MESTRADO EM DIREITO
MESTRADO EM DIREITO
CIÊNCIAS JURÍDICO-ADMINISTRATIVAS
As Fundações no Código dos Contratos Públicos: O Caso da Fundação de Serralves
Xxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx
M
2022
i
FACULDADE DE DIREITO
À avó Xxxxx, pelo orgulho que sempre teve nas netas
e pelo seu legado de vida.
Agradecimentos
Primeiramente agradeço à Fundação de Serralves, pelos enormes desafios diários que me são propostos e a que tenho de corresponder com mais ou menos criatividade, não estivéssemos numa casa de artistas onde a cultura e a imaginação são o mote da sua atividade. Pela diversidade da Fundação, com o Museu, a Casa de Serralves, a Quinta, o Parque, a Casa do Cinema Xxxxxx xx Xxxxxxxx, com a especificidade de ser classificada como património nacional, e um dos espaços que mais público atrai em Portugal; e pela enormíssima atividade que desenvolve ao longo do ano, dentro e fora de portas, as questões colocadas ao jurista não têm limites, sendo a atividade mais desafiante que algum dia imaginei, exigindo um estudo permanente e constante de soluções jurídicas e de antecipação de problemas, naquilo que é, também, uma ação preventiva, para minimização de impactos.
Ao Professor Doutor XXXX XXXXXXX XX XXXXXX, por ter aceitado o meu convite e pelos preciosos contributos para a investigação.
Aos meus pais, à minha irmã e ao meu cunhado, por me apoiarem em todas as decisões da minha vida e por serem os meus grandes pilares. À minha sobrinha, a Xxxxxxxx, o sol das nossas vidas. A uma pessoa muito especial que (re)encontrei e que me reensinou que a vida tem de ser vivida ao minuto e que nada deve ser deixado para trás ou ao acaso.
Aos meus queridos amigos, que, sem particularizar, eles sabem quem são. A minha família do coração.
À Xxxxxxx Xxxxxxxx e ao Xxxx Xxxx, por me terem apoiado desde o início nesta minha caminhada.
Ao Xxxx, ao Xxxxxxxxx e à Xxxxxxxx, os grandes culpados pelo meu percurso profissional em Serralves.
Resumo
As Diretivas n.ºs 2004/17/187CE e 2004/18/CE, ambas do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, originaram o Código dos Contratos Públicos, no âmbito da imposição de transposição para os ordenamentos jurídicos nacionais, de cada um dos Estados- Membros.
Contudo, a jurisprudência comunitária, emanada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, tem mais uma década do que as referidas Diretivas, tendo sido iniciada a sua construção em 1992, nomeadamente após a entrada em vigor das Diretivas 92/50/CEE do Conselho, de 18 de junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços; 93/36/CEE do Conselho, de 14 de junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos públicos de fornecimento; e 93/37/CEE do Conselho, de 14 de junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas.
Face à evolução da comunidade europeia, com toda a sua diversidade cultural, e modernização das entidades adjudicantes e dos operadores económicos, o contributo do TJUE foi fundamental para a construção dos novos preceitos legais e para a ajuda do intérprete na aplicação da lei.
Este estudo tem como objetivo analisar e interpretar a alínea a), do n.º 2 do Art. 2.º do CCP, e do Art. 2.º, n.º 4 da Diretiva 2014/24/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro, com recurso à doutrina e jurisprudência, tendo como propósito a demonstração da não qualificação da Fundação de Serralves como “organismo de direito público” e a sua não sujeição ao CCP.
Abstract
The Directives 2004/17/187CE and 2004/18/EC, both of the European Parliament and of the Council, of 31 March 2004, gave rise to the Portuguese Public Procurement Code, within the framework of the imposition of transposition into national legal systems, of each of the Member States.
The Community jurisprudence, issued by the Court of Justice of the European Union, is more than a decade old than the aforementioned Directives, having started its construction in 1992, namely after the entry into force of Council Directives 92/50/EEC, of 18 June 1992, on the coordination of procedures for the award of public service contracts, Council 93/36/EEC, of 14 June 1993, on the coordination of procedures for the award of public supply contracts, and Council 93/37/EEC, of 14 June 1993, on the coordination of procedures for the award of public works contracts.
In view of the evolution of the European community, with all its cultural diversity, and the modernization of contracting entities and economic operators, the CJEU's contribution was fundamental for the construction of new legal precepts and for the help of the interpreter in the application of the law.
This study aims to analyze and interpret subparagraph a) of paragraph 2 of Art. 2 of the Portuguese Public Contracting Code (PPCC), and of Art. 2, no. 4 of Directive 2014/24/EU, of the European Parliament and of the Council, of 26 February, using doctrine and jurisprudence, with the purpose of demonstrating the non-qualification of the Serralves Foundation as a body governed by public law and its non-subjection to the PPCC.
ÍNDICE
3. Classificação da Fundação de Serralves nos termos da Lei-Quadro das Fundações 4
3.1 A origem do património financeiro inicial da Fundação de Serralves (Art. 4.º, n.º 2, a) da Lei- Quadro) 6
3.2 O direito de designar ou destituir a maioria dos titulares do órgão de administração da Fundação de Serralves (Art. 4.º, n.º 2, b) da Lei-Quadro) 9
3.3 A Fundação de Serralves como Fundação Privada 10
4. A Fundação de Serralves no CCP 10
4.1 A incidência subjetiva da Parte II do CCP 11
4.2 O organismo de Direito Público – Art. 2.º, n.º 2 do CCP 14
4.2.1 Personalidade jurídica 16
4.2.2 Necessidades de interesse geral sem carater comercial ou industrial 17
Necessidade de interesse geral 17
Sem carácter comercial ou industrial 19
4.2.3 Sujeição à influência determinante – Art. 2.º, n.º 2, alínea a), subalínea ii) 22
Designação de mais de metade de membros dos órgãos de administração, direção ou fiscalização 34
1. INTRODUÇÃO
As Fundações são, por tradição, pessoas coletivas civis, cujo regime está regulado no Código Civil.
Com a evolução dos tempos e das sociedades, estas pessoas coletivas foram adquirindo uma importância e singularidade complexa que não se basta pela lei civil, tendo em 2012, surgido, pela primeira vez, a Lei-Quadro das Fundações (doravante apenas designada por “LQF”), aprovada pela Lei n.º 24/20212, de 9 de julho.
Em 2008, com a entrada em vigor do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro (doravante apenas designado por “CCP”), foi dada uma relevância às Fundações, enquanto entidades adjudicantes, não antes vista, o que provocou uma avalanche de incertezas na gestão destas entidades.
Se, por um lado, não havia dúvidas quanto à aplicabilidade do Código dos Contratos Públicos às fundações públicas (ainda que de direito privado), o mesmo já não poderá ser afirmado quando estamos perante o outro tipo de fundações tipificadas na LQF – as fundações privadas - que foram criadas por pessoas e entidades privadas e, também, por entidades públicas.
É sobejamente sabido que, relativamente a estas, são anualmente atribuídas subvenções por entidades públicas, desde autarquias até pelo próprio Estado central. Apoios financeiros provindos de fundos nacionais ou europeus, a que estas fundações privadas concorrem com a apresentação dos seus projetos.
A questão que se coloca é a de saber se uma fundação privada poderá ser considerada uma entidade adjudicante, ou mais concretamente um “organismo de direito público”, nos termos da alínea a) do n.º 2 do Art. 2.º do CCP e, dentro desta, a análise da particularidade do ponto ii), com a sua tríade casuística.
Analisado este ponto, coloca-se a questão de saber em que momento deverá ser aferido o financiamento maioritário por entidades adjudicantes e qual o hiato temporal em que a fundação privada ficará obrigada à aplicação do CCP.
Proponho-me, neste estudo, e a partir do caso da Fundação de Serralves, interpretar a subalínea i) da alínea a) do n.º 2 do Art. 2.º do CCP e esmiuçar a dificuldade de interpretação da subalínea ii), sem perder de vista a LQF e demais legislação conexa com a problemática, bem como o recurso à doutrina e jurisprudência nacional e europeia.
A conclusão será a de que a Fundação de Serralves não é um organismo de direito público, nos termos da alínea a) do n.º 2 do Art. 2.º, porquanto nenhuma das hipóteses indicadas nas subalíneas i) e ii) se aplica à Fundação de Serralves, devendo a mesma ser considerada uma entidade não adjudicante e, fora do âmbito de aplicação do CCP.
2. BREVE RESENHA CONTEXTUAL
A Fundação de Serralves foi instituída pelo Decreto-Lei n.º 240-A/89, de 27 de julho, tendo como seus fins, o de manter, na Quinta de Serralves, na cidade do Porto, i) um museu de arte contemporânea que albergará em depósito obras do acervo de arte moderna que são património do Estado, obras de outras entidades cedidas em depósito, bem como as que constituem o seu património; ii) um auditório para a realização de concertos e espetáculos de bailado e de teatro; iii) quaisquer outros empreendimentos compatíveis com os seus fins1.
Estes objetivos ou finalidades nasceram de uma vontade comum, designada como fórmula inovadora e desejavelmente exemplar2 pelo legislador, entre o Estado e a sociedade civil em se envolverem num projeto cultural de dimensão nacional.
O Estado, que tinha a vontade de criar um Museu Nacional de Arte Moderna no recém- adquirido Parque de Serralves, atempadamente percebeu que as exigências e dinâmicas impostas a um Museu que inclui artes performativas não se coaduna com a dinâmica administrativa, necessitando de ser autónomo, independente, que se projeta internacionalmente e pode ser capaz de mobilizar públicos. Assim, o Estado, nas palavras do legislador, considerou que a criação de uma Fundação que procedesse a esta dinâmica seria a forma institucional mais adequada, devendo a mesma ser constituída por uma participação significativa de capital privado, associada à presença do Estado, que se comprometeu a assegurar uma parte dos custos fixos de manutenção3.
Esta “parceria” foi efetivada com uma contribuição do Estado em espécie, o já referido Parque de Serralves ou Quinta de Serralves - como também é designado - enquanto a sociedade civil procedeu à realização de dotações em dinheiro.
É interessante verificar, pela análise do diploma, que existe uma efetiva intenção dos instituidores em libertar a Fundação de Serralves de toda a carga burocrática, formalista a que o direito público obriga e minimizar a intervenção do Estado na vida da Fundação. E isso é tanto assim que os Estatutos da Fundação de Serralves, publicados em anexo ao diploma instituidor, não previa, sequer, a presença do Estado no Conselho de Fundadores4. O Estado
1 Art. 4.º, n.º 2 do Anexo ao Decreto-Lei n.º 240-A/89, de 27 de julho, e que constitui os Estatutos da Fundação de Serralves.
2 5.º parágrafo do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 240-A/89, de 27 de julho.
3 4.º parágrafo do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 240-A/89, de 27 de julho.
4 Art. 20.º e Art. 35.º do Anexo do Decreto-Lei n.º 240-A/89, de 27 de julho.
passou a integrar o Conselho de Fundadores em 1994, após a primeira revisão dos Estatutos da Fundação de Serralves5.
Mesmo após a “correção” introduzida pelo Decreto-Lei n.º 256/94, de 22 de outubro, como que se de um ato de cortesia se tratasse, a intervenção do Estado na Fundação de Serralves é absolutamente residual e diminuta.
3. CLASSIFICAÇÃO DA FUNDAÇÃO DE SERRALVES NOS TERMOS DA LEI-QUADRO DAS
Fundações
A Lei-Quadro das Fundações, no Art. 4.º, n.º 1, procede a uma classificação das fundações segundo a sua natureza jurídica, prevendo três tipos:
a) As fundações privadas - “as fundações criadas por uma ou mais pessoas de direito privado, em conjunto ou não com pessoas coletivas públicas, desde que estas, isolada ou conjuntamente, não detenham sobre a fundação uma influência dominante;”
b) As fundações públicas de direito público - “as fundações criadas exclusivamente por pessoas coletivas públicas, bem como os fundos personalizados criados exclusivamente por pessoas coletivas públicas nos termos da lei-quadro dos institutos públicos, aprovada pela Lei n.º 3/2004, de 15 de janeiro, alterada pela Lei n.º 51/2005, de 30 de agosto, pelo Decreto-Lei n.º 200/2006, de 25 de outubro, pelo Decreto-Lei n.º 105/2007, de 3 de abril, pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 40/2011, de 22 de março, pela Resolução da Assembleia da República n.º 86/2011, de 11 de Abril, pela Lei n.º 57/2011, de 28 de novembro, e pelo Decreto-Lei n.º 5/2012, de 17 de janeiro […];”
c) As fundações públicas de direito privado - “as fundações criadas por uma ou mais pessoas coletivas públicas, em conjunto ou não com pessoas de direito privado, desde que aquelas, isolada ou conjuntamente, detenham uma influência dominante sobre a fundação.”.
