A Boa-Fé Objetiva
A Boa-Fé Objetiva
nos Contratos Internacionais do Comércio à luz dos Princípios Unidroit e da Convenção das Nações Unidas Sobre Compra e Venda Internacional
Patrícia
Dissertação de Mestrado em Direito – CIÊNCIA JURÍDICA FORENSE
Orientação: Professora Doutora Xxxxx Xxxx Xxxxxx
Novembro, 2021
IMP.GE.208.1 i
Patrícia
Os Contratos Internacionais do Comércio e a Boa-Fé Objetiva à Luz Dos Princípios Unidroit e da Convenção Das Nações Unidas sobre Compra e Venda Internacional
Dissertação de Mestrado em Direito – Ciência Jurídica Forense Orientadora: Professora Doutora Xxxxx Xxxx Xxxxxx
Novembro 2021
AGRADECIMENTOS
Xxxxxxxx a Deus e à vida, pois, quando me dei conta, estava concluindo um mestrado.
Agradeço aos meus pais e a alguns amigos especiais. Aos primeiros, pela base que me proporcionaram a fim de que eu vivesse minha vida da melhor forma que pudesse, tirando dela o melhor proveito para crescer como ser humano; e aos segundos, por apontarem os vários caminhos que eu poderia percorrer com suas inerentes consequências, abrindo minha visão para melhores escolhas.
RESUMO
O contrato é um dos pilares do Direito Privado e um dos institutos jurídicos mais antigos, estreitamente relacionado à realidade social vigente em cada momento histórico. No contexto contemporâneo, em que as relações de troca ocorrem sob a influência de mais de um ordenamento jurídico, a necessidade do estabelecimento de regras comuns de Direito Comercial Internacional passou a ser uma garantia aos contratantes, além de se configurar em um meio de fomentar a circulação de bens e capital. E, em se tratando de contratos internacionais, sujeitos às flutuações ocorridas na ordem econômica internacional, os princípios que informam a boa-fé objetiva vêm, por fim, conferir uma harmonia às regras do Direito do Comércio Internacional, tal como ocorre com os Princípios Unidroit e a Convenção das Nações Unidas sobre Compra e Venda Internacional.
O desiderato fundamental desta investigação é a abordagem da boa-fé objetiva, enquanto princípio nas relações contratuais internacionais: um parâmetro genérico de conduta.
Palavras-chave: Boa-Fé; Contratos; Convenção de Viena; Direito Internacional Privado;
Lex mercatoria; Unidroit.
L’ABSTRAIT
Le contrat est l'un des piliers du droit privé et l'un des plus anciens instituts juridiques, étroitement lié à la réalité sociale en vigueur à chaque moment historique. Dans le contexte contemporain où les relations d'échange se déroulent sous l'influence de plus d'un système juridique, la nécessité d'établir des règles communes de droit commercial international est devenue une garantie pour les parties contractantes, en plus d'être un moyen de favoriser la circulation des biens et des Capitale. Et, dans le cas des contrats internationaux, soumis aux fluctuations de l'ordre économique international, les principes qui fondent la bonne foi objective, enfin, confèrent une harmonie aux règles du droit commercial international, comme c'est le cas avec les Principes d'Unidroit et la Convention des Nations Unies sur les Achat et vente internationaux.
L'objectif fondamental de cette enquête est l'approche de la bonne foi objective, en tant que principe des relations contractuelles internationales : un paramètre générique de conduite.
Mots-clés : Bonne foi ; Contrats ; Convention de Vienne ; La loi internationale privée; Lex mercatoria; Unité
Lista de Quadros
Quadro 1. Legislação brasileira e portuguesa acerca da Autonomia da Vontade Contratual 46
Quadro 2. Princípio Unidroit que aborda a boa-fé de forma explícita - 70
Quadro 3. Princípio Unidroit que aborda a Proibição de comportamento contraditório - ARTIGO 1.8 72
Quadro 4. Princípio Unidroit que aborda a Proibição de comportamento contraditório - ARTIGO 2.1.15 73
Quadro 5. Princípio Unidroit que aborda a modificação da forma particular contratual - o ARTIGO 2.1.18 74
Quadro 6. Princípio Unidroit que aborda a fraude – o ARTIGO 3.2.5. 75
Quadro 7. Princípio Unidroit que aborda a vantagem excessiva – o ARTIGO 3.2.7. 75
Quadro 8. Princípio Unidroit que aborda a Cooperação entre as partes – o ARTIGO 5.1.3.
........................................................................................................................................ 76
SUMÁRIO
3.1 Boa-fé subjetiva e objetiva 16
3.2 Boa-fé Objetiva Codificada – Brasil e Portugal 21
4 Dos Contratos, relações obrigacionais e a boa-fé 26
4.1 Relação obrigacional e obrigação 26
4.1.1. Relação obrigacional complexa 29
4.2 A Boa-fé nas Relações Obrigacionais 33
4.3 Contratos – Desenvolvimento histórico 36
4.3.1 O Contrato No Direito Contemporâneo 37
4.4 Contratos Internacionais 40
4.4.4 Obrigatoriedade Dos Contratos 48
4.4.5 Natureza Internacional 49
4.4.6 Princípio Pacta Sunt Servanda 49
4.4.7 Princípio do Equilíbrio Econômico 50
4.4.8 Princípio da Função Social dos Contratos 51
4.4.9 Princípio da Autodeterminação dos Povos 53
4.4.9.1 Princípio da independência nacional 53
4.4.9.2 Princípio da não intervenção nos assuntos internos dos Estados 53
4.4.9.3 Princípio da igualdade soberana dos Estados 54
4.4.10 Da Boa-fé Objetiva Como Princípio Informador dos Contratos 54
4.4.10.1 A função Social do Contrato e a Boa-fé Objetiva 58
4.4.10.2 A Proibição de Comportamento Contraditório, ou o Venire Contra Factum Proprium 59
5.1 Princípios Unidroit e a Boa-fé 69
5.2 Convenção das Nações Unidas Sobre O Contrato De Compra E Venda Internacional De Mercadorias (Convenção de Viena de 1980). 78
6 A BOA-FÉ APLICADA AOS CONTRATOS INTERNACIONAIS 85
6.1 Boa-fé Como Elemento de Interpretação dos Contratos 91
6.2 Boa-fé Como Elemento Controlador do Exercício dos Direitos Contratuais 94
6.3 Boa-fé Como Norma de Conduta (deveres laterais) 97
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 102
O contrato é um dos pilares do Direito privado e um dos institutos jurídicos mais antigos, estreitamente relacionado à realidade social vigente em cada momento histórico. Diante dessa ligação com a sociedade em que está inserido, o contrato sofre transformações em sua configuração, adaptando-se aos anseios sociais conforme eles vão se transformando no decorrer das décadas.
Em face do contexto contemporâneo de um mundo globalizado, em que as relações de troca ocorrem sob a influência de mais de um ordenamento jurídico, a necessidade do estabelecimento de regras comuns de Direito Comercial Internacional passou a ser não só uma exigência, mas também uma garantia aos contratantes, e um meio de fomentar a circulação de bens e capital.
Daí os postulados da boa-fé que surgem como forma de impor aos contratantes certas condutas, muitas vezes não previstas contratualmente, vinculando-os a determinados deveres objetivos que transcendem seus interesses particulares, mormente na esfera dos contratos internacionais, sujeitos à satisfação de interesses globais, desenvolvidos com o fim de harmonizar as relações transnacionais para que a circulação de riquezas entre as nações se dê sem maiores entraves.
Os princípios Unidroit1, elaborados pelo Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado, surgiram como iniciativa nesse sentido: harmonizar as regras do Direito do Comércio Internacional, não sendo diferente com a Convenção das Nações Unidas Sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias - CISG (ratificado no Brasil pelo Decreto n. 8.327, de 16 de outubro de 2014). Assim é que essas codificações de princípios são aceitas na maior parte dos ordenamentos jurídicos pelo mundo.
1 UNIDROIT International Institute for the Unification of Private Law. Unidroit Principles Of International Commercial Contracts. 2016. In xxx.xxxxxxxx.xxx. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxxxx/xxxxxxxxxx/xxxxxxxxx/xxxxxxxxxx0000/xxxxxxxxxx0000-x.xxx Consulta em 23 jul. 2021.
Mas não é possível que tais normas, mesmo sendo de natureza principiológica, consigam dispor sobre toda a gama de situações que possam existir no contexto do comércio internacional, até porque é natural nas diversas sociedades a mutação de entendimentos e costumes, afora os acontecimentos que não podem ser previstos, tal como a pandemia ocasionada pela Covid-19, forjando alterações significativas nessas mesmas sociedades, com reflexos bastante acentuados nas relações comerciais e comerciais internacionais. Daí a boa-fé, consistente no dever de lealdade entre as partes no desenvolvimento de suas atividades de comércio.
Dessa forma, busca-se, nesta dissertação, discorrer sobre a responsabilidade contratual nos contratos internacionais do comércio, sob o enfoque da boa-fé objetiva. Para tanto, será analisado, preliminarmente, o próprio conceito de boa-fé e seus aspectos subjetivo e objetivo.
Em seguida, será feito um breve estudo sobre os contratos de forma geral, para, a partir daí, tratar-se dos contratos internacionais do comércio e convenções que buscam conferir uma unidade jurídica aos sistemas que os regulamenta.
Far-se-á, então, uma análise do conceito e das funções dos princípios da boa-fé relativas aos contratos, para, enfim, chegar-se à boa-fé aplicada aos contratos internacionais e aos deveres que os envolvem.
Em conclusão, será elaborado um capítulo final, cuja abordagem sobre a boa-fé aplicada aos contratos terá sua vertente interpretativa, como elemento controlador, além dos deveres anexos de conduta.
O tema boa-fé não é novo, pois permeia as relações jurídicas desde a antiguidade; contudo, é tema sempre atual, pois os indivíduos, ao se relacionarem com seus pares, têm a expectativa de lidar com pessoas de conduta honrada, isso porque, desde as mais singelas relações até os contratos mais complexos, espera-se confiança.
A utilização de ardis visando ludibriar o outro para levar vantagens econômicas, ou pelo simples prazer de enganar, deve ser vista como exceção. Contudo, tal atitude existe e acontece com frequência no mundo jurídico. Por isso, a importância das regras de conduta e da previsão de punir civilmente os que agem dessa forma.
Assim, visando a essas infelizes exceções, somadas aos equívocos que acontecem nas relações – e, aí, já não mais predomina a esfera da malícia, mas da falta de entendimento, ou entendimentos obscuros, nascidos das divergências culturais, muito enfáticas em se tratando de comércio internacional – é que foram criados os princípios, verdadeiras normas de conduta.
Como na evolução das eras, as relações humanas sempre tendem a pender para uma situação de desequilíbrio, o princípio da boa-fé se apresenta como um importante balizador de equidade. Daí o caráter sempre atual e fundamental de seu estudo.
O procedimento de pesquisa adotado foi o descritivo/explicativo, a partir de material bibliográfico, ou seja, levantamento de referências bibliográficas de conteúdo científico já publicado.
A ética acompanha a história da civilização humana. Fazendo um rápido giro por essa saga civilizatória, encontramos a ética na fábula de Xxxx e Xxx em dois momentos: quando Xxx cedeu à tentação da serpente; e, também, quando Xxxx, movido por xxxxxx, matou seu irmão Xxxx.
Também nos primórdios da civilização egípcia, observa-se a questão ética envolvendo o mito de Xxxx e Xxxxxx, e a morte deste por Xxxx, seu irmão, igualmente motivado por inveja. Na mesma civilização, milênios depois do mito, surgiu Xxxxxx, com a Tábua da Lei, um código ético para a época, no qual constavam regras chamadas mandamentos, tais como: não matarás, não roubarás, não levantarás falso testemunho, entre outros2.
De Xxxxxx, pode-se dar um salto até a Antiguidade Clássica, na qual encontram- se Xxxxxxxx (469-300 a.C), Xxxxxx (427-347 a.C) e Xxxxxxxxxxx (384-322 a.C), entre outros. Respectivamente:
Pensar elevadamente é a mais elevada perfeição; a sabedoria consiste em dizer a verdade e agir de acordo com a natureza, ouvindo a sua voz. (Xxxxxxxx)3.
Nos últimos limites do mundo inteligível aparece-me a ideia do Bem, que se percebe com dificuldade, mas que não se pode ver sem se concluir que ela é a causa de tudo o que há de reto e de belo... (Platão)4.
2 1.º - Adorar a Deus e amá-lo sobre todas as coisas. 2.º - Não usar o Santo Nome de Deus em vão.
3.º - Santificar os Domingos e festas de guarda.
4.º - Honrar pai e mãe (e os outros legítimos superiores).
5.º - Não matar (nem causar outro dano, no corpo ou na alma, a si mesmo ou ao próximo) 6.º - Guardar castidade nas palavras e nas obras.
7.º - Não furtar (nem injustamente reter ou danificar os bens do próximo).
8.º - Não levantar falsos testemunhos (nem de qualquer outro modo faltar à verdade ou difamar o próximo)
9.º - Guardar castidade nos pensamentos e desejos. 10.º- Não cobiçar as coisas alheias.
BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2007. 172ª Edição, Êxodo 20:1-17.
3 XXXXXXXXX, Xxxxxx. Textos Básicos de Filosofia, dos Pré-socráticos a Xxxxxxxxxxxx. Rio de Janeiro: Xxxxx Xxxxx Editor Ltda, 2017, 11ª Reimpressão, p. 13. ISBN 978-85-7110-520-1.
4 XXXXXXXXX, Xxxxxx. Textos Básicos de Ética, de Platão à Xxxxxxxx. Rio de Janeiro: Xxxxx Xxxxx Editor Ltda, 2017, 8ª Reimpressão, p. 31. ISBN 978-85-7110-967-4.
... a excelência moral é um meio-termo e em que sentido ela o é, e que ela é um meio- termo entre duas formas de deficiência moral, uma pressupondo excesso e outra pressupondo falta, ... (Xxxxxxxxxxx) 5
Mais alguns séculos adiante e chega-se à época de Xxxxx com seu belo e poético Sermão da Montanha:
Mas, disse o Senhor, “quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita; para que a tua esmola seja dada ocultamente: e teu Pai, que vê em segredo, te recompensará publicamente.”6
Concomitantemente a Jesus, em Roma, a questão foi estudada com mais vagar nos meios jurídicos, sendo nessa civilização o apontamento do marco do qual a boa-fé provém. A boa-fé no Direito Romano estava associada ao termo fides, que vem da deusa Xxxxx, sendo a personificação da palavra dada, segundo a mitologia romana. Com o tempo, foi sendo agregada a ideia de fides a bona fides, que representa o cumprimento do que foi assumido, não só expressamente, mas a representação daquilo na esfera dos contratantes.
No período romano clássico, a ideia de bona fides foi transformada em uma actio, a bonae fidei iudicium, segundo a qual era apresentada uma fórmula baseada na fides que permitia ao juiz utilizar-se da boa–fé alargando, assim, seu poder de decisão.
A passagem da jus civile (sistema mais rígido, restrito aos cidadãos romanos) para o jus gentium (sistema mais aberto, baseado nos usos e costumes comerciais e aplicável aos romanos e estrangeiros), em razão da necessidade de comércio com outros povos, e da necessidade de lealdade à palavra empenhada, foi um campo propício ao incremento da boa-fé nas relações comerciais, inclusive nos contratos internacionais (publica fides).
Xxxxxxx XXXXXXX-XXXXX (2018)7, a boa-fé no Direito Romano, nascida com a ideia de fides, recebeu notável expansão e largo espectro de significados. A fides era entendida amplamente como confiança, mas também como colaboração e xxxxxxx
5 MARCONDES, ref. 3, p. 41.
6 BÍBLIA SAGRADA, ref. 2, Mateus 6:3.
7 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Saraiva-jur, 2ª edição, 2018, p. 53. ISBN 978-85-472-2895-8.
mútuo (na relação entre iguais) e como amparo ou proteção (na relação entre desiguais). Também era entendida como lealdade e respeito à palavra empenhada e como fundamento da justiça e de virtude cívica.
Passando-se para a história medieval, é impossível reduzir a riqueza desse período da saga humana em dois parágrafos. Mas, para fins deste estudo, é suficiente dizer que a Idade Média foi marcada pela descentralização do poder, além da influência do Direito Canônico, de forma que a boa-fé era pressuposto da ausência de pecado. As jurisdições eram locais e os tribunais que foram surgindo ao longo dos séculos tinham suas próprias regras, sempre marcados pelo Direito canônico.
“O sistema feudal, embora extremamente complexo, jamais foi escrito em forma de lei.”8 Época de castelos e cavaleiros, cujas presenças marcavam a espinha dorsal dos exércitos medievais, seguia-se à risca o chamado Código da Cavalaria, que tinha como traço principal a honestidade.
Na modernidade, já em 1804, o Código Napoleônico foi o primeiro a positivar a boa-fé. Mas, apenas no século XX, com o Código Civil Alemão (BGB), é que a noção jurídica de boa-fé foi desenvolvida9, pois foi a primeira codificação a adotar as cláusulas gerais como técnica legislativa.
