MAIRA CAMPANA SOUTO GAMA
FUNDAÇÃO XXXXXXX XXXXXX ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO
MAIRA CAMPANA SOUTO GAMA
SISTEMATIZAÇÃO E ANÁLISE DA REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS LOCAIS DE GÁS CANALIZADO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO: O PROTAGONISMO DO NOVO CONTRATO DE CONCESSÃO
SÃO PAULO 2023
SISTEMATIZAÇÃO E ANÁLISE DA REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS LOCAIS DE GÁS CANALIZADO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO: O PROTAGONISMO DO NOVO CONTRATO DE CONCESSÃO
Dissertação apresentada à Escola de Direito de São Paulo da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito.
Área de concentração: Direito Público
Orientador: Prof. Dr. Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx Xxxx
SÃO PAULO 2023
Xxxx, Maira Campana Souto.
Sistematização e análise da regulação dos serviços locais de gás canalizado no estado do Espírito Santo : o protagonismo do novo contrato de concessão / Maira Campana Souto Gama. - 2023.
90 f.
Orientador: Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx Xxxx.
Dissertação (mestrado profissional) - Fundação Xxxxxxx Xxxxxx, Escola de Direito de São Paulo.
1. Gás - Distribuição. 2. Canos e canalização de gás. 3. Concessões administrativas. 4. Contratos administrativos - Espírito Santo (Estado). I. Xxxxxxx Xxxx, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. II. Dissertação (mestrado profissional) - Escola de Direito de São Paulo. III. Fundação Xxxxxxx Xxxxxx. IV. Título.
CDU 351.712.2.032.3(815.2)
Ficha Catalográfica elaborada por: Xxxxxxx Xxxxxxxx xxx Xxxxxx Xxxxxx CRB SP-010191/O Biblioteca Xxxx X. Boedecker da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx – SP
SISTEMATIZAÇÃO E ANÁLISE DA REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS LOCAIS DE GÁS CANALIZADO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO: O PROTAGONISMO DO NOVO CONTRATO DE CONCESSÃO
Dissertação apresentada à Escola de Direito de São Paulo da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito.
Área de concentração: Direito Público
Banca examinadora:
Prof. Dr. Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx Xxxx (Orientador)
FGV – Direito São Paulo
Prof. Dr. Xxxxx Xxxxxx Xxxxx Junior FGV – Direito São Paulo
Prof.ª Dra.Xxxx Xxxxxxxx FGV – Direito São Paulo
Prof. Dr. Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxx
A Xxxxx e Xxxxxxxx, que fazem o educar pelo exemplo minha maior motivação.
AGRADECIMENTOS
O presente trabalho representa a conclusão de um projeto de formação profissional que desde a conclusão da minha graduação tinha como objetivo realizar. O seu adiamento por diversas circunstâncias e o amadurecimento pessoal e profissional permitiram-me uma escolha segura e feliz da área de concentração e da Escola de Direito da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx de São Paulo.
O caminho até o mestrado profissional, incluindo a sua conclusão até o presente trabalho, foi percorrido com muito incentivo, em gestos, palavras e exemplos. E aos responsáveis preciso dedicar meus sinceros e fraternos agradecimentos.
Antes, porém, um agradecimento especial à Procuradoria Geral do Estado do Espírito Santo, cujo quadro me orgulho em pertencer, pela adoção de política de incentivo de formação profissional, onde fiz amigos que estiveram ao meu lado nesse projeto.
Dentre esses amigos agradeço a: Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxxx, pelos exemplos na atuação acadêmica que orgulham nossa carreira e por avalizarem a minha capacidade para ingresso no curso; Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx por contribuir com trocas de ideias e facilitando o acesso a diversos documentos imprescindíveis ao presente trabalho; a Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxx, pela confiança que me assegurou continuar apreendendo experiências no direito público, e em especial, aos amigos Xxxx Xxxxxxx do Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx pela nossa parceria profissional harmônica onde juntos enfrentamos e superamos desafios transformados em valiosa aprendizagem diretamente aproveitada no curso. Privada do contato direto com colegas e professores pela pandemia do coronavírus, agradeço a todos os professores que se reinventaram e se esforçaram para manter o rigor acadêmico, promovendo a participação e debate entre os alunos que tanto enriqueceram a jornada pelas disciplinas. À Professora Xxxx Xxxxxxxx agradeço especialmente o acolhimento carinhoso prévio ao início das aulas realizadas rompendo a frieza da tela do computador, mas também pelas suas valiosas provocações e exigências, agradecimento que também dirijo aos
Professores Xxxxxxx Xxxxx, Xxxxxxx Xxxx Xxxxxx, Xxxxx Xxxxxxx e Xxxxxx Xxx Xxxxxxxx.
Especial, também, é o agradecimento ao Professor Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx Xxxx que não me deixou desistir do tema com suas relevantes contribuições, precisas e serenas. Junto a ele também agradeço aos colegas do grupo de seus orientandos que tiveram a paciência e dedicaram seu tempo para ler meu trabalho e contribuir para o seu aperfeiçoamento.
Avanço para os últimos e mais importantes agradecimentos. Aos meus pais, Xxx e Xxxx Xxxxxx, pelas primorosas lições de vida, imprescindíveis nessa jornada de estudos.
A Xxxxxxx, que me incentiva desde o surgimento da intenção no mestrado até a última letra inserida no presente trabalho, com todo tipo de apoio cabível, e, principalmente, por me fazer acreditar ser possível, meu agradecimento com muito amor.
Xxxxx e Xxxxxxxx, obrigada por esperarem pacientemente a sua vez e pelos olhares admirados. Amo vocês!
RESUMO
O trabalho se dedica ao novo contrato de concessão dos serviços locais de gás canalizado celebrado pelo Estado do Espírito Santo, no ano de 2020 e a sua importância para o o desenvolvimento da regulação dos serviços locais de gás canalizado, com especial atenção ao mercado livre de gás canalizado. Inicia com a compreensão do contexto histórico que o precedeu, e que conduziu o Estado à criação de uma sociedade de economia mista, autorizada por lei a explorar os referidos serviços. A participação societária da concessionária anterior como acionista da nova companhia estatal é a solução adotada para resolução da controvérsia referente a direito de indenização devida pela extinção do contrato anterior, declarado nulo judicial e administrativamente, e, ainda, pelo Legislativo. Criada a companhia, iniciam-se as tratativas para modelagem do novo contrato, o que ocorre concomitante às discussões incentivadas pela União, por intermédio do Ministério das Minas e Energia, para desenvolvimento do mercado do gás. Dentre elas, tem ênfase o papel dos Estados na regulamentação dos serviços locais de gás canalizado e os incentivos adequados para o mercado livre. É no âmbito do procedimento de solução da declaração de nulidade do contrato anterior que o Estado do Espírito Santo reestrutura a sua regulação. São introduzidas cláusulas econômico-financeiras que dialogam com a eficiência, referenciadas as competências a serem exercidas pela agência de regulação, e previstas regras a cuja observância estão condicionadas, concessionária e agência reguladora, para implementação do mercado livre de gás canalizado. A partir do contrato, a regulação do referido mercado evolui com a edição da Lei Estadual n.º 11.173/20 e Resolução ARSP n.º 046/21. Esse arcabouço regulatório que tem seus principais aspectos sistematizados no presente trabalho, e submetido à investigação da medida que representa avanço à melhoria da prestação dos serviços públicos, como contribuição para o desenvolvimento da indústria de rede em que inserido os serviços locais de gás canalizado.
Palavras-chave: Serviço local de gás canalizado. Contrato de concessão. Regulação. Mercado livre. Sistematização. Principais aspectos.
ABSTRACT
The papper focuses on the new concession contract for local piped gas services entered into by the State of Espírito Santo in the year 2020 and its significance for the development of the regulation of local piped gas services, with particular attention to the open market. It commences with an understanding of the historical context that preceded it, which led the State to establish a mixed economy company authorized by law to exploit these services. The equity participation of the previous concessionaire as a shareholder in the new state-owned company is the solution adopted to resolve the controversy concerning the right to compensation due to the termination of the previous contract, which was declared null and void both judicially and administratively, and also by the Legislature. Once the company is established, negotiations commence for the modeling of the new contract, which coincides with discussions prompted by the Union, through the Ministry of Mines and Energy, for the development of the gas market. Among these discussions, there is a focus on the role of the states in regulating local piped gas services and the appropriate incentives for the open market. It is within the framework of the procedure for resolving the nullity declaration of the previous contract that the State of Espírito Santo restructures its regulation. Economic and financial clauses are introduced that align with efficiency, referencing the competencies to be exercised by the regulatory agency, and stipulating rules that the concessionaire and regulatory agency must adhere to in order to implement the open market for piped gas. Following the contract, the regulation of the aforementioned market evolves with the enactment of State Law 11.173/20 and ARSP Resolution 046/2021. This regulatory framework, whose main aspects are systematized in this present work, also aims to investigate to what extent it represents advancement in improving the provision of local public piped gas services and contributes to the development of the network industry they are integrated into.
Keywords: Concession contract. Local piped gas services. Open market of piped gas.
Regulation. Main aspects.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ARSP Agência de Regulação de Serviços Públicos do Espírito Santo
ASPE Agência de Serviços Públicos de Energia do Estado do Espírito Santo ANP Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis
CNPE Conselho Nacional de Política Enérgica CUSD Contrato de uso do serviço de distribuição MME Ministério de Minas e Energia
ES GÁS Companhia de Gás do Espírito Santo
TUSD-GÁS Tarifa de uso do sistema de distribuição de gás canalizado
TUSDE-GÁS Tarifa de uso do sistema de distribuição exclusiva de gás canalizado
SUMÁRIO
1) INTRODUÇÃO 11
2) ALGUNS ASPECTOS DA CADEIA DO SETOR DE GÁS E SEUS EFEITOS NA REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS LOCAIS DE GÁS CANALIZADO 19
2.1) Indústria de rede do gás e os aspectos econômicos 19
2.2) Aspectos jurídicos do setor de gás 22
2.2.1) Definições constitucionais. Competência regulatória e natureza jurídica das atividades 22
2.2.2) Regime jurídico infraconstitucional. Diretrizes regulatórias previstas na Lei Federal 14.134/21 para os serviços de distribuição 25
2.2.3) A regulação pelos Estados dos serviços de distribuição de gás canalizado 30
3) REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS LOCAIS DE GÁS CANALIZADO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO 35
3.1) A normatividade contratual da concessão 35
3.2) Definições regulatórias previstas na Lei Estadual 10.955/18 38
3.2.1) A definição dos serviços locais de gás canalizado 38
3.2.2) A regulação da concessão. Definição em lei das práticas regulatórias voltadas à exploração eficiente da concessão 40
3.3) A regulação contratual da concessão dos serviços locais de gás canalizado no Estado do Espírito Santo 43
3.3.1) Definição contratual dos serviços e usuários 44
3.3.2) O procedimento de chamada pública para aquisição da molécula de gás 44
3.3.3) A universalização dos serviços 46
3.3.4) A regulação contratual econômica da concessão 47
3.3.5) A regulação contratual do mercado livre de gás canalizado 49
4) A REGULAÇÃO DO MERCADO LIVRE DE GÁS CANALIZADO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO A PARTIR DO NOVO CONTRATO DE CONCESSÃO 51
4.1) Ausência de exclusividade da concessionária para a prestação do serviço de comercialização ao mercado livre de gás canalizado 53
4.2) O agente livre de mercado e os requisitos para ingresso no mercado livre de gás canalizado 57
4.3) Do ramal dedicado 62
4.4) Do regime tarifário aplicável ao mercado livre de gás canalizado 68
4.5) A regulação da atividade de comercialização no mercado livre 76
4.6) Outros aspectos da regulação discricionária do mercado livre de gás canalizado 78
4.7) A flexibilidade regulatória do mercado livre de gás canalizado no Estado do Espírito Santo 79
CONCLUSÃO 81
REFERÊNCIAS 87
1) INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objeto a análise do novo contrato de concessão do serviço local de gás canalizado celebrado pelo Estado do Espírito Santo, no dia 22 de julho de 2020, e o seu papel na regulamentação dos serviços locais de gás canalizado e no desenvolvimento do mercado livre.
A concessão dos serviços locais de gás canalizado no Estado do Espírito Santo seguiu o modelo majoritário adotado pelos Estados, em que a concessionária, a Companhia de Gás do Espírito Santo - ES GÁS, é uma empresa estatal estadual, criada pela Lei Estadual n.º 10.955/18, com participação societária da Petrobras Distribuidora S/A. então subsidiária da Petrobras S/A1.
A opção por esse modelo surge em um contexto fático/jurídico relevante que justificou tanto a criação da ES GÁS para outorgar-lhe a concessão dos serviços locais de gás canalizado, como a participação da Petrobras Distribuidora S/A em seu quadro societário e que atribuiu características específicas ao novo contrato de concessão celebrado. Trata-se do processo consensual conduzido pelo Estado e pela estatal federal para pôr fim a controvérsias judiciais instauradas a partir da pretensão de declaração de nulidade do contrato de concessão anterior que haviam celebrado em 1993, e indenizar os bens reversíveis ao Estado e outros direitos que as partes controvertiam por divergências na interpretação do referido contrato.
Em 16 de dezembro de 1993, o Estado do Espírito Santo celebrou contrato de concessão de exploração dos serviços de distribuição de gás canalizado com a Petrobrás, com prazo de vigência de 50 (cinquenta) anos.
A celebração do contrato de concessão não foi precedida de licitação, conforme exigência do artigo 175 da Constituição Federal e até 2016 o Estado do Espírito Santo não havia implementado procedimento para o cumprimento do disposto nos artigos 43 a 45 da Lei 8.987/93, especificamente a extinção dos contratos celebrados nessa condição quando já vigente a Constituição Federal e realização de nova licitação e indenização das obras e serviços realizados.
1 A Petrobras Distribuidora S/A, quando se iniciou o procedimento que culminou na criação da companhia estadual com a sua participação societária, era uma subsidiária da Petrobras S/A. Em junho de 2019 foi privatizada, com a venda de ações da Petrobras S/A, que passou a deter 37,5% das ações, integralmente vendidas no fim de junho de 2021.
A nulidade do contrato foi objeto de pedido formulado na Ação Popular n.º 0014046- 21.2003.8.08.0024, ajuizada em 2003, e teve como fundamento a violação à exigência constitucional do dever de licitar previsto no artigo 37, inciso XXI da Constituição Federal.
A sentença declarou a nulidade do contrato de concessão com efeitos retroativos a 13 de fevereiro de 1995 (data de início da vigência da Lei de Concessões - Lei Federal n.º 8.987/95); condenou o Estado a indenizar a Petrobras Distribuidora S/A pelos bens reversíveis vinculados à concessão executados até aquela data, a assumir a prestação dos serviços no prazo de 180 (cento e oitenta) e realizar o processo licitatório, concluindo-o com a adjudicação ao vencedor no prazo de 24 (vinte e quatro) meses; por fim, condenou a concessionária a indenizar o Estado em quantia a ser apurada na fase de liquidação.
No julgamento do recurso de apelação, a sentença foi reformada e declarada a prescrição da pretensão anulatória do contrato em razão do decurso de prazo de 5 (cinco) anos decorrido da data da sua celebração (dezembro de 1993) até a propositura da ação (agosto de 2003), com fundamento no artigo 21 da Lei Federal n.º 4.717/65. Todavia, foi confirmada a condenação imposta à Petrobras Distribuidora S/A de indenizar o Estado pelo “presumível dano ao erário, na medida que se retirou da Administração Pública a possibilidade de se receber propostas financeiras mais vantajosas em vários aspectos” reconhecendo essa pretensão seria imprescritível por força do disposto no artigo 37, §5º da Constituição Federal. Concessionária e autor popular interpuseram recursos aos Tribunais Superiores estendendo a controvérsia.
Apesar de a sentença não ter sido confirmada pelo Tribunal de Justiça, especificamente no capítulo que declarou a nulidade do contrato conforme pleiteado, a partir da sua prolação o Estado passou a enfrentar a sua extinção e os seus consectários, em especial a indenização dos investimentos não amortizados para reversão dos bens vinculados à concessão e a assunção dos serviços.
Medida adotada nesse sentido foi a publicação, em 02 de fevereiro de 2016, da Lei Estadual 10.493 que em seu artigo 1º declarou a extinção do contrato de concessão para prestação de serviços de distribuição de gás canalizado, amparada no artigo 43 da Lei Federal n.º 8.987/1993 e artigo 175 da Constituição Federal. A norma também conferiu autorização ao Estado para submeter à arbitragem a definição do valor da indenização devida à Petrobras Distribuidora S/A (art. 2º), determinou o cumprimento das obrigações contratuais pela concessionária pelo período necessário à celebração de novo contrato concessão pelo Estado, após prévia licitação, ou outorga dos serviços à empresa estatal a ser instituída com objeto social destinada a essa finalidade (art. 3º).
Nova controvérsia judicial, quando a concessionária impetra o Mandado de Segurança n.º 0018374-12.2016.8.08.0000 impugnando a referida Lei Estadual n.º 10.493/2016, ao argumento de que houve decadência do direito de anular o contrato, pretensão de encampação da concessão sem observar os requisitos legais (interesse público, processo administrativo e indenização prévios). A suspensão liminar dos seus efeitos, contudo, não foi deferida pelo Tribunal de Justiça.
Sem uma solução judicial definitiva para as controvérsias, o Estado e a Petrobras Distribuidora S/A iniciaram tratativas para sua composição. Iniciou-se, assim, um processo de autocomposição que culminou na formalização de um instrumento de compromisso condicional para constituição de sociedade de economia mista para exploração de serviços de distribuição de gás natural.
Nesse ambiente de consensualidade, a opção de outorga da concessão para exploração dos serviços locais de gás canalizado em todo o Estado à empresa estatal foi a adotada e consolidada com o advento da Lei Estadual 10.955, publicada em 14 de dezembro de 2018, que autorizou o Poder Executivo a criar, a partir de janeiro de 2019, a Companhia de Gás do Espírito Santo (ES GÁS), sociedade de econômica mista, sob forma de sociedade anônima, com o objetivo de explorar aqueles serviços.
Para solucionar o impasse alusivo à indenização devida à concessionária pela extinção do contrato de concessão, a Lei garantiu a participação societária da estatal federal na ES GÁS, e ao Estado a posição de controlador, titular de, ao menos, 51% (cinquenta e um) por cento do capital social votante (art. 3º caput e §2º).
O fundamento normativo para participação societária da Petrobras Distribuidora S/A (art. 25 da Lei Federal n.º 8.666/1993 combinado com o art. 28, § 3º, inciso II, e § 4º, da Lei Federal nº 13.303/2016) constou expressamente no artigo 2º, §1º da Lei Estadual 10.955/20182. A inexigibilidade de licitação se fundamentou na inviabilidade de competição uma vez que referida participação tinha como objetivo solucionar a controvérsia judicial e indenizar a concessionária pelos investimentos não amortizados realizados no contrato de concessão
2Art. 3º A ES GÁS terá como sócios o Estado do Espírito Santo, como controlador, e a Petrobrás Distribuidora
S.A. – XX Xxxxxxxxxxxxx.
§ 0x X xxxxxxxx xx XX Distribuidora como sócia ocorrerá com fundamento no caput do art. 25 da Lei Federal nº 8.666, de 21 de junho de 1993, combinado com o art. 28, § 3º, inciso II, e § 4º, da Lei Federal nº 13.303, de 30 de junho de 2016 (Lei das Estatais).
declarado extinto3. A inexigibilidade também foi amparada na posição da referida estatal, então prestadora do serviço local de gás canalizado no Estado do Espírito Santo e enquanto subsidiária da maior empresa do País na prestação de serviços dos setores de petróleo e gás natural, a Petrobras S/A, com expertise que a colocava em uma posição singular para a participação societária.
Como se demonstrará no desenvolvimento do presente trabalho, a Lei Estadual 10.955/2018, para além de conferir segurança jurídica para que o Estado do Espírito Santo e a Petrobras Distribuidora S/A solucionassem as controvérsias referentes à extinção do contrato de concessão, vinculou o poder concedente a obrigatoriamente adotar as premissas técnicas e econômico-financeiras nela definidas para modelagem do novo contrato concessão dos serviços locais de gás canalizado a ser celebrado com a empresa estatal cuja criação autorizou.
O novo contrato de concessão que surge desse processo se destaca, em especial, por ser o passo inicial da remodelagem da regulamentação, no Estado do Espírito Santo, do mercado livre de gás canalizado. Posteriormente foi publicada a Lei Estadual 11.173 de 25 de setembro 2020, que reitera as disposições contratuais e avança um pouco mais ao definir o critério para qualificação do consumidor livre e ao prever reduzidas questões regulatórias inaugurais. A referida Lei delimita os aspectos gerais da regulamentação do mercado livre, delegando à Agência Reguladora a sua regulação concreta e efetiva, tema a ser explorado adiante.
O contrato é o primeiro celebrado após a vigência da Lei Federal 11.909/09 e a sua estruturação concomitante com a instituição, pelo Ministério de Minas e Energia - MME, do Programa Novo Mercado de Gás para promoção da abertura e competição do mercado de gás natural, definindo como um dos pilares do referido programa a harmonização das regulações estaduais e federal. Por meio da Resolução n.º 16 de 24 de junho de 2019, o Conselho Nacional de Política Enérgica – CNPE estabeleceu as diretrizes para promoção da livre concorrência no mercado de gás natural, definindo ações para uma transição de forma coordenada, dentre as quais o incentivo à melhoria regulatória da prestação dos serviços locais de gás canalizado pelos Estados e o Distrito Federal.
O momento de sua celebração também é contemporâneo aos debates legislativos do Projeto de Lei n.º 4.476/20 (anterior Projeto de Lei n.º 6.407/13), que propunha uma nova lei do gás, com o objetivo de promover alterações na regulação aptas a ampliar a concorrência da cadeia o setor do gás, como consequência a aumentar a oferta e reduzir custos. Isso permitiu que a ARSP, acompanhando esse movimento, fizesse incorporar no contrato as atualizações
3 Artigos 3º, §7º, inciso II, 16 e 17 da Lei Estadual n.º 10.955/2018.
regulatórias que vinham sendo debatidas. O referido projeto foi aprovado, e em 08 de abril de 2021 publicada a Lei 14.134, portanto, após a assinatura do contrato.
O novo contrato de concessão foi associado, pelo Estado do Espírito Santo e pela Agência de Regulação de Serviços Públicos do Espírito Santo – ARSP, às melhores práticas regulatórias, capaz de atrair desenvolvimento e melhorar a prestação do serviço público para a população 4, expectativa positiva, essa, também acompanhada pelo setor industrial5.
As entusiásticas manifestações acerca das expectativas quanto ao novo contrato provocaram o interesse em investigar em que medida a nova regulação contratual tem capacidade de introduzir competitividade, de ampliar e melhorar a prestação dos serviços, reduzir seus custos, como anunciado, e regular o monopólio.
A regulação difusa pelos Estados6 e a ausência de uma norma geral editada pelo ente federal7 são apresentadas como alguns entraves para a expansão deste setor de infraestrutura. Atribui-se, nesse cenário, relevo a essa atividade regulatória, imputando responsabilidade aos Estados para mitigar o poder de mercado do monopólio natural que caracteriza a exploração dos serviços de distribuição, como medida necessária para garantir concorrência nas atividades competitivas da cadeia, especialmente a comercialização. Desse debate exsurge como tema
4 “Para o governador Xxxxxx Xxxxxxxxxx, esse dia é histórico não apenas para o Estado, mas para todo o País. “Esse contrato coloca o Espírito Santo como o primeiro a assinar no Novo Mercado de Gás. Buscamos que o gás natural seja um instrumento do nosso desenvolvimento e que possamos atrair novos investimentos. As regras estabelecidas são modernas e já no mês que vem iremos lançar a chamada pública para a aquisição de gás, que antes só poderia ser realizada pela Petrobras. A partir de agora, a ES GÁS passa a fazer investimentos e iniciaremos com a construção do gasoduto que irá ligar a região litorânea à área industrial de Linhares”, afirmou.” Contrato para distribuição de gás natural no Espírito Santo é assinado. Disponível em: < xxxxx://xxx.xx.xxx.xx/Xxxxxxx/xxxxxxxx-xx-xxxxxxxxx-xxxx-xxxxxxxxxxxx-xx-xxx-xxxxxxx-xx-xxxxxxxx-xxxxx-x- assinado >. Acesso em 15 mar. 2021.
5“A presidente eleita da Xxxxxx, Xxxx Xxxxxxxx, participou da cerimônia de lançamento e reforçou a atuação do Fórum Capixaba de Petróleo e Gás. “Nosso Fórum estima que esse contrato de concessão, com a chamada pública para a aquisição de gás prevista para ser lançada em agosto, pode destravar 10 bilhões de dólares em investimentos nos próximos 15 anos, gerando cerca de 30 mil empregos em áreas como siderurgia, cerâmica, vidros, petroquímica, geração de energia”, pontuou”. FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Contrato para distribuição de gás natural no Espírito Santo é assinado. Disponível em: < xxxxx://xxxxxx.xxx.xx/xxxx/xxxxxxxx-xx-xxxxxxxxx-xxxx-xxxxxxxxxxxx-xx-xxx-xxxxxxx-xx-xxxxxxxx-xxxxx-x-xxxxxxxx/
>. Acesso em 15 mar. 2021.
6 “Dentre as questões em discussão no Gás para Crescer, um dos pontos que provoca maior debate diz respeito à delimitação de competências entre a União e os Estados em função da previsão do art. 25, §2º da Constituição, o qual versa sobre a competência dos Estados para explorar os “serviços locais de gás canalizado”. Em linhas gerais, o problema consiste em saber a quem compete regular a comercialização do gás natural e qual a extensão desta competência. A falta de clareza do texto constitucional sobre o alcance desta expressão leva a um cenário de insegurança jurídica e ineficiência que representa um gargalo importante ao efetivo desenvolvimento deste mercado”. FGV – CERI Desenvolvimento de um mercado de gás no Brasil. p. 16
7 “Regular federalmente os serviços locais de gás canalizado não retira dos Estados a exploração exclusiva desses serviços, simplesmente evita situação inusitada e ao mesmo tempo desastrosa, de cada uma das 27 unidades federativas estabelecer seus próprios regramentos.” Cenários Gás. A exploração dos serviços locais de gás (na forma) canalizado. Disponível em: < A exploração dos serviços locais de gás (na forma) canalizado - Cenários Energia - Gás (xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx) >. Acesso em 23 jun. 2020.
central as regras a serem estabelecidas para o desenvolvimento do mercado livre de gás canalizado.
A Constituição Federal além de conferir, no artigo 25, §2º, a titularidade aos Estados para prestação dos referidos serviços locais de gás canalizado, atribui-lhes a natureza jurídica de serviços públicos, autorizando a sua exploração pelo privado por meio de concessão, atraindo, assim, a incidência do seu artigo 175, parágrafo único, inciso IV, que impõe a obrigação de presta-los de forma adequada. Essas definições constitucionais impõem diversas condicionantes que limitam a disponibilidade das opções econômicas para regulação dos referidos serviços, que deve se ocupar em garantir a efetivação dos atributos que predicam o serviço público como adequado8.
