EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DIAS TOFOLLI.
EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DIAS TOFOLLI.
PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL - PCdoB,
partido político com representação no Congresso Nacional, devidamente registrado no Tribunal Superior Eleitoral, inscrito no CNPJ sob o n. 54.956.495/0001-56, com sede no Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx - Xxxxxx 00, Xxxxx X, Xxxx 0000, Xx. Executive Office Tower, 12º Andar, CEP 70.702-906, Brasília/DF; PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE – PSOL, partido político com representação no Congresso Nacional, devidamente registrado no Tribunal Superior Eleitoral, inscrito no CNPJ sob o n. 06.954.942/0001-95, com sede no Setor Comercial Sul - Quadra 02, Bloco C, 252, Edifício Xxxxx Xxxxxxx, 5º andar, XXX 00.000-000, Brasília/DF; PARTIDO SOCIALISTA BRASILEIRO
- PSB, partido político com representação no Congresso Nacional, devidamente registrado no Tribunal Superior Eleitoral, inscrito no CNPJ sob o n. 01.421.697/0001-37, com sede na XXXX - Xxxxxx 000, Xxxxx X, xxxxxxx 00, xxxxxxxxx X, XXX 00.000-000, Xxxxxxxx/XX; e PARTIDO DOS TRABALHADORES – PT, partido político com representação no Congresso Nacional, devidamente registrado no Tribunal Superior Eleitoral, inscrito no CNPJ sob o n. 00.676.262/0001-70, com sede no Setor Comercial Sul - Quadra 02, Bloco C, 256, Edifício Toufic, 1º andar, XXX 00.000-000, Brasília/DF, vêm, por seus advogados devidamente constituídos, oferecer a presente AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE COM PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR, com fulcro nos arts. 102, inciso I, alíneas ‘a’ e ‘p’, e 103, inciso VIII, da CF/88 e na Lei n. 9.868/99, objetivando que se declare a inconstitucionalidade da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020 (publicada no DOU n. 135, Seção 1, pp. 1-8, de 16 de julho de 2020), que “atualiza o marco legal do saneamento básico e altera a Lei no 9.984, de 17 de julho de 2000, para atribuir à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) competência para editar normas de referência sobre o serviço de saneamento, a Lei no 10.768, de 19 de novembro de 2003, para alterar o nome e as atribuições do cargo de Especialista em Recursos Hídricos, a Lei no 11.107, de 6 de abril de 2005, para vedar a prestação por contrato de programa dos serviços públicos de que trata o art. 175 da Constituição Federal, a Lei no 11.445, de 5 de janeiro de 2007, para aprimorar as condições estruturais do saneamento básico no País, a Lei no 12.305, de 2 de agosto de 2010, para tratar dos prazos para a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos, a Lei no 13.089, de 12 de janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole), para estender seu âmbito de aplicação às microrregiões, e a Lei no 13.529, de 4 de dezembro de 2017, para autorizar a União a participar de fundo com a finalidade exclusiva de financiar serviços técnicos especializados”, pelas razões de fato e de direito a seguir expostas.
1. DA LEGITIMIDADE ATIVA.
Não há quaisquer dúvidas, posto tranquila a legitimidade ativa dos autores para propor Ação Direta de Inconstitucionalidade, uma vez que todos são Partidos Políticos devidamente constituídos perante o Tribunal Superior Eleitoral e com representação no Congresso Nacional, nos termos do art. 103, inciso VIII, CF/88 e seu correspondente na Lei n. 9.868/99, artigo 2º, inciso VIII, inclusive sobre ele não se aplicando a obrigatoriedade de demonstração da pertinência temática eis que legitimado universal.
2. JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL COMO JUSTIÇA DISTRIBUTIVA EM DEFESA DA VULNERABILIDADE SOCIAL DAS POPULAÇÕES POBRES.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, conceitua-se Saneamento como o controle dos fatores do meio físico que cercam o homem que exercem ou podem exercer efeitos nocivos sobre o seu bem estar físico mental e/ou social. Ele caracteriza-se pelo conjunto de ações socioeconômicas que têm por objetivo alcançar a salubridade ambiental.
Diz-se que o saneamento corresponde à prestação de um complexo sistema de serviços que requer a construção de obras físicas, mas também requer a estruturação educacional, legal e institucional para funcionamento de forma coordenada. Isto porque, o saneamento congrega a prestação dos seguintes serviços:
(1) abastecimento de água às populações, com qualidade compatível com a proteção da saúde e em quantidade suficiente para a garantia de condições básicas de conforto;
(2) coleta, tratamento e disposição ambiental adequada e sanitariamente segura de águas residuais (esgotos sanitários, resíduos líquidos, industriais e agrícolas);
(3) acondicionamento, coleta, transporte e/ou destino final de resíduos sólidos (rejeitos domésticos, do comércio e serviços, hospitalares e industriais);
(4) coleta de águas pluviais e controle de empoçamentos e inundações;
(5) controle de vetores de doenças transmissíveis (insetos, roedores, moluscos, por exemplo); e
(6) controle de poluição ambiental – água, ar e solo, acústica e visual.
Em termos de universalização de direitos, requer-se que sejam cumpridas metas mínimas de saneamento – o saneamento básico –
correspondentes aos itens (1), (2), (3) e (4)1. O que não invalida estabelecer a estreita relação do saneamento com a preservação e desenvolvimento de condições de saúde para o conjunto da população, na forma do art. 200, inciso IV, CF/88.
Tratar de saneamento equivale a tratar de saúde pública2 preventiva, reduzindo a necessidade de tratamentos curativos ao minimizar o risco de doenças. O que importa sobremaneira o Brasil já que estudos da Organização Mundial de Saúde (2008) estimam que 6% de todas as doenças no mundo são causadas por consumo de água não tratada e pela falta de coleta de esgoto; entre elas diarreia, febre, hepatite A, malária, doença de Chagas, teníase, cisticercose, conjuntivite, doenças de pele e verminoses estão diretamente ligadas a um ambiente doméstico inadequado.
A água é o elemento inorgânico mais abundante na matéria viva e é essencial para o desenvolvimento de praticamente todas as atividades do homem, sejam urbanas, industriais ou agropecuárias. O que revela a importância da questão do saneamento básico como mais importante técnica de controle da poluição da água por meio de implantação de sistemas de coleta e tratamento de esgotos sanitários e industriais. Da mesma forma, o saneamento básico revela-se essencial para o controle da poluição do solo ao prevenir a contaminação das águas subterrâneas.
Desta maneira que se tem descrito, a despeito da Constituição Federal de 1988 não tratar da questão de forma expressa, que a preservação da qualidade da água, como mais importante desdobramento da proteção do meio ambiente
1 Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se:
I - saneamento básico: conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais de:
a) abastecimento de água potável: constituído pelas atividades, infraestruturas e instalações necessárias ao abastecimento público de água potável, desde a captação até as ligações prediais e respectivos instrumentos de medição;
b) esgotamento sanitário: constituído pelas atividades, infraestruturas e instalações operacionais de coleta, transporte, tratamento e disposição final adequados dos esgotos sanitários, desde as ligações prediais até o seu lançamento final no meio ambiente;
c) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos: conjunto de atividades, infraestruturas e instalações operacionais de coleta, transporte, transbordo, tratamento e destino final do lixo doméstico e do lixo originário da varrição e limpeza de logradouros e vias públicas;
d) drenagem e manejo das águas pluviais, limpeza e fiscalização preventiva das respectivas redes urbanas: conjunto de atividades, infraestruturas e instalações operacionais de drenagem urbana de águas pluviais, de transporte, detenção ou retenção para o amortecimento de vazões de cheias, tratamento e disposição final das águas pluviais drenadas nas áreas urbanas. (Lei n. 11.445/07, Lei de Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico).
2 Dita o artigo 196 da Constituição Federal de 1988: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação”; que é regulamentado pelo artigo 2º, caput e § 1º, da Lei n. 8.080/90: “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno
exercício” e § 1“ ºO dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”.
equilibrado, corresponde a garantir o mínimo de salubridade ambiental para o desenvolvimento da vida humana.
Aliás, além da preservação da qualidade da água, também é importante frisar que ela deve ser oferecida em quantidade suficiente para a satisfação das necessidades de alimentação, higiene e outros, destacando-se que a quantidade de água, do ponto de vista sanitário, é de grande importância para o controle e prevenção de doenças.
Tudo a concluir que a falta de saneamento básico afeta a dignidade do ser humano com o meio natural, pois sem um meio ambiente equilibrado não há como haver um desenvolvimento humano adequado e bem estar existencial. O que qualifica-o ao patamar de direito social cujo oferecimento é um serviço público indispensável.
O serviço de saneamento básico está ligado à prestação do serviço de água e saneamento prestado pelo Poder Público, no que se refere ao abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, e drenagem e manejo de águas pluviais urbanas. Pois, o acesso a tal serviço é o condicionante para a determinação da qualidade de vida da população e da salubridade ambiental. Logo, sua oferta insuficiente – tanto em termos de qualidade quanto quantidade – configura grave problema socioambiental.
O direito social ao saneamento básico tem grande atuação no combate à pobreza e da degradação do meio ambiente, de modo que sua prestação de forma adequada compõe uma defesa eficiente dos direitos fundamentais sociais. Pois, caracteriza-se como princípio de justiça que se garanta a distribuição equitativa de bens primários, básicos para todas as pessoas independentemente de seus projetos de vida ou concepções existenciais. Assim, aquém de um mínimo existencial, cuja falta de acesso a bens materiais e sociais essenciais ao desenvolvimento da condição humana, não se pode falar em indivíduos em exercício igualitário da cidadania na sociedade.
A justiça ambiental congrega princípios éticos que impõem uma nova racionalidade socioambiental que é a especialização da justiça distributiva, pois visa erradicar as mazelas socioambientais que alijam significativa parte da população brasileira de usufruir de vida digna e saudável, em ambiente equilibrado, seguro e hígido.
Isto porque as situações de injustiça ambiental se concentram predominantemente nos locais em que vivem as populações pobres, onde o sistema de ocupação do solo, destruição de ecossistemas e alocação espacial penalizam as condições de saúde dos mais pobres que estão expostos às agressões decorrentes da falta de amparo do serviço público de saneamento ambiental – “a crise de água e do saneamento no mundo é, acima de tudo, uma crise dos pobres” (PNUD, 2012).
3. DAS DIFERENÇAS ENTRE O SERVIÇO PÚBLICO E A ATIVIDADE ECONÔMICA E OS RISCOS DE DANOS AOS PRINCÍPIOS DA UNIVERSALIZAÇÃO E DA MODICIDADE TARIFÁRIA.
É preciso deixar bastante estreme o sentido de serviço público – no caso de privativa atribuição estatal ante a fundamentalidade do saneamento básico – e a mera atividade econômica porque o saneamento básico está sob o regime de direito público e não sujeito às regras de mercado. Logo, é palpável a diferença entre um e outro, o serviço público da mera atividade econômica, quanto aos fins que está vinculado
– um ao bem público, o outro ao lucro –, à relação entre controle e prestação – um à lógica do sistema de defesa constitucional dos direitos fundamentais, outro à lógica do mercado de eficiência econômico-financeira –, às obrigações fiscais – um redistribuindo os encargos tributários entre os entes federativos, o outro buscando elisão fiscal e diminuição da tributação financiadora das políticas públicas –, à supremacia sobre o interesse particular – um buscando justiça distributiva, o outro seus próprios interesses econômicos –, à adequabilidade e universalidade da prestação – um para o benefício coletivo, o outro condicionando a universalização ao custo marginal de implantação do sistema.
O serviço público é prestado sob o regime de retribuição pela prestação e vincula-se à continuidade e qualidade do serviço. A atividade econômica prioriza a prestação financeira do consumidor diferenciando tarifas de serviço que recaem mais pesadamente sobre quem menos pode financeiramente.
Por isto que, sendo os serviços de saneamento básico (ou ambiental) considerados serviços públicos privativos do Estado, devem ser, quando prestados pela iniciativa privada, outorgados mediante fórmulas jurídicas rígidas previstas em lei buscando implementar, em primeira e única instância o que prescreve o art. 23, inciso IX, da Constituição Federal de 1988 como tarefa comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: a melhoria das condições de saneamento básico.
Não se pode, neste diapasão, falar em privatização – ou desestatização – do serviço de saneamento básico, em sentido estrito, visto que, como serviço público privativo do Estado que é, está vinculado a garantias e critérios constitucionais e legais indisponíveis. E, dessa forma, não pode, terminantemente, ser caracterizado como atividade econômica.
Desta maneira, o objetivo prestacional do saneamento básico não pode ser a lucratividade particular e sim a primordial satisfação do interesse público. Se houver possibilidade de auferir lucro em sua prestação, ela será meramente acidental ou secundária frente ao fim público a que se destina, precisamente porque não é atividade econômica. Aliás, se não houvesse nenhuma diferença substancial entre a prestação de serviço público e a mera exploração de atividade econômica, não faria sentido a distinção constitucional entre essas modalidades operacionais da atividade humana.
Assim, o tratamento oferecido pela Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, tem representado risco de dano iminente ao dever da Administração Pública de ofertar a todos o acesso a bens essenciais em função do princípio da universalidade dos serviços públicos, cuja máxima determina que sua prestação não deva distinguir, de qualquer maneira, seus destinatários.
O princípio da universalidade da prestação do serviço público deve ser considerado com a confluência de outros princípios explícitos como legalidade, dignidade da pessoa humana, moralidade, impessoalidade e eficiência. Trata-se de princípio de igualdade dos usuários consumidores que não os distingue, pondo-os na mesma situação de isonomia jurídica sem preferência entre eles.
A universalização deve encarar três facetas do Estado, tanto quanto prestador do serviço quanto poder concedente, quais sejam: (i) a impossibilidade de aumentar a tarifa de remuneração do serviço público sem a oitiva da população; (ii) o dever de diminuir a tarifa caso se verifique um maior lucro para o concessionário do que o previsto em sua oferta; e, por fim, (iii) o imperativo do Estado revisar sempre o sistema de prestação para melhor ofertá-lo com base na verificação dos investimentos realizados.3
Desdobramento do princípio da universalidade que merece destaque especial é a modicidade tarifária para que o acesso ao serviço por todos possa se tornar realidade. Ou seja, o limite do módico está no ponto em que as pessoas deixam de usufruir do serviço público porque não têm possibilidade de arcar com seus custos. No âmbito da prestação do serviço público por empresas privadas, por exemplo, é preciso ter garantias efetivas que a prestação do serviço público seja módica o suficiente para permitir a ampla fruição do mesmo pelos usuários. A Administração Pública está, por conseguinte, impedida de privatizar a prestação do serviço público, sob pena de desvio de finalidade, quando a modicidade (tarifa social) não puder ser garantida.
Esclareça-se, por fim, que a importância do princípio da universalidade no saneamento básico decorre de expressa previsão legal no art. 2º, inciso I, da Lei n. 11.445/07 e não pode se tornar refém de declarações jurídicas tanto genéricas quanto ocas. É necessário garantir condições reais e efetivas para que o acesso seja garantido a todos, segurança esta, infelizmente, não prevista em qualquer parte da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020.
4. A DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIAS DO SANEAMENTO BÁSICO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.
Um exame da Constituição Federal de 1988 identifica que o tema do saneamento básico é tratado de forma imprecisa sem uma posição afirmativa e isenta de dúvida quanto à atribuição para a prestação do serviço público. O que gerou um momento preliminar de obscuridade na determinação do ente federativo responsável pela execução das diversas tarefas que compõem o saneamento básico.
Em termos de diretrizes gerais do sistema de águas, a Constituição atribui à União capacidade legislativa privativa (art. 22, IV), de instituição
3 Xxxxx Xxxx Xxxxxxxx. Teoría general de los servicios públicos. Buenos Aires: Ad-hoc, 1999, pp. 612-613.
de um sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos (art. 21, XIX)4 e seu domínio à União e Estados (art. 20, III e VI, e 26, I)5.
Já sobre a proteção ambiental e controle de poluição – que a falta de saneamento básico gera – a Constituição Federal de 1988 atribui competência legislativa concorrente à União e Estados (art. 24, VI) – o que não elimina a competência legislativa suplementar geral dos municípios (art. 30, II) – sendo dever (competência administrativa) de todos sua proteção e o combate à poluição em todas as suas formas (art. 23, VI).
