Outra orientação importante recaiu sobre a política de equiparação do ensino privado ao ensino público, alinhavada desde a Primeira República.
As mudanças ocorridas favoreceram a diminuição do caráter liberal do magistério do ensino secundário, posto que o fim progressivo do regime de exames parcelados que caracterizava, até então, o curso secundário, implicou na queda da demanda por aulas particulares e a nova política de equiparação fomentou a expansão da rede escolar de ensino particular, o que tornou os professores “mais dependentes de seus empregos” (XXXXXX, 1988, p.13).
Junto às exigências para a inspeção federal nas escolas foi criado o Registro de Professores, por disciplina lecionada, no Departamento Nacional de Ensino. Pela criação do Registro, o Estado instituiu procedimentos de habilitação e critérios para o ingresso na carreira. O Registro de Professores conferiu legitimação oficial à atividade docente e abarcava os saberes e técnicas exigidos do professor e, ao mesmo tempo, delimitava quem poderia ou não exercer o ofício e tornava o magistério de ensino secundário domínio de investimento de
1 BRASIL. Decreto n. 19.890, de 18 de abril de 1931. “Dispõe sobre a organização do Ensino Secundário”. Coletânea de Legislação Federal. Disponível em: xxx.xxxxxx.xxx.xx/xxxxx. Acessado em: 10/07/2007.
um grupo social específico e autônomo, cada vez mais definido e enquadrado (NÓVOA, 1991).
Entre as repercussões da criação do Registro de Professores no Distrito Federal ressaltamos a organização da categoria em sindicato. No Distrito Federal, ainda que tenha tido as denominações de Sindicato dos Professores do Distrito Federal (1931) e Sindicato dos Professores do Ensino Secundário, Primário e de Artes do Rio de Janeiro (1943), a entidade ficou a cargo dos professores dos estabelecimentos de ensino particular, enquanto os docentes de instituições públicas tinham suas próprias organizações como o Centro de Professores do Ensino Técnico Secundário e a Associação dos Professores Primários do Distrito Federal (COELHO, 1988, p. 192).
A assembléia de fundação do Sindicato dos Professores do Distrito Federal (31 de maio de 1931) proclamou como de grande utilidade o recém-instituído Registro de Professores no Departamento Nacional do Ensino. Segundo a Imprensa que noticiou o evento, foi em vista da criação do registro que o “professorado reconheceu a conveniência e oportunidade de instituir o sindicato da classe” (Diário de Notícias, 1931 apud Xxxxxx, 1988, p.67). Certamente outros fatores favoreceram a organização do sindicato, mas atenta-se aqui para a função da legislação na construção de práticas sociais. Os professores deliberaram que o sindicato deveria ser formado por membros que atendessem às exigências para concessão do registro.
Os professores se organizaram na forma sindical em consonância com a política social do Governo Provisório que instituiu a lei de sindicalização em 1931. O Registro de Professores, o respaldo oficial e os benefícios da nova política social foram elementos que contribuíram para adesão dos professores ao sindicato. Entre as atividades do primeiro ano de funcionamento do sindicato assinalamos o preparo de um anteprojeto de regulamentação da profissão.
Certamente os professores já haviam experimentado outras formas de associativismo que não necessariamente se limitaram à forma sindical de organização, porém,cumpre atentar que a experiência de associativismo que maior espaço alcançou junto à categoria, nos anos de 1930, foi a sindicalização, nos moldes exigidos pelo governo para manter as instituições na legalidade.
Contratos de Trabalho e o Registro Profissional
A Reforma Xxxxxxxxx Xxxxxx criou ainda para as escolas a obrigatoriedade de formalizarem, por escrito, contratos de trabalho com os professores.2 Tratava-se de definir normas para jornada de trabalho, férias, horas extras e salário.
Segundo Xxxxxxx Xxxxxx (1988), os donos de estabelecimentos de ensino preferiram manter-se na órbita do Ministério da Educação, firmando contratos restritos ao período letivo com os professores, no lugar de assinar a carteira profissional e subordinar-se à fiscalização do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Mas o Sindicato dos Professores do Distrito Federal, para citar o caso que conhecemos, mobilizou-se pelo cumprimento, por parte dos empregadores, do decreto que instituiu a carteira profissional em 1932, exatamente porque aquele documento tinha validade perante o MTIC, posto que a regulamentação dos contratos implicava definições acerca da jornada de trabalho, férias e fixação de critérios para remuneração dos professores, os direitos e deveres das partes envolvidas.
