Contratos de concessão comercial: o que o caso Ford ensina sobre a boa-fé nos contratos empresariais
Contratos de concessão comercial: o que o caso Ford ensina sobre a boa-fé nos contratos empresariais
Xxxxxx Xxxxx Xxxxx0
1. Introdução
Reina no imaginário jurídico brasileiro a crença de que a boa-fé tem eficácia mitigada no campo do direito comercial. Com efeito, corrente é a afirmação de que nas relações entre “contratantes iguais”, nas quais inexistem desníveis estruturais, como sói ocorrer, em regra, nas relações empresariais, a boa-fé objetiva teria importância reduzida. Com isso, busca-se, em geral, afastar o reconhecimento pelo juiz ou árbitro de deveres adicionais de conduta no caso concreto.
O discurso, porém, carece de fundamentação. O equívoco mostra-se já sob uma perspectiva histórica, pois foi no campo do direito comercial medieval que a boa-fé objetiva – tal como hoje compreendida2 – surgiu e se desenvolveu na Alemanha, penetrando posteriormente na jurisprudência do antigo Tribunal Imperial alemão (Reichsgericht) e, na sequência, no direito civil3.
A partir do direito germânico, a noção se expandiu para outros ordenamentos jurídicos, sendo recepcionada no Brasil principalmente através da obra pioneira de Clóvis do Couto e Silva4 e, no plano legislativo, no Código de Defesa do Consumidor, vez que o art. 131 do antigo Código Comercial de 1850 permaneceu letra morta durante sua vigência, como lucidamente coloca Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx0.
Sob o aspecto sistemático, a crença também não se sustenta, pois a boa-fé, enquanto mandamento de eticidade e proteção da confiança, é princípio estruturante de todo direito, principalmente do direito obrigacional6. Longe de constituir um
1 Doutora (summa cum laude) pela Humboldt Universität de Berlim (Alemanha). LL.M na Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUCSP. Membro da Comissão Especial de Direito Civil do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Membro do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr). Secretária-Geral da Deutsch-lusitanische Juristenvereinigung (Associação Luso-alemã de Juristas), sediada em Berlim. Presidente do Fórum Jurídico Brasil-Alemanha. Autora da coluna “German Report”, no Portal Migalhas. Professora e Parecerista.
2 A doutrina civilista e comercialista reconhece a raiz germânica do princípio da boa-fé objetiva. Confira-se, dentre outros: XXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxx. Vínculo obrigacional: relação jurídica de razão (técnica e ciência de proporção). Tese de livre-docência apresentada perante a PUCSP, 2004, p. 246; XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. Da boa-fé no direito privado. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 301 e XXXXXXXX, Xxxxx. Contratos de distribuição. São Paulo: XX, 0000, p. 37, 553, citando a doutrina de Xxxx Xxxxxx e Xxxxxx Xxxxx.
3 XXXXX, Xxxx; XXXXXXXXXXXX, Xxxx. In: Staudinger Kommentar zum BGB. Bd. 2 (§§ 241-243), Berlin: de Gruyter, 2009, p. 345.
4 A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. Republicação da tese de livre-docência apresentada perante a Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1964.
5 A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro, p. 194s.
6 Como norma de ordem pública, o princípio incide em toda e qualquer relação jurídica, seja de natureza púbica ou privada, civil ou comercial. Nesse sentido: XXXX XXXXXX, Xxxxxx. Contrato de distribuição de petróleo e
entrave ao funcionamento do comércio, a boa-fé objetiva – ao regular o comportamento dos agentes econômicos e tutelar as expectativas – garante previsibilidade e segurança, reduzindo os custos de transação e aumentando a eficiência do sistema.
Não por acaso os comercialistas há muito advertem que um mercado sem respeito à boa-fé e à proteção da confiança tenderia ao colapso, porque dificultaria a fluidez das relações econômicas7. A ciência jurídica ocidental alcançou aqui o point of no return: a boa-fé objetiva é a regra de ouro do comércio jurídico e o desafio agora é corrigir os desvios de sua aplicação na experiência brasileira, conferindo racionalidade e coerência à teoria da confiança, desenvolvida à partir do princípio.
De qualquer forma, o fato de haver equilíbrio (real) de forças entre os contratantes só impede – in abstracto – o surgimento de alguns deveres laterais de conduta, como informação e esclarecimento, não dispensando a exigência de deveres outros como lealdade, cooperação, diligência e sigilo, de acordo com as peculiaridades da situação concreta. Tão pouco obsta a incidência do princípio como cânone interpretativo-integrativo do negócio jurídico e como freio ao exercício de direitos, inclusive da autonomia privada e da liberdade contratual.
Temida por ser um “conceito vago”, a boa-fé objetiva, como ensina com propriedade a doutrina alemã, consiste no mandamento da eticidade no comércio jurídico, desdobrando-se em dois comandos centrais: agir com retidão e ter consideração pelos interesses legítimos da contraparte, ainda quando perseguindo a satisfação de seus próprios interesses – inclusive o fim de lucro, inerente à atividade empresarial8.
Devido à função elementar de tutela da confiança no comércio jurídico, a boa-fé implica, necessariamente, limitação de conduta e equilíbrio de forças na relação jurídica (equilíbrio contratual).