Numa primeira análise da classificação das fundações prevista na Lei-Quadro, torna- se imediata a conclusão de que a Fundação de Serralves não pode ser qualificada como uma
5 O Decreto-Lei n.º 256/94, de 22 de outubro, procedeu à alteração dos Artigos 9.º, 10.º, 15.º, 17.º e 20.º dos Estatutos da Fundação de Serralves, sendo a alteração à alínea a), do n.º 1, do Art. 20.º a que interessa para a referência efetuada. Sucederam-se outras alterações aos Estatutos da Fundação, através dos Decretos - Leis n.os 163/2001, de 22 de maio, 129/2003, de 27 de junho, e 110/2021, de 14 de dezembro, mas nenhuma procedeu a qualquer modificação relativa à presença do Estado na Fundação de Serralves.
fundação pública de direito público - a Fundação de Serralves não foi criada exclusivamente por pessoas coletivas públicas (cfr. os Arts. 5.º e 35.º dos Estatutos da Fundação) – por não cumprir os requisitos enunciados na alínea b), do n.º 1, do Art. 4.º.
Assim sendo, a dúvida coloca-se entre a qualificação da Fundação de Serralves como fundação pública de direito privado ou fundação privada.
O n.º 2, do Art. 4.º da Lei-Quadro, introduz o critério da “influência dominante” como determinante da distinção entre fundações privadas e fundações públicas de direito privado6. Assim, considera-se existir uma influência dominante do Estado sobre a fundação quando, em alternativa, exista uma afetação exclusiva ou maioritária dos bens que integram o património financeiro inicial da fundação dotados pelo instituidor público ou o direito de fazer designar ou destituir a maioria dos titulares dos órgãos de administração ou de fiscalização da fundação.
Uma vez que a Fundação de Serralves foi criada por pessoas coletivas de variada natureza jurídica, terá, então, de se averiguar se existe ou não uma “influência dominante” da(s) pessoa(s) coletiva(s) de direito público para concluir pela natureza pública ou privada da Fundação.
Para aferição da “influência dominante”, como vimos, o legislador da Lei-Quadro estabelece dois critérios alternativos, bastando a verificação de um para que se possa determinar a existência de uma influência dominante por parte do instituidor público. Desde logo, importa verificar se o património financeiro inicial da Fundação foi exclusiva ou maioritariamente integrado pelo Estado, e, de seguida aferir se o Estado tem o direito de designar ou destituir a maioria dos titulares do órgão de administração da Fundação.
Antes de mais, importa referir que a solução do legislador da Lei-Quadro para determinação da “influência dominante” não é a adotada no CCP, como adiante se estudará mais pormenorizadamente. Desde logo é notório que, enquanto a LQF utiliza apenas dois critérios alternativos para determinação da influência do instituidor público sobre a fundação, o CCP, como decorre da subalínea ii), da alínea a), do n.º 2, do Art. 2.º, acrescenta um subcritério (também alternativo), o controlo da gestão da fundação.
6 XXXXX XXXXX XXXXXXXXX, Manual de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, 2019, pp. 766-770 aborda a qualificação das fundações, nos termos do Art. 4.º da Lei-Quadro das Fundações.
De acordo com os Arts. 5.º e 35.º dos Estatutos da Fundação de Serralves, a contribuição do Estado foi realizada em espécie, através da dotação de um bem imóvel, a Quinta de Serralves, que, à data, foi avaliado em 530.000.000,00 de escudos. Os “demais fundadores” contribuíram com 600.000.000,00 de escudos7.
Da interpretação8 do diploma instituidor da Fundação e que aprovou os seus Estatutos verifica-se, desde logo, que o próprio legislador separou as entidades fundadores em dois grupos: o Estado e os “demais fundadores”. Perante esta separação, tendemos a concluir que o legislador não quis enquadrar os “demais fundadores” na categoria “Estado”, independentemente da natureza jurídica deste mesmo “demais fundadores”.
O Art. 35.º dos Estatutos da Fundação de Serralves elenca um conjunto indiferenciado de pessoas coletivas e pessoas singulares entre os “demais fundadores”, com predominância para sociedades anónimas e sociedades por quotas. Desta enumeração constam três entidades que, à época da criação da Fundação de Serralves, eram empresas públicas ou já estavam na iminência de o serem. São elas o Banco Fonsecas & Burnay, o Banco Português do Atlântico e a Caixa Geral de Depósitos9.
Na data de constituição da Fundação de Serralves, o diploma que definia o estatuto das empresas públicas era o Decreto-Lei n.º 260/76, de 8 de abril, já com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 29/84, de 20 de janeiro.
O Art. 48.º do Decreto n.º 260/76 excluía expressamente do conceito de “empresa pública” as empresas organizadas segundo a forma de sociedades comerciais, fossem
7 Informação obtida junto de Departamento Administrativo Financeiro da Fundação de Serralves, em 19 de julho de 2022.
8 Com recurso às metodologias estabelecidas para a interpretação da Xxx, nos termos do Art. 9.º do Código Civil. 9 Após a nacionalização massiva da banca portuguesa, através do Decreto-Lei n.º 132-A/75, de 14 de março, no final da década de 80, as instituições bancárias foram, progressivamente, sendo transformadas em sociedades anónimas. O Banco Borges & Irmão sofreu essa transformação em 1989; o Banco Nacional Ultramarino foi transformado em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos pelo Decreto-Lei nº 232/88, de 05 de julho. Por Decreto-Lei nº 352/88, de 01 de outubro, o Banco Totta & Açores, foi transformado em sociedade anónima, de capitais maioritariamente públicos. A União de Bancos Portugueses adquiriu o estatuto de «sociedade anónima de responsabilidade limitada e de capitais exclusivamente públicos» através do Decreto-Lei n.º 351/86, de 20 de outubro.
sociedades de economia mista ou sociedades de capitais públicos, pelo que tais empresas eram, juridicamente, entidades privadas e regiam-se pelo direito comercial10..
Assim, apesar de entre os fundadores encontrarmos algumas instituições bancárias que tinham sido objeto de nacionalização — o Banco Borges & Irmão, S.A., o Banco Nacional Ultramarino, S.A., o Banco Totta & Açores, S.A. e a União de Bancos Portugueses, S.A. - as mesmas já tinham sido transformadas em sociedades anónimas à data da criação da Fundação de Serralves, e, pelas razões expostas, já não podiam ser consideradas pessoas coletivas públicas. Ainda que se qualificassem como pessoas coletivas públicas, para efeitos da Lei- Quadro, o Banco Fonsecas & Burnay, o Banco Português do Atlântico e a Caixa Geral de Depósitos, nem assim haveria uma maioria de dotações públicas, na medida em que seriam 560.000.000$00 contra 570.000.000$00 realizados pelas entidades privadas. Será necessário manter em mente que estamos a considerar o património inicial da Fundação de Serralves, não procedendo à distinção entre o “património inicial” e o património financeiro inicial, questão que será tratada mais adiante.
O Art. 5.º dos Estatutos da Fundação de Serralves refere, com toda a clareza, que o Estado contribui com a Quinta de Serralves e os demais fundadores com 10.000.000$0011 cada, e, relativamente a estes últimos, não faz distinção quanto à sua natureza jurídica, incluindo nesta qualificação pessoas singulares, sociedades comerciais por quotas, sociedades anónimas, fundações de direito privado e empresas pertencentes ao setor empresarial do Estado.
Caso o legislador pretendesse qualificar a “entrada” das empresas públicas como fundos públicos, certamente teria separado as contribuições dessas entidades das “entradas” das pessoas privadas (singulares e coletivas).
Não o tendo feito, e devendo o intérprete presumir que o legislador “soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (Art. 9.º, n.º 3, do Código Civil), o Art. 5.º deverá ser entendido no sentido de que as empresas públicas não são consideradas “pessoas coletivas de direito público” ou, para usar os termos da Lei-Quadro, pessoas coletivas públicas.
Apesar de o legislador ter qualificado expressamente, no Decreto-Lei n.º 729-F/75, de 22 de dezembro, as instituições bancárias nacionalizadas como “pessoas coletivas de direito público” com a natureza de empresas públicas, a verdade é que, logo no ano seguinte, a
10 XXXXXX XXXXXX XXX, Direito Económico – A Ordem Económica Portuguesa, 3.ª ed., Xxxxxxx, 0000, págs. 216-220.
11 Sabemos que houve alguns fundadores, como o caso da Fundação Luso-Americana (cuja contribuição foi de 50.000.000,00$00) que contribuíram com mais do que 10.000.000$00.
legislação que veio enquadrar e regular estas empresas já não apontava tão conclusivamente para essa qualificação. Na verdade, o Art. 1.º do Decreto-Lei n.º 260/76, de 8 de abril, definia empresas públicas como as empresas criadas pelo Estado, com capitais próprios ou fornecidos por outras entidades públicas, para a exploração de atividades de natureza económica ou social, de acordo com o planeamento económico nacional, tendo em vista a construção e desenvolvimento de uma sociedade democrática e de uma economia socialista.
Assim, não merece espaço para dúvidas a conclusão que, na instituição da Fundação de Serralves, o legislador optou por não integrar no conceito de “Estado” ou de “pessoa coletiva de direito público” as empresas públicas que contribuíram para essa criação, seguindo, de resto, o que era defendido já pela melhor doutrina sobre este assunto.
Por outro lado, o entendimento de que o Estado não exerce uma influência dominante sobre a Fundação de Serralves resulta ainda mais reforçado se atendermos à qualificação do património inicial que é feita no Art. 4.º, n.º 2, alínea a) da LQF. Interessa, para este efeito, o património financeiro inicial.
Como já foi apontado acima, a contribuição do Estado foi em espécie, consistindo na Quinta de Serralves, avaliada em 530.000.000$00, ao passo que a contribuição dos demais fundadores foi financeira, no valor de 600.000.000$00.
Levanta-se a questão doutrinária de saber o que o legislador da Xxx-Xxxxxx quis efetivamente dizer quando se refere a “património financeiro”. Será que quis excluir qualquer dotação não financeira, ou em espécie, como é o caso jub judice? – será que quis excluir da determinação de influência dominante o património não financeiro? – é entendimento de XXXXXXXX XXXXXX XXXXXXX que se deverá proceder a uma interpretação extensiva da norma. Segundo este autor, “Não seria compreensível, da perspetiva da tutela do património público que um bem imóvel público utilizado pelo Estado como entrada para a dotação inicial de uma fundação fosse tratado de modo diferente de um bem financeiro”12.
Voltando aos Estatutos da Fundação de Serralves, resulta, como já vimos, do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 240-A/89, de 27 de julho, que a vontade do Estado, nesta parceria que deu origem à Fundação de Serralves, era a de que o capital privado, ou seja, a intervenção de pessoas privadas (singulares ou coletivas) fosse verdadeiramente participativa, enquanto que a presença do Estado seria apenas presencial, meramente formal, na medida em que
12 XXXXXXXX XXXXXX XXXXXXX, Fundações e Interesse Público, Direito Administrativo Fundacional – Enquadramento Dogmático, Almedina, 2014, pág. 233.
“cedeu” o espaço físico para que a Fundação iniciasse a atividade para a qual foi projetada e instituída – a Quinta de Serralves.
Nesta medida, não podemos deixar de fazer uma leitura continua e global do diploma, partindo desta premissa, quando, no Art. 32.º, os instituidores preveem que, no caso de extinção da Fundação, o “Parque e a Casa de Serralves” – o mesmo será dizer a “Quinta de Serralves” - reverterá para o Estado, ou seja, para o seu proprietário original, ainda que a extinção da Fundação seja imputável ao próprio Estado.
Ora, temos, então, que a dotação do Estado é condicionada à manutenção da atividade da Fundação de Serralves, sendo-lhe devolvida no caso de, por qualquer motivo, a Fundação se extinguir13.
Tal estipulação leva-nos a concluir que, independentemente da interpretação literal ou extensiva da norma, no caso da Fundação de Serralves esta questão não adquire qualquer importância interpretativa na medida em que, e salvo melhor opinião, o património financeiro inicial da Fundação de Serralves, dotado pela entidade pública fundadora é inexistente, pelo que nem chega a ser minoritária.
Ainda que assim não se entenda, outro argumento se impõe, tal como defende XXXXXXXX XXXXXX XXXXXXX, na obra já citada: o critério patrimonial não é o mais adequado para determinar a influência dominante do poder público sobre a fundação. Como bem exemplifica o autor, o “Estado-fundador (…) pode entender doar um património significativo e maioritário, em relação às demais contribuições privadas, e, ainda assim, não pretender controlar a fundação”14.
Resulta dos Estatutos da Fundação de Serralves que o Estado designa dois dos nove membros do órgão de administração (Arts. 8.º e 9.º) e um dos três membros do órgão de fiscalização (Art. 23.º). Facilmente se conclui que o Estado não tem a prerrogativa de designar a maioria dos membros do órgão de administração ou do órgão de fiscalização.
13 Por não fazer parte da problemática proposta, não será desenvolvida a questão doutrinária subjacente a esta questão.
14 XXXXXXXX XXXXXX XXXXXXX, Fundações e Interesse Público, Direito Administrativo Fundacional – Enquadramento Dogmático, Almedina, 2014, pág. 233.
Dos Estatutos também não resulta para o Estado qualquer direito especial de destituir parte ou a totalidade dos membros de qualquer dos órgãos aludidos.
Não resulta, ainda, para o Estado, qualquer benefício de voto no conselho de fundadores ou qualquer direito especial de representação.
Assim sendo, não se pode dizer, pela consideração destes factos, que o Estado (ou qualquer outra entidade) detenha uma “influência dominante” na Fundação de Serralves.
