Processo CVM n.º SP 2011/0304
Processo CVM n.º SP 2011/0304
(Reg. Col. n.º 8103/2012)
Recorrente: Nerci Xxxxx Xxxxxxxxx Baccin Clube de Investimento Portfolio
Assunto: Exercício do direito de recesso por acionistas que contrataram o "empréstimo" de suas ações.
Diretor-Relator: Xxxxxx Xxxxxx
Relatório
I. Objeto
1. Trata-se de recurso apresentado por Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx Baccin e Clube de Investimento Portfolio (em conjunto, "Reclamantes") em face do entendimento adotado pela Superintendência de Relações com Empresas ("SEP") de que a realização de operações de "empréstimo" de ações afasta o direito de recesso tanto para os acionistas que tinham suas ações emprestadas a terceiros quando da divulgação do Fato Relevante, quanto no caso daqueles acionistas que contrataram "empréstimo" posteriormente a essa data.
II. Reorganização Societária
2. Em 24.5.2011, Tele Norte Leste Participações S.A. ("TNLPar"), Telemar Norte Leste S.A. ("Tmar"), Coari Participações
S.A. ("Coari") e Brasil Telecom S.A. ("BrT") (em conjunto, "Companhias Oi") divulgaram fato relevante dando notícia da determinação de seus controladores indiretos para que fossem conduzidos os procedimentos pertinentes a uma "Reorganização Societária" voltada à simplificação da estrutura societária deste grupo por elas formado (fls. 28-34).
3. De acordo com os termos desse fato relevante e também daqueles divulgados em 1º.8.2011 e em 26.8.2011, a Reorganização Societária compreenderá (i) a cisão parcial da Tmar com a "incorporação" da parcela cindida pela Coari,
(ii) a incorporação de ações da Tmar pela Coari, (iii) a incorporação da Coari pela BrT, e (iv) a incorporação da TNLPar pela BrT.
4. Do fato relevante publicado em 24.5.2011, constou a informação de que, no entendimento das Companhias Oi, somente poderiam exercer o direito de recesso os titulares de (i) ações ordinárias e preferenciais classe A e classe B da Tmar,
(ii) ações ordinárias e preferenciais da Coari e de (iii) ações ordinárias da TNLPar que mantivessem essa titularidade de forma ininterrupta desde o encerramento do pregão de 23.5.2011 até a data do efetivo exercício do direito de retirada.
5. Em complemento a esta informação, as Companhias Oi publicaram:
i. em 17.8.2011, um novo fato relevante para noticiar que os conselhos de administração da TNLPar, Tmar e BrT aprovaram, relativamente à Reorganização Societária, as relações de troca recomendadas pelos respectivos comitês especiais independentes constituídos para os fins do Parecer de Orientação CVM n.º 35, 1º.9.2008[1] ;
ii. em 14.11.2011, um comunicado ao mercado, esclarecendo que "caso a titularidade de ações detidas em 23 de maio de 2011 tenha sido transferida, inclusive em virtude de contrato de mútuo de ações (‘aluguel de ações’), o acionista não poderá exercer o direito ao reembolso com relação às ações mutuadas, uma vez que, na forma da lei, o mútuo acarreta a efetiva transferência da titularidade das ações do mutuante ao mutuário"; e
iii. em 23.11.2011, um novo fato relevante para informar que, segundo o laudo de avaliação, o valor do reembolso a ser pago pelas ações aos acionistas dissidentes da assembleia geral da TNLPar seria de R$ 74,39.
6. Ainda sobre a questão do "empréstimo" de ações, a BM&FBovespa, por meio de comunicado externo datado de 16.11.2011, informou que seguiria a orientação das Companhias Oi sobre o direito de recesso, sob o argumento de que Regulamento do BTC não contém disposições específicas sobre a elegibilidade para o exercício de recesso por parte dos doadores de ações emprestadas.