Também desafia a regulação dos serviços os indissociáveis reflexos das demais atividades econômicas da cadeia associadas à exploração do gás natural: produção, importação, exportação e transporte por meio de condutos, cuja competência para exploração, e consequente regulação, a Constituição Federal atribuiu à União9.
Soma-se a esses fatores as características de monopólio natural de algumas atividades na cadeia de gás natural (e.g. transporte e distribuição), que exigem um único prestador a realizar a atividade de forma eficiente, cabendo ao regulador adotar os mecanismos aptos aos seus efeitos em prol da concorrência nas demais atividades da cadeia.
Nesse contexto de sobrelevada responsabilidade da regulação dos serviços locais de gás canalizado para ampliação da competitividade e expansão do setor que, adotando o estudo de caso como modelo de pesquisa predominante, pretende-se investigar o papel do novo contrato de concessão na fase atual da regulamentação estadual.
Nessa ordem de ideias, adotando-se como modalidade de pesquisa o estudo de caso, cujo objeto central é o contrato, o contexto fático da sua celebração e a regulação dele originária, pretende-se alcançar respostas para as seguintes questões: i) qual o estado atual da regulação dos serviços locais de gás canalizado? ii) Qual a abrangência da regulação contratual? iii) Quais inovações introduzidas na regulação? iii) Qual o cenário de incentivos e segurança jurídica para o mercado livre de gás canalizado?
O presente trabalho está dividido em 3 (três) capítulos. Após a introdução, o primeiro faz uma abordagem da inserção dos serviços locais de gás canalizado na cadeia do setor de gás
8 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Universalização de serviços públicos e competição. O caso da distribuição de gás natural. In: Revista de direito administrativo n. 223. Rio de Janeiro: FVG Direito Rio, jan./mar 2001, p. 133-152.
9 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Regulação e poder de polícia no setor de gás. Disponível em: < xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxx_xxxxxx/xxx_00_00.xxx >. Acesso em 23 jun. 2020.
com ênfase nas atividades que a integram e cujos aspectos técnicos, econômicos e jurídicos se conectam e refletem naqueles serviços. Destaca-se os aspectos jurídicos referentes ao serviço objeto do contrato de concessão do qual se ocupa o presente trabalho (i.e. serviços locais de gás canalizado), único da cadeia destacado pela Constituição Federal como serviço público, atribuído aos Estados a sua prestação, e, consequentemente, a competência para regulá-los, apontando os desafios dessa opção constitucional.
O tema tratado no segundo capítulo é a regulação setorial dos serviços locais de gás canalizado no Estado do Espírito Santo, sua sistematização, submetida à análise crítica e a respectiva fundamentação jurídica.
A regulação contratual é centro referencial da regulação, justificadora da edição de atos normativos inclusive pretéritos à celebração do contrato de concessão, portanto, protagonista. Vinculada a aspectos econômico-financeiros definidos em lei, avança em questões setoriais específicas, com especial atenção para o mercado livre de gás canalizado e mecanismos de introdução de concorrência para o setor, como a não garantia de exclusividade na atividade de comercialização, obrigatoriedade de realização de chamada pública para aquisição da molécula de gás, e obrigações voltadas para efetivar a universalização dos serviços.
O caráter inovador do contrato de concessão ao fixar normas regentes do mercado livre de gás canalizado, a relevância desse mercado para expansão dos serviços, associada à introdução de concorrência, justifica um tratamento destacado desse tema. O arcabouço regulatório específico do mercado livre, então, passa a ser objeto do terceiro capítulo.
As disposições inaugurais previstas no contrato de concessão não são exaustivas e remetem à regulamentação da ARSP diversas definições para implementação do referido mercado livre.
A regulação discricionária da agência é condicionada, ainda, às diretrizes previstas na Lei Estadual n.º 11.173/20. Para além de consolidar algumas disposições contratuais referentes ao mercado livre de gás canalizado, introduz novas diretrizes, inclusive de política tarifária.
A partir das competências contratual e legal a ARSP edita a Resolução n.º 046/21 para regulamentar o mercado livre de gás canalizado. O ato regulamentar consubstancia as regras objetivas sobre os requisitos de migração do usuário cativo para o mercado livre, o contrato a ser firmado entre os agentes livres e a concessionária para construção do ramal dedicado, sobre as tarifas, penalidades e relação jurídica entre o comercializador e a concessionária. Mesmo editada com foco no mercado livre, a Resolução também disciplina questões gerais do serviço público local de gás canalizado.
Como objeto de pesquisa, para além de contribuir com uma sistematização da regulação dos serviços locais de gás canalizado, com especial atenção para a modelagem do mercado livre, suas principais características jurídicas e incentivos, busca-se identificar os desafios e algumas soluções jurídicas para o processo de regulação setorial dos referidos serviços.
2) ALGUNS ASPECTOS DA CADEIA DO SETOR DE GÁS E SEUS EFEITOS NA REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS LOCAIS DE GÁS CANALIZADO
2.1) Indústria de rede do gás e os aspectos econômicos
O estudo da regulação setorial dos serviços locais de gás canalizado no Estado do Espírito Santo, suas inovações, seus desafios, com especial atenção para o mercado livre de gás canalizado requer a contextualização dessa atividade econômica na cadeia produtiva associada à exploração desse combustível fóssil.
Os serviços locais de gás canalizado compõem um dos elos da indústria de rede10 integrada por atividades econômicas que têm essa fonte de energia como objeto de exploração. Os referidos serviços são interconectados e interdependentes, portanto, às demais atividades do setor: exploração, produção, transporte, comercialização, nos aspectos técnicos e econômicos, como jurídicos também11.
Para além dessa dependência entre as referidas atividades econômicas, o setor de gás corresponde a um conjunto de mercados – commodity e capacidade de movimentação – com dimensões físicas, comerciais e financeiras indissociáveis, a serem inevitavelmente consideradas para que se introduza funcionalidade e eficiência no setor12.
A regulação dos serviços locais de gás canalizado pelos Estados é, assim, condicionada por alguns aspectos que advém da inserção dessa atividade em uma indústria de rede, pelas características do conjunto de mercados que formam a cadeia do setor do gás.
10 Conforme Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxx, denominam-se indústrias de rede “em virtude da estrita complementaridade existente entre os segmentos de suas cadeias produtivas, cujos elos estabelecem — por questões de natureza tecnológica — graus de interdependência entre os componentes da rede bem mais elevados do que aqueles existentes em outros tipos de indústria”. XXXXXX XX., Xxxx Xxxxxxx xx. A regulação econômica nos setores de infraestrutura no Brasil. In: Marcos Regulatórios no Brasil. O que foi feito e o que falta fazer. IPEA 2005, p. 94. Disponível em: < xxxx://xxx.xxxx.xxx.xx >
11 O artigo 3º da Lei Federal n.º 14.134/21 (Nova lei do Gás) traz a conceituação da indústria do gás natural elencando as atividades que integram: “(...) XXVIII - indústria do gás natural: conjunto de atividades econômicas relacionadas com exploração, desenvolvimento, produção, importação, exportação, escoamento, processamento, tratamento, transporte, carregamento, estocagem subterrânea, acondicionamento, liquefação, regaseificação, distribuição e comercialização de gás natural”.
12 “...três dimensões essenciais de um mercado: conjunto de agentes, produto e estrutura de informação. Essa “taxonomia” é útil também na análise das condições para desenvolver um mercado competitivo de gás natural. No caso em tela, trata-se de um conjunto de mercados - commodity e capacidade - e que tem dimensões físicas, comerciais e financeiras encadeadas. Não há que se falar em separação entre as referidas dimensões, pois há estrita dependência entre elas e a falha em reconhecer essa relação tende a produzir disfunções e ineficiência”. FGV CERI (Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx). Desenvolvimento de um mercado de gás no Brasil. Disponível em: < xxxxx://xxxx.xxx.xx >
Sob o aspecto econômico, estimular a competição no setor do gás natural, ampliar o acesso a essa fonte energética, diante da sua importância para o desenvolvimento econômico sustentável13 é o objetivo da regulação, que é desafiado pela existência na cadeia de atividades que são potencialmente competitivas, como as de produção e comercialização, com atividades que não escapam à natureza de monopólio natural, nelas incluídas a de transporte e distribuição do gás canalizado.
A condição de monopólio natural se justifica quando há custos iniciais elevados e irrecuperáveis para instalação de uma infraestrutura e duplica-la não é opção economicamente eficiente, pois a diluição da demanda não suportará os seus custos fixos. Assim, tem-se condições econômicas que legitimam conferir ao investidor a exclusividade de sua exploração como medida a tornar atrativo o investimento14.
Diante da ineficiência econômica da duplicação, a regulação do livre acesso a terceiros na atividade de transporte e distribuição surge como instrumento indispensável para propiciar concorrência no setor de gás, nas atividades da cadeia em que a competição é viável (exploração, importação, produção e comercialização), sendo o grande desafio, dada a complexidade, compatibilizá-lo com a manutenção dos investimentos mínimos para ampliação da infraestrutura e aperfeiçoamento do mercado15, e também onde “se coloca a questão do equilíbrio entre competição e universalização e continuidade”16.
As infraestruturas ligadas às atividades econômicas do setor de gás que consistem em monopólio natural (i.e. transporte e distribuição dependentes de infraestrutura de dutos) também se caracterizam como instalações essenciais, conceito em torno do qual se desenvolveu a teoria que veda a empresa monopolista de recusar acesso a terceiros quando o compartilhamento da infraestrutura é imprescindível para garantir a concorrência. A partir do
13 “A participação do gás natural na matriz energética brasileira é de cerca de 15% e está aumentando devido à sua versatilidade e seus fatores menos poluentes. A indústria de gás natural tem uma perspectiva promissora no Brasil, pois este pode ser o combustível da transição para uma matriz de baixo carbono. A expansão de um mercado de gás com alta eficiência de utilização também é positiva quando comparada a outros combustíveis fósseis que levam a impactos ambientais. A combustão de gás é limpa, sem comprometer a qualidade do ar.” FGV CERI (Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx). Desenvolvimento de um mercado de gás no Brasil. Disponível em: < xxxxx://xxxx.xxx.xx >
14 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx. O regime jurídico do consumidor livre de gás natural e energia elétrica. P. 268 e 269.
15 "Nesses setores (mercados verticalmente relacionados), a relação entre regulação e concorrência apresenta elevada complexidade, haja vista que, embora a presença da rede física implique em custos afundados elevados e retornos de escala crescentes, levando, assim, à inviabilidade (econômica) da sua duplicação, os serviços explorados a partir dela podem, muitas vezes, mostrar-se competitivos. Para que seja possível a introdução de concorrência, faz-se então necessária uma opção regulatória pela ‘desverticalização’ do setor, cuja implementação, todavia, apresenta desafios não negligenciáveis." ARAGÃO, Xxxxxxxxx Xxxxxx. O regime jurídico do consumidor livre de gás natural e energia elétrica. In: Direito do petróleo e gás. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 270
16 XXXXXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Universalização de serviços públicos e competição: o caso da distribuição
de gás natural. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, v. 223, p.133-152, 2001. p. 142
caso paradigmático ocorrido nos Estados Unidos17, em que o Poder Judiciário reconheceu como violação às regras antitruste a recusa de interconexão pela AT&T à empresa de telecomunicações MCI, Xxxxxxxxx Xxxxxx do Aragão sintetiza os pressupostos fáticos necessários para aplicação da teoria das instalações essenciais, que, se presentes, caracterizarão a recusa de acesso como infração ao direito da concorrência18:
(i) controle de uma infraestrutura essencial por parte de um monopolista;
(ii) impossibilidade de os concorrentes duplicarem a infraestrutura;
(iii) negativa, pelo incumbente, de permitir o uso da infraestrutura pelo concorrente; e
(iv) viabilidade de tal compartilhamento (i.e., a inexistência de uma razão objetiva legítima que o impedisse).19
A Teoria das Instalações Essenciais se ambienta, contudo, no direito de concorrência, e não é suficiente para garantir a competição nos setores de infraestrutura20, onde o Estado exerce a regulação setorial. O exercício dessa competência tem como finalidade, para além de coibir condutas anticoncorrenciais, ordenar o próprio mercado, por meio de regras capazes de conferir segurança jurídica para realização de investimentos com o respectivo retorno econômico. É no âmbito da atividade administrativa da regulação setorial que serão fixados parâmetros de preços, regras de acesso às instalações, nível de qualidade de prestação da atividade aos usuários e, em especial, a garantia da universalização, quando ela se impõe, na hipótese de a atividade possuir o status constitucional de serviço público21.
17 O Poder Judiciário reconheceu o direito de interconexão à MCI em face da AT&T, que recusava o acesso as suas instalações.
18 “Nessas situações, a recusa de contratação caracterizará infração ao direito da concorrência justamente pelo seu potencial de inibir o direito de escolha dos consumidores no que tange àqueles fornecedores que poderiam, ausente o ilícito, estar disputando clientela nos mercados de prestação de serviços a partir da rede.” XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx. O regime jurídico do consumidor livre de gás natural e energia elétrica. O regime jurídico do consumidor livre de gás natural e energia elétrica. In: Direito do petróleo e gás. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 276.
19 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx. O regime jurídico do consumidor livre de gás natural e energia elétrica. P. 276
20 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx. Direito do petróleo e gás. p.276
21 “Direito pode ter um papel proeminente no desenho institucional dos mercados... além das regras limitadores e garantidoras da liberdade empresarial, poderá ser necessária a inclusão de normas que desenhem o mercado e criem condições para que ele exista (como, por exemplo, normas que, de um lado, confiram segurança a investimentos de grande vulto e criem um ambiente favorável ao retorno do investimento, e, simultaneamente, exijam produtos e serviços de qualidade, a preços razoável; normas que garantam o acesso a redes de infraestrutura como forma de viabilização da existência de concorrência a montante ou a jusante)” p.36 A Regulação e concorrência nos setores de infraestrutura: análise do caso brasileiro à luz da jurisprudência do CADE. “De uma maneira geral, a intervenção regulatória estatal sobre a economia se presta à consagração de finalidades de ordem pública. Só assim se pode justificar alguma restrição à regra constitucional de liberdade de iniciativa econômica. Tais finalidades (em última instância tradutoras de interesses públicos a serem perseguidos) poderão se revelar de maneira reativa ou proativa. Na primeira hipótese, tem a regulação o papel de coibir ou restringir condutas que, consumadas, violariam pautas de interesse geral. Na segunda, cuida-se de implementar objetivos constantes de políticas públicas gerais (monetárias, de emprego, de política industrial) ou setoriais (como metas de universalização em serviços essenciais, modicidade tarifária, etc)”. XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Regulação e poder de polícia no setor de gás. Disponível em: < xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxx_xxxxxx/xxx_00_00.xxx >. Acesso em 23 jun. 2020.
A infraestrutura essencial necessária ao serviço de distribuição de gás canalizado está jungida, portanto, tanto pela atividade administrativa voltada à defesa da concorrência quanto à regulação setorial. Nessa última, o enfrentamento do direito ao acesso à infraestrutura está associado à natureza de serviço público imposta à atividade pela Constituição Federal, o seu monopólio pelo Estado, que o delega a particulares, para exploração em regime com exclusividade em determinado território, como efeito dos atributos que o caracterizam como monopólio natural.
Essas características vão refletir sobre os aspectos jurídicos do setor de gás, trazer-lhe especificidades em relação a outras indústrias de rede, para onde o presente trabalho dirige o seu foco.
2.2) Aspectos jurídicos do setor de gás
Sob o aspecto jurídico, a Constituição Federal optou por duas importantes definições que trazem especificidades à regulação setorial do gás, não identificadas em outros setores. A primeira foi destacar a atividade de distribuição da competência da titularidade da União para explorá-la e atribuí-la aos Estados, com a consequente competência regulatória. A segunda foi qualificar os serviços locais de gás canalizado, que alberga a atividade de distribuição, como serviço público, enquanto as demais atividades da cadeia preservam sua natureza de atividade econômica em sentido estrito, mas submetidas ao monopólio do ente federal.
No plano infraconstitucional, o exercício da competência regulatória no setor de gás, cindida entre a União e Estados, é desafiada pela necessidade de compatibilizar a preservação pelos entes de suas competências com os efeitos das escolhas regulatórias que acarretarão reflexos nas atividades estreitamente conectadas, como exposto.
2.2.1) Definições constitucionais. Competência regulatória e natureza jurídica das atividades
A Constituição Federal, no artigo 17722, atribui à União o monopólio das atividades de exploração, produção/importação e transporte do gás e, a partir da Emenda Constitucional
22 “Art. 177. Constituem monopólio da União:
I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro;
n.09/95, admite que sejam exploradas por empresas estatais e privadas, mediante relação jurídica firmada com a União a ser disciplinada em lei. Essas atividades possuem natureza exclusivamente econômica, em sentido estrito, ainda que sua exploração seja condicionada à intensa regulação estatal setorial23.
No artigo 25, §2º24, a Constituição Federal definiu a competência dos Estados para explorar os serviços locais de gás canalizado, podendo fazê-lo diretamente ou mediante concessão. Importante notar que antes da Emenda Constitucional 05/1995 os serviços só poderiam ser concedidos à empresa estatal.
Diferentemente das demais atividades da cadeia, os serviços locais de gás canalizado têm como atributo a sua qualificação como serviço público. Colhe-se essa definição quando a Constituição dispõe sobre a competência material dos Estados na sua exploração, e quando define o regime de delegação da exploração da atividade para o particular somente por meio do instituto da concessão25. Esse é o regime de outorga ao privado para prestação de serviços públicos sob o regime jurídico público26 definido, juntamente com a permissão, no caput do artigo 175 da Constituição Federal.
III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores;”
IV - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem;
§ 1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 9, de 1995)”
23 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Regulação e poder de polícia no setor de gás. Disponível em: < xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxx_xxxxxx/xxx_00_00.xxx >. Acesso em 23 jun. 2020.
24 “Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.
(...)
§ 2º Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação.
25 “A construção constitucional não deixa dúvidas de que o constituinte, mesmo após a reforma, definiu os tais ‘serviços locais de gás canalizado’ como um serviço público de titularidade (competência material) atribuída aos Estados. O regime de serviço público resta patente tanto pela locução atributiva de competência material (‘cabe aos Estados explorar’) como pela referência ao regime de concessão para delegação desta exploração aos particulares, o que, nos termos do artigo 175 da CF, não deixa margens para dúvidas. (XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Regulação e poder de polícia no setor de gás. Disponível em: < xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxx_xxxxxx/xxx_00_00.xxx >. Acesso em 23 jun. 2020.
26 O Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 5549, realizado em 29 de março de 2023, expressamente declara a autorização prevista no artigo 21, XII da Constituição Federal como instrumento de delegação de serviço público, especificamente do transporte internacional e interestadual de passageiro, afastando a incidência do seu artigo 175. A prestação do serviço público no regime de ampla concorrência é reconhecida com mais eficiente e os aspectos qualitativos para preservação do interesse do usuário são assegurados pelos requisitos técnicos para habilitação dos interessados.
Ao poder concedente incumbe, na concessão e permissão, assegurar o cumprimento dos direitos dos usuários, da política tarifária e da obrigação de mantê-los adequados27, o que, neste último caso, equivale a satisfazer “as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”28, com destaque para universalização29. Ou seja, a intervenção estatal nesta atividade é mais intensa, sob o regime de direito público30, enquanto nas demais atividades da cadeia a intervenção se ocupa em ordena-las, apenas conformando a sua exploração pelo particular aos fins que justificam o monopólio.
Como anotam Xxxxxx Xxx Xxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx, a sujeição ao regime de serviço público marca a exploração dos serviços de distribuição canalizada de gás “pelas notas do atendimento individualizado, obrigatório e universalizado dos usuários”31.
A estreita conexão das atividades da cadeia do setor de gás indica a opção do texto constitucional na delimitação conceitual mínima das atividades de transportes e os serviços locais de gás canalizado. Xxxxxx Xxx Xxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx o caracterizam como minimalista ao atribuir à União o “monopólio do transporte de gás natural por meio de conduto” (art. 177, inciso IV) e aos Estados os “serviços locais de gás canalizado” (art. 25, §2º), e defendem que há identidade entre os núcleos dessas atividades, qual seja, a “movimentação dutoviária de gás”32. Os respectivos regimes jurídicos, assim, ficariam a cargo da definição legal33, com competência repartida entre União e Estados.
Como consequência dessa repartição de competências e limitada conceituação das atividades, os autores identificam duas consequências: “a primeira é a convivência entre iniciativas estaduais e federais na matéria; a segunda é a da admissão de possíveis sobreposições entre as múltiplas iniciativas”34. Em sentido oposto à tentativa de conferir limites estanques
27 Art. 175, Parágrafo único, incisos, II, III e IV.
28 §1º do Art. 6º da Lei Federal n.º 8.987/95.
29 Generalidade prevista no §1º do Art. 6º da Lei Federal n.º 8.987/95.
30 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Regulação e poder de polícia no setor de gás. Disponível em: < xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxx_xxxxxx/xxx_00_00.xxx >. Acesso em 23 jun. 2020.
31 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx; XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx de. Interligação de redes estaduais de gás. Belo Horizonte: Fórum, Revista Interesse Público, Ano 17, n.89, p.25-55, jan./fev. 2015 , p.29
32 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx; XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx de. Interligação de redes estaduais de gás. Belo Horizonte: Fórum, Revista Interesse Público, Ano 17, n.89, p.25-55, jan./fev. 2015 , p.28
33 “Ou seja, a legislação, tanto dos estados-membros como da União, é a chave para desdobramentos mais precisos das competências constitucionais. Elas não estão completamente delimitadas a priori.” XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx; XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx de. Interligação de redes estaduais de gás. Belo Horizonte: Fórum, Revista Interesse Público, Ano 17, n.89, p.25-55, jan./fev. 2015 , p.33
34 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx; XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx de. Interligação de redes estaduais de gás. Belo Horizonte: Fórum, Revista Interesse Público, Ano 17, n.89, p.25-55, jan./fev. 2015 , p.31
para o exercício da regulação de cada atividade, portanto, admitem um paralelismo regulatório que em alguma medida se sobrepõe35.
Assim, quanto ao conceito de serviços locais de gás canalizado, a Constituição Federal fornece somente as seguintes delimitações materiais: ser local e prestado por meio canalizado. Portanto,
coloca-se não apenas incorreto, como desbordante dos lindes constitucionais, pretender que aspectos técnicos (pressão, estado físico, tipo de duto) transformem-se em crivos para apartação radical das competências federais e estaduais no setor de gás. É nos quadrantes definidos pelas constituições federal e estadual que deve ser analisada a legislação infraconstitucional. Já se registre, desde logo, o reconhecimento da difícil tarefa do legislador, pois, como afirmei acima, o setor de gás reúne complexidades e imbricações que lhe fazem bastante peculiar36.
Do mesmo modo, do texto constitucional não se extrai delimitações ao conceito de serviço local de gás canalizado como a destinação do gás, se residencial, industrial, comercial, automotivo, e a qualificação do usuário, se final ou não37.
2.2.2) Regime jurídico infraconstitucional. Diretrizes regulatórias previstas na Lei Federal 14.134/21 para os serviços de distribuição
Com a Emenda Constituição n.º 09/95, que permitiu à União contratar com as empresas estatais ou privadas as atividades do setor de gás cujo monopólio lhe foi atribuído, advém a Lei Federal n.º 9.478/97 que dispõe sobre a política energética nacional, sobre o monopólio do petróleo e gás natural e introduz a abertura da sua exploração pela iniciativa privada por meio de concessão ou autorização. Para além da competência material e legislativa do monopólio atribuída à União, a Lei definiu os serviços de distribuição de gás canalizado38, muito embora inseridos na competência do Estados.
35 “Essas duas consequências, contudo, talvez venham passando despercebidas pela doutrina. Esta tem se empenhado em traçar distinções radicais de competências a partir dos termos vagos da Constituição, como se estados e União jamais pudessem ter quaisquer iniciativas paralelas e nalguma medida sobrepostas em matéria de movimentação dutoviária de gás.” XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx; XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx de. Interligação de redes estaduais de gás. Belo Horizonte: Fórum, Revista Interesse Público, Ano 17, n.89, p.25-55, jan./fev. 2015 , p.32 36 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Regulação e poder de polícia no setor de gás. Disponível em: < xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxx_xxxxxx/xxx_00_00.xxx >. Acesso em 23 jun. 2020.
37 XXXXXXXXX, Xxxxxxx. Transporte e distribuição do gás natural no Brasil. Delimitando as fronteiras entre as competências regulatórias federais e estaduais. Revista de Direito da Procuradoria Geral, Rio de Janeiro, 2006, p. 171.
38“Art. 6º.(...)
XXII - Distribuição de Gás Canalizado: serviços locais de comercialização de gás canalizado, junto aos usuários finais, explorados com exclusividade pelos Estados, diretamente ou mediante concessão, nos termos do § 2º do art. 25 da Constituição Federal;”.
A dificuldade regulatória da cadeia do gás advinda da atribuição de competências a entes federativos distintos foi reconhecida na lei ao se atribuir, no artigo 8º, inciso XVIII da Lei n.º 9.478/97 a competência à Agência Nacional do Petróleo (ANP) para “articular-se com órgãos reguladores estaduais e ambientais, objetivando compatibilizar e uniformizar as normas aplicáveis à indústria e aos mercados de gás natural”.
Com a necessidade de desenvolver a indústria do gás, em 2009 foi editada a Lei 11.909, dispondo sobre as atividades relativas ao transporte de gás natural, e sobre as atividades de escoamento, tratamento, processamento, estocagem subterrânea, acondicionamento, liquefação, regaseificação e comercialização de gás natural; que garantisse uma regulação setorial específica para a indústria dessa fonte energética, destacada do petróleo.
Apesar da competência dos Estado para regulação dos serviços de distribuição de gás canalizado, a referida lei disciplinou a forma como o agente livre de mercado, conceito que abrange o consumidor livre, o autoprodutor e o autoimportador, poderia atuar no mercado de gás assegurando direitos à distribuidora estadual. O seu artigo 46, podendo ser considerado como importante diretriz normativa para regulação estadual, estabeleceu as seguintes regras: i) o direito de construir e implantar, diretamente, instalações e dutos para o seu uso específico, caso sua necessidade de movimentação não possa ser atendidas pela distribuidora estadual; ii) para tanto deverá celebrar contrato que atribua a esta a operação e manutenção das instalações e dutos; iii) estes deverão ser incorporados ao patrimônio estadual, após declarados de utilidade pública e pagamento da justa e prévia indenização; iv) pagamento de tarifas de operação e manutenção definidas pelo órgão regulador que deverão observar os princípios da razoabilidade, transparência, publicidade e especificidades de cada instalação; v) pagamento de tarifas que considerem também os custos de investimentos na hipótese de construção e implantação das infraestruturas pelas distribuidoras estaduais; vi) possibilidade de disponibilização da infraestrutura construída e implantada pelo consumidor livre, pelo autoprodutor ou pelo autoimportador a outros usuários quando solicitado pela distribuidora estadual mediante as contrapartidas e sob arbitragem do órgão regulador estadual39.
39 “Art. 46. O consumidor livre, o autoprodutor ou o auto-importador cujas necessidades de movimentação de gás natural não possam ser atendidas pela distribuidora estadual poderão construir e implantar, diretamente, instalações e dutos para o seu uso específico, mediante celebração de contrato que atribua à distribuidora estadual a sua operação e manutenção, devendo as instalações e dutos ser incorporados ao patrimônio estadual mediante declaração de utilidade pública e justa e prévia indenização, quando de sua total utilização.
