O Contrato-promessa e a Modificação de Direitos Reais
Administração n.º 66, vol. XVII, 2004-4.º, 1181-1224
1181
O Contrato-promessa e a Modificação de Direitos Reais
Xxxx Xx Xxxxx*
I. O significado da escolha d’“O Contrato-promessa e a Modificação de Direitos Reais” como proposição
1. Objecto de investigação
O que se pretende estudar na presente tese são as interrelações entre as estruturas jurídicas do contrato-promessa, contrato prometido até à transferência de direitos reais como uma globalidade, mas não uma con- frontação entre o contrato-promessa enquanto um negócio jurídico au- tónomo e a modificação de direito real. Não é possível efectuar, de modo algum, uma comparação entre contrato-promessa e modificação de direitos reais1, pois estas duas figuras pertencem a domínios jurídicos diferentes2.
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* Doutor em direito, professor auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Macau. 1 Direito real é uma classificação dos direitos subjectivos. A chamada modificação de direitos reais quer referir-se, a nível dos próprios direitos, à criação, à alteração e à extin- ção dos mesmos; do ponto de vista do sujeito activo, ela representa a aquisição, a altera- ção e a perda de direitos reais em relação ao mesmo sujeito, em virtude de os direitos civis pertencerem, de um modo geral, a um determinado sujeito, não existindo “direitos sem sujeito”. Neste sentido, não existem diferenças de essência entre ambos os pontos de vista citados (cf. Xxxx Xxxxxx, «Princípios do Direito das Coisas», Editora do Insti- tuto Nacional de Administração da República Popular da China, edição 1998, Pg. 106). A aquisição de direitos reais pode desdobrar-se em aquisição originária e aquisição derivada, podendo nesta última distinguir-se a aquisição derivada translativa e aquisição derivada constitutiva. No que diz respeito à questão da aquisição de direito e sua transmissão, foi estabelecido, a partir do Direito Romano, o princípio “Nemo plus juris in alium transferre potest quam ipse habet” (Ninguém pode transferir mais do que os direitos que tem). Por outro lado, a própria modificação dos direitos reais é também um defeito jurídico, cuja produção é resultado de factos jurídicos que se destinguem, con- forme os efeitos jurídicos dependam da vontade ou não, factos voluntários, também conhecidos por actos jurídicos, ou factos jurídicos involutários também apelidados por factos naturais. Os factos voluntários, por sua vez, dividem-se mais detalhadamente em negócio jurídico e simples acto jurídico ou actos jurídicos «stricto sensu», sendo os pri- meiros aqueles cujos efeitos jurídicos são produzidos por terem sido queridos e na
No entanto, observadas do ponto de vista da transacção, as activida- des praticadas pelas partes, a partir da celebração do contato até à efecti- vação da transmissão de propriedade, são uma estrutura global que está intimamente relacionada. De outra perspectiva, analisadas do ponto de vista meramente técnico-jurídico, a celebração do contrato e a modifica- ção de direitos reais constituem uma unidade indivisível. Do ponto de vista teleológica, a finalidade do próprio contrato-promessa é algo vago e está necessariamente relacionada com o contrato prometido, enquanto este último, por sua vez, incorpora a modificação de direitos reais. Desde há longínquos anos, as obras jurídicas que focaram o problema da modi- ficação de direitos reais partiam, sem excepção, das relações entre o con- trato (na sua essência o contrato de compra e venda) e a modificação de direito. Não são escassos estudos respeitantes a relações entre o contrato e a modificação de direitos reais, nem os que tomam como ponto de parti- da a mera modificação de direitos reais complementada pela abordagem secundária relativa aos factos e regimes jurídicos que dizem respeito à mesma. Apenas não são muitas as investigações que colocam na mesma estrutura o contrato-promessa e a modificação de direitos reais. O pre- sente artigo dedica-se justamente à investigação do contrato-promessa, contrato prometido e a modificação de direito como uma estrutura global.
Justamente pelas razões expostas, o contrato-promessa mencionado no presente artigo não abrange todas e quaisquer espécies do mesmo,
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medida em que o foram, enquanto os últimos são aqueles cujos efeitos se produzem, mesmo que não tenham sido previstos ou queridos pelos seus autores. (para mais promenores, ver Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxx Xxxxx [português], <Teoria Geral do Direito Civil>, tradução em chinês, edição conjunta do Gabinete para a Tadução Jurídica e da Faculdade de Direito da Universidade de Macau, 1999, Pg. 195 a 197). Assim, confor- me o facto jurídico que provoca a modificação de direitos reais seja ou não negócio jurídico, a modificação de direitos reais distingue-se em modificação de direitos reais resultante de negócio jurídico e modificação de direitos reais não resultante de negócio jurídico. As modificações de direitos reais resultantes de negócios jurídicos são as únicas que produzem efeitos de modificação de direitos reais em função da volição dirigida a um resultado de modificação de direito real. As modificações de direitos reais resultantes de negócios jurídicos são mormente situações de transmissão dos mesmos direitos. Porém, negócios jurídicos podem também causar a criação ou extinção de direitos reais, sendo exemplo do primeiro a constituição de hipoteca e o repúdio de propriedade, o do último.
2 Do ponto de vista da estrutura das relações jurídicas, o contrato-promessa é uma
subcategoria dos factos conducentes à constituição de relação jurídica, enquanto a mo- dificação de direito real é considerada um aspecto dinâmico de um (direitos) dos dois polos direitos e deveres de relações jurídicas.
mas somente o contrato que está relacionado com a modificação de direi- tos reais desempenhando certo papel em todo o fluxo de transferência dos mesmos direitos, dos quais é mais típico o contrato-promessa de com- pra e venda de imóveis.
2. Significado da pressuposição
Do processo de formação do regime do contrato-promessa, verifica-
-se que uma das razões do nascimento desta figura é a implementação do Princípio do Consensualismo na área da transmissão patrimonial. Este Princípio importa a simultaneidade da ocorrência da transmissão do di- reito de propriedade — incluindo a propriedade dos imóveis — e da celebração de contrato. Nas actividades de transacção na prática, o ven- dedor de bens tem a necessidade de reservar a propriedade e, assim, o contrato-promessa acaba por ser um meio previlegiado no intuito de adi- ar a ocorrência da produção de efeitos da propriedade.
Tendo sido desenvolvido durante longo espaço de tempo, a figura do contrato-promessa passa gradualmente a ser um modo de celebração adequado às mais variadas espécies de contrato. Emboa o âmbito de apli- cação desta figura tenha sido alargado com o desenvolvimento teórico, o recurso ou não a este modo de celebração de contrato-promessa/contrato prometido depende das necessidades reais das partes. De entre os que são susceptíveis de serem celebrados sob este modo de contrato-promessa/
/contrato prometido, os mais comuns são os respeitantes à transmissão de bens. De entre estes contratos que implicam a transmissão de bens, os mais frequentes ocorrem no âmbito da compra e venda de imovéis e de- mais situações que estão relacionadas com a modificação de direitos reais referentes a imóveis. O chamado contrato-promessa relativo à modifica- ção de direitos reais de imóveis não quer significar que o mesmo contra- to-promessa pode de per si produzir efeitos de modificação de direitos reais, mais sim o contrato prometido a celebrar em cumprimento do con- trato-promessa produzirá este efeito. Isto é, o contrato prometido a que o contrato-promessa corresponde é o que conduz à verificação da modifi- cação de direitos reais de imovéis3.
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3 Os contratos-promessa que integram esta espécie são: os de compra e venda de imóveis, os de alienação de empresas (quando os elementos constitutivos destas empresas incluem imóveis), os de permuta de imóveis, os de constituição de hipoteca sobre imóveis e os de partilha do património comum dos cônjuges.
Qual a razão de ser deste fenómeno? Na realidade, não custa muito a sua compreensão. Na prática, a aplicação ou não de uma figura jurídica está essencialmente dependente de a sua utilização ser vantajosa ou mes- mo necessária. A aplicação do Princípio do Consensualismo no âmbito da transmissão de bens faz com que os efeitos jurídicos não condigam com as necessidades reais, falha que carece de um suprimento recorrendo ao regime do contrato-promessa. Assim, ao longo da existência de con- trato-promessa, a área que mais necessita desta figura é na sua essência a transmissão de património. No sistema jurídico latino, as funções do contrato-promessa neste aspecto não são fungíveis4. Em regra, os negó- cios jurídicos relativos à modificação de direitos reais sobre imóveis care- cem de formas mais solenes, cujo cumprimento demora necessariamente certo período de tempo. Assim, se os contraentes pretendem uma relação de natureza vinculativa com celeridade, o contrato-promessa mostra que pode desempenhar estas funções. Mediante a celebração do contrato-
-promessa/contrato prometido, os contraentes podem estabelecer com rapidez uma relação obrigacional e, em seguida prosseguirem na satisfação, em tempo útil, das exigências formais impostas legalmente.
Neste sentido, a adopção generealizada do contrato-promessa nas situações de modificação de direitos reais sobre imóveis é devida às suas funções de adiamento da produção de eficácia real, por um lado, e ao seu papel de adiamento do preenchimento dos requisitos formais, por outro. Estas duas funções podem justamente satisfazer as duas necessidades emergentes das transacções. Por esta razão, as legislações de vários países sobre o contrato-promessa estabelecem regras específicas para a modifi- cação de direitos reais sobre imóveis. A título exemplificativo, em Portu- gal as duas inovações sobre o contrato-promessa que se verificaram nos anos oitenta do século passado limitaram-se ao contrato-promessa refe- rente à modificação de direitos reais sobre imóveis; em França, o regime do contrato-promessa regulado por um diploma avulso abrange apenas promessas em relação à modificação de direitos reais sobre imóveis; a Lei n.º 20/88/M de Macau também se cinge às promessas relativas à
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4 Enquanto noutras áreas, a aplicação da instituição do contrato-promessa nem sempre é devida às necessidades reais, mas essencialmente orientada pelo sistema. Com a criação da figura, a generalização do seu conceito e a sua simplicidade no aspecto da exigência formal seduzem os contraentes a recorrer a esta figura. As pessoas têm uma mentalidade contraditória, que é querem concluir as transacções pela forma mais simples possível mas, simultaneamente, pretendem uma maior protecção jurídica possível.
modificação de direitos reais no âmbito dos imóveis; a reforma da insti- tuição contrato-promessa no Código Civil Italiano a que se procedeu em 1996 (mormente quanto à introdução do regime do registo de contrato-
-promessa) não constituiu uma excepção, mantendo como seu objecto o contrato-promessa que implica a modificação de direitos reais sobre imóveis.
Na abordagem das relações entre o contrato-promessa e a modifica- ção de direitos reais é obrigatório tomar o processo no seu todo, que conduz à efectivação da transmissão de bens. Só quando é tomada a tran- sacção como evento nuclear, é que pode fazer-se a ligação do contrato-
-promessa e com a modificação de direitos reais, figuras que pertencem a campos diferentes do Direito Civil. No entanto, mesmo que seja tomada como nuclear a transacção, ainda não é possível estabelecer um relaciona- mento directo entre o contrato-promessa e a modificação de direitos reais, o que só se torna viável quando se trata o contrato prometido como um termo médio de entre os dois citados fenómenos. Das legislações dos diversos Países em que é reconhecido o regime do contrato-promessa, uma leitura simples das regras sobre os regimes respeitantes a contrato-
-promessa e a modificação de direitos reais não permite formar quase nenhuma impressão sobre a ligação entre o contrato-promessa e a xxxx- ficação de direitos reais. As relações entre o contrato-promessa e a modi- ficação de direitos reais só podem tornar-se bem visíveis, quando for feita uma compreensão sistemática sobre as relações entre o contrato-promes- sa e o contrato prometido, bem como sobre as relações entre o contrato e a modificação do direito, relações estas que em seguida estão colocadas num enquadramento de interpretação penetrando-as com a transacção enquanto núcleo. Por exemplo, não se verifica qualquer relacionamento aparente entre o contrato-promessa (artigo 404.º e seguintes) estabeleci- do no Livro II do Código Civil de Macau (Direito das Obrigações) e o regime de aquisição da propriedade (artigos 1241.º e 1242.º) consagrado no Livro III (Direito das Coisas) do mesmo. Só mediante a feitura em primeiro lugar de uma análise sobre as relações entre o contrato-promes- sa e o correspondente contrato prometido, conjugando em último lugar com o estipulado no artigo 402.º do mesmo Código Civil, é que podem ser reveladas as relações sinuosas entre o contrato-promessa e a modifica- ção do direito.
Por outro lado, o que não deve ser ignorado é que, nos países de sistema jurídico latino onde vigora o Princípio do Consensualismo na área de transmissão de património, uma vez considerada a transacção
uma unidade para efeitos de investigação, não pode proceder-se à análise quanto à modificação do direito, se não se tomar em conta o contrato- promessa. Isto é devido a que, em resultado do Princípio de Consensua- lismo, a perfeição do contrato e a modificação do direito ocorrem simul- taneamente; assim, só o contrato-promessa permite criar um espaço tem- poral que distancia o momento da transmissão de propriedade e o da vinculação jurídica. De entre todas as transacções, as mais complexas e consequentemente as mais carentes do direito objectivo, enquanto nor- mas de conduta e enquanto meios de intervenção como critérios de jul- gamento de último recurso, são justamente as transacções em que existe uma discrepância temporal entre a vinculação jurídica e a transferência de direitos.
Nada é novo no referido ponto de vista em que se trata a transacção como eixo principal que interrelaciona a modificação do direito e a vontade, pois já no Direito Romano, os jurisconsultos faziam análises quanto à modificação dos direitos até à concepção de figuras jurídicas tomando como contexto a transacção que liga a modificação do direito e o comportamento do Homem ou a sua vontade; mais tarde, o Princípio da Abstracção dos Negócios Jurídicos Reais de Savigny que veio tratar a entrega como um contrato fora do Direito das Obrigações5, tomou tam- bém a mesma realidade da vida ecónomica como objecto de subsunção.