Em específico sobre o saneamento básico, alguns poucos dispositivos constitucionais tratam da matéria: (a) competência da União para traçar diretrizes, por lei ordinária, sobre o saneamento básico (art. 21, XX)6; (b) competência administrativa comum de todos os entes federativos para a promoção das condições do saneamento básico (art. 23, IX); e (c) competência participativa do Sistema Único de Saúde na formulação da política e da execução de ações de saneamento básico (art. 200, IV).
Garantindo também aos Municípios (art. 30, V) a prestação de serviços públicos de interesse local. O que torna atribuível aos Municípios aqueles serviços que sejam predominantemente de natureza local e que não tenha uma atribuição expressa à União ou aos Estados.
Logo, percebe-se que a disposição das competências constitucionais atribui as normas gerais à União e a execução de tais diretrizes aos Municípios que produzem a legislação ordinária correspondente.
A grande questão sobre a competência do serviço de saneamento básico foi trazida pelo Min. Xxxx Xxxxxxx Xxxx no conhecido Regiões Metropolitanas: regime jurídico (São Paulo: Xxxx Xxxxxxxxx, 1974) que trabalhou a formação dos grandes centros metropolitanos a partir dos anos 30 afirmando que os municípios isoladamente tinham perdido a capacidade de prestar diversos serviços públicos que ganharam dimensão interlocal, diga-se regional, e que, por isto, desde a Emenda Constitucional n. 01/69 houve a necessidade de instituição de serviços metropolitanos que na atual Constituição foi designado no art. 25, § 3º, que não transfere aos Estados-membros a competência municipal relativa à prestação de serviços comuns a vários Municípios, mas lhes atribui a capacidade de
4 Cabendo aos Estados e Municípios o registro, acompanhamento e fiscalização da pesquisa e exploração de recursos hídricos (art. 23, XI).
5 Não obstante a titularidade da União e dos Estados, o Min. Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxx e Xxxxx Xxxxxxx Xxxx
6 Competência exercida com a edição da Lei n. 11.445, de 05 de janeiro de 2007, que estabelece as
Diretrizes Nacionais para o Saneamento básico (DNSB).
Assim, diante da propriedade homeostática das formas jurídicas, a característica complexa da prestação do serviço público de saneamento impõe que o serviço de predominante interesse local ganhe dimensão interlocal devendo o Estado-membro auxiliar na geração de eficiência econômica e administrativa na realização do interesse comum, principalmente em termos de universalização do serviço, qualidade e modicidade de tarifas.
Não obstante, a posição acima disposta restava ainda obscura no direito pátrio a questão da competência da prestação do serviço público de saneamento básico que foi, por fim, dirimida em uma tríade de julgamentos do Supremo Tribunal Federal. Vejamos.
N a A D I 2 3 4 0 / S C ( re l . M i n . R i ca rd o Xxxxxxxxxxx, j. 06/03/2013), o Min. Xxxx Xxxxxxx Xxxx retomou seus estudos prévios à Constituição de 1988 e seguiu adiante para afirmar que a atuação do Estado-membro na promoção da integração entre Municípios não compromete a integridade das competências constitucionalmente atribuídas aos Municípios. Em outras palavras, a atribuição de promoção da atuação integrada dos Municípios pelos Estados-membros não elimina a competência municipal em assunto de interesse local, ainda que interlocal, como é o caso do saneamento básico.8
A novidade do arranjo federativo da Constituição de 1998 foi enriquecer o interesse interlocal ou regional com a capacidade integrativa dos Municípios limítrofes na gestão de interesses comuns auxiliados pelos Estados- membros. Podendo os Municípios, em função dos princípios da eficiência e da economicidade, delegar à entidade da Administração Indireta de âmbito estadual a prestação de tais serviços, como acontece, de fato, nos diversos Estados da Federação9.
7 “importa aclarar que a ideia de região metropolitana deriva da conurbação. As áreas urbanas vão se aglomerando em torno de um Município maior. Eliminando as áreas rurais e fazendo surgir, entre os Municípios, área urbana única, necessário se mostra a integração dos serviços municipais”. (Petição Inicial da ADI 2077/BA, adv. Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxx Xxxxx Xxxxxxx, fl. 11)
8 Mesmo porque a atuação integrada deve se dar de forma consensual mediante a formação de
consórcios públicos regulado pela Lei n. 11.107, de 06 de abril de 2005.
9 “A mim não impressiona a circunstância de a empresa ser estadual. Importante observar é que esse é
um serviço do Município. O poder concedente é o Município. O poder concedente podia conceder a prestação do serviço a uma empresa privada, a uma empresa estadual, a uma empresa federal, a quem desejasse conceder, naturalmente observadas as regras o artigo 175 da Constituição.
A circunstância de o serviço ser prestado ao poder concedente – o Município – por uma empresa que é controlada pelo Tesouro Estadual é irrelevante. Mercê disso não se transfere competência legislativa ao Estado-membro. É o poder concedente, o Município que detém a competência atinente à prestação do serviço. De modo que a circunstância de ser uma empresa estadual efetivamente não tem o condão de transferir competência legislativa ao Estado-membro. Caso contrário afirmaríamos, amanhã, que quem deve estabelecer as regras da prestação do serviço pelo concessionário de serviço público é o próprio particular, não o poder concedente”. (Min. Xxxx Xxxxxxx Xxxx. ADI 2340/SC, fl. 232)
Na mesma ação, outros Ministros sustentaram a mesma posição acerca da competência municipal para a prestação do serviço de saneamento básico. Assim, o Min. Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx, citando Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxx00 e a Min. Xxxxx Xxxxxx00, afirma não ter dúvidas da competência municipal para tratar de serviço de distribuição de água potável – o primeiro dos itens do saneamento básico definido no art. 3º, inciso I, alínea ‘a’, da Lei n. 11.445/07, Lei de Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico.
Já o Min. Xxxxxx Xxxxxx, referindo-se à ADI 1.842/RJ, que mais adiante será tratada, indica que o estabelecimento de regiões metropolitanas não significa simples transferência de competências para o Estado, pois caberia à órgão colegiado (na forma da regulamentação legal do consórcio público, por exemplo) a gestão do serviço de saneamento. Isto porque as circunstâncias naturais do serviço, o elevado custo de implantação e a manutenção adequada do mesmo – tendendo à ampliação universalizante ao longo do tempo – demandam expressivos aportes financeiros que ultrapassam a capacidade da grande maioria dos Municípios brasileiros.
A integração do planejamento e execução do saneamento básico de agrupamento de Municípios (gestão associada; seja por meio do voluntário e preferível consórcio público, seja por meio da compulsória organização de Regiões Metropolitanas), continua ele, privilegia a economicidade e a eficiência de recursos naturais e financeiros, além de permitir subsídios cruzados entre as demandas de serviços de pequenas comunidades e os grandes centros urbanos12.
Retomando a fala do Min. Xxxxxx Xxxxxx, agora na ADI 1842/RJ, afirma que a gestão associada (art. 3º, II, e 24, da Lei n. 11.445/07 – Lei de DNSB c/c art. 241 CF/88) determina o planejamento das ações de saneamento de forma articulada por estrutura colegiada “em que a vontade de um único ente não fosse imposta a todos os demais entes políticos participantes” (ADI 2340/SC, fl. 243).
Aliás, importante da ADI 1842/RJ é o acréscimo de outros pontos de interpretação constitucional do Eg. STF que não foram abordados no julgamento da ADI 2340/SC. Assim, manifestou-se o Min. Xxxxxxxx Xxxxxx que a instituição de serviços públicos de interesse interlocal como o de saneamento básico que permite a formação de regiões metropolitanas, conglomerados urbanos e microrregiões (art. 25, § 3º, CF/88) que dá relevante papel de integração entre Municípios limítrofes e o Estado corresponde ao que idealiza o Pacto Federativo para exercício equilibrado e harmônico dos entes federativos na geração de utilidades para a população.
10 “(...) as obras e serviços para fornecimento de água potável e eliminação de detritos sanitários domiciliares; incluindo a captação, condução, tratamento e despejo adequado, são atribuições precípuas do Município, como medidas de interesse da saúde pública em geral e dos usuários em particular” (Direito Municipal brasileiro, 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, pp. 438-439.
11 “(...) sem dúvida nenhuma, o serviço de prestação de fornecimento de água compete ao município,
ainda que seja atribuído por concessão a uma empresa estadual” (ADI-MC 2340/SC, fl. 135).
12 Atendendo, desta maneira, aos princípios da Lei de DNSB no que concerne à universalização do
acesso, integralidade, eficiência e sustentabilidade econômica e gestão eficiente dos recursos hídricos (art. 2º, incisos I, II, VII e XII, respectivamente, da Lei n. 11.445/07 – Lei de DNSB)
Assim, a Constituição Federal de 1988 não adere a qualquer força centrífuga de desagregação federativa que represente a desconexão entre entes federativos, assim “os problemas e os interesses de cada núcleo urbano passam a interagir de tal modo, que acabam constituindo um sistema socioeconômico integrado, sem que com isso possa admitir-se a ocorrência de violação à autonomia municipal, tendo em vista o comando constitucional autorizador [art. 25, § 3º, CF/88]” (Ac. ADI 1842RJ, Min. Xxxxxxxx Xxxxxx, fl. 24) (grifos opostos).
Ressalte- se que tal integração entre Municípios e Estado não elimina a autonomia municipal nem retira a participação dos Municípios na busca de soluções conjuntas que não é apenas desejável, mas que, segundo o espírito democrático-constitucional, deve nortear tal atuação pelo que “desponta cristalino que as decisões de interesse dessas áreas deverão ser compartilhadas entre os Municípios que as compõem e o Estado” (Ac. ADI 1842RJ, Min. Xxxxxxxx Xxxxxx, fl. 25) (grifos opostos). Logo, a expressão constitucional da regionalização do serviço público de saneamento materializa o compartilhamento de atribuições e serviços públicos em benefício da coletividade.
O Min. Xxxxxxx Xxxxxxx também apresentou ponto relevante ao afirmar que, no caso de serviços regionalizados, a titularidade das competências não pode ser somente do Estado, mas compartidas com este e o Município; tornando-se, portanto, flagrantemente inconstitucional qualquer alijamento do Município do processo decisório relativo à concessão e permissão de serviços de interesse comum como é o caso do saneamento.
Foi o Min. Xxxxxx Xxxxx que aduziu que o Município sendo titular das funções executadas pela região, entre elas o saneamento, não poderá exercer essa titularidade em serviço interlocal sem que obtenha o consenso dos demais Municípios afetados. Por outra aproximação, também não pode o Estado tomar decisão isolada que afete diretamente o interesse local titularizado pelos Municípios. Por isso, se deve reconhecer um vínculo, não de subordinação, mas de cooperação no processo decisório interno a formar um verdadeiro Federalismo de Cooperação.
Em resumo, o interesse regional não faz parte da competência dos Estados13, mas ele é uma transformação do interesse municipal em unidade decisória ou administrativa mediante a associação consensual desses Municípios (gestão associada). Não tendo um Município isolado a soberania da decisão, mas também evitando que qualquer decisão seja tomada sem sua concordância.
Por fim, o Min. Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx destaca ponto inédito nas manifestações anteriores acerca da necessidade da participação popular no planejamento regional (Ac. ADI 1842RJ, Min. Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx, fl. 31 e seguintes). Pois, a participação da sociedade civil no planejamento, regulação e execução de funções públicas de interesse comum ligadas ao saneamento básico concretiza os valores mais sublimes do
13 Aqui o Estado não detém propriamente uma competência material, mas procedimental em criar condições para que os serviços públicos de interesse comum possam ser prestados para toda a população da região.
ordenamento constitucional vigente. Isto porque, sem o controle social (princípio expresso do Lei de DNSB, art. 2º, X, Lei n. 11.445/07) afastar-se-ia os cidadãos do poder e descumpriria o mandamento do artigo 29, XII, CF/88:
Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:
XII - cooperação das associações representativas no planejamento municipal. (grifos opostos)
Portanto, em arremate, o serviço público de saneamento é privativo do Poder Público no qual suas atribuições são inerentes ao interesse local que se incluem na competência originária do Município; ainda que a natureza complexa do saneamento requeira a participação de outros Municípios e do Estado no planejamento, execução e gestão do serviço integrado. Assim, mesmo que se tenha, por delegação ou concessão, atribuída operação de tais serviços à empresa pública ou sociedade de economia pertencente à Estado-membro, não se pode reduzir, direta ou indiretamente, as atribuições constitucionais dos Municípios.
O Município é a representação contemporânea da forma política da comuna. A preservação de sua autonomia político-administrativa é também a proteção da autodeterminação política, pois no espaço municipal é que o cidadão comum está mais próximo de seus representantes e pode demandar suas necessidades pessoais e discutir as coletivas. Daí a importância municipal e de sua participação no processo decisório, sob pena da própria participação popular não ser examinada violando-se a autonomia do cidadão de autodeterminar-se porque os governos locais são o fundamento de qualquer regime democrático.
5. DA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DA LEI N. 14.026, DE 15 DE JULHO DE 2020.
Visando facilitar a exposição articulada dos pontos de inconstitucionalidade material, a presente exordial articulará os temas de
14 Min. Xxxxx Xxxxxx. ADI MC 2077/BA, fl. 09.
impugnação em dois grandes grupos de alterações legislativas trazidas pela Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020; são elas as alterações realizadas na (A) Lei n. 9.984, de 17 de julho de 2.000, para atribuir à Agência Nacional de Águas (ANA) competência para editar Normas de Referência Nacionais sobre o serviço de saneamento; e na (B) Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2.007, para aprimorar (?!) as condições estruturais do saneamento básico no país.
5.1. DAS INCONSTITUCIONAIS MUDANÇAS REALIZADAS NA LEI N. 9.984, DE 17 DE JULHO DE 2.000, QUE DISPÕE SOBRE A CRIAÇÃO DA AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS – ANA.
A Agência Nacional das Águas (ANA) foi criada pela Lei n. 9.984, de 17 de julho de 2.000, como entidade federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), voltada para a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos integrante do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. A agência segue, fundamentalmente, quatro linhas de atuação para a consecução de suas atribuições legais. No campo da regulação, a ANA regula o acesso e o uso dos recursos hídricos da União, bem como os serviços públicos de irrigação e adução de água bruta. Para tanto, emite e fiscaliza o comprimento de outorgas de direito de uso de recursos hídricos, dentro das regras definidas pela Lei das Águas (Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 2.007), e fiscaliza a segurança das barragens outorgadas por ela.
S o b re m o n i to ra m e n to, c a b e à A N A acompanhar a situação dos recursos hídricos do Brasil coordenando a Rede Hidrometeorológica Nacional monitorando o nível, vazão e sedimento dos rios e quantidade de chuvas, buscando prevenir eventos críticos como secas e inundações. Além de, em colaboração com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), definir regras de operação dos reservatórios das usinas hidroelétricas.
Atua também na implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, apoiando programas e projetos de instalação de comitês e agências de bacias hidrográficas. Por fim, a ANA realiza planejamento, elaborando ou participando de estudos estratégicos como Planos de Bacias Hidrográficas, Relatórios de Conjuntura dos Recursos Hídricos, Atlas Brasil de Abastecimento Urbano de Água e Plano Nacional de Segurança Hídrica.
Assim, fica claro que a ANA é prestigiada agência federal de regulação e controle das águas brutas do Brasil. Ela tem, nessa área, oferecido relevante e inegável trabalho na concretização da Lei das Águas (Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 2.007). E justamente pela relevância e importância de suas atividades, elas já lhe conferem responsabilidade suficiente a não demandar acúmulo de novas e inéditas competências, tal como inconstitucionalmente trazidas pela Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, para regulação e fiscalização do saneamento básico brasileiro.
É preciso, portanto, estremar as competências exercidas no sistema brasileiro porque a ANA não faz planejamento nem gestão nem fiscalização dos serviços de saneamento que são titularizados pelos Municípios brasileiros e geridos em boa parte por meio de contratos administrativos com as Companhias Estaduais de
Saneamento Básico (CESB). Logo, não é de se confundir a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 2.007) e o Plano Nacional de Saneamento (Lei n. 11.445/07) que compreende as múltiplas facetas do saneamento básico; assim o abastecimento de água; a coleta, o tratamento e disposição ambiental adequada e sanitariamente segura de águas residuais; o acondicionamento, coleta, transporte e destinação final dos resíduos sólidos; e a coleta de águas pluviais e controle de empoçamentos e inundações.