3.3 A Fundação de Serralves como Fundação Privada
Face ao exposto e de acordo com o critério classificativo da Lei-Quadro, a Fundação de Serralves é uma fundação privada.
4. A FUNDAÇÃO DE SERRALVES NO CCP
Partindo da consideração de que a Fundação de Serralves é, nos termos da Lei-Quadro das Fundações, uma fundação de direito privado, sujeita às regras privatísticas, importa saber em que medida, e agora entrando no verdadeiro tema do nosso estudo, o Código dos Contratos Públicos é aplicável à Fundação de Serralves e em que medida esta poderá ser considerada, nos termos do Art. 2.º deste diploma, uma entidade adjudicante ou, para ser mais precisa, um organismo de direito público.
O Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, surgiu na ordem jurídica nacional por força da obrigação, que impendia sobre o Estado Português, de proceder à transposição das Diretivas n.os 2004/17/CE e 2004/18/CE, ambas do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março, alteradas pela Diretiva n.º 2005/51/CE, da Comissão, de 7 de Setembro, e retificada pela Diretiva n.º 2005/75/CE, do Parlamento Europeu e da Comissão, de 16 de novembro.
Com a revogação (e substituição) das Diretivas 2004/17/CE e 2004/18/CE, revogadas pelas Diretivas n.o 2014/25/UE e 2014/24/UE, ambas do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro, respetivamente, e a vastíssima jurisprudência, entretanto emanada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), com o intuito de harmonizar a interpretação das normas comunitárias em todos os Estados-membro e velar pela aplicação da legislação europeia da mesma forma em todos os países da União, ao legislador nacional impôs-se a ponderação entre realizar uma profunda reformulação do CCP ou de o revogar e o substituir
por um novo código.
A opção do legislador, em conformidade com a doutrina dominante, recaiu sobre a estabilidade e continuidade do CCP, e, em 2017, o Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto, aprovou a reformulação do código15.
Assim, desde logo, o Código estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam natureza de contrato administrativo, sendo o regime da contratação pública estabelecido na Parte II aplicável à formação dos contratos públicos que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no código (incidência subjetiva) e não sejam excluídos do seu âmbito de aplicação16.
4.1 A incidência subjetiva da Parte II do CCP
Como forma de reação às fugas, pelos Estado Membros, de aplicação das normas europeias na área dos contratos, com recurso a expedientes jurídicos com vista à desburocratização do sistema de contratação e violação das regras comunitárias, nomeadamente o que ao direito da concorrência respeita, a União Europeia tem abandonado o recurso a conceitos jurídicos e categorias jurídico-organizativas tradicionais.
O direito europeu dos contratos passou a focar-se no contrato público ao invés da natureza jurídica pública da entidade que o originou. A visão, agora, centra-se no objetivo final de interesse público subjacente no contrato administrativo como definidor dessa caracterização e não na natureza pública do organismo contratante. Como refere XXXX XXXXXXX, “agora apenas interessa apurar aquilo que se faz e não aquilo que se é.”17.
Nessa senda, o Art. 2.º do CCP procede a uma divisão de entidades com poderes adjudicatórios. Elenca duas grandes categorias de entidades a quem compete o exercício da
15 XXXX XXXXXX XXXXXXX XXXXXXX analisou as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto no CCP, especificamente quanto ao âmbito de aplicação do CCP, “A revisão das disposições gerais sobre o âmbito de aplicação do código dos contratos públicos”, in Revista Electrónica de Direito Público, vol. 4, n.º 2, novembro de 2017, xxx-x-xxxxxxx.xx e disponível em xxxxx://xxxxxx.xx/xxxxxx.xxx?xxxxxxxxxx_xxxxxxx&xxxxX0000-000X0000000000000?xxxxxxxxxx_xxxxxxx&xxxxX0000- 000X0000000000000, consultado em 25 de julho de 2022.
16 Art. 1.º, n.ºs 1 e 2 do CCP.
17 XXXX XXXXXXX, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 64, julho/agosto de 2007, págs. 9 e 10. No mesmo sentido, XXXXX XXXXXXX XX XXXXX, Código dos Contratos Públicos Anotado e Comentado, 8.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 57; V., ainda, XXXX XXXXXX X XXXXXXX e XXXXX XXXXXXXXX XXXXXXX, Temas de Contratação Pública, Vol. I, 2011, Coimbra Editora, Grupo Wolters Kluwer, pag. 55-60.
competência de adjudicação ou não adjudicação18. Compete a estas entidades a adoção de procedimentos pré contratuais que culminarão, precisamente, com a prática de um ato adjudicatório, ou não adjudicatório, e que dará origem a um contrato público ou à revogação da decisão de contratar e, com ele, o encerramento do procedimento19.
No Art. 2.º, n.º 1, o legislador nacional replica o Art. 2.º, n.º 1, da Diretiva 2014/24/UE, e apresenta um rol exclusivo de entidades adjudicantes clássicas que integram a Administração Pública em sentido orgânico- institucional20.
A Diretiva Comunitária (DC) diz-nos que são “Autoridades adjudicantes”, as autoridades estatais, regionais ou locais”. O mesmo será dizer as entidades tradicionais em sentido orgânico, mas acrescenta uma inovação no seguimento do que tem sido entendimento do TJUE, dizendo que também são consideradas autoridades adjudicantes os organismos de direito público e associações formadas por uma ou mais dessas autoridades ou organismos de direito público, cfr. n.º 1, do Art. 2.º DC 2014/24/UE.
No n.º 2, do Art. 2.º do CCP, o legislador nacional, procedendo a uma “rigorosa transposição da noção comunitária”, decreta que são, também, entidades adjudicantes “os organismos de direito público”, procedendo a uma transcrição do Art. 2.º, n.º 4 da DC 2014/24/UE para o ordenamento jurídico português.
Assim, são entidades adjudicantes propriamente ditas ou em sentido orgânico, o Estado; as Regiões Autónomas; as autarquias locais; os institutos públicos; as entidades administrativas independentes; o Banco de Portugal; as fundações públicas; as associações públicas; as associações de que façam parte uma ou várias das pessoas coletivas referidas nas alíneas anteriores, desde que sejam maioritariamente financiadas por estas, estejam sujeitas ao seu controlo de gestão ou tenham um órgão de administração, de direção ou de fiscalização cuja maioria dos titulares seja, direta ou indiretamente, designada pelas mesmas.
E, são entidades adjudicantes os organismos de direito público “quaisquer pessoas coletivas que, independentemente da sua natureza pública ou privada”:
i. Tenham sido criadas especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem caráter industrial ou comercial, entendendo-se como tais aquelas
18 O Art. 7.º do CCP acrescenta uma outra categoria de entidades adjudicantes nos setores da água, energia, dos transportes e dos serviços postais. Dada a especialidade destas, não faremos referência às mesmas, por não se enquadram na problemática que pretendemos tratar.
19 Arts. 79.º e 80.º do CCP.
20 XXXXXXXX XXXXXXX, “Organismo de Direito Público – Uma categoria jurídica autónoma de direito comunitário intencionalmente aberta e flexível”, in XXXXX XXXXX XXXXXXXXX (org.), Estudos de Contratação Publica – III, Wolters Kluwer – Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pág. 52.
cuja atividade económica se não submeta à lógica concorrencial de mercado, designadamente por não terem fins lucrativos ou por não assumirem os prejuízos resultantes da sua atividade; e
ii. Sejam maioritariamente financiadas por entidades referidas no número anterior ou por outros organismos de direito público, ou a sua gestão esteja sujeita a controlo por parte dessas entidades, ou tenham órgãos de administração, direção ou fiscalização cujos membros tenham, em mais de metade do seu número, sido designados por essas entidades.
Resulta deste preceito a existência de dois requisitos cumulativos: a criação especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem caráter industrial ou comercial, e a influência determinante que, será verificada através do cumprimento de um de três requisitos alternativos, a saber:
i. maioritariamente financiadas por entidades adjudicantes ou por outros organismos de direito público;
ii. a sua gestão esteja sujeita a controlo por parte dessas entidades;
iii. tenham órgãos de administração, direção ou fiscalização cujos membros tenham, em mais de metade do seu número, sido designados por essas entidades.
Como já ficou demonstrado anteriormente, a Fundação de Serralves é uma pessoa coletiva, dotada de personalidade jurídica e, por força do disposto no Art. 4.º, n.º 1, al. a), da Lei-Quadro das Fundações, classificada como fundação privada.
Nesta medida, a Fundação de Serralves tem a sua atuação subordinada à lei privatística, disciplinada no Código Civil21 e, consequentemente, não enquadrável no conjunto de entidades elencadas no Art. 2.º, n.º 1, do CCP.
Ora, fácil é concluir que a Fundação de Serralves não cai no perímetro subjetivo definido no n.º 1, do Art. 2.º do CCP, por não ser classificada como uma das entidades aí elencadas.
21 Em particular, os Arts. 157.º a 166.º e 185.º a 194.º, todos do Código Civil.
4.2 O organismo de Direito Público – Art. 2.º, n.º 2 do CCP
Tanto o legislador comunitário como o julgador europeu têm demonstrado uma enorme indiferença pela natureza formal e pela qualificação, pública ou privada, dos contratantes de cada Estado Membro.
O TJUE já por várias vezes se pronunciou sobre a questão de saber se uma determinada pessoa coletiva privada, nos termos da qualificação interna do Estado Membro, integra ou não a Administração Pública desse Estado Membro. A questão é a de saber se essa pessoa coletiva que aparentemente não integra a administração pública do Estado Membro, foi criada apenas com a ilusão de pertencer ao setor privado, com o objetivo de o Estado Membro em causa contornar o direito europeu dos contratos públicos. XXXX XXXXXX X XXXXXXX abordou esta questão e, no seu estudo levanta o “véu”22, na desconstrução de conceitos tradicionais e no apuramento de verificar se a uma determinada entidade foi criada com o único propósito de fuga do direito administrativo para o direito privado de entidades aparentemente privadas e sujeitas ao direito privatístico quando, na verdade, foram criadas para satisfazer necessidades de interesse geral. 23
Serão entidades cuja ratio de criação é a adulteração das regras contratuais e a substituição do direito público pelo direito privado, sem cumprimento ou verificação dos princípios basilares da criação da União no que, nomeadamente, à concorrência respeita, como adiante se verá.
Tem sido entendimento das autoridades europeias que a interpretação legislativa deverá ser uniforme em todo o território da União. Não poderá uma entidade nacional perigar a concorrência entre os operadores comunitários, colocando entraves à livre circulação de serviços e mercadorias ou discriminar operadores económicos de outros Estados Membro, beneficiando os nacionais.
Como resulta do Acórdão do Tribunal de Justiça, de 1 de fevereiro de 2001, que opôs a Comissão à República Francesa, no processo C-237/99, a coordenação a nível comunitário dos processos de adjudicação dos contratos públicos visa suprimir os entraves à livre circulação de serviços e de mercadoria s e, assim, proteger os interesses dos operadores
22 XXXX XXXXXX X XXXXXXX, “Os “Organismos de Direito Público” e o respetivo regime de contratação: Um caso de levantamento do véu”, in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Xxxxxxxx Xxxxxxx, Coimbra, 2006, págs. 633 - 656.
23 Cfr. Acórdãos de 15 de maio de 2003 – Processo C-214/00 – Comissão vs Espanha e de 16 de outubro de 2003
– Processo C-283/00 – Comissão vs. Espanha.
económicos estabelecidos num Estado-Membro que desejem propor bens ou serviços às entidades adjudicantes estabelecidas noutro Estado-Membro24.
O objetivo das diretivas é excluir simultaneamente o risco de que seja dada preferência aos proponentes ou candidatos nacionais em toda e qualquer adjudicação de empreitada efetuada pelas entidades adjudicantes e a possibilidade de um organismo financiado ou controlado pelo Estado, as autarquias locais ou outros organismos de direito público se deixar guiar por considerações diferentes das económicas. 25.
Temos, assim, um entendimento fundamentado na funcionalidade da entidade adjudicante e não na sua estrutura orgânica, integrada na Administração Pública.
Ora, nos termos do n.º 4, do Art. 2.º da DC 2014/24/EU, e do n.º 2, do Art. 2.º do CCP, são entidades adjudicantes os organismos de direito público que, independentemente da sua natureza pública ou privada, tenham personalidade jurídica; tenham sido criadas especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem caráter industrial ou comercial, entendendo-se como tais aquelas cuja atividade económica se não submeta à lógica concorrencial de mercado, designadamente por não terem fins lucrativos ou por não assumirem os prejuízos resultantes da sua atividade; e sejam (i) maioritariamente financiadas pelas entidades públicas referidas no Art. 2.º, n.º 1 CCP, ou por um organismo de direito público; (ii) sujeitas controlo de gestão por parte dessas entidades ou (iii) tenham os seus órgãos de administração, gestão ou fiscalização maioritariamente designados aquelas entidades, direta ou indiretamente.
Temos, assim, os requisitos de verificação cumulativa para a caracterização de uma determinada entidade como “organismo de direito público”: a personalidade jurídica, a criação para satisfazer necessidades de interesse geral sem carácter industrial ou comercial e a sujeição à influência determinante de um poder público26.
24 V. Acórdão de 3 de outubro de 2000, University of Cambridge, Processo C-380/98,I-8035, n.° 16; também nesse sentido, v., Xxxxxxx de 10 de novembro de 1998, BFI Holding, Processo C-360/96, n.° 41.