§ 1o As tarifas de operação e manutenção das instalações serão estabelecidas pelo órgão regulador estadual em observância aos princípios da razoabilidade, transparência, publicidade e às especificidades de cada instalação.
§ 2o Caso as instalações e os dutos sejam construídos e implantados pelas distribuidoras estaduais, as tarifas estabelecidas pelo órgão regulador estadual considerarão os custos de investimento, operação e manutenção, em observância aos princípios da razoabilidade, transparência, publicidade e às especificidades de cada instalação.
Referida lei foi revogada pela Lei 14.134 de 08 de abril de 2021, fruto da revisão do marco regulatório do setor de gás, com debates promovidos no âmbito dos programas “Gás para Crescer” e “Novo Mercado de Gás”, conduzidos pelo Ministério de Minas e Energia, a partir de 2016 e 2019, respectivamente.
A Nova Lei do Gás, como ficou conhecida, com foco na ampliação dos investimentos em infraestrutura essencial, passa a prever o regime de autorização para a outorga da exploração da atividade de transporte e estocagem pelo particular (art. 4º e 2040), excluindo o regime anterior, de concessão (a autorização era prevista para hipótese exclusiva de transporte envolvendo acordos internacionais41).
Também consolida42 medidas para mitigar os efeitos associados à verticalização da cadeia, limitadores da concorrência no setor de gás. Determina em seu artigo 5º a independência e autonomia do transportador no exercício das atividades econômicas que lhe são atribuídas (construção, ampliação, operação e manutenção dos gasodutos de transporte) em relação aos demais agentes econômicos que exerçam atividades submetidas a um regime de concorrência no setor de gás natural. E para garantir essa independência e autonomia o §1º do referido artigo veda que as empresas transportadoras tenham relação societária direta ou indireta de controle ou de coligação com “empresas ou consórcio de empresas que atuem ou exerçam funções nas atividades de exploração, desenvolvimento, produção, importação, carregamento e comercialização de gás natural”, enquanto no §2º tenta coibir que os responsáveis das empresas
§ 3o Caso as instalações de distribuição sejam construídas pelo consumidor livre, pelo autoprodutor ou pelo auto- importador, na forma prevista no caput deste artigo, a distribuidora estadual poderá solicitar-lhes que as instalações sejam dimensionadas de forma a viabilizar o atendimento a outros usuários, negociando com o consumidor livre, o autoprodutor ou o auto-importador as contrapartidas necessárias, sob a arbitragem do órgão regulador estadual.”
40 “Art. 4º A atividade de transporte de gás natural será exercida em regime de autorização, abrangidas a construção, a ampliação, a operação e a manutenção das instalações.
§ 1º A ANP regulará a habilitação dos interessados em exercer a atividade de transporte de gás natural e as condições para a autorização e a transferência de titularidade, observados os requisitos técnicos, econômicos, de proteção ambiental e segurança.
§ 2º A outorga de autorização de atividade de transporte que contemple a construção ou ampliação de gasodutos será precedida de chamada pública, nos termos da regulamentação da ANP.
§ 3º Dependem de prévia autorização da ANP a cisão, a fusão, a transformação, a incorporação, a redução de capital da empresa autorizatária ou a transferência de seu controle societário, sem prejuízo do disposto na Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011.”
“Art. 20. A empresa ou consórcio de empresas constituídos sob as leis brasileiras, com sede e administração no País, poderão receber autorização da ANP para exercer a atividade de estocagem subterrânea de gás natural, e essa atividade deverá ocorrer por conta e risco do interessado.”
41 Art. 3º, §1º da Lei Federal n.º 11.909/09.
42 A verticalização da cadeia do setor de gás, apontada pela racionalidade econômica como óbice à introdução de competitividade e eficiência no setor, já era preocupação da regulação, que, por intermédio da Resolução ANP n.º 27/2005, visando a segregação econômica das atividades, proibiu, em seu artigo 3º, os transportadores de comprar ou vender gás natural em escala comercial, autorizando esta atividade somente aos carregadores42, o que hoje é regulado pelo artigo 12 da Resolução ANP n.º 11/2016 (alterado pela Resolução ANP n.º 794/2019).
que exercem atividades de exploração, desenvolvimento, produção, importação, carregamento e comercialização de gás natural tenham acesso a informações concorrencialmente sensíveis e influência na escolha de dirigentes ou representante legal do transportador.
Há um objetivo de coibir a verticalização da cadeia quando prevê a segregação informacional no caput do artigo 30 da Lei 14.134/21, fixando prazo para adequação de três anos43, que veda
aos responsáveis pela escolha de membros do conselho de administração ou da diretoria ou de representante legal de empresas ou consórcio de empresas que atuem ou exerçam funções nas atividades de exploração, desenvolvimento, produção, importação, carregamento e comercialização de gás natural ter acesso a informações concorrencialmente sensíveis ou exercer o poder para designar ou o direito a voto para eleger membros da diretoria comercial, de suprimento ou representante legal de distribuidora de gás canalizado.
O livre acesso à infraestrutura essencial de transporte é aspecto econômico a ser assegurado compulsoriamente pela ANP44, assim como aos gasodutos de escoamento da produção, às instalações de tratamento ou processamento e terminais de gás natural liquefeito (GNL)45, cabendo à regulação da agência a definição dos parâmetros dessa garantia a terceiros e compatibiliza-la aos interesses do investidor.
43 § 1º O prazo para adequação aos requisitos estabelecidos no caput deste artigo será de 3 (três) anos, contado da publicação desta Lei.
§ 2º O não atendimento ao disposto no § 1º deste artigo sujeitará o infrator às penalidades previstas na legislação.” 44 “Art. 18. A ANP deverá regular e fiscalizar o acesso de terceiros aos gasodutos de transporte e disciplinar a cessão de capacidade mediante a fixação de condições e critérios para sua liberação e contratação.
§ 1º Entende-se por cessão de capacidade a transferência, no todo ou em parte, do direito de utilização da capacidade de transporte contratada.
§ 2º A regulação da ANP deverá estabelecer mecanismos compulsórios de cessão de capacidade cuja necessidade de uso de forma continuada não possa ser comprovada por seus contratantes.
§ 3º A ANP poderá estabelecer, para novos gasodutos que não integrem o sistema de transporte de gás natural, período no qual o acesso não será obrigatório.
45 Art. 28 Fica assegurado o acesso não discriminatório e negociado de terceiros interessados aos gasodutos de escoamento da produção, às instalações de tratamento ou processamento de gás natural e aos terminais de GNL.
§ 1º O proprietário da instalação terá preferência para uso da própria infraestrutura, na forma da regulação da ANP.
§ 2º Os proprietários das instalações relacionadas no caput deste artigo deverão elaborar, em conjunto com os terceiros interessados, observadas as boas práticas da indústria e as diretrizes da ANP, código de conduta e prática de acesso à infraestrutura, bem como assegurar a publicidade e transparência desses documentos.
§ 3º A remuneração a ser paga ao proprietário de gasoduto de escoamento da produção, de instalações de tratamento ou processamento de gás natural e de terminal de GNL pelo terceiro interessado, bem como o prazo de duração do instrumento contratual, serão objeto de acordo entre as partes, com base em critérios objetivos, previamente definidos e divulgados na forma do código de conduta e prática de acesso à infraestrutura de que trata o § 2º deste artigo.
§ 4º Na eventualidade de controvérsia sobre o disposto nesse artigo, caberá à ANP decidir sobre a matéria, considerado o código de conduta e prática de acesso à infraestrutura de que trata o § 2º deste artigo, ressalvada a possibilidade de as partes, de comum acordo, elegerem outro meio de resolução de disputas legalmente admitido no Brasil.
§ 5º O acesso de terceiros a terminal de GNL situado em instalação portuária deverá observar as regulações setoriais pertinentes.
Como consequência da interdependência das atividades que integram a indústria de rede, a expansão da infraestrutura de transporte e a previsão de medidas que visam coibir a verticalização e garantam o livre acesso têm capacidade de gerar efeitos ampliativos em toda a cadeia.
Quanto aos serviços locais de gás canalizado, a Lei 14.134/21 faz inserir no rol do artigo 3º (inciso XVII) a definição de distribuição de gás canalizado, prestado “consoante o disposto no §2º do art. 25 da Constituição Federal”. Não traz, assim, novos elementos conceituais para compreensão pelo intérprete quanto ao alcance da expressão “serviços locais de gás canalizado”, somente que nele se compreende a distribuição.
Muito embora a competência para legislar sobre referidos serviços não tenha sido atribuída à União, mas sim aos Estados, a Nova Lei do Gás, seguindo a norma que revoga, em seu artigo 29 regula a relação do consumidor livre, autoprodutor e autoimportador com as distribuidoras. Após ratificar a competência da prestação do serviço de distribuição pelos Estados a essa categoria de usuários, dispõe sobre a incorporação da infraestrutura do ramal dedicado ao patrimônio estadual mediante a justa e prévia indenização, sobre as tarifas de operação e manutenção devidas à concessionária, que também deverão considerar os custos de investimentos na hipótese em que a distribuidora estadual for responsável pela construção e implantação das instalações e dutos. Esses temas estão associados exclusivamente ao serviço de distribuição. O contrato de concessão objeto do presente estudo não seguiu, contudo, integralmente as diretrizes da norma federal, como será visto adiante.
Já a comercialização, no artigo 31, recebeu maior detalhamento, ampliando a competência da ANP, antes limitada ao registro dos contratos, o que agora também pode ser feito por entidade habilitada pela agência. Essa passa a ser responsável pela outorga da autorização para o exercício da atividade, estabelecerá o conteúdo mínimo dos contratos, padronizando-os. Quanto ao conteúdo desses, a lei expressamente veda cláusulas prejudiciais à concorrência e determina a previsão de mecanismos de resolução de controvérsias46.
46 Art. 31. A comercialização de gás natural dar-se-á mediante a celebração de contratos de compra e venda de gás natural, registrados na ANP ou em entidade por ela habilitada, nos termos de sua regulação, ressalvada a venda de gás natural pelas distribuidoras de gás canalizado aos respectivos consumidores cativos.
§ 1º A ANP deverá estabelecer o conteúdo mínimo dos contratos de comercialização, bem como a vedação a cláusulas que prejudiquem a concorrência.
§ 2º Poderão exercer a atividade de comercialização de gás natural, por sua conta e risco, mediante autorização outorgada pela ANP, as distribuidoras de gás canalizado, os consumidores livres, os produtores, os autoprodutores, os importadores, os autoimportadores e os comercializadores.
§ 3º Não está sujeita a autorização da ANP a venda de gás natural, pelas distribuidoras de gás canalizado, aos respectivos consumidores cativos.
§ 4º A comercialização de gás natural no mercado organizado de gás natural deve ser efetuada por meio de contratos de compra e venda padronizados, nos termos da regulação da ANP.
As distribuidoras de gás canalizado só estarão dispensadas do cumprimento da regulação aplicável à atividade de comercialização nas hipóteses em que vendem o gás aos seus consumidores cativos.
Essa é uma inovação regulatória que representa avanço à implantação de medidas voltadas a impulsionar a concorrência na atividade de comercialização. Muito embora ainda dependente da regulamentação da ANP, do que será definido nesse conteúdo mínimo e padronizado dos contratos, reforça a titularidade da União na regulamentação da comercialização e fixa limite à regulação estadual em conferir exclusividade às distribuidoras para exploração da atividade em todos os mercados.
2.2.3) A regulação pelos Estados dos serviços de distribuição de gás canalizado
Apesar de a Constituição Federal outorgar aos Estados a competência para prestarem os serviços locais de gás canalizado nos termos da lei, a competência legislativa, quando exercida, foi de forma tímida, com previsão, na maioria dos casos, nas Constituições Estaduais. Essas, quando se ocupam em dispor sobre os referidos serviços, limitam-se a reproduzir o disposto no artigo 25, §2º da Constituição Federal. É a situação dos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Bahia, Rio Grande do Norte, Piauí, Goiás, Amazonas e Tocantins. As Constituições dos Estados de Sergipe, Alagoas e Maranhão reproduzem a redação original da Constituição Federal, que autorizava a concessão somente à empresa estatal. Já as Constituições Estaduais da Paraíba, Mato Groso, Mato Grosso do Sul, Amapá, Acre, Rondônia, Roraima e Pará, assim como a do Espírito Santo, nada dispõem sobre os referidos serviços de sua titularidade.
Os Estados de São Paulo, Pernambuco e Ceará exerceram a sua competência legislativa conferida pela Constituição Federal para além da reprodução automática e definiram os serviços locais de gás canalizado como aqueles prestados “em seu território, incluído o fornecimento direto a partir de gasodutos de transporte, de maneira a atender às necessidades dos setores industrial, domiciliar, comercial, automotivo e outros”47. A Constituição do Estado do Rio de
§ 5º Os contratos de comercialização de gás natural deverão conter cláusula para resolução de eventuais divergências, podendo, inclusive, prever a convenção de arbitragem, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996.
§ 6º As empresas públicas e as sociedades de economia mista, suas subsidiárias ou controladas, titulares de concessão ou autorização ficam autorizadas a aderir ao mecanismo e à convenção de arbitragem a que se refere o
§ 5º deste artigo.
47 Art. 122, parágrafo único da Constituição do Estado de São Paulo; art. 248, parágrafo único da Constituição do Estado de Pernambuco; e art. 21 da Constituição do Estado do Ceará.
Janeiro originalmente continha disposição similar, mas teve seu artigo 72, §2º alterado pela Emenda Constitucional n.º 53/2012 para apenas reproduzir o texto da Constituição Federal.
Como em todo setor de infraestrutura, o associado ao gás reclama por um arcabouço regulatório representativo de segurança jurídica, apto a impulsionar os investimentos e a concorrência, ampliando a oferta e qualidade dos serviços.
Conforme dados apresentados em relatório publicado pela FGV/CERI produzido em conjunto com o Banco Mundial, o retrato de uma indústria do gás integrada verticalmente e sem amparo em um ambiente regulatório e desenvolvido se mantém durante a vigência da Lei Federal 11.909/09, muito embora sua edição representasse uma tentativa de promover reforma no setor e introduzir concorrência. Produzido durante os debates incentivados pelo Ministério de Minas e Energia por meio do Programa Gás para Crescer, aquele documento aponta sete temas prioritários para enfrentamento na regulação do setor. Dentre esses, destaca-se, haja vista o foco do presente trabalho, a “clareza sobre a divisão de competências entre a União e os Estados”48.
A regulação do setor de gás é, como reconhece Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx, uma das mais complexas dentre os setores de infraestruturas, sendo um dos seus complicadores a convivência de “incidências regulatórias de dois entes federativos distintos”49.
Em 14 de junho de 2019, o Conselho Nacional de Política Energética editou a Resolução n.º 16 onde foram estabelecidas diretrizes e aperfeiçoamentos de políticas energéticas voltadas à promoção da livre concorrência no mercado de gás natural. Em seu artigo 2º prevê uma transição coordenada para o mercado concorrencial de gás natural mediante a consecução de algumas medidas, dentre elas a de
VII - incentivar a adoção voluntária, pelos Estados e o Distrito Federal, de boas práticas regulatórias relacionadas à prestação dos serviços locais de gás canalizado, que contribuam para a efetiva liberalização do mercado, o aumento da transparência e da eficiência, e a precificação adequada no fornecimento de gás natural por segmento de usuários.
48 “Para que a reforma seja capaz de gerar um mercado de gás natural, ao menos sete temas prioritários devem ser superados no desenho do novo modelo e em sua implementação pela regulação setorial, para que o setor seja efetivo de fato: (i) acesso à infraestrutura upstream e de transporte; (ii) melhor alocação da capacidade de transporte existente; (iii) efetiva abertura do mercado; (iv) clareza sobre a divisão de competências entre a União e os Estados; (v) implementação de melhorias nos processos de determinação tarifária; (vi) avanço na regulação das condições de compra de gás pelas distribuidoras; e
(vii) estabelecimento de agenda conjunta entre os órgãos de regulação setorial e a autoridade antitruste nacional. FGV CERI (Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx). Desenvolvimento de um mercado de gás no Brasil. Disponível em: < xxxxx://xxxx.xxx.xx/xxxxx/xxxxxxx/xxxxx/xxxxxxxxxxx/0000-00/00_00_xxxxxxxxxxxxxxx-xx-xx-xxxxxxx-xx-xxx-xx- brasil.pdf >. Acesso em 01 mar. 2021.
49 Para o autor XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Regulação e poder de polícia no setor de gás. Disponível em: < xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxx_xxxxxx/xxx_00_00.xxx >. Acesso em 23 jun. 2020.
No artigo 5º, recomenda ao Ministério de Minas e Energia e ao da Economia incentivarem os Estados e Distrito Federal a adotarem uma série de boas práticas regulatórias recomendadas, por sua vez, pela ANP50. Dentre essas, destaca-se a regulação dos consumidores livres, autoprodutores e autoimportadores, criação e autonomia da agência reguladora e privatização da concessionária estadual.
Muito embora reconhecida a autonomia dos Estados para legislarem livremente sobre os serviços locais de gás canalizado, a sua inserção na indústria de rede associada a essa fonte de energia legitima a política da União em incentivar a adoção pelos Estados de práticas regulatórias, ainda que não uniformes, que criem condições para o desenvolvimento do mercado livre e que adotem política tarifária capaz de incentivar os investimentos e operação eficientes. Seguiram essa política, dando cumprimento ao texto do artigo 25, §2º da Constituição Federal, que atribui aos Estados a exploração dos serviços locais de gás canalizado na forma da lei, somente os Estados da Paraíba, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Ceará e Espírito Santo, os
quais, recentemente, após a publicação da Lei 14.134/21, editaram leis regulamentando-os.
Nesse cenário, no âmbito dos Estados predomina a regulação por decretos, resoluções das agências e disposições contratuais. Ou seja, a regulação é mais instável, suscetível a ingerências, sem vínculos com diretrizes obrigatórias consolidadas em lei.
A segurança jurídica é fator importante para tomada de decisão de investimento, mas ganha maior relevo em projetos de infraestrutura com custos elevados e afundados. A
50 Art. 5º Recomendar que o Ministério de Minas e Energia e o Ministério da Economia incentivem os Estados e o Distrito Federal a adotarem as seguintes medidas
I - reformas e medidas estruturantes na prestação de serviço de gás canalizado, incluído eventual aditivo aos contratos de concessão, de forma a refletir boas práticas regulatórias, recomendadas pela ANP, que incluem:
a) princípios regulatórios para os Consumidores Livres, Autoprodutores e Autoimportadores;
b) transparência do teor dos contratos de compra e venda de gás natural para atendimento do mercado cativo;
c) aquisição de gás natural pelas distribuidoras estaduais de forma transparente e que permita ampla participação de todos os ofertantes;
d) transparência na metodologia de cálculo tarifário e na definição dos componentes da tarifa;
e) adoção de metodologia tarifária que dê os corretos incentivos econômicos aos investimentos e à operação eficiente das redes;
f) efetiva separação entre as atividades de comercialização e de prestação de serviços de rede; e
g) estrutura tarifária proporcional a utilização dos serviços de distribuição, por segmento de usuários;
II - criação ou manutenção de agência reguladora autônoma, com requisitos mínimos de governança, transparência e rito decisório;
III - privatização da concessionária estadual de serviço local de gás canalizado; e
IV - adesão a ajustes tributários necessários à abertura do mercado de gás natural discutidas no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ, a exemplo do Ajuste do Sistema Nacional Integrado de Informações Econômico-Fiscais - SINIEF nº 03/18, de 3 de abril de 2018.
§ 1º Na privatização de que trata o inciso III, incentiva-se que os Estados e Distrito Federal avaliem a oportunidade e conveniência de definição de novo contrato de concessão, que considere as diretrizes que trata o inciso I.
§ 2º Recomendar ao Ministério de Minas e Energia, ao Ministério da Economia, à ANP e à Empresa de Pesquisa Energética - EPE que se articulem para promover o apoio de treinamento e capacitação das agências reguladoras estaduais nas matérias de que trata os incisos I e II.
estabilidade das normas e institucional e a atuação independente e tecnicamente capacitada do órgão regulador são capazes de gerar confiança nos agentes de mercado quanto ao acesso competitivo ao gás na forma canalizada, com especial relevo para a viabilidade do mercado livre51.
A regulação difusa pelos Estados é objeto de críticas, defendendo-se uma uniformidade, apontando-se a competência constitucional e os atributos de serviço público como óbice à expansão das atividades associadas à exploração do gás. No entanto, as características da cadeia demonstradas nesse capítulo, a interdependência das atividades, os efeitos restritivos à competitividade advindos da verticalização que posicionou a Petrobras S/A de forma dominante na cadeia são fatores que tornam a regulação dos serviços locais de gás canalizado incapaz de, isoladamente, por meio dos incentivos eleitos, efetivar a ampliação do mercado e da concorrência.
À União, por intermédio da ANP, cabe a implementação de “incentivos corretos à expansão da oferta de gás, por meio do ingresso de novos produtores e importadores”52, e definição de critérios que permitam a maior participação de fornecedores no mercado, competência atribuída à ANP53.
Todavia, os incentivos e melhoria regulatória demandados para ampliação da oferta nas outras atividades da cadeia são imprescindíveis na regulação dos serviços locais de gás canalizado, último elo da cadeia, que conecta toda a rede ao consumidor final. Devem dialogar com critérios técnicos, econômicos, de mercado e jurídicos das atividades de produção, transporte e comercialização e serem conformados aos princípios e normas do regime jurídico de direito público incidente sobre referidos serviços, condicionantes das opções do regulador estadual.
O uso eficiente da infraestrutura da distribuição, a mitigação dos efeitos do monopólio natural, a sua essencialidade para cadeia e a garantia de acesso aos usuários livres deverão ser objetivos que não poderão colidir com a persecução da prestação adequada do serviço público a todas as categorias de usuários, buscando-se efetivar os seus atributos.
A autonomia dos Estados para regulação dos serviços locais de gás canalizado pode ser compatível com a adesão às diretrizes normativas advindas da União que visem conferir
51 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx. O regime jurídico do consumidor livre de gás natural e energia elétrica. p.289
52 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx. O regime jurídico do consumidor livre de gás natural e energia elétrica. p.286
53 Nesse sentido a coluna de Xxxxxxx Xxxxx no jornal O Estado de São Paulo, com o título Atraso pela ANP na regulamentação impediu a entrada de novos fornecedores de gás no País. Disponível em: < xxxxx://xxxxxxxx.xxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxx,xxxxxx-xxxx-xxx-xx-xxxxxxxxxxxxxx-xxxxxxx-x-xxxxxxx-xx-xxxxx- fornecedores-de-gas-no-pais,70003944716 >. Acesso em 08 fev. 2022
unidade regulatória à cadeia, sobretudo quanto ao mercado livre de gás canalizado, dependente de uma multiplicidade de agentes para desenvolver, observadas as realidades de cada unidade da Federação.
O novo contrato de concessão de serviços locais de gás canalizado celebrado pelo Estado do Espírito Santo e a regulação setorial que o sucede se apresentam como objeto de investigação adequado para compreender o desafio da regulação estadual no enfretamento dessas questões. A sua sistematização e análise das principais inovações, com especial atenção para o mercado livre, permitem identificar avanços e desafios ainda não superados pela regulação, a serem tratados nos capítulos seguintes.
3) REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS LOCAIS DE GÁS CANALIZADO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO
O contrato de concessão celebrado em julho de 2020, caso objeto do presente estudo, como demonstrado, é o impulso inicial às inovações introduzidas no arcabouço normativo do Estado do Espírito Santo regente dos aspectos setoriais dos serviços públicos locais de gás canalizado54. A regulação contratual é protagonista, força motriz da regulação discricionária e legislativa que lhe sobrevém.
Voltando ao tema da segurança jurídica que deve ser o fim perseguido pelo regime jurídico para exploração dos serviços públicos instituído, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx adverte que
a relevância social e a magnitude dos investimentos dos serviços públicos exigem segurança jurídica reforçada – tanto para os investidores quanto para o Poder Público e usuários. A solidez institucional e a consistência na execução dos contratos concedidos pode implicar melhores serviços, menores tarifas e lucros razoáveis55.
Essa exigência é o que guiará a análise das regras setoriais aplicáveis aos serviços locais de gás canalizado no âmbito do Estado do Espírito Santo, que, neste capítulo, propõe-se sistematizar, investigar seus avanços e desafios, o nível de estabilidade que assegura aos envolvidos, com especial atenção para o mercado livre de gás canalizado.
3.1) A normatividade contratual da concessão
O monopólio estatal da prestação do serviço público não destaca dessa atividade o seu caráter econômico e interesse de exploração pelos particulares, que pode se apresentar como um meio mais eficaz para o Estado atingir os fins subjacentes a essa titularidade constitucionalmente conferida. A concessão é um dos instrumentos56 para acomodação convergente desses interesses, onde as vontades das partes são estabilizadas em normas a que se sujeitarão para consecução do objeto, a finalidade pública a ser concretizada. Esse objeto é a prestação material de uma atividade pelo particular em substituição ao Estado que deverá ser usufruída por uma coletividade.
54 A Resolução ASPE 05/2007 ainda aplicável aos serviços locais de gás canalizado dispõe sobre condições gerais para sua prestação aos usuários, sem disciplinar a relação da concessionária com outros agentes da cadeia e o mercado livre.
55 Direito das concessões de serviço público. 2º ed. Belo Horizonte: Forum, 2022, p.33.
56 O artigo 175 da Constituição Federal também prevê o regime de permissão para prestação dos serviços públicos pelo privado.
As regras da concessão não se limitam a instituir uma relação jurídica bilateral, de direitos e obrigações entre poder concedente e concessionária, mas espraiam seus efeitos sobre terceiros, como os usuários, definindo o modo de prestação do serviço público com vista a sua adequação. A elas também se sujeitam a agência reguladora, atribuindo-lhe competências de fiscalização, gestão, e regulamentação suplementar57. Esse é o caráter normativo, regulatório da concessão, que Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxx aponta:
o pacto concessório estabelece um plexo de normas que regem, ao longo da sua vigência, a relação entre as partes e entre estas e terceiros que se relacionem em torno do objeto concedido. Daí o caráter regulamentar da concessão, transcendente do mero vínculo bilateral. (...) A normatividade presente na concessão colhe todas as suas cláusulas e disciplina o relacionamento entre concedente, concessionário e terceiros ao longo de todo o prazo de outorga58.
O autor destaca a primazia da normatividade do contrato de concessão em relação às normas legais. Sustenta ser inviável a regulação integral ou predominante do instituto pela lei, qualificada como “concessão estatutária”, pois o seu caráter geral e abstrato não alcançaria as especificidades de cada objeto delegado, e a sua estabilidade é diametralmente oposta ao caráter dinâmico da concessão59. É assertivo quando afirma ser possível a concessão não pressuposta em leis, mas inviável a dispensa de normas contratuais a regê-la60.