A boa-fé germânica foi gerada a partir dos ideais da Xxxxxxxxx, tendo como corolário a confiança, crença, honra e lealdade à palavra dada.
Como impulsionadora de um feixe de deveres de conduta frente ao alter, ou à comunidade. (...) a difusão da boa-fé objetiva, na sequência da entrada em vigor do BGB: haveria uma continuidade cultural, para além de todo um complexo de contributos culturais e científicos que confluíram neste sucesso.10
Em razão da influência do Código Civil Alemão, os Códigos Civil Português de 1966 e o brasileiro de 1916, introduziram expressamente a boa-fé objetiva em seus respectivos ordenamentos jurídicos.
8 XXXXXX, Xxxxxx. História Mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 193. ISBN 978-85-378-0674-6.
9 XXXXXXX-XXXXX, ref. 7, p. 125.
10 XXXXXXX-XXXXX, ref. 7, p. 124.
Daí, seja em paralelo, ou posteriormente, a maioria das legislações civis e comerciais adotaram normas de conduta ética, baseadas na boa-fé objetiva influenciadas pelo modelo alemão.
Até que, atualmente, já estando codificada, principalmente nos países do common law, não se pode imaginar o comércio entre as nações sem esse balizador ético expresso por meio da boa-fé objetiva. Daí as convenções internacionais buscando regular uniformemente a matéria, que mais não é do que um grande código de conduta ética.
A conceituação da boa-fé, dado o vasto campo de sua abrangência, é de grande dificuldade, pois comporta uma série de significados, mesmo se considerados apenas sob o aspecto jurídico.
A boa-fé é comumente analisada sob dois ângulos: o subjetivo e o objetivo. O primeiro é relacionado a uma concepção de aspecto psicológico e decorre do animus interno do ser observado nas variadas situações no decorrer das relações interpessoais e negociais; o segundo, por sua vez, relaciona-se com a honestidade, em que a lealdade entre os sujeitos possui grande relevo nas relações obrigacionais.
Assim, a boa-fé constitui-se em um dos princípios fundamentais do Direito privado e tem por função precípua manter um padrão ético nas relações estabelecidas entre as partes, em sede de Direito obrigacional, seja nacional ou internacional, amparando o fomento da troca de riquezas e tecnologias, tão importantes para o desenvolvimento humano.
3.1 Boa-fé subjetiva e objetiva
São duas as acepções de boa-fé: uma subjetiva e outra objetiva.
Por muito tempo predominou nos ordenamentos jurídicos uma concepção estritamente subjetiva de boa-fé, inclusive nas relações contratuais. A boa-fé subjetiva é a boa-fé da crença. Ela diz respeito à ignorância do sujeito acerca da existência de uma regra jurídica ou sobre sua convicção justificada de ter um comportamento conforme o Direito, ou seja, está relacionada ao estado psicológico do indivíduo.
No Brasil a boa-fé estava delimitada no Código Civil brasileiro de 1916 (atualmente revogado), a determinadas hipóteses do Direito das coisas, notadamente da posse, assim classificada em posse de boa-fé e de má-fé, como são exemplos os dispositivos abaixo nominados:
Art. 490. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que lhe impede da aquisição da coisa, ou do Direito possuído.
Parágrafo único. O possuidor em justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.
Art. 491. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente.
Art. 492. Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter, com que foi adquirida11.
XXXXX (1996)12 comenta tais dispositivos, esclarecendo que a boa-fé subjetiva estava na convicção do possuidor de que a coisa lhe pertence, ignorando o fato de que está prejudicando o direito de outra pessoa. Para tanto, deve o possuidor ter justo título, o que confere à boa-fé presunção iuris tantum. Na hipótese de o possuidor ter conhecimento de que, independentemente do título, está ilegitimamente na posse de um bem alheio, surge aí a má-fé.
A determinação da boa-fé subjetiva é complicada pela presença de definições distintas desse instituto, conforme informa Xxxxxxxx (2017)13, sendo de três ordens: a assimilação da boa ou má-fé a estados simples de ignorância ou de conhecimento; a boa-fé ligada ao desconhecimento sem culpa ou à ignorância desculpável; e, por fim, a má-fé correspondendo à consciência de certo prejuízo.
No que tange à boa-fé objetiva, foi praticamente omitida naquele Código (BRASIL, 1916), ressalvando-se apenas a hipótese específica do contrato de seguro previsto no art. 1.443: “O segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato a mais estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.”14.
Todavia, em virtude da pressão social ao longo das décadas, a partir das diversas relações jurídicas estabelecidas entre partes, tanto no Direito privado, mas principalmente nas relações de consumo, uma maior objetividade nas regras de conduta a serem observadas nos ajustes contratuais foi sendo implementada. Doutrinadores
11 BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. (revogado pela Lei nº 10.406, de 2002). Disponível em xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/xxxx/x0000.xxx Consulta em: 2 fev. 2021.
12 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Código Civil Anotado. São Paulo: Editora Saraiva, 1996, 2ª edição, p. 414. ISBN 85- 02-01931-7.
13 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. Da Boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Edições Almedina S.A., 2017, Coimbra, 7ª Reimpressão, p. 409. ISBN 978-972-40-7193-0.
14 BRASIL, ref. 11.
atentos a esse fato foram construindo a doutrina da boa-fé objetiva, que foi se ampliando ao longo das décadas, sendo acatada pelos tribunais, o que acabou por se consolidar numa jurisprudência firme.
A título exemplificativo, cita-se um antigo precedente, de 1994, datado, portanto, de oito anos anteriores ao Código Civil atualmente vigente no Brasil, de 2002. Esse precedente teve o princípio da boa-fé como fundamento de decisão. Trata-se do Recurso Especial nº. 32.890-SP, de relatoria do Ministro Xxx Xxxxxx xx Xxxxxx:
FRAUDE A EXECUÇÃO. Boa-fé. prova da insolvência.
1. Nas circunstâncias do negócio, o credor tinha o dever, decorrente da boa-fé objetiva, de adotar medidas oportunas para, protegendo seu crédito, impedir a alienação dos apartamentos a terceiros adquirentes de boa-fé. Limitando-se a incorporadora do empreendimento a propor a ação de execução, sem averbá-la no registro de imóveis ou avisar a financiadora, permitiu que dezenas de apartamentos fossem alienados pela construtora a adquirentes que não tinham nenhuma razão para suspeitar da legalidade da compra e venda, inclusive porque dela participou a CEF. Não prevalece, contra estes, a alegação de fraude à execução.
2. Proposta a ação contra devedor solvente (art. 593, II CPC), a prova da insolvência da devedora é indispensável para caracterizar a fraude à execução.
Precedentes da doutrina e da jurisprudência.
Recurso conhecido e provido para julgar procedente os embargos de terceiros opostos
pelo adquirente.”15
Esse posicionamento começou a se formar com mais ênfase a partir de 1990, dada a promulgação do Código de Defesa do Consumidor - CDC que atribuiu importância fundamental à boa-fé objetiva nos contratos de consumo e na peculiar responsabilidade do fornecedor por fato ou por vício do produto ou do serviço. No seu art. 51, IV, o CDC (BRASIL, 1990) 16, confere à boa-fé objetiva a função de parâmetro geral de cláusula abusiva, nas hipóteses não contempladas expressamente na lista legal.
15 BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 32.890-SP (1993/0006394-4), relator: Ministro Xxx Xxxxxx xx Xxxxxx. Julgamento: DJ 18/12/1995, pp. 44573. Site oficial: xxx.xxx.xxx.xx. Disponível em
xxxxx://xx0.xxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxx/xxxxxxXxxxxxxx?xxxxxxx&xxx_xxxxxxxxx&xxx_xxxxxxxxx000000000 944&dt_publicacao=12/12/1994, Consulta em : 27 Ago. 2020.
16 BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/xxxx/x0000xxxxxxxxx.xxx Consulta em: 27 ago. 2020.
Mais tarde, o Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002)17 rendeu-se à evidência da boa- fé, como um dos princípios jurídicos basilares do Direito Civil, estruturando-a em três dimensões: a) como critério essencial de interpretação das normas jurídicas e dos atos negociais; b) como limitação da autonomia privada; c) como dever geral de conduta obrigacional, mediante integração. É o que se extraí do texto de XXXXXX (2016)18.
O Código Civil Português, que data do ano de 1966 (PORTUGAL, 1966), já trouxe previsão sobre a objetividade do princípio da boa-fé, conforme artigo 227.º, n.º 1 desse diploma legal: “Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”19.
Assim, se de um lado a boa-fé subjetiva traduz uma circunstância, um determinado estado de ânimo que se contrapõe à ideia de má-fé; a boa-fé objetiva compreende um modelo ético de conduta social, forjada a partir de padrões sociais de modo a resguardar a legítima confiança da outra parte numa relação jurídica.
XXXXXXXX e PAMPLONA FILHO (2008)20 falam da boa-fé como um dos elementos limitadores da livre manifestação da vontade. Segundo os autores, a manifestação ou declaração de vontade deve ser livre e isenta de malícia (má-fé) e dois são os princípios que devem convergir para que se possa reconhecer como válida a manifestação da vontade: a) o princípio da autonomia privada; e b) o princípio da boa-fé.
A autonomia privada é um conceito ligado à noção de liberdade negocial - é a “pedra de toque”21 de toda a teoria do negócio jurídico. Traduz a liberdade de atuação do indivíduo no comércio jurídico, respeitados ditames mínimos de convivência social e moralidade média.
17 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/xxxx/0000/x00000xxxxxxxxx.xxx Consulta em: 27 ago. 2020.
18 XXXXXX, Xxxxxx X. Dissecando o princípio contratual da boa-fé objetiva. Site oficial: xxx.xxxxxxxxx.xxx.xx, publicado em maio de 2016. Disponível em xxxxx://xxx.xxx.xx/xxxxxxx/00000/xxxxxxxxxx-x-xxxxxxxxx-xxxxxxxxxx-xx-xxx-xx-xxxxxxxx,.
19 PORTUGAL. Decreto-Lei nº 47.344 de 25 de novembro de 1966. Código Civil Português. Disponível em xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxx.xx/ . Acesso em 27 ago. 2020.
20 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx; PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Novo Curso de Direito Civil, Parte Geral. São Paulo: Editora Saraiva, 9ª edição, 2007, pp. 335-337. ISBN 978-85-02-06348-8.
21 “Pedra de Toque” expressão figurada que quer dizer o fundamento de alguma coisa.
É preciso que as partes se comportem segundo um padrão ético objetivo de confiança recíproca, atuando segundo o que se espera de cada um, além de respeitarem deveres implícitos a todo negócio jurídico bilateral, tais como confidencialidade, respeito, lealdade recíproca, assistência etc.. Trata-se, aqui, da boa-fé objetiva.
Essa boa-fé é uma verdadeira regra (mesmo que seja implícita) em todo negócio jurídico bilateral, do qual o contrato é o exemplo por excelência, em razão da qual as partes devem não apenas cumprir a sua obrigação principal (dar, fazer, ou não fazer), mas também observar deveres mínimos de lealdade e confiança recíproca.
A violação da boa-fé objetiva autoriza não apenas a condenação do infrator em perdas e danos, mas, em algumas hipóteses, até mesmo a anulação do negócio, justificada pela incidência de erro ou dolo (erro provocado), sem prejuízo de a parte lesada exigir compensação pelo prejuízo sofrido. O exemplo citado pelos referidos autores é o seguinte22: sendo celebrado entre duas empresas um contrato de compra e venda de um maquinismo complexo e de alta tecnologia, a obrigação do vendedor é transferir (dar) a propriedade da coisa, em troca do valor recebido. Se o alienante cumprir a sua parte, mas não presta necessária assistência operacional, indispensável para objetos daquele jaez, alegando que o contrato não continha previsão dessa circunstância, o prejudicado poderá pleitear a anulação da avença, por força da violação à boa-fé objetiva.
No exemplo citado, a assistência técnica operacional configura-se como verdadeiro consectário lógico da aquisição do produto daquela natureza.
Portanto, a boa-fé constitui um conjunto de padrões éticos de comportamento, aferíveis objetivamente, que devem ser seguidos pelas partes contratantes em todas as fases da existência da relação contratual: criação, período de cumprimento e, até mesmo, após a sua extinção.
Por meio dela, exige-se uma atividade de cooperação, constituindo-se, assim, numa fonte normativa impositiva de comportamentos.
22 XXXXXXXX; PAMPLONA FILHO, ref. 20 , p. 337.
3.2 Boa-fé Objetiva Codificada – Brasil e Portugal
A boa-fé objetiva, por dizer respeito à conduta obrigacional típica, é a dimensão externa da boa-fé em geral. Ela exige conduta ética, de forma a impor comportamentos objetivamente considerados como devidos, pouco importando se o agente está ou não de boa-fé íntima ou crença de agir licitamente.
O sistema normativo, isso desde o Código Civil de 1916, bem como o atual, estipulou esse postulado ético de proteção à boa-fé objetiva, determinado uma conduta pautada na lealdade.
O Código Civil de 1916 (BRASIL, 1916) estabelecia, em seu artigo 85, que dever-se- ia atender mais a intenção do que o sentido literal da linguagem nas declarações de vontade. Essa mesma norma foi repetida no Código Civil atual, art. 112: “Nas declarações de vontade se atenderá mais a intenção delas consubstanciada do que o sentido literal da linguagem” 23.
Diante disso, VENOSA (2015)24 comenta que a hermenêutica, com base nesse dispositivo, deve buscar o verdadeiro sentido da vontade, afastando-se de extremismos. O intérprete deve examinar o sentido gramatical das palavras, bem como os elementos econômicos e sociais que cercam a manifestação, o nível educacional dos manifestantes, seu estado de espírito no momento da declaração. Enfim, cada caso concreto proporciona uma solução. Assim, apesar de o Código aconselhar preferência pela vontade interna, se as palavras colocadas no ato negocial são claras, e não dão margem a dúvidas, não é o caso de se utilizar o dispositivo mencionado.
Na verdade, o princípio da boa-fé traz ao julgador a necessidade de analisar os tratos negociais postos para sua decisão com muita isenção, pois, se de um lado há uma manifestação externa através das palavras do negócio jurídico, certamente um contrato, por outro lado, a lei determina que não se despreze a vontade dos interessados em razão do apego excessivo à declaração externa. “Não se trata de procurar o pensamento
23 BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. (revogado pela Lei nº 10.406, de 2002). Disponível em xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/xxxx/x0000.xxx Consulta em: 4 Mar. 2021..
24 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, Parte Geral. São Paulo: Editora Atlas S.A., 15ª edição, 2015, pp. 407-411. ISBN 978-85-224-9566-5.
íntimo do declarante, mas a intenção consubstanciada na declaração”25, diz VENOSA (2015).
Bem pontuado pelo autor que, nos contratos e nos negócios jurídicos em geral, deve-se entender o que os declarantes buscam para melhor cumprimento das cláusulas e da manifestação a que se comprometeram, pois, num negócio jurídico, o que se tem em vista é o correto cumprimento do negócio.
Esse princípio da boa-fé diz que cabe ao juiz analisar a manifestação da vontade sobre a boa-fé. Observe-se o que estabelece o art. 422 do Código Civil (BRASIL, 2002): “Os contratantes são obrigados aguardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”26 Isso quer dizer que o juiz deve estar sempre atento a esse princípio da boa-fé que, em síntese, atende ao ideal de justiça e faz parte dos princípios gerais do Direito.
VENOSA (2015) diz que cabe à jurisprudência, ou seja, aos tribunais, traçar as normas de interpretação. A interpretação dos negócios jurídicos e da lei em geral mescla-se com a aplicação do Direito. Interpretar e aplicar o Direito traduzem-se em uma única operação. Não há sentido de interpretar senão para aplicar a norma a um caso concreto27.
O artigo 113 estabelece que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.28 Desse modo, na forma do código brasileiro, três são as funções inerentes à boa-fé objetiva: função interpretativa (art. 113); função de controle (art. 187) e função de integração (art. 422)29.
Portanto, a boa-fé objetiva apresenta-se como uma exigência de lealdade, impondo diretrizes ao agir negocial, ou seja: honestidade pública.
XXXX XXXXXX (2006), ao tratar dos princípios da Unidroit, fala sobre as atribuições de caráter normativo do princípio da boa-fé, explicando que elas geram duas
25 VENOSA, ref. 24, p. 407.
26 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/xxxx/0000/x00000xxxxxxxxx.xxx Consulta em: 10 fev. 2021.