25 Acórdão de 3 de outubro de 2000, University of Cambridge, Processo C-380/98,I-8035, n.°17.; nesse sentido,
v. Acórdãos de 15 de janeiro de 0000, Xxxxxxxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx, Processo C-44/96, n.° 33, e BFI Holding, já referido, n.os 42 e 43.
26 A natureza estritamente comunitária da noção de organismo de direito público, que deve, em razão disso mesmo, ser objeto de uma interpretação funcional, autónoma e uniforme, em toda a comunidade, é justamente acentuada pelo TJUE em múltiplos dos seus Acórdãos. V. neste sentido, XXXXXXXX XXXXXXX, “Organismo de Direito Público – Uma categoria jurídica autónoma de direito comunitário intencionalmente aberta e flexível”, in XXXXX XXXXX XXXXXXXXX (org.), Estudos de Contratação Publica – III, Wolters Kluwer – Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, pp. 51-86. Sobre os pressupostos cumulativos a que obedece a fisionomia do conceito de matriz exclusivamente comunitária de organismo de direito público, XXXXX XXXXXXXXX, Direito dos Contratos Públicos, 2021, 5.ª ed., Almedina, pág. 172 -196.
Já vimos que, nos termos do Art. 4.º, n.º 1, alínea a), da Lei-Quadro das Fundações, são fundações privadas “as fundações criadas por uma ou mais pessoas de direito privado, em conjunto ou não pessoas coletivas públicas, desde que estas, isolada ou conjuntamente, não detenham sobre a fundação uma influência dominante”, devendo, para este efeito, entender-se, nos termos do n.º 2, do Art. 4.º da Lei-Quadro das Fundações, que existe influência dominante sempre que os bens que integram o património financeiro inicial da fundação são constituídos por bens maioritária ou exclusivamente dotados por pessoas coletivas públicas, ou, estas entidades têm o direito de designar ou destituir a maioria dos titulares do órgão de administração da fundação.
Como já analisado em momento anterior, é nosso modesto entender que os bens que constituem o património inicial da Fundação de Serralves são provenientes exclusivamente de pessoas de direito privado, pelo que sequer se poderá questionar a possibilidade de uma maioria desse património ter sido inicialmente dotada pelo Estado.
No entanto, e ainda que assim não se entenda, se for considerado o bem em espécie
– a Quinta de Serralves – que integrou o património inicial da Fundação de Serralves, no momento da sua instituição, como património financeiro, sempre se dirá que o valor patrimonial que lhe foi atribuído é inferior aos montantes financeiros que constituíram as dotações das entidades privadas constantes do Art. 35.º dos Estatutos da Fundação de Serralves.
Por outro lado, também já vimos que os titulares dos órgãos de administração e de fiscalização da Fundação de Serralves são maioritariamente designados por pessoas de direito privado, pelo que o Estado não possui qualquer prorrogativa ou direito de designar ou destituir a maioria dos titulares do órgão de administração da Fundação.
Pelo que a Fundação de Serralves é uma Fundação de direito privado nos termos da Lei-Quadro.
Assim, resta proceder ao enquadramento da Fundação de Serralves e a análise da sua estrutura à luz do CCP e da DC 2014/24/UE.
No tocante ao primeiro requisito enunciado, a personalidade jurídica, pensamos que não merece grande discussão dogmática na medida em que se compreende a opção do legislador pela exclusão de pessoas singulares da noção de organismo de direito público. Tal
como resulta do conceito, estamos perante organismos, uma entidade jurídica orgânica, funcional, o que não acontece, por natureza com as pessoas singulares. Como refere XXXX XXXXXXX XX XXXXXX, tendo, embora personalidade jurídica, estão claramente excluídas do conceito de entidade adjudicante as pessoas singulares. E estão-no porque, sendo o Estado e demais entes públicos, por definição, pessoas coletivas ou “morais”, estabelece a lei uma homologia ou afinidade de base entre a estrutura daquelas e as das demais entidades adjudicantes não públicas (entidades “afins” daquelas) que inviabiliza a possibilidade de uma pessoa física assumir tal qualidade27.
Resulta claro da conjugação das disposições do Art. 158.º, n.º 2 do Código Civil com o Art. 1.º do Decreto-Lei n.º 240-A/89, de 27 de julho, que instituiu a Fundação de Serralves, e, designadamente, o Art. 6.º dos seus Estatutos, que esta tem personalidade jurídica autónoma, na medida em que está constituída de um centro autónomo de imputação final de direitos e deveres. Assim, encontra-se preenchida a primeira condição de que depende o reconhecimento da qualidade de organismo de direito público.
4.2.2 Necessidades de interesse geral sem carater comercial ou industrial
Necessidade de interesse geral
O critério de a entidade ter sido criada para satisfazer necessidades de interesse geral é o que maiores dificuldades de densificação comporta, tendo de ser coadjuvado pelo elemento de inexistência de caracter comercial ou industrial da entidade. Estes elementos terão de ser analisados conjuntamente, na medida em que uma determinada entidade pode ter sido criada para satisfazer necessidades de interesse geral, mas, durante o seu percurso e desenvolvimento da sua atividade, em determinado momento, esse elemento já não é verificável. Aliás, a este propósito diga-se que o inverso também poderá acontecer: uma determinada entidade cujo escopo estatutário ou objeto societário não terá, no momento da sua instituição ou criação, a satisfação de uma necessidade de interesse geral e, mais tarde, verifica-se que efetivamente a sua atividade é voltada para o cumprimento deste tipo de necessidades.
A jurisprudência do TJUE tem feito uma interpretação bastante extensiva do preceito, apreciando objetiva, casuística e funcionalmente a verificação deste critério ou elemento. Não
27 XXXX XXXXXXX XX XXXXXX, Introdução ao Direito dos Contratos Públicos, 2021, Almedina, pág. 296.
interessa, e também neste caso, ao TJUE, a classificação formal de uma entidade, ou o seu enquadramento de direito, mas de facto28.
Segundo a jurisprudência comunitária, a noção de “necessidades de interesse geral”, (…) constitui uma noção autónoma de direito comunitário29.
A Fundação de Serralves é uma pessoa coletiva civil, o mesmo será dizer, uma entidade privada, sem fins lucrativos (pela sua própria natureza jurídica), criada por iniciativa de várias pessoas jurídicas (fundadores) para a gestão de uma massa patrimonial que lhe foi cedida definitivamente pelos fundadores, para a satisfação de finalidades de interesse social, designadamente a promoção da cultura30.
Por desenvolver uma finalidade de interesse social – promoção cultural, a Fundação de Serralves foi reconhecida de utilidade pública (Art. 3.º do Decreto-Lei n.º 240-A/89, de 27 de julho). A questão que agora se coloca é a de saber se este facto de direito nos levará a concluir que a Fundação de Serralves prossegue a sua atividade com vista ao suprimento de uma necessidade de interesse geral. Diríamos que sim. A Fundação tem como fins a promoção de atividades culturais no domínio de todas as artes, sendo sua missão estimular o interesse e o conhecimento de públicos de diferentes origens e idades pela Arte Contemporânea, pela Arquitetura, pelo Cinema, pela Paisagem, pelo Ambiente e por temas críticos para a sociedade e seu futuro, fazendo-o de forma integrada com base num conjunto patrimonial de exceção, no qual se destacam o Museu de Arte Contemporânea, a Casa, o Parque e a Casa do Cinema Manoel de Oliveira31.
Nos termos do Art. 4.º da Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública, aprovada pelo
28 No Acórdão Arn vs BFI, P. C-360/96, o Tribunal de Justiça declarou que O artigo 1.°, alínea b), segundo parágrafo, da Diretiva 92/50 deve ser interpretado no sentido de que a existência ou a ausência de necessidades de interesse geral sem carácter industrial ou comercial é apreciada objetivamente, sendo indiferente a este respeito a forma jurídica das disposições em que tais necessidades são expressas.
29 Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxx, de 27 de fevereiro de 2003, P.C-373/00.
30 Art. 3.º, n.º 1 e n.º 2, alínea i) da Lei-Quadro das Fundações. Destaco o contributo inexcedível de XXXXXXXX XXXXXX XXXXXXX, que escrutinou a dogmática fundacional na sua dissertação de doutoramento, Fundações e Interesse Público, Direito Administrativo Fundacional – Enquadramento Dogmático, Xxxxxxxx, 0000. Ver, ainda, o mesmo autor in Estudos de homenagem ao Professor Doutor Xxxxxxxx Xxxxxxx no Centenário do seu Nascimento, volume I, edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, 2006, pág. 339-370. V. XXXXXX XXXXX XXXXX, “Regime Jurídico aplicável às fundações de direito privado e utilidade pública”, in Centro de Estudos de Direito Público e Regulação da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (CEDIPRE), maio de 2011, disponível in xxxxx://xxx.xx.xx.xx/xxxxxxx/xx-xxxxxxx/xxxxxxx/xxxx/xx/xxxxxx_0.xxx, consultado em 25 de julho de 2022; V. XXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX, “O regime das fundações”, in Revista de direito das sociedades, 2013, pág. 715-740, disponível in xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.xx/xxxxx/XXX%000000-00%00(000-000)%00-%00Xxxxxxxx%00-
%20Ant%C3%B3nio%20Menezes%20Cordeiro%20-
%20O%20regime%20das%20funda%C3%A7%C3%B5es.pdf, consultado em 25 de julho de 2022.
31 In xxxxx://xxx.xxxxxxxxx.xx/xxxxxxxxxxxxx-xxxxxxxxx/0.0.-_xx-xxxxxxxx---xxxxxx-xxxxx-x-xxxxxxx/, consultado em 25 de julho de 2022.
Decreto-Lei n.º 36/2021, de 14 de junho, este estatuto pode ser atribuído às pessoas coletivas que prossigam fins de interesse geral, regional ou local e que cooperem, nesse âmbito, com a administração central, regional ou local, logo, dir-se-á, que o interesse geral será o cerne da sua atuação.
Posto isto, a Fundação de Serralves, aparentemente, não desenvolve a sua atividade num contexto de mercado concorrencial, com oferta de bens e serviços, num mercado livre, em concorrência com outros operadores económicos. Tão pouco a Fundação prossegue a sua atividade com vista à maximização do lucro.
No entendimento de PEDRO FERNÁNDEZ SÁNCHEZ32, o legislador nacional introduziu um novo elemento para determinação se uma entidade foi criada especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral. No entendimento deste autor, que acompanhamos, o legislador nacional não teve em conta letra das Diretivas comunitárias ao fazer referência a entidades sem fins lucrativos, pelo que tal referência legislativa deverá ter-se por não escrita. Ora, como vimos, não é esse o entendimento do TJUE, porquanto segue uma linha finalística e funcional, tendo em conta o que a entidade faz e não o que é. Também não é isso que decorre da DC 2014/24/EU quando, no considerando (10) esclarece que um organismo que opera em condições normais de mercado, que tem fins lucrativos, e que assume os prejuízos resultantes do exercício da sua atividade, não deverá ser considerado um «organismo de direito público» uma vez que as necessidades de interesse geral, para satisfação das quais foi criado ou que foi encarregado de cumprir, podem ser consideradas como tendo caráter industrial ou comercial.
Sem carácter comercial ou industrial
Apesar de não ter, como fim da sua atividade o lucro, certo é que, para além do desenvolvimento da atividade social a que está destinada, a Fundação de Serralves desenvolve um outro e significativo conjunto de atividades que permite a subsistência e manutenção da sua atividade, e que sempre se dirá, terá de ser suficiente e capaz de garantir a sua permanência “no mercado”.
Com efeito, através da página eletrónica de Serralves (xxx.xxxxxxxxx.xx), verificamos que esta, antes de mais, obtém receitas de bilhética pelas atividades desenvolvidas
32 XXXXX XXXXXXXXX XXXXXXX, Direito da Contratação Pública, Volume I, AAFDL, reimpressão 2021, págs. 186 e 187.
no Museu de Arte Contemporânea, na Casa de Serralves, no Parque, na Casa do Cinema Xxxxxx xx Xxxxxxxx, mas também possui uma loja e uma livraria, cujas vendas lhe permitem um maior folgo financeiro. Além disso, a Fundação presta serviços expositivos com entidades parceiras; tem serviços educativos que desenvolvem atividades suplementares aos programas cultural e ambiental, com uma forte atividade sazonal; desenvolve parcerias com vista à cedência de espaços para a realização de eventos, presta serviços especializados em arboricultura (...).
Apesar de a Fundação poder obter ganhos ou proveitos com os serviços prestados fora do âmbito social, a verdade é que estes nunca terão como finalidade a obtenção do lucro, mas sim a de alimentar ou de potenciar a tarefa de oferta de bens culturais à comunidade. O que equivale a dizer que, em bom rigor, relativamente a estes, a Fundação não se encontra fora do mercado. Na verdade, a Fundação terá de ter sempre em mente a sua subsistência, pelo que não poderá praticar atos de dumping ou de qualquer outra natureza que distorçam as próprias regras do mercado.
Um outro fator que importa ter em conta para a interpretação do desenvolvimento de uma atividade industrial ou comercial tem que ver com o facto de a Fundação assumir integralmente os eventuais prejuízos que venha a ter com o exercício da sua atividade.