As competências do saneamento básico são de complexa estruturação, principalmente porque diferenciam-se em planejamento e execução nos 5.570 (cinco mil quinhentos e setenta) municípios brasileiros, cada qual com sua dinâmica de desafios e necessidades.
A criação de novas competências para a ANA implica em prejuízo para as competências já desempenhadas pelo seu quadro de pessoal que, qualificado para as competências originais, não tem conhecimento técnico para as novas competências de saneamento agora a eles, inconstitucional e abruptamente, atribuídas. Imagine-se que a partir de então a XXX terá que supervisionar o saneamento básico em todos os 5.570 municípios brasileiros, tanto os que já acessaram o Orçamento Geral da União (OGU) quanto os que pretendem a ele ter acesso.
Não há pessoal (e os que estão providos em seus cargos não têm competência instalada para tratar deste novo e complexo campo de atuação) nem para estabelecer as pretendidas regulações, quanto o mais fiscalizar o atendimento das Regras de Referência Nacionais instituídas pela inconstitucional Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020.
É forte indicativo de tal situação que os arts. 4º e 5º da Lei impugnada altera a legislação que dispõe sobre o Quadro de Pessoal da ANA (Lei n. 10.768, de 19 de novembro de 2003) para alterar o próprio nome da agência de tal modo a inclui o saneamento básico, mas também, e mais importante, alterar a estrutura da carreira da agência de Especialista em Regulação de Recursos Hídricos para Especialista em Regulação de Recursos Hídricos e Saneamento Básico, o que comprova que em um passe de mágico legal se pretende redefinir as competências dos cargos da ANA sem qualquer preocupação prévia com a qualidade do serviço público de saneamento básico prestado à população brasileira.
Essa alteração legal na nomenclatura dos cargos da XXX é comprovação de que seu desenho institucional não foi feito para regular o saneamento brasileiro que, de qualquer forma, é constitucionalmente titularizado pelos Municípios brasileiro.
Não fosse suficiente é preciso reconhecer que os 239 cargos de Especialista em Regulação de Recursos Hídricos originalmente criados pela versão original da Lei 10.768, em 19 de novembro de 2003, tinha como atribuições originais, pelas quais os servidores prestaram concurso público de provimento efetivo, foram aprovados e nomeados, são:
Art. 3º São atribuições do cargo de Especialista em Recursos Hídricos o exercício de atividades de nível superior de elevada complexidade e responsabilidade, relativas à gestão de recursos hídricos, envolvendo a regulação, outorga e fiscalização do uso de recursos hídricos, à implementação, operacionalização e avaliação dos instrumentos da política nacional de recursos hídricos, à análise e desenvolvimento de programas e projetos de despoluição de bacias hidrográficas, eventos críticos em recursos hídricos e promoção do uso integrado de solo e água, entre outras ações e atividades análogas decorrentes do cumprimento das atribuições institucionais da ANA, referentes à gestão de recursos hídricos.
Parágrafo único. Integram as atribuições do cargo de Especialista em Recursos Hídricos a promoção e o fomento ao desenvolvimento de pesquisas científicas e tecnológicas, voltadas para o conhecimento, o uso sustentado, a conservação e a gestão de recursos hídricos, e a promoção de cooperação e divulgação técnico-científica, bem como a transferência de tecnologia na área.
Tais atribuições do cargo público legalmente conceituado como "conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional que devem ser cometidas a um servidor” (art. 3º, Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1.990) foram alteradas, com substancial acréscimo quantitativo e qualitativo, de uma para outra para:
Art. 3º É atribuição do cargo de Especialista em Regulação de Recursos Hídricos e Saneamento Básico o exercício de atividades de nível superior de elevada complexidade relativas à gestão de recursos hídricos, que envolvam:
I - regulação, outorga, inspeção, fiscalização e controle do uso de recursos hídricos e da prestação de serviços públicos na área de saneamento básico;
II - elaboração de normas de referência para a regulação do uso de recursos hídricos e da prestação dos serviços públicos de saneamento básico;
III - implementação e avaliação dos instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos;
IV - análise e desenvolvimento de programas e projetos sobre:
a) despoluição de bacias hidrográficas;
b) eventos críticos em recursos hídricos; e
c) promoção do uso integrado de solo e água;
V - promoção de ações educacionais em recursos hídricos;
VI - promoção e fomento de pesquisas científicas e tecnológicas nas áreas de desenvolvimento sustentável, conservação e gestão de
recursos hídricos e saneamento básico, envolvendo a promoção de cooperação e a divulgação técnico-científica, bem como a transferência de tecnologia nas áreas; e
VII - outras ações e atividades análogas decorrentes do cumprimento das atribuições institucionais da XXX.
Fica de pronto caracterizado o inconstitucional desvio de finalidade dos servidores titulares do cargo público de Especialista em Regulação de Recursos Hídricos na estrutura originária da ANA, por atentar contra o princípio da legalidade, do concurso público (art. 37, caput, e inciso II, CF/88) posto que a lei ordinária não pode subordinar o servidor de cargo efetivo ao exercício de novas atribuições inexistentes no momento de sua investidura, e, atualmente, há vedação legal à realização de concurso público até 31 de dezembro de 2021 (art. 8º, inciso V, Lei Complementar n. 173, de 27 de maio de 2020). É o mesmo entendimento esposado pelo Min. Xxxxxxxxx xx Xxxxxx em Direito Constitucional Administrativo (São Paulo: Atlas, 2007, p. 137), in verbis:
[...] a partir da Constituição de 1988, a absoluta imprescindibilidade do concurso público não mais se limita à hipótese singular da primeira investidura em cargos, funções ou empregos públicos, impondo-se às pessoas estatais como regra geral de observância compulsória, inclusive às hipóteses de transformação de cargos e à transferência de servidores para outros cargos ou para categorias funcionais diversas das iniciais, que, quando desacompanhadas da prévia realização do concurso público de provas ou de provas e títulos, constituem formas inconstitucionais de provimento no serviço público, pois implicam o ingresso do servidor em cargos diversos daqueles nos quais foi ele legitimamente admitido.
A novel legislação, portanto, determina. Que a ANA passe a órgão regulador central do saneamento brasileiro, pois passa a editar Normas de Referências Nacionais para a prestação de serviços públicos de saneamento básico podendo estabelecer regulação tarifária de serviços, padronização de instrumentos negociais e critérios de contabilidade regulatória. Tudo imposto, em termos de realpolitik, de forma unilateral e de cima a baixo, sob pena de não terem mais os Municípios acesso a qualquer fonte de financiamento com recursos da União ou de qualquer outra entidade da administração pública federal.
É neste diapasão que o art. 3º da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, cria o art. 4º-A na Lei n. 9.884/00 para determinar que a ANA venha a instituir Normas de Referência Nacionais para a regulação da prestação de serviços públicos de saneamento básico por seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras responsáveis.
A inovação legislativa ganha dicção vinculativa quando também o novo art. 4º-B da Lei n. 9.884/00 (art. 3º da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) determina que:
Art. 4º-B. A ANA manterá atualizada e disponível, em seu sítio eletrônico, a relação das entidades reguladoras e fiscalizadoras que adotam as normas de referência nacionais para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico, com vistas a viabilizar o acesso aos recursos públicos federais ou a contratação de financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da administração pública federal, nos termos do art. 50 da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007. (negrito oposto)
E também o § 2º do mesmo art. 4º-B
determina que
§ 2º A verificação da adoção das normas de referência nacionais para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico estabelecidas pela ANA ocorrerá periodicamente e será obrigatória no momento da contratação dos financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da administração pública federal. (negrito oposto)
Tendo como pressuposto a situação atual do sistema de saneamento brasileiro em que o Governo Federal é o detentor da maioria dos recursos financeiros que podem ser alocados ao setor, o dispositivo realiza a quebra do Pacto
Federativo (arts. 1º, 18, 30, incisos I e V, e 34, inciso VII, alínea ‘c’, todos da CF/88) ao concentrar unilateralmente na União prerrogativas regulatórias que conforme interpretação legítima desta Eg. Corte Constitucional, na tríade de decisões sobre a competência federativa do saneamento básico15, são exercidas pelos Municípios brasileiros.
A autonomia política dos entes federativos subnacionais não significa independência e autossuficiências sociais, o que tem convergido nosso sistema federativo a trabalhar o cooperativismo entre as unidades federativas em favor de um projeto nacional comum. Mas isto não quer dizer que se possa unilateralmente adotar a visão centralizada do Governo Federal como representativa de todas as demais esferas federais, principalmente quando, no caso do saneamento básico, se trata de uma competência constitucionalmente exercida por cinco mil quinhentos e setenta municípios.
Ainda que se pretenda assemelhar tal prática às chamadas spending power, o fato é que os dispositivos em conjunto precipitam uma ingerência inconstitucional, e de toda forma nefasta, da ANA sobre as Leis Orgânicas e leis ordinárias municipais e as múltiplas agências reguladoras do setor de âmbito subnacional.
Veja-se que no âmbito do Federalismo brasileiro, os entes federativos têm competências próprias para a auto-organização política e administrativa, inclusive para definir a alocação de seus recursos orçamentários. Não se pode constitucionalmente garantir que a força financeira do orçamento de um ente federativo prevaleça sobre a autonomia constitucional de qualquer outro ente federativo. Assim, há
15 ADI 2.340/SC (rel. Min. Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx, x. 06/03/2013); ADI 1.842/RJ (rel. p/ Xxxxxxx Xxx. Xxxxxx Xxxxxx, x. 06/03/2013); e ADI 2077/BA (rel. Min. Xxxxxxxxx xx Xxxxxx, x. 30/08/2019).
limitação constitucional de como a União possa utilizar sua prerrogativa orçamentária em contraposição à autonomia federativa.
Aliás, esse conflito dos limites constitucionais de ação da União foi analisado pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América em, pelo menos, duas oportunidades.
Em South Dakota vs. Dole (1987), a Suprema Corte dos EUA considerou que o spendig power do Governo Federal dependeria de um teste de constitucionalidade em quatro partes: (1) o spending power deve ser exercido em benefício do interesse geral, (2) as condições de concessão de recursos devem ser claramente indicadas,
(3) as condições devem relacionar um interesse federal em um projeto ou programa nacional, e
(4) o spending power não pode ser usado para induzir entes federativos a praticar ações por eles mesmos consideradas inconstitucionais. Assim, no South Dakota vs. Xxxx ficou especificado que as condições de financiamento induziam South Dakota a contrariar seu poder de auto-organização política e administrativa por meio de legislação própria.
No segundo caso (National Federal of Independent Business vs Xxxxxxxx, 2012), a Suprema Corte dos EUA considerou inconstitucional que o Congresso norte-americano ameaçasse os Estados com a retenção de todos os fundos
federais do Medicaid dentro do Affordable Care Act (“Obamacare”) por não ampliar a cobertura médica da forma como o Congresso determinava. O Chief Justice Xxxxxxx concluiu que reter fundos federais tão substanciais, que representavam, em muitos casos, 10% do orçamento total de um estado, levava os Estados a não ter outra escolha senão submeter-se às exigências do Congresso. Assim, declarou-se a inconstitucionalidade no sentido que o spending power não pode ser usado para coagir os Estados a promulgar legislação ou participar de um programa federal.
É justamente nesta perspectiva que as eufemisticamente chamadas Normas de Referência Nacionais tornam-se coercitivas, porque o atendimento de suas condições é que possibilitarão acesso ao financiamento público da União e dos órgãos ou entidades da administração pública federal. O nominalismo das Normas de Referência Nacionais esconde a natureza político-inconstitucional do dispositivo porque a força do spending power federal não as terá apenas como normas de referência, mas sim impositivas aos entes subnacionais que terão que a elas submeter-se sob pena de, à mingua de recursos, não conseguirem realizar à contento a prestação do serviço público de saneamento.
Sem os recursos do OGU e/ou financiamento dos bancos públicos federais, as Normas de Referência Nacionais acabarão por impor-se como de observância obrigatória copiando a política do Big Stick do Presidente Xxxxxxxx Xxxxxxxxx dentro da conhecida Xxxxxxxx Xxxxxx para a América Latina nos idos de 1.900.
A prática das Normas de Referência Nacionais da XXX interferirá diretamente também nas práticas das demais agências reguladoras dos entes federativos subnacionais. Isto porque a sua atuação será restringida a reproduzir as determinações da ANA, já que serão inúteis quaisquer das ações que venham a desenvolver ante a força político-financeira que a XXX passa a desempenhar no setor de saneamento
básico brasileiro, como facilmente pode-se perceber a partir da leitura do art. 13 da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, quando oferece apoio técnico e financeiro da União para os Municípios que se adequem às amarras normativas da nova legislação. Mas perceba-se que o apoio técnico e financeiro tem condicionantes, inscritas nas etapas de “adaptação" inscritas nos incisos do art. 13, que se não forem seguidas pelos Municípios “aderentes" estes terão que ressarcir a União das despesas incorridas “em caso de descumprimento desse compromisso”.
É o que alias prevê explicitamente a restruturação de todo o capítulo de Regulação (arts. 21 a 27) da Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2.007, alterado pelos art. 7º da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020. Vejamos.
A previsão original estabelecia que o exercício da função de regulação atenderia aos princípios da independência decisória, incluindo autonomia administrativa, orçamentária e financeira da entidade reguladora que agiria com transparência, tecnicidade, celeridade e objetiva das decisões.
No entanto, todo o capítulo foi alterado para sempre incluir que seus objetivos de regulação dependerão da adoção das normas de referência editadas pela ANA, que suas normas relativas às dimensões técnica, econômica e social de prestação dos serviços públicos de saneamento básico deverão observar as diretrizes determinadas pela ANA. Mas, não é só.
Na redação original, caso o Município queria delegar a regulação dos serviços públicos de saneamento básico, poderia fazê-lo a qualquer entidade reguladora constituição dentro dos limites do respectivo Estado.
A nova redação do § 1º do art. 23 da Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2.007, amplia essa delegação a qualquer entidade reguladora, contanto que esta entidade reguladora tenha aderido às normas de referência da XXX tratadas pela legislação como agências reguladoras qualificadas. E mais, caso essa agência reguladora deixe de adotar as normas de referência da XXX (desqualifique-se, no vocabulário da legislação impugnada) seu contrato de prestação de serviços deverá ser encerrado (novos §§ 1º-A e 1º– B16 do art. 23 da Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2.007, instituídos pelo art. 7º da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020).
16 § 1º-A. Nos casos em que o titular optar por aderir a uma agência reguladora em outro Estado da Federação, deverá ser considerada a relação de agências reguladoras de que trata o art. 4º-B da Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, e essa opção só poderá ocorrer nos casos em que:
I - não exista no Estado do titular agência reguladora constituída que tenha aderido às normas de referência da XXX;
II - seja dada prioridade, entre as agências reguladoras qualificadas, àquela mais próxima à localidade do titular; e
III - haja anuência da agência reguladora escolhida, que poderá cobrar uma taxa de regulação diferenciada, de acordo com a distância de seu Estado.
§ 1º-B. Selecionada a agência reguladora mediante contrato de prestação de serviços, ela não poderá ser alterada até o encerramento contratual, salvo se deixar de adotar as normas de referência da ANA ou se estabelecido de acordo com o prestador de serviços.
F i c a e v i d e n t e o i n c o n s ti t u c i o n a l superdimensionamento da autarquia federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) em sobrepor a autonomia dos entes federativos municipais na condução dos serviços públicos do saneamento básico brasileiro.
É, portanto, de se retomar o sentido constitucional de que o Plano Nacional de Saneamento Básico (Lei n. 11.445/07) é formatado de forma coordenada com os Planos Municipais de Saneamento Básico, estes com participação efetiva das comunas. Porém, não constitui o PNSB instrumento restritivo da autonomia municipal tal como agora se constrói via a inconstitucional Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020. Veja-se o caso do art. 48, inciso III, da Lei n. 9.884/00, (art. 7º da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) que determina a "uniformização [pela União] da regulação do setor e divulgação de melhores práticas, conforme o disposto na Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000”, no qual o PNSB passa a ter função cogente, extrapolando sua natureza jurídica de norma geral e orientadora do saneamento básico brasileiro.
Assim, ao coagir os Municípios a respeitar as determinações da ANA ou não ter mais acesso aos recursos públicos da União, viola-se direta e concretamente o Pacto Federativo (arts. 1º, 18, 30, incisos I e V, e 34, inciso VII, alínea ‘c’, todos da CF/88) e a força vinculante da decisão desta Corte Constitucional nas ADI 2.340/SC (rel. Min. Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx, x. 06/03/2013); ADI 1.842/RJ (rel. p/ Xxxxxxx Xxx. Xxxxxx Xxxxxx, x. 06/03/2013); e ADI 2077/BA (rel. Min. Xxxxxxxxx xx Xxxxxx, x. 30/08/2019).
