A INFRAESTRUTURA TEXTUAL DO GÊNERO CONTRATO
A INFRAESTRUTURA TEXTUAL DO GÊNERO CONTRATO
Xxxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxx (UFPB) xxxxxxxxxxxxxx@xxxxx.xxx
Xxxxxx Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx (UFPB)
Introdução
O objetivo deste trabalho é apresentar um recorte da nossa pesquisa de iniciação científica intitulada “Práticas sociais de escrita: a retextualização de gêneros jurídicos”. Com essa pesquisa, buscamos analisar os parâmetros de produção do texto jurídico, especificamente de contratos de serviço médico e de compra e venda de imóveis, determinar suas características linguístico-discursivas e aspectos constitutivos desse gênero.
Tendo conhecimento da linguagem de difícil compreensão utilizada nesses documentos, os contratos, propomos como um dos objetivos do projeto a retextualização de tal linguagem, por acreditarmos que isso contribui para uma melhor compreensão por parte do leitor. Essa análise é fundamentada na perspectiva teórico- metodológica do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), na qual, a concepção de linguagem como ação é central.
Trata-se de uma pesquisa de natureza descritiva e interpretativa, que se utiliza de um corpus de base documental. Os parâmetros de produção textual propostos por Xxxxxxxxx (1999) são utilizados como categoria de análise, em especial, aqueles que dizem respeito ao contexto sociossubjetivo. Além de identificarmos os elementos constitutivos no nível da infraestrutura do gênero contrato, pudemos, ainda, definir suas principais características linguísticas.
Os resultados de tal análise indicam que a infraestrutura do contrato apresenta uma estrutura regular, padrão, independentemente da natureza do serviço contratado. As especificidades de natureza linguística estão atreladas à natureza do objeto contratado, mas que, em ambos os contextos, trata-se de uma linguagem pouco compreensível e, ao mesmo tempo, de leitura extremamente fadigosa.
Embora devessem ser claras, com a intenção de facilitar o entendimento do leitor, essas construções textuais são algumas vezes prolixas e se utilizam de expressões pouco usadas habitualmente.
1. O Interacionismo Sociodiscursivo – ISD
O ISD defende, entre outras máximas, a noção de linguagem como ação. É a partir do uso da linguagem que o indivíduo age na sociedade e se desenvolve cognitivamente. A influência de estudiosos como Xxxxxxxx e Xxxxxxx, assim como a teoria do Agir Comunicativo (XXXXXXXX, 1987), explicam a visão interdisciplinar que o ISD atrelou ao seu campo de atuação. O ISD trata das ações de linguagem com legitimidade, tendo em vista que reúne a psicologia, a linguística e a sociologia.
Bronckart (2006, p. 10) se posiciona da seguinte forma a esse respeito:
O ISD aceita todos os princípios fundadores do interacionismo social e contesta, portanto a divisão atual das Ciências Humanas/Sociais: nesse sentido, não é uma corrente propriamente lingüística, nem uma corrente psicológica ou sociológica; ele quer ser visto como uma corrente da ciência do humano.
Segundo Xxxxxxxxx, o agir comunicativo é constituído como um instrumento pelo qual as ações de linguagem são aplicadas a um sujeito (agente) e se materializam na entidade empírica, composta pelo texto. Além disso, o plano geral de um texto pode apresentar formas variadas, pelas seguintes razões: depende do gênero ao qual o texto pertence e dos fatores responsáveis pela singularidade de qualquer texto empírico, tais como: tamanho, conteúdo temático e condições externas de produção, também são de extrema relevância nessa questão.
Os mecanismos de textualização presentes em um texto dizem respeito às suas regras de organização geral, compreendendo a coesão nominal, a coesão verbal e os mecanismos de conexão. Esses elementos linguísticos contribuem para o estabelecimento da coerência temática, tornando possível a coesão entre os enunciados.
Os mecanismos enunciativos, por sua vez, estabelecem os posicionamentos enunciativos e as modalizações, que são referidas pela dimensão configuracional do texto, colaborando com sua coerência pragmática. As modalizações podem ser classificadas de acordo com as funções que expressam, da seguinte maneira: lógicas (julgamentos sobre o valor de verdade das proposições enunciadas), deônticas (avaliações pautadas em valores sociais), apreciativas (julgamentos subjetivos) e pragmáticas (avaliações referentes à capacidade de ação e à intenção do agente).
Em conformidade com nossas bases epistemológicas, a escrita é tomada como objeto de estudo em seus diferentes aspectos, como contexto de produção e critérios de apreensão do texto escrito. Desse modo, buscamos analisar os parâmetros de produção do texto jurídico, especificamente de contratos, determinar suas características linguístico-discursivas e aspectos constitutivos desse gênero.