É o chamado núcleo duro do conceito da boa-fé (retidão e consideração pelos interesses da contraparte) que vai guiar a aplicação do princípio em suas três funções básicas: como cânone hermenêutico máximo (art. 000, xxxxx XX0000), como controle do exercício abusivo de posições jurídicas (art. 187 CC2002) e como fonte de deveres ético-jurídicos de conduta (art. 422 CC2002), ditos deveres laterais de conduta ou, hodiernamente, deveres de consideração (Rücksichtspflichten), a englobar uma gama de comandos jurídicos individualizáveis: lealdade, informação, esclarecimento, alerta, conselho, sigilo, proteção stricto sensu, guarda, diligência, cooperação, etc.
Nas relações obrigacionais duradouras, as quais exigem maior contato e colaboração entre as partes, a boa-fé incide de forma plena em todas as suas funções: guiando a interpretação contratual, limitando o exercício de posições
derivados: aspectos materiais e processuais. In: Revista dos Tribunais 100 anos (Obrigações e Contratos). Xxxxxxx Xxxxxxxx e Xxxx Xxxxx Xxxxxx (coord.), v. 6, 2011, 489. Da mesma forma, no direito alemão: XXXXXXX, Xxxxxx. In: Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar. Xxxxxx Xxxxxxx (coord.), 8a. ed. Baden-Baden: Nomos, 2014, § 242, Rn. 5, p. 264.
7 XXXXXXXX, Xxxxx. Op. cit., p. 505. A autora afirma nesse sentido que “a boa-fé, no sistema de direito comercial, é um catalisador da fluência das relações no mercado” (p. 552) e que “o direito atua para disciplinar, para obrigar a adoção de um comportamento que, embora possa não interessar imediatamente ao agente oportunista, permite a preservação do sistema como um todo”. Op. cit., p. 506.
8 XXXXXXXX, Xxxxxx. In: Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch - Schuldrecht. Xxxxx Xxxxxx Xxxxxx et. al. (coord.). v. 2, 7ª ed. München: Beck, 2016, § 241, Rn. 48, p. 34. Permita-se remeter a: XXXXX XXXXX, Xxxxxx. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual – a responsabilidade pré-contratual por ruptura das negociações. Curitiba: Juruá, 2008, p. 103 ss.
jurídicas e criando deveres adicionais para os contratantes, os quais, quando violados, dão ensejo ao dever de indenizar e, em casos excepcionais, à resolução do contrato.
Dessa forma, a eficácia do princípio sobre os contratos comercias decorre lógica e necessariamente de sua função (proteção da confiança no comércio jurídico) e posição central no sistema jurídico e no Código Civil, que, vale lembrar, regula de forma unificada o direito civil e comercial9.
Não paira, portanto, a menor dúvida acerca da eficácia da boa-fé dos arts. 113, 187 e 422 CC2002 nos contratos de concessão comercial de veículos, disciplinados pela Lei 6.729/1979, conhecida como Lei Ferrari, que, enquanto diploma especial e anterior à codificação, nada disciplina sobre a boa-fé e as consequências jurídicas de sua violação. A incidência ainda mais se justifica em razão da natureza e das características da relação contratual existente entre concedente e concessionário, como adiante demonstrado.
2. Os contratos de concessão comercial de veículos
Pelo contrato de concessão comercial, o concessionário se obriga a adquirir os produtos do concedente (em regra: empresa multinacional) para revende-los, com ou sem exclusividade, em determinada área. Na lição sempre precisa de Xxxxx Xxxxxxxx, trata-se de uma modalidade dos contratos de distribuição, os quais visam precipuamente instrumentalizar o escoamento da produção10.
De nada adianta a qualidade e o bom preço se o produto não chega ao consumidor final. Por isso, o escoamento da produção é fator determinante para o sucesso do produto. Muitos fabricantes lançam mão do sistema de venda direta, colocando suas mercadorias diretamente no mercado.
Outra opção é buscar a colaboração de empresas parceiras para vender os produtos ao consumidor final, adotando um sistema de venda indireta. Neste caso, o fabricante vende seus produtos ao distribuidor-intermediário, que os revende aos adquirentes por própria conta e risco, assumindo o risco do negócio.
A venda de veículos automotores terrestres só pode ser feita no Brasil por meio de distribuidor, segundo determinação expressa do art. 1º. da Lei 6.729/1979. Para tanto é necessário que a montadora celebre com seus distribuidores um contrato de concessão comercial no qual constem os principais direitos e obrigações das partes e as condições gerais para o relacionamento entre elas.
A atividade econômica da concessão comercial caracteriza-se pela intermediação de um comerciante (concessionário), que se interpõe na cadeia de distribuição adquirindo produtos para revenda ao destinatário final, por sua própria conta e risco. Trata-se de atividade genuinamente comercial, pois não se está diante de atos isolados de compra e venda, mas de atividade econômica organizada, exercida profissionalmente, em caráter não eventual e com fim de lucro11.
9 Dentre outros: XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. Op. cit., p. 45.
10 XXXXXXXX, Xxxxx. Op. cit., p. 56.
11 PAIS DE VASCONCELOS, Pedro. Direito comercial. v. 1, Coimbra: Almedina, 2011, p. 190. No mesmo sentido: XXXXXXXX, Xxxxx. Op. cit., p. 57.