27 VENOSA, ref. 24, p. 411.
28 BRASIL, ref. 25.
29 VENOSA, ref. 24, p. 410.
consequências dogmáticas, que bem servem para ilustrar as consequências da normatização de forma geral desse princípio. São elas:
A primeira é o nascimento de deveres verdadeiramente obrigacionais cujas fontes não se encontram na vontade dos contraentes, mas no sistema jurídico. A segunda indica que os deveres decorrentes da boa-fé podem não ter sido declarados pelas partes, nem por elas querido e até serem por elas inteiramente desprezados; nada obstante, integraram o conteúdo jurídico do contrato, assim como toda a normatividade jurídica não declarada ou querida pelas partes (como, por exemplo, as normas imperativas e de ordem pública).30
Na linha da codificação, Cordeiro (2017), ao tratar da boa-fé no Código Civil alemão, expôs que uma codificação pressupõe sempre um certo pré-entendimento genérico da matéria a tratar, pois,
antes do estudo científico e da formalização pressupostos pela codificação, existe já, a nível cultural, uma ideia dos problemas a considerar e das saídas para eles recomendadas. A codificação acusa, fatalmente, as inclinações assumidas pelo pré-entendimento da problemática que pretenda incluir, ficando comprometida caso tal pré-entendimento falhe de todo em todo.31
A partir daí, dado o domínio do pensar liberal, sobressai-se a boa-fé como fator de fortalecimento e de materialização dos deveres contratuais assumidos. Então, Cordeiro (2017) esclarece que “a boa-fé emerge do Código Civil alemão como produto das influências jusculturais”.32
É certo que essa é uma realidade estudada na doutrina alemã, mas presente em diversas legislações, principalmente naquelas que sofrem ou já sofreram a influência do pensamento liberal. O autor completa que:
A ideia da incapacidade do sistema para prever todas as necessidades, presente e futuras, e a possibilidade de encontrar as soluções novas adequadas, com recurso à boa-fé, filtrou- se, ainda, que de modo subconsciente, no produto do trabalho dos codificadores. Estes acabaram, assim, por adoptar um sistema aberto, capaz de, por desenvolvimentos internos ou externos, responder a problemas impensáveis aquando da codificação.33
30 XXXX XXXXXX, Xxxxx. Contratos Internacionais à luz dos Princípios do Unidroit 2004 – Soft Law, Arbitragem e Jurisdição. São Paulo: Editora Xxxxxxx, 0000, p. 314. ISBN 85-7147-551-2.
31 CORDEIRO, ref. 13, p. 329.
32 CORDEIRO, ref. 13, p. 330.
33 CORDEIRO, ref. 13, p. 331.
O Código Civil português (PORTUGAL, 1966), conforme expõe Cordeiro (2017), fez constar a boa-fé em múltiplos dispositivos, embora isso não signifique que haja algum dado conclusivo a respeito de sua natureza.
Artigo 227.º Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte.34
Artigo 239.º (Integração) Na falta de disposição especial, a declaração negocial deve ser integrada de harmonia com a vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa-fé, quando outra seja a solução por eles imposta.35
Artigo 437.º (Condições de admissibilidade) Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada Direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa-fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.36
E, há ainda, dispositivos que definem a boa-fé, tais como os artigos 119º/3, 243º/2, 291º/3, 612º/2, 1260º/1, 1304º/4 e 1648º/1, todos do Código Civil português.
Esclarece Cordeiro (2017) que as definições são sete e que todas andam em torno de estados de ciência ou de ignorância da pessoa, quanto a certos fatos.
Interessante destacar que um dos conceitos explica a boa-fé pelos olhos do seu oposto, ou seja, a má-fé, sendo a hipótese do art. 612º/2:
Artigo 612.º (Requisito da má fé)
1. O acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé; se o acto for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa-fé.
2. Entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.37
Portanto, a história mostra que sem segurança e liberdade os negócios são fragilizados. Então, no decorrer dos séculos os valores relativos à boa-fé passaram a compor o rol do pensamento essencial incutido na sociedade, sendo princípio informador e diretivo dos negócios jurídicos, a ponto de sair da abstração, positivando-
34 PORTUGAL. Decreto-Lei nº 47.344 de 25 de novembro de 1966 . Código Civil Português. Disponível em xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxx.xx/ . Consulta em 10 fev. 2021.
35 PORTUGAL, ref. 34.
36 PORTUGAL, ref. 34.
37 PORTUGAL, ref. 34.
se na maioria das legislações, a fim de assegurar o desenvolvimento do comércio interno e externo das nações, já que essas trocas comerciais são o meio pelo qual elas prosperam e enriquecem.
4 DOS CONTRATOS, RELAÇÕES OBRIGACIONAIS E A BOA- FÉ
Não se pode falar em contratos, sem antes, pelo menos, tangenciar o Direito das Obrigações, do qual o contrato é sua representação mais expressiva.
4.1 Relação obrigacional e obrigação
A Teoria Geral das Obrigações representa um dos pontos mais importantes do Direito Civil. Xxxxxxx XXXXX (1995)38, nenhuma sociedade poderia subsistir sem a ideia de contrato, sem a divisão do trabalho, sem a cooperação dos seus membros, necessitando uns dos serviços dos outros.
O autor informa que há uma imperativa necessidade da existência de relações obrigacionais, sejam elas diretamente decorrentes da lei, obrigando o indivíduo a conduzir-se segundo limites impostos pela ordem jurídica, sejam elas consequências de convenções livremente pactuadas para atender aos interesses recíprocos de receber e de dar prestações39.
A compra e venda, alocação, o mútuo, ou depósito, o contrato de seguro, são indispensáveis à vida do homem em sociedade, como igualmente essa obrigação geral de não prejudicar o Direito alheio, de se comportar de modo perfeitamente ajustado à ordem jurídica, ou ao que a lei prescreve, com a liberdade, apenas, de praticar tudo quanto ela não proíba expressa ou implicitamente.40
Conforme definição clássica do Direito das Obrigações, o contrato é um conjunto de normas que rege as relações jurídicas de ordem patrimonial, segundo o qual um sujeito tem o dever de prestar e o outro tem o Direito de exigir essa prestação.
38 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxx. (1995). Curso de Direito Civil, Obrigações em Geral. Rio de Janeiro: Livraria Xxxxxxx Xxxxxx S.A., 6ª edição, revista e atualizada por Xxxx Xxxxx Santa Maria, p 5-6. (No Brasil, a emissão de ISBN foi regulamentada pela Lei 10.753/2003).
39 XXXXX, ref. 38, p.7.
40 XXXXX, ref. 38, p. 7.
Encarada em seu conjunto, afirma XXXXX (2000)41, a relação obrigacional é um vínculo jurídico entre duas partes, em virtude do qual uma delas fica adstrita a satisfazer uma prestação patrimonial de interesse da outra, que pode exigi-la, se não for cumprida espontaneamente, mediante agressão ao patrimônio do devedor.
O autor afirma que, nessa definição, o dever de prestar e o direito de crédito, aspectos positivos e negativos da relação obrigacional, estão igualmente contemplados: é a relação jurídica pela qual duas ou mais pessoas se obrigam e adquirem o direito a exigir determinadas prestações. Mas, o poder de exigir, ou o poder de ação do credor, está limitado à sujeição do patrimônio do devedor.
O conceito de obrigação e, portanto, de relação obrigacional, sofreu mudanças no decorrer dos tempos. O Direito invariavelmente sofre o impacto das transformações sociais, e nas últimas décadas, com a avanço das ideias socialistas no mundo, as ideias liberalistas antes predominantes foram substituídas por uma orientação mais social do Direito.
No dizer de VENOSA (2015)42, o Direito situa-se no mundo da cultura, isto é, dentro da realidade das realizações humanas. Antepõe-se ao mundo da cultura que é o universo do dever ser, um mundo ideal, ao mundo do ser, que é o mundo da natureza, das equações matemáticas. E o mundo da cultura se vale de outra dimensão da realidade circundante que é o mundo dos valores: por meio da valoração de cada conduta humana, atinge-se o campo do Direito.
Assim é que está havendo um redirecionamento do entendimento de obrigação não mais como um poder-dever, mas como cooperação entre credor e devedor, ou seja: direito-função.
XXXXXXXX XXXXXX00, numa análise clássica sobre as relações obrigacionais, esclarece que, na interação entre os sujeitos, vislumbra-se a relação jurídica como uma
41 XXXXX, Xxxxxxx. Obrigações. 13ª Edição, revista e atualizada por Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, pp. 10-11. (No Brasil, a emissão de ISBN foi regulamentada pela Lei 10.753/2003).
42 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, Parte Geral. São Paulo: Editora Atlas S.A., 15ª edição, 2015, p. 1. ISBN 978-85-224-9566-5.
43 XXXXXXXX XXXXXX, Xxxxxx. Relação Obrigacional Como Processo na Construção do Paradigma dos Deveres Gerais de Conduta e Suas Consequências. Curitiba: Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 56,
das mais importantes categorias da Teoria Geral do Direito. O autor tece as seguintes considerações:
Entre os tratadistas tradicionais existe uma certa uniformidade na delimitação do conceito de relação jurídica obrigacional, bem caracterizado na lição de Xxxxxxx Xxxxxxxx (2006, p. 4), que define obrigação como uma relação pela qual “alguém deve cumprir determinada prestação em favor de outrem. Ou sujeita-se o devedor a uma determinada prestação em prol do credor.
Para Xxxxxx Xxxxxxxxx (2002, p. 3-4), obrigação é o vínculo de Direito pelo qual alguém (sujeito passivo) se propõe a dar, fazer ou não fazer qualquer coisa (objeto), em favor de outrem (sujeito ativo). Conservando a mesma orientação, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx (2009, p. 3-4) destaca que “o recurso à etimologia é bom subsídio: obrigação, do latim ob
+ ligatio, contém uma ideia de vinculação, de liame, de cerceamento da liberdade de ação, em benefício de pessoa determinada ou determinável.
Todos os autores citados ressaltam em seus escritos o caráter transitório e econômico da relação, uma vez que seu adimplemento é garantido mediante o patrimônio do devedor, razão pela qual Xxxxxxx Xxxxx (2004, p. 17) sustentava que, encarada em seu conjunto, a relação obrigacional é “um vínculo jurídico entre duas partes, em virtude do qual uma delas fica adstrita a satisfazer uma prestação patrimonial de interesse da outra, que pode exigi-la, se não for cumprida espontaneamente, mediante agressão ao patrimônio do devedor. 44
Mesmo que se entenda que o Direito obrigacional esteja sofrendo modificações em razão da socialidade ou função social, ainda que a palavra de ordem nos termos atuais seja cooperação, o seu fim não pode ser dissociado da busca pelo adimplemento da obrigação. O fim de uma relação obrigacional jamais pode deixar de ser o seu exaurimento natural, qual seja, o cumprimento das obrigações assumidas entre devedor e credor. Vige o primado da busca da satisfação ao credor – em favor de quem se constituiu a obrigação – e de forma menos onerosa ao devedor. Sem isso, a essência do Direito obrigacional está perdida, perdendo seu caráter e finalidade.
Concluindo esta seção com as palavras de VENOSA (2015)45, de que é no Direito das Obrigações que reside o grande baluarte da autonomia da vontade, cabendo aos julgadores não esquecer esse aspecto, como razão da própria existência do Direito privado.
dec. 2012. Disponível em: xxxxx://xxxxxxxx.xxxx.xx/Xxxxxxx/xxxxxxx/xxxx/00000, pp. 142-154. Acesso em: 14 ago. 2020. ISSN 2236-7284.
44 XXXXXXXX XXXXXX, ref. 43, p. 142.
45 VENOSA, ref. 42, p. 10.
4.1.1. Relação obrigacional complexa
Não cumpre ressaltar neste subtópico, assim como não é objeto deste trabalho, as formas específicas de cada modalidade de obrigação, ou mesmo aprofundar o estudo do processo com vistas ao seu fim (adimplemento). A intenção é tomar por base as características gerais das obrigações e destacar o que seja a essência da obrigação como processo, pois a questão tem uma relação direta com a forma da visão hodierna da obrigação à luz do boa-fé objetiva.
Atualmente, a obrigação deve ser vista como uma relação complexa, formada por um conjunto de direitos, obrigações e situações jurídicas. Portanto, não se limita mais a uma simples relação jurídica entre credor e devedor: trata-se de um processo, ou seja, uma série de atos interrelacionados, que caminham com o objetivo de satisfazer os interesses de ambas as partes.
A obrigação como uma estrutura de processos é defendida por XXXXX (2006) 46, para quem a relação obrigacional é dinâmica e, portanto, pode sofrer mutações desde seu nascimento até seu adimplemento.
Nesta concepção da obrigação, segundo o autor referido, credor e devedor não ocupam posições antagônicas. O que permeia a obrigação é a sua finalidade, em uma ordem de cooperação visando o adimplemento de forma mais satisfativa ao credor e menos onerosa ao devedor.
A inovação, que permitiu tratar a relação jurídica como totalidade, realmente orgânica, veio do conceito do vínculo como uma ordem de cooperação, formadora de uma unidade que não se esgota na soma dos elementos que a compõem.
Dentro dessa ordem de cooperação, credor e devedor não ocupam mais posições antagônicas, dialéticas e polêmicas. Transformando o status em que se encontravam, tradicionalmente, devedor e credor, abriu-se espaço ao tratamento da relação obrigacional como um todo.47
XXXXX (2006) estabeleceu que, para a obrigação ser considerada um processo, é necessário elencar alguns elementos como a fonte das obrigações, a definição de negócio jurídico, ato-fato etc..
46 XXXXX, Clóvis V. do Couto e. A Obrigação Como Processo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2006. ISBN 978- 85-225-0924-9.
47 XXXXX, ref. 46, p. 310.
Seguindo a linha traçada pelo referido autor sobre a fonte das obrigações, a doutrina costuma referir que a lei é a fonte primária das obrigações em geral, como esclarecem XXXXXXXX e PAMPLONA FILHO (2006)48. Mas, entre a lei e os seus efeitos obrigacionais deve existir um fato jurídico, tal como o contrato, que concretize a norma: “vale dizer, entre a norma e o vínculo obrigacional instaurado entre credor e devedor, concorrerá um acontecimento – natural ou humano – que se consubstancia como condição determinante da obrigação.” 49
Portanto, segundo os autores, sem menosprezo da lei, para determinar a fonte das obrigações, deve-se cuidar dos fatos jurídicos que concretizem o preceito insculpido na norma legal.
Então, XXXXXXXX e PAMPLONA FILHO (2006) prosseguem dizendo que, hodiernamente, a classificação das fontes das obrigações varia ao sabor das diferentes correntes doutrinárias, mas que parte respeitável da doutrina, nos sistemas positivados modernos, considera mesmo a lei como fonte primária, ao lado da vontade humana e do ato ilícito. Citam como exemplo as doutrinas de VENOSA (2012)50 e XXXXX (2000)51. Mas, detêm-se na classificação das fontes mediatas das obrigações, que se situa entre a lei e seus efeitos deflagrados in concreto. Essas fontes são os atos jurídicos a seguir52:
- os atos jurídicos negociais – o contrato, o testamento, e as declarações unilaterais de vontade;
- os atos jurídicos não negociais – o ato jurídico stricto sensu, os fatos materiais, como a situação fática de vizinhança, por exemplo;
- os atos ilícitos, tal como o abuso de Direito, por exemplo.
48 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx; PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Novo Curso de Direito Civil, Obrigações. São Paulo: Editora Saraiva, 7ª edição, 2006, p. 22. ISBN 85-02-05739-1
49 XXXXXXXX; PAMPLONA FILHO, ref. 48, p. 23.
50 Cita trecho da doutrina de VENOSA (2012) sobre as Institutas de Xxxxxxxxxx, que sistematizava as fontes das obrigações em quatro categorias: contrato; quase-contrato; delito; e, quase delito. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Editora Atlas, S.A., 15ª edição, 2012. In ref. 48, p. 23.
51 “Quando se indaga a fonte de uma obrigação, procura-se conhecer o fato jurídico ao qual a lei atribui o efeito de suscitá-la”. XXXXX, Xxxxxxx. Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 15ª edição, 2000. In ref. 48, p.22.
52 GABLIANO; PAMPLONA FILHO, ref. 48, p. 24.
Dentre essas fontes, merece especial atenção o contrato “pela considerável importância e larga aplicação prática. Desde quando o homem abandonou o seu estado mais primitivo, o contrato, filho dileto da autonomia privada, passou a ser o mais relevante instrumento jurídico de circulação de riquezas econômicas.”53
Seguindo na linha de SILVA (2006), e segundo os elementos do processo obrigacional, o presente trabalho segue a definição de negócio jurídico, conforme apresentada a seguir.
Na definição de negócio jurídico, XXXXXXXXX (2013) vale-se da doutrina de Xxxxxx Xxxxx e diz o seguinte:
Xxxxxx Xxxxx, por sua vez, preleciona que ‘o negócio jurídico é aquela espécie de ato jurídico que, além de se originar de um ato de vontade, implica a declaração expressa da vontade, instauradora de uma relação entre dois ou mais sujeitos tendo em vista um objetivo protegido pelo ordenamento jurídico. Tais atos, que culminam numa relação intersubjetiva, não se confundem com os atos jurídicos em sentido estrito, nos quais não há acordo de vontade, como, por exemplo, se dá nos chamados atos materiais, como os da ocupação ou posso de um terreno, a edificação de uma casa no terreno apossado etc. Um contrato de compra e venda, ao contrário, tem a forma específica de um negócio jurídico. 54
Portanto, está se falando em realização da vontade autônoma criadora, modificadora e extintiva de relações jurídicas entre particulares. E, estando presente uma finalidade jurídica protegida pelo ordenamento jurídico, tem-se presente um negócio jurídico.