Não existe no diploma instituidor da Fundação de Serralves, nos seus Estatutos na versão primária ou nas suas sucessivas alterações, qualquer normativo que indicie a possibilidade de a entidade adjudicante fundadora Estado ou qualquer outro fundador enquadrado na orgânica administrativa pública, em caso de insuficiência económica ou até insolvência, ainda que técnica, suportam as perdas ou custos decorrentes do exercício da sua atividade. Também não existe a possibilidade de essas perdas serem transferidas para aquelas ou para terceiros.
A Fundação, no caso de incorrer em perdas associadas ao exercício da sua atividade, terá sempre de as suportar com recurso a fundos próprios, como qualquer outra pessoa coletiva privada ou qualquer sociedade comercial. Assim, a Fundação de Serralves terá de ser gerida como qualquer pessoa coletiva que tenha como principal objetivo a obtenção do lucro económico. Podemos concluir firmemente que a Fundação de Serralves suporta os riscos económicos inerentes ao desenvolvimento de atividades no domínio de todas as artes e, consequentemente, que a Fundação prossegue atividades de interesse geral com carácter industrial e comercial.
Vários são os Acórdãos que atribuem ao critério finalístico o elemento determinador
para a verificação do cumprimento do requisito dual de caracter negativo previsto no Art. 2.º, n.º 2, a), i) do CCP33. Atendendo, por exemplo, à decisão de 22.05.2003, Acórdão Taitotalo, no Processo C-18/01, o Tribunal de Justiça veio dizer que se o organismo opera em condições normais de mercado (primeiro elemento indiciador), prossegue um fim lucrativo (segundo elemento indiciador) e suporta as perdas associadas ao exercício da sua atividade (terceiro e derradeiro elemento indiciador), é pouco provável que as necessidades que visa satisfazer não sejam de natureza industrial ou comercial. Nesse caso, - conclui o coletivo - não é, de resto, exigida a aplicação das diretivas comunitárias relativas à coordenação dos procedimentos de adjudicação de contratos públicos, já que um organismo que prossegue um fim lucrativo e que suporta, por si próprio, os riscos associados à sua atividade não se envolverá, em princípio, num procedimento de adjudicação de contratos em condições que não sejam economicamente justificadas.
Uma questão pertinente é a de saber em que medida o subsídio que o Estado assegura estatutariamente à Fundação de Serralves, anualmente, para as despesas de funcionamento da Fundação (Art. 2.º, n.º 1 do DL n.º 240-A/89, de 27 de julho), não equivale a dizer que a Fundação de Serralves não suporta, per si, as perdas associadas à sua atividade. Cremos que não. Resulta do diploma instituidor que o montante a transferir anualmente é o equivalente ao despendido pelo Estado no ano de 1988 com a Casa e o Parque de Serralves. O legislador não previu o custo com o desenvolvimento da atividade cultural anual da Fundação ou com a criação do Museu a que a Fundação ficou obrigada a construir. Estes custos não foram tidos em conta para o cálculo do subsídio ou subvenção anual a realizar pelo Estado34.
O Estado, ao invés, quis garantir a boa manutenção do património dotado à Fundação
– a Casa e o Parque – atribuindo um valor económico anual destinado à cobertura de despesas com o funcionamento da Fundação. Ora, sabemos que a propriedade da Fundação de Serralves, tem uma área de 18 hectares e que à data da instituição da Fundação existiam nesses 18 hectares, uma casa – a Casa de Serralves35, o parque e a quinta. Hoje, a Fundação conta,
33 Por exemplo, no Acórdão Agorá, de 10 de maio de 2001 – Proc. C-223/99 e C-260/99, o Tribunal de Justiça concluiu que uma entidade que tenha por objeto exercer atividades que visam a organização de feiras, exposições e outras iniciativas semelhantes, que não tenha fins lucrativos, embora a sua gestão assente em critérios de rendimento, eficácia e rentabilidade, e que opere num ambiente concorrencial não é um organismo de direito público.
34 Sobre este tema, escreveu XXX XXXXXX XXXXXXX XXXXXXX XXXX, O Direito Administrativo das Subvenções – Enquadramento, Conceito e Regime Jurídico das Subvenções-Fomento, Universidade de Coimbra, 2020, na tese no âmbito do Doutoramento em Direito, no ramo de Direito Público.
35V. xxxxx://xxx.xxxxxxxxx.xx/xxxxxxxxxxxxx-xxxxxxxxx/xxxx-xx-xxxxxxxxx-xxxxxxxxxxxx/, consultado em 25 de julho de 2022;
para além do património referido, com o Museu de Arte Contemporânea, a Casa do Cinema Xxxxxx xx Xxxxxxxx, várias outras infraestruturas, entretanto por si criadas e está a ampliar o Museu, numa nova infraestrutura, já em fase de construção da empreitada. Ora, daqui se poderá facilmente concluir que a verba afeta à Fundação de Serralves pelo Estado, anualmente, não será suficiente para o desenvolvimento da sua atividade, mas apenas tão só para a comparticipação nas despesas de funcionamento. Aliás, uma vez mais através deste critério, reforça-se a ideia de que a dotação inicial do Estado é nula, na medida em que a entidade adjudicante instituidora-fundadora, inicialmente, não esteve preocupada em manter a sua presença no Conselho de Fundadores, mas, acima de tudo garantir que o património que doou à Fundação reverteria para si, ainda que a causa da extinção da Fundação fosse a si imputável. Preocupou-se, ainda, o fundador Estado em garantir à Fundação que esta manteria o funcionamento do Parque e a Casa de Serralves.
Através do Relatório e Contas da Fundação de Serralves relativo ao ano de 202136, o subsídio do Estado Português, atribuído estatutariamente à Fundação de Serralves para suprir gastos de funcionamento, em 2021, foi de quatro milhões e cem mil euros, o que corresponde a 34% dos rendimentos totais da Fundação. Do mesmo documento resulta que os gastos totais da Fundação foram de onze milhões e oitocentos mil euros. Ainda que dúvidas houvesse da inexistência de mecanismos legais, estatutários ou paraestatutários que conduzissem a um resultado alternativo e que indiciassem que, de algum modo, as perdas da Fundação de Serralves com o exercício da sua atividade e prestação de serviços sociais no setor cultural, poderiam ser suportadas por terceiros, a verificação dos Relatórios e Contas disponibilizados pela Fundação de Serralves levam a concluir claramente que a Fundação de Serralves suporta todas as perdas associadas ao exercício da sua atividade.
4.2.3 Sujeição à influência determinante37 – Art. 2.º, n.º 2, alínea a), subalínea ii)
36 Disponível in xxxxx://xxx.xxxxxxxxx.xxx/XXXXXXXX/XxX_0000/000/, págs. 198-199, consultado em 25 de julho de 2022.
37 O Art. 7.º CCP procede a uma extensão do universo das entidades adjudicantes nos setores da água, energia, transportes e serviços postais. Para tanto, no n.º1, a), o legislador fez-se valer do conceito de “influência dominante” de uma entidade adjudicante referida no Art. 2.º, sobre uma pessoa coletiva que opere num destes setores especiais. XXXXX XXXXX XXXXXXXXX e XXXX XXXXXXX XX XXXXXX adotaram o conceito que acompanhamos, de influência determinante, ao contrário de outros autores como XXXXXXXX XXXXXXX, “Organismo de Direito Público – Uma categoria jurídica autónoma de direito comunitário intencionalmente aberta e flexível”, in XXXXX XXXXX XXXXXXXXX (org.), Estudos de Contratação Publica – III, Xxxxxxx Xxxxxx – Coimbra
Excluída que está a possibilidade de a Fundação de Serralves ser considerada um Organismo de Direito Público, por não se encontrar cumprido um dos requisitos cumulativos enunciados no Art. 2.º, n.º 2, a) do CCP, e, desta forma não estar sujeita à aplicação do referido Código por não se enquadrar no âmbito subjetivo do mesmo, não poderemos deixar de continuar a desbravar o conceito de organismo de direito público.
Assim, analisaremos, agora, os três sub-requisitos alternativos que os legisladores comunitário e nacional, na esteira das declarações proferidas pelo TJUE, enumeraram para a aferição da existência da capacidade de uma entidade adjudicante influenciar as decisões, no âmbito de procedimentos pré-contratuais, de uma outra entidade (pessoa coletiva com personalidade jurídica que tenha sido criada para o fim específico de satisfazer necessidades de interesse geral, sem caráter industrial ou comercial determina a orientação de uma decisão tomada por uma entidade) de modo a que esta decida num determinado sentido e celebre contratos públicos, em violação das regras de circulação de bens e serviços e desvirtuamento da concorrência.
Nos termos do Art. 2.º, n.º 2, a), ii), a influência determinante de uma ou mais entidades adjudicantes sobre uma pessoa coletiva não adjudicante (organicamente) verifica-se quando se apura a presença de um dos seguinte três fatores: (i) financiamento maioritário da atividade da pessoa coletiva; (ii) controlo da gestão por parte dessa entidade; (iii) os membros dos órgãos de administração, direção ou fiscalização tenham sido, em mais de metade do seu número, designados por essa entidade.
Para o legislador bastará, então, que um determinado organismo, dotado de personalidade jurídica que tenha sido criada para a satisfação de uma necessidade de interesse geral, sem caracter comercial ou industrial e seja influenciada, por alguma das vias referidas, para que fique sujeita às regras da contratação pública.
Na opinião de XXXXXXXX XXXXXXX, apenas o critério do controlo da gestão é verdadeiramente qualitativo. De acordo com este autor, um determinado ente público poderá financiar uma determinada entidade, de forma que esta depende maioritariamente ou até totalmente desse financiamento, sem desejar interferir na gestão dessa mesma entidade. De
Editora, Coimbra, 2010, pág. 76, e XXXXXXXX XXXXXX XXXXXXX, “As fundações como entidades adjudicantes no Código dos Contratos Públicos - algumas considerações”, in Revista de contratos públicos, n.º. 4, 2012, págs. 225 e 226, que preferiram adotar o conceito de influência dominante na esteira do que foi preconizado pelo legislador nacional. A este propósito, V. XXXX XXXXXXX XX XXXXXX, Introdução ao Direito dos Contratos Públicos, Almedina, 2021, pág. 303, e XXXXX XXXXX XXXXXXXXX, Direito dos Contratos Públicos, 5.º Edição, Almedina, 2021, págs. 186 e 187.
igual modo, um ente público poderá ter a prorrogativa de nomear os membros dos órgãos de gestão e/ou de fiscalização e, ainda assim, não ser seu propósito ter qualquer influência nas decisões a tomar pelos mesmos38.
Este é o requisito (para sermos mais precisos, subrequisito) que mais dificuldades tem trazido – ainda que não no seio da doutrina e da jurisprudência, mas tão só no aplicador comum, mormente as Autoridades de Gestão de Fundos Europeus.
Parece evidente que o financiamento maioritário que uma entidade adjudicante ou um organismo de direito público providencia a uma entidade terceira poderá determinar uma dependência económica e, nessa medida, uma influência sobre as decisões pré-contratuais ou contratuais que a entidade dependente tem de adotar no exercício da sua atividade (económica).
Antes de mais, importa definir o que se entende por financiamento.
O TJUE, no Acórdão de 3.10.2000, University of Cambridge (Processo C-380/98), analisou esta questão, enquanto requisito de influência determinante, concluindo no ponto 21 que apenas as prestações de financiamento ou de apoio, mediante auxílio financeiro sem contraprestação específica, das atividades da entidade em causa poderão qualificar-se de “financiamento público”. O Tribunal vem, assim, dizer que para a aferição da existência de influência determinante terá de se considerar apenas e tão só os financiamentos efetuados por entidades adjudicantes ou organismos de direito público que não impliquem uma contraprestação. O mesmo será dizer que uma prestação no âmbito de relações contratuais de natureza sinalagmática terá de ser excluída da definição de financiamento. Os pagamentos devidos por uma entidade adjudicante no âmbito de um contrato, no cumprimento de obrigações contratualmente convencionadas, de fornecimento ou de prestação de serviços, não poderão ser considerados para efeitos da determinação de influência.
Há, contudo, que aferir se este financiamento é efetuado indiretamente, nomeadamente através da concessão a uma pessoa coletiva de direito privado do direito de
38 V. Acórdão de 03 de janeiro de 2000, University of Cambridge, Processo C-380/98, em que se coloca esta questão, dizendo o Tribunal que se o modo de financiamento de um dado organismo pode ser revelador de dependência estreita desse organismo relativamente à outra entidade adjudicante, é forçoso todavia concluir que este critério não é absoluto. Nem todos os pagamentos efetuados por uma entidade adjudicante têm como efeito a criação ou o aprofundamento de um nexo específico de subordinação ou de dependência.
aplicar taxas ou de fazer cobranças, direitos estes que constituem verdadeiras prerrogativas do Estado39.
XXXXX XXXXX XXXXXXXXX dá ainda nota da necessidade de categorizar o financiamento de uma forma positiva ou negativa. Será positivo o financiamento atribuído pelo Estado ou por uma entidade adjudicante o que resulta, por exemplo, na atribuição ou doação de dinheiro. Em contraposição, será negativo o financiamento que resulta, por exemplo da concessão de benefícios fiscais ou da isenção de pagamento de taxas ou impostos.