A doutrina costuma elencar um rol com as principais obrigações previstas na Lei Ferrari. Ao concessionário cabe precipuamente: (a) vender, com exclusividade, os automóveis e componentes fabricados pelo concedente, com o que se lhe veda a comercialização de produtos de marcas concorrentes; (b) prestar assistência técnica; (c) adquirir os veículos na quantidade prevista em sua respectiva quota e (d) organizar-se empresarialmente de forma a atender aos padrões exigidos pela montadora.
A esses acrescem-se diversos deveres previstos nos contratos de concessão como a manutenção obrigatória de estoque de veículos e componentes, realização de investimentos mínimos, participação obrigatória em despesas de publicidade, treinamento de pessoal, obrigação de permitir o exame, auditoria e cópia dos documentos da empresa, além do dever de fornecer à montadora os dados pessoais e minuciosas informações sobre os consumidores e o mercado.
Em contrapartida, o concedente se obriga a: (a) vender ao concessionário os veículos de sua fabricação; (b) permitir o uso gratuito da marca; (c) respeitar a área operacional de cada distribuidor e (d) não vender diretamente seus veículos na zona demarcada no contrato para atuação do concessionário, salvo nas estritas hipóteses de venda direta previstas na lei especial12.
Uma análise mais detalhada do contrato de concessão comercial revela outras características marcantes desse tipo contratual. A rigor, o concessionário não assume apenas uma mera obrigação de revenda dos produtos, mas ainda o dever de desbravar e/ou ampliar o mercado para o fabricante, conquistando público consumidor para seus automóveis. Dessa forma, o contrato de concessão tem a dupla função econômica de escoar a produção e explorar o mercado13.
Aliás, é da essência do negócio que o concedente, para evitar altos custos com a venda direta dos produtos, delegue essa função ao distribuidor, que fica responsável por efetuar vultosos investimentos na construção e/ou expansão dos canais de vendas14.
Por isso, os comercialistas alemães falam que, sob a ótica econômica, o concessionário atua como uma extensão do braço do produtor, embora agindo por sua própria conta e risco, vez que adquire a propriedade dos veículos para revender aos consumidores finais, tirando seu proveito econômico do lucro auferido entre o preço da compra e o preço da revenda (margem de comercialização)15.
Disso se percebe que o distribuidor, longe de ser um terceiro estranho à organização do fabricante ou uma erva daninha na cadeia de distribuição, forma elo importante em sua estrutura empresarial, ainda que formalmente independente16.
12 Dentre outros: XXXXX XXXXXX, Fábio. Novo manual de direito comercial. 31ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 411.
13 GRAF XXX XXXXXXXXXX, Xxxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxx et al. Vertragsrecht und AGB-Klauselwerke. 46ª. ed. München: Beck, 2021, Rn. 1. No mesmo sentido, Xxxxx Xxxxx Xxxxxx afirma que obrigação típica assumida pelo colaborador face ao fornecedor nos contratos de colaboração empresarial, entre os quais inclui o de concessão comercial, é criar ou ampliar o mercado dos produtos ou serviços fabricados ou comercializados pelo fornecedor e que, por isso, o colaborador obriga-se a fazer uma série de investimentos. Op. cit., p. 405.
14 XXXXXXXX, Xxxxx. Op. cit., p. 45. No mesmo sentido: REQUIÃO, Xxxxxx. O contrato de concessão de venda com exclusividade (concessão comercial). Revista de Direito Mercantil 7/17 (1972), p. 211.
15 GRAF XXX XXXXXXXXXX, Xxxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxx et al. Op. cit., Rn. 1 e XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXX, Xxxxx-Xxxx; FLOHR, Xxxxxxx. Handbuch des Vertriebsrechs. 5ª. ed. München: Beck, 2021, Rn. 5.
16 Xxxxxx Xxxxxxx, em pioneiro estudo sobre o tema, afirma existir aqui um sistema de “quase integração”
horizontal, que se distingue da integração vertical entre empresas, típica dos trustes e carteis. Op. cit. P. 214.
A doutrina alemã ressalta a importância da posição jurídica e econômica do concessionário na organização empresarial do concedente: ele é um parceiro contratual que se insere e se incorpora na organização de vendas da montadora, assumindo o dever de fomentar as vendas e defender os interesses patrimoniais do concedente17.
Os contratos de concessão comercial são marcados ainda por uma subordinação empresarial entre as partes18, pois, em regra, o concedente (empresa multinacional) é a parte economicamente mais forte, que domina o processo de fabricação e detém todas as informações sobre o produto, o uso exclusivo da marca e o nome comercial, e, dessa forma, não só impõe as condições da contratação, mas também decide, dirige e supervisiona as operações das empresas concessionárias19.
Em razão disso, atenta doutrina chama atenção para o fato de que a concessão comercial pode consistir em instrumento de dominação econômica do concedente sobre os concessionários20, pois aquele acaba impondo as regras do jogo e interferindo intensamente no exercício da atividade empresarial dos distribuidores.
Estruturalmente, o contrato de concessão comercial consiste em uma relação obrigacional duradoura, mais conhecida no direito norte-americano como long term contracts ou contratos relacionais21, os quais exigem intensa colaboração entre as partes para o alcance do fim último do negócio, isto é, da “causa” ou função econômica do negócio: o sucesso da colocação do produto no mercado e o lucro para ambas as partes.
