A Comunidade como condição de possibi- lidade da Liberdade em Rousseau
A Comunidade como condição de possibi- lidade da Liberdade em Rousseau
Xxxxx Xxxxxxxxx Universidade de Lisboa Investigadora/Praxis
Resumo
Neste ensaio, procura-se compreender, através da obra O Contrato Social, o que é a liberdade para Xxxxxxxx e como é que esta se pode construir numa dimensão coletiva. Através de uma comunidade orientada pela Vontade Geral, a liberdade in- dividual é garantida aos cidadãos em dois sentidos: por um lado, a Vontade Geral é uma concretização da própria liberdade e, por outro, é sua pré-condição neces- sária. Explica-se ainda como, através da autodeterminação coletiva, é possível supe- rar a condição alienante do estado de natureza. Com o objetivo de afastar Xxxxxxxx de associações ao totalitarismo, são analisados os argumentos de alguns dos seus maiores críticos. Por fim, como tentativa de atualização da sua teoria política, esta- belece-se uma relação de semelhança entre esta e as teorias da democracia radical.
Palavras-chave
Liberdade, comunidade, Xxxxxxxx, Vontade Geral, bem comum, contrato social, alien- ação, totalitarismo, democracia radical.
Siglas
CS - O Contrato Social
Introdução
O que é a liberdade? O que significa ser livre numa comunidade? Como se relaciona a liberdade individual de cada um com a liberdade
12, 327-379, Lisboa: CFUL.
dos outros? E como se relaciona a liberdade individual com a totalida- de das liberdades e vontades dos outros, ou seja, com a comunidade como um todo? Que papel desempenha a comunidade na garantia da liberdade de cada um? A sua função será apenas a de preservar algo que a antecede, isto é, uma liberdade que já existe, independentemente da comunidade? Ou, pelo contrário, a liberdade individual depende de uma comunidade para existir? E de que tipo de comunidade? Estas são algumas das questões que motivaram a investigação para este ensaio.
A liberdade é um dos conceitos que, no campo da filosofia polí- tica, mais atenção tem atraído. Isto torna-se evidente ao observar que praticamente qualquer partido, movimento, associação, etc. político, seja qual for a sua orientação ideológica, afirma defender a liberdade. É a ambiguidade do termo “liberdade” que permite que grupos com po- sições políticas tão divergentes possam todos afirmar-se como defenso- res deste valor. De facto, ao longo da história do pensamento político, surgiram centenas de definições de liberdade, tornando este conceito quase vazio de conteúdo, por serem tantos e tão diversos os significa- dos que pode tomar.
Outro conceito amplamente mobilizador no pensamento político é o da justiça. Praticamente toda a gente quer viver num mundo, numa comunidade, numa sociedade, que considera justa. O problema é definir o significado de justiça e encontrar os critérios segundo os quais uma sociedade é considerada justa. Desde Xxxxxx e Xxxxxxxx, senão antes, que esta – “O que é a justiça?” – é uma pergunta sem resposta, ou com demasiadas respostas possíveis, para que se possa considerar o proble- ma resolvido. Acontece, no entanto, como aponta Honneth (2014, 23), que um dos critérios mais comummente utilizados para discernir se uma sociedade é justa é o da liberdade individual. Ou seja, considera-
-se uma instituição política justa na medida em que esta garante a li- berdade dos seus membros. Neste sentido, por exemplo, grande parte dos movimentos sociais de libertação estavam convencidos de que a justiça pela qual lutavam exigia uma oportunidade igual de liberdade para todos. Portanto, parece que a justiça encontra a sua legitimação na sua capacidade de garantir a liberdade. Mas aqui regressa o problema inicial: o que é a liberdade? O que é que esta implica? Como é que esta se relaciona com a vida em comunidade? Torna-se claro, portanto, que diferentes conceções de justiça implicarão diferentes conceções de liberdade e vice-versa.
Da mesma forma, tornou-se praticamente impossível articular qualquer outro valor da modernidade, sem o compreender como uma faceta constitutiva da ideia de autonomia individual (Honneth 2014, 22). Assim, valores como a igualdade, a fraternidade, a autodetermina- ção, o bem ou a autenticidade, acabam por justificar-se por referência
à liberdade. Neste sentido, argumenta-se, por exemplo, que é impor- tante garantir a igualdade, pois esta é necessária para que todos (ou um maior número de pessoas) possam ser livres. Esta “enorme força gravitacional” (expressão de Honneth – p.22) exercida pela noção de liberdade acontece porque esta forma uma ligação entre o sujeito e a ordem social. Enquanto outros valores modernos se referem apenas ou à dimensão individual ou à estrutura da sociedade como um todo, a ideia de liberdade estabelece uma conexão entre os dois. Mas esta relação pode ser compreendida de diversas formas.
Uma das frases mais frequentemente referidas a respeito da rela- ção entre a liberdade individual e a dimensão coletiva é que “a liber- dade de cada um acaba quando começa a liberdade do outro”. Embora bem-intencionada, esta acaba por refletir uma ideia da liberdade indi- vidual como sendo algo que envolve uma barreira entre cada um e os outros. Mas esta parece ser uma perspetiva demasiado limitada sobre o significado da liberdade, pois sugere que as liberdades individuais não podem coexistir plenamente umas com as outras: onde começa a de um, acaba a de outro. Neste sentido, parece estar implícita a visão de que para se ser completamente livre, é necessário estar isolado da co- munidade, pois viver em proximidade com esta implicaria constantes entraves à liberdade individual de cada um.
O principal propósito deste ensaio é contrariar esta ideia e apre- sentar uma outra abordagem à relação entre a liberdade individual e a comunidade. Neste sentido, pretendo demostrar como a comunidade não representa necessariamente um limite à liberdade individual, mas, em vez disso, é sua condição de possibilidade. Ou seja, a comunidade é necessária para que a liberdade possa existir e que, para além de a tornar possível, não a limita. Desta forma, as liberdades individuais não só podem coexistir como, existindo coletivamente, são capazes de se ampliar umas às outras.
É importante mencionar ainda que, com “comunidade”, refiro-me a um grupo de pessoas que vive em conjunto e que precisa, portanto, de ter certas formas de organização para o funcionamento da sua vida co- letiva – dinâmicas inerentemente políticas, se considerarmos “política” segundo a sua definição clássica: aquilo que é relativo à organização da Polis. Assim, falo de “comunidade” num sentido próximo de insti- tuição política, Estado ou sociedade. Contudo, julgo que estes termos carregam consigo um peso institucional e um teor negativo relacionado com o exercício da autoridade. A palavra “comunidade” não só está mais livre destas associações, como tem um significado mais amplo, uma vez que não se refere apenas a formas políticas tipicamente mo- dernas – como os atuais Estados ocidentais, referentes a um determina-
do território, e com um aparelho autoritário associado –, mas também a grupos mais informais de pessoas. No entanto, o pano de fundo do uso do termo “comunidade” é sempre um contexto político.
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Dado o tema demasiado amplo que pretendo abordar, e esta ser apenas um artigo, optei por focar-me somente num autor. O escolhi- do foi Xxxx-Xxxxxxx Xxxxxxxx (1712-1778), por ser um dos inaugura- dores, senão mesmo o fundador, daquilo que hoje se denomina como tradições comunitária e democrática (ou democratismo), que procuram demonstrar, entre outras coisas, a importância do exercício do poder coletivo para a liberdade individual. Ou seja, o pensamento desenvol- vido por estas tradições dá um enfoque positivo ao papel que a comu- nidade desempenha na garantia da liberdade. A principal obra onde Xxxxxxxx aborda este tema é O Contrato Social, publicada em 1762, na qual me focarei quase exclusivamente. Contudo, para a contextuali- zar, será necessário mencionar alguns pontos da obra Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, também conhecida como o Segundo Discurso, publicada em 1755. Por vezes, são apontadas incoerências entre as duas obras, dado que, no Segundo Discurso, o estado de natureza é apresentado como um cenário har- monioso, enquanto n’O Contrato Social, este é retratado como uma situação conflituosa. Contudo, a minha perspetiva é a de que estas de- vem ser entendidas como obras complementares uma da outra. Neste sentido, considero que o Segundo Discurso lança as questões e os pro- blemas que O Contrato Social procura responder e resolver. A forma de conciliar as duas obras passa por entender que Xxxxxxxx falou de dois períodos diferentes do estado de natureza: o estado original e o “degenerado”. O primeiro é retratado no Segundo Discurso, enquanto o segundo está presente n’O Contrato Social e serve para justificar a formação de uma instituição política.
Mas antes de avançar, é necessário explicar o que é o estado de na-
xxxxxx, e que papel este desempenha na teoria política rousseauniana. Tal como outros autores da tradição do contratualismo político, como Xxxxxx (1588-1679) e Xxxxx (1632-1704), Xxxxxxxx concebe o esta- do civil como um projeto de sociedade oposto ou, pelo menos, como uma resposta às falhas do estado de natureza. Assim, este corresponde à condição pré-política da humanidade, ou seja, ao estado anterior à civilização. Como vimos, o estado de natureza abrange diferentes pe- ríodos: tanto o tempo primordial, em que as pessoas existiam solitaria- mente, como também a altura em que já havia pequenas comunidades,
ainda que não tivesse sido estabelecida qualquer instituição política formal. Ou seja, ainda não tinha sido formada uma instituição que de- terminasse as leis e a justiça, e aquilo que cada pessoa tinha como obrigação para com as outras pessoas da sua comunidade. Por outras palavras, ainda não tinham sido determinados os laços de obrigação mútua entre si. Neste sentido, pode dizer-se, de forma algo controver- sa, que o contrato político surge como o estabelecimento de uma ordem racional, por oposição ao caos do estado de natureza.
A intenção das teorias contratualistas não é necessariamente a de documentar algum acontecimento histórico, no sentido factual e des- critivo, de retratar algo que realmente aconteceu – dizer que a primeira vez que se formou uma instituição política “foi assim” –, mas antes a de conceber um exercício teórico sobre a legitimidade de um contrato político, no sentido normativo – ou seja, dizer que, mesmo que isto nunca tenha acontecido, “deveria ter sido assim” para que fosse legí- timo. Portanto, o objetivo é conceber uma situação imaginária em que os indivíduos, em vez de nascerem já num mundo com instituições po- líticas formadas, estariam na posição de escolher associar-se uns com os outros e de decidir as regras com as quais lhes pareceria convenien- te concordar, enquanto seres racionais. Assim, a teoria contratualista pode ser compreendida como uma reflexão sobre o que torna legítima uma instituição política – o que explica que a obra de Xxxxxxxx tenha como título “Do Contrato Social Ou Princípios de Direito Político”.
A perspetiva sobre o estado de natureza de diferentes autores varia
consoante a sua visão sobre a “natureza humana”. Por exemplo, Ho- bbes expõe, no Leviatã (1651), uma conceção muito negativa sobre o estado de natureza, descrevendo-o como um estado de guerra de todos contra todos, uma vez que entendia o ser humano como sendo natural- mente egoísta e conflituoso. Pelo contrário, Xxxxxxxx, no Segundo Dis- curso, expõe uma impressão positiva da natureza humana: o homem nascia bom, mas era corrompido pela sociedade. Portanto, no estado de natureza primordial, no qual ainda não se tinham formado sociedades, vivia-se num ambiente pacífico. Cada pessoa existia solitariamente e em harmonia com a natureza. Os seus desejos eram simples – mais uma vez, ao contrário de Xxxxxx, que considerava que as pessoas des- te estado eram guiadas pelo desejo de ter tudo, Xxxxxxxx julgava que esse desejo megalómano só tinha começado a existir no contexto da sociedade – e facilmente satisfeitos pela natureza, que era próspera e abundante. Os seres humanos eram nómadas e os contactos entre si eram esporádicos e fugazes, nunca criando, por isso, grandes conflitos. Segundo Xxxxxxxx, dois princípios fundamentais da alma humana antecediam a razão: o amor-de-si e a compaixão. O primeiro corres- ponde ao desejo do bem-estar e da autoconservação, tanto individual
como da espécie; enquanto o segundo corresponde à compaixão, ma- nifestada pela repugnância que cada um sente ao ver o outro a sofrer. Juntando ambos os princípios, forma-se um cenário de existência pra- zerosa e de coexistência pacífica e igualitária entre todos os habitantes da Terra.
Como se explica então a necessidade de formar uma instituição política? Desde este estado primordial, o ser humano tem uma carac- terística que o distingue dos outros animais: o poder de decisão sobre o que a natureza lhe oferece, isto é, a capacidade de aceitar ou recusar algo – construindo-se, assim, como um agente livre. Relacionada com esta liberdade natural, está a sua capacidade de se aperfeiçoar: a perfe- tibilidade. Esta faculdade fá-lo estar em constante autotransformação, sendo fundamental para explicar o desenvolvimento da humanidade. De facto, foi através desta característica humana que se desenrolaram, segundo Xxxxxxxx, todos os acontecimentos e processos responsáveis pela passagem do estado de natureza ao estado civilizado (e do início deste até aos nossos tempos). Neste sentido, pode dizer-se que a perfe- tibilidade funciona como um motor da história.
No entanto, o progresso não é um fenómeno necessariamente bom para Xxxxxxxx. A sua perspetiva da sociedade moderna está associada a ideias de decadência e corrupção. Assim, com o desenrolar do tempo, a situação original de pura harmonia do estado de natureza desenvolveu-
-se para um cenário onde, em parte, devido a uma crescente escassez, as pessoas começaram a cooperar entre si e a formar pequenas comuni- dades, por compreenderem que isso trazia vantagens na satisfação das suas necessidades materiais. No seguimento deste processo, surgiram também a agricultura e a metalúrgica, o que levou à primeira reivin- dicação da posse de bens e tornou o ser humano maioritariamente se- dentário. Desta forma, a sociedade trouxe consigo dinâmicas de poder, dependência e dominação, não só causando, como congelando a desi- gualdade entre os indivíduos, e tornando necessária uma nova solução para a vida coletiva.
Por esta razão, segundo Xxxxxxxx, as pessoas acordaram entre si fundar uma instituição política, que garantisse segurança e liberdade a todos: nasceu assim o estado civil, descrito n’O Contrato Social.
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Muito já foi dito sobre Xxxxxxxx e a sua teoria política foi sujeita às mais diversas interpretações: pode ser lido como um liberal (Soren- son, 1990), como um democrata (Xxxxxx, 1984), como um totalitário (Talmon, 1952), como um inimigo da liberdade (Berlin, 2002) ou como
alguém que deseja regressar ao modelo das cidades-Estado da Grécia Antiga (Constant, 1819). Pode ainda ser compreendido como um pre- cursor do comunismo (Levine, 1993), do anarquismo (Goodway, 2011) ou do comunitarismo (Reedy, 1995). Especificamente sobre a liberda- de, autores como Xxxxxx Xxxxxx (1969) consideraram-no um defensor da “liberdade positiva”; por outro lado, autores como Xxxxxx Xxxxxx (1993) leram-no como estando especialmente preocupado em proteger a esfera da “liberdade negativa”; já Xxxxxxx Xxxxxxx (2006) sugeriu que existem na sua obra quatro tipos diferentes de liberdade: a natu- ral, a civil, a democrática e a moral; e, ainda, autores como Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx (2001) e Xxxxxx Xxxxx (1986), associaram-no às origens da ideia de autonomia.
A perspetiva que exponho neste ensaio segue, principalmente, as leituras destes dois últimos autores: Xxxxxxxxx e Xxxxx. Focando-se nas ideias de autonomia e autodeterminação, estes são os mais efica- zes a demonstrar como o projeto de Xxxxxxxx garante a liberdade in- dividual, ainda que esta esteja sempre dependente de uma dimensão comunitária.
Assim, no primeiro capítulo, exponho a teoria política rousseu- aniana, tanto através de uma leitura próxima d’O Contrato Social, como através da bibliografia secundária. Divido este capítulo em cinco subcapítulos: começo por explicar melhor as razões que tornaram a criação do pacto social necessária; em seguida, apresento o conceito da Vontade Geral; no subcapítulo seguinte, exponho os conceitos da li- berdade civil e da liberdade moral; por sua vez, no quatro subcapítulo, demonstro como a Vontade Geral desempenha um papel fundamental na garantia da liberdade, funcionando como pré-condição para esta; por fim, analiso como, através da sua teoria, Xxxxxxxx propõe uma superação do estado de alienação da comunidade.
Uma vez que o tema que me motiva é a relação entre a liberdade individual e a comunidade, procuro, no segundo capítulo, confrontar Xxxxxxxx com os argumentos de críticos – Xxxxxxxx Xxxxxxxx (1767- 1830), Xxxxx Xxxxxx (1916-1980) e Xxxxxx Xxxxxx (1909-1997) – que o acusaram de ter criado um projeto totalitário, ao dar maior importância à dimensão comunitária do que à individual. Tento, na medida do pos- sível, defender Xxxxxxxx destas críticas, argumentando que as leituras destes autores não estão, maioritariamente, corretas.
