EXMO(A). SR(A). DR(A). JUIZ(ÍZA) DA VARA FEDERAL DE BRASÍLIA-DISTRITO FEDERAL
EXMO(A). SR(A). DR(A). JUIZ(ÍZA) DA VARA FEDERAL DE BRASÍLIA-DISTRITO FEDERAL
URGENTE - Pedido de antecipação de tutela (pág. 77)
CONECTAS DIREITOS HUMANOS, associação sem fins lucrativos qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, inscrita no CNPJ/MF sob o nº. 04.706.954/0001-75, com sede na Xxxxxxx Xxxxxxxx, 000, 00x xxxxx, Xxx Xxxxx – SP, no presente ato representada por sua diretora executiva e representante nos termos de seu Estatuto Social, Senhora XXXXX XXXXXXXXX XXXXXXX (Docs. 1 e 2), vem, por seus advogados(as) abaixo subscritos(as), respeitosamente, à Vossa Excelência, propor a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA CLIMÁTICA
COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA
nos termos do art. 3o, caput, da Lei nº 7.347/1985, em face de BNDES Participações S/A – BNDESPAR, inscrita no CNPJ sob o nº 00.383.281/0001-09, e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, inscrito no CNPJ sob o nº 33.657.248/0001-89, ambas com endereço no Setor Comercial Sul, Quadra 9 – Asa Sul, Brasília
– DF, XXX 00000-000, pelas razões que passa a expor.
SUMÁRIO
1. CONTEXTO FÁTICO: MUDANÇAS CLIMÁTICAS, COMPROMISSOS DO ESTADO BRASILEIRO E O PAPEL DA BNDESPAR 7
1.1. IPCC e a Emergência Climática 7
1.2. Instituições de Desenvolvimento e Combate à Crise Climática: o Papel do
2.2. Legitimidade Passiva e Competência da Justiça Federal 28
2.3. Litígio Climático e Processo Judicial Estruturante 31
3.1. Direito do Clima e Desenvolvimento Sustentável 37
A) Artigos 225 e 170, VI da Constituição Federal 38
B) Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) – Lei nº 6.938/1981, Lei nº 12.187/2009 e Decreto nº 9.578/2018 40
C) Dever de Respeito à Integridade do Sistema Climático – Art. 1º, I, do Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) 43
D) Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, Acordo de Paris e a NDC brasileira 44
E) Direito Internacional dos Direitos Humanos e Socioambientais 47
F) Os Princípios Orientadores da ONU para Empresas e Direitos Humanos – Decreto nº 9.571/2018 48
G) Fundo Verde para o Clima (Green Climate Fund – GCF) 50
H) O Pacto Global e o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 13 51
I) Precedentes da Litigância Climática Internacional 52
3.2. Análise Jurídica e Conclusão: Responsabilidade Climática da
A) Dever de Transparência, Direito à Informação e Afastamento da LC 105/01 56
B) Dever Fiduciário, ESG e “stewardship” Climático 62
INTRODUÇÃO
1. Trata-se de ação civil pública climática, proposta no atual contexto de colapso ecológico e emergência climática, visando compelir o BNDES e a BNDESPAR, ora Réus, a adotarem medidas de transparência e apresentarem plano para alinhar suas ações e políticas de investimento às metas do Acordo de Paris e da Política Nacional sobre Mudança do Clima e, assim, efetivar domesticamente a transição justa e garantir a readequação do país na economia mundial rumo ao desenvolvimento sustentável, missão institucional do próprio Sistema BNDES.
2. Busca-se a incorporação efetiva da variável climática na sua carteira de investimentos para produzir um impacto virtuoso, alinhado à economia de baixo carbono, em diversos setores econômicos. Os atributos de financiador, a condição de empresa pública e a inteligência setorial são ativos que podem favorecer o desenho exitoso de programas orientados a promover um alcance de qualidade das metas climáticas brasileiras.
3. A BNDESPAR é o braço do Sistema BNDES que atua no mercado de capitais. Todavia, é por desempenhar importante papel na promoção do desenvolvimento sustentável, que se faz essencial a incorporação de critérios climáticos às suas diretrizes de negócios.1
4. Isso porque, além de aplicar, enquanto integrante do Sistema BNDES, recursos públicos, a BNDESPAR mantém posições acionárias em setores que estão entre os mais carbono-intensivos – isto é, com emissões significativas de gases de efeito estufa (GEE), que contribuem para a mudança do clima – da economia brasileira.
5. Diante dos impactos socioambientais e climáticos causados por atividades carbono- intensivas, o Estado brasileiro possui a obrigação de contribuir para reverter esse cenário, incorporando, de modo efetivo e transparente, critérios climáticos aos negócios conduzidos pela administração pública direta e indireta. Trata-se de exigência necessária para que o Brasil reestabeleça seu compromisso histórico de garantia do desenvolvimento sustentável, com benefícios positivos - econômicos, sociais e ambientais - para toda população.
1 Art. 3º do Estatuto do BNDES. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxxx/xxxx/xxxx/xxxx- somos/governanca-controle/Legislacao_do_Sistema_BNDES/estatuto-do-bndes>. Acesso em: 16 mai. 2022.
6. Para melhor elucidação do caso, dada a complexidade e interdisciplinaridade do assunto, a presente demanda encontra-se instruída com estudos científicos e pareceres elaborados especificamente para o caso concreto, que servem de sustentação para toda a fundamentação que, nos tópicos adiante, será apresentada.
7. Um dos estudos, de autoria do Centro Clima da COPPE/UFRJ (Centro de Estudo Integrado sobre Meio Ambiente e Mudanças Climáticas), coordenado pelo Professor Xxxxxx Lèbre La Rovere2 (Docs. 3 e 4), conclui, em síntese, que:
i. A BNDESPAR investe em empresas carbono-intensivas;
ii. Há um déficit de transparência;
iii. A BNDESPAR tem o dever de incluir critérios climáticos na seleção de empresas para investir; e
iv. A gestão de riscos climáticos ainda não foi incorporada, e isso pode gerar, ao mesmo tempo, efeitos climáticos adversos e comprometimento dos processos de gestão de riscos e de planejamento estratégico da BNDESPAR.
8. Constatadas as práticas das Rés, outro estudo reforça o desalinhamento delas com o sistema jurídico vigente. Nesse aspecto, o parecer de autoria do Professor Xxxxx Xxxxxxxx0 (Doc. 5), conclui que a BNDESPAR deve ser compreendida como um dos instrumentos decisivos da Política Nacional sobre Mudança do Clima - PNMC, instituído pela Lei 12.187/2009, e que há um dever jurídico de que sua atuação seja consistente com os objetivos maximizadores do Acordo de Paris, promulgado pelo Decreto nº 9.073/2017, e da própria PNMC.
2 Trata-se de instituição de referência em ciência climática, reconhecida nacional e internacionalmente, sob a coordenação do Professor Xxxxxx Lèbre La Rovere, um dos mais renomados pesquisadores brasileiros na área de mudanças climáticas, cuja formação em Engenharia e Economia o qualifica especialmente a emitir parecer sobre os impactos climáticos das operações da BNDESPAR. Desde 1992, o Professor Xx Xxxxxx participou da autoria de diversos relatórios do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), sendo membro do grupo de cientistas que recebeu, em 2007, o Prêmio Nobel da Paz, em conjunto com Xx Xxxx. Participou, ainda, em 2017, da Comissão de Alto Nível sobre Preço do Carbono coordenada pelo prêmio Nobel de Economia Xxxxxx Xxxxxxxx e Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx, uma iniciativa da Carbon Pricing Leadership Partnership, lançada pelo Governo da França em conjunto com o Banco Mundial.
3 Renomado especialista em Direito Econômico e Regulatório, Professor na Escola de Direito da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx, mestre e doutor em direito econômico pela Faculdade de Direito da USP, ex-docente do Harvard Institute of Global Law and Policy e ex-pesquisador visitante do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
9. Os deveres socioambientais e climáticos dos Réus situam-se não apenas no tradicional binômio jurídico de legalidade e ilegalidade, mas também nas imprescindíveis análises de consistência jurídica entre os meios selecionados e os fins visados. Afinal, atos que possam não ser, prima facie, ilegais, por não descumprirem pontualmente obrigações legalmente estatuídas, podem ser, assim mesmo, antijurídicas por conduzirem a respostas regulatórias inconsistentes entre os meios selecionados e os macro objetivos perseguidos pela Administração Pública.
10. Logo, para cumprir os mandamentos constitucionais e legais de garantia do desenvolvimento do país, os Réus precisam incorporar as seguintes premissas:
i. Os compromissos climáticos dos países devem ser progressivamente crescentes e os países devem perseguir a máxima ambição climática, em respeito ao Art. 4(3) do Acordo de Paris e o Art. 5º, I da PNMC;
ii. O cumprimento dos compromissos climáticos internacionais depende da implementação exitosa de políticas públicas no plano doméstico, em atenção ao Art. 4(2) do Acordo de Paris;
iii. As políticas públicas precisam envolver os instrumentos de promoção do desenvolvimento nacional sustentável, os instrumentos da Política Nacional de Mudança do Clima (PNMC) e o setor privado, concretizando o estabelecido nos Art. 170 e 225 da Constituição Federal e em atenção ao Art. 3º, IV da PNMC; e
iv. A relação entre o direito e as políticas públicas não se limita a análises formais de legalidade, mas volta-se, sobretudo, a análises substantivas de consistência jurídica entre os meios utilizados e os objetivos perseguidos.
11. Na prática, isso significa exigir que os Réus sejam transparentes quanto ao seu portfólio de participações acionárias, permitindo avaliar se os recursos públicos estão (mal) investidos em setores ou atividades de alta exposição a riscos climáticos4, ou mesmo se não estão sendo aproveitadas oportunidades para realizar a transição para uma economia de baixo carbono.
4 Por “riscos climáticos”, se entende: (i) riscos relacionados com a transição para uma economia de baixo carbono e
(ii) riscos relacionados com os impactos físicos da mudança climática. Em relação a (i), a transição para uma economia de baixo carbono pode acarretar extensas mudanças políticas, legais, tecnológicas e de mercado para atender às exigências de mitigação e adaptação relacionadas à mudança climática. Em relação a (ii), os riscos físicos resultantes da mudança climática podem ser orientados por eventos (agudos) ou mudanças de longo prazo (crônicas) nos padrões climáticos. Os riscos físicos podem ter implicações financeiras para as organizações, tais como danos diretos aos ativos e impactos indiretos da interrupção da cadeia de fornecimento.
12. Essas ações são críticas, inclusive, para barrar o processo de desestabilização e savanização do bioma amazônico, que, segundo os mais eminentes estudiosos do tema, será atingido com um desmatamento de apenas 20% a 25% dessa área,5 ou seja, uma extensão muito próxima da que já foi desmatada por corte raso nos últimos cinquenta anos. O Brasil aproxima- se perigosamente do ponto de não retorno com relação à Amazônia. Isso sem mencionar outras assustadoras constatações: estudo do Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE) publicado em 2021 na prestigiosa revista Nature concluiu que, por conta de processos de desmatamento e de degradação, partes da Amazônia perderam sua importantíssima função de sumidouro de carbono: ao revés, tornaram-se emissoras líquidas de carbono.6
13. Nesse sentido, o objeto da presente Ação Civil Pública Climática7 é o de que, para cumprir o mandamento constitucional disposto no art. 3º, II (“garantir o desenvolvimento nacional”), assim como os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no âmbito das negociações climáticas (especialmente a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima8 e o Acordo de Paris9) e o arcabouço jurídico doméstico correspondente, os Réus sejam condenados à obrigação de fazer consistente (a) na prestação de informações a respeito das políticas climáticas da BNDESPAR e (b) na promoção de ajustes de governança, arcabouço de normas internas, políticas de investimento e outros instrumentos que sejam necessários para alinhar a atuação da BNDESPAR às metas do Acordo de Paris e da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC)10.
5 XXXXXXX, Xxxxxx X.; XXXXX, Xxxxxx. Amazon tipping point. Science Advances, v. 4, 2, 21/02/2018. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxx.xxx/xxx/00.0000/xxxxxx.xxx0000>. Acesso em: 15 mai. 2022.
6 XXXXX, Xxxxxxx X. et al. Amazonia as a carbon source linked to deforestation and climate change. Nature, v. 595, n. 7867, p. 388-393, 2021. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx/xxxxxxxx/x00000-000-00000-0>. Acesso em: 15
mai. 2022.
7 O Comitê Regional das Tabelas Processuais da Justiça Federal da 4ª Região (CORETAB4) aprovou, em 04/05/2021, a proposta do Comitê JusClima 2030, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de inclusão dos assuntos judiciais “Mudanças Climáticas” e “Litígios Climáticos” a serem vinculados aos temas 10110 (Direito Ambiental) e 12467 (Questões de alta complexidade, grande impacto e repercussão), respectivamente, da tabela de códigos do CNJ, com recomendação de avaliação por todos os Tribunais Regionais Federais (TRFs). A doutrina, por sua vez, estabelece a possibilidade de ação civil pública de ordem climática. Vide também: XXXX, Xxxxxxx. Litígios climáticos: de acordo com o Direito Brasileiro, Norte-Americano e Alemão. Salvador: Editora Juspodivm, 2019. p. 82.
8 Decreto nº 2.652/1998. 9 Decreto nº 9.073/2017. 10 Lei nº 12.187/2009.
1. CONTEXTO FÁTICO: MUDANÇAS CLIMÁTICAS, COMPROMISSOS DO
Estado brasileiro e o papel da BNDESPAR
1.1. IPCC E A EMERGÊNCIA CLIMÁTICA
“Estamos cada vez mais próximos de uma catástrofe climática”, diz Xxxxxxx Xxxxxxxx sobre novo relatório da ONU11
14. É importante que se compreenda que os danos climáticos, a despeito dos esforços multilaterais, avolumam-se a cada dia. E que a atuação da BNDESPAR, enquanto importante instrumento de desenvolvimento no país, contribui para o agravamento desses danos, ao desconsiderar a variável climática em suas operações.
15. Com efeito, a crise climática assumiu características de emergência,12 e o tema das mudanças climáticas, antes restrito a um nicho composto essencialmente por formuladores de políticas públicas e cientistas, ganhou as manchetes no mundo todo e desperta, hoje, grande preocupação na opinião pública acerca dos efeitos adversos – e potencialmente catastróficos – das mudanças climáticas e de suas causas antrópicas.
16. Essa mudança de percepção é multifatorial – incluindo-se a pandemia da Covid- 19 e a constatação de que riscos antes vistos como distantes e abstratos têm o potencial de afetar profundamente a humanidade –, mas deve-se, em considerável medida, à atuação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, mais conhecido pelo acrônimo XXXX
00 Declaração proferida pelo Secretário-Geral da Organização Mundial Meteorológica, proferida em 18 de maio de 2022. Disponível em: <xxxx://xxx.xx/0xXx0xx>. Acesso em 20 de maio de 2022.
12 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. No Conselho de Segurança, Xxxxxxxx afirma que tempo para evitar a crise climática está se esgotando. 23 set. 2021. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xx.xxx/xx-xx/000000-xx-xxxxxxxx-xx-xxxxxxxxx-xxxxxxxx-xxxxxx-xxx-
tempo-para-evitar-crise-climatica-esta-se>. Acesso em: 16 mai. 2022.
(Intergovernmental Panel on Climate Change),13 que vem produzindo e disseminando ciência climática desde sua criação, em 1988.
17. Em seus dois mais recentes relatórios – vide tradução, realizada pela Autora, do relatório do Grupo de Trabalho I ao Sexto Ciclo de Avaliação (AR6) anexa (Doc. 6) –, o IPCC respondeu importantes questões sobre como as emissões de gases estufa e outros poluentes estão alterando o clima; como as plantas, o solo e o oceano armazenam e liberam carbono; como o clima responde à influência humana; e o que podemos esperar de diferentes cenários de aumento adicional no aquecimento global.14 Constatou que, desde 1850, o planeta aqueceu em média 1,1° C e que, nos próximos 20 anos, o aquecimento médio global deve atingir ou exceder 1,5º C, o que poderá provocar eventos extremos sem precedentes.
18. Concluiu, ainda, que os atuais compromissos internacionais de redução de emissões seriam insuficientes para manter o nível de 1,5º C, e que a melhor estimativa é chegarmos ao ano de 2100 com um aquecimento de 2,7º C. Alerta, portanto, que, se as tendências atuais se mantiverem, o planeta continuará se aquecendo, e que seu futuro depende das escolhas que a humanidade fizer hoje.
19. Visando alterar essa trajetória catastrófica, diversos Estados têm se comprometido com a redução da emissão de gases, especialmente por meio do Acordo de Paris, instrumento em que os países têm metas climáticas impostas por si próprios15 que dependem, em larga medida, da efetiva utilização de políticas e instrumentos domésticos, bem como das emissões do setor privado. No entanto, pesquisas indicam que nem isso tem se mostrado suficiente.
13 O IPCC é uma organização científico-política criada no âmbito das Nações Unidas (ONU) pela iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e da Organização Meteorológica Mundial (OMM).
14 Trata-se do Sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change Sixth Assessment Report), conhecido como AR6 e divulgado em 9 de agosto de 2021. O relatório é um dos documentos mais atualizados da série de grandes documentos que o IPCC vem produzindo desde 1990, e reforçou as conclusões dos relatórios anteriores no sentido de que as mudanças climáticas são reais e causadas pelas atividades humanas. 517 cientistas trabalharam no documento, analisando mais de 14 mil estudos científicos, e o texto foi aprovado por representantes de 195 governos. O primeiro volume do Sexto Relatório consistiu no resumo executivo do volume The Physical Science Basis of Climate Change (As Bases da Ciência Física da Mudança Climática).
15 A respeito dispõe o Acordo de Paris sobre as “contribuições nacionalmente determinadas”, em inglês NDC.
20. Mesmo se considerarmos o cumprimento das metas climáticas dos 191 Estados- partes do Acordo de Paris, ainda assim é previsto um aumento de 13% nas emissões de gases de efeito estufa até 2030.16
21. No que se refere ao Brasil, de acordo com o Relatório sobre a Lacuna de Emissões 2021 (Emissions Gap Report 2021), a conclusão é que o país tem retrocedido no combate à emissão de gases de efeito estufa e que suas metas levarão ao aumento das emissões.17 Segundo o documento, a NDC atualizada pelo Brasil em dezembro de 2020 “leva a um aumento absoluto” nas emissões, adicionando cerca de 300 milhões de toneladas de CO2 por ano.18 O mau desempenho do Brasil no combate às mudanças climáticas foi constatado também pelo SEEG/Observatório do Clima, em termos alarmantes:
Olhando para as emissões globais, o Brasil ocupa o quinto lugar entre os maiores poluidores climáticos, com cerca de 3,2% do total mundial ficando atrás apenas de China, EUA, Rússia e Índia. O que é mais grave, as emissões per capita do Brasil também são maiores que a média mundial. Em 2020, a média de emissão de CO2 por brasileiro foi de 10,2 toneladas brutas, contra 6,7 da média mundial. Mais uma vez, o desmatamento distorce essa média: a emissão per capita de Estados amazônicos como Mato Grosso e Rondônia em 2020 foi quatro vezes maior do que a dos EUA. As emissões per capita líquidas foram mais próximas da média mundial, mas ainda assim maiores: 7,2 tCO2 e.
A chamada intensidade de carbono da economia também cresceu. Ou seja, estamos gerando menos riqueza para cada tonelada de carbono emitida. O aumento da intensidade de emissões por unidade de PIB ocorre igualmente por causa da aceleração do desmatamento, atividade majoritariamente ilegal e que gera pouca riqueza. No ano passado, a pandemia agravou esse cenário: se em 2019 o país gerava US$ 1.199 por tonelada de CO2e emitida, esse valor caiu para US$ 1.050 em 2020. Entre 2003 e 2011 houve um aumento de US$ 538 para US$
1.032 de PIB gerado para cada tonelada, mas, desde então, o país vem perdendo eficiência. No mundo o índice médio é de US$ 1.583 de PIB gerado por tCO2 emitida.
O SEEG 2020 permite finalmente avaliar o cumprimento das metas da PNMC e concluir que, devido às premissas extremamente generosas, o país atingiu no limite seu compromisso voluntário. A política nacional comprometia o Brasil a reduzir 36,1% a 38,9% suas emissões em 2020 em relação a um cenário
16 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. COP26: Metas nacionais atualizadas ainda levam a aumento de 13% das emissões até 2030. 9 nov. 2021. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xx.xxx/xx-xx/000000-xxx00-xxxxx-xxxxxxxxx-xxxxxxxxxxx-xxxxx-xxxxx- aumento-de-13-das-emissoes-ate-2030>. Acesso em: 16 mai. 2022.
17 UNEP. Relatório sobre a Lacuna de Emissões 2021. 26 out. 2021. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxx.xxx/xx- br/resources/emissions-gap-report-2021>. Acesso em: 16 mai. 2022.
18 PODER 360. Brasil é único país do G20 a recuar em promessa de cortar emissões, diz ONU. 27 out. 2021. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxx000.xxx.xx/xxxx-xxxxxxxx/xxxxxx-x-xxxxx-xxxx-xx-x00-x-xxxxxx-xx-xxxxxxxx-xx-xxxxxx- emissoes-diz-onu/>. Acesso em: 16 mai. 2022.
hipotético. Nesse cenário, o PIB cresceria 5% ao ano e toda a nova energia instalada viria de fontes fósseis. Isso inflou a projeção, de forma que as reduções significassem, ao final do período, uma emissão máxima de 1,97 bilhão de toneladas de CO2 e GWP-AR2 (no cenário mais ambicioso) ou de 2,068 bilhões de toneladas (no menos ambicioso). Como se verá no capítulo 5, no qual as peculiaridades do cálculo da meta são explicadas, nossas emissões em 2020 ficaram ligeiramente abaixo do limite menos ambicioso, o que permite afirmar que o Brasil “passou raspando” pela meta.
Este documento também fará uma análise da NDC do Brasil. Desde 2015, quando a meta de reduzir as emissões líquidas em 37% em 2025 em relação a 2005 foi adotada, o Brasil aumentou essas emissões em 4%. A meta do país no Acordo de Paris, proposta em 2015, teve em 2020 uma atualização que reduziu sua ambição e que foi parar na Justiça por violar o princípio de progressividade do acordo do clima. A NDC atualizada mantém a promessa de cortar 37% das emissões em 2025 em relação a 2005, e ratifica a meta indicativa de 43% em 2030. No entanto, o faz com uma alteração na base de cálculo – como já alertava o Observatório do Clima desde 2016 – que, na prática, aumenta em 200 milhões a 400 milhões de toneladas o limite máximo de emissão do país em 2030 em relação ao compromisso de 2015. É a chamada “pedalada de carbono”.
Com tudo isso, o país entra formalmente no período de cumprimento do Acordo de Paris, em 2021, em situação muito desconfortável do ponto de vista das políticas de clima. Os problemas – e algumas soluções – nessa agenda crucial para o desenvolvimento do país e a proteção de seus cidadãos serão apresentados nas próximas páginas.