Por isso, ele sofre a incidência do princípio da boa-fé objetiva de forma mais intensa que as relações obrigacionais instantâneas, o qual guia a interpretação do negócio e a conduta das partes, seja impondo deveres adicionais, seja colocando limites ao exercício de posições jurídicas.
3. A boa-fé e os contratos de concessão comercial
Em geral, toda relação obrigacional duradoura exige um grau mais intenso de colaboração entre as partes do que as relações obrigacionais instantâneas, como um simples contrato de compra e venda de consumo. A intensidade do contato entre as partes – e o aumento do risco de dano daí decorrente – faz surgir entre elas uma relação especial de confiança, da qual brota uma gama de deveres de consideração, decorrentes da boa-fé objetiva, segundo a atemporal lição de Xxxx Xxxxxx00.
A incidência da boa-fé se justifica ainda mais em razão da natureza e das características da relação contratual existente entre concedente e concessionário
17 XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXX, Xxxxx-Xxxx; FLOHR, Xxxxxxx. Op. cit., Rn. 1 e XXXXXXX, Xxxxx-Xxxxxxx.
Handelsrecht. 24ª. ed. München: Beck, 2006, p. 283.
18 XXXXX XXXXXX, Fábio. Op. cit., p. 406. Xxxxx Xxxxxxxx também coloca que o concedente possui, em regra, um controle externo sobre o concessionário e suas atividades, o qual se manifesta na forma de controle contratual. Op. cit., p. 63. Adiante, comentando em pormenor a Xxx Xxxxxxx, a autora reafirma que “a subordinação econômica dos concessionários ao fabricante é a regra, na maioria dos casos”. Op. cit., p. 92.
19 XXXXXXX, Xxxxxx. Op. cit., p. 209.
20 Dentre outros: XXXXXX, Xxxx Xxxxxx xx Xxxxx. Contratos – direito civil e empresarial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 252.
21 XXXXX, Xxxx; XXXXXXXXXXXX, Xxxx. Op. cit., p. 233.
22 Lehrbuch des Schuldrechts. v. 1, 14. ed. München: Beck, 1987, p. 32.
que, como visto, é marcada por profunda assimetria em decorrência da subordinação empresarial e econômica do distribuidor face à montadora.
Esses deveres adicionais de conduta ampliam consideravelmente o rol de deveres e obrigações (programa obrigacional) assumidos expressamente no contrato ou impostos por força da lei ou das convenções de marca e econômica, transformando o contrato de concessão comercial em uma obrigação complexa formada por direitos, poderes, faculdades, ônus, deveres de prestação (principais/acessórios, primários/secundários), além dos deveres de consideração deduzidos do art. 422 CC2002, nos moldes descritos por Clóvis do Couto e Silva23.
A doutrina alemã salienta que o dever de lealdade (Treuepflicht) é um dos deveres ético-jurídicos mais importantes nos contratos de concessão comercial. Ele exige que as partes colaborem reciprocamente durante a execução do contrato, buscando não apenas a satisfação de seus interesses pessoais, mas levando em consideração ainda os interesses legítimos da contraparte, para quem o contrato também precisa fazer sentido enquanto operação econômica.
Para tanto, diz Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, ele obriga ambos os contratantes a, na pendência contratual, absterem-se de comportamentos que possam frustrar o fim último (função econômica) do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações24. A jurisprudência alemã deduz do dever de lealdade uma série de comandos tanto para a montadora, quanto para o distribuidor, de acordo com as circunstâncias do caso concreto.
No que aqui interessa, vale mencionar que ele impõe, de um lado, ao concessionário, o dever de defender os interesses patrimoniais do concedente, mas, de outro, à montadora, o dever de ter consideração pelos interesses legítimos do concessionário durante suas decisões empresariais, principalmente as que impliquem mudanças substanciais na produção e nas vendas.
Os renomados professores Xxxxxxxxx Xxxx xxx Xxxxxxxxxx e Xxxxxx Xxxxxxx explicam que o fabricante, ao optar pela técnica de venda indireta de seus produtos, obriga-se a agir levando em conta os interesses econômicos e mercadológicos legítimos dos distribuidores.
Segundo eles, a relação obrigacional de longa duração, estruturada na forma de um contrato-quadro entre as partes, impõe, de um lado, ao concessionário o dever de defesa permanente dos interesses patrimoniais do fabricante, mas, de outro, exige do fabricante – como reverso da medalha – um dever especial de lealdade e consideração pelos interesses dos distribuidores25.