Por fim, no terceiro capítulo, estabeleço uma relação entre Rous- seau e as teorias da democracia radical, em especial, as desenvolvidas por Xxxxxxx Xxxxxx (1935-2014) e Xxxxxxx Xxxxxx (1943- ). Para isso, baseio-me, principalmente, na obra Xxxxxxxx and Radical Democra- cy (2010) de Xxxxx Xxxxxx. Esta tentativa de atualização de Xxxxxxxx pareceu-me importante de mencionar pois, através de uma leitura in-
vulgar d’O Contrato Social, dá resposta ao problema do pluralismo. O pluralismo é uma das questões mais presentes nas reflexões sobre o mundo contemporâneo, e Xxxxxxxx é, maioritariamente, associado a uma ideia de uniformização e harmonia, que, à primeira vista, pare- ce entrar em conflito com o pluralismo. Argumentando pelo contrário, e demonstrando como uma sociedade governada pela Vontade Geral pode ser uma comunidade plural, é possível sugerir que ler e refletir sobre Xxxxxxxx continua um exercício pertinente na atualidade.
1. A garantia da liberdade n’O Contrato Social
Xxxxxxxx começa O Contrato Social com a seguinte frase: “O homem nasceu livre mas em toda a parte está a ferros. Este julga-se senhor dos outros e é mais escravo do que eles. Como se deu esta trans- formação? Ignoro-o. O que pôde torná-la legítima? Penso que sei res- ponder a esta pergunta.” (CS, 1.1.1, p.17)
É importante notar que a questão que Xxxxxxxx coloca não é a de como nos libertarmos destes ferros, mas de como lhes dar legitimida- de. Mas o que são estes ferros, estas correntes a que estamos presos? A autoridade política. Assim, há uma visão negativa sobre esta – é repre- sentada como ferros que nos aprisionam – mas a proposta do autor é de a legitimar, em vez de a eliminar, porque entende que esta é necessária, isto é, que uma sociedade sem autoridade seria impossível. No entanto, a questão é: como pode esta ser considerada legítima? Ou, por outras palavras, que condições é que a tornam legítima? A resposta está pre- sente no contrato político descrito por Xxxxxxxx.
Segundo este autor, ser-se livre significa obedecer apenas à sua própria vontade e não à de outro (ficará claro, ao longo deste capítulo, porquê). Então, para que a autoridade seja legítima e, portanto, res- peite a liberdade de cada um, esta autoridade terá de vir também de cada um. Assim, o que Xxxxxxxx sugere para legitimar a autoridade é a formação de uma sociedade política na qual os indivíduos realizem a sua natureza de seres livres, ao viverem juntos enquanto iguais, obe- decendo apenas às leis que fazem para si próprios, e cuja deliberação seja guiada por uma conceção do bem comum da comunidade no seu todo. Neste sentido, podemos entender que o objetivo de Xxxxxxxx n’O Contrato Social é encontrar uma estrutura política que seja legítima, o que implica que esta seja capaz de garantir a liberdade de todos.
No entanto, há outras formas de compreender o seu projeto polí- tico: uma delas é como sendo a tentativa de criar uma forma de asso- ciação política entre indivíduos que consiga assegurar-lhes a proteção da sua integridade física e a dos seus bens, sem, com isso, limitar a
sua liberdade. Assim, escreve Xxxxxxxx: “«Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associação e em que cada uma, ao unir-se a todos, só a si obedeça e continue tão livre como antes.» Tal é o problema funda- mental que no Contrato Social encontra solução.” (CS, 1.6.4, p.27). Para além desta, podemos ainda considerar outra formulação da ques- tão principal: que forma de associação seria racionalmente acordada por pessoas iguais, que são motivadas pelo amor-próprio e, acima de tudo, pelo interesse em salvaguardarem a sua liberdade? Outra forma ainda de compreender a sua obra é como uma tentativa de reestruturar a dependência social, perspetiva que abordo, em maior profundidade, no primeiro subcapítulo.
Assim, neste primeiro capítulo, pretendo analisar a forma como Xxxxxxxx, na obra O Contrato Social, propõe a construção de uma co- munidade capaz de garantir a liberdade dos seus membros. Este é cons- tituído por cinco subcapítulos: começo por explicar como teria surgi- do a necessidade da criação do pacto social; em seguida, apresento as características fundamentais da Vontade Geral, um conceito chave da teoria política rousseauniana; no terceiro subcapítulo, evidencio a distinção entre a liberdade civil e a liberdade moral e o que é que cada uma implica; posteriormente, demonstro como a Vontade Geral é, não só uma concretização da liberdade moral, como também representa a própria pré-condição destas liberdades; por fim, explico como, atra- vés d’O Contrato Social, Xxxxxxxx propõe uma superação da condição de alienação, e como isso representa a verdadeira libertação dos seus membros.
1.1. Porquê O Contrato Social?
Para entender melhor O Contrato Social, é fundamental conhe- cer as razões que levariam à sua criação. Para isto, é preciso voltar ao estado de natureza, que antecedeu a formação do estado civil. Nesta secção, ficará também esclarecido o que é a liberdade natural, e como o projeto político de Xxxxxxxx se constrói como uma resposta a uma situação de dependência social.
Segundo Xxxxxxxx, ao formar pequenas comunidades, os indiví- duos começaram a socializar entre si, o que resultou num alargamento das suas capacidades intelectuais. Em específico, desenvolveram no- ções comparativas como bem e mal, forte e fraco, etc. e perceberam que os outros os julgavam, tal como eles o faziam. Através dessa com- preensão, surgiu o desejo de ser visto pelos outros como tendo uma boa reputação – desejo que consiste, para Xxxxxxxx, numa das principais causas da violência, até mais do que a competição ou o medo. O termo
usado pelo autor é amor-próprio e pode entender-se como algo próxi- mo da vaidade, uma versão degenerada do amor-de-si, anteriormente mencionado, que só se desenvolve em sociedade, com a formação do “eu”. O amor-próprio faz com que as pessoas vivam constantemen- te fora de si mesmas, existindo apenas em função das opiniões dos outros e eternamente na preocupação de serem desejadas e invejadas. Assim, cria-se um estado de alienação – os indivíduos não se sentem plenamente em si mesmos, de forma autêntica; em vez disso, vivem constantemente “fora de si” –, que faz os membros de uma comuni- dade considerarem-se uns aos outros como inimigos em permanente competição, ainda que dependam destes até para o reconhecimento do seu próprio valor.
Aos dois períodos distintos do estado de natureza apresentados por Xxxxxxxx, estão associados dois tipos diferentes de liberdade na- tural, que é definida como a liberdade de quem vive fora de qualquer instituição política. Assim, no estado primordial, existe a liberdade en- quanto autossuficiência, do recolector que vive sozinho e em harmonia com a natureza, sem qualquer constrangimento externo para além dos limites materiais do mundo que habita, mas que o afetam pouco, uma vez que as suas necessidades são muito simples. E a liberdade natural da sociedade pré-contrato, do estado “degenerado”, que consiste no “ilimitado direito a tudo aquilo que o [indivíduo] tente e possa alcan- çar” (CS, 1.8.2, p.32), mas que existe apenas na medida em que cada pessoa consegue assegurá-la com a sua própria força.
Segundo esta descrição, seguindo o pensamento de Xxxxxxxx, po- deria parecer apetecível voltar à liberdade natural do primeiro estado de natureza. No entanto, voltar a este estado, à autossuficiência total, não só é extremamente difícil, como custaria a própria humanidade aos indivíduos que tentassem fazê-lo. Regressar a este estado signifi- caria passar a estar completamente desligado de qualquer laço social, tornando impossíveis atividades e características fundamentais do ser humano enquanto ser humano, como a linguagem, a razão, a virtude, a própria subjetividade, ou a satisfação de necessidades emocionais como são o amor conjugal ou o reconhecimento dos outros. Ou seja, para Xxxxxxxx, os seres humanos não podem ser totalmente indepen- dentes, o que não significa que não possam ser livres, apenas que, para o autor, independência e liberdade não são sinónimos.
Na verdade, esta distinção entre liberdade e independência é fun- damental para compreender o projeto político de Xxxxxxxx, uma vez que um dos seus principais objetivos é demonstrar como a dependência básica entre os seres humanos pode coexistir com a sua liberdade in- dividual (Neuhouser 1993, 374). De facto, a dependência social é algo necessário, no sentido de ser ineliminável: precisamos uns dos outros
para sobreviver, precisamos de cooperar e de viver em conjunto. Mas esta dependência pode organizar-se através de diferentes estruturas so- ciais e políticas. Portanto, analisar como a dependência atua prejudi- cialmente no estado de natureza é fundamental para compreender O Contrato Social e as suas características.
A conceção de Xxxxxxxx de independência está relacionada com as necessidades humanas, no sentido em que, para o autor, a dependên- cia é criada por estas necessidades e, portanto, alguém é considerado independente, na medida em que é pouco afetado por estas. Assim, para conhecer o fenómeno da dependência é importante compreen- der as necessidades humanas: em que é que estas consistem, como se manifestam e que efeito têm nos indivíduos. O que é relevante para despoletar a criação de uma dependência não é tanto uma qualidade objetiva das necessidades (se são, realmente, essenciais ao bem-estar de alguém), mas o seu caráter subjetivo, isto é, a forma como se ma- nifestam e como influenciam o comportamento de cada um. Todas as necessidades, tenham realidade objetiva ou não, têm o potencial de criar dependência, desde que existam subjetivamente para o sujeito, ou seja, desde que sejam percecionadas por este como necessidades (Neuhouser 1993, 375-376). Podemos falar, segundo Xxxxxxxx, de dois tipos de necessidades: as que abrangem os bens envolvidos na reprodução da vida e cuja importância deriva da constituição física dos seres humanos, e as que têm origem no amor-próprio, que mencionei, anteriormente, como sendo a origem da violência no estado de nature- za. Poderia dizer-se, simplificadamente, que as primeiras dão origem à dependência económica e as segundas à dependência psicológica, mas o caso é mais complexo do que isso.
A dependência económica é uma consequência da divisão mate-
rial do trabalho e da divisão da sociedade em classes económicas de ri- cos e pobres (ou, dos proprietários e os não-proprietários dos meios de produção, numa perspetiva mais contemporânea – (Neuhouser 1993, 377)). Por sua vez, a dependência psicológica é criada pela necessidade que temos de uma validação externa do nosso próprio valor. Ambas as dependências existem apenas em sociedade, uma vez que o ser humano do estado de natureza original conseguia viver bem em total indepen- dência social, sem ter nenhuma destas necessidades (e, consequente- mente, dependências).
No entanto, as necessidades do amor-próprio contribuem também para a dependência económica – na verdade, desempenham um papel dominante nesta. Isto porque muitas das necessidades que nos tornam dependentes do trabalho dos outros e, portanto, nos tornam dependen- tes economicamente destes, são causadas por necessidades criadas pelo amor-próprio. Assim, embora a possessão e consumo de coisas
não possa, por si só, satisfazer os desejos do amor-próprio, as merca- dorias desempenham um papel central nas estratégias dos indivíduos para ganharem o respeito e reconhecimento dos outros: têm um valor social fundamental.
Por outro lado, a liberdade, ao contrário da independência, é de- finida, por Xxxxxxxx, sem mencionar o conceito de necessidade. Esta refere-se à condição da vontade, e, mais precisamente, a uma relação particular entre a vontade e o mundo: a um acordo entre a vontade e a ação (Neuhouser 1993, 380). No entanto, esta não corresponde pro- priamente a alguém fazer tudo aquilo que é a sua vontade – esta defini- ção é demasiado exclusiva, pois não tem em conta, por exemplo, fato- res de impedimento naturais –, mas sim a alguém não ser constrangido pela vontade de outro, isto é, por uma vontade exterior e estranha à sua. A primeira definição proposta, para além de ser demasiado exclusiva, ignora uma característica que faz da liberdade, para Xxxxxxxx, um fe- nómeno inerentemente moral: a liberdade refere-se sempre a uma rela- ção entre uma vontade e outra. Neste sentido, ser coagido é obedecer a uma vontade alheia à sua, enquanto ser livre é estar livre da vontade de outro. Portanto, uma pessoa é livre na medida em que obedece apenas à sua própria vontade e, mais explicitamente, não obedece a nenhuma outra vontade sem ser a sua.
Embora exista esta diferença entre liberdade e independência, no
atual estado de coisas (isto é, tanto no contexto social e político de Xxxxxxxx, como no contemporâneo) é inegável que a dependência seja um dos maiores obstáculos à realização da liberdade individual. Em grande medida, porque esta é a origem dos fenómenos de dominação e submissão social, pelo menos em dois sentidos (Neuhouser 1993, 381): primeiro, porque não é possível existir submissão sem dependência. A mútua dependência e as necessidades recíprocas que unem os seres humanos formam as condições de possibilidade da dominação, sub- missão, subjugação e escravatura. É impossível escravizar alguém sem antes o tornar incapaz de viver sem outras pessoas, ou seja, na condi- ção de dependência social. Em segundo lugar, porque se confrontados com a escolha entre serem explorados e dominados para conseguirem assegurar as suas necessidades básicas de sobrevivência ou, em alter- nativa, agirem consoante as suas próprias vontades, é expectável que as pessoas escolham a primeira opção. Em parte, porque a força do desejo de saciar as necessidades é praticamente irresistível, mas, sobretudo, porque é simplesmente impossível viver sem satisfazer necessidades básicas como comer ou dormir, entre outras. Assim, como a depen- dência, tanto económica como psicológica, é incontornável, vários são os casos em que as pessoas acabam por se sujeitar a relações de do-
minação. E uma pessoa que é subjugada para conseguir sobreviver, não pode, obviamente, ser considerada livre, uma vez que não obedece verdadeiramente à sua própria vontade. Mas como é impossível viver de outra forma, vê-se obrigada a estar nessa situação.
O que fazer então? Se erradicar completamente a dependência social é impossível, a solução será reestruturá-la, de forma a torná-
-la compatível com a liberdade. Isto significa criar uma nova estrutura para a contínua cooperação social entre os seres humanos, que permita a cada um existir em liberdade, ou seja, obedecendo apenas à sua pró- pria vontade.
Nesta secção, analisei a condição alienante do estado de natureza, no qual a dependência social está estruturada de forma a permitir rela- ções de dominação entre os indivíduos, o que impossibilita a realização da sua liberdade. Como resposta a esta situação, surge O Contrato So- cial, que envolve a proposta de uma sociedade orientada pela Vontade Geral.
1.2. A Vontade Geral
Como vimos, a reestruturação da dependência social é um dos objetivos principais do projeto que Xxxxxxxx desenvolve n’O Contrato Social. Nesse sentido, o autor diz-nos que obedecer à Vontade Geral é “a condição pela qual cada cidadão que se entrega à pátria fica defendi- do de qualquer dependência pessoal, condição que constitui o artifício e o fundamento da máquina política, a única que torna legítimos os compromissos civis que, sem ela, seriam absurdos, tirânicos e se arris- cariam a enormes abusos.” (CS, 1.7.8, p. 31). De facto, o conceito da Vontade Geral é essencial para compreender a relação entre a pertença a uma comunidade política e a liberdade individual: segundo Rous- seau, é devido a esta que “os membros de um Estado” são “cidadãos e livres” (CS, 4.2.8, p.125).
Assim, nesta secção, procuro clarificar as características princi- pais do conceito da Vontade Geral, um dos elementos-chave para a compreensão da teoria de Xxxxxxxx.
Não há uma simples definição do que é a Vontade Geral: com- preendê-la envolve compreender os compromissos de Xxxxxxxx com a soberania popular, a justiça, a liberdade, a igualdade, etc. Ainda assim, Xxxxxx Xxxxxx (1969, 184) refere-se a esta como a metáfora mais bem-
-sucedida de Xxxxxxxx e argumenta que esta transmite tudo o que ele mais queria dizer.
Este termo não é tão pouco uma inovação de Xxxxxxxx. Na verda- de, a “Vontade Geral” era um conceito que tinha emergido décadas an- tes, no contexto da filosofia da religião francesa (Williams 2014, 294). Xxxxxxxx secularizou-o e apropriou-se dele para a sua filosofia políti-
ca. A importância da vontade está presente ao longo de todas as suas obras e esta é, para o autor, sempre uma vontade livre. Para elucidar o conceito de Vontade Geral será útil fazer duas distinções: por um lado, entre uma vontade particular e a Vontade Geral, e, por outro, entre esta e a vontade de todos.