Diante do impasse nas negociações com os empregadores sobre os contratos de trabalho, o Sindicato dos Professores do Distrito Federal recorreu ao MTIC no qual obteve, em abril de 1932, anteprojeto de lei referente à locação de trabalho do magistério particular, que asseguraria aos professores direitos trabalhistas e de previdência social.
Em prol da melhoria do ensino e das condições de trabalho, o Sindicato de Professores do Distrito Federal mobilizou campanha a favor da aprovação do anteprojeto proveniente do MTIC, organizando manifestações que tiveram ampla cobertura jornalística e apoio da opinião pública, sendo seus representantes recebidos pelo Presidente Xxxxxx. Os representantes do magistério particular argumentavam que, sob o amparo da legislação trabalhista, os docentes não precisariam se submeter às pressões dos empregadores, que condicionavam sua permanência no emprego aos índices de aprovação de alunos. Argumentavam também que a estabilidade nos empregos possibilitaria o investimento no aperfeiçoamento profissional (COELHO, 1988, p.99).
A princípio, os empregadores e seus principais expoentes combateram a aprovação do anteprojeto, criticando a gestão do Estado nas relações entre capital e trabalho e, num segundo momento, os empregadores decidiram negociar a regulamentação dos contratos, explicitando essa reorientação em função das garantias que os contratos também representariam para os empregadores perante a legislação trabalhista.
2BRASIL. Decreto-lei n. 21.241, de 4 de abril de 1932 “Última Lei do Ensino Secundário. Novos Programas organizados pelo Departamento Nacional do Ensino para admissão à 1a série do curso secundário. Consolida as disposições sobre a organização do ensino secundário e dá outras providências”. Disponível em: xxx.xxxxxx.xxx.xx/xxxxx. Acessado em: 08/10/2007.
Este cenário se transforma com a implantação do Estado Novo, posto que com o fechamento dos órgãos legislativos, ficou a cargo do MTIC a regulamentação do registro profissional dos professores, o que contrariou a intenção dos empregadores de manter a questão no âmbito do Ministério da Educação.
Em 1939, o Ministério do Trabalho designou Comissão para elaboração de anteprojeto de lei sobre os contratos de trabalho do magistério particular, com a participação de representantes do Ministério da Educação e Saúde. Documentos existentes no Arquivo do Ministro da Educação Xxxxxxx Xxxxxxxx permitem conhecer a tramitação do processo, a disputa entre representantes do MES e do MTIC no que diz respeito a que órgão cabia a competência no assunto, as divergências, os impasses e as negociações. Existem também memoriais encaminhados pelo Sindicato dos Professores ao Ministro Xxxxxxx Xxxxxxxx, solicitando e sugerindo resoluções sobre o assunto. São fontes documentais que permitem apreender a correlação de forças, os sujeitos e as estratégias que atuavam sobre a gestação de políticas públicas que incidiam sobre o campo de atuação profissional do magistério do ensino secundário.
O Ministro do Trabalho, Xxxxxxxx Xxxxxx, ao enviar ao Presidente Xxxxxxx Xxxxxx o anteprojeto de lei resultado dos trabalhos da Comissão, informava ao Presidente que não foi possível à Comissão chegar a “conclusões unânimes”, porque seus membros divergiram especialmente no tocante à “qualificação profissional”, e que Xxxxxxxx Xxxxx entendia que não deveria haver no projeto dispositivo sobre a qualificação profissional, em oposição a opinião da maioria da Comissão.3
Em função desta discordância é que o Ministro do trabalho submetia ao Presidente “medidas referentes exclusivamente ao regime de trabalho e à condição dos professores como empregados, a fim de ampará-los nessa qualidade, evitando, entretanto, o que pudesse ser objeto de controvérsias ou dissesse respeito ao campo da educação”.4
Desta forma o projeto abrangia questões sobre a duração do trabalho do professor, a forma e a garantia de remuneração, e a instituição do Registro Profissional mediante comprovação de habilitação expedida pelas autoridades em matéria de educação. Para Xxxxxxxx Xxxxxx, embora o anteprojeto não contemplasse todas as questões acerca do exercício do professorado, assegurava aos professores “justas condições de trabalho e uma
3 FGV, CPDOC. Xxxxxxxx Xxxxxx. Exposição de Motivos do Ministério do Trabalho ao Presidente Xxxxxxx Xxxxxx referente a anteprojeto sobre registro profissional do magistério de estabelecimentos particulares de ensino, 24/10/1939: GC g 1937.07.13, pasta I, r. 48.