Como colocam Martinek/Semler/Flohr, isso significa que, no caso concreto, o dever de lealdade pode limitar parcialmente a liberdade de organização empresarial da montadora, impedindo, v.g., que ela proceda a bel prazer em suas decisões sobre a produção e comercialização dos produtos ou contrarie, sem motivo
23 Op. cit., x. 00 xx.
00 Xx xxx xx xx xxxxxxx xxxxx. Xxxxxxx: Almedina, 2001, p. 606.
25 No original: „Es handelt sich hierbei stets um ein Dauerschuldverhältnis, das dem Vertragshändler die Verpflichtung zur selbständigen Wahrnehmung fremder Vermögensinteressen, nämlich: der Interessen des Herstellers/Lieferanten auferlegt, mit denen ihrerseits spiegelbildlich die besondere Treuepflicht und Rücksichtnahme des Herstellers korrespondiert. Dieses Dauerschuldverhältnis ist als Rahmenvertrag ausgestaltet, das dadurch geprägt ist, dass der Vertragshändler beim Hersteller Waren einkauft, um diese sodann an seine Kunden weiterzuverkaufen. Diese Kaufverträge sind gegenüber dem Vertragshändlervertrag rechtlich selbständig.”. Op. cit., Rn. 1.
justificável, os interesses do distribuidor, que também precisam ser levados em conta nas tomadas de decisões26.
Só assim, dizem, leva-se adequadamente em conta que a operação do concessionário está em grande medida integrada na organização de vendas do fabricante e que ele se dedica – se não exclusiva, pelo menos preponderantemente
– à venda dos produtos da montadora à assistência dos clientes e ao cuidado da marca.
A jurisprudência alemã não destoa desse entendimento, como mostra julgado da Corte infraconstitucional – Bundesgerichtshof (BGH) – em lide envolvendo venda direta em contrato de distribuição. No acórdão, o Tribunal afirmou que “o contrato entre o fabricante e os distribuidores baseia-se em uma estreita colaboração econômica e, por isso, submete-se, em medida mais elevada que outros contratos, ao dever de lealdade recíproco”27.
A circunstância de que o distribuidor subordina sua atividade e o capital investido aos interesses do fabricante, obriga este a ter em justa conta os interesses merecedores de tutela dos concessionários e a não contrariar tais interesses sem justo motivo. O grau da devida consideração pelos interesses dos distribuidores só pode, por óbvio, ser apurado no caso concreto, de acordo com a configuração e as peculiaridades da relação contratual.
4. O caso Ford
Um exemplo ilustrativo de violação dos deveres de consideração tem-se no caso da montadora norte-americana Ford, que em janeiro desse ano decidiu abruptamente, sem qualquer aviso prévio a seus concessionários, fechar as fábricas de veículos no país, obrigando seus distribuidores a revender carros de luxo importados provenientes de países como Argentina, Uruguai, USA, México e China.
Com efeito, a decisão de encerrar a produção de veículos no Brasil foi tomada sem qualquer consideração pelos interesses patrimoniais dos concessionários, que, em uma canetada só, foram transformados de revendedores de carros nacionais em revendedores de carros de luxo importados, com o que a
26 Op. cit., Rn. 16.
27 Diz a Corte: “O contrato entre fabricante e os distribuidores baseia-se em uma estreita colaboração econômica e, por isso, submete-se, em medida mais elevada que outros contratos, ao dever de lealdade recíproco. A circunstância de que o distribuidor subordina, em grande medida, aos interesses do fabricante não apenas sua atividade, mas também sua operação e o capital nela investido, obriga esse [fabricante] a ter em justa conta os interesses dignos de proteção dos distribuidores e a não contrariar, sem motivo fundado, os interesses desses... O grau da devida consideração pelos interesses dos distribuidores depende da configuração da relação contratual. Se ao comerciante é assegurado um direito exclusivo de venda ou uma posição semelhante, as intervenções na área de venda protegida – como, por exemplo, pela colocação de outros distribuidores ou pela redução da área de venda – só são admissíveis por motivos graves e com a devida atenção das consequências desvantajosas.” No original: „Der Vertrag zwischen Hersteller und Vertragshändler beruht auf einer engen wirtschaftlichen Zusammenarbeit und unterliegt deshalb in höherem Maße als andere Verträge der gegenseitigen Treuepflicht. Der Umstand, dass der Vertragshändler nicht nur seine Tätigkeit, sondern auch seinen Geschäftsbetrieb und das in ihm investierte Kapital weitgehend den Interessen des Herstellers unterordnet, verpflichtet diesen, den schutzwürdigen Belangen des Vertragshändlers angemessen Rechnung zu tragen und dessen Interessen nicht ohne begründeten Anlass zuwiderzuhandeln... Der Grad der gebotenen Rücksichtnahme auf die Interessen des Vertragshändlers hängt von der Ausgestaltung des Vertragshändlerverhältnisses ab. Ist dem Händler ein Alleinvertriebsrecht oder eine dem nahekommende Position eingeräumt, sind Eingriffe in das geschützte Absatzgebiet – wie etwa die Einsetzung weiter Vertragshändler oder Verkleinerung des Vertriebsgebietes – nur aus schwerwiegende Gründen und bei angemessener Berücksichtigung der nachteiligen Folgen zulässig.“ BGH VIII ZR 48/92, julgado em 10/02/1993, p. 12.
montadora subtraiu a base econômica dos contratos de concessão comercial, tornando o negócio economicamente insustentável, em clara violação contratual.
A rigor, a decisão unilateral da Ford de encerrar as unidades de produção no país vai muito além de uma simples alteração no portfólio dos produtos. Sob a ótica da operação econômica da concessão comercial, a medida representa o esfacelamento de toda a rede de distribuição, construída durante décadas com o trabalho e o investimento de centenas de concessionários.