22. Para melhor visualização, vejamos o gráfico abaixo, retirado do relatório Análise das emissões brasileiras de gases de efeito estufa e suas implicações para as metas de clima do Brasil 1970-2020 elaborado pelo SEEG/Observatório do Clima, que demonstra a evolução das emissões de gases de efeito estufa no Brasil por setor em 2010 e 2020 (MtCO2e):
23. O aumento das emissões de GEE corrobora para a intensificação das mudanças climáticas. No contexto brasileiro, eventos crônicos e agudos, tais como a alteração dos regimes de chuvas e tempestades de areia no Sudeste, e o aumento de temperatura em algumas regiões do Nordeste vêm sendo cada vez mais associados à mudança do clima. O estudo de adaptação do Centro Clima/COPPE/UFRJ (Doc. 4, Anexo II), elaborado especificamente para o presente caso concreto, também reforça essas conclusões:
Tomando por base as projeções do clima futuro disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), é possível identificar, grosso modo, redução da precipitação pluviométrica e aumento da temperatura do ar no Brasil. Essa assertiva é baseada na análise do modelo climático regional Eta/HadGEM2-ES de 20 km de grade regular, para o cenário de emissão RCP
8.5 (Caminho Representativo de Emissões). O RCP 8.5 é o que melhor representa a trajetória de emissões de GEE observada na atualidade, sendo, por tal, é considerado o mais pessimista.
24. Considerando apenas o mapa de projeção de temperatura elaborado pelo Centro Clima/COPPE/UFRJ segundo os parâmetros acima, temos a seguinte previsão para o Brasil que, como apresentado, demonstra o aumento da temperatura:
Projeção do índice temperatura média (graus Celsius) para 2041-2070, em relação ao período de referência (1961-1990), para o cenário de emissão RCP 8.5 do modelo Eta/HadGEM2-ES. Fonte: Elaboração própria, com base em INPE (2021)
25. Como se vê na imagem, o aumento de temperatura ocorrerá em todos os estados do país. Resta evidente, portanto, que os danos climáticos se avolumam a cada dia e que é indispensável que as instituições do Estado, a exemplo da BNDESPAR, contribuam para deixar de ser parte do problema e passar a ser parte da solução.
26. A relevância do tema extrapola questões afetas unicamente aos aspectos ambientais, com gravíssimas implicações para todas questões econômicas e sociais. Em janeiro de 2020, pela primeira vez na história, o “Relatório de Riscos Globais 2020”, do Fórum Econômico Mundial,19 apontou que todos os cinco maiores riscos e pontos de atenção a governos e mercados são afetos à questão climática/ambiental, figurando a emergência climática em primeiro lugar.
1.2. INSTITUIÇÕES DE DESENVOLVIMENTO E COMBATE À CRISE CLIMÁTICA: O
Papel do Sistema BNDES
27. A BNDESPAR é uma subsidiária integral do BNDES, que, por sua vez, é uma empresa pública dotada de personalidade jurídica de direito privado, cujo único acionista é a União Federal. Juntos, integram o Sistema BNDES, responsável por empregar recursos públicos na consecução de sua missão institucional de promoção do desenvolvimento nacional sustentável, conforme elucida a imagem abaixo disponível no sítio eletrônico do BNDES.20
19 Disponível em: < xxxxx://xxx0.xxxxxxx.xxx/xxxx/XXX_Xxxxxx_Xxxx_Xxxxxx_0000.xxx >. Acessado em 05 de jun. 2022.
20 BNDES. Fontes de Recursos. 11 nov. 2021. Disponível em: < xxxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxxx/xxxx/xxxx/xxxxxxxxxxxxx/xxxxxxxxx-xx-xxxxxx/xxxxxx-xx- recursos#modalTwitter >. Acesso em: 15 mai. 2022.
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28. Enquanto o BNDES atua, essencialmente, em financiamentos, isto é, na concessão de créditos a empresas e projetos, a BNDESPAR atua em investimentos em posições acionárias, adquirindo ações e debêntures de companhias abertas e fechadas.
29. Embora o BNDES tenha desenvolvido algumas iniciativas para incorporar o clima em sua carteira de financiamentos, a carteira de investimentos da BNDESPAR é integrada por grandes emissores de gases de efeito estufa em variados setores econômicos21 (em especial os de petróleo e gás, frigoríficos, mineração e energia elétrica).
21 BNDES. Carteira da BNDESPAR. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxxx/xxxx/xxxx/xxxxxxxxxxxxx/xxxxxxxx-xxxxxxxxx-xxxxx/xxxxxxxx-xxxxxxxxx>. Acesso em: 16 mai. 2022.
30. Essa é uma constatação importante, pois demonstra como as decisões de investimento e desinvestimento da BNDESPAR têm o potencial de induzir os principais setores emissores a alinhar-se às metas climáticas brasileiras. Nesse sentido, o estudo do Centro Clima/COPPE/UFRJ (Doc. 4), aponta que:
Em se tratando do BNDESPAR, subsidiária integral do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que “... investe em empresas brasileiras com foco no longo prazo, contribuindo não apenas para o plano de negócios e o fortalecimento da estrutura de capital, mas também para o desenvolvimento do mercado de capitais em geral, por meio do incentivo às melhores práticas de governança corporativa e iniciativas de cunho social e ambiental...”, como descrito no Relatório Stewardship (2019), e o Brasil ser signatário do Acordo de Paris, os fluxos financeiros da instituição devem procurar se alinhar aos objetivos do Acordo, bem como influenciar as companhias investidas nessa direção. Essa influência poder- se-ia dar, inclusive, no âmbito do código AMEC de Princípios e Deveres dos Investidores Institucionais – Stewardship, por intermédio de atuação em parceria, de forma a evitar a materialização de riscos físicos da mudança do clima, considerando que as empresas são canais de transmissão desses riscos. Todavia, o código só considera aspectos de ASG (ambiental, social e governança) nos processos de investimento e atividades de stewardship. Ademais, a BNDESPAR possui Política Socioambiental para Atuação em Mercado de Capitais na esfera operacional, que busca o aprimoramento de práticas de gestão, governança, sustentabilidade e transparência por empresas e investidores, sem, contudo, também considerar a dimensão climática nas operações de subscrição de valores mobiliários de renda variável relativas à carteira.
31. Nessa linha, aliás, foi publicado em dezembro de 2021, no jornal “O Globo”, artigo de opinião do Prof. Xxxxx X. Xxxxxx,22 ex-Ministro do Planejamento e da Fazenda. Nele, o professor afirma:
As medidas climáticas anunciadas pelo BNDES até o momento são bem-vindas, mas insuficientes. A extensão de crédito a riscos menores deve ir além da exigência de contrapartidas mínimas, da publicação de relatórios ou da adesão a um ou outro critério ESG.
O Sistema BNDES deve integrar compromissos climáticos tanto na sua carteira de financiamentos quanto na de participações acionárias. A promoção da transição para a economia de baixo carbono não pode ser tratada como decorrência automática de projetos sociais ou de infraestrutura: é preciso incorporar explicitamente objetivos de redução de emissões aos investimentos.
22 O Globo, Economia. Disponível em: <xxxx://xxx.xx/0x0XXXx>. Acesso em 16 de maio de 2022.
32. Conforme anteriormente explicado, em razão do Acordo de Paris, todos os países têm metas climáticas impostas por si próprios que dependem, em larga medida, da efetiva utilização de políticas e instrumentos domésticos, bem como das emissões do setor privado. Neste contexto, os bancos de desenvolvimento têm recebido maior escrutínio sobre os impactos climáticos de suas atividades, e o mesmo se aplica aos projetos apoiados pelo Green Climate Fund (GCF).
33. Em 2020, 450 bancos de desenvolvimento públicos23 – que juntos investem cerca de 2,3 trilhões de dólares anualmente, o que representa aproximadamente 10% de todos os investimentos globais de fontes públicas e privadas – comprometeram-se a usar seu considerável poder financeiro para, em resposta à crise climática e à pandemia, contribuir para a retomada econômica verde.24 Já em 2021, o Banco Mundial anunciou que, a partir de julho de 2023, 100% de suas novas operações estarão alinhadas ao Acordo de Paris.25 Ao mesmo tempo, o Tesouro dos Estados Unidos emitiu diretrizes opondo-se ao financiamento de combustíveis fósseis pelos bancos multilaterais de desenvolvimento dos quais é acionista.26
34. Como se vê, trata-se de uma tendência global, sendo legalmente estabelecida por marcos internacionais e domésticos. Nessa seara, o papel dos bancos de desenvolvimento no enfrentamento da crise climática ganha relevância. Segundo o Institute for Climate Economics27, a ideia
23 IISD. 450 Public Development Banks Pledge to Align with Paris Agreement. 16 nov. 2020. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxx.xxx/xxxx/000-xxxxxx-xxxxxxxxxxx-xxxxx-xxxxxx-xx-xxxxx-xxxx-xxxxx-xxxxxxxxx/>. Acesso em: 16 mai. 2022.
24 FINANCE IN COMMON. Development banks make landmark climate pledge, but no fossil fuel phase out. 12 nov. 2020. Disponível em: <xxxxx://xxxxxxxxxxxxxxx.xxx/xxxxxxxxxxx-xxxxx-xxxx-xxxxxxxx-xxxxxxx-xxxxxx-xxx-xx-xxxxxx- fuel-phase-out>. Acesso em: 16 mai. 2022.
25 THE WORLD BANK. World Bank Group Increases Support for Climate Action in Developing Countries. 22 jun. 2021. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxxxx.xxx/xx/xxxx/xxxxx-xxxxxxx/0000/00/00/xxxxx-xxxx-xxxxx-xxxxxxxxx- support-for-climate-action-in-developing-countries>. Acesso em: 16 mai. 2022.
26 XXXXXX, Xxxxx. U.S. Treasury to oppose development bank financing for most fossil fuel projects. Reuters, 16 ago. 2021. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxx.xxx/xxxxxxxx/xxxxxxxxxxx-xxxxxxxx/xx-xxxxxxxx-xxxxxx- development-bank-financing-most-fossil-fuel-projects-2021-08-16/>. Acesso em: 16 mai. 2022.
27 I4CE. The 2020 Climate Challenge for Development Banks: Aligning with the Paris Agreement. 5 mar. 2020. Disponível em:
<xxxxx://xxx.x0xx.xxx/xxxxxx-xxxxxxxxxxx-xxxxx-xxxxxxxxxx-xxxxxxxxx/>. Acesso em: 16 mai. 2022. Tradução livre do diagrama:
NÃO GERAR DANO – Desenvolvimento de Baixo Carbono: Reduzir e eliminar operações inconsistentes. Evitar perpetuar emissões. Adaptação: Evitar redução de resiliência, aumento de vulnerabilidade, e contribuir para má adaptação. Fluxos Financeiros: Evitar apoio a fluxos inconsistentes, tanto diretamente quanto por intermediação.
APOIAR COBENEFÍCIOS CLIMÁTICOS CONSISTENTES COM PARIS – Desenvolvimento de Baixo Carbono: Contribuir para a descarbonização de toda a economia e sociedade. Adaptação: Contribuir para aumentar adaptação,
é que essas entidades se comprometam com três pontos centrais: 1. não contribuir para o agravamento da crise climática – “Do no harm”; 2. contribuir para o alinhamento da economia à NDC – “Support Paris”; e 3. promover investimentos de impacto - “Foster transformative outcomes”:
35. No caso específico da atuação dos Réus, para que possamos analisar os impactos climáticos nesses três níveis seria, portanto, necessário aferir:
1. Como a BNDESPAR contribui para o agravamento da crise climática com a exposição a setores, empresas e atividades carbono-intensivas (“Do no harm”);
2. Como a BNDESPAR está alinhada às obrigações climáticas brasileiras (“Support Paris”);
3. Como a BNDESPAR promove investimento de impacto climático positivo para além dos compromissos climáticos brasileiros (“Foster transformative outcomes”).
resiliência e capacidade adaptativa dos investimentos. Fluxos Financeiros: Incentivar a contribuição de fluxos próprios e de parceiros.
PROMOVER RESULTADOS TRANSFORMATIVOS – Desenvolvimento de Baixo Carbono: Facilitar a transformação para sistemas e cadeias de valor de baixa emissão de GEE. Adaptação: Facilitar e reduzir o custo de ações de adaptação às mudanças climáticas de longo prazo. Fluxos Financeiros: Apoiar a ‘consistência’ do sistema financeiro como um todo (regulação, normas, transparência).
36. É evidente que as decisões de investimento da BNDESPAR podem induzir os setores a se alinhar às metas do Acordo de Paris e da Política Nacional de Mudança do Clima (PNMC), porquanto detêm capacidade de oferecer recursos de capital a taxas favoráveis, alavancar recursos privados e ampliar o mercado para títulos lastreados em projetos sustentáveis. Além disso, o Sistema BNDES detém capacidade singular para selecionar tomadores e estruturar negócios financeiros, e pode, deste modo, favorecer decisões empresariais tendentes à boa gestão climática.
37. A respeito, em seu parecer, o Professor Xxxxx Xxxxxxxx explica (Doc. 5):
O cumprimento das metas climáticas brasileiras, assinalam Viola e Franchini (2018), é bastante dependente da preservação dos sumidouros de carbono, notadamente da preservação da Amazônia. O desmatamento da Amazônia, assinalam os autores, gera pouco resultado econômico e beneficia a um grupo residual de exploradores, com baixa geração de emprego e investimentos. O controle do desmatamento, portanto, é uma política racional e que deveria ser de fácil execução, dada a condição tecnológica de monitoramento e a clientela residual de beneficiários. Trata-se, nesses termos, de uma opção de mitigação climática quase que baseada nas vantagens naturais do país.
Há, no entanto, um desafio mais difícil, [...] a constituição de uma especialização produtiva baseada em baixo carbono. Assim como a BNDESpar historicamente alterou os “preços de mercado” induzindo empreendedores a realizar investimentos que não seriam feitos sem a sua indução, é se de se supor que a maneira mais adequada de dar cumprimento material ao Acordo de Paris e à PNMC é mais uma vez induzir comportamentos para novas especializações produtivas.
Nesse sentido, as decisões de financiamento e investimento da BNDESpar podem induzir os setores a se alinhar às metas do Acordo de Paris e da PNMC porquanto detêm capacidade de oferecer recursos de capital imprescindíveis para os empreendimentos nacionais. [...]
Com isso, permite-se que a contribuição brasileira vá além da preservação dos sumidouros de carbono, como a Amazônia, e oriente-se, portanto, não apenas pelas suas vantagens naturais. Isto é, a atuação da BNDESpar pode e deve permitir a formação de novas competências empresariais, inovações e processos produtivos, condizentes com os passos de uma nova economia, uma economia que se desenha como a nova fronteira comercial a ser estabelecida entre os países. (grifamos)
38. Para isso, o Sistema BNDES conta com uma fonte estável de recursos – um percentual significativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador, atribuído pelo artigo 239 da Constituição Federal – que lhe garante fundos (funding) para prover recursos que o sistema financeiro privado tem usualmente dificuldades em oferecer. Logo, o Sistema BNDES dispõe de
vantagens competitivas para financiar empreendimentos com prazo de maturidade alongado e também atividades que envolvam riscos e incertezas decorrentes de inovação.
39. Pontua-se ainda que o Sistema BNDES tem uma vantagem de seleção e monitoramento (screening) de seu portfólio. Com efeito, tem condições de mitigar problemas de seleção, dada a sua longa trajetória de financiador do setor produtivo brasileiro. Constituído nos anos 1950, o Banco foi responsável pela estruturação de boa parte das cadeias produtivas do país, e sua organização interna reflete a composição setorial da economia nacional.
40. Vale dizer, o Sistema BNDES detém inteligência setorial, com equipes de seleção e avaliação de projetos organizadas em função dos segmentos da economia brasileira. Tal capacidade, constituída historicamente, é um traço desta organização, que lhe atribui uma vantagem institucional no desenho de políticas.
41. Assim, os atributos de funding, a condição de empresa pública e a inteligência setorial são ativos que podem favorecer o desenho exitoso de programas orientados a promover um alcance de qualidade das metas climáticas brasileiras.
42. Nesse ponto, é relevante estabelecer uma diferença entre uma atuação climática baseada em vantagens existentes e uma atuação alicerçada na criação de novas vantagens comparativas.
43. Em suma, assim como o Sistema BNDES historicamente alterou os “preços de mercado” induzindo empreendedores a realizar investimentos que não seriam feitos sem a indução do Banco, defende-se que a maneira mais adequada de dar cumprimento material ao Acordo de Paris e à Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) é mais uma vez induzir comportamentos para novas especializações produtivas – no caso específico da BNDESPAR, por meio da aquisição de valores mobiliários de empresas –, e, por isso, o Sistema BNDES é um agente decisivo para promover a transição econômica brasileira. É urgente e necessário, pois, que este utilize seu repertório de políticas de capitalização de empresas com vistas ao melhor alcance das metas climáticas.
44. O aquecimento global não é apenas um problema a ser evitado, é também um ponto focal que mobiliza e mobilizará investimentos, resultando assim em novas tecnologias,
produtos e correntes de comércio. Sendo assim, não se trata apenas de mitigar a emissão de gases, mas também de se orientar a estratégia produtiva para investimentos que sejam compatíveis com as especializações vindouras. O alinhamento com a transição climática é um dever constitucional, legal e convencional de perseguir o desenvolvimento sustentável e de maximizar recursos e instrumentos públicos.
45. Nesse sentido, uma agenda que favoreça o alinhamento da atuação do BNDES em relação aos compromissos da política de mudança climática deve ter em conta que há entre a efetividade e a legitimidade um mecanismo de autorreforço. A maior porosidade do Banco ao controle social tende a incrementar a sua legitimidade e a fomentar ganhos maiores de efetividade.
46. O principal motivo que leva as empresas à prática de divulgações (disclosures) socioambientais é a preocupação em legitimar suas atividades perante a sociedade.28 Como agência estatal, o Sistema BNDES aloca recursos da sociedade e tem a sociedade como a instância última de delegação de seus poderes e atribuições. Assim, a sua atuação precisa não apenas ser efetiva, no sentido de obter resultados, mas também contar com a concordância e a compreensão da sociedade civil. Para isso, exige-se que bancos de desenvolvimento prestem contas para a sociedade, explicando as suas escolhas e os seus critérios.
47. O desenho de mecanismos que favoreçam ganhos de legitimidade pode contribuir também para aprimorar a efetividade de um banco de desenvolvimento. No caso específico do Sistema BNDES, Schapiro29 entende como adequado o estabelecimento de um mandato procedimental, do qual resultem objetivos financeiros e não financeiros e, ainda, a correspondente prestação de contas.
48. Por mandato procedimental, entende-se um procedimento público de estabelecimento das prioridades do BNDES, acompanhado da escolha justificada dos instrumentos e da prestação de contas dos resultados alcançados em um determinado lapso de tempo. Tal procedimento poderia a um só tempo aumentar a sua legitimidade e a sua
28 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx; NEUMANN Marguit. Divulgação de informações socioambientais nas DFP de empresas brasileiras: uma análise a luz da teoria da Legitimidade. Revista Espacios, v. 38, n. 24, p. 1-17, 2017. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx/x00x00x00/00000000.xxxx>. Acesso em: 14 jan. 2022.
29 XXXXXXXX, Xxxxx X. O que a política industrial pode aprender com a política monetária? Novos estudos CEBRAP, n. 96, p. 117-130, 2013. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxxx.xx/x/xxx/x/Xx0XXXXXXXXXXxXXXxXx0xX/?xxxxxxx#>. Acesso em: 14 jan. 2022.
efetividade. A legitimidade ganharia pela explicitação de suas escolhas e prioridades, favorecendo assim o controle social de suas atividades. A efetividade seria favorecida porque um procedimento público de definição de agenda e de prestação de contas dos resultados teria o condão de mitigar o acesso lícito, porém privilegiado, de grupos de interesse na formulação de políticas.
49. O caso do financiamento de segmentos verdes e favoráveis à transição climática tende a ser favorecido se as metas de financiamento do BNDES vierem a ser definidas publicamente, em rituais anuais ou plurianuais. Tal procedimento, bem como a correlata prestação de contas, que deve envolver um exame do custo e do benefício obtidos, tende a aumentar o ônus político de uma política financeira inconsistente com a transição climática.
50. Por sua vez, possuindo a capacidade de participar e incentivar determinadas atividades econômicas como acionista, seria de se esperar que a BNDESPAR agisse de modo a investir em atividades sustentáveis e retirar-se da participação de atividades carbono-intensivas. Todavia, não é o que se pode observar.
51. Como já mencionado, para subsidiar a presente ação, requereu-se ao Centro Clima/COPPE/UFRJ um estudo científico específico que indicasse a relevância da BNDESPAR para mitigação e adaptação climática do Brasil (Docs. 3 e 4). O estudo resultante dividiu-se em aspectos de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas. Sob o ponto de vista da mitigação, o estudo considera as emissões de GEE geradas pelas empresas que compõem a carteira acionária da BNDESPAR.
52. Quanto aos aspectos de adaptação, o estudo avalia a (i) resiliência da carteira da BNDESPAR aos riscos climáticos, físicos e de transição; (ii) o alinhamento da BNDESPAR aos objetivos do Acordo de Paris (no que se refere à adaptação e resiliência climáticas; vulnerabilidade setorial da carteira de investimento; perigo; exposição, sensibilidade e capacidade adaptativa; e vulnerabilidade por setor econômico); (iii) a vulnerabilidade da sua carteira às mudanças climáticas;
(iv) a projeção do clima futuro para o Brasil, com a caracterização das empresas avaliadas; (v) os estressores, impactos e consequências por setor da carteira; (vi) as iniciativas e ações climáticas do BNDES e da BNDESPAR e da carteira da BNDESPAR; (vii) e, finalmente, o diagnóstico da vulnerabilidade da carteira aos perigos climáticos.
53. O parecer e seus anexos confirmam plenamente a verossimilhança e a viabilidade do pleito da Autora, corroborando as premissas básicas da presente ação, no sentido de que:
i) A BNDESPAR mantém posições acionárias em setores carbono-intensivos;
ii) Há um déficit de transparência nas informações climáticas prestadas pela BNDESPAR;
iii) Ao selecionar empresas para adquirir e manter participação acionária, a BNDESPAR tem o dever, perante a sociedade brasileira, de incluir dentre os critérios de escolha a contribuição das empresas para a sustentabilidade do clima global e sua exposição a riscos climáticos de diversas naturezas;
iv) A gestão dos riscos climáticos ainda não foi devidamente incorporada na estratégia geral de gestão de riscos das empresas; e
v) O não conhecimento dos riscos climáticos relevantes para a carteira de investimentos, bem como seu rebatimento para o meio ambiente e a sociedade brasileira (dupla materialidade), podem comprometer o processo de gestão de riscos e o planejamento estratégico da BNDESPAR.
54. Em suma, a transição climática só estará garantida quando o clima se tornar um bem público da sociedade civil, rechaçando-se políticas desalinhadas com o futuro do planeta. Para a construção de um bem público e para o alcance do controle social correspondente, é necessária a constituição de um sistema de governança pública, assentado nos art. 225 e 170, V da Constituição Federal, também à luz do arcabouço jurídico climático brasileiro, e no estabelecimento de metas, na publicização dos instrumentos e na prestação de contas dos custos incorridos e dos benefícios alcançados.
2. PRELIMINARMENTE
2.1. LEGITIMIDADE ATIVA
55. A Lei nº 7.347/1985 (Lei da ACP) prevê em seu artigo 5º, V, que as associações têm legitimidade para propor a ação civil pública, desde que estejam constituídas há pelo menos um ano e que incluam, entre suas finalidades institucionais, a proteção de interesses tuteláveis por meio deste instrumento processual.