III. Autuação
III.A. Reclamação
7. Em 19.12.2011, os Reclamantes, na qualidade de acionistas da TNLPar, protocolaram reclamação, alegando, basicamente, que (i) a inexistência de regras claras sobre os direitos e as obrigações envolvidos nas operações de "empréstimo", (ii) a forma pela qual este serviço é oferecido ao mercado, e (iii) a maneira pela qual a BM&FBOVESPA expediu as suas regras, acabaram por criar legítimas expectativas de que os acionistas que "emprestaram" suas ações poderiam exercer eventual direito de direito de recesso.
8. Nesse sentido, propuseram que se aplicassem, com as adaptações necessárias, as regras do regulamento do BTC referentes à preferência para subscrição de ações, de modo que ao "tomador" seja permitido devolver os ativos ao "doador" para que este exerça o direito de se retirar, ou, caso tal devolução não ocorra, o "doador" possa exercer o seu recesso via BTC.
III.B. Análise da área Técnica e da Procuradoria
9. A SEP, após analisar os argumentos apresentados pelos Reclamantes, verificou que a questão já havia sido analisada quando de outra reclamação protocolada sobre a mesma questão e voltou a concluir que tanto os acionistas que estavam com as ações emprestadas em 23.5.2011, como aqueles que, posteriormente, vieram a contratar o empréstimo, teriam perdido a legitimidade para exercer o direito de recesso (fls. 75-85). Em apertada síntese, os argumentos apresentados pela área técnica foram os seguintes:
i. o empréstimo de ações se caracteriza como um contrato de mútuo – a própria Instrução CVM n.º 441, de 10.11.2006, reconhece isso ao utilizar o termo "mutuantes" em alguns de seus artigos. Esta posição, aliás, já teria sido manifestada pela própria SEP no âmbito do Processo CVM n.º RJ 2006/7166;
ii. a presença de regras adicionais (exigidas, em boa parte, pelo art. 4º, §1º da Instrução CVM n.º 441/2006) não descaracteriza o empréstimo de ações como contrato de mútuo – estas garantias adicionais são contratuais, e tem por finalidade proporcionar que o doador receba benefícios equivalentes aos que receberia caso fosse titular das ações;
iii. as partes de um contrato de empréstimo não podem estabelecer cláusulas que tragam ônus ou obrigações para a companhia emissora das ações "emprestadas", inclusive porque a companhia não participa, nem direta, nem indiretamente deste contrato; e
iv. o fato de o "doador" não ter a intenção de se desfazer de suas ações (mas apenas obter algum rendimento financeiro e, ao mesmo tempo, proporcionar liquidez ao mercado) não altera a conclusão acima exposta. Ainda que o objetivo da operação de empréstimo seja diverso do da compra e venda, e que a doutrina civilista assim reconheça, "juridicamente houve tal transferência", e é isto que, pelo menos sob a ótica da companhia, é relevante.
10. A Procuradoria Federal Especializada ("PFE") também chegou à mesma conclusão. Dentre os seus argumentos, pode-se destacar os seguintes:
i. ao "alienar sua posição, anteriormente ao momento do exercício do recesso (...), [o acionista perde a legitimidade para exercer o seu direito de recesso, pois, com esta alienação, ter-se-á] atingido a finalidade da lei, que é propiciar a ‘indenização’ ao acionista pela mudança substancial ocorrida"; e
ii. independentemente da demonstração acerca de "uma sistemática precisa para a realização dos negócios de empréstimo de ações de ações, fato é que, à luz da lei acionária, o negócio jurídico em questão, firmado entre particulares, sem a anuência da companhia, não tem força legal para ser oponível à companhia".
III.C. Recurso, Encaminhamento ao Colegiado e Memoriais
11. Oficiados sobre este entendimento (fls. 105-106), os Reclamantes protocolaram recurso em 19.1.2012 (fls. 119-130), retomando, basicamente, os argumentos apresentados na reclamação.
12. A SEP manteve seu entendimento (fls. 132-133), pelo que o presente processo foi, então, encaminhado para apreciação do Colegiado e, em 31.1.2011, sorteado para o relator.
13. Em 13.2.20012, os Reclamantes apresentaram memorial (fls. 140-159), onde exploram, de maneira mais aprofundada, aspectos relacionados à caracterização jurídica das operações de empréstimo e aos efeitos de tal caracterização.