Ainda sob a mesma lógica, os novos incisos do
§ 1º do art. 4º-A da Lei n. 9.984/00 (art. 3º, da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) estabelecem normas de referência, entre elas, sobre (I) padrões nacionais de qualidade e eficiência na prestação, na manutenção e na operação dos sistemas de saneamento básico, (II) regulação tarifária dos serviços públicos de saneamento básico, (III) padronização dos instrumentos negociais de prestação de serviços públicos de saneamento básico firmados entre o titular do serviço público e o delegatário, (V) critérios para a contabilidade regulatória,
(VII) metodologia de cálculo de indenizações devidas em razão dos investimentos realizados e ainda não amortizados ou depreciados, (VIII) governança das entidades reguladoras, (X) parâmetros para determinação de caducidade na prestação dos serviços públicos de saneamento básico, e (XIII) conteúdo mínimo para a prestação universalizada e para a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços públicos de saneamento básico.
Em primeiro lugar, pode a superagência reguladora que pretende que a ANA se transforme regular, via normas de referência sobre (III) a padronização dos instrumentos negociais de prestação de serviços públicos entre o Município e o delegatório; sobre (V) critérios para a contabilidade regulatória; sobre (VII) a metodologia de cálculo de indenizações; sobre parâmetros de caducidade das prestação de serviços públicos; sobre (X) os parâmetros para determinação da caducidade na prestação dos serviços públicos de saneamento básico; sobre o (XIII) conteúdo mínimo da prestação sem violar a competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitação e contratos, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 22, inciso XXVII, CF/88),
competência essa que foi plenamente exercida com a edição das Leis n. 8.112, de 11 de dezembro de 1.990, e n. 13.303, de 30 de junho de 2016?
Mesmo que se argumentasse que as normas de referência editadas pela ANA não violariam o espaço legislativo de normas gerais, pois elas suplementariam a legislação federal, mesmo assim poderiam tais normas de referência afastar o princípio da reserva legal da União, Estados e Distrito Federal para legislar concorrentemente sobre procedimentos em matéria processual (art. 24, inciso XI, CF/88)?
Em segundo lugar, é constitucionalmente viável que a ANA edite normas de referência sobre (I) padrões nacionais de qualidade e eficiência na prestação, na manutenção e na operação dos sistemas de saneamento básico, sobre (II) regulação tarifária dos serviços públicos de saneamento básico, e sobre (VIII) governança das entidades reguladoras sem violar as competências municipais de regulação da matéria prevista no art. 30, incisos I, II e V, CF/8817?
A resposta é claramente negativa para as três perguntas, pois em todas elas a mácula à engenharia constitucional de distribuição de competências e reserva formal de lei é desrespeitada.
É indubitável que a padronização dos contratos de saneamento básico, verbo gratia, a partir das impositivas Regras de Referência Nacionais tarsiana pelo art. 4ª-A, § 1º, inciso III, da Lei n. 9.984/00 (art. 3º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) extrapolam as competências atribuíveis à XXX em violação de cláusulas constitucionais. Além da violação da autonomia federativa dos Municípios (arts. 1º, 18, 30,
incisos I e V, e 34, inciso VII, alínea ‘c’, todos da CF/88), também violam a competência privativa da União para normas gerais de licitação e contratação (art. 22, inciso XXVII, CF/88), e de legislação concorrente da União, Estados e Distrito Federal sobre procedimentos em matéria processual (art. 24, inciso XI, CF/88).
Entenda-se que a competência atribuída pela Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, à ANA a par de poder em princípio atender à condição constitucional de competência privativa da União, de fato não pode ser entendida como uma autorização ilimitada para que editar normas gerais de licitação e contratação do setor de saneamento básico brasileiro sob pena de concretizar-se em verdadeira transferência inconstitucional de competência legislativa para autarquia pública federal realizá-la por meio de atos normativos infralegais. Aceitar-se que, doravante, ato normativo infralegal expedido por Agência Reguladora federal possa substituir a competência privativa legislativa da União inscrita no art. 22, inciso XXVII, CF/88, e concorrente da União, Estados e Distrito Federal prevista no art. 24, inciso XI, CF/88, é exagerar indevidamente os limites de delegação de competência constitucional; ainda mais porque no caso específico a competência legislativa da
17 Art. 30. Compete aos Municípios:
I - legislar sobre assuntos de interesse local;
II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;
União enquadra-se nas hipóteses de aplicabilidade do princípio da reserva legal, do qual se retirar só ser possível a edição de Lei Formal stricto sensu.
No mesmo diapasão inconstitucional está também o art. 3º, § 2º, da Lei 10.768, em 19 de novembro de 2003 (art. 5º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) quando determina que os novos Especialistas sem Regulação de Recursos Hídricos e Saneamento Básico “no exercício das atribuições de natureza fiscal ou decorrentes decorrentes do poder de polícia” poderão interditar estabelecimentos, instalações ou equipamentos, assim como apreender bens ou produtos, e, ainda, requisitar, quando necessário, auxílio de força policial federal ou estadual, em caso de desacato ou embaraço ao exercício de suas funções.
Pois se a titularidade do saneamento básico brasileiro é dos Municípios, então como atribuir tais competências de exercício de Poder de Polícia aos novos Especialistas sem Regulação de Recursos Hídricos e Saneamento Básico da ANA, uma vez que o Poder de Polícia é decorrência direta da distribuição de competências federativas entre os entes federativos e, em seu seio, entre os órgãos que compõem a administração direita e indireta por prerrogativa atribuída pelo princípio da legalidade. Vejamos.
O art. 78 do CTN conceitua o Poder de Polícia como atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a pratica de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público. Desde modo, a restrição de direitos, interesses e liberdades só pode ser realizada por agente público competente, derivando sua competência da estrutura constitucional e legal do país.
Sendo, como claro está, que a competência sobre o saneamento básico brasileiro é municipal, não pode agente administrativo de Autarquia Federal exercer Poder de Polícia para restringir liberdades individuais sem violar a não mais poder a autonomia federativa dos Municípios (arts. 1º, 18, 30, incisos I e V, e 34, inciso VII, alínea ‘c’, todos da CF/88) e o Pacto Federativo (arts. 1º, 18, 30, incisos I e V, e 34, inciso VII, alínea ‘c’, todos da CF/88).
Ainda sobre o tema, o serviço de saneamento básico é de competência constitucional dos Municípios brasileiros, como demonstrado ao norte, que são cinco mil quinhentas e setenta unidades federativas espalhadas por todas as regiões brasileiras com singularidades que impõem a necessidade de tratamento diferenciado para abarcar toda essa diversidade cultural, econômica, política e geográfica.
Isto posto estabelecer padrões nacionais, é não levar em consideração as peculiaridades e desigualdades locais e regionais do vasto território nacional. Por esta razão é que os sistemas de planejamento, regulação e fiscalização têm abrangência muito menor que a nacional, posto que conhece profundamente tais especialidades. As múltiplas agências reguladoras estão próximas o suficiente dos sistemas de saneamento básico municipais e regionais para captar toda a sua complexidade técnica, financeira, política e institucional para estabelecer padrões de qualidade e eficiência alocados às realidades que tratam.
Nessa mesma tônica é o § 6º do mesmo art. 4º-A da Lei n. 9.984/00 (art. 3º, da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) em que novamente se pretende trazer à XXX competência para padronização do setor com a imposição de uniformidade regulatória sem respeitar as diferenças locais e regionais que, justamente por esta razão, foram constitucionalmente atribuídas aos municípios. A padronização via Autarquia federal vinculada ao Ministério de Meio Ambiente acarretará necessariamente em custos muitas vezes incompatíveis aos verdadeiros entes federativos titulares dos serviços de saneamento básico no Brasil, além de gerar despesas aos Municípios sem indicar a fonte de custeio próprio para estas novas despesas ou estimar o impacto orçamentário e financeiro (arts. 29, caput, 30, incisos I e V, e 167, inciso II, CF/88 e art. 113, do ADCT).
A questão fica clara porque o padrão nacional a ser determinado pela ANA que dará acesso ao financiamento público federal, acabará por ser muito elevado para alguns municípios enquanto para outros acabará por ser mais baixo. Aí implementar-se-á uma forma de seleção adversa porque os municípios com sistemas superavitários não dependerão, ou dependerão muito menos, ou sua dependência poderá ser suprida pela abertura do mercado ao investimento privado. Porém, aqueles municípios mais precarizados e que deveriam ser prioritários no sistema de financiamento público não poderão acessá-lo em função das Regras de Referência Nacionais, obrigando-os a despesas orçamentárias que não são capazes de realizar, ou as realizarão de forma cogente em atendimento ao spending power do Governo Federal.
A realidade atual, com intensa burocratização e exigências legais, para acesso ao financiamento público de saneamento já alija os municípios de pequeno porte que não têm capacidade técnica instalada para vencer todas as etapas de planejamento e execução. Com a implementação da inconstitucional Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, há ampliação da desigualdade regional por todo o país com os municípios que já têm o saneamento básico melhor estruturado recebendo mais recursos públicos, e os municípios pobres fadados à miséria social. Violam-se os arts. 3º, inciso III, 165, § 7º, e 170, inciso VII, CF/88.
A alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da União que, na versão original do art. 50 da Lei 11.445/07 (art. 7º, da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020), tinha apenas dois condicionantes, passa a ter nove minuciosos (sem contar as normas de referência da XXX) condicionantes, mostrando que a força orçamentária (spending power) da União passa a determinar com muito mais violência jurídica e econômica a vida dos Municípios que, assim, vão perdendo sua autonomia federativa.
À guisa de exemplo, o inciso III do art. 50 condiciona "a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou com recurso geridos ou operados por órgãos ou entidades da União (…) à observância das normas de referência para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico expedidas pela ANA”.
Ora, ademais de todos os ponto de inconstitucionalidades observados na manifestação ao norte sobre a falta de legitimidade constitucional da ANA exercer o papel de agência reguladora do setor de saneamento brasileiro e de pretender realizar dirigismo exacerbado à custa da autonomia dos Municípios brasileiro, a lista de tais normas de referência a serem editadas pela ANA é composta pelos 13 (treze) incisos do § 1º do art. 4º-A18 da Lei n. 9.984/00 (art. 3º, da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020), o que virtualmente impossível que os Municípios consigam acessar tais financiamentos, sendo que tais dificuldades são proporcionalmente maiores, e portanto mais excludentes, aos menores Municípios brasileiros que têm por hipótese empírica a maior demanda por tais recursos de financiamento. Isto tudo a fácil concluir que há transferência indireta de titularidade do saneamento básico brasileiro dos Municípios à União.
Não fosse suficiente, o inciso VI do art. 50 determina que "a alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou com recurso geridos ou operados por órgãos ou entidades da União (… observe) à regularidade da operação a ser financiada”, considerando-se "operação regular: aquela que observa integralmente as disposições constitucionais, legais e contratuais relativas ao exercício da titularidade e à contratação, prestação e regulação dos serviços”.
18 § 1º Caberá à ANA estabelecer normas de referência sobre:
I - padrões de qualidade e eficiência na prestação, na manutenção e na operação dos sistemas de saneamento básico;
II - regulação tarifária dos serviços públicos de saneamento básico, com vistas a promover a prestação adequada, o uso racional de recursos naturais, o equilíbrio econômico-financeiro e a universalização do acesso ao saneamento básico;
III - padronização dos instrumentos negociais de prestação de serviços públicos de saneamento básico firmados entre o titular do serviço público e o delegatário, os quais contemplarão metas de qualidade, eficiência e ampliação da cobertura dos serviços, bem como especificação da matriz de riscos e dos mecanismos de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das atividades;
IV - metas de universalização dos serviços públicos de saneamento básico para concessões que considerem, entre outras condições, o nível de cobertura de serviço existente, a viabilidade econômico- financeira da expansão da prestação do serviço e o número de Municípios atendidos;
V - critérios para a contabilidade regulatória;
VI - redução progressiva e controle da perda de água;
VII - metodologia de cálculo de indenizações devidas em razão dos investimentos realizados e ainda não amortizados ou depreciados;
VIII - governança das entidades reguladoras, conforme princípios estabelecidos no art. 21 da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007;
IX - reúso dos efluentes sanitários tratados, em conformidade com as normas ambientais e de saúde pública;
X - parâmetros para determinação de caducidade na prestação dos serviços públicos de saneamento básico;
XI - normas e metas de substituição do sistema unitário pelo sistema separador absoluto de tratamento de efluentes;
XII - sistema de avaliação do cumprimento de metas de ampliação e universalização da cobertura dos serviços públicos de saneamento básico;
XIII - conteúdo mínimo para a prestação universalizada e para a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços públicos de saneamento básico.
Ou seja, o inciso atribui à União o poder de controlar as cláusulas do contrato de prestação de serviço, definindo a seu talante as disposições que entenda regular sob pena do Município que não se adequar a elas simplesmente não ter acesso aos recursos federais. Na prática, é o exercício até a última consequência do spending power que inconstitucionalmente centraliza na União todo o poder de controle sobre o saneamento brasileiro, novamente menosprezando a diretiva constitucional de atribuição à competência municipal do saneamento brasileiro.
Apenas os dois exemplos acima dão o tom dos incisos do art. 50 da Lei 11.445/07 (art. 7º, da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) que amplia de forma vertiginosa as dificuldades e a burocracia de acesso aos recursos da União. O número de exigências é tão grande e minucioso que se pode facilmente concluir que a política implementada pela Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, é constitucionalmente perversa porque viola o Federalismo Cooperativo ao impor vontade própria da União por sobre a autonomia dos municípios brasileiros.
Por fim, o art. 4º-A, agora em seu § 8º, Lei n. 9.984/00 (art. 3º, da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) novamente viola a Constituição Federal, agora porque tal parágrafo ao determinar o “compartilhamento de ganhos de produtividade” por meio de Normas de Referência de Regulação Tarifária invade a competência estrita de Lei Complementar (art. 23, inciso IX e parágrafo único, CF/88) porque busca definir o tratamento financeiro que cada ente federativo deve fazer com as receitas financeiras que receber. A distribuição de competências constitucionais garante que a promoção de melhoria das condições de saneamento básico é competência administrativa comum a todos os entes federativos a ser regulada expressamente por Lei Complementar que fixará as normas de cooperação tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem- estar em âmbito nacional.
É por esta razão que a reserva de Lei Complementar Nacional deve ser respeitada, não podendo ser substituída por ato normativo infralegal editado pela Agência Nacional de Águas que restringe inconstitucional e antidemocraticamente todo o pluralismo político determinado pelo mandamento constitucional por meio do processo legislativo no seio do Congresso Nacional.
5.2. DAS INCONSTITUCIONAIS MUDANÇAS REALIZADAS NA LEI N. 11.445, DE 5 DE JANEIRO DE 2.007, QUE ESTABELECE AS DIRETRIZES NACIONAIS PARA O SANEAMENTO BÁSICO.
Como referido anteriormente na cabeça deste item 5, neste segundo momento se fará a articulação dos elementos de inconstitucionalidade material da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, referente às mudanças que realiza na Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2.007.
Inicialmente, discute-se o exercício da titularidade das competências do saneamento básico brasileiro definidas exaustivamente na força vinculante da decisão desta Corte Constitucional nas ADI 2.340/SC (rel. Min. Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx, x. 06/03/2013); ADI 1.842/RJ (rel. p/ Xxxxxxx Xxx. Xxxxxx Xxxxxx, x.
06/03/2013); e ADI 2077/BA (rel. Min. Xxxxxxxxx xx Xxxxxx, j. 30/08/2019) apresentadas em resumo no item 4 ao norte. Isto porque, de início, já se questiona a razão de norma legal trazer a definição de competências constitucionais atribuíveis a cada ente da Federação. É a Constituição Federal no exercício da engenharia constitucional que determina a distribuição de competências, é da Constituição Federal a kompetenz-kompetenz. Não se admite, nem mesmo a razão de repetição da Constituição, que lei ordinária usurpe o papel ontológico da Constituição Federal, porque ao permitir que assim seja feito, é possível indicar problemas de hierarquia normativa quando a lei delimitadora de competências federativas for modificada por lei posterior que redefina o arranjo de competências. Assim, é tão-somente a Constituição o locus natural da matéria, sendo a lei ordinária invasiva quanto à tal matéria e inútil, e portanto void, quando trabalha em desacordo com a Constituição como é o caso presente.