Bem analisados os fatos, com a “reorganização”, a gigante norte-americana alterou não só a categoria do produto comercializado, passando de carro popular para carro de luxo, mas também todo o modelo de negócio até então mantido com os distribuidores, que passou de revenda de carro nacional para revenda de carro importado, alterando, consequentemente, o público consumidor e a faixa de mercado de atuação dos distribuidores.
Com isso, a empresa provocou a quebra da base dos contratos de concessão comercial, até então alicerçada na venda massiva de veículos nacionais, desmantelando quase toda a rede de distribuição, incapaz de sobreviver exclusivamente da revenda de automóveis trazidos do exterior.
Sob o aspecto puramente econômico, era a venda da produção nacional, principalmente de carros populares acessíveis à classe média em geral, que gerava rentabilidade e garantia a sustentabilidade do negócio, até porque os veículos importados sempre foram um plus ao portfólio da empresa, pois voltados a mercado seleto e restrito.
Interessante notar que não foi a pandemia de Covid-19 que provocou a ruptura da base econômica dos contratos de concessão comercial. No comunicado à imprensa, em 11/01/2021, a montadora afirmou textualmente que a decisão vinha sendo maturada desde 2013, em decorrência de perdas de mercado.
Ou seja, a decisão foi planejada bem antes de estourar a pandemia, o que torna oportunista – e, portanto, vedada pelo art. 187 CC2002 – qualquer tentativa de usar a crise de saúde pública como justificativa para a decisão unilateral de alterar radicalmente o modelo de negócio durante a vigência de centenas de contratos de concessão.
Nada obstante, durante todo esse tempo, mesmo passando por natural processo de reorganização global, a empresa não informou, nem esclareceu adequadamente seus distribuidores acerca da dimensão da reestruturação planejada pela matriz, omitindo que isso envolvia o encerramento definitivo da produção nacional, mesmo tendo ciência dos gravíssimos prejuízos que isso causaria aos distribuidores.
Na verdade, a empresa não só omitiu, mas desmentiu que tinha planos de acabar com a produção nacional de veículos. Os jornais documentam que em 2019, após o fechamento da lendária fábrica de caminhões de São Bernardo do Campo (SP), a Ford negou veementemente rumores de que deixaria o país, fechando suas unidades de produção.
Evidentemente, nenhuma empresa é obrigada a permanecer no mercado. Isso faz parte da chamada liberdade empresarial (unternehmerische Freiheit), desdobramento da livre iniciativa, fundamento do Estado (art. 1º, inc. 4) e da
ordem econômica (art. 170, caput), além de princípio consagrado no art. 179, parágrafo único da Constituição Federal.
Pela mesma razão, toda empresa pode se reorganizar, enxugar ou ampliar sua rede de distribuição ou alterar o portfólio de seus produtos a novas exigências mercadológicas e/ou regulatórias. Porém, o exercício desse direito não é ilimitado e despido de consequências jurídicas das mais diversas ordens, principalmente quando dele decorrem efeitos e danos catastróficos sobre os contratos em vigor.
Via de regra, diante de profundas dificuldades financeiras inviabilizadoras da continuidade da atividade empresarial, a conduta esperada é que o fabricante comunique tal fato, com adequada antecedência, à rede de distribuidores e rescinda todos ou parte dos contratos de concessão, de acordo com o grau de reorganização a ser efetivado.
Não foi essa, porém, a conduta adotada pela gigante norte-americana que, ao invés de rescindir os contratos de concessão com todos ou parte dos concessionários, indenizando-os nos termos da lei, optou por implantar as reformas (leia-se: fechamento das fábricas no Brasil) mantendo os contratos em vigor. E, em assim procedendo, sua decisão de acabar com a produção nacional de veículos só pode ser entendida como uma alteração unilateral, desleal e abusiva das bases do negócio, o que constitui justa causa para a resolução dos contratos pelos distribuidores prejudicados.
De fato, quando uma decisão de reorganização empresarial altera unilateral e radicalmente o modelo de negócio até então vigente, provocando a perda de mais de 70% da rentabilidade de toda a rede de distribuição, essa decisão mostra- se, à toda evidência, desleal e abusiva, pois não leva em conta os interesses patrimoniais dos distribuidores e excede manifestamente os limites impostos pelo fim econômico do poder de direção da rede.
Afinal, não se trata de uma decisão a favor, mas contra a eficiência global do sistema de distribuição e contra a viabilidade da atividade econômica das empresas integrantes da rede a fim de atender interesses egoísticos da montadora que, sob o pálido argumento da autonomia privada, não pode se esquivar de ressarcir todos os danos causados a seus concessionários, como exige o princípio da reparação integral (art. 944 CC2002).
À luz da teoria econômica do direito, a legitimidade do exercício de um direito deve ser apurada, inicialmente, com base no critério da racionalidade (eficiência) econômica, de modo que legítimo seria, em princípio, o exercício eficiente do direito28. Transplantando a ideia para o campo da concessão comercial, lícitos seriam os atos praticados pelo fornecedor que – sem prejudicar o mercado – geram aumento do escoamento da produção, ainda que em prejuízo de um distribuidor individual.