Percebe-se, nas palavras de XXXXXXX (2004), então, a convergência da atuação da vontade e do ordenamento jurídico, “uma vontade orientada no sentido de uma finalidade jurídica, em respeito à qual atribui efeito ao negócio, e em razão de que se diz que aquele efeito decorre diretamente da vontade.”55
Quando se fala em declaração da vontade, tem-se que o ato negocial se processa em dois momentos distintos: o interno e o externo. O primeiro é meramente a
53 XXXXXXXX; PAMPLONA FILHO, ref. 48, p. 25.
54 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro – Parte Geral. São Paulo: Editora Saraiva, 11ª edição, 2013. ISBN 978-85-02-19067-2, pp. 318-319.
55 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições de Direito Civil – Introdução ao Direito Civil. Teoria Geral do Direito Civil, Vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Forense, 20ª edição, revista e atualizada por Xxxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxx, 2004, p. 480. (No Brasil, a emissão de ISBN foi regulamentada pela Lei 10.753/2003).
deliberação no âmbito pessoal, subjetivo, e o segundo, sendo a externalização da vontade, vai determinar a forma do negócio jurídico.
O negócio jurídico, portanto, é todo ato decorrente de uma vontade autorregulada, no qual os contratantes obrigam-se a efetuar determinada prestação jurídica em busca de um determinado objeto. Como ato jurídico que é, seus efeitos encontram previsão no ordenamento jurídico, sendo de livre estipulação, na grande maioria das vezes, os meios de obtenção dos efeitos desejados. Aí entra a negociação livre entre as partes interessadas, que estabelecem cláusulas negociais de acordo com suas respectivas intenções para o objeto contratado, funcionando a lei como um balizador, já que, embora livre, deve ser lícito para ter validade. A forma mais comum do negócio jurídico é o contrato56.
A obrigação como um processo está não só ligada com o desenvolvimento do vínculo obrigacional, mas também ligada às fontes. Observa-se que fatores decorrentes da cultura e da imersão de valores passaram a influir nas obrigações. A lei, por si só, não consegue abarcar todas as condutas sociais possíveis que possam gerar obrigações, mas é eficaz ao ditar princípios que mitigam o princípio da autonomia da vontade que, outrora, era um pouco mais absoluto, sendo atualmente restrito, como por exemplo, na norma do artigo 421 do Código Civil vigente: "Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato." (BRASIL, 2002).
Outro balizador se encontra no princípio da boa-fé que traduz uma ideia de lealdade e probidade a qual se pode relacionar, no plano dos negócios jurídicos, à pretensão de veracidade. E, certamente, pode-se afirmar que o princípio da boa-fé apresenta o dever das partes de agirem de forma correta, ética, moralmente aceita, tanto antes, como durante e depois de adimplida a obrigação, permeando todas as fases do processo da relação obrigacional.
O professor XXXXX (2006)57 expõe a relação obrigacional como uma estrutura de processos e como totalidade analiticamente passível de decomposição em fases e planos, estando polarizada pelo adimplemento, sendo tratada como um organismo
56 Há outras formas de negócios jurídicos, tal com os unilaterais, de que é exemplo o testamento. Contudo, o objetivo desse título é contextualizar o contrato.
57 XXXXX, ref. 46, pp. 80-81 .
complexo, de acordo com a realidade das relações desenvolvidas pelo homem moderno em seu cotidiano, configurando-se, portanto, sob a ótica de um processo contínuo, dividido em fases desde o nascimento até o seu momento fim, que é o adimplemento.
A relação obrigacional desenvolve-se, de fato, como um processo que busca como objetivo primordial o adimplemento, que finaliza o vínculo obrigacional. A boa-fé como norma de interpretação e conduta, alude à determinados padrões de comportamentos, observados em todas as fases desse processo, sem comprometer a finalidade dos vínculos formados: adimplemento da obrigação.
4.2 A Boa-fé nas Relações Obrigacionais
Segundo XXXXXXXX (2017)58, apesar de a boa-fé codificada ter tido as suas primeiras aplicações precisamente no domínio do conteúdo das obrigações, não houve uma ligação imediata entre o organismo obrigacional e a boa-fé.
Relata o autor que a complexidade intraobrigacional traduz a ideia de que o vínculo obrigacional abriga, em seu seio, “não um simples dever de prestar, simétrico a uma pretensão creditícia, mas antes vários elementos jurídicos, dotados de autonomia para, de um conteúdo unitário, fazerem uma realidade composta”59. Assim, citando LARENZ60, CORDEIRO (2017) indica que a menção a um processo permite focar o sentido final das obrigações, as quais “viradas para um escopo, vão sofrendo alterações durante o seu percurso temporal, sem prejuízo da identidade de base.”61 E, a fim de que o estudo da relação obrigacional não seja reduzida a uma noção meramente sistêmica, ao se reconstituir o conteúdo da mesma, deve-se estudar e alinhar os elementos que o compõem, partindo-se do todo para as partes.
58 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. Da Boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Edições Almedina S.A., 2017, Coimbra, 7ª Reimpressão, p. 590. ISBN 978-972-40-7193-0.
59 CORDEIRO, ref. 00, x. 000
00 XXXXXX, Xxxx. Xxxxxx Xxxxxxxxxxxxxxxx und der Begriff der objektiven Zurechnung / Ein Beitrag zur Rechtsphilosophie des Kritischen Idealismus und zur Lehre von der “juristischen Kausalität”. Leipzig (1927) In CORDEIRO, ref. 58, p. 590.
61 CORDEIRO, ref. 58, p. 590
No item precedente, 4.1.1., tratou-se das relações obrigacionais em sua complexidade. CORDEIRO (2017)62 ainda trata da complexidade intraobrigacional sob duas vertentes: uma em um nível mais secundário, no qual se consegue aferir a prestação a efetivar pela simples observação que leva à interpretação de sua fonte; outra que se desenvolve a partir do Direito, meio pelo qual se chega aos deveres de colaboração. No fim desse caminho, está a boa-fé, dado a impossibilidade de que tais deveres (e aos de colaboração também os deveres acessórios) de intervir de forma abrangente.
A obrigação é um processo por se tratar de um complexo de requisitos que devem ser respeitados dentro de uma dada relação obrigacional. Em seu caminho, exige-se a observância de critérios, também chamados princípios, que norteiam as obrigações, e são: Princípio da Eticidade, Probidade, Função Social, Solidariedade, Cooperação, entre outros. Todos esses princípios estruturam o que se chama de boa-fé-objetiva, ou seja, esta é formada pela condensação de todos estes elementos.63
Para se compreender a essência da teoria da obrigação como processo, é fundamental ter clareza sobre a separação das fases, pois é nelas que se mostra o caráter dinâmico da relação obrigacional: pré-contratuais, contratuais e pós- contratuais, ou seja, nascimento, desenvolvimento dos deveres ajustados e o adimplemento.
Na prática, em grande parte das vezes, a separação de fases não é perceptível devido à instantaneidade, efemeridade e precariedade do negócio. Quando se analisa a compra e venda perfunctoriamente, por exemplo, não se percebe a separação de fases, contudo elas existem, e levam ao fim natural da relação obrigacional, que é o adimplemento. E, justamente neste ponto específico, qual seja, o referido cumprimento de obrigações antes, durante e depois da obrigação principal, é que a boa-fé objetiva contribui para esse conceito de complexidade das relações obrigacionais.
Nessa esteira de pensamento, preleciona SILVA (2006) que a boa-fé possui múltiplas significações dentro do Direito e que seria fastidioso numerar as diferentes
62 XXXXXXXX, ref. 58, p. 594.
63 CORDEIRO, ref. 58, p. 19.
formas de operar desse princípio nos diversos setores do Direito. Mas com relação ao Direito das Obrigações, o autor afirma que a boa-fé se manifesta como máxima objetiva que determina aumento de deveres, além daqueles que a convenção explicitamente constitui, e que também os endereça a todos os participes do vínculo e que pode, inclusive, criar deveres para o credor, o qual, tradicionalmente, era apenas considerado titular de direitos64.
O princípio da boa-fé contribui para determinar o o que e o como da prestação e, ao relacionar ambos os figurantes do vínculo, fixa os limites da prestação. 65
Os deveres derivados da boa-fé ordenam-se em graus de intensidade, dependendo da categoria dos atos jurídicos a que se ligam, e podem até constituir o próprio conteúdo dos deveres principais, como nas hipóteses, já mencionadas, da gestão de negócio ou da fidúcia, ou ainda expressarem-se como deveres duradouros de fidelidade, abrangendo e justificando toda a relação jurídica, como no contrato formador da relação de família.66
XXXXX (2006) faz, ainda, um paralelo entre a boa-fé e os bons costumes, e, deixando as distinções técnicas entre os dois conceitos, informa que o importante é contrastar que os bons costumes se referem a valores morais indispensáveis ao convívio social, enquanto a boa-fé tem atinência com a conduta concreta dos figurantes na relação jurídica. Assim, quem convenciona não cumprir determinado contrato age contra os bons costumes, decorrendo disso a nulidade do negócio. De outro lado, quem deixa de indicar circunstância necessária ao fiel cumprimento da obrigação terá apenas violado dever de cooperação para com outro partícipe do vínculo, inexistindo a indicação, porém, infringe a cláusula dos bons costumes.67
A partir daí, XXXXX (2006) começa a trabalhar os conceitos da boa-fé e interpretação, boa-fé e usos de tráfico - que nada mais é do que a observância desse princípio na efetivação da prestação -, boa-fé e autonomia da vontade, boa-fé e culpa,
64 XXXXX, ref. 46, p. 39.
65 XXXXX, ref. 46, p. 549.
66 XXXXX, ref. 46, p. 557.
67 XXXXX, ref. 46, pp. 568-569 .
boa-fé e motivo, boa-fé e Direito dos juízes. Desses conceitos, alguns interessam de perto ao propósito deste trabalho, e serão abordados nos itens precedentes.
Não há como olvidar a importância do princípio da boa-fé objetiva nas relações obrigacionais, inclusive, considerando as responsabilidades pré e pós-contratuais, uma vez que, através da aplicação do referido princípio, é possível constatar a existência de deveres anexos de conduta tanto nas negociações preliminares quanto depois de alcançado o adimplemento, pois, em grande parte das relações obrigacionais, para que a prestação seja aproveitada e para que sejam atingidos os interesses dos contratantes, faz-se necessária a observância dos deveres advindos da boa-fé. Não há outro caminho.
4.3 Contratos – Desenvolvimento histórico
O Estado Liberal nasceu como uma antítese ao estado absolutista, no qual as relações privadas, especialmente as atividades econômicas, dependiam da vontade e concessão do soberano político. As Constituições liberais, notadamente a partir das revoluções americana e francesa, incorporaram o ideário liberal burguês triunfante da plenitude da autodeterminação individual, com ausência de controle da atividade econômica.
LÔBO (2014)68 explica que a experiência histórica demonstrou que o poder negocial, como qualquer poder livre de controle social, desagua em abuso. O período histórico de predomínio do individualismo jurídico e da legislação liberal é marcado pelo abuso e pela exploração da liberdade contratual, em desfavor dos contratantes mais fracos e vulneráveis. Assim, o princípio da liberdade, sob a ótica exclusivamente individual e do laissez faire econômico, serviu para justificar as mais degradantes condições de trabalho humano.
De uma economia capitalista liberal do séc. XVIII, uma parte do mundo, acatando ideais socialistas, voltou-se ao comunismo que se fez presente em muitos países,
68 XXXX, Xxxxx. Direito Civil – Contratos. São Paulo: Editora Saraiva, 2ª edição, 2014, pp. 38/42. ISBN 978- 85-02-20836-0.
também com seus exageros e absurdos. Até que esse pêndulo consiga se equilibrar no Estado Social de Direito, ou constitucional69.
No Brasil, o Estado Social, inaugurado em 1934, atingiu seu ápice na Constituição de 198870. O contrato e a propriedade são os institutos jurídicos mais afetados pelos controles instituídos por este Estado Social. A autonomia individual, ao invés de instrumento de limitação do poder estatal, é substituída pela limitação estatal dos poderes econômicos privados, em prol do equilíbrio entre interesses individuais e interesses sociais, e da proteção das partes e de sistemas vulneráveis. As garantias e controles constitucionais apresentam o ideal de funcionar como anteparo, ou escudo protetor da autonomia contratual real.
O Estado Social não rompeu inteiramente com os pressupostos do Estado Liberal, tendo buscado solução de compromisso entre os valores individualistas e os valores solidários. A doutrina tradicional e liberal do contrato aludia apenas e genericamente aos bons costumes e à ordem pública. Todavia, sob a bandeira da justiça social, as técnicas jurídicas de limitação da liberdade de contratar se tornam mais evidentes. Até mesmo princípios sociais do contrato, tais como a função social, boa-fé objetiva, e equivalência material, passaram a conformar a autonomia da vontade71. Constituições sociais regulam a ordem econômica e social e, por consequência, a teoria geral dos contratos deve se ajustar a essa ordem regulada.
4.3.1 O Contrato No Direito Contemporâneo
A crescente complexidade da vida social exigiu novas técnicas de contratação, de forma a simplificar o processo de formação do contrato, como ocorreu de forma muito visível nos contratos em massa, notadamente contratos de consumo.
Nesse sentido, XXXXX (2000)72 apontou alguns aspectos como sendo os pontos fundamentais das transformações ocorridas na teoria geral do contrato, estando, entre
69 LÔBO, ref. 68, pp. 40-42
70 LÔBO, ref. 68, pp. 40-42
71 LÔBO, ref. 68, pp. 51-53
00XXXXXXX, Xxxxx. (2000). Contratos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 21ª edição, p 7. (No Brasil, a emissão de ISBN foi regulamentada pela Lei 10.753/2003).
eles, a insatisfação de grandes parcelas da população, como o desequilíbrio entre as partes, atribuída ao princípio da igualdade formal; e a intromissão do Estado na vida econômica.
Dentre as novas técnicas de constituição das relações jurídicas, destacam-se as que foram impostas pela massificação de certos contratos - e que são técnicas que impuseram uma uniformidade das condições e cláusulas -, e as que acusam a tendência para a despersonalização dos contratantes. Cita-se como exemplo a decisão do Supremo Tribunal de Justiça em Portugal, que decidiu por meio do Acórdão 2/2016, no seu primeiro segmento uniformizador, que
É proibida, nos termos do preceituado pelo artigo 15º da LCCG, por contrária à boa-fé, a cláusula contratual geral que autoriza o banco predisponente a compensar o seu crédito sobre um cliente com o saldo de conta colectiva solidária, de que o mesmo cliente seja ou venha a ser contitular.73
Nesse mesmo Xxxxxxx, no seu segundo segmento uniformizador, decidiu-se que
É proibida, nos termos do preceituado pelo artigo 18º, alínea a) da LCCG, a cláusula contratual geral que autoriza o banco predisponente a ceder total ou parcialmente a sua posição contratual para outras entidades do respectivo grupo, sediadas em Portugal ou no estrangeiro.
No novo contexto determinado pela política de intervenção do Estado na economia, o contrato sofre duas importantes modificações em sua significação e em sua função: primeiro, deixa de ser simplesmente expressão da autonomia privada; segundo, passa a ser uma estrutura de conteúdo complexo e híbrido, com disposições voluntárias e compulsórias, nas quais a composição dos interesses reflete o antagonismo social entre as categorias às quais pertencem os contratantes (produtores e consumidores, empregadores e empregados, senhor e inquilinos).
Essa evolução alterou profundamente o quadro conceitual relativo à contratação, pois não se trata apenas de inovações técnicas, nem da consagração de princípios jurídicos com suspeitas motivações para justificar a direção e o controle da economia pelo Estado; mas dirige-se no sentido de uma reconstrução do próprio sistema
73 PORTUGAL. Supremo Tribunal de Justiça. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2016. Diário da República n.º 4/2016, Série I de 2016-01-07. Disponível em xxxxx://xxxx.xxx.xx/xxx/xxxxx/0/0000/00/00/x/xxx/xx/xxxx
contratual, orientada no sentido de libertar o conceito de contrato da ideia de autonomia privada e admitir que, além da vontade das partes, outras fontes integram a confiança no outro74.
Como negócio jurídico, o contrato, para ser considerado válido, deve atender a uma série de requisitos, conforme elencados no artigo 104 do Código Civil (BRASIL, 2002):
- agente capaz (requisito subjetivo);
- objeto lícito, possível, determinado ou determinável (requisito objetivo);
- forma prescrita e não defesa em lei (requisito formal).
Mas, para que o contrato seja válido, além de obedecer aos requisitos estabelecidos pelo artigo 104 do Código Civil (BRASIL, 2002), ele deve estar pautado pelos princípios que regem os contratos.
Os princípios, como esclarece TARTUCE (2013)75, assumem um papel de grande importância na atual codificação privada brasileira. Além do próprio Código Civil ser um verdadeiro código de princípios, ainda há os princípios constitucionais. Assim, diz o autor que “pode-se conceituar os princípios como sendo regramentos básicos aplicáveis a um determinado instituto jurídico, no caso em questão, ao contratos”76. Esclarece também que os princípios são abstraídos das normas, dos costumes, da doutrina, da jurisprudência e de aspectos políticos, econômicos e sociais.