56. Nesse sentido, a doutrina tem destacado a especial importância do protagonismo das associações e organizações da sociedade civil na defesa dos interesses difusos e coletivos, diante dos obstáculos ao acesso à justiça de determinados grupos ou mesmo das dificuldades de efetivar a proteção de direitos difusos, como no presente caso.
Especificamente a ação civil pública está disciplinada na Lei 7.347, de 24.07.1985, e, nesse campo, o envolvimento das organizações não governamentais ganha especial importância, uma vez que se tornou impraticável ao Estado assumir, de forma solitária, esse pesado e relevantíssimo encargo, na dura missão de assegurar, eficaz e tempestivamente, o controle judicial das atividades de risco e, quando necessária, a integral reparação de danos causados ao meio e a seus componentes naturais, culturais ou artificiais.30
57. É pacífico, portanto, que as associações da sociedade civil estão autorizadas ao ajuizamento de ação civil pública. Assim, passa-se a demonstrar o preenchimento dos requisitos pela Autora. O requisito temporal é patente, visto que a Autora é uma associação civil sem fins lucrativos e sem fins econômicos, fundada em setembro de 2001, conforme os documentos societários em anexo (Doc. 2). De igual modo, o requisito temático encontra-se preenchido, duplamente vale dizer, tanto do ponto de vista específico de atuação no tema de mudanças climáticas quanto da perspectiva integrada, holística e interdisciplinar que a questão assume no campo dos direitos humanos.
58. Da primeira perspectiva, a Autora tem, entre seus eixos de atuação, o programa de Defesa de Direitos Socioambientais, que atua no sentido de contribuir para o desenvolvimento sustentável do Brasil. Para tanto, o programa busca a responsabilização do Estado e de empresas por violações de direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais, atuando principalmente nas seguintes frentes de trabalho:
i. impactos da indústria extrativista, em que acompanha e denuncia os impactos de grandes empreendimentos que afetam a vida de comunidades tradicionais e o meio ambiente de forma drástica e permanente;
ii. combate à escravidão contemporânea, com incidência na pauta legislativa e executiva para fortalecer as políticas públicas de combate ao trabalho análogo ao escravo;
30 XXXXXX, Xxxx; LOURES, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx. O papel do Terceiro Setor na Proteção Jurídica do Ambiente.
Revista de Direito Ambiental. São Paulo, RT, n. 35, p. 96-122, 2004.
iii. financiamento do desenvolvimento, com monitoramento e estímulo às políticas de direitos humanos praticadas por instituições financeiras de desenvolvimento;
iv. clima, meio ambiente e direitos humanos, em que se busca adequar os processos políticos, econômicos e sociais aos compromissos de redução das emissões de gases de efeito estufa.
59. Em atenção à temática climática, a Autora tem desenvolvido iniciativas que buscam evidenciar a ligação direta entre a garantia dos direitos humanos e o enfrentamento à mudança do clima.31 Dentre outras atividades, destaque-se que recentemente a Autora elaborou o primeiro guia sobre litigância climática no Brasil, lançada internacionalmente durante a COP25 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas) em 2019, em Madri;32 a publicação Clima e Direitos Humanos – Vozes e Ações, de setembro de 2021;33 e publicou uma série de artigos sobre direito e mudanças climáticas no portal JOTA, com análises dos principais especialistas nacionais e internacionais sobre a temática.34
60. Ainda da perspectiva específica, em termos de atuação judicial, a Autora possui vasta atuação e capacidade técnica de promover uma ação desse porte. Está qualificada como amicus curiae em uma série de ações que discutem mudanças climáticas, a exemplo da ADPF nº 760, litígio climático referente ao desmantelamento de programas de proteção a Biomas; da ADO nº 59, sobre os impactos climáticos e ambientais causados pelo contingenciamento dos recursos previstos no Fundo Amazônia; e da ADPF nº 623, que versa sobre a exclusão da sociedade civil no Conselho
31 Vide, por exemplo, doutrina sobre mudanças climáticas e direitos humanos: XXXX, Xxxx. Human rights principles and climate change. In: CARLARNE, Xxxxxxxx, XXXX, Xxxxx X.; XXXXXXXXXX, Xxxxxxx. The Oxford Handbook of International Climate Change Law. Oxford: Oxford University Press, 2016. p. 213-235; XXXX, Xxxxx. Prestando contas dos danos aos direitos humanos causados por mudanças climáticas: o uso do litígio estratégico como uma ferramenta chave para responsabilizar governos pela inação em matéria de mudanças climáticas. SUR: Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 14, n. 25, p. 89-98, jul. 2017; XXXX, Xxxxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxx X. A rights turn in climate change litigation? Transnational Environmental Law, Cambridge, v. 7, n. 1, p. 37-67, 2018; XXXXX, Xxxxx Xxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Proteger o clima é garantir os direitos humanos. Jota, 20 out. 2020. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxx.xxxx/xxxxxxx-x-xxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxx-xxxxx-xxxxxxxx-xxxxxxxx-xxxxxxx-00000000>. Acesso em: 13 jan. 2022; XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx da; REI, Xxxxxxxx. Proteção dos direitos humanos como meio para litígios climáticos. Veredas do Direito: Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, v. 18, n. 40, 2021.
32 CONECTAS DIREITOS HUMANOS. Guia de Litigância Climática (2019). Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxxxxxxx/xxxx-xx-xxxxxxxxxx-xxxxxxxxx/>. Acesso em: 13 jan. 2022.
33 CONECTAS DIREITOS HUMANOS. Conectas lança e-book sobre clima e direitos humanos. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxxxxx/xxxxxxxx-xxxxx-x-xxxx-xxxxx-xxxxx-x-xxxxxxxx-xxxxxxx/>. Acesso em: 13 jan. 2022.
34 CONECTAS DIREITOS HUMANOS. Direito e mudanças climáticas: olhares, tendências e soluções. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxxxxx/xxxxxxx-x-xxxxxxxx-xxxxxxxxxx-xxxxxxx-xxxxxxxxxx-x-xxxxxxxx/>. Acesso em: 13 jan. 2022.
Nacional do Meio Ambiente, impedindo o adequado funcionamento do colegiado para questões relacionadas ao meio-ambiente e ao clima.
61. Ao mesmo tempo, já apresentou pareceres e pedidos de ingresso na ADPF nº 708, sobre os impactos climáticos e ambientais causados pelo contingenciamento dos recursos previstos no Fundo Clima – na qual, inclusive, foi selecionada pelo Ministro Relator, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, para manifestar-se na audiência pública realizada em 2020 –, bem como na Ação Popular nº 5008035-37.2021.4.03.6100, que discute os compromissos do Estado brasileiro na mitigação das mudanças climáticas a partir da metas de redução das NDCs (Contribuição Nacionalmente Determinadas de emissão de carbono). Merece menção também que o Guia de Litigância Climática, produzido pela Autora, foi citado em decisão monocrática proferida no dia 19 de agosto de 2021 pela Desembargadora Federal Xxxxx Xxxx xx Xxxxxxx, afirmando a existência da Ação Civil Pública Climática, já que uma ação civil pública que tenha por objeto central o cumprimento, pelo Estado, das obrigações jurídicas atinentes à mitigação dos gases de efeito estufa (GEE) e à efetivação do direito fundamental ao clima estável, e que seja fundamentada em normas jurídicas que tratam eminentemente da mudança do clima, não se confunde com uma ação civil pública que pretenda a implementação de medidas de comando e controle do direito ambiental, ainda que esta última possua uma inerente dimensão climática.35Da segunda perspectiva, observando as mudanças climáticas pela lente dos direitos humanos de modo mais amplo, cabe pontuar que a Autora tem a finalidade de fortalecer e promover o respeito aos direitos humanos no Brasil e no hemisfério Sul, dedicando-se, para tanto, à educação em direitos humanos, à advocacia estratégica e à promoção do diálogo entre sociedade civil, universidades e agências internacionais envolvidas na defesa destes direitos.
62. As atividades desempenhadas ao longo desses anos conferiram à Autora o status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social da ONU (desde 2006) e status observador junto à Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos (desde 2009), participando ativamente de conselhos da sociedade civil que monitoram a aplicação de políticas públicas de direitos humanos, como o Conselho Nacional de Direitos Humanos. Ademais, atua intensamente no Sistema
35 Agravo de Instrumento nº 5033746-81.2021.4.04.0000/PR.
Interamericano de Direitos Humanos e junto aos procedimentos especiais do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
63. Com relação aos fins institucionais da Autora, transcreve-se o inciso VI do art. 3º e o § 1º, item “d” do mesmo artigo de seu Estatuto, in verbis:
Artigo 3º - A ASSOCIAÇÃO será regida nos termos da Lei 9.790/99 e terá por finalidade promover, apoiar, monitorar e avaliar projetos em direitos humanos em nível nacional e internacional, em especial:
(...)
VI – promoção e defesa de bens e direitos sociais, coletivos e difusos relativos aos direitos em âmbito judicial, extrajudicial e/ou administrativo.
Parágrafo 1º - A ASSOCIAÇÃO pode, para consecução de seus objetivos institucionais, utilizar todos os meios permitidos na lei, especialmente para:
(...)
g) Promover e/ou intervir em ações judiciais, em qualquer grau de jurisdição, visando à efetivação dos direitos humanos, em especial, mas não se limitando, aos direitos previstos e/ou decorrentes daqueles constantes nos Artigos 5º e seguintes da Constituição Federal brasileira, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, na jurisprudência dos Tribunais Internacionais, em tratados internacionais e no costume.
64. A advocacia estratégica, mais especificamente, é promovida em âmbito nacional e internacional, com o objetivo de alterar as práticas institucionais e sociais que desencadeiam sistemáticas violações de direitos humanos. Como reflexo de sua atuação, a Autora é uma das organizações não governamentais com maior número de amici curiae perante o STF,36 e proponente e assistente em diversas outras ações judiciais visando a defesa dos direitos humanos.
36 “Há três comunidades principais. A de cor vermelha tem representantes da sociedade civil, com marcante atuação da ONG Conectas, o nó central dessa comunidade, participando em diversos temas de repercussão social analisados pelo STF. Ela ‘liga’ subgrupos de representantes da sociedade civil que atuam na descriminalização das drogas, direitos LGBT, religião, defesa do meio ambiente, movimento negro, agronegócio, quilombolas e defensores públicos.” Como se relacionam os influenciadores do Supremo. Folha de São Paulo, 18. Mar. 2018. Disponível em:
<xxxxx://xxx0.xxxxx.xxx.xxx.xx/xxxxx/0000/00/xxxx-xx-xxxxxxxxxx-xx-xxxxxxxxxxxxxxx-xx-xxxxxxx.xxxxx>. Acesso em: 13 jan. 2022.
65. In casu, como representante da sociedade civil organizada, a Autora tem plena legitimidade para questionar as políticas climáticas adotadas pela BNDESPAR, em especial considerando os reflexos dessas políticas sobre os direitos humanos, o meio ambiente e o agravamento ou redução de desigualdades.
66. De fato, a indissociável vinculação entre clima e direitos humanos vem sendo amplamente reconhecida, tanto no âmbito da ONU37 quanto na seara dos litígios climáticos, em sistemas de distintas tradições jurídicas, no Sul e no Norte globais.38 Com efeito, como documentado no relatório apresentado à Assembleia Geral das Nações Unidas por Xxxxx Xxxx, Relator Especial sobre a questão das obrigações em matéria de direitos humanos relativas a fruição de um ambiente seguro, limpo, saudável e sustentável, por meio do documento A/74/161,39 sabe- se atualmente que as mudanças climáticas têm implicações importantes para a fruição de uma ampla gama de direitos humanos – incluindo os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à água, à cultura e o direito ao meio ambiente equilibrado –, o que tem levado vários órgãos internacionais de direitos humanos a se pronunciar sobre o tema.
67. Além disso, as mudanças climáticas afetam com maior intensidade os mais vulneráveis, cabendo, assim, um olhar atento dos mecanismos de proteção de direitos humanos, em consonância com o ideário do desenvolvimento sustentável. De acordo com a Plataforma AdaptaClima, do Ministério do Meio Ambiente:40
Os efeitos da mudança do clima, dentre eles a intensificação de eventos climáticos, atinge a todos, mas a repercussão e intensidade de seus impactos não serão vivenciados da mesma forma pelos diferentes povos e populações. O relatório do IPCC de 2014 enfatiza que houve agravamento dos desafios enfrentados por populações que estão em situação precária no que tange aos direitos básicos. No contexto brasileiro, onde ainda perduram acentuadas desigualdades sociais e regionais, a pobreza é um dos fatores que mais contribuem para aumentar a sensibilidade da população aos efeitos da mudança
37 UNEP. Direitos humanos, ameaçados pelas mudanças climáticas, podem também fornecer soluções. United Nations Environment Programme, 4 out. 2019. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxx.xxx/xx-xx/xxxxxxxx-x- reportagens/story/direitos-humanos-ameacados-pelas-mudancas-climaticas-podem-tambem>. Acesso em: 14 jan. 2022.
38 Vide nota 4, supra.
39 UNITED NATIONS. A/74/161 - Human rights obligations relating to the enjoyment of a safe, clean, healthy and sustainable environment. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxx/X/00/000>. Acesso em: 13 jan. 2022.
40 ADAPTACLIMA. Povos e Populações Vulneráveis no Contexto da Mudança do Clima. Disponível em:
<xxxx://xxxxxxxxxxx.xxx.xxx.xx/xxxxx-x-xxxxxxxxxx-xxxxxxxxxxx-xx-xxxxxxxx-xx-xxxxxxx-xx-xxxxx>. Acesso em: 14 jan. 2022.
do clima e reduzir sua capacidade adaptativa (Brasil, 2016). Outros fatores que contribuem para a condição de vulnerabilidade social são as questões de gênero, cor e raça, e grupos populacionais tradicionais e específicos (GPTEs), especialmente inseridos em um contexto de desigualdades estruturantes (COEP, 2011).
68. E, nesse sentido, a Política Nacional de Mudança do Clima (PNMC), estabelecida pela Lei nº 12.187/2009, em seu art. 3º, III, prevê que:
as medidas tomadas devem levar em consideração os diferentes contextos socioeconômicos de sua aplicação, distribuir os ônus e encargos decorrentes entre os setores econômicos e as populações e comunidades interessadas de modo equitativo e equilibrado e sopesar as responsabilidades individuais quanto à origem das fontes emissoras e dos efeitos ocasionados sobre o clima.
69. Ao fim, convém destacar que a legitimidade ativa da AUTORA para propor ações civis públicas já restou consagrada em decisão do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp
1.833.056 – SP, de relatoria do Min. XXXXXXXX XXXXXXXXX. Além de citar vasta orientação jurisprudencial do STJ41 em seu voto, asseverou:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRÁTICA DE ATOS VEXATÓRIOS EM REVISTA ÍNTIMA DOS VISITANTES DE UNIDADES PRISIONAIS. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. ASSOCIAÇÃO CUJA FINALIDADE INSTITUCIONAL É A DEFESA DE DIREITOS HUMANOS. LEGITIMIDADE ATIVA. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL PACÍFICA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
[...]
Nesse contexto, se o estatuto da associação comprovada a finalidade de defesa dos direitos humanos, não há empecilho legal ao ajuizamento da ação civil pública pela associação recorrente, que atuará como substituta processual, daí porque não se revela adequada a conclusão de que as pessoas eventualmente lesadas devam ser associadas ou autorizem, por qualquer meio, o ajuizamento da ação. (grifos nossos)
41 REsp 1325857/RS, Rel. Ministro XXXX XXXXXX XXXXXXX, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 30/11/2021, DJe
01/02/2022; AgInt no REsp 1719820/MG, Rel. Ministro XXXXX XXXXXXX XXXXXXXX, TERCEIRA TURMA,
julgado em 15/04/2019, DJe 23/04/2019; REsp 1649087/RS, Rel. Ministra XXXXX XXXXXXXX, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/10/2018, DJe 04/10/2018
70. Pelo exposto, tendo em vista a existência da Autora há mais de 20 anos, em prol do desenvolvimento do país, bem como seus fins institucionais e a pertinência de sua atuação com o objeto desta demanda, não resta dúvida de que estão preenchidos os requisitos legais autorizadores para o ajuizamento da presente ação civil pública.
2.2. LEGITIMIDADE PASSIVA E COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL
71. Segundo informações extraídas do seu sítio eletrônico,42 o BNDES e a BNDESPAR estão assim estruturados:
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CNPJ: 33.657.248/0001-89
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social foi fundado em 1952 e, atualmente seu capital social subscrito está representado por 6.273.711.452 ações ordinárias, nominativas, sem valor nominal, de propriedade integral da União Federal.
Os principais objetivos do BNDES são:
- apoiar programas, projetos, obras e serviços que se relacionem com o desenvolvimento econômico e social do País; e
- estimular a iniciativa privada, sem prejuízo de apoio a empreendimentos de interesse nacional a cargo do setor público.
BNDES Participações S/A - BNDESPAR
CNPJ: 00.383.281/0001-09
A BNDESPAR é uma sociedade por ações. O seu capital social subscrito está representado por uma única ação, nominativa, sem valor nominal, de propriedade do BNDES. Seus objetivos são:
- realizar operações visando à capitalização de empreendimentos controlados por grupos privados, observados os planos e políticas do BNDES;
- apoiar empresas que reúnam condições de eficiência econômica, tecnológica e de gestão e, ainda, que apresentem perspectivas adequadas de retorno para o investimento, em condições e prazos compatíveis com o risco e a natureza de sua atividade;
42 BNDES. Empresas do Sistema BNDES. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxxx/xxxx/xxxx/xxxx- somos/governanca-controle/empresas-sistema-bndes/Empresas-do-Sistema-BNDES>. Acesso em: 14 jan. 2022.
- apoiar o desenvolvimento de novos empreendimentos, em cujas atividades se incorporem novas tecnologias;
- contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais, por intermédio do acréscimo de oferta de valores mobiliários e da democratização da propriedade do capital de empresas; e
- administrar carteira de valores mobiliários, próprios e de terceiros.
O BNDES, na qualidade de Acionista Único, detém plenos poderes para decidir sobre todos os negócios relativos ao objeto social da BNDESPAR e adotar as resoluções que julgar convenientes à sua defesa e ao seu desenvolvimento, cabendo-lhe, privativamente, a deliberação sobre matérias de caráter administrativo e gerencial, como a abertura do capital social da subsidiária, emissão de títulos ou valores mobiliários e a apreciação das demonstrações financeiras da BNDESPAR. (grifamos)
72. Ou seja, a BNDESPAR é o braço do Sistema BNDES que atua no mercado de capitais, sendo uma sociedade por ações, subsidiária integral do BNDES, que investe em empresas brasileiras com foco no longo prazo, observando as diretrizes definidas na Política de Atuação em Mercado de Capitais do Sistema BNDES. Dada sua missão institucional de instrumento de execução da política de investimento do governo federal43 e seu objetivo primordial de apoiar programas, projetos, obras e serviços que se relacionem com o desenvolvimento econômico e social do país, desempenha importante papel na promoção do desenvolvimento sustentável.
73. O BNDES, por sua vez, é o único acionista da BNDESPAR e, nesta qualidade, concentra os poderes para decidir sobre todos os negócios desta, sendo evidente seu dever fiduciário enquanto controlador.
74. Além disso, muitas das questões atinentes à BNDESPAR são tratadas de modo conjunto nas informações disponibilizadas pelo BNDES. Isso significa que cabe a este assegurar que as decisões de investimento da BNDESPAR estejam alinhadas aos compromissos de sustentabilidade do sistema BNDES, justificando-se, portanto, sua inclusão no polo passivo da presente demanda.
43 Vide Art. 3o do Estatuto do BNDES. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxxx/xxxx/xxxx/xxxx- somos/governanca-controle/Legislacao_do_Sistema_BNDES/estatuto-do-bndes>. Acesso em: 12 jan. 2022.
75. No tocante à competência material da Justiça Federal, basta dizer que o BNDES é uma autarquia federal – nos termos das Leis nº 1.628/1952 e nº 5.662/1971 – o que se amolda perfeitamente à hipótese prevista no art. 109, caput, da Constituição Federal. Ainda, trata-se de demanda com fundamento em diversos compromissos celebrados pelo Estado brasileiro – isto é, pela União – em nível internacional, por meio de tratados e convenções internacionais: incide, portanto, também a hipótese de competência federal fundada nos incisos III e V-A do referido art. 109 da Constituição Federal.
76. Por fim, sobre o foro de apresentação da causa, vale mencionar ainda dois outros pontos. Primeiro, tanto o estatuto do BNDES44 quanto o estatuto da BNDESPAR45 estipulam, em seus artigos 2ºs, que suas sedes e foros ficam em Brasília, Distrito Federal. Segundo, o Superior Tribunal de Justiça já asseverou que atos do presidente do BNDES estão equiparados a atos da União para fins de eleição de foro:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO POPULAR AJUIZADA CONTRA ATO DO PRESIDENTE DO BNDES, QUE, POR DISCIPLINA LEGAL, EQUIPARA-SE A ATO DA UNIÃO. INTELIGÊNCIA DO ART. 5º, § 1º DA LEI 4.717/65. APLICAÇÃO DOS ARTS. 99, I, DO CPC, E 109, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. COMPETÊNCIA TERRITORIAL. PRINCÍPIO DA PERPETUATIO JURISDICTIONIS.
[...]
5. Sendo igualmente competentes os Juízos da seção judiciária do domicílio do autor, daquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, do Distrito Federal, o conflito encontra solução no princípio da perpetuatio jurisdicionis.
6. Não sendo possível a modificação ex officio da competência em razão do princípio da perpetuatio jurisdicionis, a competência para apreciar o feito em análise é do Juízo perante o qual a demanda foi ajuizada, isto é, o Juízo Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, o suscitado.
(STJ. 1ª Seção. CC 107.109, Rel. Min. Castro Meira. DJe 18/03/2010. Julgado em 24/02/2010)
44 Artigo 2º. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxxx/xxxx/xxxx/xxxx-xxxxx/xxxxxxxxxx- controle/Legislacao_do_Sistema_BNDES/estatuto-do-bndes>.
45 Artigo 2º. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxxx/xxxx/xxxx/xxxx-xxxxx/xxxxxxxxxx- controle/Legislacao_do_Sistema_BNDES/estatuto-da-bndespar>.
2.3. LITÍGIO CLIMÁTICO E PROCESSO JUDICIAL ESTRUTURANTE
77. A litigância climática, que vem ganhando cada vez mais relevo no Brasil e no mundo,46 se apresenta como uma ferramenta jurídica para evitar a mudança do clima, defender os direitos humanos47 e trazer à tona a emergência climática para o debate público.48 Já são, aproximadamente, 2.000 litígios climáticos ao redor do mundo49 – com o registro de casos de sucesso a favor da proteção do clima, tais como Massachusetts v. EPA nos Estados Unidos, Urgenda e Milieudefensie na Holanda, Notre Affaire à Tous na França, Leghari no Paquistão, Neubauer na Alemanha e Friends of the Irish Environment na Irlanda –, tendo a própria Organização das Nações Unidas (ONU) publicizado o fenômeno por meio do documento Global Climate Litigation Review.50
78. Em nosso país, a discussão sobre a viabilidade da litigância climática vem avançando,51 especialmente em razão do Brasil ser o quinto maior emissor global de gases de efeito
46 Vide: XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx de; XXXXXXX, Xxxxx xx Xxxxx. Litigância climática como estratégia jurisdicional ao aquecimento global antropogênico e mudanças climáticas. Revista de Direito Internacional, v. 16, n. 2, p. 55-72, 2019; XXXXXX, Xxxx. Litigância no STF: as lições dos casos paradigmáticos internacionais. Jota. 2020. Disponível em
<xxxxx://xxx.xxxx.xxxx/xxxxxxx-x-xxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxxxx-xxxxxxxxx-xx-xxx-xx-xxxxxx-xxx-xxxxx-xxxxxxxxxxxxxx- internacionais-07072020>. Acesso em: 12 jan. 2022; XXXXXXXXXX, Xxxxxxx et al. Climate justice and rights-based litigation in a post-Paris world. Climate Policy, v. 21, n. 5, p. 652-665, 2021.
