SUMÁRIO:
Proc. n.º 60/2017 TAC VILA NOVA DE GAIA
Requerente: Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx: Unipessoal, Lda.
SUMÁRIO:
I - Deve ser qualificado como empreitada de consumo o contrato celebrado por quem destina a obra encomendada a um uso não profissional e alguém que exerce, com carácter profissional, uma determinada actividade económica, a qual abrange a realização da obra em causa, mediante remuneração;
II – Ao contrato de empreitada de consumo aplica-se, não o regime geral do CC, mas o regime especial da responsabilidade pelos defeitos das obras nos contratos de empreitadas de consumo, cuja disciplina se encontra plasmada no DL nº 67/2003, de 8 de Abril, com as alterações introduzidas pelo DL nº 84/2008;
III – Estipula o n.º 3 daquele mesmo artigo 2º do DL 67/2003 que, “Não se considera existir falta de conformidade, na acepção do presente artigo, se, no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor”.
1. Relatório
1.1. O Requerente, pretendendo a resolução do contrato de empreitada celebrado com a Requerida e a subsequente condenação desta na obrigação de restituir a quantia de
€600,00, vem alegar, em sede de petição inicial que, aquela cumpriu de forma defeituosa o contrato de prestação de serviço celebrado, mormente não eliminando o vício de que caldeira padecia, pois que a peça que a Requerida substituiu não seria a causadora da anomalia, tendo o Requerente contratado com entidade terceira para levar a cabo a efectiva reparação do equipamento.
1.2. Xxxxxx, a Requerida não apresentou contestação.
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A audiência realizou-se na presença do Requerente e da Requerida.
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2. Objecto de Litígio
A presente querela, qualificando-se, perante o exposto pedido, como uma acção declarativa de condenação, cinge-se na questão de saber se existe ou não justa causa para resolução do contrato de empreitada de consumo celebrado entre Requerente e Requerida e se, havendo, deve a Requerida devolver o montante de €600,00, nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do n.º 3 do artigo 10º do C.P.C. em conjugação com o n.º 1 do artigo 342º do C.C.
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3. Fundamentação
3.1. Dos Factos
3.1.1. Dos Factos Provados
Resultam provados os seguintes factos, com interesse para a demanda arbitral:
1. A Requerida tem por escopo social assistência técnica de equipamento de climatização, sua manutenção e outros serviços relacionados, comércio, importação e instalação de produtos de climatização;
2. A Requerente adquiriu para sua habitação, em 22/12/20016, imóvel sito em São Félix da Marinha;
3. A Requerente contratou a Requerida para assistência à caldeira marca BAXI Luna 240 i, instalada na morada indicada no ponto 2 dos factos provados, prévia a celebração de contrato para fornecimento de gás natural;
4. A Requerida informou a Requerente de que era necessário substituir a placa do circuito da caldeira, pois a mesma se encontrava calcinada, o que levava à não ignição da Caldeira, apresentando orçamento no montante de €280,23;
5. A Requerente aceitou o orçamento e a substituição da caldeira pela Requerida;
6. À intervenção identificada no ponto 5 a Requerida atribuiu o número 2798, com a referência “a caldeira não faz ignição. Placa electrónica avariada foi necessário substituir. Não foi possível testar a caldeira a 100% porque não havia gás”.
7. A Requerida levou a cabo o serviço identificado no ponto 4, a 12/01/2017;
8. A Requerente foi informada pelo técnico da Requerida que a totalidade da operacionalidade da caldeira não podia ser testada por não haver fornecimento de gás no local de consumo;
9. A 19/01/2017 a equipa fiscalizadora reprovou a emissão de certificação de gás, por o valor do ensaio de monóxido de carbono ter registado 250 ppm (“excesso de monóxido carbono”;
10. A 24/01/2017, a Requerente procedeu à substituição da caldeira por uma Caldeira marca Vulcano, modelo XWB 28 – 3C A23 de condensação, com o preço de
€1600,00;
11. A 24/01/2017, a entidade inspectora emitiu o certificado de inspecção para instalação de gás com o n.º 576/2017, para o local de consumo aqui em crise;
12. A Requerente pagou o preço de €50,00 por esta inspecção identificada no ponto supra.
3.1.2. Dos Factos não Provados
Resultam não provados os seguintes factos, com interesse para a demanda arbitral:
1. O problema de ignição da caldeira BAXI LUNA 240i não era causado pela placa electrica calcinada;
2. A Caldeira BAXI LUNA 240 i não funcionou após a intervenção da Requerida;
3. As caldeiras BAXI LUNA 240 i e VULCANO ZWB 28 3C apresentam as mesmas características;
4. O excesso de monóxido de carbono no local de consumo deve-se a avaria da
Caldeira.