Não podemos deixar de proceder à aplicação desta interpretação à Fundação de Serralves, na medida em que foi declarada a isenção de IRC, por Despacho de 11 de junho de 1990, publicado no Diário da República n.º 195, III Série, no que respeita aos rendimentos comerciais e industriais diretamente derivados do exercício das atividades desenvolvidas no âmbito dos seus fins estatutários; rendimentos de capitais, com exceção dos títulos ao portador não registados nem depositados; rendimentos prediais e ganhos de mais-valias.
O Art. 9.º do Decreto-Lei n.º 469/77, de 7 de novembro (entretanto revogado), que aprovou o estatuto das coletividades de utilidade pública, estatuía que as pessoas coletivas de utilidade pública gozam das isenções fiscais que forem previstas na lei. O Art. 11.º da Lei n.º 36/2021, de 14 de junho, que aprovou a Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública, no seguimento do Decreto-Lei n.º 469/77, estabelece que as pessoas coletivas com estatuto de utilidade pública gozam de determinados direitos e benefícios aí discriminados, entre os quais isenções tributárias relativas a imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (Art. 1.º, n.º 1, b), iii)).
Ora, temos então que a Fundação de Serralves, por ser uma entidade reconhecida de utilidade pública, goza do benefício de obter isenções ficais no âmbito da atividade de cariz social que desenvolve por imposição estatutária e pela qual obteve o reconhecimento de utilidade pública. Considerando o conceito de “financiamento” adotado pela jurisprudência europeia, a questão é a de saber se as verbas que resultam da isenção, em sede de IRC, para a Fundação de Serralves deverão ser como tal consideradas.
A Fundação de Serralves desenvolve a sua atividade em prol da sociedade. Para tal, promove o acesso à comunidade de atividades a título gratuito e outras cujo pagamento associado é meramente residual. Poder-se-á dizer que a isenção de pagamento de imposto
39 A propósito do financiamento indireto, V Acórdãos. de 12 de setembro de 2013, IVD GmbH, P. C-526/11; de 11.09.2009, Xxxx & Xxxxxxxxxxxxx Xxxxxxx, p. C-300/07, e de 13 de dezembro de 2007, Bayrischer Rundfunk, P. C-337/06.
sobre os seus rendimentos, no âmbito da atividade desenvolvida estatutariamente, será uma contrapartida do Estado pelo cumprimento do seu dever estatutariamente imposto.
A jurisprudência comunitária diz-nos que não será considerado financiamento, para efeitos de determinação de uma influência determinante, aquele de que resultar uma contrapartida pela prestação de um serviço ou pelo fornecimento de um bem.
É certo que não podemos falar, neste caso, de uma relação sinalagmática, onde as partes são cocontratantes, em sentido próprio. No entanto, sempre se dirá que a Fundação de Serralves aceitou desenvolver uma atividade que compete, prima facie ao Estado, e cujo beneficiário será o povo desse mesmo Estado40; e que, como tal, deverá ter algum benefício associado como contrapartida desse serviço.
Na verdade, no momento da instituição da Fundação de Serralves, o Estado desvinculou-se de parte da obrigação social de promoção cultural, encontrando um parceiro que exerce uma atividade que lhe está adstrita e que, simultaneamente, suporta todas as perdas dessa atividade. Parece aceitável que, perante tal responsabilidade e risco assumido pela Fundação, a mesma seja ressarcida do serviço que presta à comunidade.
Contudo, o verdadeiro argumento encontra-se na própria lei. Este benefício fiscal não poderá ser classificado como uma subvenção ou um benefício financeiro sem qualquer contrapartida, na medida em que o próprio Decreto-Lei n.º 167/2008, de 26 de agosto (Regime jurídico aplicável à atribuição de subvenções públicas), exclui do seu âmbito de aplicação todos os benefícios fiscais ou parafiscais (Art. 1.º, n.º 5, b)).
Este benefício é automático, de reconhecimento vinculado pela Administração. Não resulta de qualquer contrato ou ato administrativo (caso da subvenção), no exercício do poder discricionário que lhe está adstrito. Também não decorre de um impulso da entidade privada que fica à mercê da vontade ou oportunidade da Administração. Antes, decorre da lei, mais concretamente da declaração de utilidade pública de uma determinada pessoa coletiva, nos termos da Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública e do próprio Código de IRC. É uma prerrogativa estatutária das pessoas coletivas de utilidade pública.
O conceito de financiamento deverá constituir um subsídio ou uma subvenção que pressuponha um verdadeiro benefício para a entidade que o recebe sem contrapartidas por qualquer prestação dessa mesma entidade.
40 O conceito de “Estado” pressupõe um ordenamento jurídico geral constituído por três elementos: Territorialidade, população e politicidade. V. J. J. XXXXX XXXXXXXXX, Direito Constitucional, 6.ª Edição revista, Almedina, 1993, págs. 14 e 15.
Assim, é nosso entendimento que uma tal isenção não poderá ser considerada uma subvenção ou um financiamento nos termos e para efeitos da subalínea ii), da alínea a), do n.º 2, do Art. 2.º do CCP.
Decorre do Acórdão de 24.07.2003, Acórdão Altmark, no processo C-280/00, ponto 87, que uma intervenção estatal sob a forma de compensação, que representa a contrapartida das prestações efetuadas pelas empresas beneficiárias para cumprir obrigações de serviço público, de forma que estas empresas não beneficiam, na realidade, de uma vantagem financeira,(…) a referida intervenção não tem por efeito colocar essas empresas numa posição concorrencial mais favorável em relação às empresas que lhes fazem concorrência, (pelo que) essa intervenção não cai sob a alçada do artigo 92.°, n.° 1, do Tratado.
No mesmo Xxxxxxx, é declarado que as subvenções públicas que se destinam a permitir a exploração de serviços regulares de transportes urbanos, suburbanos ou regionais não caem sob a alçada desta disposição na medida em que devam ser consideradas uma compensação que representa a contrapartida das prestações efetuadas pelas empresas beneficiárias para cumprir obrigações de serviço público.
Importa distinguir, nesta parte do estudo, aquilo que é “financiamento público” do que é “receita pública”. Para este efeito, estão aqui enquadradas transferências financeiras não reembolsáveis, subsídios e subvenções a uma determinada entidade e que não implicam qualquer contrapartida para o Estado ou para a entidade pública que atribuiu essa verba financeira. Para efeitos da determinação de financiamento maioritário não deverão ser, inclusivamente, contabilizadas quaisquer indemnizações devidas por uma entidade pública. Assim, qualquer transferência efetuada por uma entidade adjudicante que implique uma contraprestação pela entidade recetora, não deverá ser considerado financiamento público por estarmos no âmbito de uma relação contratual de natureza sinalagmática.
O intérprete deste requisito deverá, ainda, ter em consideração o entendimento genericamente aceite e proclamado pelo TJUE de que o financiamento público maioritário não tem de advir de apenas uma entidade adjudicante, mas poderá consistir no somatório de transferências financeiras originárias de vários entes públicos.
Importa, neste ponto, caracterizar os financiamentos provindos de candidaturas a fundos comunitários que não impliquem uma devolução de verbas pela entidade beneficiária. A questão é a de saber se deverão ser considerados como financiamento nos termos do Art. 2.º, n.º 2, a), ii).
Partindo do princípio de que se trata de transferências financeiras para uma entidade
beneficiária, que não estão sujeitas a reembolso ou a qualquer outra prestação, nos termos do Art. 1.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 167/2008, de 26 de agosto, podemos dizer que os financiamentos comunitários serão equiparados às subvenções públicas.
A doutrina divide-se. Enquanto XXXXX XXXXX XXXXXXXXX 41 e XXXXXXXX
AZEVEDO 42 advogam que financiamentos comunitários provindos de financiamento comunitário não deverão ser considerados “financiamento” no âmbito do Art. 2., n.º 2, a), ii), outros autores como JOÃO PACHECO DE AMORIM43, XXXXX XXXXXXX XX XXXXXXXX & XXXXXXX
ESTEVES DE OLIVEIRA44, e PEDRO FERNÁMDEZ SÁNCHEZ45 entendem em sentido contrário, não discriminando a origem do “financiamento público” entre nacional e comunitária.
Olhando à letra da lei (DC 2014/24/UE e CCP), o interprete terá de concluir que, efetivamente, o legislador quis limitar o conceito de “financiamento” a fundos transferidos pelas entidades adjudicantes referidas no Art. 2.º, n.º 1, do CCP, ou pelos organismos de direito público, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, originários do orçamento do Estado Português.
O n.º 2 do Art. 1.º do Decreto-Lei n.º 167/2008, de 26 de agosto, define subvenção pública toda e qualquer vantagem financeira atribuída, direta ou indiretamente, a partir de verbas do Orçamento do Estado, qualquer que seja a designação ou modalidade adotada. Tratando-se de um financiamento comunitário, não estamos perante uma vantagem financeira que advenha do Orçamento do Estado.
Uma especificidade dos financiamentos comunitários face a uma subvenção ou subsídio advém do destinatário do financiamento. Enquanto as subvenções são atribuídas a entidades públicas ou privadas para compensar determinada atividade desenvolvida em prol da comunidade, normalmente nas áreas social, económica e cultural, os fundos comunitários têm um escopo absolutamente diferenciado. Aqui o benefício não é atribuído à entidade, mas
41 XXXXX XXXXX XXXXXXXXX, Direito dos Contratos Públicos, 5.º Edição, Xxxxxxxx, 0000, pags.188-192 e 205- 213.
42 XXXXXXXX XXXXXXX, “Organismo de Direito Público – Uma categoria jurídica autónoma de direito comunitário intencionalmente aberta e flexível”, in XXXXX XXXXX XXXXXXXXX (org.), Estudos de Contratação Publica – III, Wolters Kluwer – Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, págs. 79 e 80, e “Contratação Pública e Fundos Comunitários”, in Revista de Direito Público e Regulação, n.º 1, 2009, disponível em xxxxx://xxx.xx.xx.xx/xxxxxxx/xx-xxxxxxx/xxxxxxx/0000/00/xxxxxxx_0.xxx, págs. 5 a 8, consultado em 25 de julho de 2022.
43 XXXX XXXXXXX XX XXXXXX, Introdução ao Direito dos Contratos Públicos, 2021, Almedina, págs. 304 e 305.
44 XXXXX XXXXXXX XX XXXXXXXX & XXXXXXX XXXXXXX XX XXXXXXXX, Concursos e Outros Procedimentos de Contratação Pública, Almedina, 2011, págs. 62-65.
45 XXXXX XXXXXXXXX XXXXXXX, Direito da Contratação Pública, Volume I, AAFDL, reimpressão, 2021, pág. 175.
ao projeto que culminará num contrato. Melhor dizendo: sendo aberto um concurso para apresentação de candidaturas no âmbito de um programa operacional (OP) ou de um programa de desenvolvimento regional (PDR), uma entidade que, nos termos da candidatura, esteja em condições subjetivas de concorrer, poderá submeter à consideração da autoridade de gestão, um determinado projeto com a intenção de que o mesmo venha a ser qualificado (pela autoridade de gestão) de modo a conseguir a pontuação suficiente para que esse projeto candidatado seja aprovado e, logo, merecedor de financiamento por parte das instâncias europeias. Temos, então, que o beneficiário dos fundos europeus não será a entidade que candidatou o projeto, mas o contrato em que essa candidatura resultar. Alias, esse projeto poderá nem sequer beneficiar a entidade que o candidatou.
Voltando ao caso da Fundação de Serralves, vejamos, por exemplo, os projetos “Olhares inclusivos”, “Janelas para o Mundo” e “Con(s)cinciarte”. São projetos candidatados à iniciativa “Portugal Inovação Social”, que permitem o acesso à educação inclusiva, equitativa e de qualidade. No caso do primeiro projeto, os beneficiários são pessoas com necessidades especificas, na cidade do Porto, sendo o projeto desenvolvido em outras instituições com essas valências. O projeto “Janelas para o Mundo” é executado em dois estabelecimentos prisionais do distrito do Porto, sendo os seus beneficiários os reclusos que aderiram ao programa. Já o “Con(s)cinciarte”, é destinado à comunidade educativa da Região Norte46.
Um outro dado que complementa o entendimento de XXXXXXXX XXXXXXX e XXXXX XXXXX XXXXXXXXX – apesar de os autores não fazerem esta construção jurídica - tem que ver com a previsão, nos Art. 275.º, 276.º e 277.º do CCP, relativa aos contratos subsidiados, contratos a celebrar por concessionários de obras públicas que não sejam entidades adjudicantes e contratos a celebrar por entidades beneficiárias de direitos especiais ou exclusivos no exercício de atividades de serviço público, respetivamente.
Sem proceder a uma análise destes normativos - que comportam uma extensão ao âmbito de aplicação do regime de contratação pública previsto no Art. 2.º e no Art. 7.º do CCP
- e procedendo à interpretação da lei nos termos do Art. 9.º do Código Civil, sempre se dirá que o legislador nacional e europeu 47 pretenderam distinguir financiamento público a entidades adjudicantes de financiamento de contratos. É que, efetivamente, o facto de um
46 Informação disponível no Relatório e Contas de 2021 da Fundação de Serralves, divulgado em xxxxx://xxx.xxxxxxxxx.xxx/XXXXXXXX/XxX_0000/000/, consultado em 25 de julho de 2022.