Uma vontade particular é aquela que tem em conta apenas inte- resses particulares: ou individuais ou de certos grupos de uma comu- nidade, e não da comunidade como um todo. Segundo Xxxxxxxx, foi, por um lado, o conflito entre os diferentes interesses particulares que tornou necessário o pacto social, mas, por outro, é a concordância entre estes que o torna possível. Esta concordância é o interesse comum, re- presentado pela Vontade Geral. Neste sentido, diz Xxxxxxxx: “É o que há de comum nos diferentes interesses que constituem o vínculo social, pois, se não houvesse um ponto em que todos estivessem de acordo, nenhuma sociedade poderia existir.” (CS, 2.1.1, p.39) E uns parágrafos a seguir menciona que “a vontade particular, pela sua natureza, tende para a preferência e a vontade geral, para a igualdade”. (CS, 2.1.3, p.39)
Por sua vez, a vontade de todos é a soma das vontades particula- res, continuando, por isso, a escutar apenas o interesse privado – indi- vidual ou de determinados grupos. Pelo contrário, a Vontade Geral não é apenas um agregado das vontades particulares, mas sim aquilo que resta ao retirar das vontades particulares “os prós e os contras que entre si se anulam” (CS, 2.3.2, p.42). Assim, a Vontade Geral parte de todos e representa aquilo que é melhor para o bem comum, para o interesse de toda a comunidade como um todo.
Como a existência da Vontade Geral é o que torna possível O Contrato Social, é esta que deve governá-lo: “somente a vontade geral pode, por si só, dirigir as forças do Estado, de acordo com o objetivo da sua instituição, que é o bem comum”, pois “é unicamente sobre este interesse comum que a sociedade deve ser governada.” (CS, 2.1.1, p.39) Assim, o exercício da Vontade Geral constitui a Soberania: “afir- mo que a soberania, sendo o exercício da vontade geral, nunca pode alienar-se, e que o soberano, que é um ser coletivo, só por si próprio pode ser representado.” (2.1.2, p.39)
A Soberania, enquanto exercício da Vontade Geral, é o processo de deliberação das leis que regem a comunidade. Ou seja, esta constitui o poder legislativo, correspondendo, por analogia, ao conjunto de nor- mas que formam a constituição de um Estado moderno. O poder exe- cutivo cabe ao que Xxxxxxxx designa como “Príncipe”, que também é um corpo coletivo e que admite representação – ou seja, é um grupo selecionado de pessoas que desempenha esta função. A Soberania, no entanto, não pode ser representada apenas por uma parte da comuni-
dade: toda a população tem de fazer parte do processo deliberativo das leis. Se tal não for o caso, a probabilidade de se decidir corretamente, isto é, da decisão coincidir com a Vontade Geral, é reduzida, porque é mais provável que o resultado represente apenas vontades particulares. E isto levará, inevitavelmente, ao corromper da sociedade e ao fim do pacto social. Portanto, implementar a Vontade Geral corresponde ao ato de legislar, mas implica que todos os cidadãos votem tendo em mente o bem comum, e não consoante os seus interesses pessoais (in- dividuais ou do seu grupo).
Gopal Screenivasan (2000, 574) argumenta que a Vontade Geral surge quando quatro condições são tidas em conta na deliberação: (1) o assunto da deliberação é perfeitamente geral, (2) as conclusões da deli- beração aplicam-se de forma igual a todos os membros da comunidade,
(3) todos os membros da comunidade participam na deliberação, e (4) todas as partes da deliberação pensam por si próprias. No entanto, há ainda uma quinta dimensão formal da generalidade da aplicação: todas as leis devem ser direcionadas para o bem comum (Xxxxxxxx 2014, 302).
Esta última condição aponta para que a Vontade Geral não seja so- mente um conceito formal, ou seja, relativo apenas a um determinado procedimento, independentemente do seu conteúdo. Isto porque, ainda que “comum”, em “bem comum”, possa ser considerado um termo for- mal, “bem”, neste contexto, é um termo substantivo, isto é, um termo com conteúdo valorativo envolvido. De facto, a Vontade Geral é mais do que um conjunto de critérios puramente formais para a legitimidade da legislação (Neuhouser 1993, 388): é também um conceito substanti- vo, que carrega necessariamente consigo princípios e valores específi- cos. Para além disso, a leitura meramente processual da Vontade Geral é insuficiente porque ignora as razões que levaram Xxxxxxxx a escolher as características formais que escolheu. Nomeadamente, porque é que o autor insiste que as leis devem ser derivadas de todos, devem igual- mente aplicar-se a todos e ter em conta o interesse comum? Normal- mente, escolher um determinado conjunto de regras formais justifica-se por essas regras tenderem para promover certos valores substantivos.
Assim, um dos principais elementos que Xxxxxxxx incorpora na
Vontade Geral é a igualdade: “Se averiguarmos em que consiste pre- cisamente o maior de todos os bens que deve ser a finalidade de todo o sistema de legislação, veremos que ele se resume a dois objetivos principais: a liberdade e a igualdade: a liberdade porque toda a parti- cular dependência é força retirada ao corpo do Estado; igualdade, por- que a liberdade não pode existir sem ela.” (CS, 2.11.1, p.65). O que este excerto nos explica é que, segundo Xxxxxxxx, para eliminar as
consequências negativas da dependência, impeditivas da liberdade, é fundamental estabelecer, através da legislação, igualdade entre todos os cidadãos. Assim, as leis n’O Contrato Social têm como objetivo a igualdade entre os cidadãos, não porque a igualdade seja valiosa em si mesma, mas porque esta promove a liberdade. Tornar seres mutuamen- te dependentes mais iguais, ajuda a protegê-los da condição de submis- são à qual a dependência, estruturada de outra forma, os condenaria.
Há pelo menos três formas de como a legislação, com este obje- tivo, estabelece a igualdade (Neuhouser 1993, 387): A primeira cor- responde à garantia de os cidadãos usufruírem de um nível de igual- dade material significativo. Xxxxxxx Xxxxxxxx: “(…) quanto à riqueza, que nenhum cidadão seja bastante opulento para comprar outro, nem nenhum tão pobre que seja obrigado a vender-se” (CS, 2.11.2, p.66). Limitar a distância entre os extremos da riqueza alivia a dependência económica dos menos afortunados e, portanto, reduz a probabilidade de terem de se submeter à vontade de outros para satisfazer as suas necessidades materiais. Para além disso, a existência de extremos de riqueza e de pobreza numa comunidade dissolve o sentido do bem co- mum partilhado por todos. As diferentes classes veem-se não como um só povo, mas como duas nações a partilharem a mesma terra. Assim, para uma comunidade política ter estabilidade, estes dois extremos têm de ser o menos acentuados possível, pois são ambos fatais para o bem comum e, portanto, para a possibilidade de o pacto social ser bem-
-sucedido.
A segunda forma é a universalidade da legislação: a igualdade for- mal dos cidadãos perante a lei. Esta é universal em dois sentidos: é im- posta por todos e sobre todos, de forma igual. É esta característica que faz a Vontade Geral ser geral: “Os compromissos que nos unem ao cor- po social são obrigatórios porque são mútuos; e tal é a natureza que, ao cumpri-los, não é possível trabalhar para outrem, sem que o façamos para nós também. (…) que a vontade geral, para verdadeiramente o ser, deve sê-lo tanto nos fins como na sua essência; que deve partir de todos para se aplicar a todos; e que perde a sua natural retidão quando tende para alguma finalidade individual e determinada porque, ao ajuizar do que lhe é estranho, perde todo e qualquer princípio de equidade que a possa guiar.” (CS, 2.4.5, p.44-45). A lei, ao ser igualmente aplicada a todos, impede que se imponham tratamentos arbitrariamente despro- porcionais a determinados indivíduos ou grupos particulares, ou que se decida criar leis demasiado “pesadas”, uma vez que todos sofreriam com isso. Já a característica de esta “vir” de todos implica um certo tipo de igualdade antes da lei, que consiste no facto de cada cidadão ser reconhecido como tendo interesses fundamentais, que nenhuma lei pode violar e que são igualmente importantes aos interesses fundamen-
tais de todos os outros cidadãos. Assim, a universalidade da lei pode ser compreendida como uma resposta ao problema da dependência so- cial, uma vez que protege os interesses fundamentais dos indivíduos, ao bloquear um tratamento arbitrário por parte de vontades oscilantes de outros.
A terceira forma é tornar a comunidade numa fonte da estima que os indivíduos procuram devido às suas necessidades do amor-próprio. Isto acontece através da garantia de igualdade de respeito enquanto cidadãos, que é uma consequência direta da característica de univer- salidade. A ideia é que ser considerado cidadão representa uma con- firmação parcial, mas não insignificante, do valor que cada um tem para os outros. Isto torna os indivíduos menos dependentes de pessoas particulares para a satisfação das suas necessidades de reconhecimento dos outros, uma vez que a comunidade, e a lei geral que a rege, repre- sentam parte desse papel. O que faz dos indivíduos, portanto, seres mais livres.
Assim, numa sociedade governada pela Vontade Geral, os cida- dãos partilham um entendimento do bem comum, que é fundado no comprometimento de cada um em tratar os outros como iguais. E de- vem não só ser capazes de chegar a um acordo teórico sobre o que constitui este bem comum, ou seja, sobre o que constitui a Vontade Geral, como também ser capazes de desejá-lo. Isto porque se alguém fosse capaz de discernir qual o interesse comum, mas fosse incapaz de o afirmar ou defender – ou seja, tivesse discernimento teórico sobre o interesse comum sem ter qualquer relação consciente e voluntária com ele –, então as ações reguladas pela conceção de bem comum (ou seja, a Vontade Geral), não podiam ser consideradas como derivando da sua própria vontade. Portanto, para os indivíduos permanecerem livres, en- quanto sujeitos à Vontade Geral, devem desejar o bem comum (Xxxxx 1986, 279).
Nesta secção, demonstrei como a Vontade Geral é um conceito
que difere da vontade particular e da vontade de todos, e porque é que esta deve orientar a sociedade d’O Contrato Social. Expliquei ainda que esta envolve, para além de uma dimensão formal, um conteúdo substantivo relacionado com o bem comum e com a igualdade. Esta última, por sua vez, é fundamental para a liberdade e é garantida pela legislação de três formas diferentes. Xxxxxxxx, concluindo que os indi- víduos são livres obedecendo à Vontade Geral na medida em que são capazes de desejar o bem comum da comunidade.
1.3. Liberdade civil e liberdade moral
Falámos até aqui de liberdade como se esta fosse uma palavra monossémica. No entanto, há várias formas de compreender este con-
ceito. Xxxxxxxx fala-nos de dois tipos de liberdade: a liberdade civil e a liberdade moral.1
Assim, nesta secção clarifico a distinção entre liberdade civil e li- berdade moral e explico porque é que, segundo Xxxxxxxx, a autonomia só pode ser plenamente realizada no seio de uma comunidade como a descrita n’O Contrato Social.
A liberdade civil assemelha-se à liberdade natural, na medida em que ambas são definidas como uma ausência de constrangimento ex- terno, ou seja, ambas envolvem a capacidade de alguém fazer aquilo que lhe apetece, sem ser impedido por outros. Neste sentido, podemos considerá-las como liberdades negativas. Em cada caso, este tipo de liberdade tem os seus limites: a liberdade natural é constrangida pelos limites do poder de cada um em proteger-se, enquanto a liberdade civil, que só existe no contexto de uma instituição política, é limitada nor- mativamente pelas leis baseadas na Vontade Geral, que definem e as- seguram esferas iguais de liberdade negativa para todos os cidadãos. A passagem da liberdade natural à liberdade civil dá-se através do pacto social: “O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natu- ral e um ilimitado direito a tudo aquilo que o tente e possa alcançar; o que ganha, é a liberdade civil e a propriedade daquilo que possua. Para não haver enganos nestas compensações, deve distinguir-se a liberdade natural, que só tem por limites a força individual, da liberdade civil, limitada pela vontade geral.” (CS, 1.8.2, p.32)
O pacto social já se demonstraria vantajoso se apenas garantisse a
liberdade civil, uma vez que este tipo de liberdade negativa é bastante mais seguro do que a liberdade natural. Mas Xxxxxxxx atribui ao estado civil ainda outro tipo de liberdade: a liberdade moral. Esta é identifica- da com a autonomia (auto – referente ao próprio agente + nomia – re- ferente à lei) e significa a obediência à lei que cada um determina para si próprio: “a liberdade moral, a única que torna o homem realmente senhor de si, uma vez que é escravatura ceder ao impulso dos apetites enquanto que a obediência à lei que se prescreveu traz a liberdade.” (CS, 1.8.3, p.32) Este tipo de liberdade não é definido pela ausência de algo, mas sim pela presença positiva da lei, e uma lei que tem a carac- terística de ser determinada pelas mesmas pessoas que estão sujeitas a ela. Assim, a liberdade moral é um tipo de liberdade positiva.
Nas circunstâncias em que a lei vigente, numa determinada comu- nidade política, me proíbe de agir como eu quero, a minha vontade é constrangida por algo externo a ela, limitando a minha liberdade. No
1. Xxxxxxx Xxxxxxx (2006, 71) fala ainda de um terceiro tipo de liberdade: o democrático. No entanto, julgo não ser necessário abordá-lo, pois corresponde apenas à liberdade moral, mas aplicada a um coletivo. Sendo que, para Xxxxxxxx, a liberdade moral inclui também uma dimensão coletiva, não me parece justificado fazer uma distinção entre esta e a liberdade democrática.
entanto, se as leis que restringem a minha ação forem, também, decidi- das por mim, isto é, partirem da minha própria vontade, então eu esta- rei a obedecer a mim mesma. O que significa que sou livre, ainda que obedeça a uma autoridade. O que é necessário para que isto aconteça é que eu seja coautora dessa autoridade. Torna-se claro, portanto, o pa- pel fundamental que a Vontade Geral desempenha na teoria política de Xxxxxxxx: através desta, todos os cidadãos são coautores das leis que regem a comunidade e, assim, continuam livres, ainda que obedeçam a uma autoridade política.
Se todos os cidadãos, não admitindo qualquer tipo de represen- tação, se reúnem para decidir as leis que irão impor a si mesmos, e orientam o seu processo de deliberação por um entendimento coletiva- mente partilhado do bem comum, torna-se possível o concílio entre a autoridade e a liberdade. Por outras palavras, reconcilia-se a obediên- cia à lei com a obediência à própria vontade de cada um. Este era um dos objetivos principais de Xxxxxxxx. Mas esta liberdade moral não pode existir de forma independente das circunstâncias sociais de cada um. Pelo contrário, só pode ser alcançada numa sociedade política e, em particular, apenas na comunidade que Xxxxxxxx descreve, pois é através da Vontade Geral que um cidadão pode obedecer somente à sua vontade, isto é, às leis que prescreve para si próprio.
Na verdade, há várias razões pelas quais a autonomia não pode ser alcançada por indivíduos isolados e autossuficientes (Neuhouser 2011, 489). Uma delas é que as capacidades cognitivas necessárias ao exercício da autonomia – capacidades de linguagem, reflexão e de considerar a perspetiva dos outros – só podem ser desenvolvidas em sociedade, onde os indivíduos têm relações duradouras e substanciais com os outros. Mas isto não toca no ponto fundamental da razão pela qual a autonomia requer uma renúncia parcial à individualidade. Há dois aspetos que explicam esta necessidade: o primeiro é que para de- sejar o bem comum, isto é, o conteúdo da Vontade Geral, é preciso que cada cidadão expanda a sua área de preocupação para além dos seus próprios interesses particulares. Ou seja, é preciso que haja uma expansão da auto-conceção de cada um. Em vez de se verem a si pró- prios como indivíduos isolados e com interesses meramente privados, os cidadãos autónomos devem considerar-se também como membros de uma comunidade maior, cujos interesses vitais incluem os interesses dos outros (os seus interesses na vida, na segurança e, principalmente, na liberdade). Esta necessidade de expandir a conceção do “eu” resulta da completa interdependência em que os seres humanos vivem. Uma vez que a cooperação com os outros é necessária para que cada um realize os seus próprios interesses fundamentais, ou seja, que esta é imprescindível não apenas para que cada um sobreviva, mas para que
seja e permaneça livre, então as necessidades de cada cidadão, tanto físicas como morais, implicam-no no projeto social e político – projeto este que está incumbido de realizar os interesses fundamentais de todos os membros da sociedade. Para aprovar a Vontade Geral como a sua própria vontade, cada cidadão deve estar interessado no objeto do pro- jeto coletivo – o bem comum –, e não meramente no seu próprio bem. E para que isso seja possível, é necessário que pense no bem-estar dos outros não como algo separado de si, mas como algo que faz parte do seu próprio bem-estar.
O segundo aspeto é que para alguém realizar os seus próprios inte- resses fundamentais precisa de participar numa comunidade regida por leis. Apenas se estas leis vierem de todos e forem igualmente aplicadas a todos, e se todos os cidadãos usufruírem de autonomia, é possível garantir que não há ninguém que possa reivindicar-se como autoridade única no processo de deliberação das leis. Apenas partilhando a auto- ridade por todos, é possível que ninguém fique de fora do processo e que toda a comunidade, permaneça livre. Neste sentido. os princípios que coordenam as ações dos cidadãos devem vir não de um “eu” ou de um “tu”, mas de um “nós”. Ou seja, não devem vir de um ou de outro indivíduo, mas de todos coletivamente.