É o relatório.
Voto
1. O presente caso é, dentre aqueles relacionados às operações que integram a reorganização societária envolvendo as Companhias Oi, o que se me afigura de mais complexa resolução.
2. Isso porque nele talvez se apresentem, de maneira mais evidente que nos demais casos, questões de trato tipicamente dificultoso envolvendo a interpretação de negócios jurídicos. É o caso das questões que envolvem a relação entre forma e conteúdo dos negócios jurídicos, entre tipicidade e intenção dos celebrantes e também a questão da produção de efeitos perante terceiros, para referir apenas aquelas que me parecem mais relevantes.
3. E para lidar adequadamente com o caso devemos nos quedar adstritos, a meu ver, fundamentalmente aos temas acima referidos e ao ponto, preliminar, da necessidade de propriedade ininterrupta para o exercício do direito de recesso. Afasto, assim, considerações mais aprofundadas acerca das questões, suscitadas de maneira direta ou incidental nos presentes autos e nos demais casos em que apareceram reclamações semelhantes, acerca do eventual oportunismo dos Reclamantes ou dos efeitos que uma decisão da CVM, em qualquer dos sentidos possíveis, poderia trazer em termos
tanto de estímulo a comportamentos especulativos quanto de perdas para o mercado de empréstimo de ações como hoje organizado no país.
4. A bem da verdade, mesmo considerando descabido aprofundar a análise daquelas questões, esclareço que o pleito dos Reclamantes, neste caso como nos demais em que se questionou o mesmo ponto, parece-me, ao menos desde um ponto de vista estritamente material, em larga medida legítimo. O emprestador de ações não as aliena como se as tivesse vendido. Ele não recebe, em troca pelas ações que entrega à outra parte, o valor daquelas (o "principal", como se diz), mas sim o pagamento de uma taxa de juros. Tanto assim que, do ponto de vista econômico se costuma dizer que ele mantém a "exposição à companhia".
5. Da mesma maneira não me parece correto pressupor que o emprestador atua como se especulador fosse. Seja porque, como referi, ele mantém aquela verdadeira exposição econômica, seja porque, ao emprestar suas ações, ele não está operando em mercado tendo em vista oscilações de preço – ele não aufere ganho daquelas oscilações e a sua conduta não é nem capaz de produzi-las de forma direta. O emprestador realiza uma operação de renda fixa, na verdade.
6. Por fim, e ainda tendo em vista questões suscitadas nas discussões diretamente havidas nos autos ou em discussões incidentais, destaco que não vejo sequer relação muito mais direta entre a realização de empréstimos e a ocorrência de movimentações abruptas no preço das ações. Tais movimentações decorreriam, em tese, da necessidade de os mutuários, ao cabo do empréstimo, irem a mercado buscar as ações necessárias para a devolução. A rigor, o empréstimo de ações tende sempre a responder a uma demanda, no mais das vezes surgida da necessidade de outros agentes de mercado, que teriam, por exemplo, realizado "vendas a descoberto" ou que precisam das ações por outros motivos.
7. Assim, a presunção de que os empréstimos em si seriam geradores de uma demanda desproporcional por ações parece- me descabida, ao menos para os fins deste processo. E mesmo se, quando da necessidade de devolução das ações emprestadas, os preços tendem a responder à busca pelos títulos em mercado, não se pode olvidar que aqueles mesmos preços tendiam também a responder às vendas anteriormente realizadas (vendas a descoberto, por exemplo, são realizadas na expectativa de uma queda de preços). Assim, o argumento acerca dos efeitos danosos que os empréstimos poderiam gerar e da falta de legitimidade de tais operações parece-me falho.
8. De qualquer maneira, como referi, no presente caso, antes mesmo de precisarmos lidar com essas questões, deve-se lidar com algumas outras, que são eminentemente jurídicas. E é apenas com a superação destas outras questões que se poderia pensar em lidar com aqueles temas expressamente afastei. Dito isso, passo a tratar daquilo que me parece essencial para a tomada de uma decisão. E o primeiro desses temas essenciais, que acima referi como preliminar, é o da necessidade de titularidade ininterrupta das ações para o exercício do direito de recesso.