Os princípios tendem a ser modificados de acordo com o tempo, na medida das mutações dos valores sociais dos quais emanam. Na visão clássica, herdada do século XIX, eram três os princípios contratuais fundamentais:
- autonomia da vontade;
- força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda); e
- relatividade dos efeitos contratuais.
A esses princípios, que ainda prevalecem, mas com sua força mitigada, principalmente no que diz respeito aos dois primeiros, passaram a integrar os princípios fundamentais os seguintes:
- o equilíbrio econômico;
74 XXXXX, ref. 72, pp 14-15.
75 TARTUCE, Xxxxxx. (2013). Direito Civil – Teoria Geral dos Contratos em Contratos em Espécie. Rio de Janeiro: Editora Método, 8ª edição, pp 52/53. ISBN 978-85-309-4469-8.
76 TARTUCE, ref. 75, pp. 52-53.
- a função social do contrato; e
- a boa-fé objetiva.
Devido às concepções liberais, os princípios clássicos ou tradicionais foram concebidos para garantir ampla liberdade entre os contratantes a fim de que contratassem como desejassem, com plena liberdade. Contudo, esse exercício, em vez celebrar a isonomia das partes, demonstrou uma prevalência sobre a parte social ou economicamente mais fraca.
Essa nova postura estatal refletiu diretamente sobre a teoria do contrato, de forma que, juntamente com as ideias liberais, novos princípios contratuais surgiram a fim de diminuírem a rigidez daqueles, incorporando ao direito contratual fundamentos de ordem ética.
4.4 Contratos Internacionais
A celebração de contratos internacionais tem a finalidade de garantir a troca de produtos, serviços e tecnologia entre os países e as empresas, suprindo, assim, as respectivas demandas de cada país natal dos respectivos contratantes.
São mecanismos de proteção para os contratantes na esfera internacional, pois através do contrato formaliza-se a definição de direitos e obrigações mútuos, bem como o foro de eleição e as cláusulas aleatórias para eventuais ocorrências de litígios.
Além disso, os contratos internacionais de comércio são os guias da direção a ser tomada na relação jurídico-econômica, visto que apontam tendências internacionais, pois, de fato, ainda não existe uma legislação uniforme que regule a matéria relativa a negociações em nível supranacional.
4.4.1 Definição
Hodiernamente, o mundo encontra-se caracterizado pela interdependência entre os agentes do comércio internacional. GOMIDE (2017)77, valendo-se da lição de
77 GOMIDE, Xxxxxx Xxxxxx. Comércio Brasil E China: Uma Relação De Interdependência. Depositada na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), 2017. [Consultada em 08.11.2020]. Disponível
KEOHANE e NYE (1989)78, definiu dependência mútua, na política mundial, como as situações caracterizadas por efeitos recíprocos entre países ou atores em diferentes países. E esse intercâmbio comercial internacional tem como seu principal instrumento o contrato. Nesse sentido, o contrato, sinteticamente falando, é um acordo de vontades no qual estão envolvidos mais de um ordenamento jurídico.
XXXXXXXX (2017)79, citando STRENGER (2001)80, define o contrato internacional como “consequência do intercâmbio entre Estados e pessoas, cujas características são diversificadoras dos mecanismos conhecidos e usualmente utilizados pelos comerciantes circunscritos a um único território, e os transterritoriais”.
As relações comerciais interestaduais datam da antiguidade. Se nos primórdios era puro escambo, nos dias atuais, ocorre a transferência de tecnologia. É certo que isso levou a uma alteração das relações jurídicas, e, considerando, ainda, o regime capitalista de produção, tem-se a moderna concepção de contrato: acordo de vontades por meio do qual as pessoas formam um vínculo jurídico ao qual se vinculam.
Voltando a OLIVEIRA (2017)81, a autora informa que, para alguns autores, as peculiaridades dos contratos internacionais podem ocorrer no âmbito jurídico e econômico. Assim, valendo-se da doutrina de XXXXXXXX (2010), XXXXXXXX (2017) afirma que a movimentação de bens e serviços através de fronteiras é o indicador econômico da internacionalidade do contrato, e pela ótica jurídica, Baptista (2010) defende que “um contrato tem caráter internacional quando, pelos atos concernentes à sua
em xxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxxxx/xxxxxxxxxxx/000/000000/xxx-00000000-000000/. Acesso em 8 Nov. 2020.
A autora, em sua tese de mestrado sobre o Comércio entre o Brasil e a China, ao conceituar a interpendência, assim o fez: “De acordo com Xxxxxx Xxx e Xxxxxx Xxxxxxx (1998), dependência significa o estado de ser determinado ou significativamente afetado por forças externas. Interdependência, em sua definição mais simples, significa dependência mútua; na política mundial, se refere a situações caracterizadas por efeitos recíprocos entre países ou atores em diferentes países. Efeitos esses derivados das transações internacionais, como fluxos de dinheiro, de bens e de pessoas.” (XXXXXXX, X.; XXX, X. Power and Interdependence in The Information Age Foreign Affairs. Vol. 77, pp. 81-95, 1998).
78 XXXXXXX, X.; XXX, X. Power and Interdependence in The Information Age Foreign Affairs. Vol. 77, pp. 81-95, 1998 In GOMIDE, ref. 77.
79 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx. Os Contratos Internacionais e a Lex Mercatoria, p. 12. Estudo Geral
- repositório Científico da Universidade de Coimbra (UC Dissertações de Mestrado), 2017. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxx.xxx/00000/00000. Acesso em: 11 nov. 2020.
80 XXXXXXXX, Xxxxxx. Aspectos da Contratação Internacional. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Vol. 96, ano 2001 In OLIVEIRA, ref. 79.
81 XXXXXXXX, ref. 79. p. 13
celebração ou sua execução, ou a situação das partes quanto à sua nacionalidade ou seu domicílio, ou a localização de seu objeto, ele tem liame com mais de um sistema jurídico” 82.
4.4.2 Características
O contrato internacional caracteriza-se não só pela simples negociação entre pessoas (física e/ou jurídica) estrangeiras, mas também pelos fatores decorrentes da própria negociação e execução do contrato, com reflexos em ordenamentos jurídicos distintos intervenientes no contrato.
STRENGER (2001)83 publicou um artigo na Revista da Universidade de São Paulo84, no qual esclarece que os contratos internacionais são fruto de uma multiplicidade de fatores, envolvendo métodos e sistemas interdisciplinares, inspirados no aspecto econômico e político, no comércio exterior e nas ciências sociais. Então, o autor elenca algumas premissas nesse sentido, que são as seguintes:
1. Os contratos internacionais são, casualmente, identificáveis. Significa que os substratos fáticos dos contratos internacionais são formados de dados extremamente sensíveis a todas as atividades operacionais do comércio internacional. Depreende-se dessa convicção que os contratos internacionais não são uma especialização do Direito, mas uma profissionalização das atividades comerciais. Vale dizer que os contratos internacionais refletem a vontade negocial, com preponderância sobre os estereótipos jurídicos.
2. Os contratos internacionais são os únicos instrumentos de ação para o comércio internacional, sem vínculos com esquemas legais geograficamente circunscritos. Embora os contratos internacionais não se exaurirem juridicamente nos seus próprios termos, a eficácia convencional remanesce como fulcro de sua execução.
3. Os contratos internacionais transcendem os limites estritos do Direito para se converterem em instrumento multidisciplinário, em forma de sintetizações oriundas de um processo de complementariedade.
4. Os contratos internacionais não são meros veículos convencionais, mas fórmulas de elaborações conjunturais, que permitem elastecimento do objeto em plano de alta diversificação, relativamente a bens usualmente chamados de visíveis e invisíveis.
82 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. Contratos Internacionais. São Paulo: Lex Editora, 2011, p.21. In OLIVEIRA, ref. 79, p. 13.
83 Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
84 XXXXXXXX, Xxxxxx. (2001). Aspectos da Contratação Internacional. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Vol. 96, ano 2001, p. 455-474 (No Brasil, a emissão de ISBN/ISSN foi regulamentada pela Lei 10.753/2003). Consultado em 08.11.2020.
Disponível em xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx/xxxxxxx/xxxx/00000/00000.
5. Os contratos internacionais fundamentam-se em sistemas principiológicos mais do que legais, como decorre da noção da lex mercatoria85.
A correta conceituação e caracterização do contrato internacional, segundo afirma XXXXXX (2009)86, verifica-se na medida em que decorre de seu caráter internacional a necessidade de se identificar o sistema jurídico aplicável aos elementos contratuais, dentre os sistemas que a que ele se relacionam, seja existência de elementos de estraneidade, seja por se ter revelado internacional em sua essência. Assim, a autora, citando XXXXXXX (1980)87, ao definir os contratos internacionais, fazendo-o pelo aspecto econômico, indica alguns pontos comuns que os identificam, cabendo ressaltar que não se trata de uma lista taxativa, mas indicativa:
a) Contratos que desenvolvem o intercâmbio de mercadorias, serviços e capitais entre empresas de diferentes países;
b) Contratos nos quais uma ou mais partes desempenham um papel preponderante no meio econômico internacional, em relação ao objeto principal do ajuste;
c) Em situações de concentração oligopolista, os contratos que afetam o mercado internacional na área dos bens e serviços a que se referem; e
d) Contratos que interferem nos interesses corporativos de outras empresas que se dediquem à mesma atividade do ajuste, em razão de terem uma organização transnacional.
Observa-se, portanto, que as características dos contratos internacionais surgem em virtude do próprio dinamismo da prática negocial internacional, pois eles devem suscitar um conflito de leis por seu contato objetivo com diversos Estados, “não
85 STRENGER, ref. 84, p. 463
86 CÁRNIO, Thais Cíntia. Contratos Internacionais – Teoria e Prática. Editora Atlas, S.A., São Paulo, 2009, pp. 13/14. ISBN 978-85-224-5434-1.
87 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx Xxxxxxx. La contratación internacional – la posible armonización em su regulación jurídica. IN 2º Seminário Sobre la Enseñanza del Derecho Internacional - 1980. Bogotá: Fundação Universitária de Bogotá In. CÁRNIO, ref. 147, p. 14.
bastando a mera eleição, pelas partes, de uma lei aplicável para dar ao contrato um caráter internacional.88
4.4.3 Autonomia Da Vontade
Refere-se à liberdade concedida às partes para determinar o conteúdo do contrato. Essa autonomia não é absoluta, sendo limitada por questões de interesse da coletividade, tais como a prevalência do interesse público sobre o privado.
Esse princípio espelha a liberdade de pactuar inerente a todo agente capaz, ou seja, a autonomia de contrair obrigações e cumpri-las, liberdade que abrange o poder de contratar quando a pessoa quiser, com quem quiser e sobre o que quiser, isto é, convencionar sem se submeter a qualquer interferência do Poder Público, respeitando, é claro, a ordem pública e os bons costumes.
O conceito de liberdade de contratar refere-se à liberdade de acordo propriamente dita; a de estipular o contrato; e à liberdade de determinar o conteúdo do ajuste, abrangendo os poderes de autorregência de interesses e livre discussão das condições contratuais
No que diz respeito especificamente à autonomia da vontade no Direito Internacional Privado, PINHEIRO (2003) sustenta que consiste na “liberdade de designação do direito aplicável”89. Ou seja, o termo liberdade contratual tem o sentido de que as partes podem escolher a lei aplicável e pela qual vão reger suas relações contratuais internacionais.
Sublinhe-se, porém, que numa visão mais ampla, que estabeleça as necessárias correlações com os regimes da competência internacional e da arbitragem internacional, surgem outras manifestações importantes do princípio da autonomia da vontade, designadamente a liberdade de designar o foro competente e de submeter os litígios à jurisdição arbitral.90
88 CÁRNIO, ref. 86, p. 14.
89 XXXXXXXX, Xxxx xx Xxxx. Contrato de Empreendimento Comum (Joint Venture) em Direito Internacional Privado. Coimbra: Editora Xxxxxxxx, 0000. (Depósito Legal 203843/03).
90 PINHEIRO, ref. 89, p. 643.
Em outra vertente, o autor afirma que há manifestação da autonomia da vontade que diz respeito a modos específicos de o Direito Internacional Privado solucionar questões suscitadas pelos contratos internacionais.
Pense-se na liberdade de remeter para a equidade, quando se entenda que a remissão para a equidade feita pelos sujeitos de relações ‘privadas’ internacionais assume, ao nível do Direito Internacional Privado, solucionar questões suscitadas pelos contratos internacionais, a remissão para equidade será examinada a propósito de cada um dos planos de regulação.91
XXXXXXXX (2017) 92, citando XXXXXXXX (1968), se pronuncia:
Quando a própria lei estabelece limites à autonomia da vontade das partes, estas tão- somente podem escolher o Direito aplicável em consonância com a lei. Uma escolha do Direito aplicável que não respeite os limites da lei é juridicamente ineficaz, de modo que o Direito aplicável será aquela consoante à vontade objetiva do legislador, subsidiariamente aplicável na ausência de escolha válida das partes. Quando a lei não estabelecer restrições expressas, entendemos que as partes poderão escolher qualquer ordem jurídica como Direito aplicável, tendo em vista que todos os Direitos são equivalentes
No Direito brasileiro, o princípio da autonomia da vontade está positivado no artigo 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB, Decreto-Lei no 4.657, de 4 de setembro de 194293. O artigo 9º dessa Lei estabelece que a regulação das obrigações constituídas em contratos internacionais se dará pela lei do país em que estas se constituírem.
Muitos dos questionamentos existentes na doutrina se referem à possibilidade de as partes de um contrato internacional elegerem uma legislação específica para regular sua relação contratual, apesar da norma contida no artigo 9º da LINDB (BRASIL, 1942), em razão do princípio da autonomia da vontade no âmbito da contratação internacional.
91 XXXXXXXX, ref. 89, p. 644.
92 STRENGER, Irineu, Autonomia da Vontade em Direito Internacional Privado, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1968, p. 51. In OLIVEIRA, ref. 79, p. 18.
93 BRASIL. Decreto-Lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Disponível em xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/xxxxxxx-xxx/xxx0000xxxxxxxxx.xxx Acesso em: 4 nov. 2020.
Nesse sentido, e xxxxxxxx XXXXXXXX (2017)94, o quadro 1 a seguir traça um paralelo entre as legislações brasileira e portuguesa sobre o assunto.
Quadro 1. Legislação brasileira e portuguesa acerca da Autonomia da Vontade Contratual
BRASIL | PORTUGAL |
Decreto-Lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro) | Código Civil |
Art. 9º Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem. § 1º Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato. § 2º A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente. | Artigo 405.º - Liberdade contratual 1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver. 2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei. |
Fonte: Oliveira (2017, p. 21)
A autora (XXXXXXXX) explica que, ao contrário do que predomina em grande parte do mundo, o Brasil e a América Latina em geral não aceitam a autonomia da vontade nem mesmo como elemento de conexão, o que fica evidenciado pela disposição da lei acima indicada, sendo majoritário o entendimento de que a autonomia da vontade é apenas aplicada aos contratos domésticos, limitados pela legislação interna, afastando este princípio do Direito Internacional Privado e dos contratos internacionais. XXXXXXXX (2017) 95 afirma que essa postura brasileira é levada em conta para a análise do “custo” Brasil nas negociações internacionais, em virtude da incerteza jurídica que gera, o que interfere no progresso das atividades de comércio internacional no país. Então, XXXXXXXX (2017) prossegue, fazendo a ressalva de que, apesar da limitação,
94 XXXXXXXX, ref. 79, p. 21.
95 XXXXXXXX, ref. 79, p. 21.
no que tange aos contratos internacionais, duas cláusulas básicas se beneficiam da autonomia da vontade: a da eleição da arbitragem como meio de resolução de conflitos, prevista na Lei 9.307/96 e a eleição de foro, prevista no artigo 25 do Novo Código de Processo Civil.96
Mas, segundo aduz a autora97, ao contrário do Brasil, Portugal tende a aceitar a lei estrangeira em seus contratos, mesmo aqueles realizados internamente. Afirma que o código português dá abertura à possibilidade de as partes regularem diretamente seus direitos e obrigações e fixarem livremente o seu conteúdo, fazendo valer sua vontade, desde que dentro de certos limites legais. Por fim, XXXXXXXX (2017) ainda afirma que
apesar das escolhas estarem limitadas pelo forte interesse das partes e pelos elementos de conexão de Direito Privado, Portugal tem seguido a corrente que sustenta que a dilatação da autonomia da vontade pode potencializar os negócios jurídicos e o comércio internacional.98
Na verdade, a Convenção sobre o Direito Aplicável aos Contratos Internacionais, realizada no âmbito da CIDIP V, 5 no México, em 1994, que estabeleceu expressamente a autonomia da vontade, não encontrou eco no legislador brasileiro, pois sequer foi enviada ao Congresso Nacional para ratificação.
Em período mais recente, os princípios de Haia aplicáveis aos contratos internacionais também passaram a versar sobre a livre escolha da lei aplicável às relações jurídicas transnacionais. Esses princípios não se destinam à aplicação direta pelos tribunais estatais, senão por força da escolha das partes ou dos árbitros. Tratando- se e um instrumento de soft law, eles não são como convenção ou tratado, pois não exigem a adesão formal pelos Estados nacionais.