47 O Art. 275.º do CCP resulta da Diretiva Comunitária 2014/24/UE.
determinado contrato ser financiado não deverá implicar que a entidade contratante deva ser classificada como organismo de direito público apenas e tão só por, num certo momento da sua vida, ter um determinado projeto financiado.
Outro dado curioso é o que decorre, a título exemplificativo, da “Norma de Gestão n.º 2/NORTE2020/2015”, revisto pela terceira vez em 2021, relativa ao Cumprimento das regras associadas à contratação pública 48 . Neste documento 49 é admitido que, embora a responsabilidade pelo cumprimento dos normativos legais, em matéria de contratação pública, seja sempre das entidades beneficiárias, impende sobre a Autoridade de Gestão do NORTE 2020, bem como sobre as entidades por esta designada, o dever de verificar à posteriori os documentos que fundamentam a adjudicação e os contratos celebrados, acompanhando a sua execução.
Como veremos adiante, e como já ficou implícito anteriormente, esta declaração será importante para a aferição da possibilidade de a autoridade de gestão destes programas ter algum controlo sobre a gestão das entidades beneficiárias.
O TJUE também já determinou o alcance do conceito de “maioria”, tendo, para o efeito, encontrado uma fórmula extramente simples: “maioritariamente” significa mais de metade.
Como já referido anteriormente, o subsídio do Estado Português, atribuído estatutariamente à Fundação de Serralves para suprir gastos de funcionamento, em 2021, foi de quatro milhões e cem mil euros, o que corresponde a 34% dos rendimentos totais da Fundação. Do mesmo documento resulta que os gastos totais da Fundação foram de onze milhões e oitocentos mil euros. Assim, não restam dúvidas de que o financiamento provindo de entidades adjudicantes é significativamente inferior a metade, pelo que a Fundação de Serralves assume todas as perdas com o exercício da sua atividade e prestação de serviços sociais no setor cultural que desenvolve. E resulta, ainda, dos seus Estatutos, que as mesmas não são suportadas por qualquer outra entidade, seja ela pública ou privada, dada é a sua total autonomia patrimonial e financeira.
O apuramento da existência de financiamento público maioritário deverá ser
48 Disponível em file:///C:/Users/Ana%20Machado/AppData/Local/Temp/Temp1_bNorma_de_Gestao_n.o_2_- 2015_Rev._3_-_Out._2021.zip/Norma%20de%20Gest%C3%A3o%20n.%C2%BA%202%20- 2015%20Rev.%203%20-
%20Out.%202021/N2020_NormaGest%C3%A3o_2_Contrata%C3%A7%C3%A3oP%C3%BAblica_Rev3%20-
%20set.%202021formatado.pdf, pág. 24, consultada em 25 de julho de 2022.
49 Contém as normas pelas quais as entidades beneficiárias se devem reger no âmbito da execução de projetos candidatados a financiamento comunitário e cujo mérito mereceu reconhecimento pela entidade de gestão.
realizado anualmente, de acordo com o ano económico de exercício. Este é o entendimento da doutrina e da jurisprudência.
Significa isto que uma pessoa coletiva privada poderá ser considerada como organismo de direito público e, consequentemente, como entidade adjudicante, no campo das hipóteses, ano sim, ano não. A condição de “organismo de direito público” pode oscilar de um exercício económico para o outro seguinte.
Para efeitos de cumprimento deste requisito alternativo, previsto na subalínea ii), da alínea a), do n.º 2, do Art. 2.º do CCP, as entidades beneficiárias de subsídios ou subvenções públicas terão de pautar-se por orçamentos previsionais, preferencialmente efetuados com base nos elementos disponíveis no início do exercício orçamental. As receitas previstas para o exercício orçamental deverão ser avaliadas anualmente com base nos indicadores económico financeiros estimados. No entanto, é de ressalvar que, caso uma entidade beneficiária se aperceba que a determinado momento do ano orçamental a percentagem de financiamento público já ultrapassou a maioria das receitas previstas para esse mesmo ano, deverá passar a considerar-se como organismo de direito público e, em consequência (e caso cumpra o requisito previsto na subalínea i), da alínea a), do n.º 2, do Art. 2.º do CCP) passar a aplicar o Código dos Contratos Públicos no exercício da sua atividade.
Como podemos verificar desta construção normativa, o critério agora em apreciação, sendo um dos mais importantes, na medida em que poderá determinar, também, um controlo da gestão por parte de uma ou mais entidades adjudicantes, causa uma grande incerteza na entidade beneficiária. Não só na gestão do seu orçamento, como, essencialmente, na estrutura organizativa dessa mesma entidade. É difícil conceber que uma entidade privada, que sempre atuou de acordo com os normativos privatísticos, a determinado momento da sua vida, tenha de se voltar para as regras procedimentais publicistas, com toda a sua carga burocrática associada.
Olhando para o quadro empresarial português, o cumprimento das regras públicas não é compatível com a dinâmica de mercado concorrencial. Apesar de ser este o mote que se pretende com a aplicação do CCP – a de proteger a concorrência quando há entidades que estão a atuar no mercado que não estão em pé de igualdade com quem está no mercado concorrencial.
O facto de uma determinada pessoa coletiva ter a sua gestão controlada por uma entidade adjudicante poderá qualificar essa pessoa coletiva como organismo de direito público, na medida em que este é um dos três subrequisitos alternativos enunciados na subalínea ii), da alínea a), no n.º 2, do Art. 2.º do CCP. Este critério, ao contrário dos outros dois previstos naquele normativo, que são quantitativos, será sujeito a uma apreciação qualitativa.
O TJUE já se pronunciou inúmeras vezes sobre este conceito, tendo declarado que no que respeita ao critério relativo ao controlo da gestão, o mesmo deve criar uma dependência do organismo em causa em relação aos poderes públicos, equivalente à que existe quando um dos outros dois critérios alternativos está preenchido, ou seja, um financiamento proveniente maioritariamente dos poderes públicos ou a nomeação por estes da maioria dos membros que compõem o órgão de administração, de direção ou de fiscalização deste organismo, de modo a permitir aos poderes públicos influenciarem as decisões do referido organismo em matéria de contratos públicos. No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça, no Acórdão que opôs a Comissão à República Francesa, veio referir que, para aferir se existe controlo de gestão há que examinar se os diferentes controlos a que as [pessoas coletivas] estão sujeitas criam uma dependência destas relativamente aos poderes públicos que permita a estes últimos influenciar as suas decisões em matéria de contratos público.50.
Nas palavras de XXXXX XXXXX XXXXXXXXX, este poder de controlo de gestão culminará num poder de orientação ou de influenciação de modo que a entidade adjudicante ou poder público tenha a capacidade de determinar as finalidades ou objetivos a prosseguir por um organismo51.
O TJUE também já veio dizer que não são enquadráveis neste conceito os poderes de fiscalização ou de simples controlo a posteriori. É necessário que haja uma efetiva orientação, regular, que permita, inclusivamente, decidir o sentido de uma determinada adjudicação52.
50 Acórdão de 27 de fevereiro de 2003, Xxxxx Xxxxxx, P. C-373/99, ponto 69.; e Acórdão de 01 de fevereiro de 2001, Comissão vs França, P. C-237/99, ponto 48.
51 XXXXX XXXXX XXXXXXXXX, Direito dos Contratos Públicos, 5.º Edição, Almedina, 2021, pág. 193.
52 Apesar da doutrina portuguesa estar em sintonia neste ponto e em total acordo com o que tem vindo a ser declarado pelo TJUE, a jurisprudência portuguesa tem entendido em sentido diferente. V. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 08de outubro de 2008, Processo n.º 1308/02 e Acórdãos do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 05de abril de 2008, Processo n.º 584/16.1BELLE, e de 10.10.2019, Processo n.º 836/19.9 BELSB. Cf. Publicação anteriormente citada, pág. 194. V, ainda, Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxx, Introdução ao Direito dos Contratos Públicos, 2021, Almedina, págs. 305 – 309.
Retomemos, aqui, a “Norma de Gestão n.º 2/NORTE2020/2015”, quando refere que impende sobre a Autoridade de Gestão do NORTE 2020, bem como sobre as entidades por esta designada, o dever de verificar à posteriori os documentos que fundamentam a adjudicação. Apesar de a Autoridade de Gestão ter o poder de decidir se determinada candidatura a um fundo comunitário será aprovada ou não, classificando-a, inclusivamente, a vários níveis e pronunciando-se sobre o mérito da mesma, não tem o poder de influenciar a adjudicação, pelo que a entidade candidata exercerá esse direito de forma autónoma. A atuação da Autoridade de Xxxxxx terá relevo num momento posterior à adjudicação e à própria celebração do contrato, na medida em que lhe compete fiscalizar o cumprimento das regras da concorrência pré-contratuais e a execução do contrato, no cumprimento dos termos em que a candidatura foi aprovada. Poderá acontecer que no decorrer da execução do contrato se chegue à conclusão que um determinado vetor do projeto candidatado e aprovado poderá decorrer de uma forma diferente. Ora, a Autoridade de Gestão tão pouco poderá sugerir a alteração da candidatura. Terá de ser a candidata – aqui já a entidade beneficiária - a propor a alteração e a Autoridade de Xxxxxx, então sim, autorizará a alteração da candidatura anteriormente aprovada ou não.
A gestão da Fundação de Serralves está atribuída ao conselho de administração, nos termos do Art. 15.º dos seus Estatutos, competindo-lhe praticar todos os atos necessários à prossecução dos fins da Fundação, dispondo dos mais amplos poderes para o efeito.
Já vimos que a Fundação de Serralves também não depende financeiramente de qualquer entidade adjudicante ou organismo público, na medida em que não é maioritariamente financiada por qualquer uma das entidades previstas no Art. 2.º do CCP. Não existe qualquer outra entidade que – por ato legislativo ou contrato – tenha o poder de gerir a Fundação de Serralves, assim, a sua gestão não está sujeita a influências ou orientações de terceiros, o que equivale dizer que não tem a sua gestão controlada por terceiros.
Apesar do que ficou atrás dito sobre o controlo da gestão e da conclusão de que esta compete ao conselho de administração da Fundação de Serralves, importa aferir qual o método estatutariamente definido para constituição do conselho de administração.
Os Arts. 8.º, 9.º e 10.º dos Estatutos da Fundação de Serralves estatuem que o conselho de administração é composto por nove membros, escolhidos pelo próprio conselho, por cooptação, com exceção de dois, que serão sempre escolhidos pelo Estado, sendo que a maioria dos membros do conselho de administração será sempre constituída maioritariamente por membros do conselho de fundadores. Neste sentido é muito pouco provável que o conselho
de administração venha a ter, nos seus membros, uma maioria de entidades que direta ou indiretamente tenham alguma influência nas decisões da Fundação, pelo que dificilmente, situação, alias, que não se antecipa, a gestão da Fundação será controlada por entes públicos. Para sustentar esta tese, é relevante conhecer os fundadores da Fundação de Serralves,
apesar de, ao conselho de fundadores, ser atribuído um papel institucional e fiscalizador e não gestor.
Pela consulta da página eletrónica da Fundação de Serralves53, são 319 os fundadores, sendo 231 pessoas coletivas de natureza privada, 48 pessoas singulares, físicas, 35 autarquias locais, 4 instituições públicas, e o Estado. Temos, então, 279 fundadores de natureza privada e 40 fundadores de natureza pública, onde se inclui o próprio Estado. Significa que apenas 12,5% dos membros do conselho de fundadores são entidades de natureza pública.
Dos Estatutos da Fundação (Art. 22.º e ss.) não resulta qualquer benefício, vantagem ou direito especial de voto para qualquer fundador, nem tão pouco este benefício está previsto contratualmente ou resulta de qualquer diploma legal. Assim, o mesmo é dizer que todos os fundadores que integram o conselho de fundadores da Fundação de Serralves estão em pé de igualdade no tocante à tomada de decisões, valendo, para o efeito, uma presença, um voto.
Neste sentido, não existe a possibilidade de, ainda que indiretamente, o Estado e as demais entidades públicas que compõem o conselho de fundadores da Fundação de Serralves controlarem a gestão da Fundação.
Designação de mais de metade de membros dos órgãos de administração, direção ou fiscalização
Resta analisar o último subrequisito previsto na subalínea ii), da alínea a), do n.º 2, do Art. 2.º do CCP: a possibilidade de designação, por uma ou mais entidades adjudicantes ou organismos de direito público, de mais de metade de membros dos órgãos de administração, direção ou fiscalização.
Este subrequisito, ao contrário dos demais, não resulta de um critério resultante de orientações jurisprudenciais ou conceitos definidos pelo TJUE, mas de opções do legislador comunitário e nacional.
A atual redação do CCP, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 111-
53 xxxxx://xxx.xxxxxxxxx.xx/xxxxxxxxxxxxx-xxxxxxxxx/0.0.-_xx-xxxxxx---xxxxxxxxxx/, consultada em 25 de julho de 0000
X/0000, de 31 de agosto, harmonizou a interpretação do subrequisito, na medida em que, na anterior redação, este estaria verificado se o direito de designação de mais de metade dos membros dos órgãos de administração, direção ou fiscalização da pessoa coletiva fosse exercido de forma direta ou indireta, pela entidade pública ou por interposta pessoa.