Isto implica que cidadãos autónomos devem aceitar limitações à sua soberania moral. No entanto, aceitar estas limitações não é o mes- mo que renunciar inteiramente à soberania moral: a ideia de Xxxxxxxx é que, na passagem do estado de natureza para a sociedade política, o ideal de soberania completamente individual é substituído pelo da soberania igual e partilhada (Neuhouser 2011, 490).
A solução do problema que orienta O Contrato Social está, portan- to, na criação de uma comunidade auto-legisladora, e cuja legislação se oriente pela Vontade Geral. Ou, como formula Xxxxxx Xxxxx (2010, 16), o projeto de Xxxxxxxx corresponde a uma livre comunidade de iguais: livre, porque assegura uma completa autonomia política a cada membro; uma comunidade, porque é organizada à volta de um entendi- mento partilhado do bem comum, e de uma total lealdade a este; e uma comunidade de iguais, porque o conteúdo desse entendimento do bem comum reflete o bem-estar de cada membro da mesma forma. Assim, em condições de interdependência social, alcançamos uma liberdade completa apenas ao viver numa comunidade de iguais. Por esta razão, a exigência de igualdade não representa um limite à associação livre, mas é antes, um ingrediente fundamental e pré-condição necessária para que esse tipo de associação possa existir. E a comunidade, assim concebida, não é inimiga da liberdade nem da igualdade, mas sim uma configuração definida como resultado do compromisso com ambas.
Segundo esta perspetiva – a que chamaremos modelo da “liber-
dade-enquanto-autonomia-social”, seguindo a análise de Neuhouser (1993, 367), que se baseia principalmente na leitura de Xxxxx (1986) –, a comunidade política está essencialmente envolvida na realização da liberdade porque a pertença a esta é, em si, uma concretização dessa li- berdade. Mais concretamente, é uma concretização da liberdade moral, ou autonomia, no sentido em que os indivíduos governam as suas vidas através de princípios que ajudaram a formar, e que estão de acordo com a sua conceção do bem comum, conceção que é partilhada por todos. De certa forma, podemos dizer que os indivíduos permanecem livres numa sociedade governada pela Vontade Geral, apenas se forem cons- tituídos internamente como cidadãos, o que significa que são motiva- dos pelo bem comum e que, pelo menos no momento da deliberação, a Vontade Geral lhes fala mais alto do que as suas vontades particulares. Nesta secção, para além de apresentar a distinção de Xxxxxxxx en-
tre a liberdade civil e a liberdade moral, expliquei como, em condições
de interdependência social, a autonomia dos cidadãos só é possível se estes fizerem parte de uma livre comunidade de iguais. Para que a per- tença a esta comunidade conte como uma realização da liberdade mo- ral, os indivíduos devem identificar-se com a Vontade Geral, de forma a esta poder ser compreendida como a sua própria vontade.
1.4. A Vontade Geral enquanto pré-condição da liberdade
Nesta secção, pretendo, contudo, demonstrar como o modelo de liberdade apresentado no subcapítulo anterior se revela insuficiente. Destaco, para isso, duas passagens controversas d’O Contrato Social:
a) “(…) para que o pacto social não se transforme num formulá- rio vão, é necessário que, tacitamente, encerre este compromisso: que quem quer que se recuse a obedecer à vontade geral, por todos seja obrigado a cumpri-la; o que significa que o forçam a ser livre, pois esta é a condição pela qual cada cidadão que se entrega à pátria fica defendido de qualquer dependência pessoal, condição que constitui o artifício e o fundamento da máquina política, a única que torna legíti- mos os compromissos civis que, sem ela, seriam absurdos, tirânicos e se arriscariam a enormes abusos.” (CS, 1.7.8, p. 31)
b) “Quando se propõe uma lei, o que se pede de cada um não é que a aprove ou que a rejeite, mas se está ou não conforme com a vontade geral, que é também a sua: cada cidadão, ao entregar o seu voto, dá assim a sua opinião e, pela contagem dos votos, exprime-se a vontade geral. Quando vence a opinião contrária à minha, isso só prova que eu estava enganado e que o que eu considerava como sendo a vontade geral, não o era afinal. Se a minha opinião particular a tivesse vencido, teria procedido de maneira diferente daquela que tinha querido e então
deixaria de ser livre.” (CS, 4.2.8, p. 125)
Estas citações, embora ocorram em contextos diferentes da obra, expressam ambas a mesma ideia: é possível ser livre estando sujeito à Vontade Geral, mesmo que não se reconheça esta como consciente- mente sua, isto é, mesmo que a Vontade Geral não seja a sua vontade consciente. Isto parece significar que há alturas em que a Vontade Ge- ral é uma vontade externa aos cidadãos e que estes são livres, ainda que lhe obedeçam – o que é bastante intrigante, tendo em conta a ideia de Xxxxxxxx da liberdade enquanto não-obediência a uma vontade que não a da própria pessoa. Ainda assim, isto indica haver um sentido no qual, para Xxxxxxxx, a Vontade Geral ser a vontade de cada indivíduo não depende de uma relação subjetiva com essa vontade, de um reco- nhecimento dessa vontade como sua, de um desejar pessoal dela.
Para elucidar estas passagens, o modelo da “liberdade-enquanto-
-autonomia-social” não é suficiente. Como tentativa de resposta, po- der-se-ia, por exemplo, interpretar a passagem a) como estando apenas a afirmar que os cidadãos têm uma obrigação legítima de obedecer à Vontade Geral. E que, portanto, o poder coercivo de um Estado poderia legitimamente dirigir-se contra alguém, caso essa pessoa não obede- cesse. Esta obrigação de obedecer é geralmente compreendida como uma consequência do consentimento prévio, e atual, dos cidadãos aos termos d’O Contrato Social, que incluem a promessa de cumprir as leis geradas a partir da Vontade Geral. No entanto, se esta passagem for compreendida neste sentido, torna-se quase indistinguível de outras teorias contratualistas, como a de Xxxxx, segundo a qual a liberdade é algo que existe independentemente de uma instituição política, tendo esta apenas a função de a preservar.
Para além disso, esta leitura não tem em conta a passagem central e mais controversa: que ser forçado a cumprir a Vontade Geral é ser forçado a ser livre. Ou seja, que alguém, ainda que seja forçado a fazer algo, pode ser considerado livre. A resposta a isto está em prestar aten- ção à frase completa, onde Xxxxxxxx menciona que a Vontade Geral nos protege de “qualquer dependência pessoal”. O que acontece é que a proteção desta forma de dependência, como vimos na secção 1.1., é tão necessária à liberdade, que se torna possível considerar que a obe- diência à Vontade Geral, por garantir essa segurança, torna os cidadãos livres (Neuhouser 1993, 373). Ainda que esta não seja uma obediência voluntária, no sentido ordinário do termo.
Dizer que a Vontade Geral garante proteção contra a dependência pessoal parece sugerir que a solução para o problema da liberdade en- volve transformar a dependência para com indivíduos isolados, numa dependência para com a comunidade como um todo. Neste sentido, diz
Xxxxxxxx que “cada cidadão” deve estar “numa inteira independên- cia de todos os outros e excessivamente dependente da cidade: o que sempre se dá pelos mesmos meios; porque só a força do Estado pode conceder liberdade aos seus membros.” (CS, 2.12.3, p.68)
Assim, é através de uma comunidade orientada pela Vontade Ge- ral que, ao reestruturar a dependência humana, de forma a que a sub- missão à vontade de outros deixe de ser uma consequência necessária da dependência, se criam condições sociais objetivas para evitar esta submissão. Neste sentido, a Vontade Geral pode ser considerada a ver- dadeira vontade de um indivíduo, mesmo quando este não a reconhece conscientemente enquanto tal. Isto porque a Vontade Geral deseja (wi- lls) as condições necessárias para a sua liberdade poder ser realizada. Neste sentido, a Vontade Geral é compreendida não apenas como uma concretização da liberdade dos indivíduos, mas também como uma pré-condição desta. Este é o modelo da “liberdade-através-da-indepen- dência-individual” que Neuhouser (1993, 392) apresenta, como com- plemento do modelo da “liberdade-enquanto-autonomia-social” defen- dido por Xxxxx (1986). A liberdade que este modelo visa explicar não é tanto a liberdade moral, mas a liberdade civil. A reestruturação da dependência, que só é possível através da Vontade Geral, não cria ape- nas o direito abstrato, mas também a possibilidade real de agir sem ser constrangido pela vontade de outros, dentro de uma esfera de atividade não relacionada com os interesses vitais da comunidade.
Assim, o pensamento político de Xxxxxxxx contem duas aborda-
gens diferentes de como os indivíduos realizam a sua liberdade através da Vontade Geral (Neuhouser 1993, 392). Na primeira, a pertença à comunidade política é uma concretização da liberdade moral, na medi- da em que os cidadãos são governados por leis que eles próprios cons- troem, de acordo com um entendimento partilhado do bem comum. Neste modelo, a Vontade Geral conta como a vontade do indivíduo apenas se houver uma relação subjetiva com a Vontade Geral. Isto é, uma relação que consiste numa afirmação consciente dos princípios que formam a Vontade Geral. Para a segunda abordagem, a pertença a uma comunidade política é uma pré-condição da liberdade civil, nega- tivamente definida, na medida em que o domínio da lei definida pela Vontade Geral mitiga as consequências da dependência, prejudiciais à liberdade. Neste modelo, a Vontade Geral ser a vontade de alguém depende de uma característica objetiva da própria Vontade Geral: que esta estabelece um conjunto de condições que, se realizadas, conse- guem libertar os indivíduos da submissão a vontades alheias e arbitrá- rias, que, de outra forma, existiria. Assim, cada uma destas liberdades constitui uma condição necessária, mas não suficiente, para alcançar
uma liberdade individual completa, na perspetiva de Xxxxxxxx.
Nesta secção, apresentei o modelo de “liberdade-através-da-
-independência-individual”, desenvolvido por Xxxxxxxxx (1993), que permite explicar a forma como a Vontade Geral funciona como uma pré-condição da liberdade civil. Segundo este modelo, considera-se a Vontade Geral como a vontade de um indivíduo devido a uma carac- terística objetiva sua – que esta mitiga as consequências negativas da dependência –, e não porque exista, necessariamente, uma relação sub- jetiva entre esta e o indivíduo.
1.5. A alienação e a sua superação
Há uma condição importante d’O Contrato Social que ainda não foi mencionada: trata-se da alienação total de todos à comunidade. Xxxxxxxx considera-a a principal cláusula da solução do seu problema e diz que esta passa pela “alienação total à comunidade de cada um dos seus associados, pois dando-se cada um inteiramente, para todos a con- dição é igual, e sendo ela igual para todos, ninguém está interessado em torná-la pesada aos outros.” (CS, 1.6.6, p.27)
Nesta secção, procuro explicar como, através da condição da alie- nação total à comunidade, o projeto político de Xxxxxxxx pretende uma superação da própria situação de alienação, existente no último estado de natureza.
Para começar, é importante compreender o que é a alienação e como esta se manifesta. O fenómeno da alienação é, classicamente, descrito como uma falta de autenticidade, um afastamento da verda- deira natureza ou essência humana. Neste sentido, Xxxxxxxx descreve o último estado de natureza como uma situação de alienação (ainda que o próprio autor não use este termo) porque é um estado “degene- rado”, no qual a própria sociedade acaba também por “degenerar” os seres humanos. Como vimos anteriormente, é apenas com o desenvol- vimento de formas sociais mais complexas que surgem as hierarquias e o desejo patológico por reconhecimento e superioridade. Isto leva a uma constante ânsia de competição e de comparação com os outros – ou seja, cria-se uma forma alienante de relação com os outros. Assim, embora estejam dependentes uns dos outros até para satisfazer as suas necessidades básicas de estima pessoal, estas pessoas veem-se umas às outras como inimigas.
Para além disso, a socialização e a consequente dependência so-
cial deram origem à dominação e submissão que, por sua vez, são cau- sa da conformidade social. Assim, Forst (2017, 527), na sua leitura da alienação, considera esta não como uma falta de autenticidade, mas como uma perda ou negação da autonomia. Neste sentido, define-a
como uma forma particular de heteronomia2 individual e social (523) e considera, por isso, que a dependência da avaliação arbitrária dos ou- tros é uma parte importante da alienação. Isto porque torna os sujeitos não apenas vulneráveis ao julgamento dos outros, sem recorrer a ne- nhuma possibilidade de auto-afirmação, mas também porque os torna sujeitos a formas de dominação social e de submissão, que representam formas de alienação extrema. Assim, viver um modo de vida alienado corresponde a não ter um determinado estatuto enquanto autoridade normativa moral e política igual ao dos outros. Portanto, segundo Forst (2017, 527), a alienação não é apenas uma questão ética relacionada com a falta de auto-realização e auto-afirmação, mas é sobretudo uma questão política, que, para a sua superação, exige autodeterminação coletiva e um cenário de não-dominação social.
Podemos entender, assim, a proposta política de Xxxxxxxx n’O Contrato Social: se a alienação fosse apenas uma ausência de auten- ticidade, ou um problema de como ter acesso a fontes auto-direciona- das de auto-realização, uma transformação política não serviria para ultrapassá-la, pois não garantiria uma sociedade sem os fenómenos de conformidade social, através dos quais o indivíduo perde a sua verda- deira autonomia. Assim, a solução para a alienação não deve ser apenas procurada interiormente, mas principalmente num movimento radical de superação da escravidão social e política. Isto significa estabelecer moral e politicamente todas as pessoas como autoridades normativas iguais dentro de uma sociedade (Forst, 2017, p. 530).
Com este objetivo, Xxxxxxxx elabora um ideal normativo de so- cialização não-alienada e concebe um mundo em que os indivíduos vivem em instituições sociais que conseguem experienciar como suas. Isto representa uma superação da alienação porque, segundo Xxxxxx (2014, 29) – autora que também procura ir além da definição clássica de alienação como falta de autenticidade – o fenómeno da alienação pode ser compreendido como a existência de uma relação distorcida, deficiente, tanto consigo mesmo, como com o mundo. Assim, superar a alienação passa por criar uma relação de apropriação – este tipo de re- lação deve ser compreendido como uma relação produtiva, no sentido de envolver processos abertos, nos quais a apropriação significa tanto integração como transformação da realidade. Entendida a alienação destas duas formas – enquanto heteronomia e enquanto uma relação distorcida consigo mesmo e com o mundo –, torna-se compreensível como é que, através da autodeterminação coletiva, se dá uma superação deste estado.
2. Heteronomia é um termo com origem em Kant que, sendo o contrário da autonomia, significa, simplificadamente, a sujeição do indivíduo à vontade de outros agentes individuais ou coletivos.
Mas como é que a alienação total de todos à comunidade pode resultar na superação da alienação? A resposta está em 1) cada pessoa estar a alienar-se, a dar-se, a algo de que também faz parte: a comuni- dade, e 2) a condição de igualdade, o que significa que ninguém pode aproveitar-se da condição de outro, ou reclamar algum tipo de autori- dade superior, pois todos estão envolvidos na comunidade da mesma forma. Assim, a alienação total de todos com todos estabelece uma nova soberania sobre as vontades, que é a expressão coletiva da vonta- de de cada um, se esta for guiada pela Vontade Geral. Portanto, o que antes era heteronomia alienante, torna-se, através d’O Contrato Social, obediência à própria lei, ou seja, autonomia.
É interessante notar ainda na existência de uma relação íntima en- tre a questão da alienação e a questão da dependência, anteriormente abordada. Assim, da mesma maneira que há uma reestruturação social da dependência – transforma-se a dependência pessoal numa depen- dência à comunidade, que é capaz de coexistir com a liberdade –, há uma tentativa de superação do fenómeno da alienação, através da con- dição da sua totalidade. Sendo total, torna-se impossível a exploração e dominação de uns indivíduos sobre outros, pois todos têm um estatuto igual. Mas, enquanto no caso da dependência, esta é ineliminável – ain- da que as suas consequências negativas sejam mitigadas –, no caso da alienação, a sua reestruturação resulta na sua superação.
*
Neste primeiro capítulo, demonstrei como, através da Vontade Geral, a comunidade política descrita n’O Contrato Social é capaz de garantir a liberdade individual, tanto a civil como a moral, dos seus membros. Isto dá-se de duas formas: se a Vontade Geral for reconheci- da como a própria vontade dos cidadãos – isto acontece na medida em que estes desejam o bem comum da comunidade da qual fazem parte –, representa uma concretização da própria liberdade moral; no entanto, se essa relação subjetiva não existir, é possível considerar, ainda assim, que a Vontade Geral garante a liberdade individual, uma vez que esta se constitui como pré-condição da liberdade civil, pois é capaz de eli- minar as consequências negativas da dependência social.
Para além disso, expliquei como, através da autodeterminação co- letiva da comunidade, é possível superar a condição de alienação pre- sente no estado de natureza, e que esta superação representa também uma garantia da liberdade dos cidadãos, uma vez que os torna verda- deiramente agentes autónomos. Assim, apresentei a forma como Rous- seau constrói a liberdade individual a partir de uma dimensão coletiva.