Relativamente aos Países de sistema jurídico latino que consagram o regime do contrato-promessa, a visão de investigação sobre a modifica- ção de direitos reais sem comtemplar o regime do contrato-promessa é absolutamente incompleta; por outro lado, as críticas às especificidades do modelo de modificação de direitos reais processadas de acordo com o Princípio do Consensualismo sem considerar as relações entre o contra- to-promessa e a modificação dos direitos como uma globalidade, tam-
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5 “A entrega em si é um verdadeiro contrato, um contrato no Direito das Coisas, mas não um contrato no Direito das Obrigações. A entrega, muito embora não faça parte dos contratos no Direito das Obrigações (tais como o de compra e venda, o de permuta, entre outros), tem talvez como base estes últimos e essencialmente obrigações consti- tuídas previamente.”, cf. Xxxxxxx, «Sistema Jurídico Romano Contemporâneo»,«Direito das Obrigações, Livro II», Pg. 257, nota m, transcrição de Xxxx Xxxxxxx, «Estudos sobre o Princípio dos Negócios Reais — com Incidência sobre a Modificação do Direito de Proprie- dade no Direito Chinês e no Direito Germânico», Editora da Universidade de Política e Direito da China, edição 2002, Pg. 61.
bém não é completa. Neste sentido, o presente artigo pretende proceder a uma investigação das citadas três figuras — a saber “o contrato-promessa, o contrato prometido e a modificação do direito” — como uma unidade estrutural, estudando as relações entre si mesmas. Esta investigação con- junta que engloba o contrato-promessa e a modificação do direito real é a única maneira que permite uma análise de maior profundidade sobre as suas funções mais essenciais — a prorrogação da transmissão da propriedade. O presente estudo cobrirá também a esmagadora maioria de percentagem dos contratos-promessa em uso na prática.
II. Os requisitos da estrutura “contrato-promessa/
/modificação de direitos reais”
1. Generalidades
Relativamente à transmissão da propriedade (ou num conceito mais alargado, à modificação de direitos reais), quantos são os requisitos ne- cessários à sua efectivação e qual o relacionamento entre os mesmos, são pontos difíceis na investigação teórica do Direito Civil ao longo do tempo. Estas dificuldades não são devidas aos requisitos inúmeros e consequen- temente inidentificáveis, mas sim a que a delimitação do âmbito conceptual dos requisitos pode afectar directamente a estrutura do sistema do Direi- to Civil que diz respeito ao âmbito de bens, bem como à razoabilidade da sua estrutura.
Efectuada consulta à documentação primitiva do Direito Romano arcaico (mormente dos fragmentos de argumentos de vários jurisconsultos como Gaios6, Paulo7, Ulpiano8 e Giuliano9), verifica-se que os juris-
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6 “Na realidade, as res nec mancipi podem ser inteiramente revertidas a outrem mediante entrega, desde que sejam objectos físicos e daí a viabilidade da realização da entrega.” (Inst. Gai.2, 19) “Assim, se eu te entrego uma roupa, uma quantidade de ouro ou prata, por causa venditionis, causa donationis ou por outra causa, a referida coisa torna-se imediatamente tua, sempre que eu seja dono dela.” (Inst. Gai.2, 20). Ver Gaios (Antiga Roma), «Instituiciones», tradução de Xxxxx Xxxx, Editora da Universidade de Política e Direito, edição 1996, Pg. 84.
“Neste pagamento, se um devedor pagar a um menor um montante em dinheiro no sentido de efectivar o pagamento, o montante passa assim a pertencer a este menor. Porém o devedor não está por isso livre da respectiva obrigação, porque não cabe ao menor a exoneração de nenhuma dívida sem autorização do seu tutor. No entanto, caso
consultos romanos de então chegaram a discutir relações entre a “tradi- ção” que transmite a propriedade e sua causa e ademais que as opiniões não eram pacíficas. No entanto, o mais controverso eram as interpreta- ções feitas por jurisconsultos posteriores quanto a estes fragmentos de argumentos10. Justamente a partir destas interpretações dos léxicos jurí-
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o menor tenha beneficiado do respectivo montante em dinheiro e volte a insistir no pagamento, esta petição é susceptível de ser absolvida em virtude da excepção de dolo. (Inst. Gai.2, 84) Idem, Pg. 88.
7 “A entrega em si nunca transmite a propriedade, ela só pode produzir efeito de transmis- são do mesmo direito quando integra uma compra e venda ou demais causas legítimas.” cf. «Editum», Livro XXXI, in Digesto de Xxxxxxxxxx (D. 41, 1, 31). Ver: Xxxxxx Xxxxxxxx (Italiano), «Coisas e Direito das Coisas», tradução de Xxx Xxxxxxx, Editora da Univer- sidade de Política e Direito da China, edição 1999, Pg. 58.
8 Refere-se no «Digesto» de Xxxxxxxxxx (D.12, 1, 18, pr) um episódio de Ulpiano no seu Título VII d’«A Disputa»: “Se eu te der uma quantia em dinheiro a título de donativo, e se tu a receberes como um mútuo, segundo Xxxxxxxx, não havia doação, porque há-de ver-se sim há mútuo. Deixa-nos examinar se há mútuo. E eu penso que não há mútuo, pois o dinheiro não pode pertencer a quem o recebeu com uma vontade não correspondente.” Ver: Xxxxxx Xxxxxxx (Italiano), «Obrigação Contratual e Obrigação Quasi-Contratual», tradução de Xxxx Xxx, Editora da Universidade de Política e Direi- to da China, edição 1998, Pg. 69.
“Se eu te entregar dinheiro para efeito de depósito e se tu achares que o mesmo é dado como mútuo, assim, não produz efeito de depósito, nem efeito de mútuo. Se tu me entregares uma quantia em dinheiro em nome de mútuo e se eu achar que se trata de um comodato, igualmente o negócio não produz efeito algum. No entanto, se, em qualquer dos casos, o dinheiro for utilizado, cabe a quem empresta a protecção no âmbito de uma acção de reivindicação, para além da excepção de dolo.” Idem, Pg. 65.
9 “Quando acordamos com a entrega de uma coisa havendo disconrdância quanto ao seu motivo, acho que não há razão de ser para considerar a entrega ineficaz. A título exemplificativo, eu acho que tenho obrigação de entregar-te um terreno na qualidade de legado, enquanto tu achas que a entrega do mesmo tem como fundamento uma Stipulacio; mais, eu quero doar-te uma quantia em dinheiro, enquanto tu a recebes como um mútuo. Embora existindo divergências quanto ao motivo de entrega e sua recepção, nada impede que te transmita o direito de propriedade.”, «Digesto» de Xxxxxxxx, Xxxxx
XIII. Ver: «Coisas e Direito das Coisas», Xxxxxx Xxxxxxxx (Italiano), tradução de Xxx Xxxxxxx, Editora da Universidade de Política e Direito da China, edição 1999, Pg. 58. 10 Alguns acharam que as discussões entre os jurisconsultos da Antiga Roma incidiram sobre a questão da transmissão de propriedade depender ou não das causas, enquanto outros consideram que as divergências entre eles residem somente na interpretação da noção da causa. Ver Xxxx Xxxxxx, «Estudos sobre o Direito das Coisas», Editora
Xxxxxxx Xxxxxx (Hong Kong) S.A., edição de 2001, Pg. 144 e seguintes.
dicos do Direito Romano, a discussão sobre os requisitos necessários à transmissão de propriedade deu-se por estreada. A documentação primi- tiva do Direito Romano parece ser matéria prima sem sofrer modificação, com a qual os juristas de diferentes espaços temporal e territorial desen- volveram, através das variadas interpretações quanto à entrega e às suas causas, variados sistemas de modificação de direitos reais, processo que afectou até a estrutura dos sistemas do Direito Civil no seu todo11.
Durante toda a vigência do Direito Romano, as abordagens sobre os requisitos da transmissão da propriedade concentravam-se essencialmen- te nos aspectos de “causa” e de “tradição”, situação esta que se manteve inalterada para além da decadência da Escola dos Glosadores. No entanto, na sequência da florescência da Escola dos Comentadores, esta situação começou a mudar. Xxxxxx, estudioso da Escola dos Comentadores e um dos discípulos mais brilhantes de Xxxxxxxx, argumentou que a transmis- são da propriedade estava dependente, para além da entrega (tradição) e justa causa, do acordo ou vontade no mesmo sentido da transmissão da propriedade12. A partir daí, foi acrescentado mais um elemento “acordo” no seio dos estudos relativos aos requisitos necessários à transmissão da propriedade, passando assim a ser uma abordagem sobre qual o âmbito das noções de “acordo”, “causa” e tradição (entrega), bem como as rela- ções entre elas.
O aparecimento do sistema do contrato-promessa terá algumas im- plicações na discussão sobre os requisitos da transmissão de propriedade? Será que estes requisitos tradicionalmente considerados necessários à trans- missão da propriedade se mantêm válidos na estrutura do “contrato-pro- messa/modificação de direitos reais”? Caso afirmativo, qual o seu estatu- to jurídico? Quais são as relações existentes entre os mesmos requisitos? A redacção que se segue pretende efectuar uma investigação sobre estes pro- blemas tendo como ponto de partida estes requisitos tradicionais.
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11 Isto porque, nos diferentes Códigos Civis, a distinção entre as estruturas do direito das obrigações e do direito das coisas está intimamente ligadas à teoria dos negócios juridicos reais.
12 X.X. Xxxxxxx (alemão), «Estudos sobre Doutrinas da Aquisição de Propriedade», Pg. 26 e 27, transcrição de Xxxx Xxxxxxx, «Estudos sobre o Princípio dos Negócios Reais
— com Incidência sobre a Modificação do Direito de Propriedade no Direito Chinês e no Direito Germânico», Editora da Universidade de Política e Direito da China, edição 2002, Pg. 57.
2. A Causa, seu posicionamento na estrutura “contrato-
-promessa/modificação do direito real”
Conforme o exposto atrás, a discussão que versava sobre as causas da transmissão da propriedade tinha uma história muito mais longa do que a da abordagem do “acordo” ou da “vontade”. Desde a época do Direito Romano arcaico, os jurisconsultos deram já início à abordagem das rela- ções entre as causas e a transmissão da propriedade e da entrega. No entanto, decorridos milénios, desde a época do Direito Romano arcaico até à Idade Contemporânea, a abordagem das causas e transmissão de propriedade está ainda em curso. Houve um longo período em que os jurisconsultos concentraram os seus estudos no problema sobre “se a trans- missão da propriedade carece de justa causa”, mas a incidência contem- porânea muda gradualmente para a questão do conteúdo do conceito da “causa”. Em seguida, procedemos, antes de mais, a uma breve apresenta- ção das principais acepções da causa e sua área de actuação em diferentes épocas, passando à investigação sobre se a causa constitui um requisito nesta estrutura do “contrato-promessa/modificação de direitos reais”.
1) A causa enquanto justa causa de entrega
Conforme supra na parte de notas, foram referidos os léxicos jurídi- cos do Direito Romano dos jurisconsultos Xxxxx, Xxxxxxxx e Xxxxxxx nas quais eles abordaram as relações entre a entrega e as causas da transmissão da propriedade. No entanto, existiam contradições originárias nestes lé- xicos jurídicos. Sendo de reconhecimento geral que da maioria das docu- mentações do Direito Romano, tais como os léxicos de Xxxxx e Xxxxxxx, se pode deduzir que a transmissão da propriedade carece de uma causa, o léxico jurídico de Xxxxxxxx demonstra um pensamento em que a trans- missão da propriedade não depende dessa mesma causa. De facto, não era necessário interpretar o léxico jurídico de Xxxxxxxx no sentido de a transmissão da propriedade não carece de causa, uma vez que este jurisconsulto apontou somente para que a transmissão do direito de pro- priedade não deveria sofrer consequências originadas pelas divergências dos motivos que levam os agentes a efectuar a entrega de uma coisa e a recebê-la. Deste modo, o julgamento sobre se a transmissão do direito de propriedade carece de causa depende do modo como o intérprete enten- der a chamada causa ou justa causa13.
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13 Ver Xxxx Xxxxxx, «Estudos sobre o Direito das Coisas», Editora Jinqiao Wenhua (Hong Kong) S.A., edição de 2001, Pg. 146. O autor transcreve citações de Xxxxxxx
Relativamente ao conteúdo da causa, a documentação primitiva do Direito Romano revela interpretações muito divergentes. Os léxicos jurí- dicos atrás referidos citaram apenas e a título exemplificativo, uns casos em que tomaram em consideração as causas de compra e venda e de doação, exemplos que não possibilitam, de forma alguma, deduzir o âmbito da noção das chamadas causas com exactidão. No entanto, mediante empenho esforçado e contínuo, alguns estudiosos consegui- ram dominar, a final de contas, regras sobre a aplicação da causa no Direito Romano. A título exemplificativo, o jurisconsulto de Direito Xxxxxx Xxxxx concluiu que as justas causas ou aliás as justas causas de entrega são as seguintes: causa solvendi, causa venditionis, causa donationis, causa dotis, causa credendi, causa putativa, entre outras14, enquanto Xxx Xxx’an, jurista chinês da mesma área, argumentou recentemente que a “causa solvendi” reveste particular importância, de entre as citadas causas, para o desenvolvimento das teorias sobre a transmissão do direito de pro- priedade e as suas causas15.
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Xxxxx que referem que as diferenças entre os léxicos jurídicos de Xxxxxxxx e de Ulpiano não residem na necessidade ou não da causa.
14 Transcrição de Xxxx Xxxxxxx, «Estudos sobre o Princípio dos Negócios Reais — com Incidência sobre a Modificação do Direito de Propriedade no Direito Chinês e no Direito Germânico», Editora da Universidade de Política e Direito da China, edição 2002, Pg. 75.