Os princípios de Haia têm por finalidade reafirmar a autonomia das partes na escolha da lei aplicável, observando-se algumas restrições relativas às noções de normas imperativas e ordem pública: as primeiras afastam a autonomia das partes em virtude de normas precisas do ordenamento jurídico, do foro ou mesmo de outra lei aplicada ao contrato ponto; já no caso de ordem pública, a lei escolhida em si ou as
96 XXXXXXXX, ref. 79, p. 21
97 XXXXXXXX, ref. 79, p. 22.
98 XXXXXXXX, ref. 79, p. 22.
consequências de sua aplicação no caso concreto são repugnantes à lei do foro ou do sistema jurídico que deveria ser aplicado na ausência de escolha pelas partes.
Segundo GAMA JUNIOR (2012)99, a Conferência de Haia propôs-se a investir sua reputação e mais de 115 anos de experiência a serviço da uniformização progressiva deste tipo de regras. “O objetivo é, assim, melhorar a coordenação internacional dos sistemas jurídicos, reforçando a previsibilidade jurídica da solução de disputas através do princípio da autonomia das partes”100.
Em termos mais modestos, conclui o autor, “os Princípios da Haia também serão elaborados para satisfazer as necessidades de profissionais do direito e de todas as partes envolvidas no comércio internacional, que não possuem informações completas sobre as questões envolvendo a lei aplicável aos contratos em diversos países”101.
4.4.4 Obrigatoriedade Dos Contratos
O princípio da força obrigatória consubstancia-se na regra de que o contrato é lei entre as partes, e que, após celebrado, levando-se em conta todos os pressupostos e requisitos necessários à sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos legais imperativos. É o princípio do Pacta sunt servanda (os pactos devem ser cumpridos). E numa visão liberalista do Direito, pode-se dizer que, ao obrigar os contratantes, não lhes é facultado arrependerem-se, nem o revogar, senão por consentimento mútuo. Nessa mesma visão, não cabe ao juiz alterar o contrato para adaptá-lo a condições mais equitativas para os contratantes.
99 GAMA JUNIOR, Lauro. A Escolha Da Lei Aplicável Aos Contratos Do Comércio Internacional: Os Futuros Princípios Da Haia e Perspectivas Para O Brasil Escritório Permanente Da Conferência De Haia De Direito Internacional Privado. Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 34/2012, p. 11, Jul/2012, DTR\2012\450625. Disponível em xxxxx://xxxxxxxxxx.xxxx.xx/xx-xxxxxxx/xxxxxxx/0000/00/0.-X- Escolha-da-Lei-Aplic%C3%A1vel-aos-Contratos-Internacionais-do-Com%C3%A9rcio-Internacional.pdf.
Acesso em: 9 ago. 2021
100 GAMA JUNIOR, ref. 99, p. 11
101 GAMA JUNIOR, ref. 99, p. 11
4.4.5 Natureza Internacional
Para que um contrato seja considerado internacional, o elemento “estrangeiro” deve estar presente. Necessita-se, dessa forma, de um desses requisitos: partes contratantes domiciliadas em países diferentes, mercadoria ou serviço a serem prestados além fronteira, ou lugar da celebração diferente da execução.
4.4.6 Princípio Pacta Sunt Servanda
Decorrência imediata do princípio da autonomia da vontade, o princípio da força obrigatória dos contratos traz ao contrato a vinculação das partes, ou seja, as partes estão obrigadas à observância naquilo que foi estipulado contratualmente.
Para PEREIRA (2004),
O princípio da força obrigatória do contrato contém ínsita uma ideia que reflete o máximo de subjetivismo que a ordem legal oferece: a palavra individual, enunciada na conformidade da lei, encerra a centelha de criação, tão forte e tão profunda, que não comporta retratação, e tão imperiosa que, depois de adquirir vida, nem o Estado mesmo, a não ser excepcionalmente, pode intervir, com o propósito de mudar o curso de seus efeitos. 102
À ideia de autorregulamentação dos interesses das partes contratantes sucede a ideia da necessidade da observância daquilo que foi estipulado contratualmente. E, dessa ideia, segue a da sujeição das partes às sanções cabíveis, no que toca à responsabilidade contratual, pois não se pode admitir que uma delas, unilateralmente, recuse-se ao cumprimento do ajuste.
Da mesma forma, a resilição unilateral somente é admitida nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, e deve ser antecedida de notificação à outra parte (art. 473 – BRASIL, 2002)103.
102 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições de Direito Civil – Introdução ao Direito Civil. Teoria Geral do Direito Civil, Vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Forense, 20ª edição, revista e atualizada por Xxxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxx, 2004. In XXXXXXXX XXXXXX, ref. 43, p. 6.
103 Art. 472. O distrato faz-se pela mesma forma exigida para o contrato.
Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte. Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato,
Esse princípio, também chamado de Princípio da Obrigatoriedade, é excepcionado por eventuais alterações contratuais em caso de mudança no equilíbrio do contrato (hardship), sendo facultado à parte que se encontrar em desvantagem a renegociação dos termos originais do contrato.
4.4.7 Princípio do Equilíbrio Econômico
À época da ideologia liberal, no século XIX, os contratantes dispunham de máxima liberdade para contratar, tendo o contrato força obrigatória e vinculante para as partes. Mas esse liberalismo levou a um desajuste no equilíbrio econômico do contrato, já que o detentor do poder econômico e de mercado acabou por sobrepujar o outro polo da relação, extraindo o máximo de vantagem do contrato.
Atualmente, a autonomia privada passou a depender da existência de um equiparação entre os contratantes para que o prato da balança econômica se encontre num ponto de melhor equilíbrio104. LÔBO (2014), que denomina o referido princípio de “equivalência material”, esclarece que
O princípio da equivalência material busca realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após sua execução, para rearmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos Direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias possam ser previsíveis. O que interessa não é a exigência cega de cumprimento do contrato, em sua literalidade, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das partes e desvantagens excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo regras da experiência ordinária e da razoabilidade. 105
Esse equilíbrio entre as partes necessita de uma comparação dos contratantes, para aferir-se sobre a equivalência do padrão econômico e jurídico. Nessas hipóteses, o
uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos. (BRASIL, 2002)
104 Não dissemos maior equilíbrio, porquanto, isso raramente ocorre, já que as diferenças econômicas entre pessoas físicas, pessoas jurídicas, pessoas físicas e jurídicas, nacionais e estrangeiras, são patentes e existirão por muito tempo, até que as sociedades amadureçam e caminhem por si mesmas, para um ambiente de verdadeira colaboração.
105 XXXX, Xxxxx. Direito Civil – Contratos. São Paulo: Editora Saraiva, 2ª edição, 2014, pp. 67-68. ISBN 978- 85-02-20836-0.
equilíbrio não se estabelecerá pela isonomia, mas através da lei, que deverá atribuir à parte mais fraca da relação contratual direitos e prerrogativas que ajustem as condições negociais. Nesse sentido, LÔBO (2014) prossegue explicando que
A boa aplicação do princípio pressupõe três requisitos. Em primeiro lugar, a existência de uma desproporção manifesta entre os direitos e deveres de cada parte. Em segundo lugar, é necessário que haja desigualdade de poderes negociais, ou seja, um poder negocial dominante e a contrapartida do poder negocial vulnerável, que exclui sua incidência nos contratos paritários, já que nestes há presunção da equivalência. Em terceiro lugar, que as situações de vulnerabilidade da parte contratante sejam reconhecidas pelo Direito.”106
4.4.8 Princípio da Função Social dos Contratos
Para LÔBO (2014),
o princípio da função social determina que os interesses individuais das partes do contrato sejam exercidos em conformidade com os interesses sociais, sempre que estes se apresentem. Não pode haver conflito entre eles, pois os interesses sociais são prevalecentes. Qualquer contrato repercute no ambiente social, ao promover peculiar e determinado ordenamento de conduta e ao ampliar o tráfico jurídico.107
Assim, houve um distanciamento da ideologia liberal do século XIX, para uma abordagem do contrato como um acordo de vontades que não só interessa aos contratantes, mas também à sociedade.
A liberdade de contratação permanece, mas mitigada, porquanto as partes devem agir dentro de determinados limites, quais sejam: evitar que o ajuste prejudique injustamente terceiros alheios ao contrato. Completando com as lições de LÔBO (2014),
Os princípios sociais do contrato não eliminam os princípios individuais do contrato, a saber, o princípio da autonomia privada negocial, o princípio da força obrigatória e o princípio da relatividade dos efeitos do contrato; mas limitam e conformam, profundamente, seu alcance e seu conteúdo. A compreensão que se tem hoje dos princípios sociais do contrato não é mais de antagonismo radical aos princípios individuais, pois estes como aqueles refletiram etapas da evolução do Direito contratual e do próprio Estado moderno. No Estado social os princípios individuais são compatíveis quando estão orientados pelos princípios sociais, cuja prevalência se dá quando não são harmonizáveis, depois de tentada a interpretação conforme.108
106 LÔBO, ref. 105, pp. 69-70
107 LÔBO, ref. 105, p. 65
108 LÔBO, ref. 105, p. 65
Esse princípio encontra-se positivado na legislação civil brasileira, no art. 421 do Código Civil: 109 “Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”.
LÔBO (2014) ainda faz a diferenciação entre função social do contrato e função econômica do contrato, afirmando que não se confundem. Enquanto esta se vincula estreitamente aos interesses particulares das partes contratuais, aquela é algo exterior ao contrato que a ele se integra, independentemente da vontade das partes.110
Mas, em se tratando de contratos internacionais entre particulares, a função social do contrato não prescinde da Análise Econômica do Direito - AED, buscando viabilizar e manter os investimentos exteriores, trazendo noção de segurança jurídica ao capital estrangeiro, até porque a utilização do princípio da função social do contrato não pode significar uma mera interferência em favor da parte mais fraca nos casos em que haja desnível de poder de barganha entre os contratantes, além de se tratar de um equívoco bastante comum do judiciário de forma geral.111
Ademais, a utilização conjunta da AED com a função social do contrato preza por considerações de cunho moral ou ético e viabiliza meios de se preservar a justiça social concomitantemente com o fomento ao comércio internacional e a garantia do cumprimento das cláusulas contratuais.
E, como comenta FIGUEIREDO (2016), a interconexão entre Direito e Economia é importante no debate sobre justiça, já que permite trazer as consequências do fenômeno jurídico para o centro da discussão, “objetivando analisar o caso concreto e verificar a melhor solução a ser aplicada, tudo isso em razão do poder preditivo na
109 Na verdade, esse foi um dispositivo incluído do Código Civil, recentemente, pela Lei nº 13.874, de 2019 (BRASIL, 2019). É um dispositivo despiciendo, pois o princípio é largamente utilizado e que tem fomentado decisões judiciais nos tribunais pátrios. A inclusão desse dispositivo, na verdade, revela a tendência do Congresso brasileiro de uma posição excessivamente social, além de se constituir um tipo muito aberto, deixando margens a interpretações subjetivas de matizes diversas.
110 LÔBO, ref. 105, p. 66.
111 XXXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxx. A Análise Econômica do Contrato e as Implicações Do Princípio da Função Social do Contrato no Comércio Internacional . PERCURSO, Centro Universitário (Unicuritiba), volume 2, n. 12, pág. 29. 2016. ISSN: 2316-7521. Disponível em
xxxx://xxxxxxx.xxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxx.xxx/xxxxxxxx/xxxxxxx/xxxx/00/0000. Acesso em 21 ago. 2021.
análise econômica, além disso, incentivando novos investimentos internacionais e
promovendo a ideia de segurança de investimento.”112
O autor conclui dizendo o seguinte:
Assim, a solução mais adequada, quando se tratam de contratos internacionais, é a utilização da função social do contrato conjuntamente com a análise econômica do direito, de um lado a visão social de outro a liberal, de um lado a justiça social e de outro a previsibilidade das operações econômicas, ambas visando à condução das partes a comportamentos honestos e cooperativos, minimizando problemas de comunicação, alocando riscos, com o intuído de acabar com as falhas do contrato e garantir a efetivação de suas cláusulas respeitando a sociedade e fomentando o mercado como um todo.113
4.4.9 Princípio da Autodeterminação dos Povos
O povo de um Estado tem a prorrogativa de determinar as atitudes que lhes interessam relativas ao seu destino e à forma como este será atingido.
Esse princípio está atrelado a outros que dele decorrem, todos preservando a soberania de cada país no qual o ajuste comercial tenha sido realizado.
4.4.9.1 Princípio da independência nacional
Os ajustes entabulados internacionalmente entre particulares não interferem na soberania polícia e econômica de um país.
4.4.9.2 Princípio da não intervenção nos assuntos internos dos Estados
Cada país se desenvolve como escolhe: a soberania é a norma. Em regra, um contrato de comércio internacional não tem o condão de ultrapassar a barreira da soberania de cada país.
112 FIGUEIREDO. Ref. 111, p. 54
113FIGUEIREDO. Ref. 111, p. 54
4.4.9.3 Princípio da igualdade soberana dos Estados
Nenhum Estado é superior a outro no cenário internacional para justificar eventuais desigualdades de ajustes, mormente no setor privado.
4.4.10 Da Boa-fé Objetiva Como Princípio Informador dos Contratos
Pode-se afirmar que a boa-fé objetiva representa o dever de agir de acordo com os padrões socialmente reconhecidos de lisura e lealdade. É o que diz XXXXXX (2011)114, ao afirmar que
são esses padrões que traduzem confiança necessária à vida de relação e ao intercâmbio de bens e serviços”, sendo dever de cada parte agir de forma a não defraudar a confiança da contraparte, indispensável para a tutela da segurança jurídica, para a garantia da realização das expectativas legítimas das partes.
O princípio da boa-fé objetiva está ligado não só à interpretação dos contratos, mas, também, ao interesse social de segurança das relações jurídicas, e, para tanto, é necessário que as partes celebrem o negócio imbuídas de lealdade, honestidade e probidade, ou seja, procedam com boa-fé.
VENOSA (2015)115 bem afirma que o princípio da boa-fé se estampa pelo dever das partes em agir de forma correta, eticamente aceita, antes, durante e depois do contrato, isso porque, mesmo após o cumprimento de um contrato, podem lhe sobrar efeitos residuais.
A partir daí, é certo afirmar que a boa-fé dos contratantes deve existir em todas as fases do contrato, desde as tratativas negociais, na formação, na execução e na extinção, cabendo às partes esclarecerem os fatos e o conteúdo das cláusulas, pugnando pelo equilíbrio das prestações, pelo respeito mútuo e pela cooperação recíproca.
O Código Civil brasileiro versa sobre a boa-fé em três artigos:
114 XXXXXX, Xxxxxxx. (2011). Boa-fé Objetiva nos Contratos Empresariais – Contornos Dogmáticos dos Deveres de Conduta. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 50. ISBN 978-85-7348-754-1.
115 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, Parte Geral. São Paulo: Editora Atlas S.A., 15ª edição, 2015, p. 413. ISBN 978-85-224-9566-5.
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um Direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.116
Para VENOSA (2015)117, a disposição do art. 422 constitui modalidade que tem sido denominada pela doutrina por cláusula aberta, dando uma ideia de que o dispositivo seja adaptável ao caso concreto, sob uma compreensão social e histórica, cujo conteúdo é dirigido ao juiz para que este tenha um sentido norteador no trabalho de hermenêutica.
XXXXXXXX (2017), ao fazer a exposição da boa-fé como regra de conduta, afirma que a existência da conduta segundo a boa-fé e a sua evolução permitem colocar o problema do controle do conteúdo dos contratos ao juiz. “Tal problema enuncia-se como o saber se, e até que ponto, pode o tribunal, quando solicitado, examinar os clausulados contratuais e corrigir, suprimindo ou modificando, os aspectos que, face a bitolas determinadas, sejam considerados injustos.” 118 E sintetiza que
A colocação, no Direito Privado, do tema do controlo, pelo juiz, do conteúdo dos contratos, pressupõe o abandono, também no Direito Privado, da autonomia, como mero dogma formal, e a sua substituição pela regra da autonomia efectiva. [...] O controlo judicial efectivo dos contratos obtidos pela utilização de condições contratuais gerais implica uma apreciação de mérito face às cláusulas questionadas e não um confronto de acordo com o modo de formação.119
De cada princípio jurídico, por ser espécie de norma jurídica, promanam deveres jurídicos gerais. TARTUCE (2013), baseado na obra de XXXXXXX-XXXXX (2018), assinala que se tornou comum afirmar que a boa-fé objetiva, conceituada como sendo exigência de conduta leal dos contratantes, está relacionada com os deveres anexos, que são
116 BRASIL, ref. 17.
117 VENOSA, ref. 115, pp. 413-414
118 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. Da Boa-fé no Direito Civil. Coimbra: Edições Almedina S.A., 2017, Coimbra, 7ª Reimpressão, p. 651. ISBN 978-972-40-7193-0.