2. O texto jurídico: Contrato
Tendo conhecimento da linguagem de difícil compreensão utilizada nos contratos, temos como objetivo a retextualização de tal linguagem, possibilitando uma melhor compreensão por parte do leitor. As categorias de análise foram definidas com base em Bronckart (1999). Atemo-nos à infraestrutura e aos mecanismos de textualização e mecanismos enunciativos.
A finalidade dos contratos é estabelecer um consenso mútuo entre dois ou mais indivíduos, ou entre entidades. Cada uma das partes se submete a obrigações e também usufrui de direitos. São diversos os tipos de contratos existentes, por exemplo, contrato de adesão, contrato de arrendamento, contrato de compra e venda, contrato de prestação de serviços, contrato de trabalho, contrato matrimonial, contrato de crédito etc. Caso haja descumprimentos por alguma das partes daquilo que foi firmado, a parte lesada se servirá de garantia jurídica.
Embora não possa, em nenhuma circunstância, ultrapassar a lei, há o princípio da liberdade contratual, dando flexibilidade a quem concede o serviço para estabelecer as condições do contrato que será utilizado. Cláusulas contratuais consideradas fraudulentas ou abusivas são invalidadas pelo juiz, mas não obrigatoriamente invalida todo o contrato. As partes envolvidas nesse documento são chamadas pela linguagem jurídica de outorgantes e outorgados, alienantes e alienados, contratantes e contraentes, beneficiários, participantes, entre muitos outros.
Inicialmente, decidimos nos voltar aos contratos de prestação de serviços de empresas de planos de saúde, analisando contratos da empresa UNIMED e da empresa GEAP, considerando as categorias de análise ditas anteriormente.
3. Infraestrutura
Os contratos são estruturados em três partes. Inicialmente, aparece a abertura, onde é denominado o tipo de contrato e a identificação das partes envolvidas.
Exemplo:
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS E HOSPITALARES
SEGMENTO ASSISTENCIAL:
PLANO AMBULATORIAL + HOSPITALAR COM OBSTETRÍCIA ÁREA DE ABRANGÊNCIA – ESTADO DA PARAÍBA
NOME COMERCIAL: PLANO DE SAÚDE
TIPO DE CONTRATAÇÃO: INDIVIDUAL OU FAMILIAR
Certificado de Registro na ANS nº 437.388/02-0
CONTRATANTE:
Nome:
Endereço
Bairro: Cidade:
CEP: Fone:
Estado Civil: D.N.:
RG: CPF:
CONTRATADA:
UNIMED PARAÍBA – FEDERAÇÃO DAS SOCIEDADES COOPERATIVAS DE TRABALHO MÉDICO
Inscrita no CGC sob nº 40.960.189/0001-89 Sediada à Av. Xxxxxxxx xx Xxxxx, nº 89, Xxxxx XXX 00000-000 João Pessoa – PB
A segunda parte é composta pelo encadeamento, que são as condições do contrato, manifestadas através das cláusulas contratuais que os contraentes se comprometem a respeitar. As cláusulas de um contrato devem procurar trazer todas as possibilidades decorrentes do negócio ou bem que está sendo cedido, de maneira que o próprio documento esclareça todas as particularidades do acordo firmado entre as partes.
Exemplo:
CLAÚSULA I – OBJETO DO CONTRATO (possui texto após esse título) XXXXXXXX XX – USUÁRIOS (possui texto após esse título)
XXXXXXXX XXX – ASSISTÊNCIA AMBULATORIAL E HOSPITALAR COM
OBSTETRÍCIA (possui texto após esse título)
CLÁUSULA IV – DO PLANO (possui texto após esse título)
A terceira e última parte é denominada fecho, onde se encontram o local e a data onde foi celebrado o contrato e as assinaturas dos outorgantes devidamente reconhecidas.
Exemplo:
E por estarem assim justos e acordados, assinam o presente Contrato, na presença de duas testemunhas.
João Pessoa, de de
UNIMED PARAÍBA CONTRATANTE
Testemunhas:
1. 2.
Nome Nome
CPF CPF
4. Mecanismos enunciativos nos contratos
Os mecanismos enunciativos contribuem para a manutenção da coerência pragmática do texto. Eles auxiliam o esclarecimento dos posicionamentos enunciativos, ou seja, aquilo que é enunciado no texto. Contribuem também para elucidar as vozes ali presentes e as avaliações algumas vezes encontradas referentes a aspectos do conteúdo temático, como julgamentos, opiniões ou sentimentos. Esses mecanismos pretendem orientar o destinatário do texto, propiciando uma melhor interpretação.