4 Idem.
efetiva proteção, atendido por essa forma o dever do Estado, de amparar aqueles que se dedicam a uma das mais distintas atividades sociais”.5
Após meses de trabalho, e em face das negociações e divergências acima mencionadas, em 1940, era sancionado o primeiro decreto-lei a dispor sobre o trabalho no magistério particular. Por essa regulamentação, os professores e auxiliares da administração escolar foram equiparados aos comerciários, sendo estendidos a eles “todos os preceitos da legislação de proteção e assistência aos trabalhadores e de previdência social”.6 Nas comemorações do Dia do Trabalho no ano seguinte, o conteúdo desde decreto repetia-se na Consolidação das Leis Trabalhistas.7
Pela nova regulamentação, o Registro Profissional no Ministério do Trabalho era condição para o exercício remunerado do magistério nos estabelecimentos particulares de ensino. Para obter o Registro Profissional, cujo número constaria na Carteira Profissional, era preciso comprovar inscrição no Registro de Professores do Ministério da Educação. Ou seja, o acesso ao reconhecimento do trabalhador como profissional, mediante registro no Ministério do Trabalho, estava atrelado ao prévio reconhecimento da habilitação do professor pelo Ministério da Educação.
O decreto sobre o Registro Profissional contemplava prescrições concernentes às “condições de trabalho dos professores”. As principais determinações deste decreto que atenderam a diversos pontos do projeto do Sindicato dos Professores do Distrito Federal (COELHO, 1988, p.117).
O Sindicato dos Professores do Distrito Federal recebeu com entusiasmo a instituição do Registro Profissional e organizou homenagem ao Ministro do Trabalho, Xxxxxxxx Xxxxxx. Foi pela mediação dos órgãos da burocracia estatal nos embates e negociações entre os empregadores e os “trabalhadores do ensino” e pela participação dos professores neste processo, via sindicato, que os benefícios da legislação social foram estendidos aos docentes, na fórmula de que “quem tem ofício tem benefício”, o que também concorreu, juntamente com as iniciativas estatais, para a demarcação do estatuto profissional do magistério.
Meses após a publicação do decreto que instituía o Registro Profissional dos professores no Ministério do Trabalho, o Sindicato dos Professores do Distrito Federal encaminhou ao
5 Idem.
6 BRASIL. Decreto-lei n. 2.028, de 22 de fevereiro de 1940. “Institui o Registro Profissional dos Professores e Auxiliares da Administração Escolar, Dispõe sobre as condições de trabalho dos empregados em estabelecimentos particulares de ensino e dá outras providências”. Disponível em: xxx.xxxxxx.xxx.xx/xxxxx. Acessado em: 10/07/2007.
7 BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Seção XII. Dos Professores. Decreto-lei n. 5.452 de 01/05/1941.
In: NÓBREGA, Vandick Londres. Enciclopédia da Legislação do Ensino. v. I. Rio de Janeiro, p.487-488.
Presidente Xxxxxxx Xxxxxx memorial em que agradecia a sanção do decreto sobre o Registro Profissional, “primeiro gesto de amparo oficial aos laboriosos educadores da juventude brasileira”, de grande significação para o magistério particular do país. Justificavam a confiança e esperança depositada no Chefe da Nação, “primeiro educador do povo brasileiro” para a solução dos problemas do magistério, “habituados a serem escorraçados, incompreendidos em sua sagrada função, ou melhor, repetindo as palavras de V. Excia., no seu ‘apostolado cívico’, posto que a ação de governo do Presidente não esqueceria de “premiar os inauditos esforços dos educadores da juventude brasileira”.8
O memorial apresentava citações de discursos do Presidente a fim de articular uma comunhão de idéias entre o “Chefe da Nação” e o pensamento do Sindicato sobre a importância do magistério. Mencionava também o trabalho dos chefes das pastas do Trabalho e Educação como “baluartes indefesos das nossas reivindicações, os quais tudo fizeram e tudo farão para permitir condições mais dignas e justas para os professores do Brasil”.9
Segundo o memorial, a significação da nova regulamentação sobre o trabalho do magistério incutiria nos professores “um sentimento de respeito e gratidão [que] os impulsionará para a luta mais decidida em prol do aperfeiçoamento da nossa juventude”.
Após agradecimentos e compromissos declarados para com o Presidente, o memorial informava ao “Chefe da Nação” quais as questões “que exigem imediatas providências tendentes a coroar o sublime ato de V. Excia”. Em seguida, os professores retomavam sua pauta de reivindicações, posto que o decreto postergou a solução sobre a remuneração dos professores.