47 Vide: XXXXXXX, Xxxxxxx. Linking climate litigation and human rights. Review of European Community & International Environmental Law, v. 18, n. 2, p. 139-147, 2009; XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx; XXXXXX, Xxxxxx X.; XXXXX, Xxxxxx. Civil society, social movements, and climate change. In: XXXXXX, Xxxxx X.; XXXXXX, Xxxxxx X. (Ed.). Climate change and society: sociological perspectives. Oxford: Oxford University Press, 2015. p. 235-26; SARAIVA, Rute. Os novos litígios climáticos (e o discurso dos Direitos Humanos). Revista Jurídica do Ministério Público do Estado do Tocantins, v. 17, n. 1, p. 108-141, 2019.
48 Vide: XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx da; REI, Xxxxxxxx. Litigância como estratégia de fortalecimento da governança climática: reflexões para o contexto brasileiro. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, Curitiba, v. 9, n. 3, p. 303-323, 2018; XXXXXXXXXXX, Letícia; FAGUNDEZ, Xxxxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Litigância climática como instrumento indutor da descarbonização da matriz energética brasileira. Revista Videre, v. 11, n. 22, p. 154-170, 2019; XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx de; XXXXXXX, Xxxxx xx Xxxxx. Litigância climática como estratégia jurisdicional ao aquecimento global antropogênico e mudanças climáticas. Revista de Direito Internacional, v. 16, n. 2, p. 55-72, 2019.
49 Dados do Sabin Center for Climate Change Law, da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, indicam a existência de 1.987 litígios climáticos, sendo 1.423 casos nos EUA e 564 casos em outros países. Vide: CLIMATE CASE CHART. Climate Change Litigation Databases. Disponível em: <xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxx.xxx/xxxxxxx-xxxxxx- litigation/>. Acesso em: 4 mai. 2022.
50 UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. Global Climate Litigation Report: 2020 Status Review. Nairobi: UNEP, 2020. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxx.xxxx.xxx/xxxxxxxxx/xxxxxx/00.000.00000/00000/XXXX.xxx?xxxxxxxxx0&xxXxxxxxxxx>. Acesso em: 12 jan. 2022.
51 Vide: XXXXXX, Xxxxx; XXXXX, Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Litigância Climática: novas fronteiras para o direito ambiental no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019; XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXX, Xxxx; XXXXXX, Xxxxx. Guia de Litigância Climática. São Paulo: Conectas, 2019. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxxxxxxx/xxxx- de-litigancia-climatica/>. Acesso em: 12 jan. 2022; XXXXXXXX XXXXX, Xxxxxxxxx de; MAROCCO, Xxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxx; FONTANELA, Cristiani. Litigância climática: a legitimidade processual dos movimentos sociais ambientais na discussão climática no Brasil. Revista de Direito Agrário e Agroambiental, v. 7, n. 1, p. 57-72, 2021.
estufa, de acordo com dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG),52 e já vir sofrendo com os efeitos das mudanças climáticas. Eventos crônicos e agudos, tais como a alteração dos regimes de chuvas e tempestades de areia no Sudeste, e o aumento de temperatura em algumas regiões do Nordeste vêm sendo cada vez mais associados a alterações estruturais nas condições climáticas. Recentemente, temos assistido os graves impactos provocados pelo alto volume de chuvas, principalmente nos estados de Minas Gerais53 e da Bahia.54
79. Nesse contexto de agravamento da crise climática, o Poder Judiciário brasileiro vem sendo provocado a se manifestar,55 como se observa, por exemplo, nos casos envolvendo o Fundo Clima (primeira ação climática ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal, questionando a paralisia das operações e governança do fundo);56 nas duas ações, movidas por partidos políticos, ONGs e associações ambientais, visando à aplicação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm);57 no caso movido por jovens questionando a falta de ambição na nova Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) do Brasil;58 na ação movida por um grupo de famílias contra incentivos concedidos ao setor automotivo pelo Estado de São Paulo;59 na ação que busca incluir avaliação de impactos climáticos no licenciamento de
52 POTENZA, Xxxxxx Xxxxxxx et al. Análise das emissões brasileiras de gases de efeito estufa e suas implicações para as metas de clima do Brasil - 1970-2020: 2021. São Paulo: SEEG, Observatório do Clima, 2021. Disponível em: <xxxxx://xxxx- xx.x0.xxxxxxxxx.xxx/Xxxxxxxxxx%00Xxxxxxxxxx/XXXX_0/XX_00_xxxxxxxxx_0000_XXXXX.xxx>. Acesso em: 5 mai. 2022.
53 XXXXXXXXXXX, Xxxxxxx. Chuvas que devastaram cidades mineiras em 2020 já são efeito das mudanças climáticas, diz estudo. Agência FAPESP, 19 ago. 2021. Disponível: <xxxxx://xxxxxxx.xxxxxx.xx/xxxxxx-xxx-xxxxxxxxxx-xxxxxxx- mineiras-em-2020-ja-sao-efeito-das-mudancas-climaticas-diz-estudo/36627/>. Acesso em 13 jan. 2022.
54 XXXXXX, Xxxxx. Enchentes na Bahia são claro alerta das mudanças climáticas no Brasil, diz cientista. XXX, 00 dez. 2021. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxxxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxx-xxxxxxxx/xxx/0000/00/00/xxxxxxxxx-xx-xxxxx-xxx-xxxxx-xxxxxx-xxx-xxxxxxxx- climaticas-no-brasil-diz-cientista.htm>. Acesso em: 12 jan. 2022.
55 Uma base de dados dos litígios climáticos no Brasil foi compilada pelo projeto JusClima 2030, de iniciativa do Conselho Nacional de Justiça. De acordo com os dados do projeto, existem 19 litígios climáticos em andamento no Brasil atualmente. Disponível em: <xxxxx://xxxxxxxx0000.xxxx.xxx.xx/xxxxxxx/>. Acesso em: 10 maio 2022.
56 ADPF 708.
57 Caso do PPCDAm (ADPF 760) e caso do IEA (ACP 5048951-39.2020.4.04.7000/PR).
58 Ação Popular 5008035-37.2021.4.03.6100/SP.
59 Produção Antecipada de Provas 1047315-47.2020.8.26.0053/SP.
termelétricas no Estado do Rio Grande do Sul;60 e na ação movida pelo Ministério Público Federal em busca de reparação de danos climáticos vinculados ao desmatamento na Amazônia.61
80. Nesse ponto, importa destacar os recentes julgamentos realizados pela Suprema Corte na denominada “pauta verde”, os quais confirmam as conclusões supramencionadas. Além disso, também ratificaram que a governança judicial climática demanda do aplicador do direito a adoção de critérios baseados em conhecimento científico e nas advertências decorrentes dele. Essa é a conclusão que se extrai, por exemplo, do voto da excelentíssima Ministra Xxxxxx Xxxxx na ADPF n. 760 (litígio climático que trata sobre a retomada da execução do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal - PPCDAm) ao reconhecer o “estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental”. Nesse sentido, colecionamos trechos do voto62:
“Como observado antes, pelos estudos técnicos acima referidos, os níveis de desmatamento da Amazônia, considerada o “pulmão do mundo”, aproximam o bioma do ponto de não retorno (tipping point). Em matéria ambiental, deve-se adotar como princípio determinante e obrigatório para a formulação das políticas públicas o que se comprovar necessário para anteciparem-se aos riscos de danos que possam ser causados ao meio ambiente, prevenindo-se os riscos que sejam previsíveis e estancar a destruição do meio ambiente.
(...)
Pelo apresentado pelos arguentes, composto de relatórios de órgãos ambientais que demonstram o aumento de queimadas e desmatamentos na região da Amazônia Legal em 2019, 2020 e 2021, acrescida de importantes demonstrações de ineficiência da política ambiental em curso, tem-se quadro estrutural de ofensa massiva, generalizada e sistemática dos direitos fundamentais ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, do direito à saúde componente inarredável do direito à vida digna. A existência digna compõe-se, nos termos constitucionalmente estabelecidos (inc. VI do art. 170) também pela defesa do meio ambiente, sem o que não se legitimam as escolhas políticas do Estado.
(...)
Pelos fundamentos apontados neste voto, considerando-se a insuficiência das justificativas apresentadas pelos órgãos responsáveis para fazer frente às alegações dos arguentes e aos crescentes níveis de desmatamento da Amazônia, reconheço o estado de coisas inconstitucional."
60 ACP 5030786-95.2021.4.04.7100/RS.
61 ACP 1005885-78.2021.4.01.3200/AM.
62 Voto Ministra Relatora Xxxxxx Xxxxx na ADPF 760.
81. Outro ponto que merece destaque é que o litígio climático tem sido necessário para assegurar uma arquitetura constitucional mais democrática, uma vez que diversas decisões proferidas pela Suprema Corte foram indispensáveis para garantir a transparência de informações e a participação da sociedade civil na elaboração de políticas públicas ambientais. Com efeito, a participação social e a prestação de informações adequadas são fundamentais para que se possa ter ciência da execução e se possa apurar a eficácia das políticas climáticas, o que permite, em última análise, a proteção adequada e efetiva do meio ambiente, do clima seguro e da dignidade humana. Assim, é digno de nota a decisão proferida, em sede cautelar, pela Ministra Xxxx Xxxxx na ADPF
n. 623, a qual suspendeu a eficácia do Decreto n. 9.806/2019 porque inviabilizava a participação social equilibrada no Conselho Nacional do Meio Ambiente- CONAMA. Sobre o tema, consta na decisão:
“Ao conferir à coletividade o direito-dever de tutelar e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225), a Constituição Federal está a exigir a participação popular na administração desse bem de uso comum e de interesse de toda a sociedade. E assim o faz tomando em conta duas razões normativas: a dimensão objetiva do direito fundamental ao meio ambiente e o projeto constitucional de democracia participativa na governança ambiental. ”
82. Acrescento, ainda, o recente precedente formado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF n. 651, que seguiu a mesma linha da decisão supracitada, ao declarar a inconstitucionalidade de norma constante no Decreto n. 10.224/2020 que excluía a participação de entidades no Conselho Deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente. Ao sanar essa controvérsia o Supremo Tribunal Federal garantiu a participação da sociedade civil na elaboração de políticas públicas ambientais e climáticas, compatibilizando o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado e ao clima seguro com o direito à participação popular.
83. Constata-se, pois, que o litígio climático é uma ferramenta jurídica de grande relevância para avaliar, fiscalizar, implementar e efetivar direitos e obrigações jurídicas relacionados às mudanças climáticas e que a presente ação se insere em um movimento global de enfrentamento à emergência climática que conta com a participação decisiva do Poder Judiciário, com forte lastro no art. 5º, XXXV da Constituição Federal e arts. 2º, 8º e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
84. Além da relevância do contexto aqui apresentado, cumpre evidenciar também as implicações relevantes do ponto de vista jurídico. O primeiro é o de que o escrutínio judicial, neste caso, é plenamente possível, nos termos do entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal (STF), do qual é representativo o acórdão abaixo transcrito:
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. INTERPOSIÇÃO EM 10.4.2017. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL. EFETIVAÇÃO DE NORMA CRIADORA DE PARQUE ECOLÓGICO. CONSERVAÇÃO E FISCALIZAÇÃO. SEPARAÇÃO DE PODERES. INEXISTÊNCIA DE OFENSA. 1. É firme o
entendimento deste Tribunal de que o Poder Judiciário pode, sem que fique configurada violação ao princípio da separação dos Poderes, determinar a implementação de políticas públicas nas questões referentes à preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado para a atual geração, bem como para as futuras gerações. 2. Agravo regimental a que se nega provimento, com previsão de aplicação da multa prevista no art. 1.021, § 4o, do CPC. Inaplicável o artigo 85, § 11, CPC, por se tratar de recurso oriundo de ação civil pública. (ARE 903241 AgR, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxx, Segunda Turma, j. 22/06/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-153 DIVULG 31-07- 2018 PUBLIC 01-08-2018). (grifamos)
85. O segundo é o de que o presente caso – um litígio climático complexo, que lida com uma situação antijurídica caracterizada pela desconformidade – presta-se, particularmente, à aplicação da teoria do processo judicial estrutural. Segundo Xxxxxx Xx., Xxxxxx e Xxxxxxxx:
[o] problema estrutural se define pela existência de um estado de desconformidade estruturada – uma situação de ilicitude contínua e permanente ou uma situação de desconformidade, ainda que não propriamente ilícita, no sentido de ser uma situação que não corresponde ao estado de coisas considerado ideal. Como quer que seja, o problema estrutural se configura a partir de um estado de coisas que necessita de reorganização (ou de reestruturação) (...)63
86. Estado de desconformidade, como dito, não é sinônimo necessariamente de estado de ilicitude ou de estado de coisas ilícito. Estado de desconformidade é uma situação de desorganização estrutural, de rompimento com a normalidade ou com o estado ideal de coisas, que
63 XXXXXX XX, Xxxxxx; XXXXXX XX, Xxxxxx; XX XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxxx. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. Revista de Processo. 2020. p. 45-81. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxxx.xx.xx/xxxxxxxxx/00000/0000000/Xxxxxx_Xxxxxx_xx_%00_Xxxxxx_Xxxxxx_Xx_%00_Xxxxxx_Xx exandria_de_Oliveira.pdf>. Acesso em: 13 jan. 2022.
exige uma intervenção (re)estruturante. Essa desorganização pode, ou não, ser consequência de um conjunto de atos ou condutas ilícitas. Logo, o processo estrutural pode ser definido como:
(...) uma nova formatação para a tutela executiva da sentença condenatória e/ou mandamental na qual o juiz, ao invés de unilateralmente impor obrigações de cumprimento imediato, nos rígidos prazos fixados pela norma processual, planeja e dimensiona no tempo, com a cooperação das partes, um cronograma ótimo para a implementação das obrigações impostas pela sentença, atento aos impactos e repercussões extra-processuais da ordem judicial.64
87. São exemplos da aplicação do processo estrutural em processos ambientais a Ação Civil Pública do carvão, ajuizada pelo Ministério Público Federal com o intuito de recuperar os passivos ambientais oriundos da atividade de mineração e beneficiamento do carvão, entre as décadas de 1970 e 1980, no Estado de Santa Catarina65 e, mais especificamente quanto à clima, a recente decisão do Ministro Barroso que designou, de ofício, a realização de Audiência Pública sobre o Fundo Clima,66 com base na seguinte fundamentação:
(…) tendo em vista que o caso envolve a necessidade de uma ampla compreensão sobre o estado atual das políticas públicas em matéria ambiental, sobre a operacionalização e o funcionamento do Fundo Clima e sobre os diversos atores e atividades eventualmente impactados por tais políticas; considerando, ainda, que essas questões extrapolam os limites do estritamente jurídico, demandando conhecimento interdisciplinar a respeito de aspectos científicos, socioambientais e econômicos, decido pela convocação de audiência pública, a fim de que sejam ouvidos autoridades, instituições oficiais, organizações da sociedade civil, institutos de pesquisa, entidades de classe e outros atores que possam prestar contribuição relevante para o debate. Com isso, pretendo que o Supremo Tribunal Federal possa instaurar um efetivo diálogo com a sociedade e as autoridades públicas, abrindo-se para os variados pontos de vista que a questão suscita e possibilitando a obtenção de subsídios para o equacionamento da controvérsia constitucional.
64 XXXXXXX, Xxxxxxxx. A novíssima Lei n. 13.655/2018 e o Processo Estrutural nos litígios complexos envolvendo a Administração Pública. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, v. 29, n. 6, 2019. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxx/xxxxxxxx-xxxxxxx/x-xxxxxxxxx-xxx-x-00000-0000-x-x-xxxxxxxx- estrutural-nos-litigioscomplexos-envolvendo-a-administracao-publica>. Acesso em: 13 jan. 2022.
65 AC 2001.04.01.016215-3/TRF4.
66 ADPF 708.
88. O processo judicial estrutural é, pois, plenamente aplicável aos litígios climáticos complexos, com vistas à construção da superação da situação de desconformidade, coadunando- se perfeitamente ao direito brasileiro sob o viés do acesso à justiça e da necessidade de dar efetividade imediata a direitos e garantias do bloco de constitucionalidade.
3. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
3.1. DIREITO DO CLIMA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
89. A complexidade e a urgência da crise climática implicam que o Direito tem diante de si o desafio inarredável de contribuir para a solução dos problemas climáticos. Em resposta a esse desafio, o regime jurídico das mudanças climáticas, nos planos internacional e doméstico, desenvolveu-se intensamente nos últimos anos, de modo tal que é possível, hoje, constatar a existência do Direito do Clima como domínio autônomo.67
90. O arcabouço do Direito do Clima, e os direitos e deveres jurídicos climáticos dele emanados, compreendem:
1. O regime internacional das mudanças climáticas - cuja pedra angular é a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas – CQNUMC, operacionalizada pelo Acordo de Paris, introduzido em 2015 em substituição ao regime do Protocolo de Kyoto –, e
2. No plano interno,
2.1. A Constituição Federal;
67 O Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação, elaborou a Bibliografia, Legislação e Jurisprudência Temática sobre o tema Funcionamento do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima) e do Fundo Amazônia, documento em que se pode visualizar a discussão jurisprudencial e doutrinária sobre o Direito do Clima. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxx/xxx/xxxxxxxxxxXxxxxxxxXxxxxxxXxxxxxxxxxXxxxxxxxxxxx/xxxxx/XxxxxXxxxxxXxxxx nia_out_2020.pdf>. Acesso em 13 jan. 2022. Vide também doutrina brasileira sobre direito do clima: XXXXX, Solange Teles da; XXXXXX, Xxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx (Coord.). Mudança do clima: desafios jurídicos, econômicos e socioambientais. São Paulo: Fiuza, 2011; BORN, Xxxxxx Xxxxx. Mudanças climáticas: direitos, legislação e políticas públicas: panorama do regime multilateral global, incluindo o Acordo de Paris, e sua aplicação no Brasil. São Paulo: Livro da Eco, 2017; XXXXXXXX, Délton Winter de; XXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx. A intensificação dos desastres naturais, as mudanças climáticas e o papel do Direito Ambiental. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 49, p. 83-97, 2012; XXXX, Xxxxxxx. Desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Saraiva Educação, 2018; XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx; DE XXXXXX XXXXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx. Direito ao meio ambiente e mudanças climáticas: o constitucionalismo brasileiro e o acordo de Paris. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, v. 11, n. 2, p. 254-287, 2020.
2.2. As obrigações assumidas no plano internacional, de natureza convencional ou não;
2.3. Normas infraconstitucionais, que podem ser:
2.3.1. Específicas, com destaque para a Política Nacional sobre a Mudança do Clima - PNMC (Lei nº 12.187/2009, regulamentada pelo Decreto nº 9.578/2018), ou
2.3.2. Deduzidas de normas que regulam outras matérias
- por exemplo, obrigações ambientais gerais, que incluem necessariamente a dimensão climática, o art. 10, I, do Código Florestal, que impõe o dever de respeito à integridade do sistema climático, ou o dever fiduciário previsto no art. 116, parágrafo único, da Lei nº 6.404/1976 - e, finalmente,
2.4. Compromissos voluntários ou contratuais assumidos pelos distintos atores no âmbito de instrumentos e frameworks internacionais.
91. Vejamos, a seguir, como esse arcabouço gera deveres jurídicos climáticos para os Réus.
A) Artigos 225 e 170, VI da Constituição Federal
92. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito humano hoje reconhecido, não só perante o Conselho de Direitos Humanos da ONU,68 mas também nas Constituições de mais de cem Estados, dentre elas a brasileira, que o prevê em seu artigo 225:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
68 Organização das Nações Unidas. Resolução 48/13 de 2021. Disponível em: < xxxxx://xxxxxxxxx-xxx- xx.xx.xxx/xxx/XXXXX/XXX/X00/000/00/XXX/X0000000.xxx?XxxxXxxxxxx >. Acessado em 25 de mai. 2022.
93. E corolário lógico e inexorável encontra-se o direito ao clima seguro, equilibrado e estável,69 eis que não há meio ambiente equilibrado sem que as mudanças climáticas sejam efetivamente combatidas.
94. A importância vital de um clima seguro, como parte do direito ao meio ambiente equilibrado, reflete a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, por meio da qual os Estados comprometeram-se a impedir “uma interferência antrópica perigosa no sistema climático”. Neste sentido, a doutrina vem reconhecendo que a omissão de entes públicos e privados em adotar medidas adequadas para lidar com as mudanças climáticas constitui uma violação do direito ao meio ambiente equilibrado, vide, Xxxxxx e Xxxxxxxxxxxxx, citando Xxxxxxx Xxxx e Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx:
[n]o tocante ao direito fundamental ao meio ambiente, a jurisprudência do STF reconhece uma dimensão ecológica inerente ao princípio da dignidade da pessoa humana, exigindo-se, nesse sentido, um patamar mínimo de qualidade e integridade ecológica como premissa a uma vida digna e ao exercício dos demais direitos fundamentais, inclusive com base na interdependência e indivisibilidade de tais direitos. Dito isso, entendemos possível também falar da configuração de um direito fundamental à integridade do sistema climático ou direito fundamental a um clima estável e seguro, como refere em sede doutrinária, o magistrado federal e professor Xxxxxxx Xxxx. De tal sorte, a integridade e estabilidade climática integra tanto o núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente quanto o conteúdo do chamado mínimo existencial ecológico, podendo-se falar, inclusive, de um mínimo existencial climático, como indispensável a assegurar uma vida humana digna. É imperioso, por essa ótica, o reconhecimento de deveres estatais específicos de proteção do sistema climático, derivados diretamente da previsão do inciso I no §1º do artigo
225 da CF/1988, que dispõe sobre a proteção dos “processos ecológicos essenciais”. O sistema climático, nesse sentido, deve ser reconhecido como um novo bem jurídico autônomo de estatura constitucional, tal como defendido recentemente pelo Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx do Superior Tribunal de Justiça), somado à consagração expressa da proteção da integridade do sistema climático no Novo Código Florestal (Lei 12.651/2012), art. 1º-A, parágrafo único, e na Lei da Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei 12.187/2009), art. 4º, I.70 (grifamos)
69 XXXXXX, Xxxxxxxxxx. O STF e o clima: inaplicabilidade da defesa da separação de poderes à ADPF 708. Conjur, 17 out. 2020. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx.xx/0000-xxx-00/xxxxxxxxxx-xxxxxx-xxxxxxxxxx-xxxxxxxxx-xxx>.
Acesso em: 13 jan. 2022.
70 SARLET, Ingo. FENSTERSEIFER, Tiago. Litigância climática, proteção do ambiente e ADPF 708. Conjur, 25 set. 2020. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx.xx/0000-xxx-00/xxxxxxxx-xxxxxxxxxxxx-xxxxxxxxxx-xxxxxxxxx-xxxxxxxx- ambiente-adpf-708df>. Acesso em: 13 jan. 2022.