Inaugural sobre a discussão da regionalização definida na lei impugnada estão os equívocos apresentados no art. 3º, incisos XIV e XV, da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) prestação regionalizada por (I) serviços públicos de saneamento básico de interesse comum, e (II) de interesse local.
O primeiro conceito refere-se à regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microregiões (art. 25, § 3º, CF/88) definidas como gestão associada de forma obrigatória quando criadas por Lei Complementar Estadual e formada por agrupamento de municípios limítrofes que tem por escopo a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.
Ocorre, não obstante, que o inciso XIV cria novas condicionantes em espace regulamentar não oferecido pelo texto constitucional, havendo aqui clara extrapolação dos limites de conformação legislativa. Isto porque a normativa impugnada indica que tais serviço regionalizado requer que haja "o compartilhamento de instalações operacionais de infraestrutura de abastecimento de água e/ou de esgotamento sanitário entre 2 (dois) ou mais Municípios”, o que é requisito inconstitucional já que a norma constitucional não impõe tal condicionante nem estabelece espaço de regulamentação legal, já que se trata de norma constitucional de eficácia plena, exatamente por não depender de normatividade futura para regulá-la.
Desta forma, é evidente que o novo requisito trazido pelo art. 3º, incisos XIV, da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) é inconstitucional porque extrapola os limites de conformação legislativa ao criar novo requisito para a estruturação das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microregiões (art. 25, § 3º, CF/88), regulamenta dispositivo constitucional que não lhe atribui espaço regulamentar por se tratar de norma constitucional de eficácia plena. Além de, novamente, invadir a competência constitucional - agora - dos entes federativos estaduais ao limitar o âmbito de sua competência por legislação complementar estadual de instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microregiões, na forma do art. 25, § 3º, CF/88.
Em uma frase: não há obrigatoriedade constitucional das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microregiões terem que, obrigatoriamente, compartilhar, no todo ou em parte, instalações operacionais de
infraestrutura de abastecimento de água e/ou de esgotamento sanitário (v. ADI 1.842/RJ (rel. p/ Xxxxxxx Xxx. Xxxxxx Xxxxxx, x. 06/03/2013).
Por outro lado, o conceito de serviços públicos de saneamento básico de interesse local trazido pelo art. 3º, incisos XV, da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) é restritivo ao afirmar que "funções públicas e serviços cujas infraestruturas e instalações operacionais atendam a um único Município”. Isto porque pode haver interesse local do Município mesmo quando haja infraestruturas e instalações operacionais fora da área territorial municipal. Seja de uma forma ou de outra, a titularidade é sempre municipal, não havendo espaço para que o dispositivo restrinja a distribuição de competências federativas limitando o exercício da competência constitucional para serviços públicos de saneamento básico. Ora, o foto de o Município compartilhar infraestruturas e/ou instalações operacionais não afeta a sua titularidade constitucional de operação dos serviços que somente pode ser afetada pela gestão associada, discricionária na forma de contrato de programa ou convênio de cooperação, ou obrigatória na formação de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microregiões. E mesmo nesses casos não há supressão de competência municipal, mas compartilhamento das decisões de gestão com outros entes federativos todos com o mesmo peso na tomada de decisão colegiada.
Neste sentido é o recente julgamento da ADI 2077/BA, rel. Min. Xxxxxxxxx xx Xxxxxx, x. 30/08/2019.
Ementa: CONSTITUCIONAL. FEDERALISMO E RESPEITO ÀS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA. NORMAS DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DA BAHIA, COM REDAÇÃO DADA PELA EMENDA CONSTITUCIONAL 7/1999. COMPETÊNCIAS RELATIVAS A SERVIÇOS PÚBLICOS. OCORRÊNCIA DE USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIAS MUNICIPAIS (ART. 30, I E V). PARCIAL PROCEDÊNCIA. 1. As regras de
distribuição de competências legislativas são alicerces do federalismo e consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito. Princípio da predominância do interesse.
2. A Constituição Federal de 1988, presumindo de forma absoluta para algumas matérias a presença do princípio da predominância do interesse, estabeleceu, a priori, diversas competências para cada um dos entes federativos – União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios – e, a partir dessas opções, pode ora acentuar maior centralização de poder, principalmente na própria União (CF, art. 22), ora permitir uma maior descentralização nos Estados-Membros e nos Municípios (CF, arts. 24 e 30, inciso I). 3. O art. 59, V, da legislação
impugnada, ao restringir o conceito de “interesse local”, interferiu na essência da autonomia dos entes municipais, retirando-lhes a expectativa de estruturar qualquer serviço público que tenha origem ou que seja concluído fora do limite de seu território, ou ainda que demande a utilização de recursos naturais pertencentes a outros entes. 4. O artigo 228, caput e § 1º, da Constituição Estadual também incorre em usurpação da competência municipal, na medida em que desloca, para o Estado, a titularidade do poder concedente para prestação de serviço público de saneamento básico, cujo interesse é
predominantemente local. (ADI 1.842, Rel. Min. XXXX XXX, Rel. P/ acórdão Min. XXXXXX XXXXXX, DJe de 13/9/2013). 5. As normas previstas nos artigos 230 e 238, VI, não apresentam vícios de inconstitucionalidade. A primeira apenas possibilita a cobrança em decorrência do serviço prestado, sem macular regras constitucionais atinentes ao regime jurídico administrativo. A segunda limita-se a impor obrigação ao sistema Único de Saúde de participar da formulação de política e da execução das ações de saneamento básico, o que já é previsto no art. 200, IV, da Constituição Federal. 6. Medida Cautelar confirmada e Ação Direta julgada parcialmente procedente. (negrito opostos)
Por um olhar invertido sobre a previsão dos inconstitucionais incisos XIV e XV do art. 3º da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) exclui, portanto, da regionalização de serviços o Município que compartilha infraestruturas e/ou instalações operacionais e não integra regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microregiões. O que não é constitucionalmente aceitável.
Ainda na esfera da prestação regionalizada do saneamento básico está o caso do Bloco de Referência a ser instituído pela União na forma de agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes “formalmente criado por meio de gestão associada voluntária dos titulares” (art. 3º, incisos VI, alínea c, e 52, § 3º, da Lei n. 11.445/07 - art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020).
Ocorre que o art. 15, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, determina que a competência do art. 52, § 3º, da Lei n. 11.445/07 "somente será exercida caso as unidades regionais de saneamento básico não sejam estabelecidas pelo Estado no prazo de 1 (um) ano da publicação desta Lei”.
De tudo concluí-se que a regionalização pretendida pela legislação em estudo não deriva da Constituição Federal como todos os outros modelos de regionalização, mas apenas de uma previsão lega e de forma suplementar, que não lhe atribui a legitimidade necessária para estabelecer um modelo diverso de prestação de um serviço público constitucionalmente titularizado pelos Municípios brasileiro.
Veja que nas regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões a competência é constitucionalmente atribuída aos Estados, já na gestão associada do saneamento básico a competência permanece inalteradamente exercida pelos Municípios de que, de forma, completamente voluntária aderem ou não. Já o Bloco de Referência tem natureza legal (e, portanto, inconstitucional) ao atribuir à União a atribuição de suplementar a competência estadual para coordenar a gestão associada do saneamento básico.
A mesma sorte de inconstitucionalidade é encontrada no art. 8º, § 5º, da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) que define que a formação de Região Integrada de Desenvolvimento (RIDE) depende da anuência dos Municípios que a integram. Ora, a RIDE é previsão constitucional do art. 43, CF/ 88 e segue a mesma hermenêutica constitucional do art. 25, § 3º, CF/88 quanto às regiões
metropolitanas, aglomerações urbanas e microregiões, somente aquela é competência da União, esta dos Estados. Mas, em um ou outro caso, a participação dos Municípios é cogente para fins de melhor eficiência na gestão do serviço público de saneamento.
Eis que o art. 8º, caput e incisos I e II, da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) especifica que a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico são dos Municípios e Distrito Federal (este no exercício da função municipal) no caso de interesse local e do (II) “Estado, em conjunto com os Municípios que compartilham efetivamente instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual, no caso de interesse comum”.
Aqui é necessário dizer, como dito no parágrafo mais acima, que a Lei ordinária não deve estabelecer distribuição de competências federativas e quando o faz deve fazê-lo na estrita repetição do determinado pela Constituição - e neste sentido é letra de lei inútil. Mas o risco maior está em tratar com imprecisão a competência federativa constitucional como faz a legislação impugnada. Isto é assim, porque a competência nas palavras do Min. Xxxxxx Xxxxxx, referindo-se à ADI 1.842/RJ, é que o estabelecimento de regiões metropolitanas não significa a simples transferência de competências ao Estado como a leitura do inciso II do art. 8º, acima transcrito, dá a entender.
A titularidade constitucional a fortiori é municipal que, no caso de exercício da competência do art. 25, § 3º, CF/88, é atribuível a órgão colegiado, na forma de consórcio público por exemplo, para a gestão do serviço de saneamento. Isto porque no interesse interlocal ou regional, dá-se a capacidade integrativa e cooperativa dos Municípios limítrofes auxiliados pelo Estado. Não há que se falar in casu de competência do Estado, em primeiro lugar, como previsto no dispositivo do inciso II, o que, como já afirmado, mais atrapalha o entendimento do que ajuda.
Neste caso, a fraca redação do dispositivo, merece quanto menos a interpretação conforme a Constituição para repetir o decidido nas ADI 2.340/SC (rel. Min. Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx, x. 06/03/2013); ADI 1.842/RJ (rel. p/ Xxxxxxx Xxx. Xxxxxx Xxxxxx, x. 06/03/2013); e ADI 2077/BA (rel. Min. Xxxxxxxxx xx Xxxxxx, j. 30/08/2019) não deixando margem à qualquer que o art. 25, § 3º, CF/88 não transfere aos Estados a competência inerentemente municipal, mas lhes atribui tão-somente a capacidade de instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões visando a integração da organização, do planejamento e da execução de serviços comuns. Assim, o planejamento das ações de saneamento passa a ser feito de forma articulada por estrutura colegiada “em que a vontade de um único ente não fosse imposta a todos os demais entes políticos participantes” (ADI 2340/SC, fl. 243).
Tão logo se tome plena consciência que a competência é municipal, perceber-se-á o quanto inconstitucional é a previsão do art. 8º, §1º, incisos I e II, da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) quando, após estabelecer, de forma despicienda já que a lei ordinária não pode manietar o legítimo exercício da competência constitucional dos Municípios, a possibilidade de formalização de consórcios intermunicipais de saneamento básico, exclusivamente composto de Municípios, veda "a
formalização de contrato de programa com sociedade de economia mista ou empresa pública, ou a subdelegação do serviço prestado pela autarquia intermunicipal sem prévio procedimento licitatório”.
Em primeiro ponto, é de se perceber que o inciso I não pode determinar que os consórcios públicos sejam apenas composto por municípios. A escolha de integração ao consórcio público é de plena liberdade e oportunidades dos ente federativos, assim, não há razão constitucional suficiente e razoável para que a legislação imponha que o consórcio público tenha que necessariamente ser intermunicipal composto exclusivamente por Municípios. Isto porque a liberdade conformativa do interesse público pode moldar outras formas de organização dos Consórcios Públicos com variado arranjo participativo de entes federativos.
Esse é o mesmo equívoco do inciso II quando delimita por lei competência que é atribuída pela Constituição, uma vez que não deve ser ela, a lei, que vá determinar o objetivo do Consórcio, mas tão-somente seus consorciados.
Em segundo ponto e em exame mais detido da
vedação da segunda parte do inciso II.
Ora, qual a envergadura da autoridade de lei ordinária para interferir no campo de atribuições administrativas municipal quanto à forma de exercício da gestão administrativa de serviços de saneamento básico de interesse local, posto que a formação de consórcios públicos de saneamento básico, instrumentalizado por contrato de programa, privilegia a economicidade e a eficiência de recursos naturais e financeira, além de permitir os subsídios cruzados?
A autonomia federativa dos Municípios (arts. 1º, 18, 30, incisos I e V, e 34, inciso VII, alínea ‘c’, todos da CF/88) não pode ser reduzida pelo mandamento legal da lei ordinária que a impeça de escolher a forma contratual do instrumento de gestão associada que a prestação do serviço de saneamento deverá adotar dentro de sua avaliação autônoma de melhor atendimento ao interesse público que pode ser definido pelas razões próprias do consórcio intermunicipal de saneamento básico como sendo o contrato de programa com sociedade de economia mista ou empresa pública regulado pela Lei n. 11.107, de 6 de abril de 2020.
Ainda o mesmo art. 8º, agora no § 4º da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) determinar que na gestão associada entre os entes federativos para o exercício de funções relativas aos serviços públicos de saneamento não é necessária, em caso de convênio de cooperação, a necessidade de autorização legal, deixando entender que basta a manifestação dos Chefes dos Poderes Executivos.
É preciso diferenciar os convênios de cooperação não são submetidos às mesmas práticas procedimentais de aprovação que os convênio em geral que tratam da assunção de compromisso entre os envolvidos cingindo-se a regular simples atos de gestão. Estes, na forma de diversos entendimento deste Supremo Tribunal Federal (ADI 676/RJ, Rel. Min. Xxxxxx Xxxxxxx, DJ 29/11/1996; ADI 1.865/SC, Rel. Min.
Xxxxx xx Xxxxx, DJ 12/03/1999; ADI 1.857/SC, Rel. Min. Xxxxxxx Xxxxx, DJ 07/03/2003; ADI 342/PR, Rel. Min. Xxxxxx Xxxxxxx, DJ 11/04/2003), não comportam aprovação em lei para evitar a ingerência do Poder Legislativo sobre as atribuições próprias do Executivo. Porém, os convênios de cooperação são convênios especiais que envolvem compartilhamento de competências e são regidos diretamente pelo art. 241, CF/8819 que determina sua disciplina por meio de lei formal.
A própria legislação em análise, tanto na versão originária quanto na versão modificada, do art. 3º, inciso II, trata a gestão associada como associação voluntária entre entes federativos por convênio de cooperação ou consórcio público, conforme disposto no art. 241 da Constituição Federal.
Ou seja, os convênios de cooperação dependem de promulgação de lei específica por cada ente subnacional envolvido, o que estabelece a necessária participação do Poder Legislativo na formatação desse modelo de gestão associada porque tais convênios permitem que os municípios conveniados estabeleçam compartilhamento da competência constitucional do saneamento. E é exatamente em razão deste compartilhamento de competência própria que resta legítima a participação do poder legislativo local na definição do conteúdo material do quanto conveniado. A redução prevista na norma impugnada é claramente inconstitucional porque atribui a exclusividade do Poder Executivo na definição do convênio de cooperação em saneamento reduzindo impropriamente a competência das Câmaras de Vereadores de definirem política e democraticamente, como órgão plural e diverso que são, o interesse público da comuna, na forma do art. 29, caput e inciso XI, CF/88.
Em que pese à inexistência de norma específica de disciplina do convênio de cooperação, como existe no caso dos contratos de programa (Lei
n. 11.107, de 6 de abril de 2020), nem por isso é dispensável a autorização legal específica para sua celebração na forma definida pelo art. 241, CF/88, sendo tal lei necessária para a manifestação inequívoca da adesão à determinado convênio de cooperação, cujo procedimento envolve a subscrição do protocolo de intenção e sua ratificação por meio da lei específica de cada entidade política conveniada.
A s s i m , m a i s u m a v e z e n c o n t r a - s e inconstitucionalidade material na norma impugnada desta vez afrontando a competência dos Poderes Legislativos locais de editar lei específica de concordância na formação de convênio de cooperação para os serviços de saneamento básico (art. 241, c/c arts. 2º, 18, 29, caput e inciso XI, 30, incisos I e V, 35, inciso IV, todos da CF/88).
Não é outra a sorte do art. 8º-A, da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) quando determina a adesão facultativa dos titulares dos serviços públicos de saneamento às formas de prestação regionalizada. Isto porque a previsão de formação de regiões metropolitanas, aglomerações
19 Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.
urbanas e microregiões estabelecidas pelo art. 25, § 3º, CF/88, impõe o arranjo regional de forma cogente e não voluntária, ainda que não restrinja a autonomia municipal. A voluntariedade de adesão à unidades regionais ou por blocos só aparece na gestão associada por consórcio público ou por convênio de cooperação.