Segundo Xxxxxxxxx (1999), no texto empírico podemos considerar diferentes vozes, que são reagrupadas em três subconjuntos, são eles: A voz do autor empírico, as
vozes sociais (vozes de outras pessoas exteriores ao conteúdo temático), e as vozes de personagens (vozes de outras pessoas diretamente implicadas no conteúdo temático). Na grande maioria dos contratos jurídicos, a voz do autor empírico não aparece no texto, como também nenhuma voz social.
Há nesses documentos uma maior incidência de construções frásicas na terceira pessoal (do singular ou do plural). Esse mecanismo de escrita revela uma visão mais objetiva do autor, bem como o caráter impessoal do texto, criando um distanciamento, uma anulação de autoria. Não existem avaliações ou julgamentos presentes esse texto.
Exemplo:
“Parágrafo Xxxxxx - Xxxxxx ao responsável pelo Contrato de Adesão o pagamento das participações integrais relativas ao tratamento que se refere o parágrafo anterior.”
“Nos casos de urgência ou emergência, os USUÁRIOS poderão obter atendimento diretamente junto aos serviços contratados pela UNIMED PARAÍBA, na modalidade prevista neste Contrato, devendo pata tanto, identificarem-se como USUÁRIOS, apresentando a carteira – cartão de identificação, bem como o comprovante de pagamento atualizado da mensalidade.”
5. Modalizações
O conteúdo temático do texto passa por avaliações, tais ponderações são chamadas, pela tradição gramatical, de modalizações. Ou seja, esse mecanismo pretende traduzir, ou esclarecer, as avaliações formuladas a partir de qualquer voz enunciativa. Elas contribuem para o estabelecimento da coerência pragmática do texto.
Conforme observado em Bronckart (1999, p. 132), as modalizações se dividem em quatro subconjuntos, sendo eles:
- as modalizações lógicas, que consistem em julgamento sobre o valor de verdade das proposições enunciadas, que são apresentadas como certas, possíveis, prováveis, improváveis, etc.;
- as modalizações deônticas, que avaliam o que é enunciado à luz dos valores sociais, apresentando os fatos enunciados como (socialmente) permitidos, proibidos, necessários, desejáveis, etc.;
- as modalizações apreciativas, que traduzem um julgamento mais subjetivo, apresentando os fatos enunciados como bons, maus, estranhos, na visão da instância que avalia.
- as modalizações pragmáticas, que introduzem um julgamento sobre uma das facetas da responsabilidade de um personagem em relação ao processo de que é agente, principalmente sobre a capacidade de ação (o poder-fazer), a intenção (o querer-fazer), e as razões (o dever- fazer).
Conforme já dissemos anteriormente, um traço característico dos contratos refere-se à predominância de uma linguagem mais objetiva, que, nessas condições, propicia uma maior incidência de modalizações lógicas, predominantes em quase todo o texto.
Exemplo:
“O usuário que, por qualquer motivo, deixar de atender às condições exigidas para sua inscrição, será automaticamente excluído do Contrato.”
Entretanto, há ocorrência de trechos que comprovam modalizações pragmáticas. Conforme Xxxxxxx (2012, p. 190:
[...] No caso das modalizações pragmáticas, revelam traços das ações, intencionalidades e aspectos da responsabilidade de entidades que se apresentam no conteúdo temático de um texto, por meio de uma voz ou mesmo diferente vozes, dada a natureza muitas vezes polifônica do discurso.
Essa ocorrência se justifica plenamente devido à função sociocomunicativa do gênero, cujo objetivo maior é regulamentar direitos e deveres aos envolvidos nas transações contratuais.
Exemplo:
“O contratante poderá incluir, posteriormente novos dependentes, dependendo da prévia anuência da UNIMED PARAÍBA e sujeitos aos prazos de carência previstos na Cláusula VII, item 7.1., e alíneas, pagando os valores vigentes na data de inclusão.”
6. Algumas sugestões de alteração nos termos
Esse estudo consiste em um recorte de análise do corpus da nossa pesquisa, ainda não foram feitas retextualizações dos contratos, entretanto, pudemos elencar o uso de expressões linguísticas pouco utilizadas e termos específicos da linguagem jurídica que poderiam ser trocadas por outras de uso mais corrente, facilitando o entendimento do leitor.
Exemplo:
Termo Original - Outorgante ou alienante
Termos Sugeridos - Esses termos podem ser substituídos pela palavra Contratado, ou pelo no da empresa/pessoa que está sendo contratada.
Trecho Original - “Por este instrumento particular, as partes acima identificadas e devidamente qualificadas, doravante definidas [...]”.