A normatividade contratual da concessão será mais ou menos intensa, conforme as opções do poder concedente definidas em suas cláusulas, a segurança jurídica suficiente para atrair os investimentos. Será medida, também, pelo papel do regulador em substituição ao mercado, em especial quando a infraestrutura associada à exploração do serviço público é economicamente eficiente em regime de monopólio natural, a demandar previsão de incentivos
57 “Enfim, quando se fala em concessão de serviço público descreve-se o conjunto de relações intersubjetivas as quais estabelecem direitos, deveres e obrigações entre os sujeitos a elas vinculados. Está-se diante de séries de relações complexas, múltiplas e polimorfas – a gerar as respectivas posições jurídicas. Numa perspectiva simplificadora, basta dizer que os deveres, prerrogativas e direitos do concedente correspondem a direitos, sujeições, deveres e obrigações do concessionário – que, ao seu tempo, desenvolve outros tantos frente aos usuários. Mas pense-se, agora, nos terceiros, públicos e privados (reguladores, financiadores, acionistas, empreiteiros, cidadãos etc.) – com o que se pode ter uma ideia da multilateralidade das relações jurídicas postas.” (XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Direito das concessões de serviço público. 2º ed. Belo Horizonte: Forum, 2022, p.274)
58 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Concessões. p.152.
59 “...total inviabilidade de se cogitar de uma concessão estatutária, ou seja, de manifestações do instituto que sejam disciplinadas exclusiva ou predominantemente por norma legal. Tal pretensão, além de incompatível com o paradigma multipolar aqui exposto, padece de suas inviabilidades a priori: (i) o pacto concessório é sempre dependente da peculiaridade do objeto delegado e dos interesses por ele alcançados; não pode prescindir de mediações e especificações que jamais poderiam se captadas pelos comandos gerais e abstratos próprios à lei; (ii) o pacto concessório é necessariamente dinâmico, envolve uma delegação de atribuições de largo prazo, e tal dinamismo é contraditório com a rigidez e a estabilidade inerentes aos comandos legais.” XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Concessões. p. 387.
60 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Concessões. p. 387.
ao concessionário e mecanismos para garantir que a eficiência se dê também em proveito dos usuários61.
As normas contratuais conformam as opções do poder concedente que condicionarão a exploração do serviço público pelo privado, como já anotado, define as competências administrativas exigidas quando o Estado se afasta da prestação material do serviço público, dentre elas a de fiscalização, gestão e em especial a regulatória advinda dos espaços conferidos pela incompletude contratual.
Essa conformação contratual das opções regulatórias pelo poder concedente limita a regulação discricionária62 pelas agências. Por outro lado, em decorrência da incompletude natural dos contratos de concessão tem-se um “amplo espectro de atuação” da função que denomina “secundária regulatória” das agências, porque derivada da regulação contratual63.
Entretanto, a especialização das agências no setor regulado, a experiência que vai adquirindo com as competências de fiscalização, de integração das lacunas contratuais, de interpretar as suas normas para solucionar conflitos, conferem-nas expertise. Essa especialização também advém da competência, a muitas atribuídas, de definir a estruturação da parceria em seu mais amplo aspecto, na modelagem econômica da exploração da atividade e o direcionamento do privado para a consecução dos fins públicos almejados, ou seja, definir as opções regulatórias contratuais64. Ainda que sob alguma diretriz do poder concedente, exercem influência direta na regulação contratual.
Exemplo dessa atuação da agência ocorreu na estruturação do atual contrato de concessão dos serviços locais de gás canalizado celebrado pelo Estado do Espírito Santo. A despeito de a Lei da ARSP não prever essa competência, para o caso concreto, a Lei Estadual 10.493/201665 expressamente a outorgou.
61 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Concessões, parcerias e regulação. 2019, p. 137.
62 A abrangência da regulação tratada no presente tópico não se limita à dicotomia regulação discricionária e contratual utilizada para abordagem de regulação de tarifas, mas alcança todas as normas incidentes na relação concessória, tanto aquelas que regulam a prestação do serviço público em todos os seus aspectos, como para garantir a universalidade, regularidade, continuidade, eficiência, atualidade e modicidade tarifária, como também a preservação do retorno dos investimentos da concessionária definidos no seu plano de negócios ofertado na licitação.
63 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Concessões, parcerias e regulação. 2019, p. 155.
64Exemplo de agências reguladoras que têm competência para estruturar as concessões: Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC (Lei Federal n.º 11.182/2005, artigo 8º, inciso XXIV), Agência Nacional de Transporte Rodoviário – ANTT (Lei Federal n.º 10.233/2001, artigo 22, inciso V e artigo 26, VI, §2º), Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados de Transporte do estado de São Paulo - ARTESP (Lei Complementar Estadual n.º 914/2002, artigo 4º, inciso III e IV).
65 “Art. 4º As atividades necessárias para concepção modelagem da licitação e estabelecimento dos valores mínimos correspondentes à celebração de um novo contrato de concessão caberão à ASPE, que para tanto poderá contratar serviços especializados de terceiros”.
Ainda que a regulação setorial dos serviços locais de gás canalizado não esteja conformada na lei e nas cláusulas do contrato de concessão, é com fundamento nele, ainda antes da sua formalização, e a partir das escolhas do poder concedente nele estabilizadas, inclusive de regulação do mercado livre de gás canalizado, que se inicia o seu processo de inovação e atualização, conforme sistematização e análise que se propõe no presente trabalho.
3.2) Definições regulatórias previstas na Lei Estadual 10.955/18
A busca por segurança jurídica para celebração do acordo e solução das contendas judiciais originárias da extinção do contrato de concessão a partir da sua nulidade declarada, conforme narrado na introdução, orientou o Estado do Espírito Santo a editar a Lei n.º 10.955/2018. Dentre suas principais disposições, autorizou a criação da sociedade de economia de mista, a ES GÁS, e a ser-lhe outorgada a exploração dos serviços locais de gás canalizado. Estabiliza com maior rigidez algumas diretrizes regulatórias para modelagem do futuro contrato, em especial as de natureza econômico-financeira, definidas pelo Estado e Petrobras Distribuidora S/A em instrumento compromissório que firmaram66. É um ato normativo, portanto, de efeitos concretos.
A Lei Estadual n.º 10.955/2018, centrada no contrato de concessão a ser celebrado posteriormente a sua edição, inicia a reversão da posição do Estado do Espírito Santo de uma tímida disciplina normativa quanto aos serviços locais de gás canalizado de sua titularidade, sem tratamento sequer em sua Constituição, para posição entre os Estados em que há uma regulamentação mais analítica67.
3.2.1) A definição dos serviços locais de gás canalizado
A Lei 10.955/2018, para além dos efeitos concretos de autorização de criação de empresa estatal e definição regulatória aplicável à concessão a ser-lhe outorgada, traz alguns elementos para conceituação dos serviços de gás canalizado ao prever, no seu artigo 2º, como objetivo da ES GÁS a
a exploração dos serviços de gás canalizado e demais atividades correlatas e afins, para a utilização por todo o segmento do mercado consumidor, seja como matéria-
66 Instrumento de compromisso condicional para constituição de sociedade de economia mista para distribuição de gás natural canalizado. Processo Administrativo ARSP n.º 81781199.
67 A única referência legislativa aos serviços locais de gás canalizado era a prevista na Lei Complementar Estadual n.º 827/16 que em seu artigo 8º elenca os serviços públicos regulados pela ARSP, entre eles o gás natural, definido inciso III: “serviços de fornecimento, distribuição e demais condições de atendimento aos usuários”.
prima, seja para geração de energia ou outras finalidades e usos possibilitados pelos avanços tecnológicos.
É a representação, portanto, do exercício, pelo Estado, da competência material atribuída pela Constituição Federal em seu artigo 25, §2º. Disciplina e incorpora ao conceito de serviços locais de gás canalizado outros elementos, dentre eles, a impossibilidade de excluir qualquer consumidor que usufrua do serviço, independentemente do tipo de atividade a que esse se destine, ainda que surja posteriormente à lei. Qualquer que seja o segmento do mercado a que destinado o gás canalizado, quer como matéria, geração de energia e finalidades que venham a surgir com os avanços tecnológicos, será atendido pelo serviço público local de titularidade do Estado.
A previsão genérica de “outras finalidades”, contudo, faz o intérprete retomar ao texto constitucional, e, portanto, nelas admitir somente aquelas que compreendem o destinatário final do gás, independente da sua natureza, distribuído por meio de dutos e de forma ramificada no território do Estado do Espírito Santo.
Esse detalhamento legislativo tem correlação com a controvérsia experimentada pela regulação no conflito entre a ARSP e Petrobras Distribuidora S/A, envolvendo a interpretação das cláusulas do contrato extinto. Havia discordância quanto à competência regulatória da agência incidir sobre o serviço de distribuição gás canalizado prestado às termoelétricas contestada pela concessionária que pretendia a exclusão dos resultados financeiros originários desta atividade para fins de modicidade tarifária68, como vinha procedendo, a Agência, amparada na Resolução ASPE n.º 001/2013.
A relevância dessa delimitação para regulação setorial dos serviços é acentuada no julgamento da Reclamação n.º 4.210/SP, oportunidade em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de conflito federativo, e, portanto, a sua competência para julgar a controvérsia judicial entre a União e o Estado de São Paulo envolvendo a disciplina da distribuição de gás canalizado fornecido diretamente, por meio de gasodutos de transportes, ao segmento industrial. Os pronunciamentos proferidos na referida ação, ainda que não tenham decidido o mérito quanto à competência para regulamentação dos serviços69, trazem
68 Controvérsia relatada no “Instrumento de compromisso condicional”, nas considerações 60 a 64.
69 A Reclamação 4210/SP foi julgada procedente e avocada para julgamento pelo Supremo Tribunal Federal a ação ordinária n.º 2005.61.00.029794-9, em trâmite perante a 11ª Vara Federal da Seção Judiciária de São Paulo em que a ANP e União questionam a validade jurídica da Portaria CESPE 397/05 e pretendem tutela jurisdicional e inibitória para impedir o Estado de São Paulo e a referida agência de prestar e regular o serviço de distribuição à empresa White Martins, o que era objeto da parceria comercial denominada “Projeto Gemini”, que incluía o fornecimento de gás diretamente pela Petrobras à referida empresa, mediante ramal do gasoduto Brasil-Bolívia. Aquela empresa, por sua vez, transformaria o gás natural em liquefeito – GNL a ser comercializado pela Gemini Comercialização e Logística de Gás.
fundamentos para afastar qualquer influência do segmento a que destinado o gás para configuração do serviço local70.
O artigo 2º da Lei 10.955/2018 também não faz referência à distribuição, termo também suprimido do artigo 25, §2º da Constituição Federal, o que permite incluir outros serviços, desde que locais, referentes ao gás canalizado, na competência material do Estado.
Com edição da Lei n.º 10.955/2018, e o disposto no seu artigo 2º, o Estado do Espírito Santo acompanha os Estados de São Paulo, Alagoas, Pernambuco, Ceará, Amazonas, ao explicitar que os serviços locais de gás canalizado são aqueles prestados a todo destinatário final, independente do segmento.
3.2.2) A regulação da concessão. Definição em lei das práticas regulatórias voltadas à exploração eficiente da concessão
A outorga da concessão dos serviços locais de gás canalizado à ES GÁS foi determinada no artigo 14 da Lei n.º 10.955/2018, que estabeleceu a extensão da concessão (todo o território estadual), o seu prazo de vigência, de 25 (vinte e cinco) anos, sem previsão de renovação e garantiu a exclusividade (monopólio) na exploração dos serviços.
A Lei estabelece as seguintes práticas regulatórias a serem obrigatoriamente adotadas no contrato (§2º), quais sejam: i) metodologia de price cap; ii) prévia aprovação do plano de investimentos pela agência reguladora; iii) incentivo a conversões de equipamentos e instalações ao uso do gás natural nos segmentos residencial e comercial; iv) revisões tarifárias periódicas com ciclos definidos em 5 (cinco) anos; v) cálculo da tarifa devendo considerar os gastos eficientes da concessão, a depreciação dos investimentos em serviços e amortização da outorga; vi) proibição de remuneração sobre os custos; vii) adoção da metodologia WACC para remuneração; viii) acréscimo dos valores relativos ao WACC sobre as obras durante o período de construção; ix) definição na lei do percentual referente ao WACC para o primeiro ciclo tarifário (9,96%); x) vinculação dos valores de depreciação e amortização ao previsto na legislação fiscal vigente a ser observado no fluxo de caixa livre da concessão; xi) previsão de metodologia de reequilíbrio econômico-financeiro e matriz de riscos da concessão; xii)
70 “De se notar que para a configuração do serviço local, são irrelevantes a espécie de destinação (uso próprio ou resfriamento e comercialização) e a quantidade adquirida (industrial ou residencial)”. Ministra Carmem Xxxxx, na decisão liminar proferida. O Ministro Relator Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx em sua fundamentação afirma que o “ato normativo emanado de agência reguladora controlada pelo Estado de São Paulo, em nada conflita com o monopólio da União, revelado no art. 177, IV, do mesmo diploma, correspondente ao “transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem”, ao menos a partir do exame que se pode fazer dentro dos estreitos limites probatórios desta ação constitucional”.
definição do critérios de cobrança de outorga pelo Estado em patamar que não prejudique a economicidade tarifária71.
Alguns desses temas, a exemplo da revisão tarifária periódica, metodologia de remuneração e de definição de depreciação e amortização, a definição do percentual de WACC, em substância, correspondem às cláusulas econômicas da concessão, aquelas convencionadas pelas partes, e, portanto, de caráter contratual72. A previsão em ato normativo não lhes altera a natureza. Em verdade, altera o caráter geral e abstrato da norma ao consolidar a modelagem econômico-financeira construída entre o Estado e Petrobras Distribuidora S/A para pôr fim ao litígio, solucionando, sobretudo, o meio de indenização à concessionária anterior.
O efeito concreto da norma é explícito quando o §2º do artigo 14 dispõe que “o contrato de concessão deverá adotar as seguintes práticas de regulação” está a se referir a um contrato individualmente identificado, o mencionado no caput do artigo 14, cujo objeto é a outorga da exploração dos serviços especificamente à ES GÁS.
Mas outras práticas regulatórias definidas, conquanto reflitam na remuneração da concessionária, alinham-se a incentivos para garantir que os serviços locais de gás canalizado sejam prestados com eficiência, a exemplo da aprovação do plano de investimentos, cálculo da tarifa que considere os gastos eficientes e proibição de remuneração sobre os custos. Representam, portanto, medidas para satisfação do serviço público adequado, conceito que traz a eficiência como um de seus atributos, o que lhes confere natureza regulamentar do objeto da concessão.
Ainda que com efeito concreto à concessão especificamente autorizado pela Lei, a estabilização dessas disposições tem aptidão de subtraí-las do âmbito da regulação discricionária da agência. Durante todo o prazo da concessão, (fixado em 25 anos), quaisquer atos regulamentares a serem editados pelo regulador deverão se ater à eficiência como um atributo indissociável da sua modelagem econômico-financeira.
Apesar de não corresponderem à regulação setorial específica, a adoção em lei do preço teto da tarifa como incentivo à redução dos custos, a prévia aprovação do plano de investimentos e a proibição de a concessionária ser remunerada pelos custos são diretrizes imutáveis na regulação, quer contratual quer discricionária, dos serviços locais de gás canalizado. Seus efeitos se estenderão para vincular poder concedente e agência na tomada de
71 Art. 14, §2º.
72 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx. Contrato administrativo. São Paulo: Xxxxxxxx Xxxxx, 0000, p. 280 e 283.
decisão sobre temas que reflitam na eficácia dessas diretrizes, que não poderão ser suprimidas, pois foram eleitas pelo legislador para efetivar a eficiência do serviço público.
Nesse raciocínio, os espaços de atuação discricionária conferidos pelo contrato de concessão à agência de regulação estarão conformados pelos parâmetros regulatórios legais de eficiência. É o que ocorrerá no procedimento de alteração da fórmula definida contratualmente para cálculo da margem média de distribuição, hipótese prevista no contrato caso identificado algum elemento novo para sua composição ou modificação de algum que nela já conste73. Essa alteração não poderá suprimir incentivos para a aplicação eficientes dos recursos e nem admitir que a concessionária seja remunerada pelo custo do serviço.
Os contratos de concessão dos serviços locais de gás canalizado nos Estados em que celebrados com sociedade de economia mista estaduais preveem a revisão tarifária periódica por custo do serviço, modelo regulatório econômico que não transfere riscos à concessionária, que tem garantido o retorno do investimento, independente da qualidade e eficiência na prestação dos serviços74. O novo contrato de concessão celebrado pelo Estado do Espírito Santo, ainda que celebrado com uma empresa estatal criada para essa finalidade, por vinculação legal, transmuda a posição do referido ente para o reduzido rol daqueles Estados cujos contratos atrelam a remuneração da concessionária aos custos eficientes.
Os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, ao tempo da celebração do contrato de concessão do Estado do Espírito Santo, há muito já haviam privatizado suas companhias estaduais, oportunidade em que alteraram o modelo tarifário para preço-teto o que impulsionou o investimento em expansão de rede75. Como a modelagem do contrato de concessão objeto do presente estudo seguia o fluxo de uma negociação para solucionar controvérsias judicias e administrativas do contrato extinto, a Lei Estadual n.º 10.955/18 trouxe a eficiência como critério inegociável, para acompanhar aqueles Estados que alcançaram a referida expansão.
A eficiência à luz do interesse dos usuários dependerá da capacidade técnica da agência reguladora em exigi-la quando da aprovação do plano de investimentos da concessionária e na fixação do preço teto em cada revisão tarifária periódica. De todo o modo, a metodologia
73 “2.1.3.1. A fórmula do item 2.1.3 estará sujeita à alteração a partir do segundo CICLO TARIFÁRIO, caso se identifique algum elemento novo para sua composição ou algum existente que necessite ser alterado, sendo objeto de REGULAMENTO”. Contrato de concessão. Anexo I.
74 Com exceção de Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo, os contratos de concessão dos serviços locais de gás canalizado adotam o modelo de regulação econômica pelo custo do serviço (cost plus), com revisão tarifária anual. FGV CERI (Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx). Distribuição de gás natural no Brasil. Dados e aspectos regulatórios. Disponível em: < xxxxx://xxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxxxx-xx-xxx-xxxxxxx-xx-xxxxxx >. Acesso em: 01 mar. 2021.
75 BANCO NACIONAL DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL - BNDES. Gás para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: BNDES, 2020 P. 45
tarifária do preço teto traduz em alguma medida eficiência ao afastar a garantia de ressarcimento de todos os custos76. Como afirmam Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx e Xxxxx xx Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx “ao não garantir os custos realizados, a regulação por Preço-Teto gera incentivos desejados para um aumento de eficiência e esforço por parte da firma (minimização dos custos ou maximização do lucro), o que vai refletir em uma redução do preço-teto na próxima RTP”77. Com a criação da ES GÁS, em 22 de julho de 2019, o Estado dá mais um passo na regulação dos serviços locais de gás canalizado, ao celebrar o novo contrato de concessão, quando, então, começam as preocupações e tratativas referentes à regulação setorial específica.
3.3) A regulação contratual da concessão dos serviços locais de gás canalizado no Estado do Espírito Santo
O contexto de questionamento quanto à nulidade do contrato de concessão vigente que tornou conveniente ao Estado constituir a ES GÁS com participação societária da Petrobras Distribuidora S/A, o ambiente de consensualidade da qual se originou e que, portanto, precisou acomodar os interesses das partes, não impediram que o novo contrato de concessão celebrado com a empresa estatal avançasse na modernização da regulação do serviço local de gás canalizado do Estado do Espírito Santo.
Uma vez consolidados os principais aspectos regulatórios econômicos da concessão, voltados à eficiência, modicidade tarifária e reequilíbrio contratual, a topologia das disposições do novo contrato de concessão demonstra que a regulação setorial específica é protagonista78. A sua sistematização e análise como proposto no presente trabalho passam a ser tratadas a partir de agora.
76 “No contexto de serviços comerciais, os contratos com inventivos fortes tomam a forma de preços máximos (price caps) não indexados pelo custo efetivo da produção. Em outros termos, e para simplificar um pouco, o regulador autoriza um preço médio máximo e a empresa pode escolher seus preços conanto que respeite esa retrição; ela não arca com a integralidade de seu custo. A esses contratos com inventivos fortes devem ser opostos aqueles com incentivos fracos, em que o produtor tem a garantia prévia de que seus custos, ou mais geralmente a maior parte de seus custos, serão cobertos seja por um aumento da subvenção, seja por um aumentos dos preços pagos pelo usuário; trata-se aqui de contratos com custos reembolsados (cost-plus contracts) para serviços não comerciais, e contratos de regulação indexando os preços pelo nível dos custos realizados (cost of service regulation) pagos pelos usuários do serviço. É esse tipo de contrato que prevalecia, por exemplo, nos Estados Unidos para a regulação das empresas privadas de serviço público (as public utilities) até os anos 1980. Mais geralmente, a ideia que preside a introdução de contratos com incentivos fortes é, como vimos, responsabilizar a empresa por seu desempenho, a fim de incentiva-la a servir melhor à coletividade” (TIROLE, Xxxx. Economia do bem comum. Rio de Janeiro: Zahar. 2020. p.478)
77 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx. Regulação Econômica de infraestruturas: como escolher o modelo mais adequado? Revista do BNDES, v. 1, n. 1, 1994, Rio de Janeiro: Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico Social, 1994, P. 268.
78 O Contrato de Concessão dispõe sobre o mercado livre de gás canalizado já no capítulo V, logo após descrever o seu objeto e a área de concessão.
3.3.1) Definição contratual dos serviços e usuários
Nas definições previstas na Cláusula I, o contrato não é fiel ao disposto na Constituição Federal (art. 25, §2º) e na Lei 10.955/18 para os serviços, e menciona “serviço público de distribuição de gás canalizado”, “consistente na distribuição do gás canalizado aos usuários”79. Apresenta-se esse recorte com o objetivo de afastar incongruência ao trabalho, que adota o conceito do serviço como descrito na Constituição Federal.
O registro ainda tem relevo ao ser contraposto à definição do serviço público trazida pela Lei Estadual 10.955/2018. Já se demonstrou que o conceito do seu artigo 2º foi abrangente para não limitar ao serviço de distribuição bem como para alcançar todas as categorias de usuários.
Quanto às categorias de usuários, no rol dos conceitos, o contrato prevê três: i) o agente livre de mercado, conceito que abriga os usuários que se qualificam como consumidor livre, autoprodutor ou autoimportador, ii) o segmento termoelétrico; iii) e os usuários cativos80.
O segmento termoelétrico, contudo, não foi referenciado na Cláusula IV que discrimina o objeto da concessão. Em seu item 4.2.1 subdivide esse mercado entre os usuários cativos e agentes livres de mercado, ao dispor que o sistema de distribuição se inicia a partir das estações de transferência de custódia até os pontos de coleta do gás ao referidos usuários81. Distancia- se, portanto, da Lei 10.955/18 que menciona o destinatário dos serviços como “todo o segmento do mercado consumidor (art. 2º)”, independentemente da sua utilização.
3.3.2) O procedimento de chamada pública para aquisição da molécula de gás
O novo contrato de concessão traz como inovação à regulação setorial o procedimento de chamada pública para aquisição da molécula de gás. Com o objetivo de ampliar o acesso aos supridores, reduzir custos e alcançar melhores condições de reajustes e pagamentos, a concessionária deverá realizá-lo primando pelos princípios da isonomia, legalidade,
79 Contrato de Concessão, Cláusula I, L.
80 Contrato de Concessão, Cláusula I, I, XLIX e LVII.
81 Contrato de Concessão, Cláusula IV, 4.2.1: “O SERVIÇO PÚBLICO DE DISTRIBUIÇÃO DE GÁS CANALIZADO é prestado, sob competência regulatória estadual, com o objetivo de assegurar as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas, e compreende o planejamento, a construção, a operação e a manutenção do SISTEMA DE DISTRIBUIÇÃO e as medições desde as ESTAÇÕES DE TRANSFERÊNCIA DE CUSTÓDIA até os PONTOS DE ENTREGA da molécula do GÁS aos USUÁRIOS CATIVOS e AGENTES LIVRES DE MERCADO”, e 4.4: “O SERVIÇO PÚBLICO DE DISTRIBUIÇÃO DE GÁS CANALIZADO terá como destinatários todos os USUÁRIOS do Estado do Espírito Santo, abarcando, portanto, USUÁRIOS CATIVOS e AGENTES LIVRES DE MERCADO.”
impessoalidade, moralidade, igualdade, publicidade, probidade administrativa, vinculação ao instrumento convocatório, julgamento objetivo e outros correlatos 82.
O contrato prevê a realização do procedimento como uma alternativa prioritária à concessionária para aquisição do gás como meio de se alcançar “os menores custos e melhores condições no mercado”83. Muito embora ausente um comando imperativo para sua realização, compreende-se da interpretação das cláusulas contratuais que disciplinam a chamada pública que a sua dispensa é hipótese excepcional. São previstas expressamente somente duas possibilidades para aquisição direta: i) quando supridores "apresentarem preço e condições de reajustes e pagamentos mais vantajosos do que aqueles obtidos no processo de chamada pública”, ii) ou diante de situações emergenciais, em que a realização do procedimento configurar prejuízo para a manutenção da continuidade dos serviços84. Portanto, dispensá-lo exigirá prévia e fundamentada justificativa apoiada somente em uma dessas hipóteses.
Visando potencializar a competitividade, atraindo preços e condições mais vantajosos, o contrato ainda permite que seja franqueada a participação dos agentes livres na chamada pública85.
Em qualquer hipótese, o contrato de aquisição será submetido à aprovação do regulador86.
O procedimento de chamada pública não encontra óbice a sua realização imediata, pois, com a celebração do novo contrato de concessão, cessaram-se todas as relações jurídicas pretéritas da antiga concessionária com supridores87. Assim, a concessão dos serviços locais de gás canalizado no Estado do Espírito Santo adere ao modelo de outros Estados que também incorporaram esse importante mecanismo de estímulo à concorrência entre os supridores (produtor, importador e comercializador) previsto na regulação estadual, sobretudo para quebra da posição dominante da Petrobras S/A, a quem eram garantidos contratos de exclusividade como supridora junto a algumas distribuidoras.
82 Contrato de concessão. Cláusula I, item VII e Cláusula VIII, 8.7.
83 Contrato de concessão. Cláusula VIII, 8.7
84 Contrato de concessão. Cláusula VIII, 8.7.1
85 Contrato de Concessão. Cláusula VIII. 8.7.1 e 8.8
86 Contrato de Concessão, Cláusula VIII, 8.7.2
87 Em alguns Estados, a realização dessa chamada pública teve que respeitar os contratos de aquisição já firmados pelas concessionárias, como no caso do Rio de Janeiro em que, ainda, foi concedido o prazo de 12 (doze) meses para a concessionária se adequar ao procedimento. AGÊNCIA REGULADORA DE ENERGIA E SANEAMENTO BÁSCIO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Deliberação Agenersa n.º 4068/2020, art. 17,
inciso I, parágrafo único. Processo n.º E-22/007/300/2019. Disponível em: < xxxx://xxx.xxxxxxxx.xx.xxx.xx/xxxxxxxxxx/xxxxxxxxxxxx/xxxx/XXXXXXXXXXX0000.xxx >. Acesso em 24 mar. 2022.