Aliás, a matéria já foi exaustivamente tratada por este E. Supremo Tribunal Federal na ADI 1.842/RJ, rel. p/ Xxxxxxx Xxx. Xxxxxx Xxxxxx, j. 06/03/2013, sintetizados nos pontos 3 e 4 da Ementa do Acórdão nos seguintes termos:
3. Autonomia municipal e integração metropolitana.
A Constituição Federal conferiu ênfase à autonomia municipal ao mencionar os municípios como integrantes do sistema federativo (art. 1º da CF/1988) e ao fixá-la junto com os estados e o Distrito Federal (art. 18 da CF/1988).
A essência da autonomia municipal contém primordialmente (i) autoadministração, que implica capacidade decisória quanto aos interesses locais, sem delegação ou aprovação hierárquica; e (ii) autogoverno, que determina a eleição do chefe do Poder Executivo e dos representantes no Legislativo.
O interesse comum e a compulsoriedade da integração metropolitana não são incompatíveis com a autonomia municipal. O mencionado interesse comum não é comum apenas aos municípios envolvidos, mas ao Estado e aos municípios do agrupamento urbano. O caráter compulsório da participação deles em regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas já foi acolhido pelo Pleno do STF (ADI 1841/RJ, Rel. Min. Xxxxxx Xxxxxxx, DJ 20.9.2002; ADI 796/ES,
Rel. Min. Xxxx xx Xxxxxxxx, DJ 17.12.1999).
O interesse comum inclui funções públicas e serviços que atendam a mais de um município, assim como os que, restritos ao território de um deles, sejam de algum modo dependentes, concorrentes, confluentes ou integrados de funções públicas, bem como serviços supramunicipais.
4. Aglomerações urbanas e saneamento básico.
O art. 23, IX, da Constituição Federal conferiu competência comum à União, aos estados e aos municípios para promover a melhoria das condições de saneamento básico.
Nada obstante a competência municipal do poder concedente do serviço público de saneamento básico, o alto custo e o monopólio natural do serviço, além da existência de várias etapas – como captação, tratamento, adução, reserva, distribuição de água e o recolhimento, condução e disposição final de esgoto – que comumente ultrapassam os limites territoriais de um município, indicam a existência de interesse comum do serviço de saneamento básico.
A função pública do saneamento básico frequentemente extrapola o interesse local e passa a ter natureza de interesse comum no caso de
instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, nos termos do art. 25, § 3º, da Constituição Federal.
Para o adequado atendimento do interesse comum, a integração municipal do serviço de saneamento básico pode ocorrer tanto ADI 1842 / RJ voluntariamente, por meio de gestão associada, empregando convênios de cooperação ou consórcios públicos, consoante o arts. 3º, II, e 24 da Lei Federal 11.445/2007 e o art. 241 da Constituição Federal, como compulsoriamente, nos termos em que prevista na lei complementar estadual que institui as aglomerações urbanas.
A instituição de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões pode vincular a participação de municípios limítrofes, com o objetivo de executar e planejar a função pública do saneamento básico, seja para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, seja para dar viabilidade econômica e técnica aos municípios menos favorecidos. Repita-se que este caráter compulsório da integração metropolitana não esvazia a autonomia municipal. (negritos opostos)
Xxxxx, insta indicar que o Exmo. Presidente da República utilizou-se da prerrogativa do cargo para vetar por inconstitucionalidade o § 4º do art. 3º do Projeto de Lei 4.162/2019 que foi parcialmente convertido na Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, que ora se impugna por patentes e múltiplas inconstitucionalidades.
A Mensagem n. 396, de 15 de julho de 2020, foi encaminhada ao Congresso Nacional nos seguintes termos:
Ouvidos, os Ministérios da Justiça e Segurança Pública e da Economia manifestaram-se pelo veto aos seguintes dispositivos:
§ 4º do art. 3º da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, alterado pelo art. 7º do projeto de Xxx
§“ 4º Fica facultado aos Municípios, detentores da titularidade do serviço, a participação nas prestações regionalizadas de que trata o inciso VI do caput deste artigo.”
Razões do veto
“A propositura legislativa, ao estabelecer por intermédio de emenda parlamentar, a facultatividade dos Municípios, detentores da titularidade do serviço, a participação nas prestações regionalizadas, viola o § 3º do art. 25 da Constituição da República, ante a compulsoriedade da participação dos Municípios em regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas (v. g. ADI 1842, Rel. Min. Xxxxxx Xxxxxx, x. 28/02/2013).” (grifos do original)
Assim, resta límpido que pelas razões apresentadas ao norte somados aos próprios argumentos da mensagem de Veto Presidencial por Inconstitucionalidade, o dispositivo do art. 8º-A é também materialmente inconstitucional.
Ainda sobre os dispositivos legais do exercício da titularidade do saneamento básico, o art. 8º-B, da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) regulamenta estranhamente que “no caso de prestação regionalizada dos serviços de saneamento, as responsabilidades administrativa, civil e penal são exclusivamente aplicadas aos titulares dos serviços públicos de saneamento, nos termos do art. 8º desta Lei”.
Ora, o dispositivo é minimamente obscuro quanto à responsabilização dos entes federativos mostrando mais uma vez que o exercício por lei ordinária de atribuição que é própria da Constituição acaba mais por trazer dúvidas que soluções.
A prestação regionalizada é aquela que um único prestador atende dois ou mais titulares (na forma originária do art. 3º, inciso VI), ou ainda modalidade de prestação integrada de um ou mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico em determinada região cujo território abranja mais de um Município estruturada sob a forma de região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião, bem como unidade regional de saneamento básico ou bloco de referência (na forma alterada do art. 3º, inciso VI).
O primeiro modelo é instituído por Lei Complementar estadual de acordo com o art. 25, § 3º, da CF/88 e nos termos do Estatuto da Metrópole (Lei n. 13.089, de 12 de janeiro de 2015). O segundo é instituído por Xxx Xxxxxxxxx
estadual constituída por agrupamento de municípios não necessariamente limítrofes para atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, ou para dar viabilidade econômica e técnica aos Municípios menos favorecidos; e o terceiro modelo é estabelecido pela União, subsidiariamente aos Estados, congregando Municípios não necessariamente limítrofes para gestão associada voluntária do saneamento básico.
Assim, múltiplas as formas de gestão associada em que diferentes entes federativos concorrem para a formação de modelos diversos de gestão associada sendo pois a responsabilidade atribuível a qualquer dos entes federativos envolvidos no modelo em questão. Sendo inoportuna a restrição redacional do art. 8º-B quando atribui responsabilidades administrativa, civil e penal exclusivamente aos titulares dos serviços públicos de saneamento, já que se a gestão é associada então não há qualquer razão constitucional e de direito para que tais responsabilidade recaiam exclusivamente sobre os Municípios isentando a responsabilidade de Estados e da União quando em gestão associada.
Não pode a gestão associada criar duas categorias de entes federativos quando as benesses do interesse público em prover o serviço público de saneamento básico de qualidade aderem a todos os entes federativos em forma cooperativa. Assim, na forma do inconstitucionalmente regulado, os Municípios seriam os únicos que arcariam com responsabilidades administrativa, civil e penal não havendo razão, proporcionalidade ou motivação que constitucionalmente chancele tal isenção de responsabilidade.
Ora, se a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito públicos é objetiva de forma indistinta para Municípios, Distrito Federal,
Estados e União (art. 37, § 6º, CF/88), como garantir espaço de constitucionalidade há normativa que pretende sem que nem porque isentar União e Estados de responsabilidades administrativa, civil e penal na execução compartilhada dos serviços de saneamento básico por qualquer um dos três modelos de gestão associada?
Vê-se a todo talante que o art. 8º-B, da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) viola à Constituição por criar isenção legal de responsabilidade sem atender princípios normativos constitucionais de moralidade, razoabilidade e responsabilidade (art. 37, caput e § 6º, CF/88).
Neste ponto de exame das mudanças inconstitucionais trazidas a Lei das Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico, examina-se em bloco os arts. 10, 10-A e 10-B da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020), posto descreverem conjuntamente a nova realidade pretendida pelo texto impugnado que é excluir o contrato de programa para serviços de saneamento básico substituindo-os pelos contratos de concessão que mudam a ótica do sistema atual para aquela em que prevalece o interesse privado da atividade econômica com riscos concretos aos princípios da isonomia da cobertura dos direitos do direito social ao saneamento básico que tem forte correlação com a preservação da dignidade humana, do combate à pobreza e à degradação do meio ambiente (justiça socioambiental), cuja especialização no setor de saneamento se traduz na universalização de acesso ao saneamento e da modicidade tarifária pela prestação do serviço.
A alteração legal do art. 10 passa a vedar que a prestação dos serviços públicos de saneamento básico que não integre a administração do titular seja disciplinada por "contrato de programa, convênio, termo de parceira ou outros instrumento de natureza precária".
Esse tipo de vedação simplesmente revogada para o saneamento brasileiro toda a legislação de consórcio público prevista na Lei n. 11.107, de 6 de abril de 2020, mesmo que estabeleça, em seu § 3º, que os contratos de programa regulares vigentes permaneçam em vigor até o advento do seu termo contratual.
Ora tal situação simplesmente desestrutura todo a organização do saneamento brasileiro apoiado justamente na parceria de trabalho entre os titulares municipais e as Companhias Estaduais de Saneamento Básico. Vejamos.
A recente história do saneamento básico brasileiro até a década de 1970 é que sua prestação, em sua grande maioria, era realizada pelos Municípios por meio de uma gama muito variada de empresas municipais com organizações administrativas e financeiras muito distintas entre si; mas que tinham um ponto em comum: a pouca eficiência financeira e técnica. Predominava um serviço de saneamento ineficaz e insuficiente, sem planejamento ou estudos acerca do crescimento populacional e da urbanização das cidades.
Este modelo consegui expandir a cobertura do saneamento básico pelo sistema de caixa único em que as tarifas dos serviços prestados eram iguais para todos os Municípios que realizavam assim um sistema de subsídio cruzado, no qual as localidades lucrativas financiavam a prestação do serviço às localidades com menor capacidade de pagamento e/ou maiores dificuldades técnicas de implantação do sistema.
Não obstante o sucesso, a implantação das CESBs não se preocupou em definir com maior precisão a quem cabia a titularidade dos serviços principalmente porque todo o sistema era financiado pela União. Assim, as CESBs funcionavam com concessões municipais de longo período – ou mesmo sem formalização da concessão, mas com a realidade fática da prestação do serviço de saneamento – tornando os Municípios menos capazes de exercer suas competência inerentes de planejamento, gerenciamento e execução do saneamento básico.
A diversidade dos modelos de prestação de serviços públicos de saneamento no Brasil – comprovados pelo sucesso desigual da cobertura entre Norte e Sul do Brasil – mostra um quadro de variada complexidade e múltiplas formas de prestação do serviço; são serviços estaduais, regionais, municipais públicos da administração direta, municipais público da administração indireta e municipais privados – ainda que haja notória predominância dos serviços estaduais de saneamento básico.
A hipótese mais corrente desta predominância dos serviços estaduais é a inanição produzida pela omissão generalizada dos governos locais de assumirem suas competências e pelo gradual aumento da urbanização aliada à formação de grande núcleos urbanos conurbados que resultam na insolúvel inviabilidade técnica e financeira do saneamento municipal funcionar de forma eficiente na imensa maioria dos Municípios brasileiros.
As características econômicas das populações servidas e as condições técnicas de prestar o serviço segundo a singularidade espacial de cada localidade, inviabilizam que a fundamentalidade do serviço seja adotado sem o aporte financeiro e técnico das CESBs que integram as comunas em um sistema único.
As conurbações urbanas e as distribuições naturais das bacias hidrográficas tornam totalmente inviável a separação dos sistemas de saneamento por Município porque as redes de abastecimento, as adutoras e as estações tratamento de água estão integradas e são interdependentes21. Daí a impossibilidade que os Estados tenham decisão soberana sobre o assunto – mormente sobre a privatização de suas
20 Até 1986 com sua extinção, o BNH era o órgão responsável pelo planejamento dos projetos de saneamento e pela política nacional de desenvolvimento urbano.
21 O caso ainda é mais grave em regiões em que o oferecimento de recursos hídricos é
quantitativamente insuficiente para atender à população havendo necessidade de interligação de sistemas e de transposição de bacias hidrográficas.
CESBs como se planeja – sob pena que os Municípios localizados em sua área de influência sofrerem diretamente com problemas em suas redes locais de distribuição; sob pena deles tornarem-se reféns de processos decisórios que inconstitucionalmente não tomariam parte.
Aparte de todos estes fatos tem-se chegado a segunda década do século XXI com resultados desastrosos da cobertura, quantitativa e qualitativa, do serviço de saneamento básico no Brasil inteiro. Ainda que a história recente do saneamento brasileiro tenha respondido por substanciais avanços regulatórios e de investimentos.
A criação da Secretaria Nacional de Saneamento no âmbito do Ministério das Cidades, atualmente no Ministério do Desenvolvimento Regional, como órgão coordenador da Política Nacional de Saneamento Básico em 2003, a criação das Câmaras Técnicas nos Conselhos das Cidades e a realização de Conferências Nacionais das Cidades foram ações públicas que permitiram a retomada do financiamento, da seleção pública de projeto, a integração e racionalização das ações de saneamento básico com estudos técnicos capazes de identificar a necessidade de investimentos.
E que para tudo isso pudesse concorrer positivamente foram essenciais a aprovação das Leis dos Consórcios Públicos (Lei n. 11.107, de 6 de abril de 2020), a Lei Nacional do Saneamento Básico (Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2007) e a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei n. 12.305, de 2 de agosto de 2010). Do que se seguiu a implantação do PAC I e II e do Programa Água para Todos condizente com o Plano Nacional de Saneamento com horizonte de 20 anos, período de 2014 a 2033, construído com ampla participação de diversos setores com destaque para o Conselho Nacional da Saúde (CNS), o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), e o Conselho das Cidades (CONCIDADES).
Tudo a mostrar que, apesar dos grandes desafios do setor, o caminho para alcançar a metas definidas pelo PLANSAB estão em pleno desenvolvimento , ainda que o discurso oficial dos gestores públicos seja fala de recursos financeiros disponíveis para aprimorar o sistema, e que tal aporte só é possível com a participação da iniciativa privada e que de qualquer outro modo não é possível realizar os investimentos necessário para a verdadeira universalização dos serviços.
Neste novo viés, ressurge a velha solução da privatização do saneamento básico como modelo de direcionar recursos privados para fazer frente aos investimento financeiros necessários, bem como melhorar a eficiência da prestação de serviços no setor.
Essa “nova" solução ganha concretude com a Medida Provisória n. 727, 12 de maio de 2016, convertida na Lei n. 13.334, de 13 de setembro de 2016, que cria o Programa de Parcerias de Investimento (PPI) “destinado à ampliação e fortalecimento da interação entre o Estado e a iniciativa privada por meio da celebração de contratos de parceria para a execução de empreendimentos públicos de infraestrutura e de outras medidas de desestatização” (art. 1º, Lei n. 13.334/16).
O PPI, resgata o Programa Nacional de Desestatização (PND) do Governo Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, previsto na Lei n. 9.491, de 9 de setembro de 1997, atribuindo ao BNDES o papel de garantidor das condições financeiras e técnicas para a estruturação dos contratos de parcerias de investimentos e medidas de desestatização realizando estudos e modelagem de projeto de privatização até a assinatura dos contratos de concessão à iniciativa privada.
Mas a estrutura jurídica do saneamento brasileiro era entrave importante para que os processos de privatização pudessem seguir adiante, principalmente pela formação de consórcios públicos com a execução de contratos de programa, daí a primeira tentativa de estabelece um “novo marco regulatório para o saneamento brasileiro” deu-se com a Medida Provisória n. 844, de 6 de julho de 2018, que caducou sem apreciação pelo Congresso Nacional, e a Medida Provisória n. 868, de 27 de dezembro de 2018, que da mesma forma perdeu validade.
Foram então resgatados o Projeto de Lei n. 10.996, de 20 de novembro de 2018, o Projeto de Lei n. 3.261, de 12 de junho de 2019, e o Projeto de Lei n. 4.162, de 02 de agosto de 2019, que, então, foi sancionado transformando-se na Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, ora impugnada.