Xxxxxx Xxxxxxxx - Por este motivo particular, as partes acima identificadas e devidamente qualificadas, de agora em diante definidas [...].
Trecho Original - “[...] A cobertura cessará no momento que ficar caracterizada a necessidade de procedimentos de internação ou quando se completar 12 horas do início do atendimento, não cabendo doravante qualquer ônus à UNIMED PARAÍBA [...].”
Trecho Alterado - A cobertura cessará no momento que ficar caracterizada a necessidade de procedimentos de internação ou quando se completar 12 horas do início do atendimento, não cabendo, de agora em diante, qualquer prejuízo a UNIMED PARAÍBA.
Trecho Original - “Fica inequivocamente ajustado que as carteiras/cartões de identificação emitidas [...]”.
Trecho Alterado - Fica acertado que as carteiras/cartões de identificação emitidas [...].
Trecho Original - “O usuário é obrigado a informar à UNIMED PARAÍBA, no ato da sua inclusão e dos seus dependentes, a condição sabida de lesão ou doença pré- existente, antes da assinatura do Contrato, sob pena de imputação de fraude [...]”.
Trecho Alterado - O usuário é obrigado a informar à UNIMED PARAÍBA, no ato da sua inclusão e dos seus dependentes, a condição sabida de lesão ou doença pré- existente, antes da assinatura do Contrato, sob pena de ser acusado por fraude [...].
É visto que a utilização de algumas expressões dificulta o entendimento de uma frase inteira. A leitura já é extensa, levando em consideração os detalhes minuciosos de um acordo entre partes, e o uso de tal linguagem dificulta ainda mais a compreensão do texto. Não é que precise haver grandes mudanças, são detalhes que, se alterados, farão grande diferença para quem lê.
Considerações finais
Os gêneros possuem alguns aspectos que justificam o motivo pela qual tal linguagem foi utilizada em um determinado contexto comunicativo. Vejamos o que diz Xxxxxx (ano) a esse respeito:
Os gêneros são definidos essencialmente em termos de uso da linguagem em contextos comunicativos convencionados, que dá origem a conjuntos específicos de propósitos comunicativos para grupos sociais e disciplinares especializados, que, por sua vez, estabelecem formas estruturais relativamente estáveis e, em certa extensão, até mesmo impõem restrições quanto ao emprego de recursos léxico-gramaticais.
São levados em consideração pelo menos três aspectos convencionais que estabelecem a discussão sobre gêneros, sendo eles: “(a) a recorrência de situações retóricas, (b) os propósitos comunicativos compartilhados e (c) as regularidades de organização estrutural” (BHATIA, 2009, p. 161). O primeiro aspecto é relacionado ao contexto sócio-cultural, além dele, são levados em consideração, também, aspectos proeminentes ao contexto sócio-retórico e ao propósito comunicativo.
Uma evidência disso é a característica da linguagem utilizada nos contratos jurídicos, que é claramente objetiva e extremamente técnica, possuindo, em sua grande maioria, modalizações lógicas, mas também registrando algumas raras ocorrências de modalizações pragmáticas. Tal linguagem é utilizada para reafirmar o caráter impessoal e profissional que exerce tal texto. Muitas vezes o leitor comum é desprestigiado ao se deparar com essa linguagem mais rebuscada que dificulta seu entendimento do contrato a ser assinado.
É importante ressaltar que a linguagem presente nos contratos não deveria ser direcionada a um destinatário específico, esses documentos são utilizados por todos os tipos de leitores e em diversas situações. É por esse motivo que a escrita desses textos deve ser repensada de maneira que possa ser compreensível, senão para todos, pelo menos para o maior número de destinatários possíveis.
Referências
XXXXXX, X.X. Gêneros e sequências textuais. Recife: Edupe, 2009.
XXXXXXXXX, Xxxx-Xxxx. Atividades de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. São Paulo: Educ, 1999.
. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx xx Xxxxxxx X. (Xxxx.). Xxxxxxxx - XX: Mercado de Letras, 2006.
. A atividade de linguagem em relação à língua – homenagem à Xxxxxxxxx xx Xxxxxxxx. In: XXXXXXXXX, A. M. de M., XXXXXXX, A. R. & XXXXXXXX, X.
(orgs.) O interacionismo sociodiscursivo – questões epistemológicas e metodológicas. São Paulo: Mercado de Xxxxxx, 0000, x. 00-00.
XXXXXXXX, Xxxxxx. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
XXXXXXX, Xxxxxx Xxxx Xxxxxx (Org.). Nas Trilhas do ISD: Práticas de ensino- aprendizagem da Escrita. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012.