9. Neste ponto acompanho o voto da Diretora Xxxxxxx Xxxx no Processo CVM n.º RJ 2012/0249 (decidido nesta mesma data), assim como as considerações feitas pela Procuradoria Federal Especializada no Memo n.º 013/2011/GJU-2/PFE- CVM/PGF/AGU.
10. Entendo que a titularidade ininterrupta decorre da lógica adotada pelo legislador de 1997. Se a intenção deste era evitar a especulação durante o período decorrido entre a data da divulgação do fato relevante e a da deliberação societária geradora do direito de recesso, o §1º do art. 137 é incisivo ao dispor que o acionista dissidente apenas fará jus ao reembolso "das ações de que, comprovadamente, era titular na data da primeira publicação do edital de convocação da assembléia, ou na data da comunicação do fato relevante objeto da deliberação, se anterior."
11. É bem verdade que para atingir os mesmos fins talvez não se demandasse algo tão rigoroso como a manutenção ininterrupta das ações. Com efeito, uma vez definida a data da divulgação da operação como a data para a identificação dos acionistas que, vindo a discordar da deliberação, poderiam postular a sua retirada, já se eliminaria muito da especulação danosa para a companhia. Com isso, todas as operações realizadas posteriormente ao fato relevante não mais permitiriam a transferência do direito de recesso junto com as ações negociadas e aquele acionista legitimado deveria apenas, no dia da assembléia, apresentar-se munido de igual número de ações. Entendo, no entanto, que a dicção legal dá sinais inequívocos de que deve caber mesmo uma interpretação mais restritiva, remetendo ao valor de reembolso das ações de que o acionista era titular naquela primeira data. Qualquer outra interpretação aqui tenderia a levar a soluções que me parecem mais artificiosas (inclusive do ponto de vista dos arranjos que se deveriam adotar para a sua implantação). E não me parece, no trato com o tema, haver muito espaço para esse tipo de construção.
12. Também não creio que se possa afastar a necessidade de manutenção ininterrupta das ações com base na comparação entre o §1º do art. 137 e o §6º do art. 141, que expressamente refere, para outros fins, a titularidade ininterrupta de participação acionária. O argumento poderia, é bem verdade, servir de reforço ao pedido de desconsideração da necessidade de detenção ininterrupta, mas ele não é hábil a, por si só, alterar a conclusão que decorre dos termos do referido §1º do art. 137. Pode haver incoerência entre a forma de um e de outro dispositivo, mas aqui não me parece que chega a haver uma inconsistência propriamente dita, capaz de afastar a interpretação ora adotada.
13. Isso sem contar o fato, que não se pode de todo ignorar que o §6º do art. 141 é fruto de reforma ainda posterior da Lei n.º 6.404/1976, pela Lei n.º 10.303, de 31.10.2001. Postas de lado questões mais tópicas, a sucessão de reformas daquele diploma tem incorporado também evidentes aprimoramentos de técnica legislativa, em especial na medida em que, com o surgimento de casos concretos, se discutiam as questões suscitadas em reformas anteriores.
14. Um possível argumento contra essa argumentação é o de que a obrigatoriedade de detenção ininterrupta atentaria contra o princípio da livre circulação de ações. Acredito que seja importante rebater essa interpretação e, por isso, acresço aos motivos de ordem lógica suscitados pela Diretora Xxxxxxx Xxxx em seu voto alguns outros.