95. Ainda no âmbito constitucional, não podemos deixar de recordar que a ordem econômica constitucional é subordinada à defesa do meio ambiente, nos termos do art. 170, VI, da CF:
A atividade econômica não pode ser exercida em desarmonia com os princípios destinados a tornar efetiva a proteção ao meio ambiente. A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a ‘defesa do meio ambiente’ (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral.71 (grifamos)
96. De início, é relevante apontar o art. 12 da Lei nº 6.938/1981, que criou a Política Nacional do Meio Ambiente. Ele, por si só, já sustentaria as demandas apresentadas nessa ação ao prever que “As entidades e órgãos de financiamento e incentivos governamentais condicionarão a aprovação de projetos habilitados a esses benefícios ao licenciamento, na forma desta Lei, e ao cumprimento das normas, dos critérios e dos padrões expedidos pelo CONAMA”.
97. Não obstante, o Brasil conta com legislação específica sobre mudança do clima, a saber, a Lei nº 12.187/2009, que instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC). A PNMC constituiu nítido avanço normativo, eis que serve de balizador específico para o tratamento das questões climáticas no país.
98. A política estabelece os princípios, objetivos, diretrizes e instrumentos a serem adotados em relação às mudanças climáticas, dispondo que todos têm o dever de atuar nesse sentido (art. 3º, I):
Art. 3o A PNMC e as ações dela decorrentes, executadas sob a responsabilidade dos entes políticos e dos órgãos da administração pública, observarão os princípios da precaução, da prevenção, da participação cidadã, do desenvolvimento sustentável e o das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, este último no âmbito internacional, e, quanto às medidas a serem adotadas na sua execução, será considerado o seguinte:
71 ADI 3.540 MC, rel. Min. Xxxxx xx Xxxxx, j. 1o-9-2005, P, DJ de 3- 2-2006.
I - todos têm o dever de atuar, em benefício das presentes e futuras gerações, para a redução dos impactos decorrentes das interferências antrópicas sobre o sistema climático; (grifamos)
99. O Decreto nº 9.578/2018, que regulamenta a PNMC, entre outras ações, detalha os instrumentos dessa política para cumprimento do compromisso voluntário brasileiro.72 Além disso, em matéria de adaptação aos efeitos da mudança do clima, em 2016, foi iniciada a implementação do Plano Nacional de Adaptação (PNA), estabelecido pela Portaria MMA 150/2016, que busca promover o desenvolvimento nacional resiliente à mudança do clima, evitar e minimizar perdas, e aproveitar possíveis oportunidades.
100. Fica evidente, portanto, que a PNMC institui direitos e obrigações climáticas específicas, que devem ser observados no desenvolvimento de políticas públicas e na atuação das empresas.
101. Em se tratando do Sistema BNDES, principal veículo institucional para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e instrumento da PNMC, esse dever tem ainda mais razão de ser. O papel do Sistema BNDES no cumprimento da PNMC pode ser depreendido de seus artigos 4o, 5º, 6o, 8o e 11, conforme dispositivos abaixo:
Art. 4º A Política Nacional sobre Mudança do Clima - PNMC visará:
I - à compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a proteção do sistema climático;
Art. 5º São diretrizes da Política Nacional sobre Mudança do Clima:
VII - a utilização de instrumentos financeiros e econômicos para promover ações de mitigação e adaptação à mudança do clima, observado o disposto no art. 6º;
VIII - a identificação, e sua articulação com a Política prevista nesta Lei, de instrumentos de ação governamental já estabelecidos aptos a contribuir para proteger o sistema climático;
72 Para efeito da regulamentação, são considerados o Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAM), o Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado (PPCerrado), o Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE), o Plano para Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura (Plano ABC) e o Plano de Emissões da Siderurgia. A PNMC ainda prevê planos para os setores de transporte (urbano e interestadual de passageiros e carga), saúde, indústria (transformação, bens duráveis, química fina e de base, papel e celulose, construção civil) e mineração.
IX - o apoio e o fomento às atividades que efetivamente reduzam as emissões ou promovam as remoções por sumidouros de gases de efeito estufa;
(...)
XIII - o estímulo e o apoio à manutenção e à promoção:
a) de práticas, atividades e tecnologias de baixas emissões de gases de efeito estufa;
b) de padrões sustentáveis de produção e consumo.
Art. 6º São instrumentos da Política Nacional sobre Mudança do Clima:
VII - as linhas de crédito e financiamento específicas de agentes financeiros públicos e privados;
VIII - o desenvolvimento de linhas de pesquisa por agências de fomento;
IX - as dotações específicas para ações em mudança do clima no orçamento da União;
X - os mecanismos financeiros e econômicos referentes à mitigação da mudança do clima e à adaptação aos efeitos da mudança do clima que existam no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e do Protocolo de Quioto;
XI - os mecanismos financeiros e econômicos, no âmbito nacional, referentes à mitigação e à adaptação à mudança do clima;
XII - as medidas existentes, ou a serem criadas, que estimulem o desenvolvimento de processos e tecnologias, que contribuam para a redução de emissões e remoções de gases de efeito estufa, bem como para a adaptação, dentre as quais o estabelecimento de critérios de preferência nas licitações e concorrências públicas, compreendidas aí as parcerias público-privadas e a autorização, permissão, outorga e concessão para exploração de serviços públicos e recursos naturais, para as propostas que propiciem maior economia de energia, água e outros recursos naturais e redução da emissão de gases de efeito estufa e de resíduos.
Art. 8º As instituições financeiras oficiais disponibilizarão linhas de crédito e financiamento específicas para desenvolver ações e atividades que atendam aos objetivos desta Lei e voltadas para induzir a conduta dos agentes privados à observância e execução da PNMC, no âmbito de suas ações e responsabilidades sociais.
Art. 11 Os princípios, objetivos, diretrizes e instrumentos das políticas públicas e programas governamentais deverão compatibilizar-se com os princípios,
objetivos, diretrizes e instrumentos desta Política Nacional sobre Mudança do Clima.
102. Dado seu papel de fomentador do desenvolvimento nacional sustentável – papel esse, repita-se, desempenhado com recursos públicos –, é fundamental, portanto, que suas políticas e programas incorporem efetivamente, nos termos dos dispositivos acima citados, a dimensão climática.
103. O dever – e o correspondente direito transindividual – de preservação da integridade do sistema climático também está expressamente consagrado no Código Florestal (Lei nº 12.651/2012):
Art. 1º-A. Esta Lei estabelece normas gerais sobre a proteção da vegetação, áreas de Preservação Permanente e as áreas de Reserva Legal; a exploração florestal, o suprimento de matéria-prima florestal, o controle da origem dos produtos florestais e o controle e prevenção dos incêndios florestais, e prevê instrumentos econômicos e financeiros para o alcance de seus objetivos. (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
(...)
I - Afirmação do compromisso soberano do Brasil com a preservação das suas florestas e demais formas de vegetação nativa, bem como da biodiversidade, do solo, dos recursos hídricos e da integridade do sistema climático, para o bem-estar das gerações presentes e futuras; (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
104. Ao reconhecer esse dever, o legislador consagrou, expressamente, o princípio da equidade intergeracional, que é de fundamental importância para a disciplina jurídica das mudanças climáticas, eis que o orçamento de carbono, se gasto inadequadamente pelas atuais gerações, implicará, inexoravelmente, redução no bem-estar e nos direitos fundamentais das gerações futuras.
D) Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, Acordo de Paris e a NDC brasileira
105. Pedra angular do regime internacional das mudanças climáticas, a Convenção- Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, de 1992, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 2.652/1998, introduziu, em seu artigo 3º, uma série de princípios aplicáveis à matéria climática, com destaque para os da precaução, da prevenção e do poluidor-pagador.
106. Esses princípios têm sido amplamente aplicados em matéria ambiental pelos Tribunais brasileiros, e foram reproduzidos no art. 3o da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), acima citada. As consequências climáticas das atividades dos Réus devem, portanto, ser consideradas levando-se em conta esses princípios.
107. O Acordo de Paris, celebrado, em 2015, no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, por ocasião da 21a Conferência entre as Partes (COP 21), estabeleceu metas, mecanismos de governança e instrumentos visando a mitigação da emissão de gases associados ao aquecimento climático. Firmado por 195 países, incluindo o Brasil,73 estabelece como um de seus objetivos principais “manter a temperatura média global abaixo dos 2ºC e envidar esforços para limitar esse aumento a 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais”.
108. Para tanto, o Acordo instituiu um mecanismo processual de governança condizente com a urgência do tema, segundo o qual os próprios Estados definem suas contribuições para a mitigação da emissão de gases de efeito estufa, por meio das Contribuições Nacionalmente Determinadas (Nationally Determined Contributions – NDC).
109. Embora os Estados tenham discricionariedade na determinação do conteúdo da NDC, a sistemática do Acordo estabelece, por meio do mecanismo de alavanca (ratchet mechanism), e também à luz do princípio da vedação ao retrocesso ambiental, a obrigação vinculante de que estas tenham o nível de ambição progressivamente incrementado, não se admitindo a regressão ao patamar previamente estabelecido.
110. O monitoramento de tais metas é conduzido de forma multinível, isto é, conta com uma sobreposição de jurisdições regionais, nacionais e globais. Isso porque, em diversos países, como no caso do Brasil, o aquecimento global é não só objeto de disposição internacional,
73 Decreto nº 9.073/2017.
como também objeto de legislação de Estados e municípios e nacional. Com isso, podem ser monitoradas internacionalmente no âmbito das Conferências das Partes, e, também, domesticamente, por autoridades federais e subnacionais.
111. Cada vez mais, percebe-se essa tendência de atuação conjunta e cooperativa para a elaboração e execução de medidas concretas de enfrentamento à ampliação dos danos socioambientais e das mudanças climáticas, estabelecendo-se um panorama jurídico multinível integrado de marcos normativos nacionais, regionais e internacionais. No magistério de Xxxx Xxxxxx e Tiago Fensterseifer,
Tal conjunção de esforços para encarar o cenário de emergência ecológica, por meio da atuação cooperativa de agentes estatais, dos atores econômicos - de acordo com uma Economia Verde ou Ecológica - e da sociedade civil organizada e em geral, todavia, não retira a importância representada por respostas proativas do Direito, que pode fornecer relevantes instrumentos para tal desiderato, inclusive no sentido de conformação de um sistema normativo ecológico multinível integrado (nacional, regional e internacional).74 (grifos dos autores)
112. Tal sistema normativo multinível de combate às mudanças climáticas se apresenta, no contexto brasileiro, pela integração das normas internacionais e regionais sobre meio ambiente e mudanças climáticas com o direito brasileiro com ressonância no direito ambiental brasileiro e no que se tem chamado de direitos das mudanças climáticas. Importante salientar que esse sistema multinível tem sido fortalecido pela atuação dos Tribunais brasileiros e de seus órgãos.
113. Assim, cabe lembrar que a Constituição Federal reconheceu expressamente a vinculação a tratados internacionais de direitos humanos, por meio do art. 5º, §2º. Ainda, o art. 7º do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) determinou que o Brasil propugnaria pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos. Desta forma, o Poder Constituinte não apenas deu anuência à assunção de obrigações internacionais em matéria de direitos humanos, mas explicitou que estas deveriam ser supervisionadas por órgão internacional.
74 XXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de direito ambiental. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 9.
114. Insta registrar, aqui, a evolução jurisprudencial da Corte Interamericana de Direitos Humanos chamada “greening” ou “esverdeamento”, a qual assenta a necessidade da proteção ecológica para o exercício dos demais direitos humanos. Esse fenômeno do esverdeamento culminou na Opinião Consultiva nº 23/2017 sobre “Meio Ambiente e Direitos Humanos”, a qual, seguindo a linha da jurisprudência consolidada pelo Tribunal e as normativas de direito internacional, prevê obrigações aos Estados-Partes para tutelar o meio ambiente que derivam do respeito e da garantia dos direitos à vida e à integridade pessoal.75
115. Nesse sentido, foi publicada, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Recomendação nº 123/2022, que dispõe sobre a necessidade de observar os tratados e convenções internacionais de direitos humanos, o uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos por todos os órgãos do Poder Judiciário, bem como o controle de convencionalidade das leis internas (Art. 1º, inc. I) a fim de que seja aplicada a norma mais benéfica à promoção dos direitos humanos no equilíbrio normativo impactado pela internacionalização e a necessidade de se estabelecer um diálogo entre os juízes, considerando o dever – não a opção – do controle de convencionalidade reiterado pela Corte IDH, inclusive, nos casos em que o Brasil sofreu condenação por violar direitos humanos de sua população.
116. A Recomendação ainda conta com uma série de considerações que reforçam a urgência da aplicação da lei brasileira sob a égide dos tratados e convenções internacionais, e destaca a determinação de medidas de reparação integral constantes nas sentenças que condenaram o Estado brasileiro, como fundamento para a uniformização das decisões de juízes e juízas brasileiras em casos de violações de direitos humanos.
117. Assim, documentos como a Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, que deixam claro que os Estados têm obrigações de direitos humanos que requerem ação individual e coletiva, inclusive por meio da cooperação internacional, devem ser compreendidos no âmbito da proteção climática, indicando que os Estados têm a
75 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Opinião Consultiva OC-23/17, 15 dez. 2017. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxxxxxxx.xx.xx/xxxx/xxxxxxxxx/xxxxxx_00_xxx.xxx>. Acesso em: 24 mar. 2022.
obrigação positiva de mitigar as mudanças climáticas e garantir que todas as pessoas tenham a capacidade necessária para se adaptar às suas consequências.
E) Direito Internacional dos Direitos Humanos e Socioambientais
118. Como se vê, a interligação entre defesa dos direitos humanos e a agenda socioambiental e de enfrentamento às mudanças climáticas tem se construído nos últimos anos tanto no plano internacional, quanto nas legislações domésticas da maioria dos países.
119. No âmbito internacional, importante mencionar que, cada vez mais, as normas climáticas têm sido elaboradas no âmbito dos direitos humanos, estabelecendo um novo patamar protetivo às presentes e futuras gerações em termos socioambientais e humanos. Já em 2007, a Declaração de Malé, documento emitido por representantes de pequenos Estados insulares, reconheceu que as mudanças climáticas têm implicações claras e imediatas para o pleno gozo dos direitos humanos.76
120. Em 2008, o Conselho de Direitos Humanos da ONU adotou a Resolução A/HRC/RES/7/23 expressando a preocupação do órgão com o rápido avanço das mudanças climáticas e solicitando a elaboração de um estudo sobre direitos humanos e mudanças climáticas.77 Em 2009, relatório do órgão, apresentado por meio da Resolução A/HRC/10/61, trouxe uma análise contundente dos impactos das mudanças climáticas sobre cada direito humano e os grupos populacionais mais afetados por elas.78
121. Nos anos seguintes, importantes avanços no âmbito dos acordos climáticos aconteceram. Em 2010, os Acordos de Cancún adotados na COP 16 da Convenção-Quadro sobre a Mudança do Clima se referem à vinculação entre direitos humanos e mudanças
76 CIEL. Male’ Declaration on the Human Dimension of Global Climate Change. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxxx.xxx/Xxxxxxxxxxxx/Xxxx_Xxxxxxxxxxx_Xxx00.xxx>. Acesso em: 18 abr. 2022.
77 OHCHR. Resolution 7/23. Disponível em:
<xxxxx://xx.xxxxx.xxx/xxxxxxxxx/X/XXX/xxxxxxxxxxx/X_XXX_XXX_0_00.xxx>. Acesso em: 18 abr. 2022.
78 REFWORLD. A/HRC/10/61. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxx/000000000.xxxx>. Acesso em: 18 abr. 2022.
climáticas, mencionando o trabalho do Conselho de Direitos Humano da ONU na temática.79 Em 2015, o Acordo de Paris foi assinado, estabelecendo novas obrigações aos Estados para a garantia da segurança climática mundial, inclusive reconhecendo a estreita ligação entre direitos humanos e clima. No mesmo ano, o estabelecimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) incluíram o clima no circuito do direito ao desenvolvimento, por meio da ODS 13, que exige uma ação urgente para combater as mudanças climáticas e seus impactos no contexto mais amplo da Agenda 2030, ela própria um documento baseado nos direitos humanos.80
122. Em suma, desequilíbrios econômicos, sociais e ambientais nos desafiam a mudar a forma como organizamos nossas sociedades e levaram, nas últimas décadas, a comunidade internacional a buscar respostas específicas, na seara socioambiental, por meio de instrumentos como a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e o Acordo de Paris, além da negociação do acordo regional sobre acesso à informação, participação e justiça em questões ambientais na América Latina e no Caribe, o Acordo de Escazú.81 Todos esses instrumentos buscam promover sociedades pacíficas, mais justas e menos desiguais, solidárias e inclusivas, para proteger os direitos humanos e garantir a proteção duradoura do planeta e de seus recursos naturais, com reflexos diretos para a garantia de um clima seguro e estável.
F) Os Princípios Orientadores da ONU para Empresas e Direitos Humanos – Decreto nº 9.571/2018
123. Os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU (UN Guiding Principles on Business and Human Rights – UNGP), que estabelecem princípios básicos a serem adotados pelos setores econômicos para promover o respeito aos direitos humanos e a adequada resposta a violações ligadas às suas atividades, inclui expressamente uma dimensão climática. Com
79 UNFCCC. Cancun Agreements. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxx/xxxxxxx/xxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxxxxxxx/xxxxxx- climate-change-conference-november-2010/statements-and-resources/Agreements>. Acesso em: 18 abr. 2022.
80 ODS BRASIL. Objetivo 13 - Ação Contra a Mudança Global do Clima. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxxx?xx00>. Acesso em: 18 abr. 2022.
81 Adotado em Escazú (Costa Rica), em 2018, e negociado pelos Estados com a participação significativa da sociedade civil e do público em geral, o Acordo confirma o valor da dimensão regional do multilateralismo para o desenvolvimento sustentável. O Acordo de Escazú objetiva garantir o acesso à informação de maneira oportuna e adequada, a participação pública significativa nas decisões que afetam a vida e o ambiente de grupos e comunidades mais vulneráveis e o acesso à justiça. Trata-se da garantia à participação pública em todas as decisões que o afetam de modo a estabelecer uma nova relação entre Estado, mercado e sociedade.
efeito, o art. 12 do Decreto nº 9.571/2018, que introduziu os Princípios no ordenamento jurídico brasileiro, estabelece:
Art. 12. Compete às empresas adotar iniciativas para a sustentabilidade ambiental, tais como:
(…)
VII - adotar medidas para conferir mais eficiência às operações, a fim de reduzir emissões de gases de efeito estufa, de modo a contribuir com o combate às mudanças climáticas;
124. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente ressalta que as conclusões do relatório apresentado à Assembleia Geral das Nações Unidas por Xxxxx Xxxx, Relator Especial sobre a questão das obrigações de direitos humanos, relacionadas ao desfrute de um ambiente seguro, limpo, saudável e sustentável, dá especial relevo à vinculação entre os UNGP e as mudanças climáticas:
(...) em seu relatório, ele também identifica que, como primeiro passo, as empresas devem cumprir os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos no que se refere aos direitos humanos e às mudanças climáticas. As empresas devem adotar políticas de direitos humanos, conduzir a sua devida diligência, remediar violações pelas quais são diretamente responsáveis e trabalhar para influenciar outros atores a respeitar os direitos humanos.
A aplicação de uma abordagem baseada em direitos esclarece as obrigações de governos e empresas, catalisa ações ambiciosas, destaca a situação dos mais pobres e vulneráveis e empodera pessoas a se envolverem no projeto e na implementação de soluções.
As obrigações de direitos humanos relacionadas às mudanças climáticas foram investigadas por várias organizações, incluindo tribunais internacionais, governos e órgãos de direitos humanos das Nações Unidas. Esses especialistas mencionados, que incluem Xxxxx Xxxx, chegaram a duas conclusões comuns: primeiro, a mudança climática e seus impactos ameaçam uma ampla gama de direitos humanos; e segundo, como resultado, estados e setores privados têm extensas obrigações e responsabilidades sobre os direitos humanos.82 (grifamos)
82 UNEP. Direitos humanos, ameaçados pelas mudanças climáticas, podem também fornecer soluções. 4 out. 2019. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxx.xxx/xx-xx/xxxxxxxx-x-xxxxxxxxxxx/xxxxx/xxxxxxxx-xxxxxxx-xxxxxxxxx-xxxxx-xxxxxxxx- climaticas-podem-tambem>. Acesso em: 14 jan. 2022.
125. Os UNGP são, portanto, um reflexo do crescente reconhecimento de que os negócios devem passar a considerar os direitos humanos, o que, como visto anteriormente, engloba necessariamente a dimensão climática. E o Sistema BNDES, em seu relevante papel de promotor do desenvolvimento nacional sustentável e de instrumento da PNMC, não pode passar ao largo desse reconhecimento internalizado pelo direito brasileiro.
G) Fundo Verde para o Clima (Green Climate Fund – GCF)
126. Criado em 2010 pela Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima, o Fundo Verde para o Clima (Green Climate Fund – GCF) busca viabilizar projetos que respondam aos desafios das mudanças climáticas em países em desenvolvimento. Atualmente, o Fundo conta com US$ 10,3 bilhões em doações de mais de 40 países, comprometidos em mais de 100 projetos aprovados e é um dos principais mecanismos internacionais para financiar projetos relacionados à questão climática.
127. O credenciamento no GCF, que é válido por até 5 anos, leva em consideração o atendimento a padrões internacionais de análise e monitoramento de projetos relacionados às mudanças climáticas, e permite acessar os recursos do GCF para financiar ou apoiar investimentos dos mais diversos portes via equity, garantias, recursos não reembolsáveis ou empréstimos. As regras do fundo preveem, ainda, recursos para elaborar estudos e projetos de adaptação às mudanças climáticas e de mitigação dos seus efeitos.
128. Em 2019, o BNDES anunciou que foi credenciado pelo Fundo Verde para o Clima (Green Climate Fund – GCF), tendo o contrato sido firmado em 2021.83 Considerando-se o interesse nacional em acessar esses recursos, é de fundamental importância, para que se possa cumprir adequadamente as regras do Fundo, que haja um robustecimento das políticas climáticas do Sistema BNDES, de modo a que passem a contemplar, expressamente, as operações da BNDESPAR.
83 GREEN CLIMATE. Accreditation Master Agreement Between the Green Climate Fund and Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, 2021. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxxx.xxxx/xxxxx/xxxxxxx/xxxxx/xxxxxxxx/xxx- bndes.pdf>. Acesso em: 7 dez. 2021.
H) O Pacto Global e o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 13
129. Em 2015, a ONU propôs aos seus países membros uma nova agenda de desenvolvimento sustentável para os próximos 15 anos, a Agenda 2030, composta pelos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), um deles especificamente sobre mudanças climáticas (ODS 13):84
Objetivo 13. Tomar medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos.
13.1 Reforçar a resiliência e a capacidade de adaptação a riscos relacionados ao clima e às catástrofes naturais em todos os países.
13.2 Integrar medidas da mudança do clima nas políticas, estratégias e planejamentos nacionais.
13.3 Melhorar a educação, aumentar a conscientização e a capacidade humana e institucional sobre mitigação, adaptação, redução de impacto e alerta precoce da mudança do clima.
13.a Implementar o compromisso assumido pelos países desenvolvidos partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima [UNFCCC] para a meta de mobilizar conjuntamente US$ 100 bilhões por ano a partir de 2020, de todas as fontes, para atender às necessidades dos países em desenvolvimento, no contexto das ações de mitigação significativas e transparência na implementação; e operacionalizar plenamente o Fundo Verde para o Clima por meio de sua capitalização o mais cedo possível.