119 CORDEIRO, ref. 118, pp. 654/655.
ínsitos a qualquer negócio jurídico, “não havendo sequer a necessidade de previsão no instrumento negocial.” 120.
Os deveres de conduta que resultam do princípio da boa-fé podem afetar a conduta que de algum modo esteja em relação com a execução da obrigação. São deveres que resultam da relação jurídica obrigacional, mas se diferenciam por seu caráter secundário ou complementar do dever primário de adimplemento.
Na verdade, esses deveres de conduta, convertidos em princípios normativos, não são meramente anexos ao dever de adimplemento. Na evolução do Direito, os deveres gerais de conduta passaram a se impor tanto ao devedor quanto ao credor e, em determinadas circunstâncias, a terceiros. Não são deveres que derivam da relação jurídica obrigacional e não se confundem com o próprio dever de adimplemento, como já foi dito; estão acima de ambos, pois abrangem, como se disse, todo o espectro da relação jurídica.
A quebra desses interesses, como ensina TARTUCE (2013)121, gera a violação positiva do contrato, com responsabilização civil daquele que desrespeita a boa-fé objetiva, ou seja, independentemente de culpa.
Ainda indicando XXXXXXX-XXXXX (2018), TARTUCE (2013) enumera alguns desses deveres:
a) o dever de cuidado em relação a outra parte negocial;
b) o dever de respeito;
c) o dever de informar a outra parte quanto ao conteúdo do negócio;
d) o dever de agir conforme a confiança depositada;
e) o dever de lealdade e probidade;
f) o dever de colaboração ou cooperação;
g) o dever de agir conforme a razoabilidade, a equidade e a boa razão. 122
Esses deveres de conduta, ainda que incidam diretamente nas relações obrigacionais, independentemente da manifestação de vontade dos participantes, necessitam de concretização de seu conteúdo, em cada relação negocial estabelecida. A eles não cabe a regra da adequação do fato à norma jurídica, já que essas
120 XXXXXXX-XXXXX, ref. 7, In TARTUCE, ref. 75, p 91.
121 TARTUCE, ref. 75, p. 92.
122 XXXXXXX-XXXXX, ref. 7, In TARTUCE, ref. 75, p. 92.
normas de conduta não contêm definição precisa, de forma que é na situação concreta que o intérprete encontra os elementos dessa concretização.
Ao intérprete, ou seja, o Juiz, a quem cabe o controle do conteúdo dos contratos, o conteúdo concreto é determinável em sentido objetivo, podendo valer-se de opiniões doutrinárias, precedentes jurisprudenciais e valores sociais dominantes na época dos fatos. Dessa forma, como defendeu EROLES (2018),
o princípio contratual da boa-fé será satisfeito de forma graduável, com uma variação de densidade baseada nas circunstâncias fáticas e jurídicas (nas quais haveria um conflito e harmonização entre princípios contratuais) – circunstâncias fáticas e jurídicas estas relativas a todo o contexto contratual. 123
Vale ainda citar parte do trabalho de EROLES (2018):
Tais circunstâncias fáticas e jurídicas, ou contexto contratual, conforme designado acima, poderão ser, ainda que de forma provisória e imperfeita (conforme explicado com mais detalhes abaixo) sintetizadas em categorias operativas. Tais categorias operativas teriam como finalidade a compreensão de um contexto contratual (o qual a princípio só poderia ser apreendido perfeitamente diante de um caso concreto de forma direta pelo intérprete/aplicador) por meio da criação de categorias construídas com base em contextos contratuais predeterminados. Neste sentido, coloca Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx:
‘É precisamente para conciliar a flexibilidade da boa-fé, inerente à sua qualidade de princípio, como as necessidades práticas da sua concretização, que se devem respeitar tanto as peculiaridades da categoria e do tipo de contrato a que ela se aplica, quanto seus níveis e funções. Isto significa que (...) a boa-fé tem aplicações mais, ou menos, intensas, especialmente conforme suas funções e os tipos negociais’.’124
Como forma substitutiva da apreensão do contexto contratual intuitivamente pela análise direta do caso concreto, as categorias contratuais, por necessariamente se conformarem em proposições mais abstratas que os casos concretos, serão inevitavelmente formas imperfeitas e provisórias de categorização dos contextos contratuais.125
Voltando aos dispositivos do Código Civil (BRASIL, 2002) acima citados, segundo TARTUCE (2013)126, eles remetem a três funções distintas e importantes da boa-fé objetiva. A primeira é a função de interpretação dos negócios jurídicos que, segundo o art. 113 do CC (BRASIL, 2002), devem ser interpretados segundo a boa-fé objetiva e os usos do lugar da sua celebração. “Nesse dispositivo, a boa-fé é consagrada como meio
123 XXXXXX, Xxxxx. Boa-Fé Objetiva Nos Contratos – Especificação Normativa, Cogência e Dispositividade. São Paulo: Editora Quartier Latin do Brasil, 2018, p. 90. ISBN 850-7674-952-1.
124 XXXXXXX, Xxxxxxx. Considerações sobre a boa-fé objetiva em acordo de acionistas com cláusula de preferência: excertos teóricos de dois pareceres. In Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. In EROLES, ref. 123, pp. 90/91.
125 EROLES, ref. 123, pp. 90/91
126 TARTUCE, ref. 75, pp 92/94.
auxiliador do aplicador do Direito para a interpretação dos negócios, particularmente
dos contratos.”127
A segunda função da boa-fé objetiva é a função de controle. Na forma do art. 187 do CC (BRASIL, 2002), aquele que contraria a boa-fé objetiva comete abuso de direito, sendo que “a responsabilidade civil que decorre do abuso de Direito é objetiva (...), conduz ao caminho sem volta da responsabilidade independentemente de culpa.”128
E a terceira função é a função de integração do contrato. Tem por base as disposições do art. 422 do CC (BRASIL, 2002) que obriga os contratantes à observação da boa-fé objetiva em todas as fases contratuais, destaca-se que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.129
VENOSA (2015)130 deixa bem claro que, tanto nas tratativas como na execução do contrato, bem como na fase posterior do contrato, a boa-fé é fator basilar de interpretação, de forma que, sob a égide, a boa-fé avalia tanto a responsabilidade pré- contratual, como a responsabilidade contratual, e a fase pós contratual, ainda que o princípio não seja mencionado expressamente. Daí, decorrem dois desdobramentos que devem ser mencionados.
4.4.10.1 A função Social do Contrato e a Boa-fé Objetiva
Essa questão já foi abordada em itens anteriores, mas diluída nos conceitos apresentados, já que se trata de um postulado jurídico que permeia e envolve o Direito contemporâneo em suas diversas matizes, e muito mais ao tratar do Direito das coisas e dos contratos.
Assim, de forma mais direta, e valendo-se de VENOSA (2015), o fenômeno do interesse social na vontade privada negocial não decorre unicamente do intervencionismo do Estado nos interesses privados – o chamado dirigismo contratual –
127 TARTUCE, ref. 75, p. 93
128 TARTUCE, ref. 75, p. 93
129 BRASIL, ref. 17.
130 VENOSA, ref. 115, p. 415.
, mas da própria modificação dos conceitos históricos em torno da propriedade. “No mundo contemporâneo, há infindáveis interesses interpessoais que devem ser sopesados, algo nunca imaginado em passado recente, muito além dos princípios do simples contrato de adesão.”131
Assim, em determinado momento econômico/social, um tipo definido de contrato pode não atender ao interesse social, como ocorreu, segundo VENOSA (2015), com o contrato de leasing de veículos para pessoas naturais, “eis uma das importantes razões pelas quais se exigem uma sentença afinada com o momento histórico e um juiz antenado perante os fatos sociais e com os princípios interpretativos constitucionais.”132 Conclui o autor afirmando que é na concretude do Direito que se avalia a função social do contrato, merecendo destacar a necessidade de que haja a preservação da segurança jurídica nas relações.
4.4.10.2 A Proibição de Comportamento Contraditório, ou o Venire Contra Factum Proprium
A doutrina da vedação do comportamento contraditório não está sistematizada nos ordenamentos jurídicos, mas essa falta de manifestação como um dispositivo legal não obsta que seja aplicado como corolário das próprias noções de boa-fé objetiva e da função social do contrato. Como exemplo, apresenta-se a circunstância de um sujeito de direito buscar favorecer-se em processo judicial, assumindo conduta que contradiz outra que a precede no tempo e assim constitui um proceder injusto e, portanto, inadmissível133.
Para CORDEIRO (2017), “venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos entre si e diferidos no tempo. O primeiro — o factum proprium — é, porém, contrariado pelo segundo. Esta fórmula provoca, à partida, reacções afectivas que devem ser evitadas”.134
131 VENOSA, ref. 115, p. 416.
132 VENOSA, ref. 115, p. 416.
133 VENOSA, ref. 115, p. 416.
134 CORDEIRO, ref. 118, p. 745.
O venire contra factum proprium possui seu principal fundamento no princípio da boa-fé objetiva, já que existe uma nítida correlação entre boa-fé objetiva e confiança. Segundo CORDEIRO (2005),
o princípio da confiança surge como uma mediação entre a boa-fé e o caso concreto. Ele exige que as pessoas sejam protegidas quando em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas”.135 Nesse princípio o realce está na própria torpeza, “aspecto subjetivo na conduta do agente que se traduz em dolo, malícia. 136
A aplicação desse princípio requer a observação de alguns aspectos. O primeiro deles, voltando à lição de CORDEIRO (2017), é o factum proprium, que é a conduta inicial, no sentido de que comportamento inicial só adquire relevância quando gera a confiança de que será mantido. Assim, não basta o ato que deflagra o negócio jurídico entre as partes, é necessário o espírito de confiança entre elas. Mas não apenas a confiança ordinária, que se vê em todo e qualquer caso, pois pressupõe um ato de contradição ao que foi inicialmente estabelecido – o nemo potest venire. A partir do momento em que essa contradição vai de encontro à confiança que nasceu na relação negocial, e que atente contra a boa-fé objetiva, tem-se a incidência do princípio em questão.
A aplicação do nemo potest venire contra gera dois efeitos: impedir que a conduta contraditória seja cometida; e, se realizada, a obrigação de reparar o dano causado. E, de fato, é mais eficiente, sob o ponto de vista da composição de conflitos de interesse e da tutela da confiança, impedir, com anterioridade, o venire contra factum proprium, a impor o posterior ressarcimento dos prejuízos resultantes da conduta incoerente. Conclui CORDEIRO (2017 ) que
Em suma: a proibição do venire contra factum proprium traduz a vocação ética, psicológica e social da regra pacta sunt servanda para a juspositividade, mesmo naqueles casos específicos em que a ordem jurídica estabelecida, por razões estudas, por desadaptação ou por incompleição, lha negue. [...] A recondução do venire contra factum proprium à doutrina da confiança revela um estádio elevado nas tarefas ascendentes, da
135 CORDEIRO, ref. 118, p. 8.
136 XXXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx. (2005). Do abuso de direito: estado de questões e perspectivas. Revista da Ordem dos Advogados ROA, Ano 65, Vol. II, p. 8. Disponível em xxxx://xxx.xx.xx. Acesso em 06 Nov. 2020.
.
sistematização da casuística gerada em torno dos comportamentos contraditórios, e descendente, da concretização da boa-fé.” 137
O princípio do nemo potest venire contra factum proprium possui força vinculante, pois obriga aqueles que firmaram o ajuste contratual a se manterem ligados aos atos praticados até o momento da cessão de seus efeitos. As partes permanecem ligadas por este forte laço, mesmo que o ordenamento jurídico, em nenhum de seus dispositivos, exija este efeito de vinculação entre as partes do negócio jurídico.
a.1) Supressio
Trata-se de uma subespécie de venire contra factum proprium : “diz-se supressio a situação do Direito que, não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa-fé”.138
O termo supressio decorre da palavra alemã Verwirkung que, na língua portuguesa, significa supressão, ou seja, a impossibilidade do exercício de um direito por conduta omissiva da parte e isso por um período razoável de tempo.
O que se tutela é a confiança gerada pelo comportamento daquele que se retardou para fazer valer o seu direito, ou seja, um não exercício de uma situação jurídica subjetiva.
Não se pode confundir o instituto do supressio com a prescrição. Trata-se esta de um prazo legal previsto expressamente no ordenamento jurídico que, se não exercido, leva à perda da pretensão de exigir o direito. Já na supressio, ocorre uma inércia tão grande da parte no exercício de um direito, que exigi-lo posteriormente irá contra as expectativas que foram criadas com a celebração do contrato.
CIVIL. CONTRATOS. DÍVIDAS DE VALOR. CORREÇÃO MONETÁRIA. OBRIGATORIEDADE. RECOMPOSIÇÃO DO PODER AQUISITIVO DA MOEDA. RENÚNCIA AO DIREITO. POSSIBILIDADE. COBRANÇA RETROATIVA APÓS A RESCISÃO DO CONTRATO. NÃO- CABIMENTO. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS. SUPRESSIO .
137 CORDEIRO, ref. 118, pp. 751 e 755.
138 CORDEIRO, ref. 118, p. 797.
1. Trata-se de situação na qual, mais do que simples renúncia do Direito à correção monetária, a recorrente abdicou do reajuste para evitar a majoração da parcela mensal paga pela recorrida, assegurando, como isso, a manutenção do contrato. Portanto, não se cuidou propriamente de liberalidade da recorrente, mas de uma medida que teve como contrapartida a preservação do vínculo contratual por 06 anos. Diante desse panorama, o princípio da boa-fé objetiva torna inviável a pretensão da recorrente, de exigir retroativamente valores a título de correção monetária, que vinha regularmente dispensado, frustrando uma expectativa legítima, construída e mantida ao longo de toda a relação contratual.
2. A correção monetária nada acrescenta ao valor da moeda, servindo apenas para recompor o seu poder aquisitivo, corroído pelos efeitos da inflação. Cuida-se de fator de reajuste intrínseco às dívidas de valor, aplicável independentemente de previsão expressa. Precedentes.
3. Nada impede o beneficiário de abrir mão da correção monetária como forma de persuadir a parte contrária a manter o vínculo contratual. Dada a natureza disponível desse Direito, sua supressão pode perfeitamente ser aceita a qualquer tempo pelo titular.
4. O princípio da boa-fé objetiva exercer três funções: (i) instrumento hermenêutico; (ii) fonte de Direitos e deveres jurídicos; e (iii) limite ao exercício de Direitos subjetivos. A essa última função aplica-se a teoria do adimplemento substancial das obrigações e a teoria dos atos próprios, como meio de rever a amplitude e o alcance dos deveres contratuais, daí derivando os seguintes institutos: tu quoque , venire contra factum proprium , surrectio e supressio .
5. A supressio indica a possibilidade de redução do conteúdo obrigacional pela inércia qualificada de uma das partes, ao longo da execução do contrato, em exercer Direito ou faculdade, criando para a outra a legítima expectativa de ter havido a renúncia àquela prerrogativa.
6. Recurso especial a que se nega provimento (BRASIL, 2011)139
Esse julgado é bastante completo, dando, inclusive as definições dos institutos, sendo que se pode concluir este item afirmando, enfim, que o instituto da supressio defende que mesmo no caso de conduta omissiva, é esse comportamento que gera a sensação de confiança da parte, e que ir de encontro a essa confiança, através de um ato contraditório, é em essência uma espécie de venire contra factum proprium.
a.2) Surressio
Na surressio, ocorre uma ampliação do conteúdo que foi originalmente pactuado. “Quando, porém, o beneficiário incorra numa vantagem específica e autónoma, há, para ele, um direito subjectivo novo: ocorre um fenómeno de surrectio.”140
139 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.202.514 – RS, relatora Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, julgado em 21.06.2011 e publicado no DJe de 30.06.2011. Disponível em xxxxx://xxxx.xxx.xxx.xx/XXXX/xxxxxxxxx.xxx Acesso em 02 set. 2021
140 CORDEIRO, ref. 118, p. 826.
Sendo a supressio um fenômeno de supressão de determinada faculdade jurídica pelo decurso do tempo, ao revés, a surressio é o surgimento de uma situação de vantagem para alguém em razão do não exercício por outrem de um determinado direito, assim, em vista do surressio, impossibilitado está de vir a exercê-lo posteriormente.
Na surressio, gera-se a exigibilidade de um direito, devido ao comportamento de uma das partes do negócio jurídico, que gera na outra parte uma expectativa que, a priori, não constava no contrato.
Da mesma forma que a supressio, na surressio, é necessário o transcurso de determinado período de tempo, assim como a inexistência no contrato de nenhuma cláusula impeditiva da configuração do surressio.
a.3) Tu Quoque
O tu quoque também reflete um comportamento contraditório, o qual irá colocar uma das partes do negócio jurídico em clara desvantagem. Cordeiro (2017) esclarece sobre o instituto o seguinte:
A fórmula tu quoque traduz, com generalidade, o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia, sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído.141
No Brasil há um princípio que diz: “a ninguém é dado beneficiar-se da própria torpeza” ('nemo auditur propriam turpitudinem allegans'), o qual guarda relação com o tu quoque. “Fere as sensibilidades primárias, ética e jurídica, que uma pessoa possa desrespeitar um comando e, depois, vir a exigir a outrem o seu acatamento.”142
Então, o tu quoque significa que, se uma das partes do contrato violar uma determinada norma jurídica, não poderá valer-se disso para se beneficiar do juridicamente invocando, justamente, esta mesma norma que desrespeitou.