15 Conforme Xxx Xxx’an, a causa solvendi reveste um significado especialmente importante. Transcreve-se aqui um extracto do seu artigo: “No intuito de preencher os requisitos exigidos pela ‘Justa Causa’, os jurisconsultos de Direito Romano interpretaram assim a própria ‘solutio’ — em vez da relação obrigacional que conduz à ocorrência da liquida- ção - como causa de entrega. No entanto, segundo vejo, na Ciência Jurídica do Direito Romano arcaico, o tratamento da ‘solutio’ como causa da entrega tinha as suas particu- laridades históricas, pois isto está relacionado com a origem da figura da ‘solutio’; assim, não pode afirmar-se que a causa solvendi assinalava uma estrutura abstracta, sem olhar para este contexto histórico. No Direito Romano, a ‘solutio’ é considerada desde logo, tal como a mancipatio e a dispensa da forma, negócio formal de solution per aes et libram e é uma via através da qual um devedor se liberta de uma obrigação assumida de igual modo por meio formal. Semelhante à compra e venda formal, a solutio implica inicialmente a transmissão efectiva da propriedade do objecto — esta transmissão da propriedade de objectos torna a sujeição obrigacional exonerada mediante uma contrapartida. Deste modo, no Direito Romano do período inicial, a solutio por si só já reúne todas as condições para ser uma “justa causa” de transmissão da propriedade; quanto à “causa” que origina a obrigação de que se pretende libertar através de um acto formal, ela não afecta de modo algum a transmissão de propriedade, em virtude do carácter formal da solutio. Cita-se, como exemplo: se Xxxx assumir, mediante
De qualquer modo, depois de analisados estes fragmentos do Direi- to Romano e de referenciados aos resultados das investigações de estu- diosos da idade moderna, podemos concluir que as chamadas justas cau- sas no Direito Romano tem um conteúdo bastante alargado e ambíguo e que as causas no Direito Romano são consideradas apenas nas relações de
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Xxxxxxxxxx, uma dívida de 10 moedas de ouro perante Xxxxx, quando Xxxx entregar a Xxxxx 10 moedas de ouro através de um acto formal que é a solutio, com vista a exone- rar-se da dívida, no aspecto jurídico, a causa directa desta aquisição de propriedade de Xxxxx será a solutio e não a Stipulacio celebrada anteriormente. Consequentemente, mesmo que fosse provada a nulidade daquela Stipulacio, a transmissão da propriedade dessa coisa, como objecto de solutio, não será posta em causa, uma vez que a solutio, como acto formal, se serve ainda da causa de que resulta a transmissão dessa coisa. No início, os efeitos da transmissão de propriedade produzidos em face da solutio foram absolutos e definitivos. No entanto, em virtude da verificação das situações de solutio indebiti, foi introduzido mais tarde o direito de acção conditio que visava balançar os interesses das partes.
A partir do período clássico, a solutio estava perdendo a sua solenidade, passando a ser uma expressão geral de liquidação, em face da obrigação de dare (obrigação cujo con- teúdo era a transmissão de propriedade). Ainda no exemplo anterior, um acto de sim- ples entrega de moedas de ouro a Bento por Xxxx (acto informal), de per si era já consi- derado solutio. Deste modo, a solutio deixou de ser um acto autonomamente considerdo neste período. No aspecto lógico, ela não deveria continuar a revestir-se das funções de causa legal de transmissão de propriedade. Mas, os jurisconsultos do Direito Romano, como cumpridores da tradição, não chegaram a alterar as funções originariamente atri- buídas pelo direito, ainda que o conteúdo material da solutio tenha sofrido alterações. Assim, o acordo entre as partes relativo à transmissão da propriedade de um objecto e com vista a efectuar uma liquidação pode constituir “justa causa” para a produção dos efeitos de transmissão da propriedade, muito embora as obrigações de dare pudessem simplesmente não existir.>, <Sem bem que se tivesse livrado da causa solvendi formal, o seu âmbito de actuação é ainda limitado — pois os efeitos de liquidação da entrega abrangem apenas uma única situação em que existe obrigação de transmissão de pro- priedade de um objecto. Por conseguinte, se a base da entrega deixa de ser uma relação jurídica obrigacional de que decorre um dever de dare, jamais pode considerar-se “a solutio” uma causa de entrega, situação em que não pode deixar de se encontrar uma verdadeira relação de transacção como justa causa da entrega. É o caso as chamadas causa venditionis, causa donationis, causa dotis, entre outras. Uma vez que a compra e venda, doação e constituição do dote não implicam qualquer dever de transmissão de propriedade, a entrega produz os efeitos de transmissão de propriedade, só quando existem “relações de compra e venda”, “relações de doação” ou “relações de financia- mento com o dote” realmente válidas.>. Cf. Xxx Xxx’an, «A Natureza Jurídica da Entre- ga e Abordagem do Desenvolvimento da Teoria das Causas», constante da coluna de artigos de leitura recomendada da Rede da Ciência Jurídica da China, 4 de Março de 2004 (http//xxx.xxxxx.xxx.xx).
transacções legais de determinado conteúdo — a transmissão de propriedade. É de notar que, aquilo com que os jurisconsultos do Direito Romano arcaico se estavam a preocupar era com a solução das questões jurídicas concretas e não com a construção do sistema abstracto e que os conceitos de “causa”, “entrega”, “contrato” e “direito de propriedade”, entre outros, não chegaram a sofrer uma abstracção de alto grau16.
Verifica-se assim, que as noções da causa não chegaram a ser unifor- mizadas e que o termo “causa” (ou “justa causa”) que aparece nos dife- rentes documentos do Direito Romano pode apontar para factos de di- versos âmbitos. Daí que, às vezes, as causas parecerem estar subjacentes ao contrato17, podendo aparecer nas demais situações outros factos a que os contratos se referem.
Uma única coisa que pode ser afirmada é que no Direito Romano se pretendia, mediante a apresentação de uma causa, justificar a legitimida- de da entrega na transmissão da propriedade, até o ajustamento dos efei- tos da transmissão de propriedade. Na realidade, muitos estudiosos con- temporâneos estão atentos ao facto de que a causa no Direito Romano está muitas vezes relacionada com a transferência de bens18. Poderia di- zer-se que, a causa no Direito Romano é aplicada essencialmente no sen- tido de “justa causa da entrega (da transmissão da propriedade)19, porquê no Direito Romano é necessário justificar a legitimidade da entrega atra-
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16 Xxx Xxx’an, «A Natureza Jurídica da Entrega e Abordagem do Desenvolvimento da Teoria das Causas», constante da coluna de artigos de leitura recomendada da Rede da Ciência Jurídica da China, 4 de Março de 2004 (http//xxx.xxxxx.xxx.xx).
17 Como exemplo: Gaio alegou que compra e venda é justa causa (cf. citações atrás referi- das por Gaio na sua obra “Instituiciones». Assim, o contrato de compra e venda é trata- do como a forma de exteriorização da causa, estando esta última subjacente no contrato.
18 Muitos estudiosos referem a que a causa está essencialmente relacionada à transferência ou entrega de bens. Cita-se como exemplo, Xxxxx Xxxx xx Xxxxxxxxxxx (português), Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, segunda edição, ano 2002, Pg. 615; Xxx Xxx’an, «A Natureza Jurídica da Entrega e Abordagem do Desenvolvimento das Teorias de Causas», ponto 4, constante da coluna de artigos de leitura recomendada da Rede de Ciência Jurídica da China, 4 de Março de 2004 (http//xxx.xxxxx.xxx.xx).
19 Muito embora haja estudiosos que indica que, no Direito Romano arcaico, a causa era uma condicionante relativamente a uma obrigação que não acontecia sem a sua “cau- sa” (causa civilis obligandi). Ver: Xxxxx Xxxx xx Xxxxxxxxxxx (português), Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, segunda edição, ano 2002, Pg. 613.
vés de uma justa causa? Isto é devido a que, na transmissão de proprieda- de a entrega, como comportamento factual, de per si não está dotada de conteúdo de vontade alguma, e consequentemente não consegue demons- trar a finalidade que se pretende realizar. Por sua vez, a finalidade ou o motivo é o único critério possível no Direito para formular juízo de valor quanto ao comportamento humano, quer no âmbito do Diretio Criminal, quer no âmbito do Direito Civil. Desta forma, um comportamento deve ser naturalmente reconhecido pelo Direito quando a finalidade do mes- mo se conformar com o sistema do valor do Direito.
No entanto, estas abordagens genéricas sobre as influência da finali- dade ou motivo sobre o comportamento não permitem construir um quadro técnico-jurídico dotado de operacionalidade. No Direito Romano, a finalidade ou motivo é ordenado e analisado com consciência ou sem ela, construindo assim um sistema de “justas causas” que se interligam de forma ambígua com funções exemplificativas semelhantes à teoria de tipicidade constituindo, desta forma, um instrumento jurídico operacional. Trata-se de uma contribuição com significado demarcador. Porém, a teoria de justas causas era ainda excessivamente ambígua, não podendo servir de critério estável que contribui para a resolução das questões de legimi- tidade da entrega.
2) A Causa como requisito do contrato
Na sequência do descobrimento de que a transferência da proprie- dade carece de acordo entre as partes pelo estudioso da Escola dos Comentadores da Idade Média Baldus, a discussão no âmbito da justa causa abrange desde já este elemento. Após o aparecimento da Escola de Direito Natural, a vontade (o acordo) veio gradualmente excluindo os demais requisitos e passou a ser o único requisito do contrato. Nos tem- pos iniciais, esta afirmação foi considerada absoluta, pois estudiosos como Xxxxxxx e Xxxxxxxxxx não desmentiram a entrega como uma forma de expressão da vontade de transmissão da propriedade, embora sublinhan- do as funções predominantes da vontade. Decorrido algum tempo, estu- diosos como o francês Domat foi ainda mais longe, ao ponto de abando- nar completamente a entrega como requisito. Domat introduziu de novo, na sequência de ter estudado a documentação do Direito Romano, a noção da causa como elemento do contrato, referindo que “a falta da causa determina a inexistência da obrigação; no contrato, as duas partes
trocam coisas por coisas, coisas por serviços ou ainda serviços por serviços, passando assim a obrigação de uma parte, a causa da obrigação da outra parte.” “Nos contratos em que apenas uma parte assume obrigação, tal como o contrato de depósito, a causa de assunção de uma obrigação é a prestação efectuada anteriormente. Nos contratos gratuitos, tal como no de doação, a causa é o motivo legítimo e justo que conduz à pratica de uma liberalidade20”. No Século XVIII, Xxxxxxx, na sucessão da teoria de Domat, concluiu que no contrato oneroso, a causa da prestação de uma parte é o dever da prestação da contraparte; enquanto no contrato gratuito, a causa é a intenção de concessão de um favor. Xxxxxxx definiu ainda a “causa do contrato” como as funções económicas que servem de critério para a distinção de contratos e, a par disso, “a causa da obrigação” como fundamento da legalidade. Finalmente, referiu ainda que “o erro da causa” ou “a falta da causa” conduz à nulidade do contato. O legislador do Có- digo Civil Francês, na consequência das influências da doutrina de Xxxxxxx, trata a causa como elemento do contrato21. Em França, as teorias de Domat e Pothier respeitantes à causa são consideradas teorias tradicionais.
Depois de promulgado o Código Civil Francês, registou-se um progesso significativo nas teorias da causa. Xxxxx Xxxxxxxx, estudioso francês, desenvolveu com base nas teorias tradicionais de Domat e Xxxxxxx, uma teoria da causa mais ou menos completa. Foi referido pela mesma que negócio jurídico é um negócio praticado com determinada finalida- de que é a intenção dos agentes, ou seja, a causa. De entre as causas dos negócios jurídicos, Capitant distingue “causa-fim” e “causa-motivo”, tendo a primeira um objectivo económico-social que leva o agente a tomar a decisão de praticar o negócio jurídico, enquanto a última se baseia em razões pessoais e indirectas (razões de ordem exclusivamente psicológica)22 que não constituem parte integrante do negócio jurídico. Foi menciona- do outrossim que a “causa-fim” é bilateral, enquanto a “causa-motivo” é individual e contingente. Mais foi indicado que, no contrato sinalagmático,
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20 Transcrição de Xxxxx X. Compagnucci de Caso (argentino), Manual de obligaciones, Editorial Astrea, edição de 1997, Pg. 41 a 42.
21 Xxxxxxx Xxxxxxx (francês), Traité de Droit Civil — La formation du contrat, L.G.D.J,
3.a edição, 1993, Pg. 825.
22 Xxxxx Xxxxxxxxx (francês), De la causa de las obligaciones, versão em espanhol, Pg. 102, transcrição de Xxxxx X. Compagnucci de Caso (argentino), El negócio jurídico, Edito- rial Astrea, edição 1992, Pg. 175.
a causa é constituída pela contraprestação a efectuar na execução do contra- to e pelas finalidades previstas na ocasião da conclusão do contrato; en- quanto no negócio unilateral, a causa é a vontade de resolver ser vinculado; nos contratos reais a causa por que uma parte assume um dever de restitui- ção de uma coisa (tal como comodatário, depositário ou credor pigno- ratício) é que numa prestação anterior lhe foi entregue uma coisa. Na realidade, foram distinguidas causas remotas e causas recentes nas teorias de causas desenvolvidas por estudiosos franceses. Mais tarde, alguns estu- diosos italianos23 conseguiram progressos no sentido de definir causa como finalidades económico-sociais específicas de cada tipo de contrato ou seus factores objectivos económicos inerentes a cada tipo de contrato24.
Em todas as situações supracitadas, as causas surgem em simultâneo com o contrato, sendo as causas parte intergrante da declaração de vonta- de do negócio jurídico contratual. Assim, o credor tem que provar a exis- tência da causa, sendo dois os requisitos da declaração de vontade do contrato / negócio jurídico, a saber: a causa e o acordo de ambas as partes25.
Nos anos cinquenta do passado século, alguns estudiosos latinos, com destaque para o francês Planiol26, apresentaram a “tese anticausalista”
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23 Tais como Xxxxxxxx e Xxxxxxxx, ver Xxxxxx xx Xxxxxxx (português), Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Coimbra, 7.a reimpressão, ano 1992, Pg. 345.
24 Estudiosos latinos consideram a teoria da causa de Capitant uma das doutrinas subjec- tivas e a de Coviello e Xxxxxx doutrina objectiva. (Ver Xxxxx X. Compagnucci de Caso [argentino], El negócio jurídico, Editorial Astrea, edição 1992, Pg. 176; Xxxxxx xx Xxxxxxx [português], Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Coimbra, 7.a reimpressão, 1992, Pg.345). Na realidade, os estudiosos franceses nunca consideraram as teorias de Xxxxx, Xxxxxxx e Capitant doutrinas subjectivas; por exemplo, o estudio- so francês Xxxxxxx Xxxxxxx designou as teorias tradicionais “concepção subjectiva tem- perada de elementos objectivos (la conception subjective tempérée d’éléments objectifs) (Ver Xxxxxxx Xxxxxxx [francês], Traité de Droit Civil — La formation du contrat, L.G.D.J, 3.a edição, 1993, Pg. 827). Ainda mais radical, Xxx Xxxx, estudioso chinês, chama as teorias tradicionais doutrinas da causa objectiva (Xxx Xxx Xxxx, «Direito do Contrato Francês Contemporâneo», Editora Falü, edição de 1997, Pg. 154).