15. Com efeito, o princípio da livre circulação das ações existe em um determinado contexto. Basicamente ele quer dizer
que, nas sociedades de anônimas, que, para remeter a uma distinção antiga, são de capitais e não de pessoas, não se podem criar restrições para a transferência de ações – de um modo geral, esta não pode ser livremente condicionada à vontade de terceiros. Assim, o art. 36 da Lei n.º 6.404/1976, estabelece que os estatutos de companhias fechadas podem estabelecer limitações à circulação, desde que estas sejam "reguladas minuciosamente" e que não se impeça a negociação, nem se sujeite o acionista "ao arbítrio dos órgãos de administração da companhia ou da maioria dos acionistas". Para as companhias abertas, nem isso é possível[2] . Da mesma maneira, ações que são averbadas como vinculadas a acordos de acionistas, que podem criar determinadas restrições à circulação, não são nem mesmo passíveis de negociação em mercado, nos termos do §4º do art. 118 da Lei. A obrigatoriedade de manutenção das ações, de que se trata no presente caso, não se confunde com esse tipo de restrição à circulação, tratando-se de um regime legal específico, que, a fim de permitir o exercício de um determinado direito, cria, para o detentor da ação, um ônus. São realidades bastante distintas.
16. Feitos esses esclarecimentos, cumpre passar para a questão do empréstimo de ações. O que se impõe, na verdade, é saber se o empréstimo seria ou não capaz de interromper a propriedade do bem para os efeitos acima referidos. Caso o "doador" (para usar a terminologia de mercado que designa o mutuante) seja considerado, durante todo o período, proprietário das ações, ele faria jus ao direito de retirada. Se, porém, o empréstimo transfere a propriedade, não existiria mais direito de recesso com relação às ações mutuadas.
17. Importa destacar que a argumentação que se segue não incorpora a distinção entre (i) os empréstimos realizados antes da divulgação do primeiro Fato Relevante e que, quando de tal divulgação, encontravam-se em vigor, e (ii) aqueles empréstimos realizados a partir da divulgação do Fato Relevante. A solução ao cabo adotada valerá para os dois casos.
18. Ao tratar dos empréstimos, o argumento das Companhias Oi foi sempre o mesmo (deixados de lado aqueles de ordem mais material, acima referidos): o empréstimo de ações é caracterizado como mútuo; o regime jurídico do contrato de mútuo envolve a transferência de propriedade; e em consequência os doadores, naqueles contratos, deixaram em algum momento de ser proprietários das ações. Daí porque não caberia falar em propriedade ininterrupta e daí porque os mutuantes não fariam jus ao direito de recesso.
19. Os argumentos dos Reclamantes, neste e em outros processos, à parte aqueles que dizem respeito à justiça ou à eficiência da decisão e a seus efeitos para a estrutura de mercado, de um modo geral procuram descaracterizar essa solução mais formalista. Para tal eles remetem, por exemplo, ao lado de outras peculiaridades operacionais:
i. à questão da intenção das partes quando da realização do contrato de empréstimo, que não era a de efetiva alienação do bem (e já referi acima que os doadores permanecem, afinal, expostos economicamente à companhia);
ii. à efetiva manutenção de determinados direitos patrimoniais com os mutuantes nas operações realizadas no mercado brasileiro;
iii. à inadequação da transposição pura e simples do tipo contratual "mútuo" para as operações de mercado denominadas de empréstimo ou aluguel de ações; e
iv. à natureza distinta que teriam a transferência de propriedade em uma operação de mútuo (onde tal transferência teria caráter mais instrumental) e em uma operação de compra e venda propriamente dita (onde efetivamente se aliena o bem).
20. No presente caso, em especial, ainda se faz referência à ausência de regime legal ou regulamentar próprio para tais operações, em reforço aos demais argumentos e à pretensão dos Reclamantes. Também se faz referência à interposição da Bolsa/CBLC entre doadores e tomadores e a padronização dos instrumentos como hábeis a descaracterizar o vínculo contratual.
21. E começo por este último ponto para, a partir daí, seguir para os demais. A realização das operações a partir do uso de contratos padronizados, cujas cláusulas não são plena e livremente negociadas entre as partes, e a interposição da Bolsa/CBLC entre as partes não parecem ser, a meu ver, hábeis a descaracterizar os contratos adotados. Esta é, na verdade, uma questão típica quando se fala em operações bursáteis: se entre as partes não raro se interpõem mais de um intermediário, além de Bolsas e câmaras de compensação e liquidação de operações, seria correto tratá-las ainda como vendedor e comprador dos ativos negociados?