2. Totalitarismo?
Tentei, até aqui, demonstrar como o projeto político de Xxxxxxxx
– uma proposta de sociedade guiada pela Vontade Geral –, desenvolvi- do na sua obra O Contrato Social, garante a liberdade individual. No entanto, Xxxxxxxx é muitas vezes relembrado como um defensor de ideias totalitárias. As críticas variam, mas têm em comum uma preo- cupação com a eliminação do indivíduo, ou da esfera individual, em favor da comunidade – comunidade esta que impõe as suas vontades sobre todos, de forma indiferenciada, tirando qualquer tipo de liberda- de aos seus membros.
De facto, este tipo de crítica é dirigido não apenas a Xxxxxxxx, mas a qualquer teoria política que tenha um caráter mais comunitá- rio: existe sempre a suspeita de que, posto em prática, mais tarde ou mais cedo, o sistema proposto acabará por aniquilar qualquer tipo de liberdade individual, ao procurar uniformizar e limitar a vida dos seus membros. Este receio parte do pressuposto de que, numa determinada sociedade, para existir uma dimensão comunitária forte, é necessário limitar as escolhas e possibilidades dos indivíduos que a constituem. E isso envolve um projeto autoritário de uniformização e domesticação porque se assume que as pessoas não sabem relacionar-se umas com as outras e com as diferenças que existem entre si, de forma “saudá- vel”. Para evitar esta situação, a solução dos críticos parece ser a de expandir as esferas de liberdade individual, nas quais cada pessoa faz o que desejar, sem constrangimentos exteriores, e limitar ao máximo a(s) dimensão(ões) comunitária(s) e o poder de interferência desta(s) nos assuntos que não sejam exclusivamente públicos (sendo que a divisão entre público e privado também sofre alterações, de forma a diminuir aquilo que é considerado de domínio público).
Como este discurso de quase “aversão” à comunidade é bastante
significativo, e o tema deste ensaio é precisamente explorar a relação entre a liberdade individual e a comunidade, torna-se importante considerar seriamente os argumentos de alguns dos seus principais proponentes. Neste sentido, de seguida, analiso as críticas a Xxxxxxxx desenvolvidas por Xxxxxxxx Xxxxxxxx, Xxxxx Xxxxxx e Xxxxxx Xxxxxx, uma vez que julgo serem as suas ideias as que mais influência exer- ceram para a normalização de uma associação deste autor à defesa de um regime totalitário. Xxxxxxxx viveu numa época em que as ideias de Xxxxxxxx eram ainda influentes, devido à Revolução Francesa, e ficou conhecido como um dos seus principais oponentes. Xx Xxxxxx, classi- ficado como um “liberal da guerra fria”, destacou-se por criar o termo “democracia totalitária”, atribuindo a Xxxxxxxx as origens desta ideo-
logia. Por sua vez, a distinção que Berlin faz entre liberdade positiva e liberdade negativa, usando a teoria de Xxxxxxxx como um exemplo da primeira, é amplamente reconhecida e citada, ainda hoje, no campo da filosofia política.
A minha abordagem passa por argumentar em defesa do pensa- mento de Xxxxxxxx, tentando dar resposta às críticas dos referidos autores, alternando entre 1) considerar que as leituras que estes autores fazem de Xxxxxxxx estão erradas, e 2) considerar que, ainda que as leituras não estejam erradas, o elemento alvo de crítica não representa uma ameaça à liberdade, ou não significa a defesa de um regime tota- litário.
2.1. Xxxxxxxx Xxxxxxxx
O discurso A liberdade dos Antigos Comparada com a dos Mo- dernos3, proferido em 1819, por Xxxxxxxx Xxxxxxxx, é considerado um clássico do pensamento político ocidental e um dos textos fundado- res do constitucionalismo europeu. Como o título sugere, neste texto, Constant baseia-se numa distinção entre a liberdade dos Antigos e a liberdade dos Modernos (2001, 5-6). A originalidade do seu discurso não é tanto esta distinção, que já estava presente na obra de Xxxxxx- xxxxx (ainda que este não utilizasse a expressão “liberdade dos Moder- nos” – p.xii), mas o caráter de inevitabilidade que atribui à liberdade dos Modernos. E a opinião de que não entender essa inevitabilidade
– que o tempo onde se vivia segundo a liberdade dos Antigos já tinha passado – teria levado aos excessos da Revolução Francesa. É neste contexto que Xxxxxxxx dirige as suas críticas a Xxxxxxxx, uma vez que este, segundo o autor, quereria implementar nos tempos modernos uma ordem social que pertencia ao tempo dos Antigos.
A liberdade dos Antigos é caracterizada como liberdade política, isto é, corresponde a uma participação ativa, direta e constante no po- der coletivo. Enquanto a liberdade dos Modernos é caracterizada como liberdade individual, ou seja, a possibilidade de ser deixado em paz, numa esfera de privacidade, a tratar dos seus negócios pessoais, sem interferência do Estado. Afirma o autor que “A nossa [dos Modernos] liberdade deve corresponder ao gozo tranquilo da independência pri- vada.” (p.15)
O problema da liberdade dos Antigos é, segundo Xxxxxxxx, esta ser compatível com “a sujeição completa do indivíduo à autoridade do conjunto” (p.6). Assim, focados exclusivamente na dimensão coletiva, os Antigos não tinham entre eles a conceção de direitos individuais
3. Foi consultada a tradução portuguesa: Xxxxxxxx, Xxxxxxxx. A Liberdade dos Antigos Comparada com a dos Modernos. Trad: Xxxxxxx Xxxxxx. Book Builders, 2001.
característicos da liberdade dos Modernos. Achando, por isso, aceitá- vel que todas as ações fossem vigiladas e que não se deixasse espaço para a independência individual, “quer no que respeita à expressão de opiniões, quer no que respeita à escolha de atividade, quer sobretudo no que respeita à religião.” (p.6-7) Em tudo o que parece mais funda- mental para o cidadão de um Estado moderno, “a autoridade do cor- po social interpunha-se e constrangia a vontade dos indivíduos.” (p.7) Concluindo Constant que “entre os antigos, o indivíduo, quase sempre soberano nos assuntos públicos, era um escravo em todos os seus as- suntos privados.” (p.7)
Mas, para além de indesejável, a liberdade dos Antigos simples- mente não é possível no mundo moderno. Da mesma forma que a liber- dade dos Modernos não teria sido possível no mundo antigo: segundo Xxxxxxxx, cada ordem social exige e/ou cria condições de possibilidade para um tipo específico de liberdade.
Assim, as razões apontadas para a passagem de uma liberdade à outra são: 1) o surgimento dos Estados modernos e da sua grande di- mensão. A ideia é que, num Estado pequeno, cada indivíduo tem uma influência e importância muito maior na vida política e, portanto, muito mais facilmente sacrifica aspetos da sua vida privada em favor da co- munidade, ou seja, muito mais facilmente aceita ser constrangido pela autoridade pública. E o contrário se passa com os Estados modernos que, por serem muito maiores, reduzem cada indivíduo praticamente à insignificância. Isto resulta numa viragem de cada um para si mesmo, aprendendo a valorizar a sua privacidade e a encontrar aí a sua felici- dade. Escreve Xxxxxxxx a este respeito: “Atualmente, tal recompensa [sentir o valor do seu voto para as decisões coletivas], já não existe para nós. Perdido na multidão, o indivíduo quase nunca se apercebe da influência que possui: a sua vontade não deixa marcas sobre o con- junto, nem vê com os próprios olhos o resultado da sua cooperação.” (p.16); 2) A abolição da escravatura. Ao abolir-se a escravatura, dei- xaram de existir cidadãos que não precisassem de trabalhar, ou seja, cidadãos com tempo livre suficiente para se dedicarem inteiramente à administração dos assuntos públicos. Portanto, deixou de ser possível voltar ao “modelo grego” da democracia direta e passou a ser neces- sário o sistema representativo; 3) A atividade da guerra foi substituída pela atividade do comércio, uma vez que ambas são “meios diferentes de perseguir o mesmo fim: o que se deseja” (p.10) e a paz se mostrou mais conveniente à realidade moderna, onde prevalece o comércio e os Estados não são tão pequenos nem constantemente ameaçados pelos seus vizinhos. Para além disso, o comércio, ao contrário da guerra, não está sujeito a períodos de inatividade, o que representa mais uma razão
para não ser possível a dedicação dos cidadãos às atividades políticas: estão ocupados todo o ano com os seus negócios. E há ainda outra con- sequência disto, relacionada com o ponto 1: “O comércio inspira nos homens um vivo amor pela independência individual.” (p.13) Ou seja, o comércio satisfaz as suas necessidades e desejos individuais, sem recorrer à autoridade pública. Na verdade, qualquer intervenção desta é encarada como um estorvo e uma fadiga.
Muito podia ser dito sobre este retrato de Xxxxxxxx sobre o mun- do moderno. Mas para os efeitos deste ensaio, o foco deverá estar na relação entre a comunidade e o indivíduo e as suas repercussões no tipo de liberdade que é valorizada. No ponto 1, acima exposto, Cons- tant descreve a condição alienada do indivíduo moderno que se sente “perdido na multidão”, porque não consegue ligar-se, ou apropriar-se (usando o termo de Xxxxxx (2014)), do mundo que o rodeia. Não sente a comunidade política como sua, não se reconhece nela, nem como parte dela. E como resposta a isso, vira-se para si mesmo e refugia-se numa esfera de conforto e de privacidade individual. Segundo Xxxxxx (2014, 32), o isolamento social e as excessivas exigências de privacidade po- dem ser compreendidos como sintomas de alienação, o que significa que podemos também interpretar este movimento de fechamento na esfera privada, descrito por Xxxxxxxx, como a resposta a uma situação de alienação.
Assim, o indivíduo procura satisfazer as suas necessidades de
reconhecimento e amor-próprio noutras dimensões da vida, em vez de alterar as condições sociais e políticas que o levaram a sentir essa “falha”, provocada pela alienação. Mas parece haver sempre uma di- mensão que não é realizada, uma ausência, uma vez que ninguém pode verdadeiramente isolar-se do seu meio social. Portanto, a resposta de Xxxxxxxx ao problema que enfrenta – ainda que isso não seja explícito no seu discurso, o pano de fundo deste é o da condição de alienação da sua comunidade – parece ser insuficiente: não o encara verdadeiramen- te e, consequentemente, não o resolve. Resolvê-lo teria de passar pela superação da alienação, projeto que, como vimos, apenas é possível através da autodeterminação coletiva da comunidade. Pelo contrário, o movimento de individualização revela-se ainda mais alienante, pois torna o indivíduo cada vez mais fechado em si e desligado do mundo que o rodeia.
Há, contudo, as questões “práticas” que Xxxxxxxx aponta para a
impossibilidade de a liberdade dos Antigos voltar ao mundo dos Mo- dernos: a falta de tempo (devido à abolição da escravatura e à atividade constante do comércio) e o tamanho demasiado excessivo dos Estados. Nenhum destes pontos me parece, contudo, uma inevitabilidade: o pri- meiro está intimamente ligado ao modelo económico vigente. Não há
escravos, mas há máquinas. Noutro modelo económico, as pessoas não precisariam de trabalhar tanto tempo para conseguirem ter uma vida digna. O segundo ponto parece-me também uma questão de vontade política: nada impede que se formem comunidades políticas menores (como é que tal seria possível é um assunto demasiado extenso para abordar aqui).
Coloca-se ainda a questão de se Xxxxxxxx quereria, com o seu projeto político, voltar ao “modelo grego”, ou seja, se defendia um tipo de liberdade característico dos Antigos. Para Xxxxxxxx, isto significaria um esmagamento total da dimensão individual, uma vez que os antigos eram “homens [que] não passavam, por assim dizer, de máquinas em que a lei regulava a força e controlava os movimentos.” (p.8), cujo ca- ráter era moldado para serem capazes de cumprir as suas funções de ci- dadão. Portanto, este tipo de liberdade não poderia coexistir com a dos Modernos, para a qual a noção de direitos individuais é fundamental.
Mas, como vimos, Xxxxxxxx não fala apenas de um tipo de liber- dade, mas de dois: a liberdade civil e a liberdade moral. Enquanto a li- berdade moral pode ser associada à liberdade dos Antigos, por consistir no exercício coletivo do poder político, a liberdade civil assegura esfe- ras de não-interferência, assemelhando-se à liberdade dos Modernos. Para além disso, Xxxxxxxx faz uma separação entre o poder legislativo e o poder executivo, sendo que o segundo admite a representatividade, ou seja, ser exercido por apenas alguns cidadãos e não todos – repre- sentatividade que ambos os autores reconhecem ser uma invenção da modernidade. O que significa também que os cidadãos não precisariam de despender tanto do seu tempo para tratar dos assuntos públicos, uma das preocupações de Xxxxxxxx.
A própria Vontade Geral incorpora elementos das duas tradições: há uma fusão entre a generalidade, a unidade, a dimensão comunitária, os princípios da justiça e do bem comum característicos da antigui- dade, com os elementos fundamentais da vontade, do consentimento, da ideia de contrato característicos da modernidade (Xxxxx 1982, 108- 109). Por outras palavras, a Vontade Geral representa o consentimento, que é um elemento característico da modernidade, para com os princí- pios morais e políticos da antiguidade.
Podemos então concluir que Xxxxxxxx não nega a liberdade dos Modernos, tenta apenas que esta coexista com elementos fundamentais da tradição dos Antigos, que são essenciais para superar o estado de alienação que Xxxxxxxx descreve no seu discurso.
2.2. Xxxxx Xxxxxx
No seu livro de 1952, Origins of Totalitarian Democracy, Xxxxx Xxxxxx utiliza o termo “democracia totalitária” para se referir não só a
um tipo de governo no qual existem representantes legalmente eleitos, mas os cidadãos desse Estado, embora tenham direito ao voto, têm pouca ou nenhuma participação nos processos de tomada de decisão do governo, como também a uma escola de pensamento democrático, que diverge da escola da democracia liberal. Segundo Xxxxxx, o pen- samento da democracia totalitária é baseado na suposição da existência de uma única e exclusiva verdade no campo da política. Este tipo de pensamento pode ser chamado, na perspetiva do autor, de Messianismo político, no sentido em que postula um esquema do mundo como algo predestinado, harmonioso e perfeito, para o qual não só os indivíduos estão irresistivelmente dirigidos, como a certeza de que lá chegarão constitui uma inevitabilidade histórica. Neste sentido, a democracia to- talitária reconhece, segundo Xxxxxx, um único plano da existência hu- mana: o político. Por esta razão, os defensores desta teoria tratam todo o pensamento e ação humana como tendo um significado social, fazen- do com que tudo “caia” dentro da órbita do campo político. Para além disso, enquanto a escola da democracia liberal entende, na perspetiva de Xxxxxx, a liberdade como espontaneidade e ausência de coerção, a escola da democracia totalitária acredita que a liberdade apenas pode ser realizada através de um propósito coletivo absoluto.
O argumento de Xxxxxx contra Xxxxxxxx é que este, ao juntar o
conceito da Vontade Geral com o princípio da soberania e autodetermi- nação popular, deu origem à democracia totalitária. Num sistema como o proposto n’O Contrato Social, supostamente, gerar-se-ia um parado- xo da liberdade: existe uma Vontade Geral objetiva, mesmo que esta não seja desejada por ninguém. Para que esta se torne realidade, tem de ser desejada pelos cidadãos, pois é através destes que esta se pode realizar. Portanto, se as pessoas não a desejam naturalmente, devem ser forçadas a desejá-la. O que significa que devem deixar de ser livres para que possam expressar a sua liberdade enquanto povo soberano.
Neste sentido, Xxxxxx compara a Vontade Geral a uma verdade matemática e a uma ideia platónica. Ou seja, considera que esta seria como um padrão externo absoluto e que seria o único “juiz” do proces- so de deliberação coletiva, uma vez que a vontade particular dos indiví- duos é sempre suspeita, segundo Xxxxxxxx. A Vontade Geral teria uma existência própria objetiva, quer fosse percecionada por alguém, quer não. E quando fosse descoberta pela mente humana, as pessoas não poderiam simplesmente recusar aceitá-la: deveriam necessariamente obedecer-lhe, como diz Xxxxxxxx no excerto b) apresentado na secção 1.4.