A vedação do contrato de programa, portanto, previsto no art. 10 pretende desorganizar a gestão associada de serviços públicos, autorizada por consórcios públicos ou convênios de cooperação entre entes federados, na forma do consagrado no artigo 241 da CF/88 regulamentada pela Leis dos Consórcios Públicos (Lei n. 11.107, de 6 de abril de 2020) que define regras para a prestação associada dos serviços de saneamento por meio do Contrato de Programa integrado por entidades de direito público ou privado que pertençam à administração direta e indireta de qualquer ente da federação.
É exatamente nesse sentido que o Contrato de Programa representa, para o saneamento básico brasileiro, a concretização do Federalismo Cooperativo em que a supremacia do interesse público é preservada, sem que haja qualquer pretensão de exclusão da população mais vulnerável social e economicamente, posto que ele preserva o sistema de subsídio cruzado entre área de prestação de serviço de saneamento básico superavitárias que compensarão os investimentos públicos necessários às área deficitárias mas que congregam populações desassistidas e com menores garantias de efetividade do direitos sociais envoltos à prestação de um saneamento básico de qualidade.
Vê-se claramente que o objetivo é garantir formas de privatização seletiva dos serviços dos municípios maiores e mais rentáveis migrando- os para as empresas privadas, enquanto os municípios deficitários, incluindo municípios com população economicamente vulnerável e que tenham custos mais altos como é o caso daqueles com escassez hídrica, permanecerão a cargo das Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESBs), rectus do Estado, inviabilizando o subsídio cruzado que se tem atualmente adotado como mecanismos de sucesso para o equilíbrio econômico-financeiro do setor, bem como dando cabo na universalização de acesso ao saneamento básico pela população brasileira.
É exatamente essa a consequência jurídico- social trazida pelo novo § 8º do art. 13 da Lei n. 11.107/05 (art. 9º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) que determina que os contratos de prestação de serviços públicos de saneamento básico deverão observar o regime do artigo 175, CF/88, proibindo a formalização de novos contratos de programa e restringindo, por via de consequência, a autonomia federativa dos Municípios de escolherem a forma de gestão dos serviços de saneamento básico, quer de forma direita, quer indireta, ou ainda, por gestão associadas de serviços.
O que é preciso demonstrar é que a conjugação do nos art. 10 da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) com o § 8º do art. 13 da Lei n. 11.107/05 (art. 9º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) criam barreiras legais intransponíveis para que os entes federativos subnacionais exerçam a cooperação interfederativa e a gestão associada de serviços públicos.
Ora, se a essência da autonomia municipal está contida na sua capacidade de autoadministração e autogoverno a pratica prevista nos dispositivos impugnados impede que tal autonomia seja constitucionalmente exercida porque retira indevidamente dos Municípios a capacidade de definir a melhor forma de prestação do serviço de saneamento básico, quer seja de forma direta, quer seja indireta ou por gestão associada dos serviços. Tal restrição estabelecida por lei é diametralmente oposta à prescrição
constitucional do Pacto Federativo (arts. 1º, 18, 30, incisos I e V, e 34, inciso VII, alínea ‘c’, todos da CF/88).
Outrossim, a situação de inconstitucionalidade é tornada exponencial com o inoportuno (contrário ao interesse público) veto do Exmo.
Presidente da República ao art. 1622 do Projeto de Lei 4.162/2019 que foi parcialmente
convertido na Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, que garantia, ao menos, um período de transição do sistema regulatório do saneamento básico brasileiro (contrato de programa e gestão associada de serviços públicos). A conjugação da retirada da autonomia municipal para a escolha de como pretende gerir os serviços públicos de saneamento básico que a Constituição lhe atribui a competência com o veto presidencial do art. 16 do Projeto de Lei 4.162/2019, tornam a situação do saneamento brasileiro gravemente preocupante já no curto prazo, o que, aliás, demonstra por razões próprias o fumus boni iuris e o perriculum in mora próprios do pedido deferimento de medida cautelar suspensiva da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, que, desde já, se requer.
O que também é, infelizmente, corroborado pelo § 8º do art. 11-B da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) que,
22 Art. 16. Os contratos de programa vigentes e as situações de fato de prestação dos serviços públicos de saneamento básico por empresa pública ou sociedade de economia mista, assim consideradas aquelas em que tal prestação ocorra sem a assinatura, a qualquer tempo, de contrato de programa, ou cuja vigência esteja expirada, poderão ser reconhecidas como contratos de programa e formalizadas ou renovados mediante acordo entre as partes, até 31 de março de 2022.
Parágrafo único. Os contratos reconhecidos e os renovados terão xxxxx xxxxxx xx xxxxxxxx xx 00 (xxxxxx) anos e deverão conter, expressamente, sob pena de nulidade, as cláusulas essenciais previstas no art. 10-A e a comprovação prevista no art.10-B da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, sendo absolutamente vedada nova prorrogação ou adição de vigência contratual.
deixando de lado a realidade do saneamento brasileiro, simplesmente desconsidera os Contratos de Programa vigentes, mas não não formalizados ou cuja vigência esteja expirada, mas que correspondem a prestações reais, fáticas e concretas de serviço público de saneamento no Brasil, determinando peremptoriamente que são irregulares e precários, impedindo assim que se tenha a prestação do serviço público (princípio da continuidade ou permanência do serviço público) com potencial de causar prejuízo grande e imediatos na gestão atual do sistema.
É obter dictum o que se pode afirmar do próprio veto presidencial ao art. 16 do Projeto de Lei n. 4.162, de 02 de agosto de 2019 (convertido parcialmente da legislação ora impugnada), que, ao menos, estabelecia uma fase de transição do sistema de contratação da prestação de serviços com a continuidade temporária da vigência dos Contratos de Programa. Desta forma, por um lado a sanção Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020 restringe, inconstitucionalmente, a possibilidade de escolha de gestão dos Municípios, prevendo a “escolha" única do contrato de concessão; e por outro o veto presidencial do art. 16 do Projeto de Lei n. 4.162, de 02 de agosto de 2019, elimina a fase de transição contratual dos mecanismos contratuais. Tudo a deixar em desabrigo a prestação do serviço público de saneamento brasileiro.
O que se percebe, por tudo que se examina, é a redução inconstitucional das prerrogativas dos Municípios, titulares dos serviços de saneamento básico, definirem no legítimo exercício da autonomia municipal (auto-gestão, autoadministração e autogoverno) qual forma de prestação atende melhor o interesse público diante da singularidade local da comuna. Novamente há violação frontal ao art. 30, incisos I e V, CF/88.
Por outro lado, é constitucional afirmar-se que é prerrogativa do ente municipal, titular do serviço público de saneamento básico, de optar pela prestação do serviço de saneamento básico por meio de órgãos ou entidades públicas. Desta forma, a autonomia do ente federativo municipal é de ser preservada porque o Município não pode ser obrigado a privatizar o serviço de saneamento básico (prestação indireta pela iniciativa privada por meio de contrato de concessão) sem que essa deliberação seja tomada exclusivamente por ele próprio por meio da manifestação do Poder Legislativo Municipal instrumentalizada por Lei Ordinária formal.
Como é sabido, o serviço público de saneamento pode ser prestado de quatro formas constitucionalmente garantidas à escolha do Município: (A) de forma direta, (A.1) centralizada por meio de Departamentos ou (A.2) descentralizada por meio de Autarquia, Empresa Pública ou Sociedade de Economia Mista própria; ou (B) de forma indireta, (B.1) seja por meio de Contrato de Concessão precedido de licitação (Lei n. 8.987/95), (B.2) seja por Consórcio Público ou Convênio de Cooperação autorizando a celebração de Contrato de Programa entre órgãos da administração indireta de outros entes federativos com dispensa de licitação (Lei n. 11.107/05).
Desta maneira, os arts. 10, 10-A e 10-B da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) impedem que uma administração
pública coopere com outra para que haja prestação direta (in house providing), o que leva a que a administração seja forçada a privatizar (privatisation forcée).
No âmbito europeu, o Tribunal de Justiça da União Europeia rechaçou esse mesmo tipo de normatividade por violar a autonomia municipal, entendendo que “o imperativo da concorrência encontra um limite na autonomia das coletividades locais de organizarem por seus próprios meios os serviços de interesse geral”23.
Esta, aliás, revela-se a tendência do Tribunal de Justiça da União Europeia ao antever a alteração da normativa comunitária europeia, pois “desde 1º de Dezembro de 2009, os tratados, modificados pelo Tratado de Lisboa, colocam em destaque a autonomia local e regional em respeito dos serviços de interesse econômico geral”. Deste modo afirma-se “a autonomia local em face da uma tendência de privatização dos serviços econômicos de interesse geral”24.
Tome-se a respeito do assunto crucial decisão da Curia Europeia (leading case) no caso Coditel Brabant SA versus Município de Uccle (C-324/07, 13 de novembro de 2008):
48. (...) Com efeito, aceita-se que uma autoridade pública tenha a possibilidade de desempenhar as missões de interesse público que lhe incumbem através dos seus próprios meios, administrativos, técnicos e outros, sem ser obrigada a recorrer a entidades externas que não pertençam aos seus serviços (acórdão Stadt Halle e RPL Lochau, já referido, n° 48).
49. Esta possibilidade de as autoridades públicas recorrerem aos seus próprios meios para darem execução às suas missões de serviço público pode ser exercida em colaboração com outras autoridades públicas (v., neste sentido, acórdão Asemfo, já referido, n° 65).
O exame do tema não se resume à leitura isolada da violação da Constituição Federal de 1988. Novamente é preciso um olhar mais atento sobre as consequências nefastas, e igualmente inconstitucionais, da desestruturação do sistema de saneamento básico brasileiro trazida pela Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020. Isto porque volta à baila a seleção adversa dos entes municipais pela iniciativa privada.
Isto porque passa-se a priorizar a prestação privada do serviço público de saneamento. Porém, ante a imensa diversidade das característica municipais, o sistema de saneamento público brasileiro em regiões administrativas ou em regiões de concessão às CESB tem se beneficiado pelo subsídio cruzado entre os sistemas municipais superavitários e os deficitários de tal modo que seja cumprido o princípio fundamental do Federalismo Cooperativo e preservados os padrões mínimos de cooperação na área de saneamento básico que implica em níveis básicos de saúde para toda a população
23 Xxxxxxx, Xxxxxxx. Le “in house” a-t-il- les faveurs communautaires? in Contrats Publics, janvier 2010,
n. 95, Dossier: L'actualité de la commande et des contrats publics. Paris: Le Moniteur, 2010.
24 Xxxxxxx, Xxxxxxx. Idem.
brasileira, o que significa a concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Aqui a opção constitucional é clara em revelar o predomínio do interesse humano sobre a eficiência econômica incensada pela Teoria Econômica Liberal, já que o tratamento indistinto do sistema de saneamento brasileiro torna indiferente a pessoa humana que more em municípios ricos ou pobres, não a discriminando em razão da origem.
Porém, a normatividade impositiva do Contrato de Concessão à iniciativa privada segregará indelevelmente aqueles sistemas municipais deficitários que não terão mais a oportunidade de equilibrar dentro do Consórcio Público a implementação do Federalismo Cooperativo. Isto porque, os municípios superavitários terão por norma cogente a celebração de Contrato de Concessão dentro do seu âmbito territorial em resposta à manifestação de interesse privado. Não lhe será, doravante, possível integrar o Consórcio Público que, quando puder eventualmente ser formado, será formado exclusivamente por municípios deficitários com restrição orçamentária para investimento em que suas populações não poderão mais se beneficiar do subsídio cruzado. E mais, possivelmente, não conseguirão ter acesso ao OGU ou qualquer outro recurso financeiro federal porque não terão condições de cumprir as Normas de Referência Nacionais da ANA (vide arts. 4º-A, caput e §§, 4º-B, caput e § 2º, da Lei n. 9.884/00 e novos §§ 1º-A e 1º–B do art. 23 da Lei n. 11.445, de 5 de janeiro de 2.007, instituídos pelos arts. 3º e 7º da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, respectivamente – ao norte especificamente impugnado).
Ou seja, a Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020 destrói toda a estrutura do sistema de saneamento básico brasileiro que vem conseguindo progressivamente vencer a batalha do acesso universal e da modicidade tarifária.
A Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020 reduz o serviço público de saneamento brasileiro com sérias implicações ao bem-estar da população – principalmente daquela de baixa renda – a mero cálculo da viabilidade econômico-financeira da prestação do saneamento básico.
A Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020 representa, assim, a saída do Governo Federal como principal responsável pelo financiamento público do setor de saneamento brasileiro. O setor passa a adotar a privatização como única alternativa para o desenvolvimento do saneamento no Brasil; estratégia esta já fracassada em diversos países mundo a fora, inclusive com clara tendência nos EUA e Europa de remunicipalização dos serviços de saneamento que houveram sido privatizados décadas atrás (verbi gratia, Buenos Aires, Paris e La Paz).
Importante reforçar que as diversas opções de prestação são inconstitucionalmente afuniladas para o contrato de concessão sob a égide da Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, o que inclusive retira a possibilidade de contratos com fundamento na Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, já que o novo art. 10-A da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) estabelece que os contratos devem conter as cláusulas essenciais do art. 23 da Lei n. 8.987/95 e mais outras cinco disposições que enumera.
A proposta assim intende a principiologia normativa da Constituição, pois afasta do serviço público de saneamento básico sua natureza de prestação pública voltada para a garantia da dignidade humana quanto a direitos sociais umbilicalmente ligados ao saneamento básico como saúde e moradia, pois na linha do novo art. 10-B da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) os contrato em vigor, incluídos aditivos e renovações, “estarão condicionados à comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada, por recursos próprios ou por contratação de dívida”.
A garantia do pacta sunt servanda para contratos em vigor (ato jurídico perfeito) fica agora condicionada por elemento post factum imposto por uma legislação inconstitucional que desrespeita o Pacto Federativo e a autonomia dos Municípios, ainda mais porque define, agora no parágrafo único do mesmo art. 10-B, que "a metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada será regulamentada por decreto do Poder Executivo no prazo de 90 (noventa) dias” (grifo oposto).
Isto é, já não bastasse o estrangulamento da capacidade de auto-gestão municipal na forma como escolha prestar o serviço de saneamento básico, agora a validade dos contratos em vigor será condicionada a condição post factum definida em Lei Ordinária da União que ainda remete a metodologia de cálculo para ato unilateral e unipessoal do Chefe do Poder Executivo da União. Poucas coisas poderiam reunir tantas inconstitucionalidades.
Por outro lado, é notória a seletividade quanto à alterações forçadas em cláusulas contratuais e a manutenção inalteradas de outras que sejam de interesse da iniciativa privada como é o caso do § 2º do art. 11-B da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) em que contratos que possuam metas de universalização diversas daquelas determinadas na cabeça do artigo “permanecerão inalterados nos moldes licitados”. Ou seja, a Lei impugnada trata com dois pesos e duas medidas situações semelhantes, não aderindo a qualquer razoabilidade ou proporcionalidade que justifique a inconstitucional interferência nos contratos em vigor quando há interesse do capital privado, e preservando os termos contratados quando a modificação não atenda à empresa privada.
E s s e e s p í r i t o l e g a l d e p r i v i l e g i a r irremediavelmente a prestação do serviço público por contrato de concessão tendo as empresas privadas também é notado na supressão normativa do inciso II do art. 11 da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020), vejamos:
Onde se tinha:
Art. 11. São condições de validade dos contratos que tenham por objeto a prestação de serviços públicos de saneamento básico:
II - a existência de estudo comprovando a viabilidade técnica e econômico-financeira da prestação universal e integral dos serviços, nos termos do respectivo plano de saneamento básico; (negritos opostos)
Se passa a ter:
Art. 11. São condições de validade dos contratos que tenham por objeto a prestação de serviços públicos de saneamento básico:
II - a existência de estudo que comprove a viabilidade técnica e econômico-financeira da prestação dos serviços, nos termos estabelecidos no respectivo plano de saneamento básico;
É perceptível que a retirada da expressão “universal e integral” demonstra sobejamente o inconstitucional desprezo da norma impugnada pela garantia da universalidade e integralidade do acesso aos serviços públicos de saneamento básico para toda a população brasileira, e não simplesmente para aqueles que tenham “viabilidade econômico-financeira”, fazendo com que os projeto de prestação de serviços possam simplesmente alijar da prestação as comunidades economicamente deficitárias garantido que o conceito de lucratividade se sobreponha ao de conceito de humanidade.