13.b Promover mecanismos para a criação de capacidades para o planejamento relacionado à mudança do clima e à gestão eficaz, nos países menos desenvolvidos, inclusive com foco em mulheres, jovens, comunidades locais e marginalizadas.
130. Em 11/08/2021, o BNDES anunciou sua adesão à Rede Brasil do Pacto Global,85 iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU) para a promoção de dez princípios nas áreas de meio ambiente, direitos humanos, trabalho e anticorrupção e para o envolvimento das empresas no avanço dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). O compromisso
84 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 13 - Ação contra a mudança global do clima. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xx.xxx/xx-xx/xxxx/00>. Acesso em: 7 dez. 2021.
85 BNDES. BNDES adere ao Pacto Global da ONU, fortalecendo transparência de medidas socioambientais. 11 ago. 2021. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxxx/xxxx/xxxx/xxxxxxxx/xxxxxxxx/xxxxxxxx/xxxxx-xxxxx-xx- pacto-global-da-onu-fortalecendo-transparencia-de-medidas-socioambientais>. Acesso em: 14 jan. 2022.
assumido junto ao Pacto Global reforça a necessidade de que a BNDESPAR considere expressamente como contribuirá para a consecução do ODS 13.
131. O arcabouço jurídico atinente às mudanças climáticas, ora apresentado, revela, portanto, uma série de deveres jurídicos para os Réus.
I) Precedentes da Litigância Climática Internacional
132. Um olhar para a litigância climática no contexto internacional é relevante tanto para dimensionarmos o impacto dessa estratégia processual na proteção socioambiental e do sistema climático, quanto para nos ajudar, em um esforço de direito comparado, a arquitetar possibilidades de utilização do instrumento no contexto brasileiro. Do ponto de vista de produção doutrinária, indicativos demonstram que, desde o sucesso no caso Urgenda, houve um aumento considerável na quantidade de publicações sobre litigância climática, incluindo dezenas de artigos analisando o caso holandês, de forma aprofundada ou comparativa.86
133. Recentemente, casos impactantes de litígios climáticos começaram a ter significativa visibilidade, especialmente em decorrência do esforço conjunto de organizações não governamentais, pesquisadores e mídia. Esses litígios emblemáticos obtiveram impactos jurídico- institucionais bastante positivos como, por exemplo, a introdução de políticas e medidas de proteção climática nos Estados Unidos (Massachusetts vs. EPA) e o reconhecimento do dever do Estado de garantir medidas de mitigação e adaptação (caso Xxxxxxx), cuja violação afronta direitos fundamentais constitucionalmente protegidos à vida e à dignidade (Leghari vs. Paquistão). A tabela a seguir, retirada do “Guia de Litigância Climática”, elaborado pela CONECTAS,87 resume alguns dos principais precedentes internacionais no âmbito dos litígios climáticos.
86 XXXXXX, Xxxxx; XXXXX, Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Panorama da litigância climática no Brasil e no mundo. In: XXXXXX, Xxxxx; XXXXX, Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx (Org.). Litigância climática: novas fronteiras para o direito ambiental no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 62.
87 XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXX, Xxxx; XXXXXX, Xxxxx. Guia de Litigância Climática. São Paulo: Conectas Direitos Humanos, 2019. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxxxxxxx/xxxx-xx-xxxxxxxxxx-xxxxxxxxx/>. Acesso em: 22 mar. 2022.
Caso emblemático | Descritivo sumário |
Urgenda vs. Holanda | O caso Urgenda é considerado uma das principais experiências internacionais de litigância climática. Na Holanda, a Urgenda, uma organização da sociedade civil, ajuizou em 2015 ação contra o Governo da Holanda solicitando que o país assumisse a obrigação de reduzir ou garantir a redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) da Holanda em 40% até 2020 ou, ao menos, 25%, comparando com os níveis de 1990. O pedido acabaria por impor uma meta mais ambiciosa do que aquela assumida pelo governo holandês. A fundamentação do pedido se baseou em dados científicos e obrigações legais assumidas pelo país em nível internacional, regional e nacional. A decisão do caso, em 2018, foi favorável ao pedido da Xxxxxxx, fundamentando-se na possibilidade de o Poder Judiciário avaliar o atendimento ou não a direitos fundamentais. |
Leghari vs. Paquistão | No Paquistão, um agricultor entrou com uma ação judicial, em 2015, contra o governo alegando omissão e atrasos por parte deste na implementação da Política Nacional de Mudanças Climáticas e no enfrentamento das vulnerabilidades associadas às mudanças climáticas. A corte responsável aceitou o pedido e determinou, em 2018, a criação de uma comissão para monitorar a implantação da política em questão. |
Lliuya vs. RWE AG | Em 2015, o peruano Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx entrou com uma ação, no judiciário alemão, contra a RWE, maior empresa energética da Alemanha, com o objetivo de ordenar a empresa a pagar uma parcela dos custos de medidas de adaptação às mudanças climáticas que ele e seus coabitantes de Huaraz terão de implementar. Na região, barragens precisam ser construídas para proteger a cidade do crescimento do lago glacial Palcacocha, que se formou em decorrência do derretimento de geleiras nas proximidades. Lliuya alega que a RWE, como emissora de volumes substanciais de GEE, é parcialmente responsável pelos danos iminentes aos cidadãos peruanos. O judiciário alemão, em primeira instância, rejeitou as alegações com base no argumento da ausência de nexo causal; mas, em 2017, em sede de recurso, a corte admitiu seu pleito. |
Futuras Gerações (cidadãos colombianos) vs. Ministério do Meio Ambiente da Colômbia | Na Colômbia, 25 jovens entraram com ações em diferentes níveis, especialmente contra o Ministério do Meio Ambiente da Colômbia, exigindo seus direitos ao meio ambiente, à vida, à saúde, à alimentação e à água. Os autores alegaram que as mudanças climáticas, juntamente com o fracasso do Estado em reduzir o desmatamento e garantir o cumprimento da meta de desmatamento líquido zero na Amazônia colombiana até o ano de 2020 (estabelecido no Acordo de Paris), representam grandes ameaças aos direitos fundamentais das futuras gerações. Com perdas na primeira instância, o caso chegou à Suprema Corte que, em 2018, reverteu as decisões a favor dos pedidos dos cidadãos colombianos. |
134. Além dos casos acima, em 2021, observaram-se importantes desenvolvimentos no campo internacional da litigância climática,88 especialmente a primeira decisão em litígio climático envolvendo atores privados. O Tribunal Distrital de Haia ordenou à Shell em Milieudefensie et al. vs. Royal Dutch Shell plc reduzir suas emissões em 45% até 2030, em relação a 2019, em todas as atividades, incluindo suas subsidiárias e suas próprias emissões.
135. Outros casos emblemáticos ampliaram o escopo da responsabilidade dos estados pela mitigação climática em países como França, Alemanha e México. Na França, uma decisão considerada histórica ordenou que o governo aumentasse a ação climática para implementar seus compromissos internacionais. O Tribunal Administrativo de Paris proferiu uma decisão em Notre Affaire à Tous e Outros vs. França reconhecendo a inação da França em relação às mudanças climáticas. Na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal, no caso Neubauer, derrubou partes da Lei Federal de Proteção Climática da Alemanha por considerá-las incompatíveis com os direitos fundamentais e não estabelecer provisões suficientes para cortes de emissões. Finalmente, a partir do Sul Global, no México, uma decisão histórica exemplificou as consequências do descumprimento de um país da obrigação de não regressão do Acordo de Paris. Em Greenpeace vs. Instituto Nacional de Ecología y Cambio Climático, um tribunal mexicano suspendeu os efeitos da NDC mexicana após considerar seus compromissos de mitigação regressivos. Nesse caso, a corte mexicana entendeu que o compromisso climático do México violava o Art. 4(3) do Acordo de Paris, visto que o dispositivo obriga os Estados a progredirem suas metas.
136. Ainda, o mais recente relatório do Grantham Research Institute on Climate Change and the Environment da London School of Economics and Political Science, divulgado em 2021, realizou um robusto levantamento apontando as principais tendências globais em litígios climáticos.89 O relatório explora o crescimento contínuo do número de casos 'estratégicos', no qual apontou que,
88 XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. A look back at significant decisions in climate litigation in 2021. Climate Law Blog, 23 dez. 2021. Disponível em: <xxxx://xxxxx.xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxxxxxxxxxx/0000/00/00/x-xxxx-xxxx-xx-xxxxxxxxxxx-xxxxxxxxx-xx- climate-litigation-in-2021/>. Acesso em: 25 mar. 2022.
89 XXXXXX, Xxxxx; XXXXXX, Xxxxxxxxx. Global trends in climate change litigation: 2021 snapshot. Londres: Grantham Research Institute on Climate Change and the Environment and Centre for Climate Change Economics and Policy, London School of Economics and Political Science, 2021. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxx.xx.xx/xxxxxxxxxxxxxxxxx/xx-xxxxxxx/xxxxxxx/0000/00/Xxxxxx-xxxxxx-xx-xxxxxxx-xxxxxx- litigation_2021-snapshot.pdf>. Acesso em: 25 mar. 2022.
globalmente, o número acumulado de casos relacionados às mudanças climáticas mais que dobrou desde 2015. Pouco mais de 800 casos foram apresentados entre 1986 e 2014, enquanto mais de 1.000 casos foram abertos nos últimos seis anos.90 O mapa abaixo, elaborado pela pesquisa em questão, ilustra a quantidade de litígios climáticos em termos globais.
137. A partir da revisão e descrição de casos de litígios climáticos contra governos e o setor privado trazidas desde o Acordo de Paris em 2015, o relatório em questão apresenta uma seleção de casos globais, apontando as tendências observadas no Sul Global. De maneira geral, vê-se que, embora a esmagadora maioria dos casos identificados continuem a ser casos do Norte Global, o número de casos de litígios climáticos no Sul Global continua a crescer, com pelo menos 58 casos em 18 jurisdições. Por fim, na análise quantitativa dos resultados de todos os casos decididos, de acordo com o banco de dados do instituto, foi encontrado que 58% dos casos
(215) tiveram resultados favoráveis à ação contra as mudanças climáticas.
138. Por fim, ressalta-se que, no âmbito do debate e da experiência internacional sobre litigância climática, tem-se observado um fenômeno específico: o incremento de ações climáticas que utilizam normas e mecanismos de direitos humanos. Pesquisas têm nomeado tal tipo de litígio como litigância climática baseada em direitos humanos.91 Investigando uma série de processos relacionados a essa tendência, analistas identificaram uma “virada dos direitos humanos” na litigância climática. Quer dizer que, cada vez mais, a abordagem de direitos humanos utilizada para o enfrentamento das mudanças climáticas tem surtido um efeito não só no nível legal, mas também nas instâncias judiciais de vários países. No contexto brasileiro, em que as ações ambientais têm, desde a Constituição de 1988, recebido uma roupagem de direito fundamental e humano, a tendência de uma litigância climática baseada em direitos humanos só se alinha com a experiência brasileira em litigância socioambiental no âmbito dos direitos fundamentais ecológicos.
90 Existe uma tendência de aumento dos litígios climáticos. Desde o lançamento do relatório do Grantham Research Institute on Climate Change, que ocorre anualmente, o banco de dados norte-americano do Sabin Center for Climate Change Law já atualizou o número de litígios climáticos, indicando a existência de 1.987 casos, sendo 1.423 casos apenas nos EUA e 564 casos em outros países. Vide: CLIMATE CASE CHART. Climate Change Litigation Databases. Disponível em: <xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxx.xxx/xxxxxxx-xxxxxx-xxxxxxxxxx/>. Acesso em: 4 mai. 2022.
91 XXXXXXXXX-XXXXXXXX, Xxxxx. Human rights: the Global South's route to climate litigation. American Journal of International Law, v. 114, p. 40-44, 2020.
3.2. ANÁLISE JURÍDICA E CONCLUSÃO: RESPONSABILIDADE CLIMÁTICA DA
BNDESPAR
A) Dever de Transparência, Direito à Informação e Afastamento da LC 105/01
139. Analisando-se as poucas informações divulgadas publicamente pela BNDESPAR, percebe-se acentuada opacidade no que diz respeito às políticas climáticas. Não há, no que tange às operações da BNDESPAR no mercado de capitais, qualquer informação disponível com relação ao tema, o que permite inferir que inexistem políticas nesse sentido evidenciando a pertinência da presente ação.
140. Convém lembrar que a presente ação foi precedida por dois pedidos de informações baseados na Lei nº 12.527/11 (Lei de Acesso à Informação), de números 52021001502202146 e 00000000000000000, indagando se os Réus, em suas decisões de investimento e desinvestimento, levam ou não em consideração os riscos e oportunidades relacionados às mudanças climáticas, e solicitando o fornecimento de cópia dos documentos relativos à políticas operacionais, critérios de análise de risco e estrutura de governança relacionados às mudanças climáticas.
141. As respostas recebidas (Docs. 7 e 8), contudo, foram insatisfatórias, pois limitaram-se a indicar que a BNDESPAR segue uma Política Socioambiental de Atuação em Mercado de Capitais, que, por sua vez, não inclui critérios climáticos:92
Informamos também que, no Sistema BNDES, os investimentos em renda variável são feitos pela BNDESPar, por meio de aporte de capital, e seguem, dentre outros, os preceitos da Política Socioambiental de Atuação em Mercado de Capitais. Conforme referida Política, a seleção de novos investimentos envolve uma Pesquisa Cadastral do Postulante para verificação de apontamentos referentes a crimes ambientais e a trabalho em condições análogas às de escravo, condições impeditivas para o apoio do BNDES.
A Política indica ainda a realização de uma Categorização Socioambiental do Postulante, de acordo com o setor, tipo de atividade econômica, localização e magnitude dos impactos socioambientais das atividades desempenhadas, de maneira que as de maior risco socioambiental passam por um maior nível de rigor
92 BNDES. Políticas de Mercado de Capitais. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxxx/xxxx/xxxx/xxxxxxx-xx-xxxxxxxx/xxxxxxxxx-xxxxxxx-xx- capitais#:~:text=A%20Pol%C3%ADtica%20socioambiental%20de%20atuação,de%20capitais%20do%20Sistema% 20BNDES>. Acesso em: 14 jan. 2022.
em sua análise socioambiental, a partir da qual são definidos pontos de atenção para acompanhamento desses investimentos.
142. Ora, as exigências feitas aos REQUERIDOS não possuem nada de absurdo e encontram total respaldo na legislação, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e até mesmo em parecer da própria Advocacia-Geral da União.
143. Em primeiro lugar, a obrigação dos RÉUS de agir com transparência e garantir à população o acesso à informação está prevista tanto na Constituição (CF/88, art. 37, caput)93 quanto na legislação federal (Lei 12.527/2011, art. 1º, parágrafo único, inciso II, e art. 5º)94.
144. Em segundo lugar, o direito de acesso à informação é positivado em nosso ordenamento jurídico de modo amplo, além de ser caracterizado como direito fundamental tanto pela Constituição Federal (art. 5º, inciso XXXIII)95 quanto legislação federal (Lei 12.527/2011, art. 3º, caput e inciso II)96. E essa previsão ampla do direito de acesso à informação fortalece também o direito de participação social junto ao Poder Público (CF/88, art. 37, § 3º, II; Lei 12.527/2011, art. 3º, V).97
93 CF/88.
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]
94 Lei 12.527/2011.
Art. 1º [...]
Parágrafo Único. Subordinam-se ao regime desta Lei:
[...]
II - as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Art. 5º É dever do Estado garantir o direito de acesso à informação, que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão.
95 CF/88.
Art. 5º [...]
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral [...]
96 Lei 12.527/2011.
Art. 3º Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes:
[...]
II - divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações;
97 CF/88
145. Em terceiro lugar, o conjunto de informações que se espera sobre transparência e acesso foi bem delimitado com a Lei Federal 12.527 de 2011, na qual é possível verificar plena compatibilidade com o que ora se exige (art. 7º, incisos V, VI e VII, alínea “a”).98
146. De tal sorte, afasta-se antecipadamente qualquer argumento que tente se utilizar da Lei Complementar nº 105 de 2001 (que versa sobre o sigilo bancário) para fugir das obrigações que constatamos. Vale lembrar que a própria Lei 12.527/2011, em seu art. 3º, inciso I, prevê a “observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção”.
147. Não obstante a cristalina previsão normativa, cumpre ressaltar que o Supremo Tribunal Federal corroborou o entendimento ora apresentado no julgamento do MS 33.340, feito pela Primeira Turma, de Relatoria do Min. Xxxx Xxx e julgado em 26/05/2015:
Ementa: DIREITO ADMINISTRATIVO. CONTROLE LEGISLATIVO FINANCEIRO. CONTROLE EXTERNO. REQUISIÇÃO PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO DE INFORMAÇÕES ALUSIVAS A OPERAÇÕES FINANCEIRAS REALIZADAS PELAS IMPETRANTES. RECUSA INJUSTIFICADA. DADOS NÃO ACOBERTADOS PELO SIGILO BANCÁRIO E EMPRESARIAL. [...]
Art. 37. [...]
§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente:
II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII;
Lei 12.527/2011.
Art. 3º. [...]
V - desenvolvimento do controle social da administração pública.
98 Lei 12.527/2011.
Art. 7º O acesso à informação de que trata esta Lei compreende, entre outros, os direitos de obter: [...]
V - informação sobre atividades exercidas pelos órgãos e entidades, inclusive as relativas à sua política, organização e serviços;
VI - informação pertinente à administração do patrimônio público, utilização de recursos públicos, licitação, contratos administrativos; e
VII - informação relativa:
a) à implementação, acompanhamento e resultados dos programas, projetos e ações dos órgãos e entidades públicas, bem como metas e indicadores propostos;
2. O primado do ordenamento constitucional democrático assentado no Estado de Direito pressupõe uma transparente responsabilidade do Estado e, em especial, do Governo. [...]
3. O sigilo de informações necessárias para a preservação da intimidade é relativizado quando se está diante do interesse da sociedade de se conhecer o destino dos recursos públicos.
4. Operações financeiras que envolvam recursos públicos não estão abrangidas pelo sigilo bancário a que alude a Lei Complementar nº 105/2001, visto que as operações dessa espécie estão submetidas aos princípios da administração pública insculpidos no art. 37 da Constituição Federal. (grifo nosso)
148. Ao fim e ao cabo, vale ressaltar que a própria Advocacia-Geral da União já consolidou parecer nesse sentido em 2019 (Parecer nº AM – 06)99, reconhecendo que:
[...] não incide a proteção ao sigilo bancário, em decorrência da incidência do princípio constitucional da publicidade, ao menos nas seguintes situações:
i. operação bancária em que a contraparte da instituição financeira é pessoa jurídica de direito público; ou
ii. operação bancária que envolva recursos públicos, ainda que parcialmente, independentemente da contraparte da instituição financeira;
149. PORTANTO, enquanto empresa pública, o BNDES, controlador da BNDESPAR, integra a administração pública indireta e se sujeita aos ditames de publicidade estabelecidos pelo artigo 37 da Constituição Federal e pela Lei nº 12.527/2012, bem como aos requisitos de sustentabilidade da Lei nº 13.303/2016.
150. A interpretação correta do dever de publicidade é tal que a regra deve ser a informação, ao passo que o sigilo deve ser a exceção. No caso do sistema financeiro, a Lei Complementar nº 105/2001 (Lei do Xxxxxx Xxxxxxxx), apresenta as exceções admitidas à regra geral
99 Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/XXX/Xxxxxxxxx/0000-0000/XXX-XX-00-0000.xxx
de publicidade. Sendo assim, tudo o que não vier a ser excetuado pela referida lei deve ser publicizado pelo Sistema BNDES.
151. No decorrer dos últimos anos, o Sistema BNDES implementou algumas melhorias quanto à disponibilização de informações ao público. Há ainda, no entanto, um significativo déficit de informação relativamente às escolhas e às políticas e impactos alcançados. Em se tratando de mudanças climáticas, esse déficit é ainda mais evidente. O Sistema BNDES carece de um sistema de governança que incremente as possibilidades de seu controle social.
152. Não se trata, portanto, apenas de amplificar a sua transparência, permitindo assim uma informação sobre os resultados alcançados, mas de uma governança que revele as metas, os critérios, as escolhas e os resultados. Somente desta maneira poderá haver controle social efetivo sobre os custos incorridos, os custos de oportunidade, os instrumentos empregados e os desdobramentos e resultados de desenvolvimento alcançados, levando-se em conta o desenvolvimento na sua acepção de desenvolvimento sustentável. Sem essas informações, permitindo apenas o conhecimento sobre as condições de contratação, não há a possibilidade de se avaliar publicamente acertos e equívocos conduzidos pela gestão do Banco que possam requerer correções de rumo, a partir de distintas formas de controle político, jurídico e social.
153. Uma comparação com o Banco Central pode ser ilustrativa nesse sentido: o controle social sobre a política monetária, algo reconhecido por acadêmicos e formuladores de política como indispensável para a sua eficácia, é estabelecido de tal forma que o dado público vai muito além da inflação alcançada. Nos termos dos artigos 4o, parágrafo único, e 5o do Decreto nº 3.088/1999, a sociedade civil e as instituições do Estado devem ser informados a respeito: (i) da meta de inflação a ser perseguida; (ii) do instrumento utilizado para tanto (no caso brasileiro as metas de taxa Selic); (iii) das avaliações, escolhas e cenários que presidem o manuseio do instrumento (por meio da divulgação das atas do Comitê de Política Monetária), e finalmente, (iv) das políticas a serem adotadas caso a meta de inflação não tenha sido observada.
154. Tal governança da informação é o que tem permitido um amplo escrutínio público sobre a política monetária, contribuindo assim para a sua máxima consistência.
155. A correta interpretação do princípio da publicidade da Administração Pública deve ser aquela que permita o máximo controle público das ações do Estado e das políticas públicas. No caso das políticas públicas, sua inclusão no Orçamento Geral da União e o consequente debate parlamentar acerca de seu financiamento permite o monitoramento de especialistas e de entidades como a Instituição Fiscal Independente. Desta maneira, ainda que sujeito a imperfeições, o debate sobre o financiamento das políticas públicas conta com mecanismos e oportunidades que habilitam o seu monitoramento.
156. Já os desembolsos do Sistema BNDES não são discriminados no orçamento de investimento das empresas estatais e não contam, portanto, com o debate parlamentar e o monitoramento correlato, como ocorre com as demais políticas públicas – o que reforça a necessidade de que essas informações sejam prestadas por outras vias, como a da presente ação.