25 Xxxxx X. Compagnucci de Caso [argentino], El negócio jurídico, Editorial Astrea,
edição 1992, Pg. 176.
26 Além de Planiol, os adeptos mais famosos são Baudrey Lacantinerie e Cornil da França, Xxxxxx e Xxxxxxx de Itália, Xxxxx e Xxxxxxx da Bélgica, bem como Xxxxxx xx Xxxxxxx de Portugal (parece-nos que deva considerar-se Xxxxxx Xxxx Xxxxx, aluno de Xxxxxx xx Xxxxxxx, como seguidor deste último, pois na sua famosa obra “Teoria Geral do Direito Civil” não conhece abordagem alguma quanto à causa de negócio jurídico).
ou tese de negação da causa que considera a concepção de causa irrealista27. No entanto, quer em França, quer nos demais países latinos, esta tese anticausalista acabou por não ser aceite28.
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27 A propósito da tese anticausalista, ver Xxxxx X. Compagnucci de Caso [argentino], El negócio jurídico, Editorial Astrea, edição 1992, Pg. 181; além disso, o estudioso chinês Xxx Xxxx tinha uma abordagem quanto a esta tese muito detalhada (o teor pouco difere do do jurista argentino), referindo que as duas razões mais relevantes da tese anticausalista são: “ 1.a Falta de exactidão na definição tradicional da causa: no contrato sinalagmático, os deveres de ambas as partes ocorrem simultaneamente. Em termos lógicos, o resulta- do é necessariamente posterior à razão; assim, não há possibilidade de existir um dever de uma parte em resultado de outro dever da contraparte.” “2.a A concepção tradicio- nal da causa é denecessária: nos termos do artigo 1131.º do Código Civil Francês, o contrato pode sofrer enfermidade de nulidade em virtude de falta de causa, erro de causa e ilicitude da causa. Na realidade, a nulidade só pode verificar-se em duas situações, uma vez que o erro de causa é proveniente do mau entendimento do devedor, isto é, a causa que o devedor presume é de facto inexistente; no entanto, isto pode ser conside- rado uma situação particular de falta de causa.” Além disso, “Em ocasiões diferentes, a falta da causa ou está misturada com a falta de acordo, ou está misturada com a falta de objecto. Relativamente à ilicitude da causa, nem sequer é aplicável em alguns dos contratos, enquanto noutros se confunde com a ilicitude de objecto.” Assim, a teoria tradicional não tem valor algum. (cf. Xxx Xxxx, «Direito de Contrato Francês Contemporâneo», Editora Falü, edição 1997, Pg. 154 a 156).
28 Cf. Xxxxx X. Compagnucci de Caso (argentino), El negócio jurídico, Editorial Astrea, edição 1992, Pg. 181. A maioria das doutrinas reconhece que as teorias da causa não contrariam a lógica e têm o seu espaço de actuação, mercendo assim o nosso apreço. Relativamente à questão da lógica, as doutrinas contemporâneas alegam que, se se proceder à substituição da expressão constante da teoria tradicional de causa de “a causa por que uma parte assume um dever é a outra parte assumir dever”, por “a causa por que uma parte assume um dever é fazer a outra parte assumir dever”, a questão da lógica está resolvida. Quanto à questão da falta de necessidade, o tipo de contrato a que se aplica é determinante. Se se refere apenas aos contratos reais, a afirmação respeitante ao tratamento da causa como uma entrega efectuada anteriormente da contraparte, é desnecessária (porém, sujeita-se constantemente à interrogação sobre se os contratos reais se consideram um dos tipos de contrato. Ver argumentos sobre o mesmo contrato no presente artigo). No entanto, a teoria de causa é absolutamente aplicável aos actos respeitantes a determinada área, tal como a do crédito ou título no âmbito do Direito Comercial. No caso de contrato bilateral, se não é de admitir a causa como requisito exigido para a conclusão do contrato, resta apenas que os deveres contratuais com falta de objecto ou com objecto ilícito o enfermem de nulidade, devendo continuar a ser válidas as demais obrigações. Quer isto dizer que, no contrato de compra e venda, caso as obrigações sofram de nulidade em virtude da falta de objecto ou de ilicitude deste último, o comprador ainda deve pagar o preço, uma vez que o objecto da obrigação do comprador é possível e lícito. (cf. Xxx Xxxx, «Direito do Contrato Francês Contemporâneo», Editora Falü, edição 1997, Pg. 154 a 156).
Verifica-se, conforme análises atrás apresentadas, que no sistema ju- rídico latino, a teoria causalista considera na sua essência a causa, ou melhor, a causa e o acordo como requisitos do contrato. Se se admitir esta teoria causalista, a causa está sempre integrada no contrato, indepen- dentemente do tipo do mesmo. Quer isto significar que, logo na altura da celebração do contrato, a sua causa surge. Deste modo, não constituem excepção os contratos que implicam a transmissão de bens. Assim, para além da doação, cuja causa decorre de uma intenção generosa, todos os contratos onerosos de transmissão de bens têm como causa uma contra- prestação, verficando-se que a causa está integrada no contrato, na con- clusão do contrato.
Justamente pela razão de que a causa está integrada no contrato, a ilicitude da causa ou a inexistência da causa determina a nulidade do contrato e, bem assim, a nulidade da respectiva transmissão de património. Daí que, esta modalidade de transmissão de bens seja apelidada de Mo- delo Causalista. No entanto, este Modelo Causalista foi apenas uma apre- ciação feita sobre o sistema de transmissão de bens consagrado no orde- namento jurídico francês, segundo a óptica da doutrina alemã que foca na transmissão de bens. De facto, tomando como referência o processo da evolução da teoria causalista no Direito Francês (e até o sistema do Direito Latino no seu todo), não foi tomada em conta a questão de trans- missão de bens em especial. As necessidades da causa no contrato de trans- missão de direito não difere das necessidades em qualquer espécie de contrato. Por exemplo, nos termos da teoria causalista supracitada, caso um contrato bilateral tenha como fim uma prestação de serviço a uma outra parte e não uma transmissão de bens, a questão da causa nada dife- re nos demais contratos cujo conteúdo é a transmissão da propriedade. No Direito Francês, a causa é apenas considerada um requisito da con- clusão do contrato.
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No entanto, em Portugal, em virtude da imensa influência do Prof. Xxxxxx xx Xxxxxxx, parece que a teoria anticausalista ainda ocupa uma boa parte da quota de mercado (ver Xxxx xx Xxxxxx Xxxxxx [português], Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, edição 1985, reimpressão em 1995, Pg. 267).
Além disso, conforme apresentação de Xxx Xxxx, a teoria contemporânea de causa fran- cesa tende a reintegrar no âmbito da causa o motivo e a causa remota. (cf. Xxx Xxxx,
«Direito do Contrato Francês Contemporâneo», Editora Falü, edição 1997, Pg. 158 a 159).
3) A causa como base de legitimidade de atribuição
O que há de diferente entre o Direito Francês e o Direito Alemão é que, no primeiro a causa é considerada um requisito para a conclusão de todos e quaisquer contratos29, enquanto no segundo a causa não chegou a ser considerada requisito para a conclusão de negócios jurídicos. A abor- dagem sobre a causa no Direito Alemão tem como objectivo principal a justificação da tese dos negócios jurídicos reais des-causais30.
Porquê razão é que o Direito Civil Alemão procura justificar o negó- cio real abstracto ou des-causal e com a teoria causalista? Na realidade, isto tem a ver com a estrutura da teoria dos negócios reais.
Como é sabido, o grão mestre do Direito Xxxxxx Xxxxxxx desenvolveu, com base na teoria da separação entre a alienação da propriedade e o negócio jurídico básico de Hugo31, a teoria dos negócios juridicos reais abstractos cuja essência é tratar a entrega, que tem sido considerada um comportamento factual, como um verdadeiro contrato32, ou seja, o chama-
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29 Por não existir uma Parte Geral no Código Civil Francês, as disposições sobre requisi- tos da conclusão dos contratos são, na prática, equivalentes às estipulações relativas aos requisitos para a conclusão dos negócios jurídicos. Por isso, a teoria causalista no Direi- to Civil Francês pode ser considerada aplicável aos negócios jurídicos.
30 Zeng Shixiong, <A Parte Geral do Direito Civil no Presente e no Futuro>, Editora da Universidade de Política e Direito da China, edição 2001, Pg. 178; Flume, civilista alemão contemporâneo, referiu ainda mais directamente que “actos causais e actos abstractos fazem parte do âmbito de actos de atribuição” (Ver Xxxx Xxxxxxx, ob. cit. Pg. 271).
31 Ver Xxxx Xxxxxxx, «Estudos sobre o Princípio dos Negócios Reais — com Incidência sobre a Modificação do Direito de Propriedade no Direito Chinês e no Direito Germânico», Editora da Universidade de Política e Direito da China, edição 2002, Pg. 58.
32 Escreveu o autor na sua obra intitulada «Sistema do Direito Romano Contemporâneo, Livro III», Secção 140.a: “O contrato de direito privado é o mais complexo e mais frequente. Em todos os regimes jurídicos é susceptível de aparecer contratos, que são forma legal mais importante. Isto acontece antes de mais no âmbito do Direito das Obrigações, mais precisamente primeiro que tudo a constituição de obrigações, inclu- indo a extinção de obrigações. Além disso, no Direito das Coisas, eles são também adoptados amplamente. Assim, a entrega é um verdadeiro contrato, pois ela tem todas as características constantes da concepção do contrato: ela contempla as declarações de vontade dos interessados relativamente à transmissão de posse e propriedade das coisas e serve de base para o estabelecimento da relação jurídica entre os agentes. A declaração de vontade em si não é suficiente para constituir uma transacção completa, salvo se
do contrato real. Esta invenção teórica de Savigny é uma engenharia sis- temática de muita complexidade, cujo processo de demonstração é sufi- ciente para explicitar um conhecimento aprofundado do Direito Roma- no e uma criatividade do autor fora do comum33.
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existir um comportamento extrínseco que é a aquisição efectiva da posse da coisa; no entanto isto não pode desmentir a sua natureza contratual. Igualmente, a servidão resulta normalmente do contrato, à semelhança da transmissão de propriedade, que é realizada com a entrega ou basta um contrato simples para sua efectivação. O direito de enfiteuse, o direito de superfície e o direito de penhor são resultados de contrato, po- dendo até não haver lugar à entrega como afirmação errada. A natureza contratual daquele comportamento é omitida com frequência em ocasiões relevantes, uma vez que não conseguem separar o contrato obrigacional daqueles comportamentos que muitas vezes o acompanham. Na hipótese de compra e venda dum prédio, é habitual ligá-la à compra e venda no âmbito do Direito das Obrigações, o que de certeza é correcto. Só que do que se está esquecido é que a entrega subsequente é também um contrato, um contrato que é completamente diferente de qualquer compra e venda. De facto, a conclusão do negócio só acontece com a entrega. Nas situações menos comuns em que existe apenas entrega mas não obrigação precedente, podemos verificar com clareza esta confusão. Por exemplo, na situação de doação de certa esmola, foi feito um verdadeiro contrato, mas não uma obrigação, sendo as pretensões convergentes dos interessados em dar e receber; além disso, o aspecto em questão pode ser esclarecido ainda na constituição de penhor (hipoteca) sem posse, em que o contrato apenas fixa o direito de penhor de natureza real, sem sequer poder verificar-se uma obrigação. Com vista a distinguir com maior clareza estas situações, podemos designá-los contratos reais (dingliche verträge).” “A entrega é um verdaderio contrato, um contrato no Direi- to das Coisas, mas não um no Direito das Obrigações. Embora a entrega se distinga dos contratos no Direito das Obrigações (tais como, a compra e venda e a permuta, entre outros), pode ter como base nestes últimos contratos a entrega e essencialmente o dever de entrega constituído anteriormente.” Xxxx Xxxxxxx, «Estudos sobre o Princí- pio dos Negócios Reais — com Incidência sobre a Modificação do Direito de Proprie- dade no Direito Chinês e no Direito Germânico», Editora da Universidade de Política e Direito da China, edição 2002, Pg. 59; ver também, Xxx Xxxxxxxxx, «Princípio de abstracção dos negócios jurídicos reais — Características do Sistema Jurídico Alemão», in «Teses sobre Direito das Coisas», Pg. 652.
33 De facto, na construção do seu Princípio dos negócios jurídicos reais, Xxxxxxx procedeu
à investigação sob a camuflagem do Direito Romano. Pode dizer-se que o tratamento da entrega como um contrato é uma interpretação dedutiva completamente nova do Direito Romano. Da documentação originária do Direito Romano referida atrás, veri- fica-se que a entrega no Direito Romano arcaico não é meramente um negócio de transferência da posse, mas um negócio que transmite a propriedade. Além disso, as doutrinas jurídicas existentes sobre a necessidade da causa na entrega da propriedade em transmissão, juntamente com o profundo conhecimento do mesmo jurista sobre o regime de posse e o modelo da transmissão de propriedade popular naquela altura de
Xxxxx Xxxxxxx considerado a entrega um contrato que conduzia directamente à modificação do direito real, o jurista encontrou um pro- blema pré-existente no Direito Romano: embora a entrega34 possibilite demonstrar a transmissão da propriedade na sequência de uma parte o querer fazer voluntariamente e daí conter características do contrato, exis- tem muitas limitações para tratar a entrega como declaração de vontade. Independentemente da dialética a que se procedeu, o que a entrega, como declaração de vontade, pode mostrar limita-se à vontade de transferência da posse: à voluntariedade da própria transferência. A entrega não conse- gue demonstrar a razão por que uma parte transmite a propriedade (e a posse), uma vez que, a nível objectivo, a entrega, ao fim e ao cabo, não é mais do que um comportamento factual.