22. Por óbvio que não se pode, nessas operações, considerar a vinculação entre comprador e vendedor (e da mesma maneira entre mutuante e mutuário) tão próxima como ela seria em uma relação intuitu personae e que tenha sido negociada diretamente entre os interessados. Os negócios de bolsa ou mesmo algumas operações de balcão caracterizam-se por certos elementos destinados a assegurar a criação de mercados líquidos – assim, em regra as contrapartes nem mesmo se conhecem e, para facilitar as negociações, as operações são em grande parte padronizadas.
23. A inexistência de contato diretamente celebrado entre as partes produz alguns efeitos importantes do ponto de vista das responsabilidades e dos riscos por elas assumidos (e é por isso que as bolsas devem constituir uma série de salvaguardas para seus sistemas de liquidação de operações). A padronização das operações retira, de fato, uma parcela de sua autonomia das partes quanto á definição dos termos do que se pactua. Nenhum desses dois aspectos, porém, parece ser suficiente para descaracterizar propriamente o contrato. Compradores e vendedores permanecem compradores e vendedores, em uma relação intermediada e com diversas regras acessórias[3] . O mesmo deve valer para mutuantes e mutuários, se de mútuo efetivamente se tratar.
24. E, realmente, entendo que é com o contrato de mútuo que se está, no caso dessas operações, lidando. A Bolsa/CBLC trata, em todos os seus documentos, a operação como de empréstimo ou de aluguel e remete todo o tempo à transferência da propriedade das ações para os mutuários, registrada em seus sistemas – e aqui vale lembrar que, ainda que a terminologia possa, por vezes, soar pouco rigorosa, é sob esse regime que ingressam os contratantes[4] . As ações são tomadas em empréstimo para posterior utilização pelo tomador e, a menos que ocorra uma coincidência, não são os mesmos títulos que serão devolvidos – daí porque elas são inequivocamente coisas fungíveis. E o empréstimo de coisas fungíveis é caracterizado, pelo art. 586 do Código Civil, como mútuo. Por fim, lembro que embora a locação, por definição, tenha sempre por objeto coisas não fungíveis, quando uma dada operação envolve coisa fungível, ela é, em razão de todos os seus efeitos, equiparada ao mútuo.
25. Não creio que seja correto, assim, afirmar que inexiste regime contratual pré-definido para as operações de empréstimo realizadas no âmbito do BTC. E essa interpretação já foi consagrada pela CVM[5] . Não se pode, assim, caracterizar esse empréstimo como operação atípica, cujo regime estaria ainda por construir.
26. E o contrato de mútuo tem como um de seus principais efeitos a transferência da propriedade do bem mutuado, sobre a qual vale também tecer algumas considerações. Essa transferência de propriedade é da própria essência do contrato de mútuo, tendo em vista a natureza dos bens emprestados. Estes se destinam, com efeito, a uso ou consumo, motivo pelo qual o mutuário deve poder deles dispor livremente, efeito que se obtém plenamente apenas pela transferência de propriedade. Não é por outro motivo, aliás, que, como já referido, os documentos da Bolsa/CBLC que tratam do empréstimo de ações fazem referência a essa transferência de propriedade.
27. É bem verdade que os doadores não têm a intenção de propriamente alienar as ações e que eles mantêm aquela exposição econômica que por mais de uma vez acima se referiu. Exposição econômica que é tornada ainda mais evidente quando se considera que são os doadores que fazem jus aos proventos das ações e, inclusive, aos resultados de bonificações e grupamentos. Mais do que isso, ele tem a possibilidade de, durante o empréstimo, subscrever ações.