Veja que a redação original do art. 11, inciso II, da Lei n. 11.445/07 procurava evitar justamente que se contratasse exclusivamente o território ou parte do território municipal superavitário concentrando os investimentos somente naquela área economicamente rentável e deixando descoberta de investimento a população que habitasse outras partes do território municipal que fossem economicamente menos atrativas ao interesse privado. Mais uma vez está presente a lógica da privatização do lucro e socialização do prejuízo.
Diz-se socialização do prejuízo, porque as áreas que não sejam economicamente viáveis – quando olhadas exclusivamente como parcela econômica do sistema de saneamento de uma dada região – não terão resposta por parte da iniciativa privada para os tão falados investimentos privados. Assim, os investimentos orçamentários, que são reconhecidamente esparsos nos Municípios de população empobrecida, terão que ser direcionados justamente onde maior volume de investimentos é demandado.
Onde se precisa mais se terá menos!
Aquela região que já tem um perfil de prestação de serviço público equilibrado e adequado por investimentos pretéritos será repassada à iniciativa privada que capturará a lucratividade obtida em proveito próprio. Enquanto, a parte do sistema que requer maior volume de investimentos para a prestação do serviço público de saneamento básico para populações mais vulneráveis, sob o olhar dos Direitos Fundamentais, terá seu financiamento oriundo do orçamento público decorrente da arrecadação tributária de todos.
Ainda outra inconstitucionalidade pode ser encontrada no novo art. 11-A, Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) que busca constitucionalizar a possibilidade de subdelegação total do Contrato de Programa por meio de previsão contratual ou autorização expressa do titular de serviços.
Em primeira monta é preciso reconhecer a precariedade do texto ao definir a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por
meio de contrato, sem especificar a que tipo de contrato se refere. Isto porque, a obscuridade e imprecisão do artigo permite aventurar-se por interpretações normativas que se distanciam do melhor direito, porque a continuação do texto fala em licitação e contratação de parceria público-privada em clara referência aos contratos de concessão, deixando ainda margem para que a subdelegação prevista possa ser aplicada aos contratos em vigor.
Assim, deve-se deixar claro por interpretação conforme a Constituição que o contrato a que se refere o artigo autorizador da subdelegação não são aqueles em vigor, seja regularmente assinados seja expirado ou que, de qualquer formar, representem a continuidade de situação de fato, excluindo-se de toda a maneira os atuais Contratos de Programa, uma vez que não admitem subdelegação para entidades de privadas não integrantes da Administração Pública.
Em segunda linha, o § 4º do art. 11-A, Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020) prevê a possibilidade de ultrapassagem do já alto percentual de subdelegação de serviços (25%), sem estabelecer qualquer teto, o que pode ensejar a subdelegação total do serviço público de saneamento básico.
A subdelegação total sem resguardar ao contratado qualquer parte dos serviços concedidos, sem estabelecer qualquer limitação clara e específica para a subdelegação tornando-o figura obsoleta e violando a integralidade do Contrato de Programa, ou mesmo o Contrato de Concessão.
Veja-se que o caráter intuitu personae dos contratos administrativos identifica para o contratante que atribua ao contratado serviços públicos específicos a partir da busca pelo melhor atendimento ao interesse público comum entre os consorciados. Mesmo assim, tem sido possível, na doutrina nacional, sustentar que parte dos serviços contratados sejam subdelegados à responsabilidade de terceiro estranho ao contrato para que possa o subcontratado realizar, aquele item específico da prestação de serviço, com melhor eficiência e economicidade dentro do contexto geral do serviço público contratado.
Assim admite-se a subdelegação quando terceiro estranho ao Contrato de Programa, mas de qualquer forma integrante da administração pública indireta do ente federativo contratado, venha a realizar atividades acessórias ou complementares à atividade principal desempenhada pelo contratado. Não há, por estas razões, sustentáculo jurídico para que a subcontratação seja integral esvaziando a figura do contratado.
Na subdelegação parcial – único modelo constitucionalmente possível –, o contratado permanece na gerência ampla dos serviços públicos que foram transferidos à sua responsabilidade, e mesmo na parte em que houve a subdelegação continuará responsabilizando-se perante o contratante pela qualidade do serviço prestado no geral e também na parte em que houve a subdelegação.
É por esta razão que a subdelegação nunca pode ser integral, haja vista fraudar o Protocolo de Intenções prévio ao Contrato de Programa.
Pior ainda, dentro do contexto das inconstitucionalidades da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020 apontadas ao norte, se a subdelegação for total para pessoa jurídica fora do âmbito do ente federativo contratado; rectus privatização. Tenha a natureza que possa vir a ter o subdelegado, a subdelegação total esvaziará as atribuições do contratado dentro da relação contratual desenvolvida.
Esse raciocínio é inclusive compartilhado nas razões de veto do Presidente da República (Mensagem n. 396, de 15 de julho de 2020) ao § 5º do art. 11-A da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, alterado pelo art. 7º do Projeto de Lei n. 4.162, de 02 de agosto de 2019, que foi parcialmente convertido na lei ordinária que ora se impugna, in verbis:
Razões do veto
“A propositura legislativa gera insegurança jurídica ao permitir ultrapassar o limite estabelecido no caput sem a previsão do que seria o máximo permitido para a subdelegação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico por meio de contrato, o que desprestigia as regras de escolha do poder concedente estabelecida na legislação. O dispositivo permite, ainda, onerar a prestação do serviço com custos não estimados em princípio.” (negrito oposto)
Em terceira ordem, não bastasse a inconstitucionalidade da subdelegação total, o mesmo artigo pretende ainda que a decisão seja tomada por previsão contratual ou autorização expressa do titular dos serviços, o que enseja o risco de interpretação que dê tal atribuição, de modo isolado e antidemocrático ao Chefe do Poder Executivo, em contraposição à natureza da cláusula democrática (art. 1º, CF/ 88) e violando mais um vez a autonomia do ente federativo municipal que tem regulado em sua Lei Orgânica Municipal que a competência material é do Poder Legislativo Municipal por meio de edição de lei formal autorizando (Protocolo de Intenções, art. 3º, Lei n. 11.107/05) a formação do Consórcio Público. Se a pretensão do contratado é subdelegar totalmente o objeto do Contrato de Programa, então a violação constitucional é direta porque contorna clara, expressa e especificamente todo o conteúdo material da manifestação autônoma do Poder Legislativo Municipal pela exclusividade de propósito do Alcaide.
A omissão da manifestação da legislação municipal não é superável por mero ato isolado do Executivo local, pois trata-se de competência material reservada a Lei formal (Princípio de Reserva Legal); nem pode a Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020 decidir sobre assunto tão sensível ao interesse público eminentemente local sob pena de violar a autonomia municipal como cláusula do Pacto
Federativo (arts. 1º, 18, 30, incisos I e V, e 34, inciso VII, alínea ‘c’, todos da CF/88).
O Princípio da Reserva Legal, garantido constitucionalmente ao Poder Legislativo Municipal, representa a concretização dos Princípios Republicano, Democrático e da Separação dos Poderes. Assim entendido, temos que o plexo constitucional tem permitido a especialização do Princípio da Legalidade na forma do estabelecimento de uma reserva legal absoluta a designar que a alteração de um marco normativo somente possa ser realizado por norma de natureza legislativa, estabelecendo que
uma Lei Ordinária (Protocolo de Intenções previamente aprovado à formação do Contrato de Programa) somente possa ser substituída ou suprimida por outra Lei Ordinária (Lei em sentido formal) possibilitando a preservação do conteúdo da matéria disciplinada pela norma de origem ante procedimento normativo menos democrático como é o caso de autorização da subdelegação total ser feita por meio de ato infralegal do Poder Executivo.
O Princípio da Reserva Legal está, portanto, ligado visceralmente aos princípios da República e da Democracia, posto que reserva à representatividade popular da Câmara de Vereadores a atribuição irrecusável de estabelecer os parâmetros do exercício da defesa de direitos, principalmente quando se tratam de direitos fundamentais como os ligados indissoluvelmente ao saneamento básico.
Outra mudança legislativa que apesar de sutil tem a marca da inconstitucionalidade que é a tônica da lei impugnada, está inscrita nos caput do arts. 30 e 35 da Lei n. 11.445/07 (art. 7º, Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020), eis a redação original do dispositivo:
Art. 30. Observado o disposto no art. 29 desta Lei, a estrutura de remuneração e cobrança dos serviços públicos de saneamento básico poderá levar em consideração os seguintes fatores: (negrito oposto)
Art. 35. As taxas ou tarifas decorrentes da prestação de serviço público de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos urbanos devem levar em conta a adequada destinação dos resíduos coletados e poderão considerar: (negrito oposto)
E agora a nova redação:
Art. 30. Observado o disposto no art. 29 desta Lei, a estrutura de remuneração e de cobrança dos serviços públicos de saneamento básico considerará os seguintes fatores: (negrito oposto)
Art. 35. As taxas ou as tarifas decorrentes da prestação de serviço de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos considerarão a destinação adequada dos resíduos coletados e o nível de renda da população da área atendida, de forma isolada ou combinada, e poderão, ainda, considerar: (negrito oposto)
A diferença está, portanto, na forma verba utilizada que deixou de lado a característica de norma geral da LDNS para estabelecer uma norma cogente por sobre as competências autônomas dos entes federativos municipais. Vê-se, por cristalina leitura comparativa, que tanto a estrutura de remuneração e cobrança dos serviços públicos de saneamento básico, quanto as taxas ou tarifas decorrentes da prestação de serviço de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos passam a submeter-se, inconstitucionalmente, às diretivas normativas da nova legislação que, ao fazer tal previsão, ataca frontalmente a autonomia municipal como cláusula do Pacto Federativo (arts. 1º, 18,
30, incisos I e V, e 34, inciso VII, alínea ‘c’, todos da CF/88).
Em resumo, são todas razões claras e inescapáveis de inconstitucionalidade material que impedem a permanência no sistema
jurídico nacional da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, eis que macula em diversas oportunidades a Constituição Federal de 1988. Tudo a impor a declaração de inconstitucionalidade do texto integral do ato normativo impugnado, seja pela matriz dos artigos diretamente impugnados, seja pelo arrastamento que as diversas inconstitucionalidades sistêmicas do texto conferem ao seu conjunto.
6. DA MEDIDA CAUTELAR (ART. 10 A 12, LEI N. 9.868/99)
A concessão da medida cautelar a que se refere o art. 10 da Lei n. 9.868/99 é medida que se impõe ante a presença dos requisitos legais para seu deferimento.
Com efeito, o fumus boni iuris ficou evidenciado nas múltiplas razões acima ventiladas acentuadas pela verdadeira revolução - no sentido pejorativo do termo - que a legislação impugnada causa no sistema brasileiro de saneamento básico com múltiplos ferimentos à autonomia dos Municípios que geram forte insegurança jurídica em um setor chave para o desenvolvimento nacional e redução das desigualdades regionais, bem como preservação do mínimo de dignidade humana no exercício social dos direito sociais correlatos à prestação do saneamento básico, com destaque para a moradia e a saúde.
Tudo a caracterizar o relevante dano de difícil reparação que a permanência da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, maculada de inúmeras inconstitucionalidades, pode oferecer à sociedade brasileira.
Isto porque a Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, que “libera” inconstitucional e antidemocraticamente a privatização forçada do sistema de saneamento básico brasileiro promove profunda mudança em um cenário conturbado de propostas reformistas do Governo atual com redução da participação plural do Congresso Nacional.
Destarte, a manutenção intempestiva da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, manjada de claras inconstitucionalidades implica em graves, concretos e imediatos prejuízos ao setor de saneamento e à economia nacional por consequência, pois o futuro julgamento de mérito pela inconstitucionalidade poderá não ser suficiente para extirpar todos os danos produzidos presentemente.
Outrossim, a Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, tem implicações imediatas no mundo jurídico que se comunicam aos setores da economia nacional com o início de uma prematura modelagem jurídica para a realização da privatização que poderá, ao final e ao cabo, não acontecer tendo-se desperdiçado tempo e recursos públicos, além de causar turbulências irremediáveis na economia nacional por sinais econômicos inseguros e inconsistentes, além de atrasar planejamento de investimentos no saneamento.
Ainda na mesma linha de demonstração do
perriculum in mora é preciso assentar que a Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, suspende
todas as atividades de planejamento de curto, médio e longo prazo no setor de saneamento nacional que passam a trilhar novos caminhos tomando por modelo um sistema normativo claramente inconstitucional.
A alteração do paradigma de estruturação do saneamento brasileiro promovido pela Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, não permite que o Poder Legislativo debata suficientemente o impacto no setor do novo sistema de saneamento brasileiro, sem que se possa prever se a legislação é manejável e sustentável para os objetivos da política nacional de saneamento básico.
Presentes, pois, os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora decorre imperiosa a concessão da Medida Cautelar requerida para suspender imediatamente os efeitos jurídicos da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, até o julgamento final da presente ação com objetivo de evitarem-se os prejuízos à sociedade brasileira e sua Constituição e ao setor de saneamento nacional como campo estratégico da defesa de Direitos Fundamentais ao povo brasileiro.
7. DA CONCLUSÃO E PEDIDOS
Chega-se ao final da narrativa da presente Ação Direta de Inconstitucionalidade com a certeza da inconsistência constitucional material da Lei
n. 14.026, de 15 de julho de 2020, pelos diversos vícios constatados nos itens ao norte.
Quaisquer, portanto, das teses levantadas, e todas elas em conjunto, direcionam à atividade legislativa heterodoxa e extravagante da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, como violadora do sistema constitucional brasileiro a merecer suspensão cautelar imediata de seus efeitos jurídicos e, no mérito, a declaração de inconstitucionalidade ex tunc.
Isto posto, requer-se:
A) A concessão de Medida Cautelar, nos termos do art. 10, § 3º, da Lei n. 9.868/99, para que seja suspensa a integralidade do texto da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, e todos os seus efeitos jurídicos até o julgamento final da presente Ação Direta de Inconstitucionalidade, bem como a aplicação do rito abreviado do art. 12 da Lei n. 9.868/99;
B) Requer seja oficiado o Presidente da República para prestar informações no prazo legal, na forma do art. 6º da Lei n. 9.868/99;
C) Depois de colhidas as informações necessárias, seja citada a Advocacia-Geral da União, nos termos do art. 103, § 3º, CF/88, e ouvida a Procuradoria-Geral da República para oferecer d. parecer;
D) Xxxxx a relevância e a repercussão nacional da matéria, após a apreciação do pedido de medida cautelar e de colhidas as informações,
caso seja da conveniência, que sejam adotadas as providências do art. 9º, §1º, da Lei n. 9.868/99;
E) Ao fi nal, requer seja confirmada expressamente a Medida Cautelar, e julgada PROCEDENTE a presente Ação Direta de Inconstitucionalidade com a declaração de inconstitucionalidade da integralidade do texto da Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020, com efeitos ex tunc, seja pela matriz dos artigos diretamente impugnados, seja pelo arrastamento que as diversas inconstitucionalidades sistêmicas do texto conferem ao seu conjunto.
Dá-se a causa o valor de R$-5.000,00 (cinco mil
reais) para efeitos meramente fiscais.
Nesses termos, Pede deferimento.
De Belém para Brasília, 11 de agosto de 2020.
p. p.
Xxxx Xxxxxxx X. X. Rocha
OAB/PA 11.404
Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx
OAB/DF 5.358
Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx
OAB/DF 29.498
Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxx
OAB/DF 4.935
Anexos:
1. Procuração ad judicia conferida pelo Partido Comunista do Brasil - PCdoB;
2. Atos constitutivos do Partido Comunista do Brasil - PCdoB;
3. Procuração ad judicia conferida pelo Partido Socialismo e Liberdade - PSOL;
4. Atos constitutivos do Partido Socialismo e Liberdade - PSOL;
5. Procuração ad judicia conferida pelo Partido Socialista Brasileiro - PSB;
6. Atos constitutivos do Partido Socialista Brasileiro - PSB;
7. Procuração ad judicia conferida pelo Partido dos Trabalhadores - PT;
8. Atos constitutivos do Partido dos Trabalhadores - PT;
9. Ato normativo impugnado (Lei n. 14.026, de 15 de julho de 2020);
10. Mensagem n. 396, de 15 de julho de 2020, informando ao Congresso Nacional os vetos ao Projeto de Lei n. 4.162, de 2019; e
11. Caso Coditel Brabant SA versus Município de Uccle (C-324/07, 13 de novembro de 2008), Tribunal de Justiça da União Europeia.