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3.2. Motivação
A fixação da matéria dada como provada resultou da audição do Requerente e da legal Representante da Requerida, a par da testemunha apresentada por esta última, ou seja, o técnico que se terá deslocado ao local de consumo em crise, além da demais prova documental que a seguir se fará referência.
O facto 1 dá-se por provado pela junção aos autos de print do site das publicações on- line dos actos societários, referente à pessoa colectiva aqui Requerida, junto a fls. 31 dos presentes autos.
Na realidade, os factos provados 2, 7 e 8 resultam da expressa confissão dos mesmos pela Requerente quer em sede de Reclamação Inicial, quer em sede de Declarações de parte.
De igual modo o factos, 3 a 6 têm de se dar por provados por acordo entre as partes, já que em sede de declarações de ambas as partes (Requerente e Requerida), não foi colocado em crise o tipo de contrato que unia as partes, aceitando até a Requerida o alegado pela Requerente em sede de Reclamação inicial, bem assim a junção aos autos da factura resultando provado o tipo de serviços prestados, como doc. n.º 2 da reclamação inicial, a fls. 6 dos autos, e o relatório de intervenção junta pela Requerida em sede de audiência de Arbitragem a fls, 49 dos presentes autos.
O facto 9 da matéria dada por provada, resulta da junção aos autos do relatório de inspecção e respectiva factura emitida pela entidade fiscalizadora, a fls. 4 e 5 dos presentes autos; e os factos 10 a 12 da junção do respectivo auto de certificação de instalação de gás a fls. 11 dos autos, factura emitida pela entidade inspectora a fls 12 e factura de aquisição da caldeira VULCANO a fls. 13 dos autos.’
Relativamente à fixação da matéria dada como não provada, resultou da ausência de mobilização probatória credível, que permitisse ao Tribunal aferir da veracidade dos factos, após a análise dos documentos juntos, bem assim perante ausência de Testemunhas ou outra prova cabal dos mesmos.
A ponderação da matéria moldou-se também pela junção aos autos pela Requerente, a fls 7 a 10, da correspondência electrónica mantida não só entre Requerente e Requerida mas também entre Requerente e Administração de Condomínio do prédio em que se insere o local de consumo em crise. Na realidade e como esta última correspondência deixa notar, a situação descrita pela Requerente, ou seja, a reprovação em inspecção para instalação de gás, não será caso isolado naquele prédio, sendo que outras fracções acusando monóxido de carbono acima dos valores actualmente permitidos, optaram por fazer maiores aberturas para permitir melhor extracção/ circulação de ar.
Como é comummente sabido, não carecendo sequer de prova e de alegação, mas que resultou esclarecido para o Tribunal também com a inquirição da testemunha da Requerida, a acumulação de monóxido de carbono terá como vectores não só o próprio equipamento (e tipologia: se se trata de caldeira de condensação ou caldeira atmosférica; capacidade: 24, 28, 32 Kw), como da extracção, ou como o próprio Administrador de Condomínio acaba por esclarecer no seu email “a solução passa por criar mais ventilação natural na zona do esquentador, com colocação de grelhas por ex ou com a substituição da caldeira por outra
estanque que faça a exaustão directamente para a fachada, dado não ser possível aumentar o diâmetro do tubo comum” – a fls. 9 dos autos.