As experiências obtidas no âmbito do Direito Natural e do Código Civil Francês revelam que a eficácia do contrato depende do motivo ou da finalidade dos interessados (aliás, da causa); na sequência de Xxxxxxx considerar a entrega um verdadeiro contrato, a finalidade ou a causa que leva as partes a praticar um negócio já não é susceptível de averiguar. Obviamente, o corte das relações entre a transmissão da propriedade e o motivo dos agentes não é compatível com as ideias de equidade e justiça consagrado no Direito. Mesmo que os agentes expressem a sua voluntariedade de transmitir a propriedade de uma coisa mediante a entrega, é impossível afirmar que não existe qualquer relação entre a lega- lidade do motivo de transmissão e o resultado do negócio — isto é, a
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“título” + “forma”, foram os elementos que contribuiram para a criação do Princípio da abstracção dos negócios jurídicos reais por Xxxxxxx.
Relativamente a esta teoria, a obra intitulada <A Origem do Princípio dos Negócios Reais e Seu Significado> da autoria do Professor Xxx Xxxxxxxxx é a primeira que introduziu sistematicamente a mesma teoria na R.P. da China. Quanto aos estudiosos que procedem à análise mais promenorizada de todos os elementos abrangidos pelo Princípio dos negócios jurídicos reais, deveria destacar-se o Dr. Xxxx Xxxxxxx e a sua obra «Estudos sobre o Princípio dos Negócios Reais — com Incidência sobre a Modi- ficação do Direito de Propriedade no Direito Chinês e no Direito Germânico».
34 É de notar que, com base na sua obra dos primeiros anos intitulada <A Posse>, a
entrega referida por Xxxxxxx não é de forma alguma mera entrega verdadeira, mas, isto sim, uma entrega em sentido mais lato no conceito de “constituto possessório”, entre outras. Ver Xxx Xxxxxxx’x Treatise on Possession, tradução em língua inglesa de Xxxxxxx Xxxxx, Hyperion Press Inc., edição de 1979, Pg. 205 e seguintes, nomeadamente Pg. 236.
transmissão de propriedade — (embora seja polémica a sua forma de relacionamento). Assim, Xxxxxxx é obrigado a arranjar para a entrega, que é considerada um verdadeiro contrato, um requisito complemen- tar suficiente para a sua justificação. Neste sentido, referiu que “a entrega, apesar de ser diferente dos contratos no Direito das Obrigações, pode ter como base estes e essencialmente a obrigação constituída anteriormente35.” “A sua existência e os seus efeitos são independentes do substrato verdadeiro ou errado de um negócio”36.
A investigação efectuada por Xxxxxxx contribuiu para a estruturação de um enquadramento sistemático de separação dos contratos no Direito das Coisas e dos contratos no Direito das obrigações; no entanto, ele não chegou a efectuar uma concepção promenorizada e articulada das figuras jurídicas abrangidas pelo enquadramento, obra que foi levada a cabo por juristas posteriores a Xxxxxxx. Embora Xxxxxxx tenha inventado a teroria dos negócios jurídicos reais tratando a entrega como contrato, houve ain- da longo caminho a percorrer para o esclarecimento mais aprofundado quanto ao âmbito da noção do negócio real e da noção da causa, bem como as relações entre ambas.
Na sequência da apresentação da teoria de Xxxxxxx, as opiniões dos juristas alemães sobre o âmbito exacto da causa não se mostraram uniformes. A título exemplificativo, Puchta achava que “a justa causa tem apenas a ver com a vontade concertada após negociação sobre o dar e a aquisição de propriedade, não estando os restantes conteúdos do ne- gócio jurídico, regra geral, abrangidos pela justa causa.” Xxxx Xxxx opi- nou que “a causa é o fundamento jurídico mediato e único da transmis- são de bens.” Xxxxxxxx afirma que “a vontade de transmissão de quem entrega depende de um fundamento — a causa, uma vez que, o facto de uma pessoa fazer reduzir o seu património mediante um negócio jurídico tem como justificação mais racional a mesma ter um determinado objec- tivo que a conduz a fazer assim. Este fundamento constitui uma marca identificadora das finalidades da transmissão, porque na entrega estas mesmas quase não chegam a ser explicitados em particular e se deduzem essencialmente dos negócios que servem de base”37.
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35 Cf. Xxxx Xxxxxxx, ob.cit., Pg. 61.
36 Cf. Xxxx Xxxxxxx, idem, Pg. 92.
37 Todos conforme Xxxx Xxxxxxx, idem, Pg. 96 a 100.
Até aos finais do Século XIX, Xxxxx Xxxxxx inventou uma figura do negócio de atribuição (Zuwendungsgeschäfte)38 no âmbito do Direito Patrimonial com base nas abordagens pré-existentes. No Século XX, os juristas alemães passaram a tomar como núcleo atómico o negócio de atribuição, ligando as concepção de variados níveis como o negócio de atribuição, o negócio jurídico real e a causa, fazendo com que os concei- tos e o sistema do Direito Civil se tornem mais rigorosos. Referiram Enneccerus/Xxxxxxxxx que, “um negócio através do qual alguém faz com que outrem obtenha bens é conhecido pelo negócio de atribuição”. Xxxxx considerou que, “Relativamente ao negócio patrimonial, distinguem-se negócio de atribuição e negócios que não abarcam a atribuição. A atri- buição significa fazer outrem obter bens e benefícios. De acordo com o critério de onerosidade, pode-se proceder a uma classificação mais detalhada.” “Os negócios causalistas e os negócios abstractos fazem parte da área dos negócios de atribuição.” Quanto a esta matéria Xxxx Xxxxxxx, estudioso chinês, tirou uma conclusão que se resume como segue: “Os negócios de atribuição consistem em um agente, mediante declaração de vontade, fazer transmitir um interesse patrimonial de uma parte para uma outra parte. Assim, actos que não fazem parte do negócio jurídico não podem ser negócios de atribuição, embora estes negócios abranjam trans- missão de interesses patrimoniais de uma parte para outra parte (tais como: comportamentos factuais como mistura ou transformação); negócios ju- rídicos que não implicam interesses patrimoniais (por exemplo: contato de adopção) não podem revestir a forma de negócios de atribuição; negó- cios jurídicos que implicam interesses patrimoniais sem estar ligados à transmissão destes interesses de uma parte para a outra também não são negócios de atribuição (como o abandono de propriedade). Os negócios de atribuição diferem dos negócios no Direito das Coisas, pois os negó-
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38 Relativamente aos negócios de atribuição, Xxxxx Xxxxxx referiu que “no sentido mais estrito, pode interpretá-lo como segue: os negócios de atribuição (Geben) são negócios jurídicos que produzem efeitos de transferência de interesses de um património para outro, negócios que carecem de duas declarações de vontade compatíveis, uma consiste em dar e consequentemente diminuir o património de disponente, e outra consiste em aceitar e consequentemente em aumentar o património do disponente. (Transcrição de Xxxx Xxxxxxx, idem, Pg. 275, autor este que citou que o último disponente em causa deveria referir-se ao adquirente). “Em sentido lato, a alienação de um direito é devida à vontade do alienante, a sua realização nem sempre depende de um negócio jurídico; por outro lado, em todo o acto permissivo, o agente visa fazer com que ou- trem obtenha valores pecuniários positivos mediante esse acto e daí a realização do acto.” (Transcrição de Xxxx Xxxxxxx, idem, Pg. 275).
cios jurídicos que implicam transmissão de interesses patrimoniais de uma parte para a outra, tanto podem ser negócios no âmbito do Direito das Obrigações, como podem ser negócios que estão integrados no Direito das Coisas. Os negócios reais como o caso de abandono da propriedade e a constituição do direito hipotecário, entre outros, não são negócios de atribuição39.
Os juristas alemães opinaram que, se bem que a atribuição faça trans- mitir interesses patrimoniais de uma pessoa para outra, para esta modifi- cação é necessária uma justificação com causa. Bekker referiu que “a fun- damentação para a evolução da teoria causalista consiste em que, como se verifica, geralmente a atribuição não existe separadamente, mas surge a título oneroso a par das finalidades reveladas por interesses no sentido jurídico criados através da atribuição.” Posteriormente, Xxx Xxxx proce- deu à discriminação do motivo e da causa, constatando-se que a causa é “a finalidade de carácter decisivo para o sentido jurídico da atribuição40. ” Finalmente, Flume referiu além disso que a causa pode servir-se de justificação da legitimidade da atribuição e de explicitação da forma constitutivas da causa (ou seja, forma voluntária ou forma legal)41.
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39 Tudo conforme Xxxx Xxxxxxxx, idem, Pg. 276 a 278.
40 Xxx Xxxx referiu: “qualquer atribuição implica resultados directos de aceitar os inte- resses patrimoniais adquiridos. Porém, a atribuição por si só não ocorre para chegar a esses resultados, mas visa um determinado fim que pode ser, de certeza, um meio para alcançar outros fins. O fim pretendido pelo agente é simultaneamente o motivo que conduz à execução do respectivo negócio jurídico. De entre este conjunto de fins e os motivos com o que são compatíveis, geralmente só têm sentido jurídico os fins que estão incorporados directamente na atribuição; a natureza jurídica, ou seja, as regras jurídicas no contexto da atribuição são definidas em consonância com esse fim. Se não for alcançado esse fim, a atribuição em si ou enferma de nulidade, ou determina o direito à petição da restituição por enriquecimento sem causa.” “O fim que é decisivo para o sentido jurídico da atribuição, pode ser conhecido por finalidade jurídica. Da análise do ponto de vista técnico, o termo causa que é uma forma de expressão de origem no Direito Romano, é mais adequada. Na ciência jurídica da Common Law, este termo contempla o sentido de fim jurídico supracitado, mas não engloba o motivo efectivo subjacente ao respectivo fim”. Xxx Xxxx, <A Parte Geral do Direito Civil Alemão>, Xxxxx XX, Vol. II, Pg 62 e 63, transcrição de Xxxx Xxxxxxx, idem, Pg. 284.
41 Flume alegou: “Todos os negócios jurídicos de atribuição pedem um fundamento legal,
ou seja, uma causa. Só mediante este fundamento legal ou causa, a atribuição, como negócio entre duas partes, ganha a sua legitimidade. Ao negócio jurídico de atribuição pode ser atribuído sentido mediante regras voluntárias ou legais. A transmissão de
propriedade necessita de um fundamento legal para justificar a legitimidade da tomada pelo adquirente da posição de proprietário em substituição do seu alienador. A aliena-
Das análises feitas pelos juristas alemães sobre a causa referidas nesta secção, pode notar-se que a interpretação dos mesmos quanto à causa materialmente não difere muito da interpretação efectuada em pararelo por juristas latinos (ambos têm como ponto de partida a distinção entre causas remotas e causas recentes). Só que o Direito Civil alemão não considera a causa como requisito para a conclusão de todos os negócios jurídicos. No aspecto de controlo global de eficácia do negócio jurídico, o comando de controlo é a liberdade e veracidade da declaração de von- tade (incluindo a declaração de vontade unilateral e o consenso). Na rea- lidade esta concepção faz reintegrar na figura de acordo a causa que con- segue autonomização em relação ao acordo no Direito Civil Francês.
Por outro lado, no âmbito dos negócios jurídicos reais, quando os interesses patrimoniais abrangidos pela atribuição são da natureza de di- reito real, o Direito Civil Alemão tende a ser diferente: distingue o acor- do respeitante à atribuição dos demais acordos em geral, tornando-o um acordo (negócio jurídico) autónomo. Nas transacções, o negócio jurídico globalmente considerado tem um conteúdo rico e carácter justificativo (suceptível de justificar a legitimidade do próprio negócio jurídico), mas o negócio de atribuição autonomizado por juristas alemães já deixou es- tas características. Ao invés, o negócio jurídico que orginariamente era uma globalidade, depois de reduzida a parte correspondente ao negócio de atribuição, passou a ser um negócio jurídico que conserva o seu carác- ter justificativo, mas não contem o teor da atribuição. Assim, o negócio jurídico com conteúdo justificativo pode com certeza passar a ser a causa do negócio de atribuição. Em virtude da possibilidade de tratar o negócio jurídico causal e o negócio jurídico de atribuição como dois negócios jurídicos, com vista a assegurar a segurança de transacção, o Direito Civil Alemão estabelece que, quando a atribuição implica interesses patrimo- niais de carácter real, a eficácia do negócio de atribuição não depende do respectivo negócio causal.
A interpretação do presente artigo é que, no respeitante às relações entre a modificação de direitos reais e a sua causa, os juristas alemães
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ção da propriedade não acontece para si própria . O dito fundamento legal pode reves- tir a forma de regras voluntárias. É o caso em que o alienador vende ao adquirente a respectiva propriedade; mas também pode adoptar a forma de regras legais, como é o caso em que o alienador tem a obrigação de alienar a propriedade ao adquirente nos termos da lei.” Cf. Flume, «Negócio Jurídico», Pg. 152 e 153, transcrição de Xxxx Xxxxxxx, obra cit., Pg. 285.
subsequentes a Savigny limitaram-se à pormenorização dos conceitos, mas não chegaram a ultrapassar o sistema criado pelo mesmo. A sequên- cia de ideias que consiste em tratar o negócio de atribuição como “áto- mo” anexado à sua causa, é idêntica à via de pensamento de Xxxxxxx que considerou a “entrega” como “átomo” a que acrescenta “o fundamento do negócio”. Embora as figuras de “negócio de atribuição”, “negócio jurídi- co real” e de “causa” tenham sofrido transformações teóricas que tornam os seus conteúdos mais esclarecidos e o seu modo de relacionamento mais lógico, um aspecto mantém-se inalterado desde logo: é necessária uma “causa” para justificação, uma vez que “o negócio de atribuição” trata apenas de um factor de vontade muito limitado e não esclarece o fim.
4) A Causa na estrutura de “Contrato-Promessa/
/Modificação de direitos reais”
O Direito Civil Francês, no seguimento da Escola de Direito Natural, coloca a causa e o acordo em posição pararela, como requisitos inerentes à conclusão do contrato. Por sua vez, o Direito Civil Alemão não consi- dera a causa um requisito para a conclusão do contrato isolado do acordo; enquanto no Princípio dos negócios jurídicos reais, os negócios jurídicos que abrangem a modificação de direitos reais são separados em negócios no Direito das Coisas e negócios no Direito das Obrigações, a causa tor- na a ser causa de atribuição e desenvolve-se gradualmente como sendo causa nos negócios jurídicos reais.