A regulação contratual condiciona, portanto, a concessionária, à realização da chamada pública. Mas algumas questões são remetidas à regulação discricionária da agência, a exemplo do procedimento para aprovação do contrato de aquisição de gás, previsto no contrato como competência da agência, a ser exercida conforme regulamento.
A Resolução 046/21 editada pela ARSP reitera as disposições contratuais referentes à chamada pública e integra a regulação contratual somente para especificar o regulamento a ser observado para aprovação do contrato de aquisição e remeter à regulação específica “as condições que permitem a caracterização das situações emergenciais”88.
A efetividade do procedimento como indutor de competitividade no setor demanda a previsão de regras claras e objetivas das hipóteses de sua dispensa, assegurando o caráter excepcional da não realização do procedimento, de modo a blindar a aquisição da ingerência do poder de mercado de supridores apoiada em alegações genéricas de risco à continuidade da prestação dos serviços.
O alcance desse objetivo ainda é condicionado à entrada de mais agentes na atividade de produção e importação, dependente de questões ainda não resolvidas pela regulação federal89, como as regras para o transporte e acesso às infraestruturas essenciais90, além da necessidade de entrada de mais agentes na atividade de comercialização. É o reflexo das características de uma indústria de rede, em que as medidas adotadas em cada elo da cadeia são complementares, incapazes de isoladamente promover concorrência.
3.3.3) A universalização dos serviços
A natureza jurídica de serviço público dos serviços locais de gás canalizado, como já destacado no presente trabalho, impõe que a sua exploração pelo privado seja dirigida para consecução dos seus atributos que o qualifiquem juridicamente como adequado, na forma do
§1º do artigo 6º da Lei Federal n.º 8.987/95. No âmbito do Estado do Espírito Santo, esses
88 Resolução ARSP 046 de 31 de março de 2021, art. 7º.
89 As chamadas públicas realizadas pelas distribuidoras Estaduais em 2021, inclusive pela ES GÁS, tiveram participação exclusiva da Petrobras, com algumas exceções como as distribuidoras dos Estados de Alagoas, Bahia e Paraíba, devido à insuficiência de ofertantes. Diversas notícias divulgaram a posição privilegiada da Petrobras:
< xxxxx://xxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxxxxx-xxxxxxxx-xx-xxxx-xxxx-xxxxxxxxx-xxxxxx-xxxxxxxxx-xx-xxxxxxxxx-xx-xxx/ >; < xxxxx://xxx.xxxxxxx.xxx.xx/xx/xxxxxxxx/xxx-xxxxxxx-xxxxxxxxxxx-xxxx-xx-xxx-xxxx-xxxxx-xxx-00-xxxx-xxxx-0000> 90 XXXXX, Xxxxxxx. Atraso pela ANP na regulamentação impediu a entrada de novos fornecedores de gás no País. Disponível em: < xxxxx://xxxxxxxx.xxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxx,xxxxxx-xxxx-xxx-xx-xxxxxxxxxxxxxx-xxxxxxx-x- entrada-de-novos-fornecedores-de-gas-no-pais,70003944716 > . O artigo 4º da Lei Federal n.º 14.134/21 prevê o regime de autorização para exploração da atividade de transporte de gás natural, cabendo à ANP regular a habilitação dos interessados e o procedimento de chamada pública para outorga da autorização. Já o artigo 18 atribui à Agência a competência para regular o acesso de terceiros aos gasodutos de transportes.
atributos foram conceituados na Lei Estadual n.º 5.720/1998, dentre eles a generalidade, associada à universalização da prestação dos serviços91.
Esses atributos enquadram a atividade regulatória dos serviços locais de gás canalizado, limitando as opções técnica e econômicas ao impedir aquelas que obstem a prestação adequada do serviço público.
A regulação contratual confere relevo à universalização quando, em sua Cláusula IX, item 9.3, prevê, para os dois primeiros ciclos tarifários, obrigação de expansão das ligações de acordo com o perfil dos usuários especificamente para o segmento residencial, e de ampliação do sistema de distribuição vinculada ao valor de investimento mínimo definido92.
A concessionária não poderá se esquivar do cumprimento dessas obrigações sob a alegação de inviabilidade técnica e econômica. Por outro lado, essa escusa pode ser admitida para demais usuários que requeiram a prestação do serviço público, conforme critérios que serão definidos em regulamento e apurados pela concessionária em procedimento a ser submetido à aprovação do regulador93.
Caberá à regulação discricionária exercida pela agência estadual garantir efetividade do princípio da universalização e persecução dos interesses de todos os usuários do serviço, por meio da aprovação dos planos de negócios a serem submetidos a sua aprovação no momento da revisão de ordinária.
Nesse processo, caberá medir os reflexos da ampliação do número de usuários do sistema de distribuição na modicidade tarifária e na garantia da remuneração da concessionária pelo investimento em infraestrutura e pela sua operação e manutenção. Somente a convergência desses direitos que garante eficácia às cláusulas contratuais dirigidas à universalização dos serviços.
3.3.4) A regulação contratual econômica da concessão
Dentre os efeitos concretos da Lei Estadual n.º 10.955/18, já se anotou no presente trabalho, a vinculação da modelagem quanto aos aspectos econômico-financeiros da concessão,
91 Lei Estadual n.º 5.720/1998, art. 7º, §2º “f”.
92“9.3. Os planos de investimentos da CONCESSIONÁRIA para os dois primeiros CICLOS TARIFÁRIOS contemplarão, pelo menos, a previsão obrigatória das seguintes aplicações:
I - ligação de, no mínimo, 60 (sessenta) mil USUÁRIOS do segmento residencial, atendendo bairros onde, em média, pelo menos 15% (quinze por cento) dos domicílios tenham renda igual ou inferior a 2 (dois) salários mínimos; e
II - investimentos, com recursos próprios, no montante de R$ 298.000.000,00 (duzentos e noventa e oito milhões de reais), visando à ampliação do SISTEMA DE DISTRIBUIÇÃO DE GÁS CANALIZADO.”
93 Contrato de Concessão, Cláusula VIII, 8.19.
na adoção de parâmetros regulatórios correspondentes a estímulos à eficiência e modicidade tarifária.
Atendendo ao comando normativo, a concessão passa a ser regida por uma matriz de risco e é instituído um procedimento básico a ser observado para revisão tarifária extraordinária94. Mas nesse ponto, a regulação contratual foi tímida, não se ocupou em detalhar objetivamente a forma de comprovar o desequilíbrio, dispondo somente o que provar. Ainda, não acompanhou as regulações contratuais mais contemporâneas para prever as modalidades para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro da concessão, para submeter contratualmente a concessionária à seguintes opções do poder concedente: prorrogação ou redução do prazo de vigência do contrato; reajuste tarifário; ressarcimento ou indenização; alteração das obrigações ou prorrogação do cronograma para seu cumprimento, ou combinação dessas modalidades. O contrato vincula o poder concedente a repor o quantum apurado na revisão tarifária extraordinária de forma imediata ou no ciclo seguinte95, o que afastaria a utilização de métodos diversos do reajuste tarifário.
Sob esse aspecto, o contrato de concessão, ainda que represente avanço em relação ao contrato anterior quantos aos aspectos econômico-financeiros, não tem a mesma posição quanto às práticas que estavam sendo adotadas e já executadas quando da sua modelagem.
A definição do procedimento e escolha de metodologia para avaliação dos bens reversíveis foi remetida para regulação discricionária da agência. O contrato somente prevê a avaliação periódica da base de ativos regulatórios no momento das revisões tarifárias96, a ser realizada conforme regulamento. Muito embora a discussão de metodologia de avaliação dos bens tenha sido objeto de controvérsia da extinção antecipada da concessão anterior, o tema foi subtraído da regulação contratual.
O novo contrato de concessão converge às práticas regulatórias mais atuais, mas não tem caráter inovador em relação as normas aplicáveis aos aspectos econômico-financeiros. Esse caráter inovador está associado mais à regulação setorial, ao reinaugurar97 o regramento aplicável ao mercado livre de gás canalizado.
94 Contrato de Concessão, Cláusula XIII e Anexo I.
95 Contrato de Concessão, Anexo I, 6.2.2.1.
96 Contrato de concessão, Cláusula X, 10.6.
97 A Resolução ASPE 004/11 foi o primeiro regulamento editado que dispondo sobre o mercado livre de gás canalizado no Estado do Espírito Santo.
3.3.5) A regulação contratual do mercado livre de gás canalizado
O novo contrato de concessão dos serviços locais de gás canalizado celebrado pelo Estado do Espírito Santo é pioneiro em prever regras explícitas sobre as condições em que o serviço público de distribuição de gás deverá ser prestado aos agentes livres de mercado.
O processo de inovação regulatória volta-se à regulação pelo Estado do mercado livre de gás canalizado, cuja estruturação e efetiva implementação poderá ser impulsionada a partir das opções regulatórias estaduais.
Cada Estado tem competência para, de forma independente, definir os critérios de qualificação do usuário como agente livre, e as regras específicas que lhe serão aplicáveis na prestação dos serviços públicos de distribuição pela concessionária. O desafio é conferir o tratamento diferenciado a essa categoria de usuários capaz de gerar incentivo ao desenvolvimento do mercado livre, onde os usuários poderão adquirir o gás junto a comercializadores legalmente habilitados e escolhidos livremente, cuja relação com a concessionária se limitará à prestação dos serviços de distribuição de gás canalizado, da mesma forma que autoprodutores e autoimportadores.
Muito embora as atividades de comercialização, autoprodução e autoimportação do gás canalizado não se sujeitem à disciplina estadual, elas são intrinsecamente dela dependente para que, por intermédio da atividade de distribuição, acessem a cadeia à jusante. A potencialidade competitiva dessas atividades depende do acesso à infraestrutura essencial, que faz parte do serviço público estadual, e de uma forte intervenção do Estado para garantir este acesso, impedindo recusa injustificada e exigências discriminatórias98.
O Estado do Espírito Santo orientado pelas diretrizes do Programa do Ministério das Minas e Energia, “O novo mercado de gás”, assume o compromisso, por intermédio das cláusulas do contrato de concessão, de incentivar a implementação do mercado livre de gás canalizado, disciplinando a forma como os serviços públicos de sua competência serão prestados dissociados da atividade de comercialização.
A previsão inicial de destaque da posição do agente livre de mercado no objeto da concessão99, ao excluir o serviço de comercialização de gás canalizado da exclusividade da
98 “Assim, de modo a viabilizar a existência da liberdade econômica de concorrência e, portanto, de consumidores livres, capazes de optar diante de uma pluralidade de fornecedores, não parece ser suficiente a disciplina desses mercados unicamente pelas normas gerais protetivas da concorrência, fazendo-se necessário que a regulação setorial atue para estruturar normativamente exigências de acesso e compartilhamento de infraestrutura.” ARAGÃO, Xxxxxxxxx Xxxxxx. O regime jurídico do consumidor de gás natural e energia elétrica. p. 275/276.
99 Contrato de concessão, Cláusula IV, 4.2.
concessionária, é uma mensagem clara de convergência às discussões que eram tomadas para ampliação da concorrência e oferta no segmento de gás natural, e que já era tratada no artigo 47 da Lei Federal n.º 11.909/09100, vigente ao tempo da celebração do contrato.
Reforça essa convergência, quando o contrato, já na sua Cláusula V, traz a disciplina específica do “Mercado Livre de Gás Canalizado”. A referida cláusula segue a regulamentação federal então vigente, e que não sofreu alteração com o advento da Lei Federal n.º 14.134/21.
O ineditismo do contrato de concessão é, portanto, a regulação do mercado livre de gás canalizado no Estado do Espírito Santo. A partir dela, a ARSP edita atos específicos para suprir a regulação contratual e é esse arcabouço que surge impulsionado pelas regras contratuais o tema de análise no próximo capítulo.
100 “Art. 47. Ressalvado o disposto no §2º do artigo 25 da Constituição Federal, a comercialização de gás natural dar-se-á mediante a celebração de contratos registrados na ANP”.
4) A REGULAÇÃO DO MERCADO LIVRE DE GÁS CANALIZADO NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO A PARTIR DO NOVO CONTRATO DE CONCESSÃO
Com o novo contrato de concessão, a regulação dos serviços locais de gás canalizado passa a se ocupar com o aperfeiçoamento e desenvolvimento setorial, para além de cláusulas referentes ao aspectos econômico-financeiros quando o foco prioritário era conciliar os investimentos e remuneração da concessionária com a modicidade tarifária.
A regulação setorial dos referidos serviços, as condições gerais a serem observadas para a sua prestação pela concessionária era exclusivamente por ato regulamentar da Agência101. Inclusive a regulação do mercado livre de gás canalizado pelo Estado do Espírito Santo. Suas regras foram previstas na Resolução ASPE 004/11, e apesar de sua inauguração ter sido autorizada a partir de janeiro 2013, a implementação do referido mercado não se concretizou.
Como já visto, o contrato de concessão traz regras sobre procedimentos de aquisição do gás, de universalização e a definição de regras gerais que disciplinam a prestação do serviço público de distribuição pela concessionária ao mercado livre. A partir dele que se inicia e se impulsiona a atualização da regulação do mercado livre.
O contrato de concessão trata dos principais temas associados ao mercado livre de gás canalizado. Estabelece algumas definições, forma de prestação dos serviços pela concessionária, condições impostas aos agentes livres e regras de política tarifária. As disposições associadas a esses temas podem ser consideradas como diretrizes da regulação setorial para o referido mercado.
Conquanto introduza regulamentação inovadora para a prestação do serviço de distribuição de gás canalizado, atribui à regulação da agência substancial competência. A despeito de seu objeto ser um serviço público regulado, a ser prestado pelo Estado na forma da lei, conforme prescrição constitucional102 não havia até a sua celebração lei específica geral e abstrata que regulamentasse o serviço. As exceções são as Leis Estaduais n.º 10.493/16 e n.º 10.955/18 cujas disposições são dirigidas à atual concessão especificamente, portanto de efeitos concretos.
Na ausência de norma específica dispondo sobre a prestação dos serviços locais de gás canalizado, a regulação contratual delimitou campos materiais obrigatórios de intervenção da
101 Resolução ASPE n.° 005/2007 de 30 de julho de 2007.
102 CF, Art. 25, §2º.
agência. Em algumas hipóteses, fixou limites dentre os quais a sua competência deverá ser exercida.
O Estado do Espírito Santo, dois meses após a celebração do contrato de concessão, editou a Lei Estadual n.º 11.173, de 25 de setembro 2020, regulamentando o mercado livre de gás canalizado, ratificando e ampliando as competências regulatórias da agência que já haviam sido definidas no contrato.
A partir da competência inicialmente definida no contrato de concessão e posteriormente atribuída pela Lei Estadual n.º 11.173/20, a agência reguladora, após consulta pública, editou a Resolução ARSP n.º 046 de 31 de março de 2021. A norma dispõe sobre as regras para o mercado livre de gás canalizado, sobre a prestação do serviço de distribuição aos agentes livres, usuários assim qualificados que optarem por ingressar no referido mercado. Muito embora tenha atribuído essa competência exercida pela ARSP, o contrato de concessão a limitou ao já trazer regramento material para disciplinar o referido mercado, condicionando, assim, o conteúdo da referida resolução103.
Também foi editada a Resolução ARSP n.º 053 de 29 de dezembro de 2021, complementar à Resolução ARSP n.º 046/21 que dispõe sobre o modelo do contrato de uso do serviço de distribuição – CUSD a ser celebrado entre a concessionária e os agentes livres de mercado. Esse contrato é essencial para garantir o acesso à infraestrutura de distribuição e permitir a entrega de gás comercializados por terceiros.
Estabeleceu-se, assim, novo arcabouço regulatório do mercado livre de gás canalizado do Estado do Espírito, consubstanciado na regulamentação do contrato de concessão, na Lei Estadual n.º 11.173/20 e Resoluções ARSP n.º 046/21 e n.º 053/21, jungido à observância das seguintes diretrizes: i) promoção do livre mercado, ii) a transparência, eficiência e estrutura tarifária adequada; iii) isonomia tarifária observada entre os agentes livres de mercado, respeitadas as diferenças previstas em lei ou regulamento; iv) e ampliação da rede de distribuição de gás canalizado104.
Como a regulação contratual, legislativa e discricionária contêm normas que se reiteram e se integram, a abordagem do presente trabalho seguirá por tema regulamentado, investigando em que medida observam as diretrizes que foram estabelecidas e são aptas a gerar segurança jurídica para o desenvolvimento do mercado livre de gás canalizado.
103 Diversas contribuições recebidas na Consulta Pública n.º 001/2021 a que foi submetida a proposta de resolução foram refutadas pela ARSP ao fundamento de que o proposta normativa estava de acordo com o contrato de concessão. Relatório circunstanciado contendo análise das contribuições recebidas. Disponível em: < xxxxx://xxxx.xx.xxx.xx/xxxxxxxxx-xxxxxxxx >. Acesso em 13 mar. 2022.
104 Lei Estadual n.º 11.173/20, art. 3º caput.
4.1) Ausência de exclusividade da concessionária para a prestação do serviço de comercialização ao mercado livre de gás canalizado
Primeiro e essencial requisito que cria condição para a existência do mercado livre é a ausência de direito de exclusividade do serviço de comercialização assegurado à concessionária na área da concessão. Como apontam Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx Xxxx e Xxxxxxxxxx Xxxxx Xxxx, o impulso à concorrência na cadeia do gás, em especial à atividade de comercialização, depende das condições em que celebrados os contratos de concessão dos serviços locais de gás canalizado, se criam condições para que os agentes livres contratem a aquisição de molécula de gás de comercializadores livremente escolhidos105.
A recuperação dos investimentos necessários para a implantação da infraestrutura associada à prestação dos serviços de distribuição pode justificar a opção econômica de conferir exclusividade à concessionária para exploração dos serviços de comercialização. A utilização da metodologia do subsídio cruzado permite que a remuneração associada à comercialização prestada com exclusividade a todos os usuários subsidie a expansão da infraestrutura sem onerar o valor da tarifa necessário a remunerar aqueles investimentos. Medida que economicamente se justifica, portanto, para efetivar a universalização e modicidade tarifária106. Essa exclusividade foi prevista por um período nos contratos de concessão de alguns Estados, a exemplo de São Paulo e Rio de Janeiro107.
Ainda que a exclusividade não seja condição para viabilidade da exploração da rede de distribuição, na avaliação de cada “modelagem da concessão poderá entender que a atratividade de um determinado ativo e viabilidade de expansão das redes está associada à presença de um conjunto de usuários que darão a escala necessária”108.
105 XXXXXXX XXXX, Xxxx Xxxxx; XXXX, Xxxxxxxxxx Xxxxx. Privatização, regulação e introdução da concorrência: o caso da distribuição de gás natural. Working paper mimeo p. 3
106 “Por evidente, a exclusividade da empresa concessionária na exploração de todos os serviços locais de gás canalizado, consoante previsto no art. 25, §2º, da Lei Maior, tem a finalidade de viabilizar, do ponto de vista econômico, a universalização da rede de canalizações, a modicidade tarifária e a continuidade da prestação, através de ganhos de escala e de um sistema de subsídios cruzados. Com efeito, os grandes usuários são responsáveis por algo em torno de 90% dos volumes comercializados pelas concessionárias; do atendimento a tais usuários é que as empresas obtêm a escala suficiente para investir na ampliação da rede de distribuição e praticar tarifas módicas, de forma a permitir o acesso à utilidade pública (o gás natural) pela população de baixa renda.” BINENBOJM, Gustavo. Transporte e distribuição do gás natural no Brasil. Delimitando as fronteiras entre as competências regulatórias federais e estaduais. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n.º 7, ago/set/out de 2006. Disponível em:< xxxx://xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx >.
107 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx; SAMPAIO, Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx. O regime jurídico do consumidor livre de gás natural e energia elétrica. In: Direito do petróleo e gás. Belo Horizonte: Forum, 2020, p. 286.
108 FGV CERI (Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx). Desenvolvimento de um mercado de gás no Brasil. p.58 Disponível em:< xxxxx://xxxx.xxx.xx/xxxxx/xxxxxxx/xxxxx/xxxxxxxxxxx/0000- 10/49_49_desenvolvimento-de-um-mercado-de-gas-no-brasil.pdf >
Outra questão relevante que envolve a atividade livre de comercialização, sem exclusividade da concessionária, é o risco que deve gerir de ter disponibilidade para aquisição de gás suficiente para suprir a demanda aos consumidores cativos. Como aponta artigo do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura (CERI) da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx (FGV) é um risco que vinha sendo gerido pela Petrobras
negociado caso a caso com as distribuidoras. Com a entrada de novos agentes e a assunção de um novo papel pelo incumbente, as distribuidoras terão que gerenciar diretamente este risco. Neste contexto se insere a discussão sobre o by-pass comercial. É necessário estabelecer mecanismos para que a distribuidora consiga gerenciar o risco de compra de gás para atendimento a seu mercado cativo. Não significa, no entanto, que lhe deva ser franqueada irrestritamente uma exclusividade sobre o direito de comercializar gás em determinada área de concessão109.
Com o advento da norma federal que disciplinou a prestação dos serviços de comercialização aos agentes livres de mercado, primeiro a Lei Federal n.º 11.909/09, com disposições reiteradas na Lei Federal n.º 14.134/21, é firmada a competência da União para regular a atividade de comercialização. O seu artigo 31 trata dos contratos de compra e venda de gás natural, admite a comercialização por distribuidoras de gás canalizado, consumidores livres, produtores, autoprodutores, importadores, autoimportadores e comercializadores, mas ressalva a venda do gás natural pelas distribuidoras do gás canalizado aos respectivos consumidores cativos.
Sob o aspecto jurídico não é legítimo aos Estados assegurarem a exclusividade às concessionárias do serviço público local de gás canalizado, quando a legislação federal autoriza somente aos consumidores cativos110 e prevê a comercialização por outros agentes, além da concessionária.
A atividade de comercialização não se insere no conceito de serviços locais de gás canalizado. A eficiência econômica proporcionada pela sua exploração com exclusividade associada à distribuição do gás canalizado não caracteriza aquela atividade como serviço local, e, portanto, não atrai a competência dos Estados na forma prevista no artigo 25, §2° da Constituição Federal, mas sim a da União111 de legislar sobre energia, prevista no artigo 22, IV.
109 FGV CERI (Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx). Desenvolvimento de um mercado de gás no Brasil. p.57 Disponível em:< xxxxx://xxxx.xxx.xx/xxxxx/xxxxxxx/xxxxx/xxxxxxxxxxx/0000- 10/49_49_desenvolvimento-de-um-mercado-de-gas-no-brasil.pdf >. Acesso em 01 mar. 2021.
110 Art. 31. A comercialização de gás natural dar-se-á mediante a celebração de contratos de compra e venda de gás natural, registrados na ANP ou em entidade por ela habilitada, nos termos de sua regulação, ressalvada a venda de gás natural pelas distribuidoras de gás canalizado aos respectivos consumidores cativos.
111 Para a ANP “o serviço público de distribuição de gás é regulado pelo art. 25, §2º, da Constituição Federal e disciplinado pela Lei 8.789/1995 (Lei de Concessões de Serviços Públicos), cabendo aos estados legislar tão somente sobre a distribuição de gás canalizado. A ANP entende, entretanto, que a competência para legislar sobre a comercialização do gás natural é privativa da União, utilizando como fundamento o disposto no § 4º do art. 177 da Constituição Federal”. BNDES. Gás para o desenvolvimento. Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
O tema não é tranquilo, e a exclusividade da comercialização foi assegurada em contratos de concessão de distribuição e tem apoio na defesa da competência dos estados para explorar essa atividade112.
Há de se reconhecer, contudo, que quando a Lei Federal n.º 14.134/21 prevê que o consumidor livre é aquele que “nos termos da legislação estadual, tem a opção de adquirir o gás natural de qualquer agente que realiza a atividade de comercialização de gás natural” (art. 3°, inciso XV), restringe a competência da União na regulação da atividade de comercialização, especificamente na definição dos seus destinatários. Esses serão aqueles que atenderem aos critérios estabelecidos pelos Estados. Ainda que o contrato de concessão preveja não haver a exclusividade da concessionária, as condições de ingresso no usuário no mercado livre poderão assegura-la.
Ainda que a Lei Federal n.º 14.134/21 discipline os contratos de comercialização, subsiste a controvérsia jurídica quanto à competência legislativa dos estados sobre referida atividade, ao reconhecer a sua competência para definir os consumidores livres e a forma de ingresso dos usuários no mercado livre.
Já na concessão extinta o Estado do Espírito Santo não estabelecia a exclusividade da concessionária na prestação da atividade de comercialização. O contrato nada dispunha sobre o tema. Isso permitiu que a agência reguladora, então ASPE113, estabelecesse regras para
e Social – Rio de Janeiro: BNDES, 2020, p. 246-249. “Constatado que o texto do art. 25, §2º da Constituição não é claro em relação ao que se entende por serviços locais de gás canalizado e que há diferentes interpretações sobre estar a comercialização necessariamente vinculada ao serviço de rede ou ser uma atividade autônoma, (...) no desenho constitucional de atribuição de competências para legislar sobre energia foi dado um papel preponderante à União e, portanto, razoável supor que a interpretação do art. 25, §2º da Constituição levaria a uma interpretação restritiva em relação ao papel do Estado para exploração e normatização destas atividades. A própria mudança da redação do §2º, retirando a palavra ‘distribuição’, parece sugerir uma interpretação nesse sentido.” FGV-Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutua - CERI. Desenvolvimento de um mercado de gás no Brasil. 2018, p. 61. 112 Xxxxxxxxx Xxxxxx de Aragão, sem adentrar na questão quanto à distinção das atividades de comercialização e distribuição, sustenta que “a definição legal do consumidor livre no setor de gás são de competência da estadual, visto que a Constituição Federal estabeleceu ser atribuição dos Estados a prestação do serviço de distribuição de gás canalizado, a quem compete, portanto, decidir sobre a forma como o serviço será prestado, se de prestação direta pelo Estado (ou por empresa estatal), ou, alternativamente, delegação à iniciativa privada, por meio de licitação e celebração de contratos de concessão.” XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx, p. 286. Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx XXXXXXX XXXX, ao fundamento de uma interpretação sistemática da Constituição Federal, que leva a compreender a dicção “canalizado” do § 2º do artigo 25 da CF, “no sentido de que ela está a se referir à rede das concessionárias locais de distribuição de gás” em conjugação com o monopólio da União previsto no artigo 177, inciso IV, em que prevista a atividade de transporte aquela prestada “por meio de conduto”, entende “que o serviço público previsto no artigo 25 da Carta, mesmo após a EC nº 5, envolve a atividade de comercialização e distribuição, ao consumidor final, pela rede local de canalização, de gases combustíveis.” Regulação e poder de polícia no setor de gás. Disponível em: < xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxx_xxxxxx/xxx_00_00.xxx >. Acesso em 23 jun. 2020.
113 Agência de Serviços Públicos de Energia do Estado do Espírito Santo, transformada na ARSP pela Lei Complementar Estadual n.º 827/2016.
prestação dos serviços de distribuição no mercado livre de gás canalizado, com a edição da citada Resolução ASPE 004/2011114, mas que ainda não foi efetivado.
O novo contrato de concessão dos serviços locais de gás canalizado do Estado do Espírito Santo de início enfatiza que não assegura à concessionária exclusividade na atividade de comercialização no mercado livre. A comercialização só poderá ser prestada aos usuários livres na forma como autorizada em regulamento e seguindo as condições nele previstas115.