157. Sobre o dever do BNDES e da BNDESPAR de prestar informações, é ilustrativa a decisão, de 18/08/14, da 20a. Vara Federal do Distrito Federal, em sede da ACP n° 0060410- 24.2012.4.01.3400:
JULGO PROCEDENTE O PEDIDO para condenar o réu na obrigação de fazer, consistente em tornar públicas, nos termos da Lei nº 12527/2012, todas as atividades de financiamento e apoio a programas, projetos, obras e serviços de entes públicos ou privados, que envolvam recursos públicos, realizadas por si ou por intermédio de outras pessoas jurídicas por ele instituídas, a exemplo da BNDESPAR, relativas aos últimos 10 anos, além das que vierem a ser realizadas doravante, discriminando-lhes os destinatários, a modalidade de apoio financeiro concedido e sua justificativa (empréstimo direto, empréstimo intermediado por terceiro, subscrição de valores mobiliários, entre outras), os montantes financeiros empregados, os prazos do investimento, o grau de risco do investimento, as taxas de juros empregadas, os valores de aquisição de ações, a forma de captação do recurso utilizado, as garantias exigidas, os critérios ou justificativas de indeferimento de eventuais pedidos de apoio financeiro, a compatibilidade do apoio concedido com as linhas de investimento do Banco), disponibilizando-as integralmente em seu sítio eletrônico, bem como para declarar a ilegalidade dada à interpretação ao disposto no art. 5o, § 1o, do Decreto nº 7.724/2012, que retirar o BNDES e sua subsidiária integrar BNDESPAR do âmbito de incidência da Lei nº 12.527/2011, e condenar o réu na obrigação de repassar ao Ministério Público Federal as informações que lhe forem requisitadas, em procedimentos de suas competências, sobre operações de apoio e/ou financiamento (sob quaisquer modalidades), realizadas por si ou por sua subsidiária – a BNDESPAR – a quaisquer entidades públicas ou privadas, sem que seja oposto a tais órgãos de controle o óbice do sigilo bancário, independentemente de ordem judicial. (grifamos)
158. Há, em suma, que se estabelecer uma governança de informações que permita o adequado cumprimento do princípio geral de publicidade e o consequente controle social. No caso do Sistema BNDES, esse controle requer mais informações do que simplesmente os dados relativos a seus resultados operacionais ou, no que diz respeito às mudanças climáticas, à simples divulgação dos textos de suas políticas socioambientais.
B) Dever Fiduciário, ESG e “stewardship” Climático
159. O dever jurídico de considerar expressamente critérios climáticos nas operações da BNDESPAR decorre do dever fiduciário aplicável às operações do Sistema BNDES, o que se dá em dois níveis: dever fiduciário imposto aos controladores acionários e, ao administrador, o dever de atender às exigências do bem público e da função social da empresa.
160. Primeiro, o BNDES, enquanto controlador da BNDESPAR, tem o dever fiduciário imposto aos controladores acionários pelo parágrafo único do art. 116 da Lei nº 6.404/1976 (Lei das S/A):
Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender
161. Isso significa que os controladores têm responsabilidades que vão além do lucro, através do exercício de sua atividade empresarial, incorporando eventuais externalidades ao negócio. Veja-se, nesse sentido, o parecer jurídico elaborado pelo Professor Xxxxx Xxxxxxxx (Doc. 5):
Sendo, pois, a BNDESpar uma subsidiária integral do BNDES e assim sendo parte do seu conglomerado financeiro, resta claro que as ações da BNDESpar devem ser explicitamente contempladas na Política de Responsabilidade Climática do BNDES. Não há outro entendimento possível para os excertos colacionados.
Assim, respondendo parcialmente ao quesito formulado, tem-se que a questão climática deve ser incorporada à atuação da BNDESpar como um desdobramento das obrigações regulatórias estatuídas pelo Banco Central, as quais abarcam os conglomerados financeiros e as suas
unidades individualmente consideradas. Nesses termos, a PRSAC do BNDES deve especificar de que forma a unidade BNDESpar tem administrado seus eventuais passivos climáticos e de que forma tem atuado para mitigar o impacto climático em suas operações de renda variável.
(...)
Portanto, como subsidiária integral do BNDES, a BNDESpar deve não apenas constar destacadamente da Política de Responsabilidade Climática do Banco, mas também deve dispor de políticas financeiras que estejam em conformidade com a Lei 12.187/09. Como assinalado anteriormente, a BNDESpar é um veículo de atuação do BNDES e não uma organização separada ou portadora de uma agenda financeira própria. A BNDESpar foi criada como um braço operacional para permitir aportes cuja realização é mais adequada se conduzida por meio da subscrição de valores mobiliários. Nesse sentido, se a Lei n.º 12.187/09 determina aos bancos oficiais que disponibilizem linhas de financiamento específicas para as políticas climáticas, tais linhas devem contemplar as diferentes formas de atuação destes bancos. Não haveria razão para que a economia verde fosse contemplada nas operações de crédito e não nas operações com valores mobiliários, sobretudo porque tais empreendimentos via de regra contêm propostas inovadoras, bem afinadas com os propósitos dos financiamentos com renda variável, a cargo da BNDESPar. (grifamos)
162. Além disso, o art. 154 da Lei das S/A estende ao administrador o dever de atender às exigências do bem público e da função social da empresa:
Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.
163. É importante considerar que, como empresa pública, o Sistema BNDES não tem o ônus de obter lucratividade máxima com vistas a pagar dividendos para seus acionistas privados. O BNDES pode deliberadamente ter uma política financeira não maximalista de retorno e beneficiar-se de recursos da União, que permitem uma oferta de crédito a taxas subsidiadas, com valores mais competitivos do que aqueles oferecidos pelos bancos privados. Mecanismos como os instrumentos híbridos de capital e dívida, utilizados pelo Governo Federal para a capitalização de bancos públicos entre 2009 e 2014, por exemplo, são compatíveis com as regras de Basileia e podem garantir recursos a custo competitivo e assim induzir investimentos favoráveis ao clima.
164. Segundo, a BNDESPAR, enquanto investidora institucional que aplica recursos públicos, tem obrigações de stewardship100 perante o público, sendo responsável por realizar boas decisões de investimento e desinvestimento no mercado de capitais, bem como de pautar sua atuação nas empresas investidas por critérios de sustentabilidade. Em recente declaração, o Presidente do BNDES, Xxxxxxx Xxxxxxxxx, afirmou:
Quando você atrela o seu negócio a uma causa tangível, que impacta positivamente a sociedade, você se torna resiliente a mudanças. É uma grande vantagem competitiva. Temos a convicção de que daqui a 5, 10 anos ESG será mainstream e todas as empresas serão ‘ESG’. Porque as que não forem acabarão saindo do jogo.101 (grifamos)
165. Essa declaração, embora correta, não reflete as práticas da BNDESPAR. Xxxxxx, como visto, não há evidências de que a variável climática – um elemento fundamental da integração ESG (Environmental, Social, and Governance, ou Ambiental, Social e Governança - ASG) – esteja sendo incorporada às suas decisões de investimento ou de desinvestimento, ou no reinvestimento das receitas obtidas com a alienação de participações societárias.
166. Com efeito, a Política Socioambiental de Atuação em Mercado de Capitais da BNDESPAR não inclui critérios climáticos, e o Formulário de Referência BNDESPAR 2020102 (Doc. 9) considera, de forma equivocada e preocupante, que a atividade da BNDESPAR não apresenta riscos socioambientais:
4.1 - Descrição Dos Fatores de Risco
j. a questões socioambientais: a atividade da BNDESPAR não apresenta riscos socioambientais. Não obstante, a preocupação com os aspectos sociais
100 Stewardship é, em resumo, o dever fiduciário dos investidores institucionais quanto à gestão de recursos financeiros entregues por terceiros, que implica a responsabilidade de zelar pelos ativos em que investem. O investidor institucional precisa prestar contas de sua atuação, na condição de guardião (steward) dos recursos de terceiros, sendo responsáveis por cuidar e monitorar ativamente os valores mobiliários em que investem. O tema do stewardship ganhou especial relevância após a crise do mercado financeiro internacional em 2008, que gerou debates sobre como evitar a ocorrência de eventos capazes de impactar sistêmica e drasticamente a economia.
101 FAVARETTO, Sônia. Investidores e gestores precisam incorporar critérios ESG, diz presidente do BNDES. Valor Econômico, 10 dez. 2020. Disponível em: <xxxxx://xxxxx.xxxxx.xxx/xxxxxxxx/xxxxxxx/0000/00/00/xxxxxxxxxxxx-x- gestores-precisam-incorporar-criterios-esg-diz-presidente-do-bndes.ghtml>. Acesso em: 14 jan. 2022.
102 O Formulário de Referência é um documento que todas as companhias abertas listadas em bolsa devem apresentar aos seus acionistas, e que deve oferecer informações relevantes sobre seus negócios. Vide: Formulário de Referência 2020 – BNDES PARTICIPACOES S.A. – BNDESPAR, Versão: 8, p. 24. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxx/xxx/xxxxxxx/xxxx/00x00000-0000-00x0-000x- 9328a0af2b8f/FR_V8.pdf?MOD=AJPERES&CVID=nDoJb6D>. Acesso em: 14 jan. 2022.
e ambientais é uma constante na execução da missão do BNDES. No item 7.8, estão detalhados os principais aspectos da Política Socioambiental do BNDES. (grifamos)
167. Além disso, o parecer sobre as práticas de sustentabilidade do Sistema BNDES encomendado à consultoria Vigeo.Eiris e divulgado em 13/09/2021 limita-se, quanto à atuação da BNDESPAR no tocante às mudanças climáticas, a afirmar que:
(...) o BNDES tem desinvestido grande parte de sua carteira de ações como parte de sua estratégia, incluindo empresas que possuem emissões importantes de carbono, de forma que sua carteira já foi substancialmente descarbonizada.
(...)
No entanto, não está claro a qual porcentagem de investimentos a avaliação de risco climático se aplica e a Empresa não relata as emissões de CO2 vinculadas ao seu portfólio. No entanto, desde 2019 o BNDES implementou uma estratégia de desinvestimentos em suas participações patrimoniais e reduziu significativamente sua participação em empresas que possuem importantes emissões de carbono. O BNDES indicou ao V.E que uma de suas metas é reiniciar seus inventários de emissões, interrompidos em 2014.103 (grifamos)
168. Essas afirmações são problemáticas, porque (i) a carteira da BNDESPAR, a despeito do programa de desinvestimentos, segue altamente carbonizada (ou seja, muito emissora de GEE); (ii) não há indicação de que as decisões de investimento tenham sido motivadas por, ou levado em consideração, critérios climáticos; e (iii) a retomada dos inventários de emissões, nos moldes que o BNDES adotava até 2014, não é de grande significação, porque diziam respeito às emissões do próprio BNDES, e não às de seus portfólios de investimento e financiamento.
103 BNDES. SOLICITED SUSTAINABILITY RATING – June 202. Opinion on sustentability. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxx/xxx/xxxxxxx/xxxx/0xx00x0x-xxx0-00xx-x0x0- 7f9372275192/rating+asg_bndes_06_21.pdf?MOD=AJPERES&CVID=nLvZft>. Acesso em: 14 jan. 2022. Tradução livre.
169. Além disso, embora a descarbonização da economia seja um objetivo a perseguir, não se pode ignorar que investidores institucionais de peso como a BNDESPAR têm a possibilidade de influenciar, de dentro, a boa governança climática. Esse tema é abordado no artigo abaixo, que trata da indústria mais associada ao desmatamento da Amazônia (e que, por sua vez, é a grande indutora de emissões de GEE brasileiras):
Banco é sócio e tem influência interna
O banco de desenvolvimento do Brasil também teve a oportunidade de influenciar a conduta dos frigoríficos desde dentro, uma vez que investiu, entre 2007 e 2012, mais de R$ 16 bilhões na compra de ações da JBS e Marfrig. Como sócio dos frigoríficos, o BNDES ganhou direito a voto na condução das políticas socioambientais das empresas. O BNDES possui 21% do capital social da JBS e chegou a concentrar 34% do da Marfrig – em ambos os casos, o banco só perdeu em influência para as famílias fundadoras das companhias.
Essa posição não é trivial. A gestora de capitais norte-americana BlackRock – outro importante financiador da indústria mais associada ao desmatamento da Amazônia – justifica que, com 2% de participação na JBS, sua voz não é ouvida nas reuniões de acionistas, embora desejasse influenciar a política socioambiental da empresa: “Devido à estrutura societária das empresas desse ramo, que possuem um pequeno grupo que detém a maioria das ações, o impacto dos votos de acionistas minoritários como a BlackRock é limitado” disse a gestora ao ((o))eco em agosto.104 (grifamos)
170. Especificamente com relação à política de desinvestimentos, o estudo do Centro Clima/COPPE/UFRJ105 demonstra que esta não é isenta de polêmicas e que há um déficit de transparência na instituição:
Em publicação na Folha da São Paulo em 20/01/2020, com o título “Desinvestir é uma estratégia perdedora para o BNDES”, o Presidente da Associação dos Funcionários do BNDES (AFBNDES) pondera que acelerar o desinvestimento da carteira do BNDESPAR com argumento de que estaria sob grande risco, caso atravessasse uma crise dado o alto grau de concentração da carteira, vai contra toda a história de uma instituição que não opera fundos líquidos e, portanto, não está sujeita a resgates imediatos de investidores de curto prazo. Na referida publicação, o Presidente da AFBNDES procurou mostrar que as vendas foram feitas sem que houvesse qualquer política de reinvestimento, ou seja, não se mudou a composição da carteira, houve apenas um drástico encolhimento pela venda das ações em baixa. Do mesmo modo, as receitas com as vendas não
104 HOFMEISTER, Naiara; XXXXXX, Xxxxx; XXXXXX, Xxxxxxxx. BNDES poderia ter mudado o curso do desmatamento na Amazônia, mas lavou as mãos. O Eco, 18 nov. 2020. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxx/xxxxx-xxxxxxx-xxx-xxxxxx-x-xxxxx-xx-xxxxxxxxxxxx-xx-xxxxxxxx-xxx- lavou-as-maos/>. Acesso em: 14 jan. 2022.
105 AXENO I, p. 13.
foram usadas em prol de políticas públicas para o combate à epidemia ou investimento em saneamento. Historicamente, a carteira da BNDESPAR gerou relevantes resultados financeiros e permitia que o Banco exercesse seu papel de incentivador de boas práticas de governança.
Segundo Xxxxxxx (2021) “... assim como é esperável que determinadas operações alcancem menos impacto do que o inicialmente esperado, podendo inclusive ser malsucedidas, incorrendo em prejuízos, é igualmente razoável que para estes casos exista um dever de prestação de contas por parte dos tomadores de decisão. A explicação de por qual razão a companhia optou por realizar operações que não se provaram as melhores faz parte do dever de diligência dos administradores. Mesmo que suas opções sejam consideradas corretas, a despeito dos resultados, há um dever de explicação ex post, o que, por sua vez, institui um dever de agir ex ante em busca da melhor alternativa para os interesses da companhia, num contexto mais amplo de natureza regulatória prudencial”. Ainda, acrescenta que: “A correta interpretação do princípio da publicidade da Administração Pública deve ser aquela que permita o máximo controle público das ações do Estado e das políticas públicas”, mas ressalta: “os bancos públicos brasileiros e o crédito direcionado sujeitam-se tanto às orientações de política quanto aos ditames regulatórios do Banco Central”.
A Figura 4 mostra a escalada de desinvestimento, sobretudo em 2020.
Figura 4. Escalada de desinvestimento do BNDESPAR
Fonte: Fluxo e evolução da carteira de renda variável do Sistema BNDES, 2021
O que se depreende de todo esse embate envolvendo prejuízos elevados ao BNDESPAR, além de ausência da tão propalada transparência, é a falta de critérios na seleção dos ativos envolvidos nos desinvestimentos, que poderia se respaldar, por exemplo, na vulnerabilidade climática da carteira, critério igualmente aplicável na estratégia de alocação dos lucros em investimentos com maior retorno socioambiental e climático. Como observa Shapiro (2021), a governança pública está assentada no estabelecimento de metas, na publicização dos instrumentos e na prestação de contas dos custos incorridos e dos benefícios alcançados, apenas amplificar a transparência não é suficiente. (grifamos)
171. Os documentos divulgados pela empresa contrariam, portanto, a declaração do Presidente do BNDES quanto à importância da adoção de critérios ESG e estão na contramão da crescente importância do dever de stewardship climático, assim em desacordo com as obrigações legais dispostas no arcabouço jurídico do Direito do Clima brasileiro.
172. Em 2015, o relatório O dever fiduciário no século XXI,106 elaborado pela iniciativa Principles for Responsible Investment da ONU, corroborou o entendimento de que “é uma quebra do dever fiduciário não considerar geradores de valor de longo prazo, inclusive questões ambientais, sociais e de governança (ESG) na gestão de recursos”. Para Xxxxxx e Prado:107
[n]a medida em que a urgência climática se agrava, com fenômenos extremos ocorrendo com maior frequência e severidade, e diante do início da implementação do Acordo de Paris neste ano de 2020, atores corporativos passarão a ser cada vez mais socialmente conclamados, e juridicamente compelidos, a demonstrar, por meio de ações e informações, as medidas que estão tomando para identificar e agir sobre os riscos que as mudanças climáticas trazem aos seus negócios.
173. Em 2016, a Associação de Investidores no Mercado de Capital (AMEC) elaborou e publicou o Código Amec de Princípios e Deveres dos Investidores Institucionais – Stewardship,108 que inclui expressamente, entre seus sete princípios, a observância a critérios ESG (dentre os quais o clima é um elemento central). Embora a BNDESPAR tenha aderido formalmente ao Código,109 não se observa, na prática, observância a esses princípios. Vejamos:
Princípio 3
Considerar aspectos ASG nos seus processos de investimento e atividades de
stewardship
Os investidores institucionais devem considerar em seu processo de investimentos fatores ambientais, sociais e de governança, ponderando tanto seu
000 XXXXXXXX, Xxxx et al. O dever fiduciário no século XXI. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxx.xxx/xxxxxxxx?xxx0000>. Acesso em: 14 jan. 2022.
107 XXXXXX, Xxxx; XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. O dever jurídico de informar os riscos climáticos. Jota, 13 jan. 2020. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxx.xxxx/xxxxxxx-x-xxxxxxx/xxxxxxx/x-xxxxx-xxxxxxxx-xx-xxxxxxxx-xx-xxxxxx-xxxxxxxxxx- 13012020>. Acesso em: 14 jan. 2022.
108 AMEC BRASIL. Código Stewardship. Disponível em: <xxxxx://xxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxx/xxxxxx/>. Acesso em: 14 jan. 2022.
109 BNDES. BNDESPAR adere ao Código AMEC de Stewardship, 28 nov. 2017. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxxx/xxxx/xxxx/xxxxxxxx/xxxxxxxx/xxxxxxxx/xxxxxxxx-xxxxx-xx-xxxxxx-xxxx- de-stewardship>. Acesso em 14 jan. 2022.
impacto sobre risco e retorno como sua contribuição para o desenvolvimento sustentável dos emissores de valores mobiliários
Orientação
Os fatores ASG impactam os emissores de valores mobiliários e influenciam de forma determinante a sustentabilidade dos mesmos. A análise e o monitoramento dos fatores ASG integra a avaliação de riscos e oportunidades associadas aos investimentos, ainda que não sejam os determinantes finais da decisão de investimento.
Investidores institucionais ao gerir de forma prudente o capital de seus beneficiários finais, devem considerar fatores ASG relevantes como quesito fundamental no cumprimento de seu dever fiduciário, dando a devida transparência sobre a forma como esses fatores são considerados.
Investidores devem avaliar os posicionamentos dos emissores de valores mobiliários acerca dos temas ASG relevantes.
174. O guia Finanças Sustentáveis: Um Panorama,110 publicado em 2020 pelo GIZ (Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit), refere que:
[d]o ponto de vista da eficiência, a transparência nas informações relevantes é fundamental para permitir que os participantes do mercado tomem decisões bem fundamentadas, para sustentar a visão de longo prazo nas atividades financeiras e econômicas, e para garantir o funcionamento adequado e eficiente do setor financeiro. Cada vez mais, a exigência de se contabilizar e divulgar informações relevantes de ASG é interpretada como parte do ‘dever fiduciário’ de consultores financeiros e gestores de investimento. Grande parte dos estudos empíricos conclui que existe uma correlação positiva entre os aspectos ASG nas decisões de investimento e o desempenho financeiro e de crédito, ou que as decisões de investimento que levam em conta os aspectos ASG pelo menos não têm desempenho inferior àquelas que não consideram tais aspectos. Tal afirmação parece ser particularmente verdadeira em tempos de crises e incertezas, como a pandemia do COVID-19, durante a qual observa-se um forte aumento na consideração dos aspectos ASG em investimentos e aplicações de recursos. Os estudos indicam ainda que essa relação depende também de fatores como diferenças regionais ou setor de atividade (consulte Verheyden et al. (2016), Xxxx et al. (2015) e Xxxxx et al. (2015)). Certos riscos ASG, como os riscos climáticos, podem se materializar ao longo de um período maior, o que significa que os efeitos positivos da integração ASG podem aumentar com o tempo. (NGFS, 2019). No entanto, existem desafios como 1) a falta de dados e bases de dados relacionados a ASG, 2) instrumentos para determinar sua relevância e 3) a falta de um entendimento internacional comum sobre a definição do que se qualifica como investimento verde e/ou sustentável. A proteção do cliente, incluindo a gestão responsável de
110 GIZ. Finanças Sustentáveis: Um Panorama Junho 2020. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxx.xx/xx/xxxxxxxxx/Xxxxxxxx_Xxxxxxxxxxxx_Xxxxxxxx_xxxxxxxxx.xxx>. Acesso em: 14 jan. 2022.
dados, é parte integrante das FS e recebe cada vez mais atenção em tempos de digitalização e mudanças tecnológicas.
175. Para compreender adequadamente a profundidade dessa mudança de paradigma, é importante considerar que os reguladores brasileiros, seguindo tendência mundial, vêm incluindo critérios ESG, e, especificamente, climáticos, em suas iniciativas regulatórias.
176. A CVM, no processo de consulta pública visando à reforma da Instrução CVM 480,111 deu especial destaque às questões ESG e climáticas:
Da mesma forma, outro objetivo importante da reforma é aprimorar a prestação de informações ligadas a questões ambientais, sociais e de governança (ASG), de modo a atender à crescente demanda de investidores pelo tema.
Veja as principais inovações contidas na reforma:
● Maior destaque à divulgação de fatores de risco sociais, ambientais e climáticos
● Exigência de posicionamento dos emissores sobre Objetivos de Desenvolvimento Sustentável relevantes no contexto de seus negócios.
● Necessidade de emissores que não divulgam relatórios de sustentabilidade ou não adotam indicadores-chave de desempenho para questões ambientais e sociais de explicarem o motivo de não o fazerem (“pratique-ou-explique”).
● Informações sobre diversidade nos cargos de administração e entre os empregados dos emissores.
177. Vale destacar que recentemente, em 22 de dezembro de 2021, a CVM alterou as instruções nº 480 e 481 com a Resolução CVM 59.112 No Formulário de Referência apresentado por ela fica explícita a preocupação com as questões climáticas, já que permeiam uma série de quesitos diferentes.
111 MINISTÉRIO DA ECONOMIA. CVM lança audiência pública sobre mudanças na Instrução 480. 7 dez. 2020. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxx.xx/xxx/xx-xx/xxxxxxxx/xxxxxxxx/xxx-xxxxx-xxxxxxxxx-xxxxxxx-xxxxx-xxxxxxxx-xx- instrucao-480-c422431220f742f19fa6061a498cb456>. Acesso em: 14 jan. 2022.
112 Comissão de Valores Mobiliários. Disponível em: < xxxxx://xxxxxxxx.xxx.xxx.xx/xxxxxx/xxxxx/xxx/xxxxxxxxxx/xxxxxxxxxx/xxxxxx/000/xxxxx000xxxxxxxx.xxx >. Acessado em 28 mai. 2022.