No entanto, a Vontade Geral não é algo objetivo, como Talmon
faz crer. Isto porque é contingente e dependente de ser desejada para a
sua própria existência. De facto, Xxxxxxxx precisa que a Vontade Geral seja genuinamente uma vontade, e não algo semelhante a uma ideia platónica, porque esse elemento da vontade é essencial para explicar e justificar a legitimidade da autoridade política (Xxxxx 1982, 108-109), que é o seu principal objetivo n’O Contrato Social. É verdade, contudo, que Xxxxxxxx introduz na sua obra uma personagem que ainda não mencionei: o legislador. Este estaria de fora do processo deliberativo e teria como função educar as pessoas para que tivessem uma perspeti- va do mundo mais preocupada com a dimensão comunitária. Ou seja, transformaria as pessoas em cidadãos. E é através deste processo que as pessoas seriam forçadas, segundo Xxxxxx, a desejarem a Vontade Geral. Esta figura, tal como outras passagens d’O Contrato Social so- bre a censura, é, sem dúvida, bastante controversa. No entanto, o caso não me parece tão dramático como os seus críticos fazem parecer, uma vez que, hoje em dia, a figura do legislador é, de certa forma, exercida pelas instituições de ensino, que a generalidade das pessoas reconhece como úteis, e não como tendo um caráter totalitário.
Para além disso, Xxxxxxxx atribui uma enorme importância à au-
xxxxxxx, a liberdade moral, e não apenas na sua dimensão coletiva, mas também na individual. De facto, na obra Xxxxxx, ou Da Educação, a principal preocupação é a capacidade de julgamento independente e autodeterminado. Mas a autonomia requer dos indivíduos não só a ca- pacidade de pensar e julgar por si mesmo, como também a disposição para adotar uma atitude de suspeição sobre os seus próprios julgamen- tos, quando estes divergem dos dos outros (Neuhouser 2011, 491). Ou seja, alcançar a autonomia envolve adotar uma atitude de respeito para com o julgamento dos outros, um respeito que consiste em atribuir uma certa autoridade, embora de nenhuma forma absoluta, a julgamento externos, mesmo quando estes divergem dos seus.
Assim, procurar a Vontade Geral não é obedecer a um padrão externo, mas sim o exercício de tentar compreender aquilo que vai de encontro ao bem comum, aquilo que é melhor para a comunidade. E porque é que, no processo de deliberação coletiva, exercendo a sua função de cidadãos, o principal critério a seguir não deveria ser o do bem comum? Xxxxxxxx não pretende que a Vontade Geral domine toda a vida dos membros da comunidade política, apenas que os interesses individuais não sejam dominantes no processo de deliberação dos as- suntos públicos.
Assim, a descrição de “democracia totalitária” de Talmon não se adequa ao projeto político de Xxxxxxxx, já que os seus membros têm poder real na tomada de decisões, e não se limitam a seguir um padrão externo com uma existência própria objetiva e independente da sua vontade. O sistema proposto n’O Contrato Social está, mais do que
isso, dependente da participação ativa de todos para funcionar: se os cidadãos não estiverem todos presentes nas assembleias, torna-se me- nos provável encontrar a Vontade Geral e, como esta é o seu pilar, o sistema começará a ruir.
2.3. Xxxxxx Xxxxxx
As críticas de Xxxxxx Xxxxxx que terei em conta estão contidas em duas obras diferentes do autor: no livro Freedom and Its Betrayal – Six Enemies of Human Liberty, publicado em 2002, mas que corresponde a um conjunto de palestras que Berlin deu em 1952, na BBC Radio, e no artigo Two Concepts of Liberty, de 1969.
Em ambas, Xxxxxx menciona que a questão central da filosofia po- lítica é a da obediência a uma autoridade e da coerção envolvida nisso. Ou seja, porque é que alguém deve obedecer a outrem – seja este um indivíduo, um grupo ou um corpo social, como um Estado. Esta per- gunta pode ser formulada de diferentes maneiras, mas o que é comum estar em questão é o problema de onde traçar a linha entre a autoridade legítima e a liberdade individual. Neste sentido, Berlin entende que deve haver limites à liberdade individual, mas apenas quando isso é necessário para proteger a liberdade individual de outros cidadãos, ou por uma questão de segurança comum. A questão é em que grau e com que justificação pode existir esta limitação – isto é, qual é o concílio razoável possível entre liberdade e autoridade.
Berlin (1969, 168-169) propõe duas formas distintas de com- preender o termo “liberdade”: 1) liberdade no sentido negativo, que está relacionada com a questão “Qual é a área dentro da qual o sujeito
– uma pessoa ou um grupo de pessoas – é ou devia ser deixada fazer ou ser aquilo que é capaz de fazer ou ser, sem a interferência de outras pessoas?”. Ou seja, este tipo de liberdade corresponde à área de não-
-interferência dentro da qual o indivíduo pode agir sem ser obstruído por outros. Segundo Berlin, quanto maior for esta esta área, maior é a sua liberdade. Considera-se que há coerção e, portanto, um obstáculo à liberdade, quando esta imposição é exercida por outros para limitar as possibilidades de escolha e a esfera de ação de alguém. É fundamental notar que, na perspetiva do autor, qualquer coerção, seja qual for o seu fim, é má enquanto coerção, ainda que seja necessária para contrariar males piores. Da mesma forma, a não-interferência é boa enquanto tal; e 2) liberdade no sentido positivo, que está relacionada com a questão “Quem ou o que é que tem o poder de controlo ou de interferência para determinar alguém a fazer ou a ser determinada coisa?”. Assim, nor- malmente, esta preocupação exprime o desejo de ser governado por si próprio ou de poder participar no processo pelo qual a sua vida é gover-
nada. Isto é, expressa a vontade de cada um ser o seu próprio mestre, de ser sujeito e não objeto das leis orientadoras da sua vida, de ser movido por razões e propósitos conscientes, que sejam verdadeiramente seus.
Por outras palavras, na perspetiva de Berlin, a liberdade negativa reflete a preocupação com a área de interferência permitida na vida das pessoas, enquanto a liberdade positiva reflete a preocupação com quem tem ou exerce o controlo dessa interferência. Outra forma de distinção que ficou célebre foi categorizar a liberdade negativa como a “liberdade de” fazer ou ser algo, e a positiva como a “liberdade para” fazer ou ser algo.
De forma relativamente consensual (embora não totalmente), po- demos relacionar esta noção de liberdade negativa com a liberdade civil de Xxxxxxxx e com a liberdade dos Modernos de Xxxxxxxx, en- quanto a liberdade positiva corresponde à liberdade moral e à liberda- de dos Antigos. E, como vimos na discussão das críticas de Xxxxxxxx, Xxxxxxxx não deixa nenhuma liberdade de parte, considerando ambas fundamentais e conciliáveis.
De facto, enquanto conceitos, estes dois tipos de liberdade podem coexistir e complementar-se. Contudo, segundo Berlin, historicamen- te, estes desenvolveram-se em direções que acabaram por colidir um com o outro. Neste sentido, o autor critica a liberdade positiva, que associa a Xxxxxxxx, por esta aniquilar a liberdade negativa, que Berlin considera mais valiosa.
Segundo Berlin (1969, 181), devido à ideia de autodomínio (self-
-mastery) presente em grande parte das teorias que perfilham a liber- dade positiva, é sugerida uma divisão interna entre um “eu” superior e racional, que sabe o que é melhor em cada ocasião, e um “eu” inferior, ignorante, empírico, corrompido por xxxxxx, que deve ser guiado pelo eu superior. Obedecer ao “eu” superior torna-nos livres e autónomos, mestres de nós mesmos, uma vez que este nos dá razões racionais para agir como agimos.
O problema é que, na perspetiva de Berlin, a história mostrou que o “eu” superior acaba por ser personificado pelo Estado, por um conjunto de governantes ou por outro tipo de instituição – qualquer organismo que seja mais amplo do que o próprio indivíduo. Assim, assumiu-se que esta entidade (individual ou coletiva) que exerce a autoridade teria a legitimidade de governar os cidadãos ignorantes, consoante aquilo que ela (a autoridade) considerasse ser o melhor para eles (os cida- dãos), e que coincidiria com a opção mais racional a tomar. Seguindo o raciocínio de identificação entre racionalidade e liberdade – presente na ideia da divisão entre “eu superior” e “eu inferior” –, obedecer à au- toridade tornaria os cidadãos mais livres, uma vez que seriam levados a tomar as decisões mais racionais. Para além disso, nesta perspetiva,
está implícito que qualquer pessoa aceitaria livremente uma decisão que fosse considerada a escolha mais racional, ou seja, a escolha certa
– o que envolve que só exista uma única e verdadeira escolha racional. Desta forma, chega-se ao paradoxo de os indivíduos se tornarem livres a partir da obediência a uma vontade externa.
Toda esta linha de pensamento é atribuída, por Berlin, às teorias que defendem a liberdade positiva, entre as quais a de Xxxxxxxx. Se- gundo o autor, a parte mais perversa deste raciocínio é a identificação entre liberdade e autoridade (1969, 194-195). De facto, para Xxxxxxxx a ideia de criar um compromisso entre a liberdade individual e a autori- dade pública, estabelecendo limites para cada uma, era inaceitável por- que a liberdade era um valor absoluto e, assim sendo, não poderia ser limitada de nenhuma forma. Segundo Xxxxxxxx, um ser humano que não fosse livre, deixaria de ser verdadeiramente humano, pois se não fosse livre, as suas ações não poderiam ter valor moral e este não pode- ria ser responsabilizado por elas. Desprovido de agência livre, deixaria de ser humano. Desta forma, gera-se o problema de como é que alguém se pode manter absolutamente livre mas, ainda assim, estar sujeito a uma autoridade. Como vimos, a solução de Xxxxxxxx é defender que isto é possível desde que a autoridade parta de cada um, formando, em conjunto, a Vontade Geral, que é soberana no poder legislativo da comunidade política. Este tipo de liberdade corresponde à liberdade moral, à autonomia, que é uma forma de liberdade positiva. Portanto, com a noção de autonomia, Xxxxxxxx identifica, de facto, a liberdade com a autoridade: uma pessoa é livre na medida em que obedece ape- nas a si mesma.
Berlin retira daqui que, como liberdade e autoridade coincidem
uma com a outra, não poderá haver conflito entre estas e, portanto, é possível alguém ser livre ainda que esteja sujeito ao controlo total de uma autoridade. Aliás, sugere que quanto maior a sua obediência, maior a liberdade de uma pessoa. Se as correntes ou ferros que Rous- seau menciona no início d’O Contrato Social forem auto-impostas, as pessoas são livres, ainda que estejam sujeitas às correntes. Isto é, Rou- sseau estaria a defender que, se uma pessoa se auto-aprisiona, então não é prisioneira. O que, para Berlin (1969, 180, 204), é um completo paradoxo.
O problema é que esta é uma interpretação bastante distorcida da teoria de Xxxxxxxx. A falha principal do argumento de Berlin parece ser não compreender que para Xxxxxxxx há uma diferença abismal en- tre a autoridade a que cada um está sujeito vir de si próprio ou de uma vontade externa. De facto, é nesse ponto que se baseia grande parte da sua teoria, inclusivamente a sua recusa da representatividade e a sua exigência de que todos, sem exceção, façam parte do processo delibe-
rativo das leis que regem a comunidade. Portanto, ainda que Xxxxxxxx mencione uma divisão interna entre um “eu” superior e um “eu” infe- rior, o “eu” superior nunca poderá ser personificado por algo externo ao próprio sujeito. Aliás, o facto de Berlin associar esta linha de racio- cínio à generalidade das teorias que defendem a liberdade positiva e às tentativas de a “implementar”, apenas mostra que estas foram mal sucedidas: uma vez que o seu objetivo é um auto-governo e um contro- lo coletivo da autoridade, se a autoridade acabar por pertencer apenas a um grupo de governantes, significa que a liberdade positiva não está realmente a existir. Neste sentido, numa comunidade orientada pela Vontade Geral, não só não poderia existir um grupo de governantes com autoridade sobre o resto dos cidadãos, como, no processo delibe- rativo das leis, não haveria espaço para as vontades particulares deste grupo ganharem forma.
Berlin, ao insistir na utilização da primeira pessoa do singular –
referindo-se várias vezes, em ambas as suas obras, a um “eu” que sabe melhor o que os indivíduos querem para si próprios do que eles mes- mos – deturpa a teoria política de Xxxxxxxx, ao individualizar uma ati- vidade que é sempre coletiva. Segundo este autor, não existe nenhum grupo que personifique um “eu” superior e que possa impor a sua von- tade nos outros, uma vez que, para a autoridade política ser legítima, esta tem de pertencer a todos: isto é evidente n’O Contrato Social.
No entanto, Berlin (1969, 198-199), estranha também a ideia de que a autoridade venha de uma fonte interna, porque esta continua a ser autoridade e, consequentemente, coerção e limitação da liberdade. Assim, critica a ideia de que autocontrolo possa significar liberdade e questiona-se como é que alguém é considerado livre se não pode fazer absolutamente tudo o que quer, sem impedimentos internos ou externos. Contudo, isto suscita algumas questões: como é que o au- todomínio pode ser considerado uma forma de aprisionamento num sentido que seja politicamente relevante? Como é que cada um obede- cer a si próprio, consoante as suas próprias regras, é limitador da sua liberdade? Será que Berlin não reconhece a noção de autonomia como uma forma de liberdade? Este autor, ainda que desenvolva a distinção entre liberdade negativa e positiva parece, por vezes, nas suas leituras de Xxxxxxxx, guiar-se por um significado único de liberdade: o de al- guém poder fazer aquilo que lhe apetecer, sem constrangimentos, o que corresponde à liberdade negativa. É assim que, ao retirar a liberdade positiva do mapa, o autor chega à conclusão, que me parece bastante injusta e infundada, de que Xxxxxxxx é um dos maiores inimigos da liberdade na história do pensamento político (Berlin 2014).
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Neste capítulo, analisei algumas das principais críticas dirigidas a Xxxxxxxx, procurando defendê-lo de qualquer aproximação a um pro- jeto totalitário. Na primeira secção, abordando o pensamento de Xxxxx- xxx Xxxxxxxx, demonstrei não só que viver apenas segundo a liberdade dos Modernos não é uma inevitabilidade, como também que Xxxxxxxx propõe, na sua teoria política, uma combinação entre a tradição dos Antigos e a dos Modernos, e não uma simples regressão ao tempo dos Antigos. Na segunda secção, em resposta a Xxxxx Xxxxxx, defendi que a Vontade Geral não pode ser entendida como uma entidade com exis- tência própria objetiva e independente da vontade da comunidade e que, portanto, o regime proposto por Xxxxxxxx não constitui uma de- mocracia totalitária. Por fim, na terceira secção, partindo da distinção entre liberdade negativa e liberdade positiva de Xxxxxx Xxxxxx, procurei explicar como as teorias que defendem a liberdade positiva não podem, de forma coerente, assumir a personificação de um “eu superior” por uma classe de governantes, com autoridade sobre o resto da comuni- dade. Assim, ainda que Xxxxxxxx estabeleça uma identificação entre liberdade e autoridade, isso significa apenas que cada um é livre na me- dida em que é a sua própria autoridade, ou seja, na medida em que cada um obedece a si mesmo – este tipo de autoridade designa-se, como vimos, liberdade moral ou autonomia.
Presente em toda a minha abordagem de resposta, está a defesa de
uma liberdade coletiva: no vocabulário de Xxxxxxxx, a liberdade dos Antigos, e no de Berlin, a liberdade positiva. Por sua vez, no vocabu- lário de Xxxxxxxx esta seria a liberdade moral, identificada com a auto- nomia. Designo-a liberdade coletiva não porque esta não exista indivi- dualmente, mas porque tem sempre implícita uma dimensão coletiva. Isso acontece não só pelas razões que apresentei na secção 1.3., que tornam a autonomia possível apenas se for vivida coletivamente numa livre comunidade de iguais, mas também porque defender este tipo de liberdade, enquanto autodeterminação coletiva, é necessário para superar o estado de alienação, condição partilhada pela maior parte das sociedades, tanto contemporâneas, como as do tempo de Xxxxxxxx e Xxxxxxxx.
3. Xxxxxxxx e a democracia radical
No capítulo anterior, procurei afastar o “fantasma” do totalitaris- mo, que atormenta, no imaginário comum, a figura de Xxxxxxxx. Há, no entanto, uma outra ideia comummente ligada a Xxxxxxxx: a de que a sua teoria política seria a defesa de um ideal harmonioso, de uma união sem tensões nem conflitos, de uma igualdade plena entre todos os membros de uma comunidade autossuficiente, onde a paz e o sosse- go reinassem. Quem o lê desta forma não considera, necessariamente, este ideal como algo negativo, mas antes como algo desejável e que se deve procurar atingir, embora possivelmente utópico.
Ainda assim, há muitos críticos deste ideal. Estes apontam, mais uma vez, para o seu caráter potencialmente totalitário. Clamar dema- siado pela união pode resultar na ostracização de qualquer posição divergente da dominante, ou seja, pode culminar na destruição da pluralidade. Este ponto é especialmente importante se quisermos ler Xxxxxxxx através de um olhar contemporâneo. Por exemplo, Berlin (1969, 216-217) termina o seu influente artigo sobre os dois conceitos de liberdade, com uma apologia da liberdade negativa por esta ser ca- paz de garantir o pluralismo. Este consistiria no reconhecimento de que os seres humanos são de diversas maneiras, e que devem poder seguir múltiplos caminhos. E admitir esta pluralidade envolveria, segundo Berlin, contrariar as ideias de harmonia, da existência de uma única escolha racional possível e de uma fórmula perfeita capaz de resolver tudo, implícitas no conceito de liberdade positiva.