Todos esses efeitos, porém, resultam de mecanismos
próprios criados pelo BTC e por ele geridos. Xxxxxxxxxx, aqui, para demonstrar tal situação, trecho em que a própria Xxxxx explica a forma pela qual se dá concreção a tais direitos:
"Formalmente, no empréstimo de ações o doador deixa de ser o titular dos títulos e não recebe o provento da companhia. No entanto, o sistema BTC se encarrega de reembolsar o doador na mesma data e no mesmo montante, como se as ações ainda estivessem custodiadas em seu nome. Isso é, faz um crédito financeiro correspondente ao provento já ajustado às suas condições fiscais na data estipulada pela companhia emissora. Por outro lado, o BTC debita o tomador nas mesmas bases (montante financeiro e data). Note que os valores distribuídos pela companhia emissora reembolsados ao doador são considerados restituição do valor emprestado originalmente, e não rendimento, portanto não são tributados.
No caso de um provento em ativos (bonificação, grupamento etc.), o investidor doador recebe os ativos objeto do empréstimo com as quantidades ajustadas.
Se houver opção de subscrição no período de empréstimo, o sistema BTC garante ao doador a possibilidade de subscrever as ações a que tem direito sob as mesmas condições que teria caso estivesse com as ações em custódia (valores financeiros e datas). É Importante ressaltar que durante o empréstimo, pelo fato do doador deixar de ser acionista formal da companhia, os direitos de subscrição não serão gerados em sua conta de custódia. Caberá ao tomador optar em devolver os direitos ou recibos de subscrição ou ações correspondentes à subscrição. No caso do recibo de subscrição ou novas ações o doador arcará com os custos relativos à subscrição. O acompanhamento do processo de subscrição via BTC é realizado pela equipe de monitoração do BTC juntamente com a equipe da corretora ou agente de custódia responsável pelas operações de empréstimo de ações do investidor"[6] .
28. Vê-se, assim, que em nenhum caso existe uma fragmentação propriamente dita dos direitos detidos pelas partes – e em nenhum momento se obriga a companhia emissora a reconhecer a operação de empréstimo e a dela retirar determinados efeitos. Da mesma maneira, em nenhum momento se questiona a transferência de propriedade das ações, que é, aliás, até reiterada (tanto que, em outro ponto, se assevera que o direito a voto eventualmente existente é do tomador do empréstimo). O que se faz na verdade, por meio de uma hábil estratégia, é incorporar, nas regras do BTC, mecanismos que permitem que se mantenha, para diversos efeitos, aquela exposição econômica do doador ao título emprestado. E dentre os eventos relacionados no trecho em questão e em outros documentos da Xxxxx não se encontra nada que faça referência ao direito de recesso – este não é nem mesmo abrangido por aqueles mecanismos.
29. Daí porque, inclusive, não se pode usar como argumento de reforço para o pleito de extensão de direito de recesso ora em discussão justamente aquela "manutenção" dos direitos de acionista no regime do BTC. Tal manutenção – se é que se pode falar em verdadeira manutenção – é expressamente prevista e decorre não da existência daqueles direitos em razão de um "fatiamento" daquilo que é inerente à titularidade das ações (e a posição de acionista, vale lembrar, comporta mesmo um feixe de direitos), mas sim da criação das soluções institucionais acima descritas.
30. Daí porque afasto também outra possibilidade, que nem foi expressamente aventada no presente caso, havendo sido, porém, suscitada em discussões sobre o tema: a de que se dê à expressão "titular de ações", constante do §1º do art. 137 da Lei n.º 6.404/1976, significado distinto do de acionista. Não me parece que, na sistemática dessa lei, a expressão "titular", tantas vezes utilizada, signifique outra coisa senão o acionista propriamente dito, proprietário das ações e registrado como tal[7] .
31. Por fim, gostaria de explorar uma última questão referente à transferência de propriedade que se faz nos empréstimos de ações, que é a do seu caráter instrumental. Por este argumento, não se poderia falar em verdadeira e intencional alienação dos títulos. À parte o fato de que nem mesmo se paga um verdadeiro preço por eles, a transferência, aqui,
seria apenas "instrumental", a fim de permitir que o tomador das ações as utilizasse para seus próprios fins. Xxxxx que esse argumento não resiste à constatação de que, no contrato de mútuo e ainda mais na modalidade aqui descrita, o que se transfere é, efetivamente, a propriedade do bem. Não remanescem direitos reais restritos com o emprestador, mas apenas um direito de crédito. E, ademais, ainda que existissem aqueles direitos, eles teriam que ser tipificados. É verdade que talvez não se possa mesmo falar em um verdadeiro "contrato de alienação" ou em escopo de alienação do bem, mas a propriedade efetivamente se transfere e essa transferência produz, nesse sentido, plenos efeitos.