178. Na mesma linha, o Banco Central publicou, em 15/09/2021, seu primeiro Relatório de Riscos e Oportunidades Sociais, Ambientais e Climáticas,113 que trata de forma integrada das ações do banco na dimensão Sustentabilidade da Agenda BC e divulgou um conjunto de normas que fortalecem as regras de gerenciamento de riscos sociais, ambientais e climáticos e a elaboração da Política de Responsabilidade Social, Ambiental e Climática (PRSAC) pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional (SFN), bem como a regulamentação da divulgação, por essas instituições, de informações sobre riscos e oportunidades sociais, ambientais e climáticas, dentre as quais destacamos:
● Resolução CMN nº 4.943, que altera a Resolução nº 4.557, de 23 de fevereiro de 2017, e aprimora as regras de gerenciamento do risco social, do risco ambiental e do risco climático;
● Resolução CMN nº 4.945, que estabelece novas regras sobre a Política de Responsabilidade Social, Ambiental e Climática (PRSAC) e sobre as ações para sua efetiva implementação pelas instituições do Sistema Financeiro Nacional;
● Resolução BCB nº 139, que estabelece requisitos para divulgação do Relatório de Riscos e Oportunidades Sociais, Ambientais e Climáticas (GRSAC) pelas instituições do Sistema Financeiro Nacional;
● Instrução Normativa nº 153, que estabelece as tabelas padronizadas para divulgação do Relatório GRSAC.
179. Segundo o próprio BACEN:114
[a]s iniciativas estão em acordo com as recentes recomendações e tendências internacionais em torno da gestão dos riscos climáticos e ambientais, e da transparência em relação a eles. Ao fortalecer as regras associadas às questões sociais, ambientais e climáticas, cujo impacto positivo ou negativo, é cada vez mais relevante para a solvência das instituições, o BC reafirma seu papel de garantidor do equilíbrio, da confiabilidade e da solidez do SFN.
180. Também é muito relevante, sob o ponto de vista conceitual e prático, o fato de que o conjunto de normas considera, expressamente, riscos climáticos físicos e de transição, e, para
113 BCB. Relatório de Riscos e Oportunidades Sociais, Ambientais e Climáticas. Banco Central do Brasil, 15 set. 2021. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxx/xxxxxxxxx-xxxxx-xxxxxxxxxxxx>. Acesso em: 14 jan. 2022.
114 BCB. Agenda BC#: BC publica Relatório de Riscos e Oportunidades Sociais, Ambientais e Climáticas e aprimora regulação sobre o tema. Banco Central do Brasil, 15 set. 2021. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxxxxx/00000/xxxx>. Acesso em: 7 dez. 2021.
além da perspectiva puramente prudencial, incorpora expressamente ao conjunto normativo os impactos positivos e as oportunidades relacionados às mudanças climáticas.
181. Os riscos físicos e de transição são conceituados pelas recomendações da Força- Tarefa sobre a Divulgações Financeiras Relacionadas ao Clima (Task Force on Climate-related Financial Disclosures - TCFD). Ela estabelece sete princípios sobre a divulgação de informações referentes aos riscos climáticos, segundo os quais empresas e instituições financeiras devem disponibilizar informações de caráter qualitativo e quantitativo que devem ser consistentes, relevantes, específicas, completas, claras, equilibradas, compreensíveis, confiáveis, verificáveis, objetivas e realizadas no modo e tempo adequados.115
182. Os riscos de transição dividem-se em políticos ou jurídicos, tecnológicos, de mercado e reputacionais, e estão ligados à transição a uma economia de baixo carbono. São impulsionados por mudanças na percepção da sociedade das indústrias emissoras de carbono, novas políticas públicas, novas tecnologias, mudanças nas preferências dos investidores e mudanças na visão do consumidor, e têm o potencial de causar impactos econômicos e sociais em um período de tempo ainda mais curto do que os riscos físicos. Os riscos físicos da mudança do clima decorrem das alterações de frequência e intensidade dos eventos climáticos, e classificam-se
115 Disponível em: < xxxxx://xxxxxx.xxxxx.xx/xxxxxxx/xxxxx/00/0000/00/XXXXX-XXXX-Xxxxx-Xxxxxxx- 121517.pdf >. Acessado em 25 de mai. 2022.
como agudos e crônicos. Riscos agudos são desencadeados por eventos climáticos extremos, como ciclones e inundações. Por sua vez, riscos crônicos são aqueles relativos a eventos de longo prazo, tais como o progressivo aumento do nível dos oceanos e a mudança gradual no regime de precipitações.
183. Destaca-se a ênfase dada pela TCFD aos impactos econômico-financeiros, diferenciando-os de outras iniciativas de gestão e relato de mudança do clima com recomendações suplementares a bancos, seguradoras, proprietários de ativos e gestoras de ativos, no que se refere à:
● Estratégia – descrição de concentrações significativas de exposição da carteira a ativos carbono-intensivos e divulgação dos riscos climáticos (físicos e de transição) de suas carteiras e de outros serviços que exercem como intermediários financeiros;
● Gestão de riscos – caracterização dos riscos climáticos no contexto das categorias tradicionais, como risco de crédito, de mercado, de liquidez e operacional e descrição de quaisquer frameworks de classificação de risco que tenham sido utilizados (como o do Enhanced Disclosure Task Force);
● Métricas e metas – divulgação de métricas para avaliar o impacto dos riscos climáticos no curto, médio e longo prazos, discriminadas por indústria, localização geográfica, prazo e qualidade do crédito (ex.: com/sem grau de investimento, rating). Deve, ainda, ser divulgado o montante e porcentual de ativos carbono-intensivos (carbon-related assets) sobre os ativos totais, assim como o montante de empréstimos e financiamentos relacionados a oportunidades climáticas (FEBRABAN, 2018).”
184. O estudo do Centro Clima/COPPE/UFRJ (Doc. 4) que instrui a presente ação avaliou a vulnerabilidade da carteira da BNDESPAR a riscos climáticos, e concluiu que a gestão desses riscos ainda não foi devidamente incorporada.
A avaliação da vulnerabilidade da carteira de investimentos do BNDESPAR foi estruturada com base na abordagem conceitual de avaliação de risco climático do Quinto Relatório do IPCC (2014), pela qual os riscos dos impactos relacionados ao clima resultam da interação entre perigo, exposição e vulnerabilidade (Figura 1).
A avaliação da vulnerabilidade foi realizada em seis etapas: (i) avaliação do perigo (definição dos fatores climáticos de relevância); (ii) avaliação da exposição; (iii) avaliação da sensibilidade; (iv) avaliação da capacidade adaptativa; (v) determinação da vulnerabilidade setorial; e (vi) determinação da vulnerabilidade da carteira de investimento do BNDESPAR. O detalhamento da metodologia está disponível no Anexo VI.
(…)
A avaliação dos cinco setores econômicos no presente caso traz evidências de que tal contexto persiste, ou seja, de que a gestão dos riscos físicos à mudança do clima ainda não foi devidamente incorporada na estratégia geral de gestão de riscos das respectivas empresas.
(…)
Por fim, vale ressaltar, uma vez mais, que os agentes econômicos devem avaliar não somente os riscos físicos, mas, ainda, o contexto social, mudanças regulatórias e demandas de investidores. Toda a mobilização de energia para esse fim deve, ao final, resultar em uma ampla revisão das estratégias e planos direcionados à transformação/adequação dos modelos de negócios à nova realidade.
(...)
Note-se que na descrição dos fatores de risco relativos às principais empresas da carteira BNDESPAR constam do Formulário de Referência (2021, pg. 23, 24), além dos riscos tradicionais ou de transição, apenas alguns riscos climáticos no setor de Mineração (condições climáticas adversas ou perigosas); no setor de Alimentos e Bebidas (condições climáticas ou outros acontecimentos extremos e imprevistos); e no setor de Papel e Celulose (imposições ambientais mais rigorosas podem resultar em dispêndios adicionais). Para os demais setores mencionados (Petróleo e Gás e Energia Elétrica), não há qualquer referência aos riscos climáticos.
Segundo o “Relatório de Pesquisa 2020 – Uma Análise das Políticas e Diretrizes Socioambientais dos Nove Maiores Bancos do Brasil”, do Guia dos Bancos Responsáveis, a mudança do clima teve a terceira pior avaliação no ranking de 18 itens, ficando à frente apenas do setor Imobiliário e Habitação e Armas. Na comparação entre os bancos avaliados, o BNDES ficou na oitava posição, que equivale à última, visto que um dos bancos não pontuou nesse quesito. Em contrapartida, no que diz respeito à transparência e prestação de contas, o BNDES lidera por disponibilizar detalhes de valores, empresas e projetos que receberam créditos ou investimentos, sendo, também, o único a ter mecanismos de reclamação para comunidades afetadas por empresas apoiadas. Da análise da adesão dos bancos às iniciativas mais importantes sobre relatoria e engajamento sobre clima, como a TCFD, o CDP e o Programa GHG Protocol, apenas o BNDES e outros dois bancos não participam de
nenhuma delas. O relatório conclui enfatizando o processo iniciado com a Resolução XXX xx 0000/00, ao destacar que a sustentabilidade não pode ser vista como um produto, mas deve estar integrada em toda a cadeia de valor das instituições financeiras. Pelo exposto, a exposição ao risco climático pode influenciar negativamente os valores mobiliários de emissão dos negócios das empresas, particularmente aquelas que atuam no ramo de commodities e que são sujeitas à maior volatilidade do mercado. Ao desconsiderá-lo, negócios atuais e futuros, participação no mercado, situação financeira, reputação, resultados operacionais, fluxo de caixa, liquidez e demais indicadores financeiros e não financeiros podem ser afetados adversamente. O mercado de valores mobiliários poderá diminuir, hipótese em que os atuais e/ou potenciais investidores poderão perder, substancial ou totalmente, investimentos. Consequências negativas relacionadas a esse risco podem, ainda, comprometer ou limitar a capacidade de realizar negócios em um ou mais dos mercados em que opera ou em outros mercados.
Observa-se que o não conhecimento dos riscos climáticos relevantes para a carteira de investimentos, bem como seu rebatimento para o meio ambiente e a sociedade brasileira (dupla materialidade) podem comprometer o processo de gestão de riscos e o planejamento estratégico do BNDESPAR, além de não ter informações suficientes para subsidiar à divulgação pública desses riscos. Como abordado anteriormente, está cada vez mais crescente o alinhamento dessa divulgação com as recomendações do TCFD, que se estruturam nos pilares da governança, estratégia, gestão de risco, métricas e metas.
4. LIMINAR
185. Como sabido, a garantia constitucional de acesso à justiça e o dever decorrente de tratados internacionais de que existam remédios judiciais efetivos e céleres, impõe que o ônus do tempo do processo seja distribuído de forma justa, impedindo que a demora inerente ao processamento inviabilize a efetividade da tutela pretendida.
186. Nesse sentido, o art. 12 da Lei da ACP e o Livro V do Código de Processo Civil previram mecanismos de antecipação da tutela, sobretudo quando presentes a plausibilidade do direito alegado e o perigo na demora.
187. Quanto à probabilidade do direito, ficou bem demonstrado ao longo da exordial, pela documentação anexa e pelos robustos pareceres elaborados especialmente para essa demanda que:
i. A emergência climática e suas causas antrópicas estão plenamente estabelecidas pela ciência;
ii. As instituições de desenvolvimento têm papel reconhecidamente relevante no enfrentamento da crise climática, logo a BNDESPAR tem o papel de fomentar o desenvolvimento nacional sustentável, e aplica recursos públicos para tanto;
iii. As decisões de investimento, desinvestimento e reinvestimento da BNDESPAR têm o potencial de induzir os principais setores emissores a alinhar-se às metas climáticas brasileiras, devendo conduzir-se sob a ótica da dupla materialidade, isto é, considerando como a BNDESPAR afeta o clima e como a BNDESPAR é afetada pelo clima;
iv. As carteiras acionárias da BNDESPAR incluem alguns dos setores mais carbono-intensivos da economia brasileira, como corrobora o estudo científico elaborado pelo Centro Clima/COPPE/UFRJ
v. A BNDESPAR tem o dever de incorporar critérios climáticos às suas decisões de investimento, desinvestimento e reinvestimento;
vi. No exercício de seu dever fiduciário, os Réus devem considerar os riscos e oportunidades climáticas sob a ótica dos riscos físicos e de transição, conceituados pela TCFD (Task Force on Climate Related Financial Disclosures); e
vii. O Direito do Clima articula direitos e deveres jurídico-climáticos nos planos internacional e interno, de ordem convencional, constitucional e infraconstitucional, e, ainda, decorrentes de compromissos voluntários.
188. Por sua vez, no tocante ao perigo de dano, basta dizer que estamos sob verdadeiro regime excepcional de emergência climática, pelo qual pululam nos noticiários lamentáveis eventos extremos climáticos com incontáveis danos à vida e ao patrimônio.
189. As medidas de contenção e desaceleração da crise climática são mais do que urgentes e estão fartamente demonstradas pela ciência, tendo sido objeto de acordos internacionais e verdadeiras guinadas institucionais nas políticas públicas e de governança corporativa. É dizer: não temos mais tempo a perder no combate e na atenuação dos graves danos causados ao meio ambiente e, por isso, devem ser tomadas todas as medidas possíveis.
190. Assim, as providências liminares pedidas no item seguinte, ao passo que não possuem natureza irreversível (atendendo ao que dispõe o art. 300, §3º do CPC), atendem aos pressupostos legais e possuem o condão de, se deferidas, provocar medidas efetivas e relativamente singelas em favor da proteção do meio ambiente e da ordem jurídica.
5. PEDIDOS
191. Isso posto, a Autora vem, a presença de V. Ex.ª, requerer a concessão de TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA DE NATUREZA ANTECIPADA, liminarmente, nos termos do art. 9º, parágrafo único do CPC, por robustamente demonstrado o preenchimento dos requisitos previstos no CPC e nos artigos 12, da Lei n.º 7.347/1985 e 84 do CDC para que os Réus sejam obrigados a:
1. Cumprir OBRIGAÇÃO DE FAZER, consistente em disponibilizar, nestes autos e no Portal BNDES, em até 30 (trinta) dias, as informações abaixo referidas, atualizando-as, no máximo, a cada 6 (seis) meses:
1.1. Informar se, e de que modo, considera riscos e oportunidades climáticos em suas decisões de investimento, desinvestimento e reinvestimento, incluindo nas informações a serem prestadas, no mínimo, os seguintes aspectos:
1.1.1. Incorporação de critérios climáticos à análise de investimentos e desinvestimentos, sob a ótica da promoção do desenvolvimento nacional sustentável e da transição à economia de baixo carbono;
1.1.2. Elaboração e/ou análise de inventários de emissões de Gases de Efeito Estufa de Escopos 1, 2 e 3, correspondentes às suas participações acionárias, e análise da adequação ou inadequação de suas trajetórias às metas da NDC (Nationally Determined Contributions ou Contribuição Nacionalmente Determinada) brasileira;
1.1.3. Iniciativas de mitigação dos riscos climáticos relativos à carteira de investimentos;
1.1.4. Avaliação da resiliência climática da carteira de investimentos por meio da análise de riscos físicos e de transição, tais como conceituados pela TCFD (Task Force on Climate Related Financial Disclosures);
1.1.5. Análise, sob a ótica da integração ESG (Environmental, social and governance ou Governança Ambiental, Social e Corporativa), das repercussões dos impactos climáticos de seus investimentos e desinvestimentos quanto a outros aspectos socioambientais relevantes, incluindo o agravamento de desigualdades;
1.1.6. Implementação de mecanismos de governança que privilegiem a variável climática;
1.1.7. Incorporação da variável climática na determinação dos critérios de reinvestimento dos capitais resultantes de alienações de participações acionárias; e
1.1.8. Atuação, como acionista ou administrador, no sentido de melhorar o desempenho e a governança climáticos das empresas em que detém participação, exigindo delas a apresentação de planos de modernização da atividade econômica para uma economia climaticamente sustentável.
1.2. Informar, nos mesmos termos e prazos do item 1.1, quanto a seu portfólio de participações acionárias:
1.2.1. Se a BNDESPAR mensura o progresso alcançado na descarbonização dessas empresas e do potencial ainda a ser explorado para o atingimento de emissões líquidas nulas ou mesmo negativas;
1.2.2. Como a BNDESPAR influencia a tomada de decisões dessas empresas sobre sua política climática, comprovando tal atuação;
1.2.3. Como a BNDESPAR se posicionou a respeito dos investimentos de empresas do setor elétrico em termelétricas a carvão, indicando qual foi sua atuação para resolver essa questão;
1.2.4. Como a BNDESPAR concilia sua responsabilidade de contribuir para o êxito do Acordo de Paris com a sua participação acionária empresas do setor elétrico;
1.2.5. Qual a atuação da BNDESPAR no sentido de estimular a adoção, por empresas do setor pecuário, de mecanismos de rastreabilidade das condições de produção ao longo de sua cadeia de fornecedores, e a divulgação transparente dos resultados apurados;
1.2.6. Como a BNDESPAR atua para minimizar o risco reputacional evidenciado pela crítica do movimento ambientalista às empresas do setor pecuário;
1.2.7. Se a BNDESPAR pretende assumir o papel de articular um protocolo efetivo de certificação da origem da carne comercializada em supermercados como oriunda de pastagens isentas de desmatamento;
1.2.8. O que a BNDESPAR tem feito para que as empresas do setor pecuário reduzam as emissões de GEE, fermentação entérica e dejetos animais dos rebanhos de sua cadeia de fornecedores;
1.2.9. Como a BNDESPAR justifica a aplicação de recursos de sua carteira para empresas do setor de petróleo e gás e de mineração, considerada a elevada pegada de carbono destas;
1.2.10. Qual a atuação da BNDESPAR no sentido de acelerar o esforço de descarbonização das atividades das empresas do setor de petróleo e gás e de mineração;
1.2.11. Como a BNDESPAR planeja sua estratégia de longo prazo para apoiar a transição energética das empresas do setor de petróleo e gás.
2. Cumprir OBRIGAÇÃO DE FAZER, consistente na apresentação de Plano destinado à redução de emissões de Gases de Efeito Estufa dotado de orientações de governança, arcabouço de normas internas, políticas de investimento e outros instrumentos que sejam necessários para alinhar a atuação da BNDESPAR às metas do Acordo de Paris e da Política Nacional sobre a Mudança do Clima (PNMC), que atenda aos requisitos mínimos de:
2.1. Ser construído com participação efetiva de representantes da sociedade civil, de órgãos públicos e academia, bem como todas as populações, povos e comunidades tradicionais que desenvolvem atividades socioeconômicas diretamente afetadas pelas mudanças climáticas, incluindo, mas não se limitando, a povos indígenas e quilombolas;
2.2. Apresentado em até 90 (noventa) dias, contendo detalhamento de metas e ações concretas;
2.3. Ter a capacidade de reduzir, até o ano de 2030, as emissões de carbono dos setores atualmente financiados pelos Réus, em conformidade com as melhores metas de cortes pactuadas internacionalmente e assumidas pelo Estado brasileiro;
2.4. Atenda a marcos efetivos de redução em períodos de no máximo 2 (dois) anos, considerando-se a emergência climática;
2.5. Preveja compensações socioambientais, preferencialmente voltadas ao apoio na contenção de danos causados pelas mudanças climáticas, sempre que as metas não forem atendidas.
3. Cumprir OBRIGAÇÃO DE FAZER, consistente em instalar, em até 60 (sessenta) dias, e manter, às suas expensas, até o efetivo atingimento da meta ou, ao menos, até 31 de dezembro de 2030, uma Sala de Situação Climática, que atenda aos seguintes parâmetros mínimos:
3.1. Tenha condições técnicas e de governança para avaliar o atingimento das metas estabelecidas no Plano destinado à redução de emissões de Gases de Efeito Estufa, diagnosticando a evolução do plano e contexto nacional e global de emergência climática;
3.2. Que publique os avanços e retrocessos de emissões de Gases de Efeito Estufa nos setores financiados pelos réus, em formato aberto, detalhado, contendo georeferenciamento e atualização permanente e constante;
3.3. Que mantenha equipe técnica capacitada, incluindo pessoas engenheiras e cientistas de dados, capaz de reunir dados de emissões de Gases de Efeito Estufa e métricas de impacto socioambiental e climático para subsidiar os trabalhos da sala; e
3.4. Seja acessada, também, por representantes da sociedade civil, Ministério Público, Defensoria Pública, acadêmicos e membros do Judiciário, bem como todas as populações, povos e comunidades tradicionais que desenvolvem atividades socioeconômicas diretamente afetadas pelas mudanças climáticas, incluindo, mas não se limitando, a povos indígenas e quilombolas.
4. Ainda em caráter liminar, requer a COMINAÇÃO DE MULTA DIÁRIA em caso de descumprimento de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), reversível ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD), nos termos dos artigos 536, 537, 815 e 816 do CPC, em limite não inferior a R$
500.000 (quinhentos mil reais).
5. No mérito, requer seja a presente demanda JULGADA PROCEDENTE, com a consequente:
5.1. Confirmação e manutenção do pedido de tutela de urgência; e
5.2. Condenação dos Réus em cumprir o Plano destinado à redução de emissões de Gases de Efeito Estufa, tornando seu descumprimento passível de execução judicial, com imposição de astreintes e multa em valor não inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais) para cada meta descumprida.
6. A citação dos Réus, pelo meio mais célere, para, querendo, apresentar defesa que entender cabível, sob as penas decorrentes da revelia;
7. A intimação do Ministério Público Federal para que atue na qualidade de custus legis, nos termos do art. 5º, §1º da Lei da ACP;
8. A produção de todas as provas admitidas pelo Direito, observando-se oportunamente a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 21 da Lei nº 7.347/1985, cumulado com o art. 6º, VIII, da Lei nº 8.078/1990, ou sua distribuição dinâmica, nos termos do art. 373, § 1º, do CPC; e que
9. Seja observada à autora a gratuidade processual, nos termos do art. 18 da Lei da Ação Civil Pública e/ou nos termos do art. 98 e ss. do Código de Processo Civil (CPC), considerando ser associação sem fins lucrativos e que todo seu recurso é aplicado na realização de seus objetivos institucionais de reconhecido interesse público.
192. Dá à causa o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), para efeitos fiscais.
Termos em que, Pedem deferimento.
De São Paulo para Brasília, 21 de junho de 2022
XXXXX XXXXX NEIVA OAB/SP 223.763 | XXXXXXX XX XXXXXXXX XXXXXXX OAB/SP 252.259 OAB/DF 55.891 |
XXXXXXXXXX XXXXXX OAB/RS 36.316 | XXXX XXXXX XX XXXXX OAB/SP 365.922 |
XXXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX OAB/RJ 167.987 | XXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX OAB/SP 373.777 |
6. DOCUMENTOS ANEXOS
1. Procuração;
2. Atos societários da Conectas Direitos Humanos;
3. Parecer do Centro Clima/COPPE/UFRJ sobre os aspectos de mitigação;
4. Parecer do Centro Clima/COPPE/UFRJ sobre os aspectos de adaptação, e Anexos I a VII;
5. Parecer do Professor Xxxxx X. Schapiro;
6. Tradução do 6o Relatório do IPCC (AR6 WG1) preparada pela Autora;
7. Resposta ao pedido de informação nº 52021001502202146 formulado pela Autora com base na Lei de Acesso à Informação;
8. Resposta ao pedido de informação nº 00000000000000000 formulado pela Autora com base na Lei de Acesso à Informação;
9. Formulário de Referência 2020 da BNDESPAR.
10. Substabelecimento;