A nova redação dada ao preceito também veio esclarecer que não é suficiente a possibilidade de designação da maioria dos órgãos de administração, direção ou fiscalização da pessoa dominada pela entidade pública. É necessário que essa designação tenha efetivamente acontecido.
À semelhança do que já foi dito anteriormente, a propósito da qualificação da Fundação de Serralves à luz da Lei-Quadro das Fundações, a propósito da aferição da influência dominante, resulta dos Estatutos da Fundação de Serralves que o Estado designa dois dos nove membros do órgão de administração (Arts. 8.º e 9.º) e um dos três membros do órgão de fiscalização (Art. 23.º). Facilmente se conclui que o Estado não tem a prerrogativa de designar a maioria dos membros do órgão de administração ou do órgão de fiscalização.
Dos Estatutos não resulta para o Estado qualquer direito especial de destituir parte ou a totalidade dos membros de qualquer dos órgãos aludidos.
Não resulta, ainda, para o Estado, qualquer benefício de voto no conselho de fundadores ou qualquer direito especial de destituir parte ou a totalidade dos membros de qualquer dos órgãos aludidos.
Assim sendo, também aqui se conclui pelo não cumprimento do subrequisito previsto na subalínea ii), da alínea a), do n.º 2, do Art. 2.º do CCP.
5. CONCLUSÃO
Face ao que ficou exposto, dúvidas não restam de que a Fundação de Serralves é uma fundação de direito privado, dotada de uma autonomia absoluta, no que toca ao seu património financeiro e à sua gestão corrente, não estando sujeita a qualquer influência determinante.
Apesar de a Fundação ter sido criada, especificamente, para satisfazer uma necessidade de interesse geral – compete-lhe a promoção de atividades no domínio de todas as artes e de desenvolver essa atividade aparentemente fora do mercado concorrencial –, a verdade é que é a própria Fundação que suporta todos os riscos associados ao exercício dessa atividade e suporta todas as perdas e prejuízos que eventualmente venha a sofrer desse mesmo exercício.
O mesmo é dizer que, de acordo com a doutrina e a jurisprudência comunitárias, não se verifica cumprido o requisito cumulativo previsto na subalínea i), da alínea a), do n.º 2, do Art. 2.º do CCP.
Também concluímos que a Fundação de Serralves não é maioritariamente financiada por uma ou mais (no seu conjunto) entidades adjudicantes ou por qualquer organismo de direito público. O seu índice de dependência de financiamento público, se lhe quisermos chamar assim, situa-se nos 34%, pelo que se encontra muito longe da maioria prevista no primeiro subrequisito apontado pelo legislador comunitário para aferição da influência determinante que uma ou mais entidades públicas têm sobre o beneficiário, previsto na subalínea ii), da alínea a), do n.º 2, Art. 2.º do CCP.
De igual modo, a gestão da Fundação de Serralves não se encontra sujeita ao controlo por parte de nenhuma entidade adjudicante, na medida em que, se por um lado, não existe qualquer possibilidade das suas decisões serem passiveis de serem influenciadas, face à submissão económica de uma qualquer entidade pública, também não existe qualquer possibilidade de os seus órgãos de gestão, administração ou fiscalização serem nomeados por qualquer entidade adjudicante. Antes de mais, porque o sistema de substituição dos membros do conselho de administração – por cooptação - não permite essa interferência e porque o Estado nomeia apenas dois dos nove membros do conselho de administração, e apenas um dos três membros do conselho fiscal. Acresce que, o Conselho de Fundadores não tem qualquer intervenção neste processo e, ainda que tivesse, sempre se dirá que o total dos fundadores que têm voto naquele órgão, e são classificados como entidades adjudicantes, não ultrapassam os 12,5%.
Significa isto que os segundo e terceiro critérios alternativos, previsto na subalínea ii),
da alínea a), do n.º 2, Art. 2.º do CCP, suscetíveis de conduzirem à classificação de uma determinada entidade como organismo de direito público também não se encontram verificados, o que nos levará a concluir que a Fundação de Serralves não poderá ser classificada, nos termos da legislação em vigor Art. 2.º, n.º 2, a) do CCP, como organismo de direito público.
6. BIBLIOGRAFIA
− XXXXXXX, XXXX XXXXXX, “Os “Organismos de Direito Público” e o respetivo regime de contratação: Um caso de levantamento do véu”, in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Xxxxxxxx Xxxxxxx no Centenário do seu Nascimento, volume I, edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, 2006
− XXXXXXX, XXXX XXXXXX, e XXXXXXX, XXXXX XXXXXXXXX, Temas de Contratação
Pública, Vol. I, Coimbra Editora, Grupo Wolters Kluwer, 2011.
− AMARAL, XXXXX XXXXXXX DO, Curso de Direito Administrativo, 2.ª edição, volume I, Almedina, 1997.
− XXXXXX, XXXX XXXXXXX DE, Introdução ao Direito dos Contratos Públicos, Almedina, 2021.
− XXXXXXX, XXXXXXXX, “Organismo de Direito Público – Uma categoria jurídica autónoma de direito comunitário intencionalmente aberta e flexível”, in GONÇALVES, XXXXX XXXXX (org.), Estudos de Contratação Publica – III, Wolters Kluwer – Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
− XXXXXXX, XXXXXXXX, “Contratação Pública e Fundos Comunitários”, in Revista de Direito Público e Regulação, n.º 1, 2009.
− XXXXXXXXX, X. X. XXXXX, Direito Constitucional, 6.ª Edição revista, Almedina, 1993.
− XXXXXXX, XXXX, “Âmbito de aplicação subjetiva do Código dos Contratos Públicos”, in
Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 64, julho/agosto de 2007.
− XXXXXXXX, XXXXXXX XXXXXXX, “O Regime das Fundações”, in Revista de Direito das Sociedades, 2013.
− XXXXXXX, XXXX XXXXXX XXXXXXX, “A revisão das disposições gerais sobre o âmbito de aplicação do código dos contratos públicos”, in Revista Electrónica de Direito Público, vol. 4, n.º 2, novembro de 2017.
− XXXX, XXX XXXXXX XXXXXXX XXXXXXX, O Direito Administrativo das Subvenções – Enquadramento, Conceito e Regime Jurídico das Subvenções-Fomento, Universidade de Coimbra, 2020.
− XXXXXXX, XXXXXXXX XXXXXX, Fundações e Interesse Público, Direito Administrativo Fundacional – Enquadramento Dogmático, Almedina, 2014.
− XXXXXXX, XXXXXXXX XXXXXX, in Estudos de homenagem ao Professor Doutor Xxxxxxxx Xxxxxxx no Centenário do seu Nascimento, volume I, edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, 2006.
− XXXXXXX, XXXXXXXX XXXXXX, “As Fundações como Entidades Adjudicantes no Código dos Contratos Públicos - Algumas Considerações”, in Revista de Contratos Públicos, n.º. 4, 2012.
− XXXXXXXXX, XXXXX XXXXX, Direito dos Contratos Públicos, 5.ª ed., Xxxxxxxx, 0000.
− XXXXXXXXX, XXXXX XXXXX, Manual de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, 2019.
− XXXXXX, XXXXXXXXX, “Da admissibilidade de pessoas coletivas de iniciativa pública beneficiarem do Estatuto de Utilidade Pública”, in Estudos de homenagem ao Prof. Doutor Xxxxxxx Xxxxxxx, Volume II, edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, 2010.
− XXXX, XXXXX DE, E XXXXXX, ANTUNES, Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição revista e atualizada, com a colaboração de XXXXXXXX, M. HENRIQUE, Coimbra Editora, 1987.
− Machete, Xxx Xxxxxxxxxxx de, e Xxxxxxx, Xxxxxxxx Xxxxx, Direito das Fundações – Propostas de Reforma, Fundação Luso-Americana, 2004.
− XXXXX, XXX XXXXXXXX, “Os princípios da contratação pública”, in Estudos de homenagem ao Prof. Doutor Xxxxxxx Xxxxxxx, Volume II, edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, 2010.
− Xxxxxxxx, Xxxxx Xxxxxxx de, e Xxxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxxxx de, Concursos e Outros
Procedimentos de Contratação Pública, Almedina, 2011.
− XXXXXXXX, XXXXXXX XXXXXXX XX, “Os princípios gerais da contratação pública”, in GONÇALVES, XXXXX XXXXX (org.), Estudos de Contratação Publica – I, Coimbra Editora, 2008
− PINA, XXXXX XXXXXXX Xx, “O conceito de “mercado relevante” e a sua importância na definição de entidade adjudicante”, in, Trabuco, Cláudia, e Eiró, Ver, organização, Contratação Pública e Concorrência, Almedina, 2013.
− XXXXXXXX, XXXX XXXXXXXXX, Âmbito de Aplicação do Código dos Contratos Públicos e Normas Comuns de Adjudicação, Cedipre online, n.º5, fevereiro 2011.
− XXXXX, XXXXXX XXXXX, Regime Jurídico Aplicável às Fundações de Direito Privado e Utilidade Pública, Centro de Estudos de Direito Público e Regulação da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (CEDIPRE), 2011.
− XXXX, XXXXX XXXXXX XXXXX XXX, Estudo de Caracterização das Fundações Portuguesas, Centro de Investigação Social e Organizacional, Instituto Superior Xxxxxxx Xxxxxxx, 0000.
− XXXXXXX, XXXXX XXXXXXXXX, Direito da Contratação Pública, Volume I, AAFDL, reimpressão, 2021.
− XXXXXXX, XXXXX XXXXXXXXX, “Alterações no âmbito de aplicação do Regime de Contratação Pública à luz do anteprojecto de revisão do Código dos Contratos Públicos”, in, Estorninho, Xxxxx Xxxx, e Xxxxxxx, Xxx Xxxxxxx, coordenação, Atas da Conferência - A Revisão do Código dos Contratos Públicos, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2016.
− XXXXX, XXXXX XXXXXXX DA, Código dos Contratos Públicos Anotado e Comentado, 8.ª Edição, revista e atualizada, Almedina, 2019.
− TRABUCO, CLÁUDIA, “Existem empresas que não são empresas? – As entidades adjudicantes e o conceito jus-concorrencial de empresa”, in, Trabuco, Cláudia, e Eiró, Ver, organização, Contratação Pública e Concorrência, Almedina, 2013.
− XXX, XXXXXX XXXXXX, Direito Económico – A Ordem Económica Portuguesa, 3.ª ed., Coimbra, 1994.
7. JURISPRUDÊNCIA
− Xxxxxxx xx 00 xx xxxx xx 0000 – Xxxxxxxx X-000/00 – Xxxxxxxx xx Xxxxxxx;
− Acórdão de 16 de outubro de 2003 – Processo C-283/00 – Comissão vs. Espanha.
− Acórdão de 3 de outubro de 2000 - Processo C-380/98, University of Cambridge
− Acórdão de 10 de novembro de 1998 - Processo C-360/96, BFI Holding.
− Acórdão de 15 de janeiro de 1998 - Processo X-00/00, Xxxxxxxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx,
− Acórdão de 10 de novembro de 1998 - Processo C-360/96, Arn vs BFI
− Acórdão de 27 de fevereiro de 2003 – Processo C-373/0, Xxxxx Xxxxxx.
− Acórdão de 10 de maio de 2001 – Processos C-223/99 e C-260/99, Agorá.
− Acórdão de 12 de setembro de 2013 – Processo X-000/00, XXX GmbH.
− Acórdão de 11 de setembro de 2009 – Processo C-300/07, Xxxx & Xxxxxxxxxxxxx Xxxxxxx,
− Acórdão de 13 de dezembro de 2007 – Processo X-000/00, Xxxxxxxxxx Xxxxxxxx.
− Acórdão de 01 de fevereiro de 2001 – Processo C-237/99, Comissão vs França.
− Acórdão de 05 de outubro de 2017 – Processo n.º C/567/15, LitSpecMet.
− Acórdão de 29 de novembro de 2012 – Processos Apensos n.º C-182/11 e C-183/11, Econord.
− Acórdão de 17 de outubro de 2018 – Processo n.º C-353/18, SC Xxxx Xxxx.
− Acórdão de 18 de novembro de 1999 – Processo n.º C-275/98, Unitron Scandinavia.
− Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 08.10.2008, Processo n.º 1308/02;
− Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 05.04.2018, Processo n.º 584/16.1BELLE.
− Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 05.05.2011, Processo n.º 7303/11.
− Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 10.10.2019, Processo n.º 836/19.9 BELSB.
− Acórdão n.º 106/2009, de 11 de maio de 2009, do Tribunal de Contas, Processo n.º 193/2009.
Conclusões de Advogado-Geral:
− Conclusões do Advogado-Geral Xxxx Xxx, apresentadas em 27 de outubro de 2009, no Processo C/91/08.
− Conclusões do Advogado-Geral Xxxxxx Xxxx-Xxxxxx Xxxxxxx, apresentadas em 22 de novembro de 2007, Processo n.º C-393/06.
XXX XXXXX XX
Assinado de forma digital por XXX XXXXX XX XXXXX
XXXXX XXXXXXXXX XXXXXXXXX XXXXXXX
MACHADO
Dados: 2022.07.27 20:31:41
+01'00'