Em face da importância da questão salarial para o magistério particular, o sindicato solicitava a conclusão dos estudos da Comissão instituída em abril daquele ano para contemplar o tema. Os professores reivindicavam a estabilidade após dois anos no emprego e alegavam que “os professores tornar-se-ão mais eficientes assim que seu trabalho, melhor remunerado, lhes permita dedicar mais tempo ao preparo pessoal. Professor mal pago, não pode ter estímulo, e, mais ainda, não poderá aperfeiçoar-se continuamente”.10
A relação entre habilitação, entendida como qualificação profissional do magistério, formação específica para o ofício a ser exercido, e a definição dos critérios para remuneração, entendida como essencial para o reconhecimento de uma atividade como profissionalizada e exercida por um grupo específico, permite notar as imbricações entre as políticas de
8 FGV, CPDOC. Memorial do Sindicato de Professores ao Presidente da República, s/d.: GC g 1937.07.13, pasta II, r. 48.
9 Idem.
10 Idem.
profissionalização do magistério. Até mesmo porque, no caso da qualificação e remuneração, foi instituída uma mesma Comissão, mas que acabou por separar a normatização dos dois assuntos em pauta, devido a divergências no interior da Comissão, como Xxxxxxxx Xxxxxx esclareceu ao Presidente Xxxxxx, o que postergou a definição dos critérios da remuneração.
Enquanto o Sindicato dos Professores do Distrito Federal promovia campanha pela regulamentação dos contratos de trabalho, os líderes patronais, como Xx-Xxxxxxx, julgavam os salários até desnecessários, posto que, “os produtos materiais poderão ser recompensados materialmente, ao passo que o trabalho intelectual e educativo não poderão ter como paga bens materiais” (1932, apud COELHO, 1988, p.150).
Os diretores dos estabelecimentos de ensino se concentraram na definição de uma remuneração mínima para os professores. Além de não reconhecer a insuficiência dos salários pagos, eram contra uma elevação muito alta dos salários, alegando, como conseqüência, um aumento do custo do ensino (COELHO, 1988, p.153).
Para a definição da situação econômica do professorado prevaleceram os interesses do empresariado do ensino privado, e nesta correlação de forças foi menor o peso funcional da posição de classe do magistério. Dialeticamente, a situação econômica incide sobre as margens possíveis de posição da classe na estrutura social (idem), daí que o magistério tenha uma posição de classe que o identificado ao sacerdócio, ao apostolado, que são também funções com parcos rendimentos econômicos, mas de elevada significação social.
Podemos destacar, no Relatório Geral da Comissão, a preocupação em considerar as condições de organização, manutenção e desenvolvimento do ensino particular no país e dos possíveis impactos da “remuneração condigna” sobre a receita dos estabelecimentos de ensino. O relatório defendia a compensação financeira à iniciativa privada neste setor, de forma que a remuneração condigna “não pode ser conceituada, portanto, com a exclusão de
11 FGV, CPDOC. Portaria n. 56 do Ministério da Educação e Saúde. Institui Comissão estudar regulamentação do art. 9 do Decreto-lei 2.028 de 22/02/1940 sobre remuneração condigna do professor, 04/04/1940: GC g 1937.07.13, pasta I, r. 48.
lucros da empresa, nem mesmo com participação direta dos professores nesses lucros”.12 Por fim, o aumento do valor das mensalidades e taxas do ensino concorreria para desestimular a iniciativa privada na criação e manutenção de escolas, o que também não satisfaria ao interesse público, “porquanto qualquer maior entrave à iniciativa privada na criação e manutenção de casas de ensino, significaria errônea orientação, em país, como o nosso, de fraca densidade cultural”.13
Os argumentos da Comissão conferem com a análise de Xxxxxx Xxxxx (2000, p.118) sobre o a política de ensino secundário dos anos 1930 e 1940, quando sustenta que houve uma “compatibilidade da forte interferência da União na regulamentação desse ensino com o privatismo escolar, bem como das relações privilegiadas que este estabeleceu com o Estado”.