Em uma sinalização ainda mais determinante ao estímulo à concorrência, a Lei Estadual n.º 11.173/20 estabiliza a peremptória disposição contratual que dissocia a concessão do serviço local de gás canalizado do direito à exclusividade na comercialização de gás canalizado aos agentes livres de mercado116.
A regulação da atividade de comercialização pela concessionária no mercado livre é integrada pela Resolução ARSP n.º 046/2021, que prevê como condições somente o suprimento de necessidades eventuais e a sua limitação ao período de 6 (seis) meses117.
A omissão quanto aos fatores que poderiam caracterizar essas necessidades eventuais amplia as possibilidades de o consumidor livre contratar a comercialização com a concessionária, inclusive as condições mais favoráveis. Somado ao fato de que os preços serão livremente negociados entre a concessionária e o consumidor livre e que os respectivos contratos sequer precisam ser levados ao conhecimento da Agência (o que ocorre com os celebrados pelos agentes livres e outros supridores) permanecem as condições para utilização de subsídio cruzado entre a tarifa referente ao serviço de distribuição e a comercialização, e não se neutraliza o poder de mercado da concessionária.
O Estado do Espírito Santo, portanto, faz a opção objetiva e geral de não assegurar o direito de exclusividade na prestação dos serviços de comercialização à concessionária no mercado livre de gás. Afasta-se, assim, a possibilidade de a modelagem econômico-financeira da concessão se valer das respectivas receitas para proporcionar modicidade tarifária. Também suplanta o debate acerca da inclusão dos referidos serviços no conceito de serviços locais de
114 Disponível em: xxxxx://xxxx.xx.xxx.xx/xxxx_xxxxxxxxxx
115 Contrato de Concessão, Cláusula IV, 4.2.2 4.2.2. A CONCESSÃO do SERVIÇO PÚBLICO DE DISTRIBUIÇÃO DO GÁS CANALIZADO não confere à CONCESSIONÁRIA direito de exclusividade na COMERCIALIZAÇÃO DE GÁS CANALIZADO aos USUÁRIOS qualificados como AGENTES LIVRES DE MERCADO, assim considerados o CONSUMIDOR LIVRE, o AUTOPRODUTOR e o AUTOIMPORTADOR.
4.3. A CONCESSIONÁRIA compromete-se a somente exercer atividades não abarcadas pelo SERVIÇO PÚBLICO DE DISTRIBUIÇÃO DE GÁS CANALIZADO, com o propósito de auferir RECEITAS DE COMERCIALIZAÇÃO no âmbito do MERCADO LIVRE DE GÁS CANALIZADO, RECEITAS ACESSÓRIAS e RECEITAS CORRELATAS, se assim o autorizar REGULAMENTO e nas condições nele previstos.
116 Art. 10. A concessão do serviço público de distribuição de gás canalizado não confere à concessionária direito de exclusividade na comercialização de gás canalizado aos usuários qualificados como agentes livres de mercado. 117 Art. 33.
gás canalizado118, ao subtrai-lo do objeto da concessão e reconhecer a incidência da regulação federal como será visto adiante.
Afastar a exclusividade da comercialização pela concessionária é a primeira condição para implementação do mercado livre, só assim é possível ter consumidor livre, e mais de um supridor ofertando gás.
Mas isso não afasta as preocupações regulatórias quanto à necessidade de demanda suficiente no mercado cativo para subsidiar os custos da implantação da infraestrutura que constitui o sistema de distribuição. O tratamento da questão é realocado para a definição dos requisitos de ingresso do consumidor no mercado livre.
4.2) O agente livre de mercado e os requisitos para ingresso no mercado livre de gás canalizado
A regulação do mercado livre de gás canalizado parte da definição dos agentes que nele poderão ingressar. O contrato adota a nomenclatura de agente livre de mercado para os usuários que, atendendo os requisitos previstos em regulamentação específica, qualifiquem-se como autoprodutor, autoimportador e consumidor livre, o que os habilitarão a contratar o serviço de distribuição destacado do serviço de comercialização e os autorizarão a contratar diretamente com os supridores119. Referida nomenclatura é ratificada pela Lei Estadual n.º 11.173/20 para definir esse segmento de usuários (art. 2º).
As regras para qualificação como autoprodutor e autoimportador serão as previstas na legislação federal. Para esses, então, a relevância da regulamentação estadual para incentivo à atividade residirá especificamente na política tarifária aplicável e nas regras que disciplinam a construção do ramal dedicado, tema que será tratado mais adiante.
118 “Por evidente, a exclusividade da empresa concessionária na exploração de todos os serviços locais de gás canalizado, consoante previsto no art. 25, §2º, da Lei Maior, tem a finalidade de viabilizar, do ponto de vista econômico, a universalização da rede de canalizações, a modicidade tarifária e a continuidade da prestação, através de ganhos de escala e de um sistema de subsídios cruzados. Com efeito, os grandes usuários são responsáveis por algo em torno de 90% dos volumes comercializados pelas concessionárias; do atendimento a tais usuários é que as empresas obtêm a escala suficiente para investir na ampliação da rede de distribuição e praticar tarifas módicas, de forma permitir o acesso à utilidade pública (o gás natural) pela população de baixa renda” (grifos no original). XXXXXXXXX, Xxxxxxx. Transporte e distribuição do gás natural no Brasil. Delimitando as fronteiras entre as competências regulatórias federais e estaduais. In: Revista Eletrônica de Direito Administrativo. Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n.º 7, ago/set/out/2006. p. 9 Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxx.xxx?xxxx000
119 Contrato de concessão. Cláusula I, I, XII, XXV.
A Lei Federal n.º 14.134/21 preservou o conceito de consumidor livre da lei revogada, atribuindo à legislação estadual discipliná-lo, prevendo as condições a serem atendidas por aquele que optar a adquirir o gás natural de qualquer comercializador120.
Essa opção da legislação federal é questionada à luz da controvérsia que envolve a competência para disciplinar os serviços de comercialização, que seria atribuída à União121, e por impedir uma estrutura regulatória uniforme para o mercado livre. Entretanto, a partir dela, os Estados seguem exercendo essa competência.
Nessa esteira, a Lei Estadual n.º 11.173/20 integra a regulação contratual ao definir o critério para qualificação do usuário como consumidor livre: o “usuário do serviço público de distribuição de gás canalizado com volume de consumo igual ou superior a 10.000m³/dia”122.
Muito embora fixe esse volume, admite que seja alterado por regulamento da ARSP, para reduzi-lo ou ampliá-lo. A Resolução ARSP n.º 046/21 mantém a comprovação desse consumo diário para que o consumidor seja apto a ingressar no mercado livre (art. 18).
A Lei não assegura, portanto, uma estabilidade para o critério definido. Ao fim, caberá à agência definir o volume de consumo necessário para que o usuário seja qualificado como agente livre.
Essa solução regulatória é mais adequada para um mercado ainda não existente, dando mais flexibilidade ao regulador, para que o critério técnico seja conformado ao estágio de seu desenvolvimento, acomodando todos os interesses, não só dos agentes livres, mas da concessionária e dos demais usuários do sistema de distribuição, conforme as questões técnicas e econômicas associadas ao nível de manutenção de volume de gás no mercado cativo necessário para financiar o custo de ampliação e manutenção da infraestrutura de distribuição como já apontado.
Sob o aspecto econômico, há críticas ao estabelecer que o valor mínimo do consumo seja fixo e diário, e não uma média mensal123. Defende-se, ainda, que o consumo mínimo não
120 Art.3º Inciso XV.
121 “... há de se realizar uma interpretação sistemática da Constituição Federal, para o fim de se separarem as atividades de operação e manutenção de rede, de um lado, da atividade de compra e venda do produtor (gás natural), de outro. Sendo esta última reconhecida como sendo federal em elogio à primazia constitucionalmente conferida pela Constituição Federal à União para legislar sobre energia, conforme acima exposto, caberá ao governo federal encaminhar projeto de lei visando à alteração do conceito de ‘consumidor libre’ atualmente em vigor na Lei do Gás, assim como a definição de ‘distribuição de gás canalizado’ constante da Lei n. 9.478/97.” FGV CERI (Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx). Desenvolvimento de um mercado de gás no Brasil. p.62 Disponível em:< xxxxx://xxxx.xxx.xx/xxxxx/xxxxxxx/xxxxx/xxxxxxxxxxx/0000- 10/49_49_desenvolvimento-de-um-mercado-de-gas-no-brasil.pdf >
122 Lei Estadual n.º 11.173/20, art. 2º, §1º, inciso III.
123 “Como se percebe, na fase de discussões entre as Deliberações n. 3.862/2019 e n. 4.062/2020, foi alterada a base temporal para aferição do consumo mínimo, de mensal para diária. A redação anterior (art. 4º da deliberação
n. 3.862/2019) dispunha que ‘(...) será considerado Consumidor livre o agente que consumir no mínimo
deveria ser exigido124. São questões econômicas que deverão ser avaliadas segundo as características e estágio de cada contrato de concessão e mercado local.
A previsão legal do consumo mínimo para qualificação do consumidor livre exonerou a agência reguladora de fundamentar tecnicamente o volume inicialmente estabelecido e submeter essa opção à análise e questionamento em consulta pública, o que será necessário quando pretender a sua redução ou aumento, conforme a mencionada liberdade atribuída pela Lei Estadual n.º 11.173/20125.
O agente livre de mercado poderá ser usuário do serviço de duas formas: i) mediante a utilização do sistema de distribuição126 ou ii) do ramal dedicado. Para cada hipótese, o contrato prevê um tratamento tarifário específico, respectivamente: i) tarifa de uso do sistema de distribuição de gás canalizado – TUSD-GÁS) e ii) ) tarifa de uso do sistema de distribuição exclusiva de gás canalizado (TUSDE-GÁS)127, que receberá análise específica dentro da política tarifária do mercado livre de gás canalizado.
A Resolução ARSP n.º 046/21 disciplina novos requisitos para enquadramento do consumidor como usuário livre. O primeiro é a celebração de contrato de uso do serviço de distribuição homologado pelo regulador. Apesar de sua previsão no contrato de concessão, a resolução o atribui como instrumento que formaliza a condição do usuário do serviço público de distribuição de gás canalizado com volume de consumo igual ou superior a 10.000 m3/dia.
300.000/m3/mês de gás natural, sem restrição de consumo mínimo diário’. Nesse contexto, a literalidade da redação conduz ao entendimento de que o consumidor livre seria obrigado a diariamente consumir mais do que 10.000m3/dia, não podendo modular e sazonalizar o seu consumo (ao longo dos dias da semana ou dos meses do ano) de forma que, em determinados dias, tenha consumo inferior ao mínimo. Nesse contexto, para garantir a participação no mercado livre de diversas indústrias com características de consumo sazonais, (e até mesmo indústrias que não operam nos fins de semana, por exemplo), é importante que a regra preveja que o consumo mínimo diária deverá ser aferido com base em média móvel anual ou com base no consumo potencial máximo do consumidor.” REIS, Xxxxxxxx Xxxxx. XXXXX, Xxxxxx Xxxx Xxxxxxxx. Deliberações da Agenersa e lições para os outros Estados no contexto da abertura do mercado de gás natural. In: Energia e meio ambiente. Editoria Fórum: Belo Horizonte, p. 240.
124 Contribuição da Abraceel à Revisão das Regras do Mercado Livre de Gás no Rio de Janeiro, transcrita no relatório do voto da Deliberação Agernersa 4.062/201/8, fl. 1688. Disponível em: < xxxx://xxx.xxxxxxxx.xx.xxx.xx
>. Acesso em: 24 mar. 2022.
125 Lei Estadual n.º 11.173/20, art. 2º §2º.
126 Contrato de Concessão. Clásula I. 1.1. “LI - SISTEMA DE DISTRIBUIÇÃO: sistema que compreende toda a infraestrutura operada e mantida pela CONCESSIONÁRIA para distribuir GÁS CANALIZADO aos seus USUÁRIOS, incluindo REDES DE DISTRIBUIÇÃO, RAMAIS DEDICADOS E REDES LOCAIS;”.
127 Contrato de Concessão. Clásula V:5”.1. O AGENTE LIVRE DE MERCADO que utilizar o SISTEMA DE DISTRIBUIÇÃO deverá firmar contrato para a distribuição de GÁS CANALIZADO com a CONCESSIONÁRIA, fazendo jus ao tratamento tarifário específico da TARIFA DE USO DO SISTEMA DE DISTRIBUIÇÃO DE GÁS CANALIZADO (TUSD-GÁS).
5.2. O AGENTE LIVRE DE MERCADO que implantar o seu RAMAL DEDICADO deverá doar o ativo construído, conforme REGULAMENTO, e firmar contrato de operação e manutenção do RAMAL DEDICADO com a CONCESSIONÁRIA, fazendo jus a tratamento tarifário específico da TARIFA DE USO DO SISTEMA DE DISTRIBUIÇÃO EXCLUSIVA DE GÁS CANALIZADO (TUSDE-GÁS).”
A norma é silente, contudo, quanto a exigir para celebração do contrato de uso do serviço de distribuição a comprovação da qualificação de consumidor livre na forma prevista na Lei Estadual n.º 11.173/20, pois não exige, para assinatura daquele contrato, a comprovação do contrato de comercialização que garanta o fornecimento diário mínimo exigido na referida Lei.
O contrato de uso do serviço de distribuição canalizado é o instrumento que formaliza a relação jurídica entre a concessionária e o agente livre de mercado que tem como objeto a prestação o referido serviço. A sua disciplina no regulamento é prévia ao Capítulo do Mercado Livre de Gás Canalizado, e traz regras de natureza técnica e econômica sobre as quais suas cláusulas deverão dispor. Aquelas que deverão constar no contrato visando maior segurança jurídica aos usuários livres. Dentre elas destaca-se a (i) previsão de sujeição da concessionária à penalidade quando lhe forem imputadas falhas na prestação do serviço que impeçam o usuário de retirar a quantidade diária de gás programada; (ii) prazo mínimo de um ano de vigência do contrato; (iii) possibilidade de celebração de um só contrato ainda que o usuário seja atendido por mais de um ponto de entrega.
O segundo critério que a regulação discricionária fixa para o ingresso no mercado livre é a existência de volumes de gás “compatíveis com a demanda existente” na área da concessão, a que a concessionária está obrigada a observar para celebração dos contratos de fornecimento e de uso do serviço de distribuição128.
A norma não traz condicionantes ao cumprimento dessa obrigação, em que medida poderia legitimar, por exemplo, a recusa na celebração do contrato de uso do serviço de distribuição com o agente livre, como medida a garantir o fornecimento ao mercado cativo. Reconhece o risco da concessionária, mas seria importante prever mecanismos para gerenciá- lo129, submetendo ao controle da agência a demonstração dessa compatibilidade.
128 Art. 8º Resolução ARSP n.º 046/21
129 “Por fim, uma questão não menos importante no atual contexto diz respeito à gestão do risco de compra de gás pela distribuidora. Como falamos acima, o objeto da outorga da distribuidora e seu modelo de negócios dizem respeito à exploração dos serviços de rede. No entanto, para o universo dos consumidores cativos, este agente tem também o risco de gerir seu portfólio de compra de gás, de forma a garantir o atendimento da demanda. Este é um risco importante e que hoje vem sendo gerido pela própria Petrobras e negociado caso a caso com as distribuidoras. Com a entrada de novos agentes e a assunção de um novo papel pelo incumbente, as distribuidoras terão que gerenciar diretamente este risco. Neste contexto se insere a discussão sobre o by-pass comercial. É necessário estabelecer mecanismos para que a distribuidora consiga gerenciar o risco da compra de gás para atendimento a seu mercado cativo. Não significa, no entanto, que lhe deva ser franqueada irrestritamente uma exclusividade sobre o direito de comercializar gás em determinada área de concessão”. FGV CERI (Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx). Desenvolvimento de um mercado de gás no Brasil. Disponível em:
< xxxxx://xxxx.xxx.xx/xxxxx/xxxxxxx/xxxxx/xxxxxxxxxxx/0000-00/00_00_xxxxxxxxxxxxxxx-xx-xx-xxxxxxx-xx-xxx-xx- brasil.pdf >. Acesso em 01 mar. 2021.
O raso tratamento dispensado ao controle do volume de gás ao mercado cativo não equivale à importância do tema. Isso porque conforme o Boletim do Gás Natural publicado pela ARSP, referente ao quarto trimestre de 2021, 54,65% (cinquenta e quatro vírgula sessenta e cinco por cento) do consumo foi atribuído ao segmento industrial e 38,22% (trinta e oito vírgula vinte e dois por cento) ao segmento térmico130. Há potencialidade desse consumo migrar para o mercado livre com impacto na modelagem da concessão que inclui a receita de comercialização aos usuários cativos, com potencial de conflito a ser instalado pela eventual recusa da concessionária à migração sob o argumento de perda de receita da concessão ou pleito de reequilíbrio da equação econômico-financeira original, tema a ser abordado adiante.
Uma vez qualificado como agente livre, o contrato garante à concessionária a observância de um prazo mínimo até que seja realizada a migração do mercado cativo para migração ao mercado livre de gás canalizado, ou vice-versa, que deverá ser definido em regulamento, assim como o prazo mínimo de vigência do contrato de utilização do sistema de distribuição celebrado entre o agente livre e a concessionária.
A partir disso, a Resolução n.º 046/21 instituiu o aviso prévio, fixado em no mínimo 6 (seis) meses, condicionado ao cumprimento do contrato de fornecimento ao usuário no mercado cativo até o seu vencimento (art. 19). A norma avança, contudo, ao permitir que a concessionária avalie a conveniência de dispensar o usurário do cumprimento do aviso prévio e do prazo remanescente do contrato de fornecimento em vigor. Acrescenta, assim, flexibilidade para que as partes, em processo consensual, avaliem e criem condições mais vantajosas para o não cumprimento do aviso prévio.
Essas medidas representam conformação da modelagem da concessão ao mercado livre em ajuste à inexistência de exclusividade da concessionária na prestação do serviço de comercialização aos consumidores livres.
Não foi objeto de maior atenção do regulador a entrada no mercado livre de novos usuários, aqueles que não participam do mercado cativo. A esses interessados, aptos a se habilitarem como consumidor livre, autoprodutor e autoimportador foi assegurado somente um prazo de resposta à manifestação formal apresentada à concessionária (arts. 20 a 22), que pode ser prorrogada pelo mesmo período após aprovação da ARSP. A redação do artigo não prevê a possibilidade de recusa, pois exige que a resposta ao interessado contenha “as justificativas e as condições técnicas e econômicas suficientes para o atendimento dos requisitantes”. A
130 Agência de Regulação de Serviços Públicos do Espírito Santo – ARSP. Boletim do Gás Natural Estado do Espírito Santo. Outubro a Dezembro de 2021. Disponível em: < xxxxx://xxxx.xx.xxx.xx/xxxxxxx-xx-xxx >. Acesso em: 20 de maio de 2022.
omissão de referência à impossibilidade de atendimento permite concluir que esta não é uma opção à concessionária. Essa passa a deter, contudo, ampla margem discricionária para atender aos requisitantes, pois não há balizamento na regulação quanto ao que se considerar suficiente na justificativas técnicas e econômicas.
O agente livre de mercado poderá ser, concomitantemente, usuário do mercado cativo e do livre. Apesar de a norma regulamentar esse mercado, houve preocupação do regulador em priorizar o primeiro. É o que ocorre nessa hipótese de contratação simultânea em que “a quantidade diária contratada para o usuário deve ser prioritariamente computada no mercado cativo” subtraindo do volume total retirado pelo usuário de forma a incidir sobre o restante as regras contratuais do mercado livre131.
Como o mercado livre está em estruturação, normas flexíveis permitem que a regulação seja adaptada à medida que as informações são apropriadas pela agência. Mas a amplitude dessa flexibilidade deve ser limitada nas questões em que a segurança jurídica é relevante para a tomada de decisão de investimento.
A segurança jurídica para decisão de investimento é questão central na regulação do ramal dedicado, compreendido como as instalações e dutos a serem construídos pelos agentes livres para uso específico, tema da abordagem seguinte.
4.3) Do ramal dedicado
O contrato também institui a regulamentação inicial da construção e implantação de instalações e dutos pelo consumidor livre, autoprodutor e autoimportador para seu uso específico. A essa infraestrutura denomina ramal dedicado e, na esteira do disposto no artigo 29 da Lei Federal n.º 14.134/21, prevê a incorporação desse ativo ao patrimônio estadual e contratação com a concessionária da sua operação e manutenção.
Trata-se de preceito que se alinha com a titularidade da prestação dos serviços locais de gás canalizado pelos Estados. Os bens vinculados a esses serviços atraem a característica da reversibilidade ao patrimônio público132, ainda que dedicado exclusivamente a um agente livre de mercado.
131 Art. 5º, §4º da Lei Estadual n.º 11.173/20 e art. 29, §1º da Resolução ARSP n.º 046 de 31/03/2021.
132 Art. 35, §1º da Lei Federal n.º 8.987/95: “Extinta a concessão, retornam ao poder concedente todos os bens reversíveis, direitos e privilégios transferidos ao concessionário conforme previsto no edital e estabelecido no contrato”.
Controversa, entretanto, é a forma como a regulação estadual prevê a incorporação do ramal dedicado. O contrato de concessão, a Lei Estadual n.º 11.173/20 e a Resolução ARSP n.º 046/21133 preveem a sua doação. Nenhum desses atos, contudo, estabelecem o donatário. A infraestrutura, apesar de atender a usurário individualizado, passa a integrar o sistema de distribuição134 regido pelo regime jurídico da concessão. Disso resulta a sua vinculação à prestação de serviço público, a sua incorporação ao rol dos bens reversíveis e o direito de ser explorado economicamente pela concessionária. Xxxxxxx, assim, explicitar que a doação é feita ao poder concedente e a necessidade de formalizar a sua inserção no rol dos bens reversíveis da concessão.
Como infraestrutura essencial para a prestação do serviço público de distribuição de gás na forma canalizada, ainda que inicialmente sob o domínio do particular, deve ser classificado como reversível. Não importa que sua destinação seja a um usuário específico, o agente livre de mercado. Ao poder concedente não foi conferida discricionariedade ao proceder essa classificação, sob a qual se incluirão os bens vinculados à “continuidade e atualidade do serviço concedido”135, aqueles imprescindíveis ao serviço concedido. A natureza reversível dos bens será reconhecida, portanto, a partir de suas características e a relação de essencialidade com a prestação do serviço público, suprimindo espaço de liberdade decisória para o poder concedente.
Ao término da concessão, o ramal dedicado reverterá ao patrimônio público. Sob o aspecto jurídico, no regime jurídico da concessão é devida a correspondente indenização ao privado referente à parcela do investimento na infraestrutura não amortizada, como expressamente exigem os artigos 36 e 37 da Lei Federal n.º 8.987/95. Os dispositivos efetivam o direito constitucional de propriedade, e o consectário direito à indenização na hipótese de expropriação, como previsto no inciso XXIV do artigo 5º da Constituição Federal136, só afastada nas hipóteses nessa expressamente previstas137. Entretanto, o investimento no ramal dedicado
133 Cláusula 5.2, Art. 5º e Art. 38 respectivamente. 134 Art. 5º, §2º da Resolução ARSP n.º 046/2021. 135 Art. 36 da Lei Federal n.º 8.987/1995.
136 “É certo que a assunção das instalações privadas da concessão pelo poder concedente não equivale plenamente a uma hipótese de desapropriação. A situação apresenta contornos distintos da desapropriação, particularmente no que refere ao procedimento e à sistemática para sua efetivação. Mas é evidente que o desapossamento do concessionário em relação a seus bens identifica-se com um uma hipótese de expropriação, não sendo viável ao legislador dispensá-la do atendimento ao pressuposto estabelecido pela Constituição”. GUIMARÃES. 2014, p. 349/350.
137 “Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.”
é realizado pelo usuário livre, que não terá a exploração econômica da infraestrutura como alternativa para amortizar os seus custos.
Para afastar o direito de indenização do ramal dedicado o mesmo não poderia integrar o rol dos bens reversíveis da concessão, aqueles que passam à titularidade do poder concedente, conforme prevê o artigo 35, §1º da Lei Federal n.º 8.987/95. A doação do ramal dedicado confronta, assim, com o regime jurídico da concessão e com a garantia constitucional do direito de propriedade. A cessão da posse do ramal dedicado à concessionária, enquanto vigente o contrato de operação e manutenção, é a opção jurídica consentânea com a garantia constitucional do direito de propriedade.
Outra alternativa para tornar legítima a transferência de titularidade da infraestrutura ao poder concedente seria a garantia de que o valor da TUSDE-GÁS fosse capaz de conferir o retorno do investimento.
O §2º do artigo 38 da Resolução ARSP n.º 046/21 inova e excede a margem normativa e contratual para afastar a doação na hipótese de o investimento no ramal dedicado ser realizado pela concessionária com participação financeira do agente livre de mercado. A Lei Estadual n.º 11.173/20, após prever a obrigatoriedade da doação, também admite o compartilhamento de custos, sem qualquer exceção à transferência não onerosa do ativo. Apesar dessa previsão, a Resolução não traz qualquer previsão adicional quanto à incorporação do ativo no rol dos bens da concessão, a sua inclusão na modelagem econômico-financeira e a absorção do proveito da sua exploração na modicidade tarifária. Diversos são os entraves ainda a serem solucionados para compatibilização do ramal dedicado à prestação dos serviços públicos locais de gás canalizado.
O ramal dedicado estará vinculado à prestação de um serviço público e ao regime jurídico que lhe é correlato. Será explorado economicamente por um privado, o concessionário, e não pelo agente livre que o implantou para atendimento de suas necessidades.
Isso afasta equiparar a exploração do ramal dedicado do regime de autorização, como o previsto no artigo 4º da Lei Federal n.º 14.134/21 para o exercício da atividade de transporte138, caso em que a exploração de uma atividade econômica não se dá em substituição ao poder público, ainda que sob forte intervenção desse, e o agente terá a liberdade de estabelecer vínculos com terceiros sob o regime privado. No serviço de distribuição de gás canalizado, a infraestrutura, a que o contrato e regulamento denominam de ramal dedicado, será
138 Art. 4º A atividade de transporte de gás natural será exercida em regime de autorização, abrangidas a construção, a ampliação, a operação e a manutenção das instalações.
explorada para prestação de um serviço público, e a relação do agente livre será exclusiva com a concessionária.
Para além da previsão constitucional exclusiva do regime da concessão para delegação dos serviços locais de gás canalizado, impeditiva da utilização de outros modelos, as propriedades da infraestrutura, em especial os custos afundados para sua implantação, justificam a restrição de entrada de concorrentes para garantir a sua exploração eficiente, qualificando-a como monopólio natural. Isso, somado à necessidade de garantia pelo poder concedente do suprimento de gás a todos os usuários139, afasta a adequação do regime jurídico da autorização para exploração do ramal dedicado.
Esses aspectos levam a compreender a opção do artigo 25, § 2º da Constituição Federal em prever a exploração dos serviços locais de gás canalizado somente sob o regime jurídico da concessão, mesmo admitindo a transferência da prestação de serviço público a particular pelo instituto da autorização140, declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI n.º 5549 para a prestação dos serviços de transporte internacional e interestadual de passageiros, previsto na Lei Federal n.º 10.233/2001, com as alterações introduzidas pela Lei Federal n.º 12.996/2014.