Isso significa dizer que o fim econômico do direito da montadora de reformular seu modelo de negócio é otimizar a eficiência global da rede de distribuição. Porém, a decisão da Ford – de transformar os concessionários de vendedores de veículos nacionais em revendedores de carros de luxo importados
– não trouxe ganho à rede de distribuição, incapaz de sobreviver com a venda exclusiva desse tipo de produto, tanto que a montadora tem readaptado e rescindindo vários contratos de concessão de janeiro até agora.
28 XXXXXXXX, Xxxxx. Op. cit., p. 430.
Mas o direito não se guia somente por critérios meramente econômicos e utilitaristas, e, ao lado da eficiência econômica, há de se analisar ainda a eficiência jurídica. Por isso, o aumento da eficiência econômica global do sistema de distribuição é insuficiente, por si só, para legitimar a decisão mercadológica do fabricante, sendo necessário ainda levar em conta as perdas experimentadas pelos distribuidores individualmente, afinal estes fizeram investimentos patrimoniais em benefício do negócio e precisam ter suas expectativas de retorno e lucro tuteladas.
Logo, mesmo que a reformulação da Ford tivesse gerado o aumento da eficiência geral da rede de distribuição, o que se admite ad argumentandum, sua decisão ainda restaria maculada pela abusividade face às robustas perdas provocadas à maioria dos distribuidores.
Ora, é evidente que o direito não pode permitir que um fabricante, abusando de sua autonomia privada e do poder de direção da rede, altere radicalmente – em seu benefício exclusivo – o modelo de negócio, pilar de sustentação dos contratos de concessão comercial, sem indenizar todos os prejuízos causados aos contratantes, principalmente quando essa decisão mostrar-se contraproducente para a maior parte da rede de distribuidores.
Além disso, ao desmentir publicamente, em diversas oportunidades, que planejava deixar o país, a Ford despertou nos concessionários a crença de que, embora passando por uma fase de reestruturação global para adaptação às novas condições de mercado, a empresa não deixaria de produzir carros no Brasil, cuja venda garantia a sustentabilidade da rede de distribuição, criando e/ou fortalecendo na contraparte o que a doutrina obrigacional chama de suporte fático da confiança ou Vertrauenstatbestand.
Note-se que não se trata aqui de uma confiança meramente subjetiva, mas objetiva, calcada em dados objetivos: declarações públicas do contratante. Ora, qualquer contratante reto e honesto, colocado na mesma situação, confiaria – e poderia confiar – nas palavras do parceiro comercial. Se isso vale para um contratante comum, por maior razão vale para um parceiro de longa data, ainda mais em se tratando de empresa multinacional com mais de um século de atividade no país e que já assistiu aos principais acontecimentos históricos, políticos e sociais, e resistiu às piores crises econômicas da história brasileira.
Dessa forma, os concessionários da Ford tinham razões objetivas para confiar na continuidade do modelo de negócio (revenda de carros nacionais), ainda quando mudanças no portfólio fossem esperadas e desejadas pela própria rede a fim de aumentar a competitividade da marca no mercado e, consequentemente, a rentabilidade do negócio.
A confiança na continuidade da produção nacional e na permanência do modelo de negócio vigente era reforçada pela conduta da empresa, que continuava a expandir sua rede de distribuição com a celebração de novas concessões e a exigir massivos investimentos dos concessionários no negócio por meio, v.g., do aumento crescente das metas de vendas, de exigências de investimentos, reforma das lojas para adequação ao novo padrão arquitetônico global da marca, etc.
Disso resulta, inequivocamente, que a empresa norte-americana despertou e/ou fortaleceu nos distribuidores a confiança legítima na continuidade da produção nacional e do modelo de negócio vigente tanto por meio de declarações, quanto por uma série de condutas que objetivamente – sob a ótica de um
contratante reto e honesto – indicavam sua intenção de ampliar os negócios e tornar seus produtos mais competitivos, levando os concessionários a realizar massivos investimentos.
Nada obstante, depois de induzir os distribuidores a fazer investimentos patrimoniais na rede, a Ford simplesmente fechou a principal planta de fabricação do país (Camaçari), em um comportamento, no mínimo, desleal e contraditório, forçando, na prática, os concessionários a comercializar automóveis importados de alto padrão, sob pena de encerrar suas atividades.
Conclui-se, portanto, que a Ford – ao alterar radicalmente seu modelo de negócio, ao arrepio dos interesses legítimos dos concessionários na continuidade da produção nacional – destruiu o pilar de sustentação dos contratos de concessão e violou vários deveres anexos ao contrato, incorrendo ainda em exercício disfuncional do poder de direção da rede.
Atente-se que a quebra da base do negócio provocada pelo próprio contratante distingue-se totalmente daquela provocada por eventos extraordinários e imprevisíveis que dá ensejo à revisão contratual, pois no primeiro caso – ao contrário do segundo – a perturbação é imputável à esfera de responsabilidade da parte, configurando descumprimento contratual, como ensina Xxxx Xxxxxx, quem melhor tratou do tema no direito privado ocidental29.
Aqui, vale a regra geral de que o contratante responde por toda perturbação da prestação e do contrato a si imputável. Assim, da mesma forma que a parte que dá causa à impossibilidade da prestação responde pela resolução do contrato mais perdas e danos, a parte que destrói a base econômica de sustentação do negócio também responde.