O resultado dos trabalhos da Comissão fixou uma fórmula para o cálculo da remuneração com base no salário mínimo, na contribuição mensal do alunado e no número de alunos por turma.14
A fim de assegurar que não deixou de contemplar o significado de “condigna” que poderia referir-se ao mérito da atividade docente, a Comissão sustentava que, ao tomar o preço pago pelos alunos aos estabelecimentos como vetor para os cálculos de remuneração docente, estava também contemplando o mérito profissional como critério para remuneração.15
Pouco convencidos desta argumentação, nossa análise dos trabalhos da Comissão nos leva a crer que foram definidos critérios de remuneração condigna aos lucros dos donos de estabelecimentos de ensino e não ao trabalho docente, visto que foram considerados itens que diziam respeito às condições econômicas dos estabelecimentos, sendo garantidos o direito ao lucro, sem haver menção às condições econômicas dos professores empregados nestes ginásios e colégios.
Sugerimos uma comparação entre o significado da “remuneração condigna”, na forma como acabou sendo definida nas décadas de 1930 e 1940, e o significado do “salário mínimo”. Previsto na Constituição de 1934, o Salário mínimo só foi instituído em 1936 e regulamentado dois anos depois, sendo a primeira tabela de salários expedida em 1940 O salário mínimo significou uma forma de acumulação de capital pelos empregadores, por meio
12 FGV, CPDOC. Relatório Geral da Comissão Especial para fixação dos critérios a serem adotados na determinação da remuneração condigna dos professores em estabelecimentos particulares do ensino, apresentado ao Ministro da Educação Xxxxxxx Xxxxxxxx, p.15, 30/08/1940. GC g 1937.07.13, r. 48, Xxxxx I, p.11
13 Idem, p.13.
14 Idem, p.24.
15 Idem, p.21.
da redução dos custos com a força de trabalho, ao mínimo que o trabalhador precisava para que pudesse reproduzir sua capacidade produtiva ao fim de uma jornada. Dessa forma, tomar o mínimo como parâmetro implicava aviltar o salário do trabalhador qualificado enquanto o mesmo salário se transformava-se num instrumento efetivo para acumulação industrial (VIANNA, 1978).
Na fórmula que foi apresentada nos trabalhos da Comissão, a “remuneração condigna” preservava a capacidade de lucro do empresariado do ensino e, como procurou demonstrar o Sindicato de Professores do Distrito Federal, em documento encaminhado ao Presidente Xxxxxxx Xxxxxx, em resposta aos resultados dos trabalhos da Comissão Especial, aquela solução implicava a diminuição do salário em vigor e instituía um “salário mínimo”, em vez da proclamada “remuneração condigna”.16 Xxxxxxx Xxxxxxxx submeteu o documento do Sindicato de Professores a Xxxxxxxx Xxxxx, membro da Comissão Especial sobre remuneração.17
Após aprovação do Relatório da Comissão Especial pelo Ministro Capanema, Xxxxxxxx Xxxxx apresentou anteprojeto de Portaria relativo ao assunto da remuneração dos professores.18 O Sindicato de Professores do Distrito Federal voltou a expor os motivos da discordância com os resultados do trabalho da Comissão sobre a remuneração, e Xxxxxxxx Xxxxx emitiu novo parecer, sugerindo ao Ministro da Educação o arquivamento do documento encaminhado pelo Sindicato de Professores.19
Interessante notar que as negociações e os conflitos em torno da remuneração atravessam os anos de 1930 e 1940. Mesmo na conjuntura centralizadora e autoritária do Estado Novo, os conflitos entre empregadores e professores não foram totalmente solucionados. Apenas a compreensão do Estado como relação social, como composto pela participação de diversos grupos, interesses e visões de mundo é que pode esclarecer como, mesmo sob o Estado Novo, não se logrou solução definitiva para um aspecto tão caro ao processo de profissionalização da atividade docente, como é a remuneração.
Todo o empenho de setores do governo, por mais que priorizassem os interesses do ensino privado, não calou as manifestações e demandas dos professores do ensino secundário
16 FGV, CPDOC. Documento enviado pelo Sindicato de Professores do Distrito Federal ao Presidente Xxxxxxx Xxxxxx, 26/09/1940: GC g 1937.07.13, r. 48, Pasta I.
17 FGV, CPDOC. Parecer de Xxxxxxxx Xxxxx a Capanema sobre memorial enviado pelo Sindicato de Professores do Distrito Federal sobre remuneração, 10/12/1940: GC g 1937.07.13, r. 48, Pasta I.
18 FGV, CPDOC Xxxxxxxx Xxxxx. Anteprojeto de Portaria sobre remuneração do magistério apresentado a Xxxxxxx Xxxxxxxx, 11/12/1940: GC g 1937.07.13, r. 48, Pasta I.