A implantação do ramal dedicado envolve elevados custos e não estará associada ao gerenciamento da operação e manutenção e exploração da infraestrutura de forma livre pelo usuário, que lhe permita apropriar de ganhos de escala na utilização da infraestrutura, esses ganhos serão auferidos pela concessionária, por meio da tarifa aplicável.
Para além dos obstáculos jurídicos impostos à opção regulatória de doação daquela infraestrutura, considerando a ausência de indenização, restringe-se o incentivo ao agente livre
(i) à possibilidade de aquisição de gás no mercado livre em condições mais vantajosas que no mercado cativo, cujo proveito econômico deverá ser suficiente para recuperar seus investimentos, bem como (ii) à definição de uma TUSDE-GÁS efetivamente competitiva.
O ramal dedicado poderá ser construído e implantado exclusivamente pelo agente livre de mercado ou de forma compartilhada com a concessionária.
139 Nota-se que o monopólio natural não é condição suficiente para tornar inadequado o regime da autorização, a exemplo da sua previsão exclusiva para delegação da exploração da atividade de transporte de petróleo e gás, já citada. Seus custos também são elevados e a duplicação da infraestrutura também pode gerar ineficiência.
140 “...a autorização também pode ser instrumento para a transferência a particulares de atividades públicas, legitimando o desenvolvimento de atividades tradicionalmente tidas como serviço público, como é o caso dos serviços de telecomunicações. Em suma, a depender do que se entende por ‘serviço público”, é possível aceitar que a autorização seja instrumento para a transferência de serviço público a particulares”. XXXXXXXX, Xxxx. Concessão. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 86/87.
Como requisito para construção e implantação do ramal dedicado o artigo 29 da Lei Federal n.º 14.134/21 prevê somente a demonstração de impossibilidade de atendimento ao agente livre pela concessionária de distribuição.
Na regulação estadual, essa condicionante é definida pelas seguintes hipóteses: i) quando o agente livre não for ligado à rede distribuição ou rede local, ou ii) para distribuição de volumes adicionais de gás superiores à capacidade instalada do agente livre, quando esse, portanto, já é usuário do sistema de distribuição, e desde que seja preservada a modicidade tarifária e o equilíbrio econômico-financeiro da concessão.
Não há outro elemento objetivo definido para caracterização de impossibilidade de atendimento pela concessionária. Inclusive, ela poderá ser a responsável pela construção da infraestrutura.
A impossibilidade de atendimento não está associada à capacidade de investimento ou técnica da concessionária. Deve ser compreendida a partir dos obstáculos técnicos e econômicos de inserir a implantação da infraestrutura no plano de investimentos da concessão, para expansão e ampliação do sistema de distribuição.
A essas condicionantes contratuais foram conferidas rigidez com a sua previsão na Lei Estadual n.º 11.137/20141.
A regulação contratual não se ocupou em disciplinar a possibilidade de a concessionária solicitar ao agente livre de mercado que dimensione o ramal dedicado de modo a viabilizar o atendimento a outros usuários, em troca de contrapartidas e sob arbitragem da ARSP, na forma em que previa o artigo 46, §3º da Lei Federal n.º 11.909/09, substituído pelo artigo 29, §3º da Lei Federal n.º 14.134/21 com idêntica redação142. A permissão de uso de ramal dedicado por outros usuários, cativos ou outros agentes livres de mercado (a lei não limitou), visa a ampliação do serviço público.
Essa omissão foi parcialmente suprida pela regulação da agência, que admite a iniciativa de implantação do ramal dedicado por mais de um agente livre de mercado, exigindo somente
141 Art. 5º. § 4º O agente livre de mercado que já for usuário, ativo ou inativo, do sistema de distribuição somente poderá implantar ramal dedicado para volumes adicionais à capacidade instalada para o usuário, que devem ser entendidos como a máxima demanda contratada ao longo da vida deste usuário dentro da concessão, se:
I - observado o disposto no § 1º;
II - preenchidos os requisitos previstos no regulamento;
III - não afetada a modicidade tarifária dos demais usuários; e IV - observado o equilíbrio econômico-financeiro da concessão.
142 “Art. 29. § 3º. Caso as instalações de distribuição sejam construídas pelo consumidor livre, pelo autoprodutor ou pelo autoimportador, na forma prevista no caput deste artigo, a distribuidora de gás canalizado estadual poderá solicitar-lhes que as instalações sejam dimensionadas de forma a viabilizar o atendimento a outros usuários, negociando com o consumidor livre, o autoprodutor ou o autoimportador as contrapartidas necessárias, sob a arbitragem do órgão regulador estadual”.
a manifestação da concessionária e a aprovação do regulador (Resolução ARSP art. 36, §1º)143. É uma medida de incentivo ao desenvolvimento do mercado livre, devido aos elevados custos associados à construção da infraestrutura.
Algumas questões que sobressaem quando se opta pelo compartilhamento da infraestrutura por mais de um agente livre não foram enfrentadas. Pode ser configurada como ramal dedicado? Qual o limite para o compartilhamento? Havendo mais de um usuário qual a tarifa aplicável?
Conferiu-se, nesse caso, ampla discricionariedade e poder decisório à concessionária para admitir ou não o compartilhamento do ramal dedicado, que avaliará a pretensão dos agentes livres sem qualquer condicionante. Para dar segurança jurídica e efetividade para o uso do ramal dedicado por mais de um agente livre de mercado é preciso uma contenção da liberdade decisória da concessionária, sujeitando-a a critérios objetivos técnicos e econômicos mínimos que legitimariam o compartilhamento, ou que o impediriam, como o limite para o compartilhamento, como a quantidade de usuário ou quantidade de volume de gás movimentado. Estabelecer critérios não somente para garantir segurança jurídica, mas que favoreçam o uso mais eficiente da infraestrutura ao compartilhar o seu uso com outros agentes livres.
Outro incentivo para a implantação do ramal dedicado previstos na regulação estadual é a possibilidade de se conferir aos agentes livre de mercado a sua operação e manutenção, o que não está previsto no artigo 29 da Lei Federal n.º 14.134/21.
Compartilhamento de infraestrutura e sua operação e manutenção pelo agente livre de mercado são especificidades que também demandariam tratamento diferenciado na política tarifária aplicável ao mercado livre, tema do capítulo seguinte.
A implantação do ramal dedicado pelo agente livre de mercado e a sua operação e manutenção pela concessionária justifica-se pela outorga dos referidos serviços efetivada pelo contrato de concessão. Mas isso também a condiciona que preste os serviços por sua conta e risco, de modo regular, eficiente, contínuo e seguro como preconiza o art. 6º §1º da Lei Federal n.º 8.987/95. Esse ponto não foi objeto de preocupação do regulador estadual, que apenas condicionou o agente livre a firmar contrato de operação e manutenção com a concessionária, sem prever qualquer diretriz para referido contrato. Há necessidade, portanto, de mitigar-se o
143 Art. 37. §1º: O AGENTE LIVRE DE MERCADO terá a iniciativa de propor a construção do RAMAL DEDICADO, inclusive conjuntamente com um ou mais AGENTES LIVRES DE MERCADO, mediante requerimento junto à CONCESSIONÁRIA, que deverá apresentar seu posicionamento em até 60 dias, com cópia da respectiva documentação, para aprovação do REGULADOR, atendendo ao estabelecido no caput.
xxxxx do agente livre que suportará os custos de construção e implantação, mas não tem assegurada que a infraestrutura será otimizada na prestação do serviço público.
Outro desafio ao incentivo para implantação do ramal dedicado é a política tarifária, tratada no próximo tópico.
4.4) Do regime tarifário aplicável ao mercado livre de gás canalizado
A migração do consumidor cativo para o mercado livre de gás canalizado, para além da segurança jurídica, requer incentivo econômico. A possibilidade de aquisição do gás perante supridor livremente escolhido pelo consumidor livre requer condições para ampliação da participação de agentes no mercado de comercialização, gerando concorrência. Dentre essas tem-se a limitação de exploração da comercialização pela concessionária no mercado livre à qual se soma o incentivo econômico para migração, dependente de como serão estruturadas as tarifas referentes aos serviços de distribuição aplicáveis aos usuários livres. À luz dessa premissa passa-se a analisar as opções adotadas pela regulação tarifária do Estado do Espírito Santo e seu potencial de incentivo ao mercado livre.
O Estado do Espírito Santo, seguindo algumas regulações estaduais 144, estabeleceu, já no contrato de concessão, conforme demonstrado, uma dicotomia na regulamentação tarifária entre os agentes livres: os que se utilizam das instalações que já integram o sistema de distribuição, disponíveis a todos os usuários, nesse caso a tarifa aplicável é denominada de TUSD-GÁS145; e aqueles cujas necessidades serão atendidas pelos ramais dedicados, que receberão o tratamento tarifário específico denominado TUSDE-GÁS146.
Posteriormente, a Lei Estadual n.º 11.173/20 definiu regras de política tarifária do mercado livre de gás canalizado. Reitera algumas já estabelecidas no contrato, como a necessidade de preservação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão na fixação da TUSD-GÁS, pois a infraestrutura é a mesma destinada aos demais usuários do sistema de distribuição. Também especifica a metodologia para o seu cálculo, que é a prevista no contrato de concessão e em regulamento para apurar a margem média de distribuição conforme segmento e classe de consumo do usuário147.
144 Como no caso do Rio de Janeiro e Sergipe. Já o Estado de São Paulo não prevê essa diferenciação.
145 Contrato de concessão. Cláusula V. Item 5.1. 146 Contrato de concessão. Cláusula V. Item 5.2. 147 Art. 6º, §2º e §3º, Lei Estadual n.º 11.173/20.
Com relação à TUSDE-GÁS, a Lei fixa importantes premissas a serem observadas no regulamento que definir as regras para sua apuração. A primeira é o dever de a concessionária calcular a tarifa de forma individualizada para os agentes livres de mercado, e a segunda é a inclusão no cálculo desta tarifa de parcela relativa à amortização do valor da outorga e de sua respectiva remuneração (art. 6º, §4º e §5º).
Maior detalhamento do regime tarifário está previsto na Resolução ARSP n.º 046/2021, que não traz incentivo imediato para os usuários cativos que pretendem migrar para o mercado livre, ou para usuários novos que pretendam ingressar no mercado de potenciais agentes livres.
Isso porque, para os primeiros cinco anos da concessão, a TUSD-GÁS a ser paga pelo agente livre de mercado usuário do sistema corresponderá à margem de distribuição do usuário cativo do mesmo segmento148. A fórmula para seu cálculo é composta por custos operacionais, administrativos e de comercialização, ou seja, por todos os custos associados aos serviços prestados pela concessionária, ainda que não seja prestado ao agente livre, como a comercialização. Ou seja, sob o aspecto tarifário do serviço de distribuição, o incentivo econômico inicial para migração ao mercado livre dependerá do valor do gás a ser adquirido no mercado livre, suficientemente vantajoso a compensar que os custos associados ao serviço de comercialização da concessionária continuem a ser suportados pelo agente livre, ainda que não beneficiários da atividade.
Somente após o primeiro ciclo tarifário, quando a agência fixará a nova TUSD-GÁS, no procedimento de revisão tarifária149 é que poderão ser deduzidos encargos da concessionária que não teriam pertinência à prestação do serviço de distribuição para o mercado livre, previstos na Resolução ARSP n.º 046/21 em rol exemplificativo, como os relacionados à aquisição, transporte, comercialização e outros150.
Tratam-se, contudo, de diretrizes, uma sinalização da regulação para aqueles que intencionam migrar para o mercado de que a margem média de distribuição que lhes será aplicável também será vantajosa ao longo do tempo, com a dedução de custos de atividades que incidem em serviços que não lhes são prestados. A Resolução ARSP n.º 046/21 remete a uma outra regulamentação para fixação daquela tarifa e dispõe que a dedução dos encargos deverá observar critérios técnicos que não são especificados151.
148 Artigo 43 §3º, Resolução ARSP n.º 046/21.
149 Art. 43, §2º, Resolução ARSP 046/2021.
150 Art. 43, §3º, §4º e §5º, Resolução ARSP 046/2021.
151 Art. 43, §4º e §5º, Resolução ARSP 046/2021.
Desse modo, há ainda um grau de incerteza quanto ao incentivo econômico da regulação estadual intrínseco à prestação do serviço público de distribuição representado pela redução do custo da tarifa correspondente cuja estrutura seja proporcional à utilização dos referidos serviços, na linha das boas práticas regulatórias recomendadas pelo CNPE, por meio da Resolução n.º 16/19152.
A TUSD-GÁS só será mais vantajosa ao agente livre de mercado se a dedução de encargos for uma realidade. A Resolução ARSP n.º 043/21 condiciona essa medida ao atendimento de critérios técnicos sobre os quais não dispõe e, em qualquer caso, deverá ser preservado o equilíbrio econômico financeiro da concessão. Ainda que expressamente preveja a separação contábil das receitas, dos custos, despesas e encargos associados à prestação do serviço de comercialização pela concessionária, bem como a sua aplicação parcial à margem de distribuição como forma de contribuir para a modicidade tarifária (art. 47), subsiste a discricionariedade da agência e espaço de influência da concessionária na definição dessa tarifa postergando a regulação para ato futuro.
A TUSDE-GÁS, tarifa aplicável ao agente livre atendido por ramal dedicado, corresponde a tratamento tarifário, além de específico, exclusivo, individualizado153. O contrato de concessão remete ao regulamento a forma da sua apuração154, também representado pela Resolução ARSP n.º 046/21, que disciplina a competência e critérios a serem observados em seu cálculo, sem remissão à regulamentação complementar155, integrativa das regras aplicáveis à referida tarifa.
A Resolução prevê o seu cálculo pela concessionária submetida à aprovação pela ARSP. Contudo, não fixa a metodologia de cálculo, somente estabelece os custos e receitas mínimos, elencados em rol não exaustivo156, que deverão compô-la. Admite-se, assim, a inclusão discricionária de outros custos e receitas, o que não ocorre no cálculo da TUSD-GÁS.
Não há uma disciplina clara quanto ao que se deve compreender como atribuição da concessionária em proceder ao seu cálculo. O regime jurídico incidente sobre a exploração de serviços públicos pelo privado restringe a liberdade desse em definir a sua remuneração. Ao exigir que a lei discipline a política tarifária para prestação dos serviços públicos sob o regime de concessão, a Constituição Federal, em seu artigo 175, parágrafo único, inciso III, atribui ao
152Art. 5º, inciso I, “g”.
153 Contrato de concessão. Cláusula V. Item 5.2.
154 Contrato de concessão. Cláusula XII. Item 12.11.
155 Art. 43, §7º e §8º, Resolução ARSP 046/2021.
156 Art. 43, §7º , Resolução ARSP 046/2021.
Poder Público a regulação da tarifa157. É essa prévia disciplina legal, inclusive, que autorizará e estabelecerá os contornos da decisão administrativa regulatória tarifária.158.
A Lei Federal n.º 14.134/21 expressamente elucida159 a competência do órgão estadual para estabelecer as tarifas de operação e manutenção referentes ao serviço de distribuição prestados com a utilização do ramal dedicado. A Lei Complementar Estadual n.º 827/16, que cria a ARSP, atribui-lhe a competência para “fixar as tarifas e outras formas de contraprestação dos serviços regulados”160, orientada pelos princípios do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, da modicidade tarifária, eficiência e eficácia, estes expressamente relacionados à “apropriação social dos ganhos de produtividade”161. Não está albergado pela norma o cálculo da tarifa pela concessionária, sem prévia definição de metodologia da agência162.
Já a Lei Estadual n.º 11.173/20 define como diretrizes da política tarifária a “transparência, eficiência e estrutura tarifária adequada”, e o “tratamento tarifário isonômico ao consumidor livre, ao autoprodutor e ao autoimportador, observadas as diferenças estabelecidas na legislação e em regulamento”163. Prevê no seu artigo 6º, §º 4º que a agência fixará a TUSDE-GÁS, conforme regulamento, e que seu cálculo será feito forma individualizada.
Fixar tarifa não é somente prever os custos e receitas mínimos na forma como a agência o fez na Resolução ARSP n.º 046/21, mas definir a sua metodologia, estabelecendo, de modo estanque, os elementos que a compõem.
Sem prever uma metodologia específica para apuração da TUSDE-GÁS, não se assegura a isonomia e transparência entre os agentes livres. As opções da concessionária para
157 Conforme ensina Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxx, “o regime tarifário, por definição, implica a erradicação da livre fixação de preços pelo agente econômico (em se tratando de serviço público, a precificação não segue a lógica econômica de oferta e demanda, no mais das vezes segue a racionalidade política que pressupõe subsídios e benefícios tarifários)”. E é imperativo ao afirmar, apoiado na obra de Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx (Direito de concessão de serviço público, 2010, p.355) que “a tarifa é um preço regulado pelo Poder Público”. Concessões. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2016, p. 183 e p.185
158 “Em virtude desta regra constitucional, o legislador não pode deixar exclusivamente para o campo da decisão administrativa a fixação de uma política em matéria tarifária. A previsão da política a ser perseguida deve estar contida no próprio texto legislativo. Quando muito, será possível que o legislador delegue à função administrativa a escolha de uma, entre muitas políticas previamente autorizadas, ou atribuir-lhe a fixação de mecanismos específicos para o atendimento das metas já definidas na própria lei”. CÂMARA, Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxx xx Xxxxxx. O regime tarifário como instrumento de políticas públicas. Revista de Direito Público da Economia - RDPE, ano 19, n. 12, p. página inicial-página final, out./ dez. 2005. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxx/000/00000/00000. Acesso em: 19 abr. 2022. p.2-3
159 Não é competência da União dispor sobre esse tema, portanto, o disposto no§1º do artigo 29 da Lei Federal n.º 14.134/21 tem caráter diretivo, elucidativo.
160 Art. 7º, inciso VIII.
161 Art. 2º , inciso IV.
162 Art. 5º inciso VII da Lei Complementar Estadual n.º 827/2016.
163 Art. 3º, incisos II e III.
o cálculo individualizado das tarifas devem ser objetivas e preestabelecidas pela agência, afastando qualquer tratamento discriminatório que não seja devidamente justificado164.
O tratamento tarifário diferenciado é admitido pelo artigo 13 da Lei n.º 8.987/95, “em função das características técnicas e dos custos proveniente aos distintos segmentos de usuários”. Não há autorização legislativa para que a tarifa seja individualizada, ou seja, que em um mesmo segmento, sejam adotados critérios diferenciados para o seu cálculo. Não significa dizer que as tarifas serão idênticas na hipótese de ramal dedicado, pois os custos que lhes corresponderão serão distintos, mas a metodologia deve ser a mesma conforme cada segmento. É esse o sentido a se extrair quando o §1º do artigo 29 da Lei 14.134/21 orienta o regulador estadual a estabelecer a tarifa considerando as especificidades de cada instalação.
A aprovação da tarifa pela agência não assegura, necessariamente, a isonomia. A discricionariedade permite a captura e restringe o controle.
Já a transparência, uma das diretrizes do mercado livre, requer a informação sobre formação de preços, fator importante em uma indústria de rede165. A divulgação pela concessionária das tabelas de tarifas aplicadas ao mercado livre prevista na Resolução ARSP n.º 046/21 (art. 46) não a garante. A Resolução n.º 16/19 do CNPE (art.4º, inciso I, “e”) recomenda aos Estados como boa prática regulatória para o mercado livre de gás canalizado recomendada a “transparência na metodologia de cálculo tarifário e na definição dos componentes da tarifa”.
A preocupação com a transparência é sobrelevada pela possibilidade de a concessionária prestar o serviço de comercialização166 ao consumidor livre, como será visto adiante. Para mitigar os riscos de subsídio cruzado, a transparência deve ser além da divulgação da tabela de tarifas, mas abranger as informações associadas a essa atividade de comercialização, como o volume contratado junto à concessionária e o prazo de fornecimento.
164 “A liberdade para fixar valores tarifários mais baixos do que o teto estabelecido pelo poder concedente traz embutida a autorização para conferir descontos a determinadas categorias de usuários. Isto, todavia, não a representa um abandono do princípio da isonomia. A atribuição de descontos não pode ser feita de maneira arbitrária ou pessoal. A prestação de serviços públicos, mesmo que delegada a particular, não afasta esta atividade de regras básicas do regime jurídico administrativo, tais como o princípio da impessoalidade. Sendo assim, descontos poderão ser conferidos a determinadas categorias de usuários, desde que exista razão plausível para tanto: condição especial de localização, volume do serviço prestado ou algo do gênero. A discriminação injustificada também é vedada neste modelo da tarifa teto. XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. O regime tarifário como instrumento de políticas públicas . Revista de Direito Público da Economia - RDPE, ano 19, n. 12, p. página inicial-página final, out./ dez. 2005. p.15-16 Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxx/000/00000/00000. Acesso em: 19 abr. 2022.
165 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx. O regime jurídico do consumidor livre de gás natural e energia elétrica. p. 271.
166 Contrato de concessão Cláusula 4.3.
A necessidade de maior clareza e objetividade quanto à fixação da TUSDE-GÁS pode ser exemplificada com a manifestação da ARSP em consulta pública prévia à regulamentação da política tarifária do mercado livre. Nessa oportunidade, refutou167 considerar no cálculo da tarifa aplicável ao usuário do ramal dedicado a hipótese de sua utilização por mais de um agente livre, de modo a concorrer para a sua modicidade e estimular a implantação da infraestrutura exclusiva. Conquanto a Resolução n.º 046/21 não limite os custos e receitas que deverão integrar o cálculo da tarifa, verifica-se um grau de incerteza na fixação da tarifa que dependerá da aprovação da agência reguladora.
Quanto a este ponto, especificamente, retoma-se a ausência de segurança jurídica e previsibilidade que já foi alertada quanto ao compartilhamento do ramal dedicado. A discricionariedade da concessionária não se limita a admiti-lo, mas também em definir, discricionária e posteriormente, a forma da sua remuneração nessa hipótese. Não está condicionada a considerar a sua utilização por mais de um agente livre de modo a privilegiar o uso mais eficiente da infraestrutura.
Outro ponto que merece atenção na regulação da TUSDE-GÁS é se a metodologia a ser definida para seu cálculo deve compreender somente a remuneração dos custos de operação e manutenção da infraestrutura, na linha do disposto no artigo 29 §2º da Lei Federal n.º 14.134/21, sem previsão de estímulos à eficiência da concessionária na prestação do serviço de distribuição. A exploração da infraestrutura outorgada ao privado pelo contrato de concessão para prestação de um serviço público vincula poder concedente e concessionária a preverem e observarem mecanismos de estímulos à eficiência por exigência legal, ainda que prestado exclusivamente a um único usuário.
A opção administrativa em conferir mais autonomia para a concessionária em fixar a tarifa a ser cobrada dos usuários tem como pressuposto econômico a prestação do serviço público sob concorrência. Não é o que ocorre nos serviços locais de gás canalizado, que requerem o uso de uma infraestrutura essencial às atividades verticalmente integradas, cujos custos afundados para sua implantação justificam a exploração exclusiva, um monopólio
167 Agência Estadual de Regulação e Serviços Públicos. Relatório circunstanciado contendo análise das contribuições recebidas no Processo de Consulta Pública n.º 001/2021. p. 188. Disponível em: < xxxxx://xxxx.xx.xxx.xx/xxxxxxxxx-xxxxxxxx >. Acesso em 13 mar. 2022.
natural, portanto168. Nesse caso, devem receber “um controle autoritário e efetivo quanto à fixação da tarifa”169.
O mercado livre é constituído pela relação entre supridores e consumidores que, por integrarem uma indústria de rede, são interdependentes do serviço público de distribuição de gás canalizado. O regime jurídico de direito público permanece o incidente, e a concessionária deverá prestar o serviço adequado, ou seja, de forma eficiente, regular, atendendo a critérios de segurança e atualidade.
A tarifa aplicável ao agente livre de mercado que compartilha a infraestrutura com os demais usuários (TUSD-GÁS) é fixada com garantia da manutenção do equilíbrio econômico- financeiro do contrato170. A ocorrência de eventos associados no contrato como risco de responsabilidade do poder concedente garantirá à concessionária a revisão tarifária extraordinária também no mercado livre. Já na hipótese da tarifa aplicável ao serviço prestado por meio de ramal dedicado (XXXXX-XXX), o seu cálculo pela concessionária, sem a definição dos parâmetros, afastaria essa possibilidade. A ocorrência de eventos que impactassem a equação econômico-financeira seria livremente considerada pela concessionária para revisão da TUSDE-GÁS, para posterior aprovação da agência reguladora.
Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx adverte que “o tema das tarifas é dos mais controvertidos na seara das concessões”, e sem uma abordagem mais vertical de seus aspectos, destaca três pontos: “(i) a importância da política tarifária e dos critérios de subsídios; (ii) os critérios para fixação do valor das tarifas e de sua revisão; (iii) o conceito de unidade fruível de serviço para fins de incidência tarifária”171.
Quando o objetivo da política tarifária se associa a incentivos para introdução de concorrência em atividades econômicas que se relacionam verticalmente em uma indústria de rede, como é o caso do mercado livre de gás canalizado, somam-se mais desafios àqueles apontados pelo citado autor. Dentre eles a participação da tarifa na geração de incentivos para o desenvolvimento de atividades competitivas aptas a gerar externalidades positivas a toda a cadeia, e, principalmente, ao serviço público. Como também compatibilizar essa finalidade com
168 “Os serviços públicos concorrenciais pressupõem, no tocante à fixação de preços, a liberdade para operar debaixo dos princípios comerciais, ficando sujeitos aos limites ou restrições gerais aplicáveis a todas as empresas de mercado. Já os serviços monopolísticos mantêm-se sob a tutela tarifária do Estado, atraindo um controle autoritário sobre os preços praticados”. XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Concessão de serviço público.2º Ed. São Paulo: Saraiva, 2014, P. 178.
169 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Concessão de serviço público.2º Ed. São Paulo: Saraiva, 2014, P. 179.
170 Resolução ARSP 046/2021, Art.42, §2º.
171 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx. Concessões. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 185
a de garantir o equilíbrio econômico-financeiro da concessão e a modicidade tarifária para todos os usuários.
No caso em análise, a ausência de atividade no referido mercado, não só no Estado do Espírito Santo, assim como no Brasil, e, portanto, de informações suficientes disponíveis a serem apropriadas pela agência para a tomada de decisão na definição da política tarifária, conduziu-a a uma posição mais conservadora na definição da TUSD-GÁS. Preservou na composição da tarifa uma remuneração não relacionada à prestação do serviço de distribuição, sem avançar, assim, no sentido de promover incentivos econômicos aos agentes livres. Essa opção poderá ser revista a partir do segundo ciclo tarifário do contrato de concessão. Já os questionamentos jurídicos apontados quanto à forma de definição da TUSDE-GÁS demonstram uma incerteza regulatória, e seu aperfeiçoamento será necessário para atrair interessados na implantação de ramal dedicado.
As opções da regulação para a política tarifária do mercado livre de gás canalizado são condicionadas pela garantia do equilíbrio econômico-financeiro da concessão172. São dois cenários em que elas se inserem com preocupações distintas. O primeiro é adequar os incentivos para migração dos usuários cativos para o mercado livre à manutenção da remuneração da concessionária, com especial atenção à supressão da receita advinda da atividade de comercialização, que integra a margem média de distribuição.