Apesar da requerente nas suas declarações corroborar na íntegra os factos que veio de alegar na sua reclamação inicial, a documentação junta aos autos por ambas as partes, bem assim a inquirição da testemunha arrolada pela Requerida, ou seja o técnico que terá procedido à intervenção/ substituição da placa eléctrica, na caldeira da Requerente, e ainda as próprias declaração da Requerente que expressamente afirmou haver sido advertida pela Testemunha que não havendo gás não seria possível fazer qualquer outra análise mais detalhada do equipamento, e sendo certo que em momento algum há referência de que a caldeira BAXI não funcionava em momento posterior à intervenção na placa electrónica, não pode o Tribunal afirmar que a intervenção pela Requerida o foi feito de forma deficiente. Podendo isso sim, e porque o tribunal tem conhecimento que a caldeira substituída o é uma caldeira atmosférica e a caldeira substituta o é de condensação, afirmar que as condições do local de consumo, face às actuais exigências legislativas, não é já adequada para a caldeira que se encontrava instalada na habitação, mas que em muito extravasa a intervenção da Requerida, que só poderia ter conhecimento do mesmo com fornecimento de gás (pois o teste do monóxido de carbono assim o exige), tal qual foi informado à Requerente e que a mesma em sede de declarações de parte o confessou.
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3.3. Do Direito
A relação contratual controvertida mais não é do que uma empreitada de consumo. Ou seja, “deve ser qualificada como empreitada de consumo o contrato celebrado por quem destina a obra encomendada a um uso não profissional e alguém que exerce, com carácter profissional, uma determinada actividade económica, a qual abrange a realização da obra em causa, mediante remuneração” – Ac. do TRL de 09/02/2010.
Assim, tendo o consumidor contratado os serviços profissionais de outra pessoa (singular ou colectiva) para realização de serviço de reparação mecânica (mais especificamente reparação de caldeira), este obriga-se em relação àquele primeiro à realização daquela obra, mediante o pagamento de um preço.
Ora, ao contrato de empreitada de consumo aplica-se, não o regime geral do CC, mas o regime especial da responsabilidade pelos defeitos das obras nos contratos de
empreitadas de consumo, cuja disciplina se encontra plasmada no DL nº 67/2003, de 8 de Abril, com as alterações introduzidas pelo DL nº 84/2008, de 21 de Maio.
Assim, grosso modo, se poderá afirmar que mediante o pagamento de um preço, obrigação do consumidor, o prestador de serviço contra obriga-se a efectuar o serviço de assistência técnica a caldeira, solicitado no bem do consumidor.
Todo o negócio jurídico deve ser pontualmente cumprido e no cumprimento das obrigações como no exercício do direito correspondente devem as partes procederem de boa fé (arts.406º, nº1 e 762º, nº 2 do CC).
O principal direito do dono da obra traduz-se no direito de exigir do empreiteiro a obtenção do resultado a que este se obrigou e como contrapolo a sua obrigação principal consubstanciada no pagamento do preço acordado, já que a retribuição é um elemento essencial do contrato.
Diz o art.4º nº1 do DL nº 67/2003 – “Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato”.
Acresce o direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos, nos termos do art.12º, nº1 da Lei nº24/96 de 31/7.
Perante o defeito da coisa (conceito funcional), o consumidor tem o direito à reparação, à substituição, à redução do preço, à resolução, e à indemnização.
Muito embora a obrigação de conformidade com o contrato decorra já dos princípios gerais e do regime legal do contrato de compra e venda e de empreitada no Código Civil (arts.406º, 763º, 1208º) e da própria Lei de Defesa do Consumidor (art.4º), ela é expressamente imposta no art. 2º, nº1 do DL nº 67/2003, pois “o vendedor (leia-se empreiteiro) tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda (empreitada)”.
Por sua vez, o nº 2 do art. 2º do DL 67/2003 consagra determinados “factos-índices” de não conformidade, de tal forma que se comprovados presume-se a desconformidade (presunção juris tantum).
As faltas de conformidade devem existir no momento da entrega do bem ao consumidor, presumindo-se existentes já nessa data caso se manifestem num prazo de dois
ou cinco anos, a contar da entrega de coisa móvel ou imóvel, respectivamente (art. 3º nºs 1 e 2 do DL nº 67/2003).
Verifica-se identidade na noção de defeito no regime da compra e venda e na empreitada, podendo decompor-se em “deformidade” e “vício“.
O vício apresenta-se como “deficiência ou alteração na forma, na estrutura da composição da coisa que resulta da sua concepção, execução, produção, fabrico”, e a deformidade como desvio relativamente ao acordo das partes”.
No fundo, em qualquer caso, o defeito resulta de dois aspectos: desvio relativamente ao acordo das partes, nomeadamente quanto a qualidades especiais da coisa; vício que ponha em causa (ainda que parcialmente) a finalidade da coisa (P. XXXXXXXX, “Compra e venda e empreitada”, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, vol.III, pág.246).