Conforme as investigações expostas atrás, o sistema jurídico que re- gista maior recurso ao contrato-promessa é o sistema jurídico latino. Neste sistema (muitas vezes também conhecido directamente pelo sistema jurí- dico romano ou sistema jurídico francês), as regras repeitantes à modifi- cação de direitos reais estão influenciadas essencialmente pelo Direito Civil Francês. No entanto, o que não é semelhante à interpretação nor- mal é que, em virtude da existência do regime do contrato-promessa, na estrutura da transacção na sua globalidade se verificam, desde a criação de vinculação jurídica entre as partes da transacção até à transmissão do objecto, dois negócios jurídicos mas não um único.
Então, nesta estrutura que começa a partir da celebração do contra- to-promessa até à modificação de direitos reais, qual é o posicionamento da causa? Será necessária a criação de uma teoria causalista própria para essa estrutura “contrato-promessa/modificação de direitos reais”? Proce- de-se agora à abordagem desta questão como segue.
Conforme as análises apresentadas na presente secção, o que o Prin- cípio dos negócios jurídicos reais no Direito Civil Alemão tem de especi- al é que nele os negócios jurídicos que implicam modificação de direitos reais são divididos em negócios obrigacionais e negócios reais, servindo regra geral, o primeiro como causa deste último. Decorrendo na estrutu- ra do “contrato-promessa/modificação de direitos reais”, a modificação de direitos reais de dois negócios jurídicos, será o contrato-promessa a causa da modificação de direitos reais?
Trata-se de uma questão perplexa, porque segundo a teoria dos ne- gócios jurídicos reais, o negócio jurídico real é um negócio a efectuar com vista a cumprir outro negócio obrigacional, enquanto nesta estrutura, o Direito Alemão reconhece o acordo causal entre as partes como causa do negócio de atribuição, sendo o negócio jurídico real provocante da modificação de direitos reais. Por isso, o negócio jurídico obrigacional é também causa da modificação de direitos reais. Do mesmo modo, sendo o contrato prometido um negócio a efectuar com vista a cumprir o contra- to-promessa e conduzir outrossim à modificação de direitos reais, é natural que o contrato-promessa seja causa da modificação de direito real.
Porém, este ponto de vista não parece correcto para o processamen- to da questão da causa; sendo o negócio jurídico real um negócio que visa cumprir outro negócio obrigacional, se o negócio obrigacional é ou não causa do respectivo negócio jurídico real (e a causa de modificação de direito real) são questões de diferentes campos.
Segundo as análises apresentadas na presente tese quanto à teoria da causa a partir do Direito Romano, a necessidade da teoria da causa para completar a entrega, negócio de atribuição ou modificação de direitos reais (na era do Direito Romano, a entrega era considerada um indício extrínseco e, assim, o que estava em causa eram sempre as causas legíti- mas da entrega e não as da transmissão de propriedade), é consequência de que estes são comportamentos factuais que não contêm suficientes elementos de vontade, sendo as funções da causa a justificação da sua legitimidade. Por outras palavras, a razão de ser da causa é que ela esclare- ce a finalidade de um outro negócio ou facto, mas não que aquele negó- cio ou facto seja o cumprimento ou o resultado do cumprimento de um negócio “causal”.
Além disso, não obstante a causa tenha que ser suficiente para justi- ficar a legitimidade do comportamento do agente (na realidade, deve ser
possível justificar que a finalidade do comportamento das partes seja justa), a causa não pode ser um negócio ou facto eximido do conteúdo de vontade. Cita-se como exemplo, a entrega ser uma acção sem comportar qualquer vontade; a entrega, seja qual for, significa a passagem de uma coisa de uma pessoa para uma outra, acção essa que não clarifica por si só qual o seu motivo. Igualmente, a transferência de interesses patrimoniais em si também não expressa a sua razão; v.g., um capital na conta bancária de A foi transferido para a conta de B, porém, esta transferência em si não consegue demonstrar a respectiva causa.
Se assim é, o contrato-promessa tem também estas características? Por outras palavras, o contrato-promessa, paralelamente ao contrato obrigacional, está dotado de natureza justificativa? E o contrato-promes- sa pode explicitar a finalidade do contrato prometido?
A resposta é negativa, uma vez que o contrato-promessa é um acor- do entre as partes com vista à celebração do contrato-prometido, sendo a sua estrutura muito simples. Todos os direitos e deveres contratuais são considerados emergentes do contrato prometido; deste modo, o que pode esclarecer as finalidades do contrato prometido não é o contrato-promessa, mas sim o próprio contrato prometido. Ao invés, o contrato-promessa, semelhante à entrega, não é veículo de qualquer vontade.
Pelo contrário, o contrato prometido como negócio que visa cum- prir o contrato-promessa, tem por sua vez um conteúdo muito rico e é suficiente para exprimir as suas finalidades sócio-económicas e assim bas- ta justificar, de per si, a sua legitimidade.
Se bem que o contrato prometido por si só, consiga justificar a sua legitimidade, não tem necessidade de localizar para si a sua causa.
Se se insistir formular a questão sobre onde está a “causa” na estrutu- ra do “contrato-promessa/modificação de direitos reais”, a única resposta possível é: a causa está coberta pelo contrato prometido.
Uma vez que o contrato prometido é exactamente o negócio jurí- dico que condiciona a produção da eficácia real e que a celebração do contrato prometido e a produção da eficácia real ocorrem ao mesmo tempo, na estrutura de “contrato-promessa/modificação de direitos reais”, a causa de modificação de direitos reais está por isso escondido no negócio jurídico que provoca a mesma modificação (isto é, no con- trato prometido).
Conforme as análises acima expostas, pode verificar-se que o mode- lo de celebração em que o contrato que implica a modificação de direitos reais se desdobra em duas fases — a do contrato-promessa e a do contrato prometido — não altera o posicionamento da causa, mantendo-se a cau- sa escondido no contrato e constituindo um requisito para a conclusão do contrato42.
3. O Consenso na Estrutura “Contrato-Promessa/
/Modificação de direitos reais”
Na sequência da abordagem do processo da evolução da teoria da causa, noções, âmbitos, estatuto do consenso e da entrega estão escla- recidos.
Ainda na era do Direito Romano, o consenso não chegou a ser autonomizado; assim, pode considerar-se tanto o consenso estar escondi- do na causa, como a entrega ser equivalente ao consenso. Os léxicos jurí- dicos do Direito Romano arcaico referem muitas vezes que “a entrega transmite a propriedade”43. Isto leva-nos a pensar que a entrega no Direi- to Romano é uma espécie de acordo no sentido de transmissão de propriedade. No entanto, estes léxicos jurídicos esclareceram, por sua vez, que a compra e venda e a doação integram o âmbito da causa. Do ponto de vista actual, a compra e venda é um contrato, enquanto o con- trato emerge da compatibilidade das declarações de vontade; deste modo, a causa é na realidade um acordo44. De facto, no Direito Romano, nunca foi contemplada esta questão na perspectiva de acordo.
A importância do “consenso” na transmissão de propriedade só co- meçou a entrar na visão dos juristas a partir de Xxxxxx. Mais tarde, a
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42 É de notar que, algumas doutrinas do sistema jurídico latino (como foram referidas atrás a do jurista português Xxxxxx xx Xxxxxxx e outros dos chamados adeptos da “doutrina anticausalista”) tanto admitem o modelo de modificação de direitos reais nos termos do Princípio do Consensualismo, como desmentem a causa como requisito da conclusão do contrato. Segundo as linhas destas doutrinas, a causa é equivalente ao acordo e a legitimidade da transmissão de propriedade emerge directamente do acordo entre as partes.
43 Ver os léxicos jurídicos supracitados de Paulo, Xxxxxxx e de Xxxxxxxx.
44 Com base nisso, Xxxxxxx considerou a primeira “acordo obrigacional” e o último “acor- do real”.
Escola do Direito Natural conseguiu refinar o consenso de molde a torná- lo um elemento do contrato e fazendo-o associar-se à causa numa unidade, produzindo conjuntamente a eficácia do respectivo contrato. Consiste nisto o famoso Princípio do Consensualismo. Este Princípio é geral e daí que seja aplicável mesmo que o objecto do contrato albergue transferên- cia de direitos reais. Neste contexto, o Princípio do Consensualismo é também conhecido pelo Princípio do Consensualismo na Modificação de Direitos Reais45, sendo a sua forma de manifestação “Basta o contrato produzir eficácia de transmissão de propriedade46.
Conforme exposto atrás, a estrutura do “contrato-promessa/modifi- cação de direitos reais” tem justamente como base o Princípio do Consen- sualismo, enquanto o contrato-promessa surge em virtude de resolver o problema da lacuna temporal verificada no processo da transmissão da propriedade. Assim, na estrutura do “contrato-promessa/modificação de direitos reais”, o acordo mantém-se como um requisito que conduz à modificação de direitos reais e é aliás o único requisito. Assim sendo, em que momento se manifesta o acordo? Em termos rigorosos, o acordo só é manifestado no contrato prometido, enquanto o contrato-promessa re- vela com antecedência a totalidade do teor do contrato prometido. Pode- rá com isto afirmar-se que o acordo aparece já na fase do contrato-pro- messa? Trata-se de uma questão crítica e fundamental. As funções de maior importância do contrato-promessa consistem no adiamento da ocor- rência da eficácia contratual, sobretudo o adiamento da eficácia da trans- missão de propriedade. Verifica-se deste modo que o efeito da modifica- ção de direitos reais é produzido em face do contrato prometido. Se as- sim é, será que nesta estrutura o contrato-promessa não tem nenhuma influência? Não se nos afigura assim. De facto, é necessário que o conteú- do do contrato prometido esteja plenamente descrito no contrato-
-promessa. A eficácia da transmissão de direitos reais ocorre em face do contrato prometido; a vontade desta transmissão já está efectivamente revelada na fase da celebração do contrato-promessa. Só que a sua eficá- cia produz-se apenas na fase da celebração do contrato prometido. Por
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45 Ao que o Professor Xxx Xxxxxxxxx chama “modelo de vontade obrigacionista na mo- dificação de direitos reais do negócio jurídico”, cf. «Teses sobre Direito das Coisas».
46 Xxxx Xxxx — Picazo/ Xxxxxxx Xxxxxx, <Sistema de Derecho Civil>, Vol. III, Editorial Tecnos, 1994, 5.a edição, Pg. 71.
isso, no aspecto lógico, deve considerar-se o contrato-promessa uma fase em que se chega ao acordo na transmissão da propriedade, sendo o con- trato prometido sòmente uma condição para a produção desta eficácia. No entanto, uma vez que o contrato-promessa e o contrato prometido são considerados dois negócios jurídicos autónomos, cada um deles deve ter a sua declaração de vontade própria e efeitos próprios. Só assim os efeitos do contrato posterior não são afectados por vícios da declaração de vontade constantes no contrato anterior, que torna a transacção ple- namente protegida47. Deste modo, insistimos que na estrutura “contra- to-promessa/modificação do direito real”, o acordo que provoca a modi- ficação do direito real ocorre na fase do contrato prometido.
4. A entrega, um requisito na Estrutura “Contrato-
-Promessa/Modificação de direitos reais”?
No Direito Romano arcaico, as formas de aquisição consagradas no jus civile que era apenas aplicável ao cidadão romano e à res mancipi, eram fundamentalmente a mancipatio e iure cessio48. A “Entrega” é por sua vez uma forma de aquisição consagrada no jus gentium (que era aplicável a toda a população, excepto ao cidadão romano), enquanto no jus civile, a entrega podia apenas transmitir a posse ou a detenção. Na fase final do Império, a forma solution per aes et libram deixou de ser adoptada; assim, a “entrega” comum permitia fazer transmitir a propriedade de qualquer coisa. Após a extinção do Império Ocidental, o Império Romano do Oriente na era de Xxxxxxxxxx X , decretou expressamente a revogação do regime da mancipatio; no mesmo período, a iure cessio perdeu também a sua posição previlegiada no que dizia respeito aos modelos mais recorri- dos na transmissão da propriedade, mas foi ainda adoptada esporadica- mente até aos finais do Séc. III, em virtude da sua forma simples e fácil relativamente à mancipatio49. Na realidade, a partir da época de Xxxxxxxxxx X e na sequência do desaparecimento da distinção entre a transmissão da
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47 Abordagem em pormenor mais à frente.
48 Xxxx Xxx, < Preliminares do Direito Romano>, Editora Shang Wu, 1996, Vol. I, Pg. 312.
49 Xxxx Xxx, <Preliminares do Direito Romano>, Editora Xxxxx Xx, edição 1996, Vol. I, Pg. 317 e 318.
res mancipi e a transmissão da res nec mancipi, as formas de aquisição consagradas no jus civile substituíam as contempladas no jus gentium, assim a “entrega” (traditio) — ou seja, a entrega que tem como base a causa válida ou justa causa da transmissão de propriedade — passou a ser a única forma de transmissão da propriedade50.
É de notar que, na era posterior a Xxxxxxxxxx X , embora os juris- consultos do Direito Romano tenham considerado a entrega como uma forma de aquisição da propriedade, a figura a que se referiam não signifi- cava o comportamento factual que implicava apenas o envio e a recepção de coisas, mas sim a entrega carregada de uma justa causa. Deste modo, a entrega já abrangia na realidade o elemento de vontade das partes; só que os jurisconsultos de então não conseguiram descrever figurativamente a “vontade” nesta acepção e por isso é que tratavam como forma da aquisi- ção de propriedade a entrega que tem características extrínsecas e a causa que se caracteriza pela vontade subjectiva. Os jurisconsultos do Direito Romano cobriram-na de forma genérica na entrega, uma vez que se en- contram dificuldades no domínio e na definição da mesma que é caracte- rizada pela vontade subjectiva. Assim, quando o Direito Romano se refe- rir à entrega na transmissão da propriedade, o que está em questão é na verdade a entrega mediante justa causa51.
Pode dizer que, a partir do Direito Romano arcaico, a entrega tem sido sempre considerado um comportamento transparente e incolor52. Conforme variados regimes consagrado pelo Direito Romano, com a en- trega podia-se fazer transmitir tanto a propriedade (no antigo jus civile e
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50 Cf. Xxxx Xxx, <Preliminares do Direito Romano>, Editora Xxxxx Xx, edição 1996, Vol. II, Pg. 339; ver também, Xxxxx Xxxxxxxx (inglês), <Noções Gerais do Direito Romano>, tradução de Xxxxx Xxxx, Editora Falü, edição 2000, Pg. 123.