19 FGV, CPDOC. Documento enviado pelo Sindicato de Professores do Distrito Federal ao Ministro da Xxxxxxx Xxxxxxxx, 11/12/1940: GC g 1937.07.13, r. 48, Pasta I.; FGV, CPDOC. Xxxxxxxx Xxxxx. Carta ao Ministro Xxxxxxx Xxxxxxxx, 31/12/1940: GC g 1937.07.13, r. 48, Pasta I.
particular, organizados em sindicatos, ainda que os sindicatos fossem regidos por um sistema que buscava controlar as manifestações da classe trabalhadora.
A título de Conclusão
No estudo da implantação do Registro Profissional no Ministério do Trabalho, na regulamentação dos contratos de trabalho e na definição da questão salarial para o magistério particular, examinamos aspectos importantes do processo de profissionalização do magistério particular de ensino secundário no Brasil. No caminho que trilhamos neste trabalho, percebemos que questões importantes da profissionalização docente, naquele contexto, devem ser pensadas à luz de um movimento mais amplo que ocorria, e era pertinente não apenas aos trabalhadores do ensino, mas ao conjunto das relações sociais de trabalho, em face do processo histórico de implantação do capitalismo industrial no país, com forte atuação da sociedade política na condução do processo de edificação de um novo formato de Estado.
Quanto à abordagem acadêmica sobre as relações entre Estado e classe trabalhadora naquele cenário, notamos, na confrontação do balanço historiográfico (MATTOS, 2002) com as fontes de pesquisa, que, ainda que organizados sob o regime sindical tutelado e sob lideranças compromissadas com o governo, os Sindicatos de Professores souberam usar os canais de acesso e influência e as formas de jogo político instituídos no pós-1930. Por meio dessas brechas, fizeram suas reivindicações, e marcaram posições na correlação de forças que consubstanciaram as disputas sobre os rumos da profissionalização docente, ainda que não tenham conseguido a hegemonia desse processo, em face das relações cartoriais do Estado com os empregadores, da força política significamente maior dos empregadores na configuração do Estado.
Dessa forma, ainda que a legislação social e trabalhista tenha sido concebida para permanecer “letra morta” e ainda que não tenha correspondido exatamente a uma conquista da classe trabalhadora, ela se tornou um referencial para lutar por direitos sonegados (FRENCH, 1995).
Avaliamos que a organização sindical do magistério se mobilizou para regulamentar e, portanto, dar vias de execução, a dispositivos presentes na lei que talvez se mantivessem “letra morta” se não fosse a mobilização dos professores. Eles recorreram a negociações com o empresariado, pela mediação de setores da burocracia estatal, ou seja, O MES e o MTIC, e também souberam apelar ao executivo quando suas demandas pareciam estagnar diante de divergências entre estas instâncias. Nesse sentido, deslocamos o eixo de observação da
profissionalização docente como resultado da ação estatal, num sentido restrito, pois, afinal, a participação de atores coletivos organizados na sociedade civil caracterizaram tanto o processo de profissionalização, quanto a configuração do Estado.
Referências Bibliográficas:
COELHO, Ricardo B. Marques. O sindicato dos professores e os estabelecimentos particulares de ensino no Rio de Janeiro 1931 - 1950. Dissertação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1988.
XXXXX, Xxxxxx xx Xxxxxx. A invenção do trabalhismo. 3 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005.
XXXXXX, Xxxx X. O ABC dos operários. Conflitos e alianças de classe em São Paulo, 1900-1950. São Paulo, Hucitec/Pref. Mun. De São Caetano do Sul, 1995.
XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. “Os desafios da História do trabalho hoje – pensando a partir da produção do Rio de Janeiro” . Jornadas de História do Trabalho.Participação no painel Os desafios da História do trabalho hoje. 2002. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxx.xxxx.xx/XX%00xxxxxxx%00xxxxxxxx/xxxx%00xxxxxxx.xxx. Acessado em 31/01/2008.
XXXXX, Xxxxxxx. “Para o estudo sócio-histórico da gênese e desenvolvimento da profissão docente.”
Teoria e Educação, n. 4, 1991.
XXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xxxxxx da. Educação Conformada, a política pública de educação no Brasil.1930-1945. Juiz de Fora: Ed. UFJF; Brasília: Mec/Inep/Comped, 2000.
XXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx; XXXXX, Xxxxxxx X. Genta. “O Magistério Secundário como Profissão: o associativismo docente e a expansão do sistema educacional brasileiro entre os anos 1940 e 1960.” Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, v. 14, n. 24, Salvador, jul./dez., 2005.