Esta interpretação de Xxxxxxxx levou também autores, como Sch-
xxxxx (1995, 50), a acusarem-no de querer superar a dimensão do po- lítico. Isto é, a afirmarem que o seu ideal seria o de uma comunidade perfeita, que se regularia a si mesma diretamente, e onde, portanto, as “subtilezas políticas” seriam irrelevantes. Uma crítica semelhante é direcionada tanto a Xxxxxxxx como a Xxxx, por, supostamente, en- tenderem a política negativamente, ou seja, como algo que deveria ser transcendido por uma sociedade autorreguladora e totalmente transpa- rente. Este desejo foi problematizado como sendo não-democrático. Xxxxx, Xxxxxx e Xxxxxx, teóricos da democracia radical, consideram que Xxxxxxxx oferece uma abordagem homogeneizante da soberania popular, que procuraria erradicar a pluralidade, a ambiguidade e as vo- zes críticas (Norval 2001, 725-726). Neste sentido, Xxxxxx (2002, 383) critica a Vontade Geral, da mesma forma que critica a noção marxista de uma classe universal emancipadora: ambas procurariam uma forma de igualdade que superasse toda a diferença.
Qualquer tentativa de trazer os ensinamentos de Xxxxxxxx para
a atualidade, ou de considerar a relevância da sua teoria política para
um projeto de sociedade futura, terá de levar muito a sério estas críti- cas. Isto porque, no mundo contemporâneo, seria quase inconcebível, e muito menos defensável, uma sociedade que não permitisse uma plu- ralidade de perspetivas e de modos de vida aos seus cidadãos. Com o objetivo de demonstrar uma outra perspetiva sobre Xxxxxxxx – uma que seja capaz de coexistir com, e de integrar, verdadeiramente, o plu- ralismo –, o livro de Xxxxx Xxxxxx, Xxxxxxxx and Radical Democracy (2010), procura estabelecer conexões entre a filosofia de Xxxxxxxx e a teoria da democracia radical, principalmente através das obras de Xxxxxxx Xxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxx. Através desta associação, Iston pre- tende rejeitar o caráter totalitário atribuído a Xxxxxxxx e demonstrar, entre outras coisas, como a Vontade Geral é uma construção contingen- te, cuja identidade se mantém aberta a questionamentos e reconstru- ções. E que, portanto, o pluralismo não só é defendido e protegido por Xxxxxxxx, como também é necessário para a sua teoria política.
3.1. O que é a democracia radical?
As diferentes teorias contemporâneas da democracia radical es- tão unificadas pela sua crítica à democracia liberal e pelo consequen- te compromisso com a sua radicalização e aprofundamento (Norval 2001, 724). Assim, a questão fundamental que inspira os modelos da democracia radical é se os governos democráticos liberais podem ser tornados mais democráticos e, se sim, como (Xxxxxxxxxx 1977). Nes- te sentido, estas teorias enquadram-se numa tradição de pensamento político que tem como antecedentes Xxxxxxxx e Xxxx. A abordagem de Xxxxxxxx à democracia é importante, neste contexto, não tanto pela sua conceção da Vontade Geral, mas pela sua crítica à democracia re- presentativa, que desafia a suposição da democracia liberal, de que a democracia pode ser reduzida a uma seleção periódica de deputados, através da votação anónima em urnas eleitorais (Norval 2001, 725). A sua conceção de uma comunidade auto-reguladora, na qual os ci- dadãos ativamente dão consentimento às leis que os governam, como abordado no capítulo 1, significa que, uma ordem política que pro- porcione este tipo de oportunidade de participação na deliberação dos assuntos públicos, deve ser mais do que uma mera forma de governo. Ou seja, isto sugere que, para aprofundar a democracia, é necessária uma transformação mais radical na organização da sociedade. Seguin- do esta linha de pensamento, Xxxx via o confinamento da participa- ção política à eleição periódica de deputados como uma expressão da separação entre as esferas civil e política, situação que apenas poderia ser superada na sociedade comunista.
Contudo, tanto Xxxxxxxx, como Xxxx, são lidos como autores
hostis ao pluralismo: Xxxxxxxx temia que a prevalência dos interes-
ses particulares impossibilitasse o discernimento do bem comum; en- quanto Xxxx suspeitava dos valores da diversidade e da pluralidade, na sociedade moderna, por julgar que estes eram incompatíveis com a comunidade intimamente integrada que concebia como desejável, e que seria capaz de acabar com a barreira artificial e corrupta entre “pú- blico” e “privado” (Norval 2001, 726).
Porém, em contraste com o cenário político do séc. XIX e da pri- meira metade do séc. XX, a partir dos anos 1970 e 80, a crítica da democracia liberal foi aprofundada por perspetivas baseadas em ca- racterísticas identitárias (identity-based), como o género, a raça ou os direitos da comunidade LGBT, o que trouxe novos atores para o centro da atividade política. Neste contexto, Xxxxxx e Xxxxxx escreveram a obra Hegemony and Social Strategy: Towards a Radical Democracy Politics (1985), onde desenvolvem a sua ideia de uma democracia radical e plural. Segundo a sua teoria, a articulação destes diferentes grupos, formando um sujeito político não-unitário, iria aumentar o seu potencial de despoletar mudanças nas estruturas e instituições sociais, mas o processo teria de ser feito sem que se atribuísse a nenhum grupo um estatuto privilegiado. Neste sentido, as teorias contemporâneas da democracia radical surgem como uma tentativa de integrar as novas ca- racterísticas identitárias da política contemporânea, sem que isso signi- fique sacrificar a suas raízes na tradição crítica da democracia liberal.
Por esta razão, as abordagens da democracia radical de Xxxxxx
e Xxxxxx são influenciadas pelo pós-estruturalismo e procuram ativa- mente promover a diversidade, a diferença e o dissenso, de forma a evitar um estado estéril de imobilidade e fechamento político. Assim, em vez de rejeitarem absolutamente a democracia liberal, desenvol- vem uma crítica mais desconstrutiva e com mais nuance, reconhecendo que algumas das suas características são fundamentais e que, portanto, devem ser mantidas: como os princípios liberais básicos que defendem liberdade e direitos universais. Ou seja, o que propõem é uma “de- mocratização” – no sentido da sua expansão e aprofundamento – da democracia liberal.
Neste sentido, a teoria de Xxxxxx e Mouffe articula duas tradições distintas: por um lado, a do liberalismo político (o Estado de direito, a separação dos poderes e os direitos individuais) e, por outro, a tradição democrática de soberania popular. Assim, estes autores pretendem re-
-conceptualizar a ideia do controlo popular das decisões públicas em termos de pluralismo.
Segundo Xxxxxx (2001, 726), a democracia radical pode ser ca- racterizada como um ethos de radicalização, que é constitutivo dos modelos agonístico, antagonístico, discursivo e deliberativo de de-
mocracia radical. Mas o que significa “radicalização”? E quais são as condições de possibilidade para esta? Segundo Xxxxxx ((1986, 279) e (1988, 9-20)), a característica básica da ordem moderna democrática é que o lugar de poder é um lugar vazio (empty place). Nas sociedades pré-democráticas, o poder era encarnado pelo Príncipe que, enquanto representante de Deus, garantia justiça e razão soberanas – ou seja, o corpo social e político tinha uma estrutura hierárquica, fundada no princípio da vontade divina. Com a revolução democrática, o lugar de poder tornou-se um lugar vazio, despojado de qualquer referência a uma entidade transcendente que pudesse garantir a unidade social. Como resultado, a soberania passou a pertencer ao povo, mas o povo não se pode governar a si mesmo diretamente, sem mediações, porque o lugar de poder deve sempre manter-se, por necessidade da sua estru- tura, um lugar vazio. Assim, cada pessoa ou grupo pode ocupá-lo ape- nas temporariamente. É nisto que reside a condição de possibilidade de radicalização da democracia: a ausência de princípios transcendentes que justifiquem determinada organização política. Isto porque permite uma abertura da sociedade ao seu constante questionamento e redefini- ção, por diversas identidades e discursos. Desta forma, a modernidade reconhece que os princípios segundo os quais uma sociedade se orga- niza são sempre imanentes e, portanto, políticos (no sentido de estarem sujeitos a luta) e contingentes (no sentido de serem articulados histori- camente) (Norval 2001, 726).
Assim, o termo “radical”, de democracia radical, não significa dar
uma resposta definitiva à questão de como organizar o campo social. Em vez disso, estas teorias defendem que qualquer ordem social deve ser provisória e suscetível a transformações, e que a própria tentativa de resolver a ambiguidade política se demonstraria antidemocrática, uma vez que erradicaria a possibilidade de contestação. E também não significa “radical” no sentido de ser uma democracia “pura” e “verda- deira”, como a democracia direta, na qual o governo e os governados se fundem num só. O termo “radical” refere-se, pelo contrário, ao facto de que apenas se pode preservar a democracia se a sua impossibilidade radical for reconhecida, pois é essa incompletude que permite repensar as relações sociais como abertas, plurais e eternamente renegociáveis.
Neste sentido, Xxxxxx e Mouffe veem a organização da sociedade não como tendo uma estrutura determinada e necessária, mas antes como sendo o resultado de contestação política. Aqui entra uma distin- ção importante, para estes autores, entre “o político” (the political) e a “política” (politics): o primeiro termo refere-se à presença irremovível e impossível de “domesticar” do antagonismo nas relações sociais, en- quanto o segundo simboliza o conjunto de instituições e práticas, cujo objetivo é organizar a coexistência humana, num contexto de conflito
(Norval 2001, 730). No entanto, tanto o “o político” como a “política” são, segundo a sua perspetiva, centrais para a sociedade: para que a po- lítica seja democrática, tanto os seus aspetos quotidianos, como os seus próprios princípios de organização, devem ser abertos a contestação.
Outra característica das teorias da democracia radical é o seu en- tendimento da democracia como mais do que uma forma de governo, como algo que influencia modos de ser e de viver, bem como os princí- pios da própria sociedade. Assim, em vez de entenderem a democracia como um processo onde interesses pré-existentes são agregados, con- sideram que há um processo de construção e articulação de interesses e identidades. A sua perspetiva é a de que os seres humanos não são sujeitos homogéneos, e, em vez disso, cada agente é constituído por pontos de interseção entre múltiplas posições e identidades, sem uma relação necessária entre elas, e cuja articulação é o resultado de prá- ticas hegemónicas. Desta forma, Xxxxxx e Xxxxxx argumentam que a fragmentação do(s) sujeito(s) político(s) é tanto uma origem da expe- riência de subjugação, como é a pré-condição da democratização do mundo social contemporâneo (Norval 2001, 730).
No entanto, para que este projeto de democratização seja possível,
é necessária a construção de uma nova hegemonia – no sentido de um novo senso comum prevalecente – que altere as identidades dos dife- rentes sujeitos, em diferentes posições, para que as reivindicações de cada um sejam articuladas de modo equivalente. Através destas práti- cas hegemónicas, as posições dos sujeitos poderiam ser articuladas em conjunto, de forma que a sua simbolização fosse vista pelos agentes sociais como equivalente e mutuamente solidária. Estas construções, em vez de aplicarem uma supressão das diferenças, abrem o próprio espaço necessário à autonomização das lutas particulares. Assim, ao contrário da compreensão da hegemonia como dominação, Xxxxxx e Xxxxxx compreendem-na como a união de diferentes identidades e forças políticas num projeto comum, e como a construção de novas ordens sociais a partir de elementos dispersos. Neste sentido, seguem a conceção de Xxxxxxx de hegemonia enquanto forma de liderança po- lítica que transforma a sociedade moral e politicamente. Para Xxxxxxx (1971, 180-185), a hegemonia ocorreria quando a classe trabalhadora conseguisse converter os seus interesses particulares nos interesses do “povo” ou da “nação” como um todo, e, consequentemente, formasse uma vontade coletiva que representasse valores e interesses universais. Mas “alcançar o poder” não envolveria coerção e força, mas sim con- sentimento e consenso. Xxxxxx e Mouffe, no entanto, separam a per- tença a uma classe do seu entendimento do conceito de hegemonia, e teorizam-no como uma articulação entre diversos elementos e sujeitos sociais, numa força política unificada. Assim, reconstroem o conceito
de hegemonia, através da compreensão do “social” como algo comple- xo e composto por uma rede infinita de entidades e posições diferentes. Desta forma, afirmam a pluralidade dos espaços e lutas políticas na qual as forças hegemónicas podem ser articuladas.
Esta articulação envolve, ainda, uma reconceptualização da rela- ção entre universalidade e particularidade: o universal passa a ser com- preendido como um horizonte que não tem, em si mesmo, um conteúdo concreto, nem pode existir separado da particularidade (Norval 2001, 731). Assim, Xxxxxx (1996, 35) reconhece a contingência de qualquer categoria universal e argumenta que é precisamente porque o universal não tem um corpo, nem um conteúdo necessário, que a democracia é possível. No entanto, da mesma forma, Xxxxxx identifica um blindspot nas teorias que entendem a ideia de universalidade como sendo oposta às teorias da diferença. Estas falham em compreender como, para um grupo cultural particular poder afirmar o seu direito a ser reconhecido e tratado como igual, precisa de um contexto social onde prevaleçam valores partilhados e direitos mútuos. Assim, unidade e pluralidade, o geral e o particular, não se excluem mutuamente um ao outro, mas são, pelo contrário, interdependentes.
3.2. Xx Xxxxxxxx à democracia radical
Na secção anterior, expus alguns dos pontos principais das teorias da democracia radical. Em seguida, procuro estabelecer semelhanças entre estes e o projeto político proposto n’O Contrato Social.
Tanto para Xxxxxx, como para Xxxxxxxx, uma situação de plura- lidade “descontrolada”, na qual as vontades particulares perseguissem os seus interesses sem qualquer referência ao universal, não seria capaz de gerar diversidade. Na verdade, estaria a comprometê-la, uma vez que, na ausência de qualquer vontade coletiva, não haveria nada que impedisse um grupo particular de tentar ganhar dominância, à custa de todos os outros – esta seria uma situação correspondente ao segundo estado de natureza descrito por Xxxxxxxx, que resultaria em despotis- mo.
Assim, para proteger a pluralidade, é necessária uma estrutura mais ampla de direitos e obrigações, como é proposto n’O Contrato Social. Este procura evitar tanto uma situação em que uma vontade particular afirme representar a Vontade Geral, excluindo todas as ou- tras vontades, como uma situação de fragmentação social em que o interesse comum seja totalmente negado, levando a um violento es- tado de caos. Portanto, é esta interdependência entre o universal e o particular que fornece a condição de possibilidade para a legitimidade política, uma vez que assegura a liberdade individual de questionar e
redefinir os termos gerais da coexistência com os outros.
De facto, uma das principais razões para ler Xxxxxxxx como um inimigo do pluralismo é o seu manifesto medo das “vontades particula- res” e o seu constante elogio ao que é geral e comum. No entanto, inter- pretar o seu receio como sendo uma imposição de uniformidade opres- sora revela-se uma incompreensão. Consideremos o seguinte excerto: “Se entre os cidadãos não existisse qualquer contacto no momento em que, devidamente informado, o povo deliberasse, do grande número de pequenas diferenças resultaria sempre a Vontade Geral e a deliberação nunca deixaria de ser boa. Mas quando se formam fações e associações parciais à custa da totalidade, a vontade de cada uma destas associa- ções torna-se geral no que respeita aos seus membros e particular em relação ao Estado: pode dizer-se então que as vontades já não se con- tam pelos homens mas sim pelas associações. As diferenças tornam-se menos numerosas e o resultado não é tão geral. Finalmente, quando uma destas associações é tão grande que domina todas as outras, como resultado, já não se obtém uma soma de pequenas diferenças, mas uma única diferença; nesse momento já não existe uma vontade geral e a corrente dominante é uma opinião particular.” (CS, 2.3.3, p.42-43)
É possível compreender por esta passagem que o que Xxxxxxxx
receia não são os interesses particulares em si, mas que alguma “associação particular” se torne dominante, à custa da subjugação e eliminação de todas as outras. Ao impor as suas crenças morais e políticas a toda a comunidade, esta acabaria por destruir a pluralidade, deixando de existir “um grande número de pequenas diferenças”, para existir apenas “uma única diferença”. Ou seja, Xxxxxxxx opõe-se às vontades particulares apenas quando estas negam a sua particularidade e se impõem a si mesmas como universais. O que significa que a Von- tade Geral não instancia uma forma opressiva de unidade e, pelo con- trário, funciona como um mecanismo de proteção da sociedade contra a erradicação da diversidade política.