51 Xxxx Xxx indicou que, aquando da referência à entrega como forma de aquisição da propriedade no jus civile, “a vontade (a causa) da transmissão de propriedade” é consi- derada um requisito. Idem, Vol. I, Pg. 337.
52 Ver: Xxxxx Xxxxxxxx (inglês), <Noções Gerais do Direito Romano>, tradução de Xxxxx Xxxx, Editora Falü, edição 2000, Pg. 123. O autor referiu figurativamente o carácter incolor da entrega: “Ela ganha a cor jurídica em conformidade com as especificidades concretas na prática do comportamento. Se eu entrego o meu anel nos termos de uma convenção de compra e venda, o que te dou é a propriedade; caso te entregue o anel com vista a garantir uma dívida, o que te dou é a posse; se eu o faço para fins de renda, o que te dou é sòmente a detenção”.
no Direito pós-Xxxxxxxxxx), como a posse e a detenção (no antigo jus gentium).
Houve um período (da extinção do Império do Ocidente até antes de Xxxxxxxxxx X) em que o emptio ventitio que apenas tinha sido dotado de eficácia obrigacional no Direito Romano arcaico começou a produzir efi- cácia de transmissão de propriedade53. Porém, voltou a ser retomada a noção clássica sobre a transmissão de propriedade através da entrega, na era de Justiniano I54.
Com excepção do supracitado emptio ventitio que podia fazer trans- mitir a propriedade na epóca anterior a Xxxxxxxxxx X, a entrega tem sido requisito da transmissão de propriedade, até aos primeiros anos da Escola de Direito Natural. No Século XVIII, a popularização da teoria “título”
+ “modo” permitia comprovar este aspecto. Só que, a partir do surgimento da Escola do Direito Natural, os juristas começaram a verificar que o que é determinante para a transmissão da propriedade é exclusivamente a vontade (o acordo) das partes. No entanto, em face da tradição do Direi- to Romano, os juristas da mesma Escola não só não abandonaram logo a entrega, como também arranjaram para ela um papel importante na trans- missão de propriedade, que é a forma específica da manifestação da von- tade de transmissão de propriedade55.
Posteriormente, registou-se o florescimento da Escola do Direito Natural em França, cujos juristas gradualmente verificaram nos seus es- tudos que era absolutamente desnecessária a entrega como forma especí- fica da manifestação da vontade da transmissão de propriedade. Só a par- tir daí é que o pensamento sobre a entrega como requisito da transmissão de propriedade foi completamente abandonado. O <Código Civil Francês> e o <Código Civil Italiano> que sofreu influências do primeiro, adoptaram esta orientação, passando a considerar a vontade (o acordo) das partes o único requisito para a transmissão de propriedade.
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53 Tal como o contrato de compra e venda de terreno estabelecido pelo Imperador Xxxxxxxxxxx. Ver Xxx Xxxxx (alemão), <Roman Private Law (Römishces Privatrecht)>, tradução de Xxxx Xxxxxxxxxxx, University of South Africa, 1984, 4.a edição, Pg. 129.
54 Ver Xxx Xxxxx (alemão), <Roman Private Law (Römishces Privatrecht)>, tradução de Xxxx Xxxxxxxxxxx, University of South Africa, 1984, 4.a edição, Pg. 129.
55 Ver a apresentação sobre a teoria de Xxxxxxx.
Com a adopção do modelo de celebração do contrato-promessa/ contrato prometido, o Princípio do Consensualismo que toma somente em conta a vontade das partes como requisito da transmissão da proprie- dade e caracterizado pelo pleno abandono da entrega não sofreu alteração alguma.
Na estrutura “contrato-promessa/modificação de direitos reais”, a verificação ou não da entrega da coisa não põe em causa, em princípio56, a efectivação da transmissão.
III. Formulários do Relacionamento entre o contrato-
-promessa e a modificação de direitos reais
1. Formulário N.º 1: Ligação Indirecta através do intermediário do contrato prometido
O contrato-promessa e o contrato prometido aparecem sempre como um par, não sendo possível que um contrato-promessa exista isolada e independentemente do respectivo contrato prometido. “O contrato-pro- messa é uma convenção que visa a celebração de uma outra convenção ou contrato no futuro”. Verifica-se a partir daí que o contrato-promessa só vincula as partes contratantes no sentido de praticarem um negócio jurí- dico no futuro, tendo como incidência um comportamento da pessoa mas não um direito subjectivo ou coisa.
Em princípio, o contrato-promessa não pode relacionar directamente com a modificação do direito real ultrapassando o contrato prometido57.
Quando o contrato prometido sobre que o contrato-promessa incide tem como finalidade a transmissão de interesses patrimoniais, nos ter- mos do Princípio do Consensualismo, a transmissão ocorre aquando
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56 A razão de aditar a expressão “em princípio” é por que em casos excepcionais, no âmbito do regime do contrato-promessa, a entrega re-adquire uma posição relevante no processo de transmissão da propriedade. É o caso do <Código Civil Português> e o seu sucessor, o <Código Civil de Macau>, entre outros.
57 No entanto, o <Código Civil Português> estabelece um modelo especial de contrato-
-promessa designado por “contrato-promessa com eficácia real”, que, como revelado pelo seu nome, é um contrato-promessa por si só produzir eficácia real.
da celebração do contrato prometido. Se os respectivos interesses patri- moniais têm a natureza de direito real, a modificação de direitos reais ocorre na ocasião de os contratantes celebrarem o contrato prometido com vista a cumprir o contrato-promessa. Em virtude da simplicidade dos deveres previstos no contrato-promessa e o seu âmbito de aplicação alargado a nível teórico, não têm ocorrido efeitos de modificação de direitos reais, sendo raro fazer uma ligação do contrato-promessa con- trato à modificação de direitos reais aquando da observação analítica do regime.
Assim, a declaração de vontade que subjaz à celebração do contrato prometido é a que conduz à modificação de direitos reais e outrossim o único requisito necessário para a efectivação da modificação de direitos reais, ocorrendo as duas coisas ao mesmo tempo e incorporando-se numa só. Deste modo, a observação quanto às relações entre o contrato-pro- messa e a modificação de direitos reais não pode prescindir do seu meio
— o contrato prometido.
2. Formulário N.º 2: A ordem cronológica da ocorrência
Tomando como objecto da observação o processo integral da transacção, incorporando o contrato-promessa/modificação do direito real numa estrutura global, pode verificar-se que existe sempre uma diferença temporal entre a ocorrência dos dois fenómenos pelas seguin- tes razões:
A modificação de direito real está escondido no contrato prometido, enquanto as relações entre o contrato-promessa e a modificação de direitos reais se demonstram através das relações entre o contrato-promessa e o contrato prometido. Em virtude da existência necessária de um espaço temporal entre a celebração do contrato-promessa e a do contrato pro- metido (senão, este modelo de celebração de contrato-promessa/con- trato prometido seria absolutamente desnecessário), há com certeza uma diferença temporal entre o contrato-promessa e a modificação do direi- to real. Por outra palavras, o tempo da ocorrência da modificação do direito real é sempre posterior à conclusão e à vigência do contrato-
-promessa. Justamente por esta razão, o modelo de celebração contra- to-promessa/contrato prometido consegue satisfazer as necessidades reais das partes.
3. Formulário N.º 3: Separação dos negócios jurídicos
O contrato-promessa e o contrato prometido são dois contratos au- tónomos no aspecto de estrutura. O contrato-promessa é um negócio jurídico independente em relação ao contrato prometido, que directa- mente conduz à efectivação da modificação de direitos reais. Deste modo, pode concluir-se que o contrato-promessa e a modificação de direitos reais são separados em termos de negócios jurídicos.
De acordo com o definido nas doutrinas e nas leis de variados países relativamente ao contrato-promessa, este estabelece apenas os direitos e os deveres de celebrar no futuro o respectivo contrato prometido entre as partes contraentes, sendo o conteúdo da prestação um negócio jurídico (celebração do contrato prometido). Com isto se verifica que, indepen- dentemente de o contrato prometido a que corresponde o contrato-
-promessa implicar ou não a transmissão de interesses patrimoniais, o próprio contrato-promessa pode de forma alguma produzir efeito de mo- dificação de direitos reais. Caso o contrato prometido albergue transmis- são de interesses patrimoniais, o efeito da modificação dos direitos reais produz-se ao mesmo tempo que se prestam declarações de vontade na ocasião da celebração do contrato prometido. Assim, quando intuitati- vamente visto, o contrato-promessa seria um contrato obrigacional, en- quanto o contrato prometido um contrato real. Neste ponto de vista, parecer-nos-ia que com esta estrutura do contrato-promessa/contrato pro- metido (ou seja, contrato promessa/modificação de direitos reais) po- deriam alcançar-se funções indênticas às consagradas na teoria dos negó- cios jurídicos reais em vigor no sistema jurídico germânico.
No entanto, este ponto de vista é completamente errados. Embora o contrato-promessa e o contrato prometido que provoca a modifica- ção de direitos reais sejam encarados como dois contratos (negócios jurídicos) autónomos, quer a nível doutrinária, quer a nível de direito positivo, verifica-se que, conforme as exposições anteriores, a separação do contrato-promessa/contrato prometido e a distinção consagrada na teoria dos negócios jurídicos reais são técnicas jurídicas totalmente diferentes58.
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58 Ver comparação a efectuar na próxima secção do presente artigo.
IV. Estrutura comparativa do “contrato-promessa/
/modificação de direitos reais” com as demais estruturas com funções idênticas
1. Relativamente à estrutura “Título” (titulus) + “modo” (modus)
1) Breve apresentação da teoria titulus + modus
A teoria “Título” (titulus) + “modo” (modus) é uma interpretação de juristas da Escola do Direito Natural relativamente aos argumentos dos jurisconsultos do Direito Romano supracitados, como Xxxxxxxx e Ulpiano. Estes adeptos da Escola do Direito Natural faziam corresponder o “titulus” e o “modus” respectivamente à causa e à entrega constantes nos léxicos jurídicos do Direito Romano, sendo a transmissão da propriedade resul- tado da conjugação desta duas figuras. O jurista que referiu pela primeira vez esta teoria seria Xxxxxxx que definiu a causa legal constante dos léxi- cos jurídicos do Direito Romano como vontade das partes e em simultâ- neo a entrega como a forma de manifestação da vontade, salientando que a transmissão da propriedade só é possível quando cumulativamente pre- enchidos estes dois requisitos59. A aparição desta teoria “titulus” + “modus” tornava a “causa” ou a “justa causa” concreta que era até aí bastante ambígua, dotando as teorias da transmissão de propriedade de maior operacionalidade. Posteriormente, Pufendorf, Xxxxx e Xxxxxxxxx expres- saram interpretações semelhantes. Na Alemanha esta teoria foi principal- mente absorvida por C.F. Glück60.
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59 Xxxx Xxxx — Xxxxxx/Xxxxxxx Xxxxxx (espanhol), Sistema de Derecho Civil, Vol. III, Editorial Tecnos, 5.a edição, 1994, Pg. 70 e 71. No entanto, o mesmo autor referiu que na realidade Grotius e Xxxxxxxxx mudaram de opinião, considerando a vontade como elemento que provocava a transmissão da propriedade. Além disso, Xxxxx Xxxxxxxx, estudioso alemão, referiu que o Princípio do Consensualismo tem vindo a recolher adesão a partir de Grotius (ver Xxxxx Xxxxxxxx, <Privatrechtsgeschichte der Neuzeit Unter Besonderer Berücksichtigung der Deutschen Entwicklung>, tradução em português de X.
X. Xxxxxxxx, 2.a edição, Fundação Galouste Gulbenkian, publicado em 1993, Pg. 330). Verifica-se, com base nisto que, no âmbito da transmissão da propriedade, a teoria “titulus” + “modus” e a teoria consensualista tinham a mesma origem e aparece- ram na mesma época. O <Código Civil Austríaco> adopta a teoria “titulus” + “modus”, enquanto que, pelo <Código Civil Francês> foi escolhida a teoria consensualista.
60 Referiu C.F.Glück: “De acordo com as posições comuns dos estudiosos, a aquisição da propriedade do objecto depende de dois requisitos: 1.º a “fonte do direito” (título) que
No período compreendido entre os finais do Séc. XVIII e o Séc. XIX, a estrutura da transmissão da propriedade “titulus” e “modus” influen- ciou vários códigos civis do Continente Europeu, por exemplo, o Capí- tulo II da Parte I, artigo 131.º da “Preussiches Allgemeines Landrecht” (ALR) de 1794, que estipulou: “Refere-se o modo de aquisição da propriedade a um negócio praticado com vista à aquisição de direitos reais.” E no artigo 132.º: “Entende-se por fonte do direito, a causa jurídica que dota o negó- cio referido no artigo anterior da eficácia de aquisição de direito real.” Além disso, o Código Civil Austríaco (ABGB) de 1811 adoptou clara- mente a teoria “titulus” e “modus”. De entre os artigos constantes do ABGB, os seguintes, entre outros, são suficientes para reflectir este facto: o art.º 380.º: “Não se pode adquirir propriedade sem título e sem cum- prir o modo de aquisição legal.”; art.º 424º.: “O contrato, testamento, sentença e as disposições legais são os possíveis títulos do direito para a aquisição derivada.” E o art.º 425.º: “A propriedade não se transmite mediante mero título. Salvo disposições legais especiais, a propriedade e demais direitos reais, só podem ser adquiridos mediante entrega e recep- ção legalmente previstas.”
2) Uma comparação entre as duas estruturas
Ambas as estruturas “contrato-promessa/modificação do direito real” e “titulus + modus” têm funções de adiamento de transmissão da pro- priedade. Quer na estrutura “contrato-promessa/modificação de direitos reais”, quer na “titulus + modus”, a vinculação jurídica constituída me- diante declaração de vontade feita pelas partes antecede a transmissão da propriedade. A transmissão da propriedade em ambas as estruturas de-
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torna a aquisição do direito real possível; 2.º o “modo de aquisição” que torna efectiva a aquisição de direito real, ou que torna a possibilidade da aquisição de um direito real numa realidade mediante a posse real do objecto da aquisição. Cita-se como exemplo:
eu quero comprar um livro numa livraria; quando a loja me entrega o livro, passo a ser o proprietário daquele livro. A fonte do meu direito é o contrato de compra e venda celebrado entre mim e a livraria. A razão de ser é justamente a existência de um tal contrato de compra e venda que torna possível ser eu o proprietário do livro. O modo da minha aquisição é a entrega. A entrega torna a possibilidade de aquisição do livro numa realidade e leva a que eu passo realmente a ser o proprietário do livro.” Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx: Asufuhrliche Erläuterung der Pandecten nach Hellfeld, ein commentar, Bd.8, Erlangen, 1807, Pg. 83, transcrição de Xxxx Xxxxxx, «Estudos sobre o Direito das Coisas», Editora Jinqiao Wenhua (Hong Kong) S.A., edição 2001, Pg. 106.
pende de um facto com significado jurídico: na estrutura “contrato- - promessa/modificação de direitos reais”, depende da celebração do con- trato prometido; na estrutura “titulus + modus”, da entrega.