32. Em suma, a opção por uma determinada modalidade contratual faz com que incida, em princípio, o regime jurídico correspondente àquela modalidade. Ainda que, em determinados casos, seja possível afastar elementos incidentais de tal regime, há alguns elementos essenciais, que o caracterizam. E esse é o caso da transferência de propriedade nos contratos de mútuo – e nesses contratos, vale ainda lembrar, essa característica é tão intensa que se fala usualmente em contratos reais e não meramente consensuais[8] .
33. Assim, pelo exposto, reconheço que os contratos de empréstimo ou de aluguel de ações transferem a propriedade do bem e, em conseqüência, ações emprestadas não são ininterruptamente mantidas pelos mutuantes. Daí porque julgo improcedente o presente recurso. Não creio que esta solução seja, necessariamente, a mais justa para os investidores que tinham suas ações emprestadas ou que as emprestaram após a divulgação do Fato Relevante, mas considero que, em razão da natureza, já conhecida, das operações de empréstimo de ações e dos cuidados que se deve ter para interpretar o direito de recesso, ela é a única possível.
É o meu voto.
Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 2012.
Xxxxxx Xxxxxx Diretor Relator
[1] Neste fato relevante, comunicou-se que "Os Conselhos de Administração da [TNLPar], [Tmar], Coari e [BrT] se reunirão até o final do mês de agosto para deliberar sobre as demais condições da Reorganização Societária, incluindo os Protocolos e Justificações". Estas reuniões de fato ocorreram e, em 26.8.2011, divulgou-se, também por meio de fato relevante, que "os Conselhos de Administração das Companhias Oi aprovaram os [demais] termos e condições da proposta de reorganização societária".
[2] Cf. Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx e Xxxxx Xx Xxxx xx Xxxxxxx, "Do direito do acionista à informação em companhias abertas e fechadas". In: Xxxxxxx Xxxxxx Xxx Xxxxxx (Coord.). Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneo. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 600.
[3] E para considerações sobre o tema, demonstrando ainda o quão consolidadas são as posições neste sentido, remeto a Xxxxxx Xxxxxxxxx, "Disciplina Giuridica delle Operazioni di Borsa", in Lezioni del Corso di Aggiornamento sulle Borse Valori, Milano: Dott.
A. Xxxxxxx, 1958, pp. 311 e ss.
[4] E vale lembrar que tais pontos constam não apenas dos documentos de divulgação da Bolsa/CBLC, mas também dos contratos que se deve celebrar para operar no BTC.
[5] Cf., a este respeito, o MEMO/CVM/SEP/GEA-4/N.º 099/06, de 23.10.2006 (elaborado no âmbito do Processo CVM n.º RJ 2006/7166).
[6] Disponível no seguinte endereço: xxx.xxxxxxxxxx.xxx.xx/xx-xx/xxxxxxxx/xxxxxxxxxxx-xx-xxxxxxx/xxxxxxxxxxx-xx- titulos.aspx?Idioma=pt-br, último acesso em 16.2.2012.
[7] A bem da verdade, a expressão "titular de ações" é tecnicamente mais rigorosa que a expressão "proprietário de ações". Xxxxxx, se entendemos as ações como "complexos de posições jurídicas subjetivas patrimoniais, ativas e passivas, do sócio em relação à sociedade", parece-me inevitável concluir que há maior rigor na expressão "titular de posições jurídicas" do que na expressão "proprietário de posições jurídicas" (Cf. Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, Numerus Clausus dos Direitos Reais e Autonomia nos Contratos de Disposição, Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2009, p. 67).
[8] Em uma caracterização que não é isenta de críticas, como demonstra Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxx Xxxxx em seu Cessão de Contrato, Editora Saraiva, São Paulo, 1985, pp. 10 e ss.