Noutra perspectiva, adopta-se um “conceito funcional de defeito” em que se “privilegia a idoneidade do bem para a função a que se destina”, a partir de uma concepção subjectiva de defeito (as partes determinaram no contrato as características fundamentais da coisa e o fim) ou de uma concepção objectiva (função normal das coisas da mesma categoria) - cf. XXXXXX XX XXXXX, Xxxxxx e venda de Coisas Defeituosas, 4ª ed., pág.42 e segs..
Segundo a “teoria da norma” e porque facto constitutivo do direito, compete ao autor o ónus de alegar e provar o defeito, ou seja, a falta de conformidade (art.342º, nº 1 do CC), tanto para o direito civil comum, como para a legislação específica da tutela do consumidor (cf., por ex., XXXXX XXXXXXXX, Cumprimento Defeituoso, pág.273 e segs.; Ac STJ de 21/5/2002, C.J. ano X, tomo II, pág.85, Ac STJ de 11/10/2007, de 15/2/2005, disponíveis em www xxxx.xx.).
A este propósito, refere XXXXXX XX XXXXX que “a prova da falta de conformidade, vale dizer, a não correspondência do bem recebido ao bem convencionado, cabe ao comprador [consumidor], com a ajuda, na falta de cláusulas específicas, das presunções do nº2 do art.2º, demonstrando as qualidades ou características que as ditaram para se considerarem devidas” (Venda de Bens de Xxxxxxx, 3ª ed., pág.74).
Ora, e no que ao caso importa, para que se possa, então afirmar o cumprimento integral por parte do prestador de serviço da sua obrigação contratual, há então que lançar mão das presunções legais plasmadas na diversas alíneas do n.º 2 do artigo 2º do DL n,º 67/2003 de 08/04.
Nos termos da al. d) daquele n.º 2, há, pois de haver coincidência entre a obra levada a cabo por aquele empreiteiro/ Requerido e a qual nos transporta para a regra da coincidência, ou seja, para se afirmar conforme ao contrato, a obra levada a cabo no bem entregue pelo consumidor apresentará as qualidade e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo – trata-se do critério da qualidade média no cumprimento das obrigações genéricas, segundo juízos de equidade, nos termos do disposto no art. 400º do CC – neste sentido, XXXXXX XX XXXXX, ob. cit. pág. 91.
Dúvidas não restam, que a prova desta não coincidência do bem de consumo adquirido às qualidades e ao desempenho habituais nos bens do mesmo tipo, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 342º do C.C. incumbem ao aquirente/ consumidor.
Prova, esta, que a Requerente não logrou obter, conforme supra já mencionado, ou seja, são sérias as dúvidas de que no momento da entrega do bem reparado este não possuía as características habituais de um bem de iguais características.
Assim como, estipula o n.º 3 daquele mesmo artigo 2º do DL 67/2003 que, “Não se considera existir falta de conformidade, na acepção do presente artigo, se, no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor”.
Ora, e também conforme resulta provado no momento da entrega da intervenção do técnico da Requerida na caldeira, o consumidor foi advertido por meio verbal de que “não poderia ser realizado qualquer outro ensaio sobre o equipamento por falta de fornecimento de gás”.
Se, por um lado, não pode, pois, o Tribunal não relevar tal informação expressa prestada pela Requerida ao Requerente; por outro, não pode sequer o Tribunal afirmar que o equipamento intervencionado pela Requerida padecia de qualquer não conformidade, pois que o mesmo funcionou, apenas não estando o seu funcionamento de acordo com as normas comunitárias quanto aos níveis de monóxido de carbono presentes no local de consumo, que poderia ou não ser solucionado por aumento da capacidade exaustiva do local de instalação, mormente por colocação de grelhas nas janelas.
Pelo que, e sem mais considerações, é totalmente improcedente a pretensão da Requerente.
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4. Do Dispositivo
Nestes termos, com base nos fundamentos expostos, julgo a acção totalmente improcedente, absolvendo a Requerida do pedido.
Notifique-se
X. X. Xxxx, 00/00/0000
X Xxxx-Xxxxxxx,
(Xxxx Xxxxx Xxxxxxxx)