Contra Xxxxxxx que, no seu artigo Droit Naturel (1992)4, argumen- ta que há uma Vontade Geral da e para a humanidade, que correspon- de a uma moralidade universal racional, que ganha efeito assim que as paixões são silenciadas, Xxxxxxxx considera que a Vontade Geral é contextualmente definida, ou seja, que não é inerente à humanidade.5 Assim, oferece um entendimento mais plural, contingente e aberto do que é geral, ou universal. A Vontade Geral não precede as vontades
4. Artigo originalmente publicado no volume 5 (1755) da Encyclopédie.
5. Ideia presente no Livro I, capítulo II – Da Sociedade Geral do Género Humano, do Manuscrito de Genebra, também conhecido como a primeira versão d’O Contrato Social. Versão portuguesa do Círculo de Leitores (2008) traduzida a partir de Xxxx-Xxxxxxx Xxxxxxxx, Oeuvres Complètes, III: Du Contrat Social – Écrits Politiques (Gallimard).
particulares, mas, na verdade, depende da existência destas para a sua própria construção. A interconexão entre o particular e o universal per- mite uma relação dinâmica, onde cada termo molda e é moldado pelo outro. Nenhum deles pode, portanto, ser concebido de forma absoluta. Estes não são mutuamente exclusivos. Pelo contrário, habitam um no outro. A Vontade Geral, para ser uma vontade, não pode ser imposta: para que exista, tem de ser desejada. Assim, os cidadãos têm o poder de escolher quais os interesses e discursos que se tornam generalizados.
Aqui entra a ligação entre o conceito de hegemonia e a Vontade Geral. Tal como a conceção de hegemonia de Xxxxxx e Xxxxxx, a Von- tade Geral representa uma união contingente de forças antagonísticas num projeto coletivo de transformação social, que se baseia no acordo e identificação. O nome do Soberano articula as forças antagonísti- cas sem uma conexão essencial, ainda que as nomeie como uma força unificada. Esse processo articulador não agrega simplesmente identi- dades e interesses particulares, mas generaliza-os, sem eliminar com- pletamente a sua diferença. Esta ideia é evidenciada pela discussão de Xxxxxxxx sobre a distinção entre a vontade de todos e a Vontade Geral: esta não é apenas a soma das vontades particulares, mas uma conexão entre os diferentes interesses. Assim, a “comunidade” funciona como um significante vazio, nomeando o todo ausente que cada cidadão con- tribui para produzir. Para as pessoas se compreenderem a si mesmas como uma comunidade, têm de simbolizar a sua união através da escri- ta de leis e da articulação de valores e normas partilhados.
Neste sentido, Xxxxxxxx propõe assembleias públicas regulares
com a participação de todos os cidadãos e durante as quais o poder do governo (o poder executivo) fica suspenso. Nestes encontros, os mem- bros da comunidade repensam e renovam as condições da sua união. Xxxxxxx Xxxxxxxx: “Quando o povo está legitimamente reunido como soberano, imediatamente cessa toda a jurisdição do governo, fica sus- penso o poder executivo, e a pessoa do último cidadão é tão sagrada e inviolável como a do primeiro magistrado porque, quando o repre- sentado está Presente, não é necessário o representante.” (CS, 3.14.1, p.108-109) Assim, a força do soberano emerge através da ausência de representantes. Através dessa ausência, o povo realiza a sua autoridade, na medida em que se identifica com o lugar vazio do poder, e isso lhe permite decidir como se representar a si mesmo. As assembleias relem- bram aos cidadãos que não há nenhum agente de poder privilegiado, e que, portanto, o fundamento da sociedade depende dela mesma, isto é, dos próprios cidadãos. Desta forma, revela-se a contingência dos arranjos atuais da comunidade e, consequentemente, o possível alcance da sua reconstrução.
Assim, Xxxxxxxx, tal como Xxxxxx e Xxxxxx, reconhece a ambi- guidade central no coração da democracia: a soberania só pode per- tencer ao povo, mas o povo não se pode regular a si mesmo de forma não mediada porque o espaço de poder é um lugar vazio, que ninguém pode completamente ocupar. De facto, embora seja frequentemente as- sociado a uma defesa da democracia direta, Xxxxxxxx critica este tipo de democracia enquanto modelo de governo: “Se existisse um governo de deuses, governar-se-ia democraticamente. Um governo tão perfeito não convém aos homens.” (CS, 3.4.8, p.85) No entanto, para além da sua impraticabilidade no reino humano, Xxxxxxxx mostra ainda como a democracia direta seria no fundo antidemocrática. Se os cidadãos, no ato de deliberação, considerassem não apenas o ser abstrato da comunidade, mas também casos particulares, então a sua capacidade de se verem a si mesmos tanto como uma parte do todo, como uma incorporação do todo, seria prejudicada. Isto porque poderiam acabar por julgar casos onde estivessem diretamente implicados. Assim, a de- mocracia direta, em vez de garantir a Vontade Geral, compromete-a, pois permitiria situações em que os interesses privados interferissem com os assuntos públicos.
Para além disso, quando o povo e o governo se tornam um só, o
povo não pode desmantelar o seu governo, sem se desmantelar a si próprio. Isto é, se o governo pretendesse expressar a vontade do povo completamente, contestá-lo seria excluir-se a si mesmo do povo, e de- sistir do seu direito a participar na vida pública. Portanto, o lugar de poder tem de ser um lugar vazio. Ao tentar eliminar o intervalo entre o governado e o seu governante, a democracia direta abole o espaço dentro da esfera social que é necessário para que ocorram reformas e mudanças.
Assim, o pacto social rousseauniano não corresponde a um estado fixo, mas a um contínuo processo de contratação: “o Estado não vive das leis, vive sim do poder legislativo. A lei de ontem não se impõe hoje” (CS, 3.11.4, p.105). Ao entrarem no contrato, os cidadãos não concordam apenas com seguir as regras que autorizam para si próprios, mas também com exercer a sua constante crítica e transformação, numa busca constante pela justiça. Daí a enfâse de Xxxxxxxx na “vontade” da Vontade Geral: é em ser uma vontade que reside a sua legitimidade. De facto, se os cidadãos se limitarem apenas a obedecer às leis, dissolvem-
-se enquanto povo, por esse mesmo ato: “Se o povo apenas promete obedecer, dissolve-se com esse ato, perde a sua qualidade de povo; desde o momento em que passa a ter senhor, já não há um soberano e o corpo político é destruído.” (CS, 2.1.3, p.39-40)
Isto significa que O Contrato Social exige um modo ativo e con-
testatário de cidadania. Neste sentido, usando a conceção de Xxxxxx e Mouffe da democracia radical, Iston (p. 183-184) mostra como O Contrato Social afirma a ideia de uma democracia não enquanto uma mera forma de governo, mas como um modo de viver, que adota a contingência constitutiva dos valores e instituições sociais, como uma condição de liberdade e transformação. Assim, a democracia assume a identidade de uma promessa, que pode ser traída e que, portanto, exige vigilância e uma crítica interminável, por parte dos próprios ci- dadãos, de forma a resistir a práticas e instituições não-igualitárias: “Precisamente porque a força das coisas tende para destruir a igual- dade, é que a legislação deve procurar mantê-la sempre.” (CS, 2.11.3, p.66) A igualdade perfeita representa um horizonte imaginário, e não um ideal concreto realizável. Ao expor a injustiça das desigualdades sociais presentes, este horizonte permite tomar ações, que partem da responsabilidade moral que cada um sente para com a sua comunidade.
O projeto de uma democracia em constante mutação só é possível
se se aceitar a contingência inerente a qualquer iniciativa política, e que a dimensão universal corresponde a um horizonte vazio e não a uma essência ou lógica subjacente. Assim, partindo da teorização de Xxxxxx sobre o universal contingente, Inston (p. 107) mostra como a interde- pendência do particular e do geral no pensamento de Xxxxxxxx afirma um modo contestatário de democracia, que evita o objetivo totalitário de estabelecer uma sociedade sem tensões e ambiguidades. Xxxxxxxx desenvolve a sua noção da Vontade Geral através da descrição de uma cidadania não-conformista necessária para evitar a estagnação política e garantir a contínua vontade de renovação do que é partilhado por to- dos. De facto, embora Xxxxxxxx enfatize a necessidade de uma dimen- são de união, avisa que a unanimidade não é um bom sinal: “Com a morte da sociedade, volta a unanimidade: é quando os cidadãos, caídos na escravidão, já não têm liberdade nem vontade.” (CS, 4.2.3, p.124) Este excerto põe em causa qualquer sugestão de que a Vontade Geral constitui um consenso forçado. Pelo contrário, a Vontade Geral opera para proteger a diferença, uma vez que esta é necessária a um modo de vida “saudável” em comunidade.
Desta forma, a comunidade é capaz de ampliar o pluralismo, em
vez de o limitar: em conjunto, é possível aumentar as possibilidades e horizontes de caminhos possíveis e, portanto, ser-se mais livre.
Nesta secção, recorri a quatro pontos principais para relacionar a teoria da democracia radical desenvolvida por Xxxxxx e Xxxxxx com O Contrato Social: uma compreensão da interdependência entre o parti- cular e o universal; semelhanças entre os conceitos de Vontade Geral e o de hegemonia; um entendimento do poder enquanto lugar vazio;
e a visão da democracia não enquanto uma mera forma de governo alcançável no futuro, mas enquanto um modo de vida e uma prática constante no presente.
Assim, procurei atualizar a teoria política de Xxxxxxxx, ao de- monstrar como a sociedade proposta n’O Contrato Social não só pode coexistir com o pluralismo, como, na verdade, está dependente deste para poder existir.
Conclusão
Neste ensaio, tentei compreender, através do estudo da obra O Contrato Social, o que é a liberdade para Xxxxxxxx e como é que esta se constrói numa dimensão coletiva. A ideia é que a liberdade, num sentido civil e moral – deixando de fora, portanto, a liberdade do es- tado de natureza – só pode existir dentro do pacto social, realizado entre todos, e fundador da comunidade política. Para que este contrato se mantenha, é necessário que as decisões coletivas se orientem pela Vontade Geral. Isto porque esta garante a liberdade pelo menos de duas formas: por um lado, é a própria concretização da liberdade, e, por ou- tro, é uma pré-condição desta.
Num primeiro momento, analisei a condição alienante do estado de natureza, no qual a dependência social está estruturada de forma a permitir relações de dominação entre os indivíduos, impossibilitando a realização plena da sua liberdade. Assim, foi como resposta a esta situação que surgiu O Contrato Social – a proposta de uma livre comu- nidade de iguais, que seja orientada pela Vontade Geral. Este conceito difere da vontade particular e da vontade de todos e, para além de uma dimensão formal, envolve um conteúdo substantivo relacionado com o bem comum e com a igualdade. Neste sentido, expliquei como, segun- do Rousseau, estabelecer igualdade entre os cidadãos é fundamental para que possa existir liberdade.
Demonstrei ainda como, através de uma relação subjetiva de iden- tificação entre a própria vontade do indivíduo e a Vontade Geral, esta funciona como uma concretização da liberdade moral. No entanto, este modelo é insuficiente e precisa de outro complementar, que explica como a Vontade Geral representa uma pré-condição da liberdade civil, uma vez que mitiga as consequências negativas da dependência social. Desta forma, cada uma destas abordagens à liberdade, constitui uma condição necessária, mas não suficiente, para alcançar uma liberdade individual completa, na perspetiva de Xxxxxxxx.
Para além disso, desenvolvi como é que, através da autodetermi-
nação coletiva da comunidade, se ultrapassa a condição de alienação presente no estado de natureza. Esta superação representa também uma garantia da liberdade dos cidadãos, já que os torna verdadeiramente agentes autónomos. Assim, apresentei a forma como Xxxxxxxx cons- trói a liberdade individual a partir de uma dimensão coletiva.
No segundo capítulo, analisei algumas das principais críticas diri- gidas a Xxxxxxxx, procurando defendê-lo de qualquer aproximação ao totalitarismo. Presente em toda a minha abordagem de resposta, esteve a defesa de uma liberdade coletiva: no vocabulário de Xxxxxxxx, a liber- dade dos Antigos, no de Berlin, a liberdade positiva, e, no de Xxxxxxxx, a liberdade moral. Designo-a liberdade coletiva não porque esta não exista individualmente, mas porque tem sempre implícita uma dimen- são coletiva. Isto acontece não só porque a autonomia apenas pode ser alcançada numa comunidade como a descrita n’O Contrato Social, mas também porque a liberdade positiva, enquanto autodeterminação coletiva, é a única capaz de superar o estado de alienação.
Por fim, procurei estabelecer uma relação entre O Contrato Social e as teorias da democracia radical, com o objetivo de demonstrar como o projeto político de Xxxxxxxx não só pode coexistir com o pluralismo
– elemento fundamental do mundo contemporâneo – como este é, na verdade, necessário para a sua possibilidade. Desenvolvi esta relação a partir de quatro pontos principais em comum: uma compreensão da interdependência entre o particular e o universal; semelhanças entre os conceitos de Vontade Geral e o de hegemonia; um entendimento do poder enquanto lugar vazio; e a visão da democracia não enquanto uma mera forma de governo alcançável no futuro, mas enquanto um modo de vida e uma prática constante no presente.
Assim, ao longo deste ensaio, defendi que a liberdade individual não deve ser entendida como algo que envolve a exigência de uma bar- reira entre cada um e a sua comunidade, mas sim como algo que só pode existir plenamente no seio de uma comunidade. Neste sentido, pretendi demonstrar como, através da obra de Xxxxxxxx, esta relação positiva entre liberdade individual e comunidade se torna possível. Contudo, isso só é realizável em comunidades com determinadas característi- cas. Como vimos, tanto Xxxxxxxx (1819), como o próprio Xxxxxxxx, no Segundo Discurso, descrevem exemplos de comunidades onde, de facto, e por diferentes razões, a liberdade individual (no seu sentido completo – civil e moral), é aniquilada. Isto deve-se ao facto de serem modelos alienantes de comunidade. Para uma verdadeira libertação, é necessário que exista uma livre comunidade de iguais (Xxxxx 2010), o que corresponde à proposta d’O Contrato Social.
Isto significa que, para experienciarmos as liberdades menciona-
das por Xxxxxxxx, precisamos de repensar e de reformular os moldes das nossas comunidades. Assim, julgo serem necessárias comunidades onde o poder local coletivo exista realmente, onde haja uma situação de igualdade material e de estatuto moral generalizada, onde se cultive um sentido amplo de responsabilidade para com o outro, onde dife- rentes identidades e modos de vidas coexistam plenamente, e onde se desenvolvam relações fortes de entreajuda e solidariedade. Criar es- tas condições geraria, nos cidadãos, uma maior ligação à comunidade. Desta forma, diminuiria o medo e a aversão à dimensão comunitária, e dar-se-ia uma progressiva aproximação entre esta e a dimensão indi- vidual. Isso resultaria no alargamento da conceção do “eu” para algo mais próximo de um “nós”, o que, por sua vez, contribuiria para um ainda maior envolvimento com a comunidade. E viver numa comuni- dade “saudável” e orientada para a realização do bem comum, próxima do ideal rousseauniano – ainda que este não seja o da harmonia com- pleta, como explicado no último capítulo –, contribuiria para o alarga- mento das liberdades de cada um. Assim, considero que é através da pertença a este tipo de comunidades, que se torna possível concretizar verdadeiramente a liberdade.
*
Tomei até aqui, praticamente sempre, o lado de Xxxxxxxx: pro- curei defendê-lo dos seus críticos e refutar qualquer aproximação ao totalitarismo. No entanto, julgo que o autor acaba por deixar algumas questões difíceis por responder: a que corresponde, de facto, o bem co- mum de uma sociedade? Ou seja, o que é que constitui o conteúdo da Vontade Geral? Como é que cada cidadão pode sabê-lo? Como saber o que é melhor para a comunidade como um todo? Que princípios e cri- térios devem ser seguidos e tidos em conta para essa tarefa? Isso será sequer possível? Existirá, realmente, algo como a Vontade Geral – ou seja, uma solução que corresponda realmente ao bem comum? Como se organizariam as assembleias de cidadãos e qual seria o método de deliberação utilizado? E qual seria o tamanho máximo possível destas comunidades?
Estas são perguntas que ficarão, por enquanto, em aberto, uma vez que o objetivo deste ensaio se prendia com explorar a forma como a comunidade se constitui como condição de possibilidade da liberdade individual. É possível que, com mais estudo, possam ser encontradas respostas a estas perguntas nas próprias obras de Xxxxxxxx. Mas é tam- bém provável que, para lhes responder devidamente, seja necessário recorrer a outros autores e a outras teorias, que funcionariam como
um suplemento ao projeto político de Xxxxxxxx. Isto não diminuiria, contudo, o seu valor e importância, uma vez que foi este quem lançou o molde geral de comunidade que se tentaria, então, aperfeiçoar.
Seria também interessante investigar sobre outras formas de com- preender a relação entre as dimensões individual e comunitária, e com- pará-las com as de Xxxxxxxx. Isso terá, igualmente, de ficar para um projeto futuro.
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