5. Conclusão
Do exposto, conclui-se que, embora os contratos comerciais guardem uma estrutura, fim e lógica própria, posto celebrados por contratantes iguais, entre os quais inexiste – em tese – desníveis estruturais, a eles se aplica toda a teoria obrigacional geral, positivada em diversos princípios e institutos do Código Civil.
Como coloca Xxxxx-Xxxxxxx Xxxxxxx, em seu emblemático manual de direito comercial (Handelsrecht), o direito comercial é parte integrante do direito privado. Enquanto direito privado especial, suas normas gozam de aplicação preferencial face às normas do direito civil geral, que têm aplicação subsidiária. Isso, porém, adverte o mestre, não conduz à conclusão de que as normas de direito comercial devam ser aplicadas à revelia do Código Civil30.
Se isso vale para ordenamentos jurídicos, como o alemão, que conservam um código comercial, o Handelsgesetzbuch (HGB), por maior razão vale para o ordenamento pátrio, onde desde 2002 o legislador unificou os dois diplomas legais e o Código Civil passou a absorver matérias nucleares de direito comercial no Livro 2, que trata do direito da empresa.
Isso se aplica, principalmente, aos contratos comerciais, que se alimentam necessariamente da teoria obrigacional. Por isso, eles sofrem a incidência de regras e princípios estruturantes da codificação, como autonomia privada,
29 Op. cit., p. 365.
30 Op. cit. p. 4 ss.
liberdade contratual e boa-fé objetiva, cuja finalidade precípua é tutelar a confiança e a conduta reta e proba no comércio jurídico, reduzindo os custos de transação e fomentando a eficiência do sistema.
Não por acaso o renomado comercialista alemão Xxxxx Xxxx, em comentário ao Handelsgesetzbuch organizado com Xxxxx Xxxxxxxx, afirma que a boa-fé objetiva reina tanto no tráfego jurídico geral, como no tráfego jurídico-comercial, onde a proteção da confiança tem um papel maior ainda que de costume31. Urge, portanto, entre nós, depurar a boa-fé objetiva de tudo o que não lhe pertence, através do estudo aprofundado da teoria da confiança a fim de afastar a figura dos discursos retóricos que permitiram sua aplicação desenfreada e acabaram por banaliza-la.
Os contratos comerciais, tal como os civis, sofrem necessariamente a eficácia da boa-fé, seja como parâmetro interpretativo, como limite ao exercício de posições jurídicas e como fonte de deveres adicionais de conduta. E, ao contrário do que se ouve comumente, sua incidência nos contratos comerciais é ainda maior, pois estes exigem, via de regra, estreita colaboração entre as partes e baseiam-se em relações duradouras.
As relações obrigacionais de longa duração, sobretudo aquelas nas quais há acentuado desnível estrutural entre os contratantes, como os contratos de concessão comercial, nos quais a multinacional, fabricante dos veículos, não só impõe as condições da contratação, mas também dirige, supervisiona e controla as operações da rede de concessionários, são campo fértil para a aplicação do princípio.
O exemplo da Ford mostra que o poder de direção da rede de distribuição, embora calcado na liberdade empresarial e na autonomia privada, não está imune ao controle de legitimidade, seja pelo abuso do direito ou por meio do dever de lealdade ao contrato, imposto pela boa-fé objetiva e pela necessidade de proteção da retidão e da confiança no comércio jurídico.
O dever de lealdade exige que as partes colaborem durante o desenrolar do contrato, buscando não apenas a satisfação de seus próprios e legítimos interesses, mas levando em consideração ainda os interesses legítimos da contraparte, para quem o contrato precisa fazer sentido enquanto operação econômica. Ele obriga concedente e concessionário a, dentro dos padrões da razoabilidade, absterem-se de tudo o que possa frustrar o fim último – i.e., a função ou “causa” econômica – do contrato ou perturbar sua execução.
Na prática, esse dever impõe, com frequência, ao concessionário o dever de defender os interesses patrimoniais do concedente e à montadora o dever de ter consideração pelos interesses do distribuidor durante suas decisões empresariais, principalmente as que envolvam mudanças substanciais na produção e nas vendas.
Face ao exercício abusivo pela Ford do poder de reorientação do negócio de concessão comercial por contrariedade ao fim econômico e à boa-fé, bem como em razão da violação culposa dos deveres anexos de informação e lealdade, os concessionários têm justo motivo para resolver o contrato e pleitear o
31 Dizem os autores: “Xxxx und Glauben beherrschen den HdlVerkhr ebenso wie den allgemeinen Rechtsverkehr.... Im HdlVerkehr spielt der Vertrauensschutz eine noch größere Rolle als sonst.“. Handelsgesetzbuch. 40a ed. München: Beck, 2021, p. 1523.
ressarcimento de todos os danos decorrentes da conduta, nos termos dos arts. 187, 422 c/c art. 389 do Código Civil.
Como salientado pelo Superior Tribunal de Justiça, a Lei Ferrari, em seu art. 24, prevê uma indenização mínima a ser paga ao distribuidor prejudicado32, não afastando a incidência das regras gerais do direito dos danos do Código Civil. Afinal, também na área dos contratos de concessão comercial vale a regra geral de que todo dano comprovado deve ser ressarcido.
32 STJ, REsp. 966.163/RS, Rel. Min. Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, x. 26/10/2010.