O segundo corresponde à preservação da equação econômico-financeira da concessão considerando a prestação do serviço de distribuição no âmbito do mercado livre. Alguns pontos da regulação estadual revelam essa preocupação, a exemplo da previsão expressa de garanti-la na fixação da TUSD-GÁS, contida no contrato e consolidada pelo artigo 6º, §2º da Lei Estadual n.º 11.173/20.
Já no caso da TUSDE-GÁS, como remunera o serviço prestado por meio de infraestrutura que não integra o plano de investimentos da concessionária, não tem a sua fixação vinculada direta com a manutenção das condições econômico-financeiras da concessão, que é exigida, entretanto, para autorizar a implantação do ramal dedicado173.
O contrato de concessão também prevê que a regulação poderá incluir na composição da margem média de distribuição os resultados referentes ao mercado livre, sem qualquer
172 “O dever de estímulo à competitividade não pode ensejar quebra de equilíbrio contratual ou do princípio da modicidade das tarifas, sendo, pois zelar por uma competição não ruinosa um dever do poder concedente, que deve satisfazer sob pena de restar descumprida sua obrigação no contrato de concessão”. XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Concessões, parcerias e regulação. São Paulo: Melhoramentos, 2019, p. 84.
173 Resolução ARSP. Art. 39, IV.
distinção, se usuário de ramal dedicado ou não, garantindo à concessionária a justa remuneração174.
Como efeito dessas medidas, eventos que impactarem a prestação do serviço público de distribuição ao mercado livre poderão impactar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato e legitimar o pleito de revisão extraordinária, de acordo com o risco contratualmente assumido. Haverá um desafio potencial de conflito nesse cenário, quando a matriz de risco contratual não considera expressamente o referido mercado, muito embora atribua ao poder concedente o risco pela alteração da política tarifária175.
A conciliação dos interesses dos usuários cativos, dos usuários livres e da concessionária é um desafio para a política tarifária do mercado livre de gás canalizado. A modicidade tarifária deve ser o objetivo nos dois mercados, juntamente com o equilíbrio econômico-financeiro da concessão. Ainda que o Estado do Espírito Santo tenha avançado naquela política a partir do novo contrato de concessão e regulações posteriores, há grande margem de discricionariedade diante das incertezas advindas da não apropriação suficiente de informações, o que não assegura segurança jurídica.
4.5) A regulação da atividade de comercialização no mercado livre
No contrato de concessão, o Estado do Espírito Santo reconhece a competência da União para regular os contratos de comercialização firmados pelos usuários livres e seus supridores ao definir a referida atividade como a realizada por meio de celebração de contratos registrados na Agência Nacional do Petróleo-ANP176.
As hipóteses de publicidade e sigilo dos contratos firmados entre os agentes livres de mercado e seus supridores e transportadores177 é referenciada no contrato de concessão como objeto de regulamento, muito embora não compreenda o serviço público de distribuição objeto da concessão.
Na regulação mais específica do mercado livre, a Resolução ARSP n.º 046/21, dita algumas normas sobre a atividade de comercialização, a despeito de ser reconhecida a atribuição da União. A sua abordagem, contudo, não é exaustiva. Não tem como foco regulá-la
174 Contrato de Concessão, Cláusula XII, 12.3. Anexo I. 2.4.3. “Poderão ser incluídos no cálculo da MARGEM MÉDIA DE DISTRIBUIÇÃO os efeitos econômico-financeiros do MERCADO LIVRE DE GÁS CANALIZADO, respeitada a justa remuneração da CONCESSIONÁRIA, conforme REGULAMENTO”.
175 Contrato de concessão, Anexo I, 6.5.
176 Contrato de concessão, Cláusula I, 1.1, IX.
177 Contrato de concessão. Cláusula VIII. 8.16
e fiscalizá-la. Não se ocupa com a relação contratual firmada entre o comercializador e o consumidor livre, como foi a opção do Estado de São Paulo178. Dispõe sobre a responsabilidade daquele pela qualidade do gás no ponto de recepção não para lhe atribuir, mas para destacá-la da responsabilidade da concessionária, que deve garantir referida qualidade no ponto de entrega. A relação jurídica comercial a ser firmada entre o comercializador e o consumidor livre depende, necessariamente, da prestação do serviço público local de distribuição de gás que é interdependente de padrões técnicos de qualidade e de segurança na cadeia. Isso legitima o regulador e a concessionária a terem acessos a informações que assegurem o cumprimento dos padrões exigidos para continuidade e segurança da atividade de distribuição.
O serviço público de distribuição é o elo da cadeia do gás que conecta o agente livre de mercado ao comercializador, mas este não integra a relação jurídica pactuada entre o usuário e a concessionária responsável pela prestação do referido serviço. A interdependência direta das atividades e retirada somente dos serviços locais de gás canalizado da competência federal dificultam uma conformidade de entendimento quanto aos limites regulatórios de cada ente.
O poder concedente estadual, por meio do órgão regulador, precisa garantir que questões técnicas de uma atividade não impeçam ou prejudiquem a prestação adequada do serviço público de sua competência. Como meio de assegurar acesso necessário ao controle da movimentação de gás, a referida resolução atribui responsabilidades ao comercializador perante a concessionária e a agência reguladora.
Esse posicionamento do Estado do Espírito Santo se alinha ao objetivo de harmonização das regulações estaduais em temas possíveis de convergência, uma das diretrizes da Resolução n.º 16/2019 do Conselho Nacional de Política Energética, a ser articulada pelo Ministério de Minas Energia conforme atribuição prevista no Decreto Federal n.º 10.712/21, que regulamenta a Lei Federal n.º 14.134/21179.
A atividade de comercialização não é limitada geograficamente ao território de cada Estado. Os usuários livres poderão adquirir o gás de comercializadores em âmbito nacional, daí porque se deve reduzir as barreiras de entrada nessa atividade competitiva, observando-se as regras uniformes estabelecidas pela União180.
178 A Deliberação Arsesp n.º 1.061/2020 traz disciplina minuciosa aplicável ao serviço de comercialização, prevendo um extenso rol de direitos e obrigações dos comercializadores (art. 5º, 6º, 7º, 8º), sujeição à fiscalização e controle da agência com o recolhimento da taxa respectiva (art. 10 e 13) e emissão de autorização para exercício da atividade. Disponível em: < https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=403885 > . Acesso em: 28 mar. 2022. 179 “Art. 27. O Ministério de Minas e Energia e a ANP deverão se articular com os Estados e o Distrito Federal para a harmonização e o aperfeiçoamento das normas atinentes à indústria de gás natural, inclusive em relação à regulação do consumidor livre.”
180 A competência da União para regular a atividade de comercialização é defendida pelo Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getúlio Vargas – FGV-CERI, em contribuição à Consulta Pública da
4.6) Outros aspectos da regulação discricionária do mercado livre de gás canalizado
O contrato de concessão e a regulamentação do mercado livre são tímidos ao coibirem a verticalização da cadeia ou prever meios de conter os seus efeitos prejudiciais à concorrência nas atividades competitivas. Muito embora o contrato de concessão, a Lei Estadual n.º 11.173/20 e a Resolução ARSP n.º 043/21 expressamente disponham não haver garantia de direito de exclusividade da concessionária na atividade de comercialização, como já demonstrado, falta objetividade na regulamentação dirigida a efetivar a vedação ao exercício dessa atividade.
Um ponto da regulação estadual que pode desestimular a migração para o mercado livre é a definição das penalidades aplicáveis ao agente livre quando não ocorrer a retirada mínima ou máxima de gás, cuja referência é a quantidade diária programada. A Resolução ARSP 046/21 optou pela intervenção da agência nesse tema por meio da aprovação da minuta padrão do contrato de uso do serviço de distribuição (CUSD), elaborada pela concessionária e submetida à consulta pública. A ausência de experiências a serem apropriadas para verificar a razoabilidade tanto dos limites estabelecidos para as retiradas mínima e máxima, bem como da fórmula para apuração da penalidade exigirá um monitoramento contínuo e ágil, e a valer-se do aprendizado adquirido junto a outras concessões do serviço público de gás canalizado. Há indicativo de que a aplicação da fórmula definida na minuta padrão não resultará em valor excessivo da multa, um desincentivo ao mercado livre, pois não foi objeto de questionamento
na consulta pública, do mesmo modo os percentuais de retirada mínimo e máximo, definidos em acolhimento à contribuição ofertada 181.
Por fim, a Resolução garante ao usuário livre a migração para o mercado cativo, e um prazo máximo para adequação técnica e comercial da concessionária. Essa migração, contudo, em atenção à modicidade tarifaria, não poderá acarretar aumento das tarifas aos demais usuários cativos (art. 53, §3º e §5º).
A regulamentação atual do mercado livre de gás canalizado, iniciada pelas disposições contratuais, é concluída com a edição da Resolução ARSP n.º n.º 053/21 que dispõe sobre o modelo do Contrato de Uso do Serviço de Distribuição – CUSD a ser celebrado entre a Concessionária e os Agentes Livres de Mercado e dá outras providências.
4.7) A flexibilidade regulatória do mercado livre de gás canalizado no Estado do Espírito Santo
Concluindo essa sistematização e análise, observa-se que a regulação do serviço de distribuição de gás canalizado prestado ao mercado livre no Estado do Espírito Santo observa uma linha mais flexível. Primeiro, o contrato, apesar de já definir algumas opções regulatórias, transfere à regulação discricionária da agência as definições mais objetivas, o detalhamento das regras para efetiva implementação do referido mercado.
Essa flexibilidade também se nota no regulamento editado pela agência, a Resolução ARSP n.º 046/2021, quando, em algumas hipóteses, transfere à discricionariedade da concessionária a dispensa do cumprimento de regra estabelecida se favorável também ao usuário, a exemplo do cumprimento do aviso prévio de migração e do prazo mínimo de vigência do contrato de uso do serviço de distribuição.
Também reflete o seu caráter flexível quando a regra não é detalhada de modo suficiente, como a possibilidade de fornecimento de gás pela concessionária aos agentes livres de mercado, da ausência de definição do procedimento para comprovação da viabilidade econômica de construção do ramal dedicado, da ausência de disposição sobre a competência técnica e capacidade econômico-financeira exigida no contrato como requisito para autorizar a transferência da operação e manutenção do ramal dedicado ao agente livre (contrato item 5.4.1).
181 AGÊNCIA ESTADUAL DE REGULAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Relatório circunstanciado. Processo de Consulta Pública n.º 005/2021. Disponível em: < https://arsp.es.gov.br/consultas-publicas > Acesso em: 10 de março de 2022.
Um mercado livre de gás requer estímulos para participação de vários agentes nas atividades em que a concorrência é viável, em que o monopólio não se justifica econômica e juridicamente. Ainda que o contrato e as normas jurídicas garantam expressamente a participação de outros agentes na atividade de comercialização, outras condições devem assegurá-la, como a mínima intervenção estatal na atividade competitiva.
A celebração do novo contrato de concessão paralelamente às ações implementadas no Programa Novo Mercado de Gás do Ministério de Minas e Energia, que segue as diretrizes estabelecidas na Resolução n.º 16 do Conselho Nacional de Política Energética – CNPE impulsionou a retomada do interesse estadual em uma nova regulamentação do referido mercado, que avançou até a edição das Resoluções ARSP nº 046/21 e n.º 053/21. Os espaços de liberdade para o agente livre de mercado foram concedidos até o limite que não prejudiquem o equilíbrio econômico-financeiro da concessão e a prestação dos serviços no mercado cativo que atenda às características albergadas pelo conceito de serviço adequado, em especial o da universalização, modicidade tarifária e eficiência. A falta de experiência com um mercado livre em atividade também foi justificativa para a presença de uma intervenção estatal que, ainda que flexível em alguns temas, privilegia a posição jurídica e econômica da concessionária, em contenção ao mercado livre.
O Estado do Espírito Santo foi classificado em segundo lugar no ranking regulatório referente à abertura do mercado de gás natural segundo a Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres182, considerando o somatório das notas atribuídas aos seguintes critérios: (i) facilidade de migração, (ii) comercialização, (iii) penalidades, (iv) TUSD, (v) TUSD-E. Embora tenha recebido notas baixas em alguns itens como penalidades e TUSD, os itens facilidade de migração e comercialização levaram o Estado ao bom posicionamento no ranking. A despeito de possível viés da análise, não tendo sido possível aferir a participação em sua formulação de outros setores desvinculados dos grandes consumidores de energia e consumidores livres, os itens de melhor avaliação convergem à conclusão de flexibilidade regulatória e reduzida intervenção na atividade de comercialização. O serviço público que qualifica a atividade de distribuição impõe limites a essa flexibilização. O contrato de concessão que outorga a sua exploração ao privado, as suas cláusulas econômico-financeiras, o retorno do investimento pactuado, a generalidade da sua prestação serão preocupações do regulador que ocuparão todos os espaços decisórios de
regulamentação do mercado livre.
182 Disponível em: < https://abrace.org.br/noticia/ranking-regulatorio-estadual-mercado-livre-de-gas-natural/ > Acesso em: 10 de fevereiro de 2022.
CONCLUSÃO
A escolha do novo contrato de concessão dos serviços locais de gás canalizado celebrado pelo Estado do Espírito Santo como objeto de investigação do presente trabalho surge a partir do complexo processo administrativo e judicial para extinção do contrato anteriormente celebrado. A participação da então concessionária, a Petrobras Distribuidora S/A, na modelagem tanto da criação da empresa estatal para exploração dos referidos serviços, a ES GÁS, como na do contrato de concessão, atraíram o interesse em investigar em que medida o novo contrato representou uma inovação na regulação dos serviços locais de gás canalizado do Estado do Espírito Santo, como se noticiava, diante do interesse do sócio privado da empresa estatal na preservação dos seus interesses e do poder de mercado exercido pela Petrobras S/A, da qual era subsidiária.
A celebração do referido contrato se vincula a atos normativos pretéritos que condicionam as suas cláusulas, como a Lei Estadual n.º 10.955/2018, bem como aos atos regulamentares expedidos pela agência, no exercício da função integrativa das normas nele previstas, representados pelas Resoluções ARSP n.º 046/21 e n.º 053/21. A regulação contratual do mercado livre de gás canalizado impulsiona, ainda, a edição da Lei Estadual n.º 11.173/20 que a ratifica e incorpora alguns pontos.
Esse é o contexto fático que justifica o primeiro objetivo proposto para o presente trabalho de apresentar o estado atual da regulação dos serviços locais de gás canalizado, centrado no novo contrato de concessão.
O contrato foi modelado ao tempo em que ocorria o debate nacional sobre o novo mercado de gás, conduzido pela União, por intermédio do Ministério das Minas e Energia, no âmbito do programa “Novo Mercado de Gás”. As diretrizes e parâmetros de eficiência e aproximação entre as regulações estaduais dos serviços de distribuição de competência dos Estados delineados no referido programa provocaram o questionamento quanto à abrangência das inovações trazidas pelo arcabouço regulatório do Estado do Espírito Santo.
A busca dessa aproximação entre as regulações estaduais é motivada pela inserção dos serviços locais de gás canalizado em uma indústria de rede, interdependente econômica, técnica e juridicamente das demais atividades que a integram, especificamente a produção, transporte e comercialização do gás, mas somente aqueles serviços têm a competência material destacada da União e atribuída aos Estados, com autonomia, portanto para regula-los. Por outro lado, ainda que a convergência regulatória seja salutar para o desenvolvimento do setor, capaz de
gerar incentivo concorrencial nas atividades competitivas da cadeia, especialmente a de comercialização, sofrerá os necessários influxos das especificidades locais de cada mercado.
Para além de buscar a abertura do mercado de gás, propiciando competitividade, maior oferta e melhores preços, a regulação estadual está jungida a observar o regime jurídico dos serviços públicos, que a Constituição Federal faz incidir somente nos serviços locais de gás canalizado, imputando, assim, aos Estados, objetivos específicos a serem perseguidos inseridos no conceito de serviço público adequado, a exemplo da regularidade, universalização, eficiência, modicidade tarifária e generalidade. Já as demais atividades são exploradas sob o regime privado, ainda que sob forte regulação da União, titular do seu monopólio.
São condicionantes intrínsecas a qualquer debate sobre os serviços locais de gás canalizado, e, por isso, motivaram a sua abordagem no presente trabalho previamente ao enfretamento dos objetivos propostos.
Na sistematização da regulação estadual notou-se que, muito embora as normas não se limitem às disposições contratuais, a celebração do novo contrato de concessão, ainda em sua fase procedimental, conjugou os esforços para o surgimento do novo arcabouço regulatório dos serviços locais de gás canalizado no Estado do Espírito.
A necessidade de afastar controvérsias jurídicas instaladas por interpretação do contrato extinto e garantir segurança jurídica às partes para celebração do acordo que o extinguiu levou o Estado a definir materialmente a sua competência associada aos serviços locais de gás canalizado, sem contornos objetivos oferecidos pela Constituição Federal, ao prever em lei o seu conceito, suplantando controvérsias experimentadas no contrato extinto quanto à abrangência do objeto da concessão.
As premissas da modelagem econômico-financeira da concessão estão estabilizadas na Lei Estadual n.º 10.955/2018, com ênfase ao princípio da eficiência, o que reduz a discricionariedade da agência e ingerência da concessionária em altera-las.
O caso também demonstra o protagonismo da agência reguladora, cujas competências são atribuídas e ratificadas em todo o processo, desde o procedimento para extinção do contrato de concessão anterior, como na modelagem do novo contrato, que também define amplo espaço de regulação discricionária setorial específica, representada pelos regulamentos editados a partir dele, ainda que materialmente sofram limitação pelas opções consolidadas no contrato.
A vinculação das partes pelo contrato, para além de reduzir as opções discricionárias da agência, imputou-lhe o ônus das atribuições regulatórias e conferiu segurança jurídica para os usuários ao estabilizar as práticas de estímulo à concorrência e obrigações dirigidas à prestação adequada dos serviços na forma prevista no artigo 5º da Lei Federal n.º 8.987/95.
Uma nova relação jurídica concessória foi um espaço de liberdade para incorporação dessas práticas, como a imediata realização de chamada pública para aquisição de gás, sem a oposição de qualquer direito de exclusividade para o suprimento.
O novo contrato de concessão já inicia sua execução contribuindo, assim, para redução do poder de mercado de supridoras como a Petrobras S/A, que poderia ofertar vantagens associadas a outras atividades da cadeia que explora juntamente com o suprimento. Inclusive porque prevê como obrigação contratual realizar o procedimento de chamada pública observando os princípios da isonomia, publicidade, vinculação ao instrumento convocatório e julgamento objetivo entre outros.
A chamada pública e a não garantia de exclusividade, também prevista contratualmente, tornam realidade a possibilidade para que mais supridores acessem o mercado de gás183, gerando estímulo na cadeia de atividades a partir da produção.
Sob o prisma do mercado cativo, a ampliação do sistema de distribuição e consequentemente do número de usuários é indissociável da modicidade tarifária e do equilíbrio econômico-financeiro da concessão. Um caminho para convergir esses objetivos é a ampliação do mercado de gás, que pode ser atingida com a estruturação do mercado livre, que de modo inédito é previsto no contrato de concessão objeto do presente trabalho.
A relevância dada à regulação do mercado livre de gás no contrato de concessão é identificada não só na topologia de suas cláusulas, logo após a definição do objeto da concessão, mas também pela extensão das questões nelas reguladas, que tratam de questões como a possibilidade de o agente livre utilizar o sistema de distribuição da concessionária ou ramal dedicado, a doação dessa infraestrutura e a prestação de serviço de operação e manutenção assegurada à concessionária, e a previsão do tratamento tarifário específico para os usuários livres, dentre outros.
A regulação contratual é integrada pelas disposições da Lei Estadual n.º 11.173/20 e Resoluções ARSP n.º 046/21 e n.º 053/21 que foram objetos de escrutínio, sistematizadas e analisadas no terceiro capítulo do presente trabalho.
Questão inicial para estruturação do mercado livre de gás é a ausência de exclusividade da concessionária na prestação do serviço de comercialização, peremptoriamente estabelecida na regulação estadual, tanto no contrato como na Lei Estadual n.º 11.173/20. Trata-se de primeira sinalização ao mercado com o intuito de provocar o interesse de novos agentes
183 Até a conclusão do presente trabalho foram assinados contratos com três supridos, conforme informação disponível em < https://esgas.com.br/es-gas-fecha-contrato-para-suprimento-de-gas-natural-da-3r-petroleum-e- reforca-compromisso-de-diversificacao-do-mix-de-fornecimento-de-molecula/> Acesso em: 07 ago. 2023.
comercializadores. Entretanto, a sua efetivação depende das condições fixadas para migração dos usuários do mercado cativo para o livre. Caso sejam estabelecidos critérios rígidos haverá uma garantia indireta de exclusividade, pois para o mercado cativo ela é intrínseca.
Os requisitos de ingresso no mercado livre são, juntamente com regime tarifário do serviço de distribuição, pontos centrais da regulação do mercado livre, em que os incentivos podem ser mais ou menos fortes.
A adequação do consumo diário estabelecido como requisito para qualificação do usuário como livre é critério técnico, razão pela qual a pesquisa não se ocupou em investigar a sua adequação, apontando que existe crítica quanto a ser diária a mensuração. Contudo, acertada se mostrou, por um lado, a flexibilidade regulatória em permitir a sua modulação pela agência, uma vez que a não implementação fática do mercado dificulta o acesso a informações suficientes, e estabilizar o critério impediria a correta adequação dos incentivos.
Entretanto, essa flexibilidade foi admitida não só para aumentar, mas também para reduzir o consumo diário exigido do usuário livre, hipótese que se afasta da segurança jurídica. Nessa atividade regulatória, a agência deve enfrentar o desafio de optar entre normas mais flexíveis, adaptáveis ao contexto fático, e a estabilidade normativa suficiente que gere segurança para a realização dos investimentos.
Em cenário de inexistência do mercado livre, o processo de apropriação das informações junto a outros mercados deverá ser constante, e não somente ao tempo da edição de regulamentos.
O regramento adotado para o ramal dedicado recebe crítica no presente trabalho ao estabelecer que será doado, à luz do direito de propriedade e do disposto nos artigos 36 e 37 da Lei Federal n.º 8.987/95. A tarifa aplicada ao agente livre usuário daquela infraestrutura não tem entre seus componentes elementos que garantam o retorno do investimento, representando fraco incentivo para o investimento.
As condicionantes previstas para sua construção e implantação, em especial a preservação da modicidade tarifária dos demais usuários e a garantia do equilíbrio econômico- financeiro do contrato de concessão, e a ampla discricionariedade da concessionária para admitir ou não o seu compartilhamento são normas dotadas de generalidade que não garantem uma decisão segura, uniforme e transparente diante do caso concreto.
Apesar do questionamento quanto à legitimidade jurídica da doação do ramal dedicado, pois a infraestrutura será economicamente explorada pela concessionária, deve-se considerar ainda subsistir interesse do agente livre na sua implantação, para ter acesso a suprimento de gás suficiente para atender a sua necessidade. A definição dos componentes da TUSDE-GÁS de
modo a permitir que a concessionária seja remunerada somente pela operação e manutenção, não alcançando, por exemplo, a remuneração ou amortização da outorga, até o limite do retorno do investimento realizado pelo usuário livre.
A análise do regime tarifário aplicável aos usuários livres revelou que o incentivo econômico ainda sofre limitações favoráveis à concessionária. No caso da TUSD-GÁS, aplicável àqueles que utilizam o sistema de distribuição, por ser calculada pela fórmula aplicável à margem média de distribuição, incorpora custos associados à comercialização, muito embora essa atividade não seja prestada ao usuário.
A TUSDE-GÁS, devida quando o serviço de distribuição é prestado com utilização do ramal dedicado, recebe crítica no presente trabalho por não atentar às regras aplicáveis ao regime tarifário, conferindo discricionariedade à concessionária para além do seu cálculo, uma vez que a regulação não previu a metodologia correspondente, colidindo, dessa maneira, com o disposto no artigo 175, parágrafo único, inciso III da Constituição Federal. Apontou-se que submissão da referida tarifa à aprovação da agência não é suficiente para assegurar a transparência e tratamento tarifário isonômico. Para tanto, é necessário que a agência preveja os custos e receitas que deverão compor aquela tarifa, aplicáveis indiscriminadamente, e a sua individualização decorrerá da variação dos valores correspondentes a esses componentes, de acordo com as especificidades de cada ramal dedicado.
A redução da margem de discricionariedade da concessionária na fixação da tarifa, limitando a sua conduta ao cálculo baseado em fórmula preestabelecida, reduz espaço para o exercício de poder de mercado da concessionária.
Identificou-se que a apropriação do uso eficiente da infraestrutura não foi considerada na fixação da TUSDE-GÁS, o que não se legitimaria ante o regime jurídico do serviço público aplicável, impondo-se a previsão de incentivos a eficiência também na operação e manutenção do ramal dedicado.
A partir de uma sistematização da regulação dos serviços locais de gás canalizado no Estado do Espírito Santo, além de conferir um panorama do seu estágio atual, o intuito do presente trabalho foi identificar as principais questões regulatórias setoriais que ainda demandam uma maior apropriação de informações para aprimoramento das regras aplicáveis.
Não há alternativa ao regulador em distanciar-se do regime jurídico de direito público em que é prestado o serviço local de gás canalizado, em especial o de distribuição no âmbito do mercado livre. As opções para sua estruturação deverão estar condicionadas à preservação dos direitos de todos as categorias de usuários por imperativo constitucional. Condicionamento que também advém da garantia de preservação da equação econômico-financeira do contrato
assegurada à concessionária, o que se constatou refletido na não delimitação de espaços da agência e da concessionária em algumas questões.
Mas é preciso seguir na apropriação de informações técnicas, econômicas e de mercado, inclusive a partir de outras experiências, para que condições mais objetivas sejam fixadas na regulação do mercado livre, cujo conhecimento prévio pelos interessados poderão contribuir para a decisão de investimento, garantindo isonomia, transparência, e segurança jurídica a todos os usuários.
Em 10 de fevereiro de 2023, o Estado do Espírito Santo publicou o aviso do Edital de Leilão n.º 01/2023 para alienação das ações da ES GÁS, oportunidade em que também foram alienadas as ações do acionista privado, já não mais uma subsidiária da Petrobras S/A. Na sessão pública realizada em 31 de março de 2023, a proposta vencedora ofertou um ágio de 7,28% (sete vírgula vinte e oito por cento) em relação ao preço mínimo definido no edital.
Durante o procedimento, na audiência pública e no prazo para impugnação do edital, não foi apresentado qualquer questionamento às cláusulas do contrato de concessão, aos aspectos regulatórios setoriais e modelagem econômico financeira. Esse cenário aponta que o protagonismo do contrato de concessão não se limitou à delegação dos serviços locais de gás canalizado, à introdução de opções regulatórias mais consentâneos à adequação do serviço público, à atração de competitividade e concorrência no setor. Também encerra de forma exitosa a resolução da controvérsia surgida com a declaração de nulidade do contrato pretérito, consolidada com a alienação da ES GÁS, em que o Estado do Espírito Santo estabelece a relação jurídica concessória com novo parceiro privado.
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