As diferenças entre as duas estruturas consistem em que, na estrutu- ra “contrato-promessa/modificação de direitos reais”, o facto jurídico que provoca a modificação de direitos reais é um negócio jurídico, o mesmo não acontece na estrutura “titulus + modus”. Por outro lado, na estrutura “titulus + modus”, o “titulus” é considerado como uma causa que justifica a legitimidade de transmissão do direito; o “titulus” como causa ocorre em regra antes da transmissão da propriedade. Pelo contrário, na estrutu- ra “contrato-promessa/modificação de direitos reais”, a “causa” está mer- gulhada no contrato prometido e a celebração deste ocorre em simulâneo com a modificação de direitos reais. Verifica-se assim que, embora nesta estrutura a transmissão de propriedade seja posterior ao momento da perfeição do primeiro acordo entre as partes, não existe diferença tempo- ral entre a ocorrência da causa e a da transmissão.
2. Comparação com a estrutura negócios jurídicos obrigacionais/negócios jurídicos reais
Os estudos e investigações de negócios jurídicos reais na Pátria já não fazem falta, e ainda por cima estão feitos com maior ou menor delicadeza61. Não é de julgar que possamos fazer melhor, limitando-nos a fazer uma comparação directa entre estas duas estruturas como se segue:
Antes de tudo, estão abrangidos dois negócios jurídicos autónomos quer na estrutura de “contrato-promessa/modificação de direitos reais”, quer na de “negócios jurídicos obrigacionais/negócios jurídicos reais”. Estes dois negócios jurídicos são o contrato-promessa e o contrato pro-
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61 Dos quais um considerado pioneiro na matéria, Xxx Xxxxxxxxx, <Direito Real Comtemporâneo Germânica>, Editora Falü, edição 1997, Pg. 56; artigos do mesmo autor <A Origem do Princípio dos Negócios Reais e Seu Sentido>, <Mais uma Abor- dagem sobre Negócios Reais >, in <Teses sobre Direito das Coisas>, Editora Falü, edição 2001; Xxxx Xx, <Uma Abordagem Sobre a Modificação de Direitos Reais>, Editora da Universidade Renmin da R.P.China, edição 2001; Xxxx Xxxxxxx, «Estudos sobre o Princípio dos Negócios Reais — com Incidência sobre a Modificação dos Direito de Propriedade no Direito Chinês e no Direito Germânico», Editora da Uni- versidade de Política e Direito da China, edição 2002.
metido na estrutura “contrato-promessa/modificação de direitos reais”, enquanto são negócio jurídico obrigacional e negócio jurídico real na estrutura “negócios jurídicos obrigacionais/negócios jurídicos reais”.
Em segundo lugar, o que têm de semelhante é o negócio jurídico que conduz à modificação de direitos reais ser um negócio destinado a cumprir outro negócio jurídico anterior. Na estrutura “contrato-promes- sa/modificação de direitos reais”, o contrato prometido que provoca a modificação de direitos reais é um negócio que se destina a cumprir uma obrigação estipulada no contrato-promessa; igualmente na estrutura “negó- cios jurídicos obrigacionais/negócios juridicos reais”, o negócio jurídico real é também um negócio praticado com vista a cumprir uma obrigação produzida na sequência de um negócio jurídico obrigacional.
As diferenças principais entre as duas estruturas são: na estrutura “contrato-promessa/modificação de direitos reais”, embora distinga tam- bém dois negócios jurídicos, eles enquadram em princípio no âmbito de Direito das obrigações, quer o caso de contrato-promessa, quer o de con- trato prometido; enquanto na estrutura de negócios jurídicos obri- gacionais/negócios jurídicos reais, os dois negócios jurídicos correspon- dem a estruturas distintas — direito das obrigações e direito das coisas. O modelo de celebração e “contato-promessa/modificação de direitos reais” faz adiar globalmente a eficácia; assim, o contrato prometido produz não só eficácia obrigacional mas também eficácia real.
Além disso, quando o conteúdo do contrato não tem incidência so- bre a modificação de direitos reais, é também aplicável o modelo de cele- bração “contrato-promessa/contrato prometido”; neste caso, só produzi- rá eficácia obrigacional quer no contrato-promessa quer no contrato prometido, não implicando qualquer efeito de modificação de direitos reais.
V. Análise da estrutura “contrato-promessa/modificação de direitos reais” numa perspectiva sistemático-lógica
do direito civil
Tendo efectuado uma observação na perspectiva da estrutura de tran- sacção associando o contrato-promessa à modificação do direito real como uma globalidade e procedido a uma comparação com as demais estrutu- ras relacionadas com a transmissão da propriedade, pude verificar que,
embora a referida estrutura “contrato-promessa/modificação de direitos reais” seja aparentemente semelhante às restantes estruturas, a base quan- to à sua formação e as técnicas jurídicas recorridas são completamente dife- rentes. Neste sentido, no aspecto sistemático-lógico do direito civil na sua globalidade, serão estas especificidades técnico-jurídicas as mais razoáveis? Tentemos efectuar uma investigação como segue:
A criação da figura contrato-promessa torna possível o desdobra- mento do acto de celebração do contrato em duas fases: a do contrato-
-promessa e a do contrato prometido. Esta divisão que cria um espaço temporal entre o momento em que começa a vinculação jurídica e o do efectivar da transmissão da propriedade consegue satisfazer sem dúvida as necessidades reais dos sujeitos da transacção.
No entanto, como foi referido atrás, a estrutura “contrato-promes- sa/modificação de direitos reais” e a “negócio de direito obrigacional/
/negócio de direito real” são completamente diferentes no aspecto técni- co-jurídico.
Aparentemente, o modelo “contrato-promessa/contrato prometido (ou seja, modificação de direitos reais)” parece também conseguir especi- ficar os diferentes efeitos: o efeito obrigacional produzida por força do contrato-promessa e o efeito de modificação de direitos reais pelos con- tratos reais. De facto, esta ideia é totalmente errada.
A nível de concepção, o que distingue do contrato-promessa é o contrato prometido mas não um “negócio jurídico real”. As diferenças mais fundamentais entre as duas figuras são: o contrato-promessa regula apenas direitos e deveres de celebração do respectivo contrato prometido, enquanto deste último podem derivar direitos e deveres de uma grande variedade. Na realidade, o contrato-promessa limita-se a adiar a produ- ção da eficácia contratual, não produzindo de per si outras eficácias (aliás, só isto pode tornar efectiva a discriminação entre o contrato-promessa e contrato prometido). Assim sendo, não é de considerar que o contrato- promessa tenha como correspondência um direito obrigacional, pois o efeito por ele causado não é um obrigacional geral qualquer, mas sim os direitos e deveres de celebração do contrato prometido. Pelo contrário, o contrato prometido não corresponde necessariamente a direitos reais, pois nos termos dos direitos positivos de vários países, às vezes ele produz apenas um direito obrigacional, enquanto noutras ocasiões gera, não só direito obrigacional, mas também direito real.
Por esta razão, não chegou a constituir-se uma estrutura instituicional- mente autonomizada para o contrato-promessa no Código Civil, sendo a sua estrutura a mesma do contrato.
No sistema jurídico germânico, a nível estrutural do Código, no seu âmbito de direito patrimonial distinguem-se direitos reais e direitos obrigacionais, ambos tendo naturezas diferentes. Com base nesta estru- tura dualista, em termos de vontade de resultados com efeito jurídico, distinguem-se a vontade de resultado obrigacional e a vontade de resulta- do real, discriminando-se por conseguinte, negócios obrigacionais e ne- gócios reais. Assim, a diferença de eficácias jurídicas a produzir está liga- da aos respectivos negócios jurídicos. Deste modo, a diferenciação de negócios jurídicos torna-se um indício claro para a discriminação no di- reito civil patrimonial.
É óbvio que a distinção contrato-promessa/contrato prometido ja- mais constitue vestígio para a discriminação de direitos reais e direitos obrigacionais, discriminação que depende de outras marcas identificadoras (mormente a tipicidade de contrato e as definições inerentes a estes tipos, tal como na compra e venda e doação, para as quais é definida a obrigato- riedade da transmissão da propriedade).
Por outro lado, o critério de espaço temporal estabelecido na estru- tura contrato-promessa/contrato prometido, para além de contribuir para a resolução das questões de transmissão da propriedade, anula ao mesmo tempo os problemas da falta de flexibilidade quanto aos requisitos for- mais e aos reais no âmbito dos negócios jurídicos que não têm nada a ver com a transferência de interesses patrimoniais.
Do ponto de vista meramente lógico, não é justo dizer que a estrutu- ra negócios obrigacionais/negócios jurídicos reais é lógica, uma vez que consegue concretizar uma distinção de diferentes vontades de resultados jurídicos, enquanto que a estrutura contrato-promessa/contrato prome- tido procede à discriminação por outra perspectiva, sendo ilógica. Porém, é de admitir que, o isolamento da modificação de direito real da sua causa, consagrado na distinção negócios jurídicos reais e negócios jurídi- cos obrigacionais, é favorável à segurança transacção, o que se reveste de especial relevância na sociedade da comercialização.
A distinção entre o contrato-promessa e o contrato prometido é uma concepção bem plausível, mas a sua aplicação na prática cria algumas
dificuldades — por exemplo, as partes não podem deixar de estabelecer no contrato-promessa direitos e deveres que as vinculam de imediato62
— que vêm, ao invés, a pôr em causa a lógica do regime de contrato- promessa.
Não é de ignorar que, quando se tomar em conta a lógica sistemática do regime do contrato-promessa, tem que se atender também a época da sua criação e ao contexto histórico. O regime do contrato-promessa nas- ceu com o famoso Código Civil Francês que sofreu influências do pensa- mento racionalista e do direito naturalístico, altura em que a investigação do direito civil não conhecia com clareza a distinção entre as estruturas dos direitos reais e dos direitos obrigacionais. Deste modo, era natural e impossível que o Código Civil Francês tomasse em consideração que a questão da distinção estrutural de direito de natureza patrimonial podia necessitar da correspondente diferenciação no âmbito dos negócios jurídicos.
Efectivamente, o desdobramento da vontade negocial em vontade de efeito obrigacional e em vontade de efeito real sofre também contes- tações. A produção do efeito jurídico é de iniciativa, activada pelas partes e determinada nos termos da ordem jurídica63; o modo pelo qual a vonta- de é delimitada de acordo com a lei é essencialmente uma questão de tipicidade.
Por conseguinte, não é de desmentir a omissão da distinção entre a vontade de efeito obrigacional e a vontade de efeito real a nível de decla- ração de vontade negocial, deixando a tipicidade do contrato responsável pela determinação dos efeitos que podem ser um dos dois ou ambos.
Além disso, custa afirmar que a falta de distinção das vontades, no sentido de eficácia real e eficácia obrigacional, conduza à desnecessidade de conservá-la como um elemento extrínseco dos negócios jurídicos ou até à sua dispensa na Parte Geral do Código Civil, pois as regras da decla- ração de vontade impregnam, com ou sem eles, todas as fracções do Código, mesmo que o Código Civil ficasse apenas com cinco partes, por não proceder a tal distinção. Verifica-se que pelo menos alguns Códigos
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62 Para uma análise mais em pormenor, ver o capítulo que segue.
63 Xxxxx Xxxx xx Xxxxxxxxxxx (português), Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 2.a edição, 2003, Pg. 252 e 253; Xxxxxx Xxxx Xxxxx (português), obra cit., versão chinesa, Pg. 212.
Civis de parte dos Estados da América-Latina e o do Japão se encontram nesta situação. No entanto, uma tal distinção tornará mais esclarecidas as relações lógicas entre todas as partes do Código.
De um modo geral, existe sempre uma tensão entre o sistema lógico de direito na sua totalidade e os regimes jurídicos em específico. Nunca houve um sistema jurídico perfeito, do ponto de vista lógico, a nível mundial, nem nunca haverá.
Quanto às questões em apreciação, há uma menção impressionante do civilista português Menezes Cordeiro: “a codificação procede como uma unidade, enquanto a cultura jurídica e as disciplinas de direito se desenvolvem individualmente; a tensão emergente desta situação merece a nossa atenção”64.
De facto acontece exactamente assim. Os juristas que se dedicam à pesquisa do sistema continental contemporâneo concluem muitas vezes do mesmo modo (regimes específicos contrariam a lógica intrínseca do sistema jurídico). A razão de ser deste fenómeno consiste em que a meto- dologia aplicada na ciência jurídica contemporânea está profundamente influenciada pelo sistema da lógica formal alemão. Isto não será evitável, uma vez que a maior parte das figuras jurídicas fundamentais do nosso conhecimento jurídico foi inventada na Alemenha ou sofreu evolução amadurecendo-se no âmbito do direito alemão. Desta maneira, recorre- mos inconscientemente a esta lógica pré-estabelecida aquando da análise de todos os regimes jurídicos e assim é que nos sentimos pouco conforta- dos quando as coisas não decorrem conforme a mesma lógica.
Relativamente ao regime do contrato-promessa, o seu aparecimento e aplicação no âmbito dos interesses patrimoniais tem essencialmente em vista a satisfação das necessidades correntes da ordem da vida económica, sendo uma questão “a posteriori” a sua articulação com a lógica pré- existente. Além disso, os hábitos do quotidiano e a tradição jurídica, for- mados a par do desenvolvimento individual dos regimes são razões que fundamentam a sua subsistência.
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64 Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx (português), Direitos Reais — Sumários, Associação dos Alunos da Faculdade da Universidade Clássica de Lisboa, edição 1998, Pg. 32.