141 CORDEIRO, ref. 118, p. 837.
142 CORDEIRO, ref. 118, p. 837.
5 NOVA LEX MERCATORIA
A lex mercatória pode ser conceituada como um sistema de caráter jurídico, desenvolvido a partir da reiteração de atos de comércio entre comerciantes de diversos locais da Europa medieval, e que perdurou até o século XVII.
Segundo XXXXXXXX (2011), a lex mercatoria “é o nome que se costuma dar ao conjunto de princípios, instituições e regras com origem em diversos focos, e que se caracterizam por serem inspiradas e voltadas aos relacionamentos dos operadores do comércio internacional.”143
Para BARROZO (2015) 144, existem duas lex mercatoria: a antiga e a nova, sendo que a primeira se caracteriza pela prática do comércio nos moldes da era medieval; e a segunda, atual e parcialmente codificada, sobre a qual há três teorias:
1ª) considera a lex mercatoria como um conjunto de princípios e regras esparsos, não organizados como um sistema jurídico, servindo de complemento à aplicação da lei doméstica;
2ª) apresenta-a como uma unidade de usos e costumes que são apurados segundo as demandas do comércio internacional, que se aproximam do sistema medieval, porquanto são apenas um conjunto de usos e costumes não sistematizados e nem claramente definidos; e
3ª) apresenta-a como um sistema jurídico independente e autônomo dos limites estatais, possibilitando às partes usufruírem da autonomia da vontade na celebração de seus contratos. Trata-se de um sistema jurídico que se coloca entre o sistema jurídico nacional e o internacional.
143 BAXXXXXX, Xxxx Xxxxx. (2011). Contratos Internacionais. Porto Alegre: Lex Editora S.A., p. 63. ISBN 978- 85-7721-121-0.
144 BAXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxxx. Desenvolvimento e teorias acerca da lex mercatória. v. 43 n. 1 (2015): Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia ISSN 2178-0498. Disponível em xxxx://xxx.xxxx.xxx.xx/xxxxx.xxx/xxxxxxxxxxxx/xxxxxxx/xxxx/00000. Acesso em 20 Ago 2020.
A existência de um espaço transnacional é um pressuposto comum às diferentes concepções da lex mercatória, segundo PINHEIRO (2003)145. Esse espaço transnacional resulta das próprias tendências de desenvolvimento da economia mundial pela crescente nacionalização das relações econômicas, transnacionalização das atividades das empresas, globalização, dos modernos sistemas tecnológicos e de informação, e da ordenação dos princípios do comércio internacional, tal como a liberdade de comércio. Portanto, pode-se dizer que a lex mercatoria tem um papel complementar e suplementar da ordem jurídica nacional e da ordem jurídica internacional - não chega a ser um ordenamento jurídico autônomo, pois lhe falta forma e substância para tanto, mas resta certo que a lex mercatoria recebe a contribuição de ordens jurídicas nacionais
com o apoio da ordem jurídica internacional.
Nada obstante, PIXXXXXX (2003) entende que a lex mercatoria se trata sim de um direito autônomo em relação aos contratos internacionais, e assim a explica:
Primeiro, a lex mercatória limita-se às questões de natureza ‘contratual’, na acepção ampla retida na arbitragem comercial internacional. Trata-se, na verdade, de um Direito autónomo dos contratos do comércio internacional. Há de aqui relevar um determinado conceito de comércio internacional, que perante a íntima associação entre esta tese e a arbitragem comercial internacional, é de supor se paute, igualmente, pelo critério dos ‘interesses do comércio internacional’. No entanto, o âmbito de regulação da lex mercatória apresenta-se mais restrito que o da arbitragem comercial internacional, pois o comércio internacional suscita questões, arbitráveis, a que não pode ser atribuída ‘natureza contratual’. [...] As relações do comércio internacional são susceptíveis de relevar simultaneamente perante esta ordem autónoma e o Direito estadual ou ‘interestadual’. Aspectos essenciais das relações do comércio internacional continuam a ser regulados pelo Direito estadual designado pela norma de conflito.146
O autor conclui sua exposição afirmando que as contribuições mais recentes tendem a acentuar a origem pretoriana da lex mercatoria, de forma que as regras e princípios que lhe são atribuídos resultam principalmente da apuração e da concretização, pela arbitragem comercial internacional, de princípios gerais do Direito e de princípios comuns aos sistemas nacionais em presença.
Os elementos que compõem a lex mercatoria são os princípios gerais de Direito, os usos e costumes, inclusive contratuais, e a jurisprudência arbitral.
145 PINHEIRO, ref. 89, p. 856.
146 PINHEIRO, ref. 89, pp. 862-863.
SCXXXX (2014), em sua tese de doutoramento, diz sobre a lex mercatória que
Por nova lex mercatoria entende-se, como já estudado alhures, um (i) Direito material; (ii) de origem transnacional, isto é, não produzido em nível nacional ou internacional por nenhum Estado específico; (iii) comportando, de outro lado, uma dimensão local transnacionalizada; cujas regras são (iv) criadas de forma espontânea, em maior ou menor escala, pela própria classe mercantil; (v) aplicáveis aos contratos comerciais internacionais; e que (vi) tem um aspecto comunicativo importante. O conteúdo da nova lex mercatoria não compreende – ao menos ainda – determinadas matérias, como capacidade das partes, vícios de consentimento, transferência de propriedade, entre outros. 147
Logicamente que de tal monta de comércio advêm conflitos de toda ordem e, com eles, a criação de foros com o intuito de resolver esses conflitos. Tais tribunais destinavam-se a julgar aqueles casos eminentemente comerciais, utilizando-se de normas especiais que se destacavam do ius commune. A supremacia e a competência desses juízos são reconhecidas pelas nações, dada a sua necessidade para o bom funcionamento do mercado, uma vez que decidem muito mais rapidamente que quaisquer cortes judiciais – garantindo-se, assim, o fluxo mercadológico e monetário. Os princípios de Direito da lex mercatoria, por razões históricas e econômicas, estão ligados à noção de boa-fé.148 Nota-se que a boa-fé é uma instituição ou elemento essencial da vida social, segundo esclarece BAPTISTA (2011)149. Por isso ela ocupa um lugar importante no Direito, mas cujo conteúdo varia no espaço e no tempo. “Com efeito, cada cultura tem a sua visão da boa-fé e lhe atribui certas funções que
determinam a sua importância relativa.”150
Como já foi visto, e será desenvolvido nas últimas seções deste trabalho, do ponto de vista jurídico, a boa-fé apresenta três vertentes. Na primeira, ela é critério de interpretação do contrato ou da intenção comum e não literal que subjaz ao contrato. Na segunda vertente, a boa-fé é uma qualidade moral, é honestidade e lealdade, e fidelidade à palavra dada ou empenhada. E, na terceira vertente, a boa-fé é a crença errônea na existência de uma situação jurídica.
000 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx. A boa-fé nos contratos comerciais internacionais. Tese em Doutorado em Direito Internacional – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. doi: 10.11606/T.2.2104. tde-10122014-162516.
148 BAPTISTA, ref. 143.
149 BAPTISTA, ref. 143.
150 BAPTISTA, ref. 143, p. 67
BAXXXXXX (2011) afirma que em todas as vertentes mencionadas, mas sobretudo na primeira, a boa-fé é a matriz dos princípios gerais de Direito para a lex mercadoria. Dessa forma, observa-se que
Decorre da boa-fé a regra pacta sunt servanda, pois é a forma de exercício do comprimento da palavra empenhada, já que o contrato deve ser cumprido de boa-fé, isto é, segundo o espírito do mesmo ou de acordo com a vontade comum das partes.151
A boa-fé é o fundamento da nova lex mercatória. SCXXXX (2014), citando FORTHIER (1996), diz que a boa-fé, “regra geral de comportamento dos atores do comércio internacional”, é um princípio que “domina as relações do comércio internacional”, sendo a “regra moral que preside o estabelecimento e a execução de tais relações”152
Como princípio da nova lex mercatória, a boa-fé adquire sentido próprio e deve ser interpretada sempre com referência ao comércio internacional. E, embora seja formada por elementos jurídicos de nacionalidades diversas, uma vez recepcionada pelo ius mercatorum, ela é transnacionalizada. “A noção de boa-fé deve conquistar um sentido próprio, especial para o Direito Internacional Privado e se destacar dos Direitos internos”.153 BAPTISTA (2011) diz que
sendo argumento de razão e de evidência o princípio geral do Direito e da justiça universalmente admitido, a boa-fé está, todavia, no centro e no coração da maioria das sentenças arbitrais. Ela constituiu uma regra de interpretação e o guia de toda ação como de todo julgamento.154
151 BAPTISTA, ref. 143, pp. 67-68
152 FORTHIER, V. Le raisonnable dans le contrat du commerce international, in Journal du Droit Internacional, v. 000, x. 0, 0000,. “Xx xxxxx foi est um príncipe qui domine les relations du commerce international. C’est la règle morale qui preside à l’établissement et a l’exécution de telles relations.”In SCXXXX, ref. 147, p. 317.
153 SCXXXX, ref. 147, p. 3.
154 BAPTISTA, ref. 143, p. 68
Citando uma sentença arbitral155 de 1983 do Tribunal Arbitral presidido por B. Goldman156, BAXXXXXX (2011) explica que os árbitros, orientados pelo princípio da boa- fé, decidiram que uma cláusula arbitral deve ser interpretada de uma maneira que conduza à busca e ao encontro da intenção comum das partes; tal método de interpretação não pode ser outra coisa senão aplicação do princípio pacta sunt servand, sendo que “toda convenção, inclusive de arbitragem, deve ser interpretada de boa-fé, isto é, levando em conta as consequências das obrigações que as partes podem ter considerado como tendo sido razoavelmente e legitimamente contemplado.”157
No âmbito da nova lex mercatoria, sexxxxx Xxxxxx (2014), a intervenção dos árbitros, em nome da ordem pública (a transnacional e a internacional vinculadas ao Direito Internacional Público), deve ocorrer excepcionalmente e se limitar ao essencial, suficiente para “assumir a coesão e a coerência de um sistema em circunstâncias excepcionais, de modo a não fazer do meio empresarial empresas fechadas, indiferentes.”158 O autor conclui sua exposição sobre a boa-fé e a nova lex mercatoria, afirmando que a boa-fé é também expressão da ordem pública no âmbito da nova lex mercatoria. A boa-fé também se presta a concretizar a ordem pública no âmbito contratual e a partir dela adquire sentido. “Tal como a própria ordem pública, apenas excepcionalmente poderá atuar para afastar aquilo que tiver sido ajustado pelas partes.”159
155 A arbitragem é um método de resolver litígios privados sem envolver as jurisdições oficiais. Em geral, são três árbitros: um representando o requerente, outro, o réu e, um terceiro que, de comum acordo, as partes escolhem. Este é muitas vezes proposto por uma das instâncias arbitrais privadas, nacionais ou internacionais, que acolhem o procedimento, podendo-se citar algumas muito expressivas como: a Câmara de Comércio de Estocolmo; o Centro Internacional para a Resolução de Conflitos sobre Investimentos, estabelecido em Washington – ligado ao Banco Mundial –; e a Câmara de Comércio Internacional (CCI), sediada em Paris.
156 Sentença proferida em 23.09.1983 pelo Tribunal Arbitral presidido por B. Goxxxxx, com os co-árbitros Ruxxx x Foxxxxx. V. Rev. Arb. 1985; Clunet 1986, p. 202-221, com. De E. Gaxxxxxx; ILM, 1985, v. 23, p. 351 e ss. In BAPTISTA, ref. 143, pp. 259-271.
157 BAXXXXXX, ref. 143, p. 69
158 SCXXXX, ref. 147, p. 14.
159 SCXXXX, ref. 147, p. 15.
5.1 Princípios Unidroit e a Boa-fé
Em 1994, foi formado um grupo de estudos sob orientação do Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado160, conhecido como Unidroit. Dessa constituição, resultou um elenco de princípios a respeito dos contratos do comércio internacional. Em 2004, foi publicada a segunda edição desses princípios Unidroit, os quais possuem fundamento no ius gentium, cuja concepção se aproxima do que se pode denominar de lex mercatoria, a lei comum aos povos.
As normas derivadas de convenções e tratados internacionais já não tinham eficácia para promover uma uniformização das regras sobre Direito do Comércio Internacional, uma vez que dependem da aprovação interna dos Estados signatários e, normalmente, são fragmentárias, no sentido de que, na maioria dos casos, são específicas para determinados tipo de contrato, como, por exemplo, o leasing ou o factoring. Ademais, se tratam de normas que deveriam ser internalizadas por cada Estado.
Hoje o International Institute for the Unification of Private Law é uma organização autônoma, com o objetivo de pesquisar mecanismos eficazes para favorecer o desenvolvimento do Direito Comercial de âmbito privado. Tais princípios, cada vez mais, vêm sendo reconhecidos como fontes do Direito do Comércio Internacional.
Segundo GAXX XXXXXX (2006)161, os Princípios, para o advogado internacional, constituem uma língua franca dos contratos internacionais, dada a sua simplicidade, clareza e objetividade, sem esquecer de sua neutralidade em relação a qualquer direito nacional.
Os Princípios revelam uma tendência pós-positivista porque não identificam direito com direito estatal, reconhecendo a normatividade (em sentido amplo) dos princípios gerais sobre contratos aceitos pela comunidade internacional, e, de outro lado, porque abandonam a fórmula das convenções e tratados internacionais, que exigem a ratificação dos Estados nacionais para se transformarem em norma jurídica. E, ainda, porque
160 UNIDROIT. International Institute for the Unification of Private Law. Unidroit Principles of International Commercial Contracts 2016. Rome. ISBN: 978 - 88 - 86449 - 37 – 3.
161 GAMA JUNIOR, Lauro. Contratos Internacionais à luz dos Princípios do Unidroit 2004 – Soft Law, Arbitragem e Jurisdição. São Paulo: Editora Xxxxxxx, 0000, p 429. ISBN 85-7147-551-2.
resultam de um diálogo entre várias fontes – nacionais, internacionais e não estatais
[...].”162
Esses princípios da Unidroit constituem-se em um paradigma mundial que se insere nas relações comerciais internacionais, promovendo maior alcance e aplicabilidade às negociações que ocorrem a todo momento por via de tecnologia de extraordinária performance, consagrando ideias novas para o tratamento da matéria do Direito Comercial de âmbito internacional, visando, inclusive, a uma padronização.
Para se ter uma percepção da abrangência da boa-fé advinda dos princípios Unidroit, cumpre realizar-se uma abordagem de alguns de seus artigos que tratam desse princípio, nos quais observa-se a atenção à boa-fé e à negociação justa como ideia fundamental de suas disposições.
Neste momento, no presente trabalho, são tratados alguns princípios que fazem abordagem direta à boa-fé, uma vez que, indiretamente, esse princípio é subjacente a todos os artigos dos Princípios da Unidroit, seja implícita ou explicitamente. Optou-se, então, pela eleição de alguns dispositivos que têm em seu bojo a expressão “boa-fé” de forma explicita.
Quadro 2. Princípio Unidroit que aborda a boa-fé de forma explícita - o ARTIGO 1.7
ARTIGO 1.7 (Boa-fé e lealdade negocial) (1) Cada uma das partes deve comportar-se segundo os ditames da boa-fé no comércio internacional. (2) As partes não podem excluir essa obrigação, ou limitar-lhes o alcance. | ARTICLE 1.7 (Good faith and fair dealing) (1) Each party must act in accordance with good faith and fair dealing in international trade. (2) The parties may not exclude or limit this duty. 163 |
Fonte: Gaxx Xxxxxx (2006) 164
Certifica-se, dessa forma, a partir do citado artigo, que as partes gozam da faculdade de realizar a negociação justa, atendendo aos ditames da boa-fé, sem limitar
162 j XXXXXX, ref. 000, x. 000
000XXXXXXXX, ref. 1.
164 GAMA JUNIOR, ref. 161, p. 313. Observação: a versão traduzida dos princípios da Unidroit apresentada por Gaxx Xxxxxx (2006) foi feita da versão na língua inglesa dos princípios, publicada em 2004. Assim, optou-se, neste trabalho, por citar a versão inglesa no quadro comparativo, para manter o padrão da tradução escolhida. A versão desse dispositivo em 2016 é idêntica à versão de 2004.
ou excluir esse dever. Entretanto, GAXX XXXXXX (2006)165 comenta que esse dispositivo não define o sentido de boa-fé. Nada obstante, o coloca ao lado da expressão “lealdade negocial”166, deixando claro que ela deve ser considerada objetivamente, com o sinônimo daquilo a que os princípios aludem nos artigos 3.5 e 3.10 (UNIDROIT, 2016), como “padrões comerciais razoáveis de lealdade negocial”, e não no sentido subjetivo, como um estado de espírito ou mero dever moral.
Imprescindível acrescentar que, mesmo na fase das tratativas, as partes devem estar imbuídas em promoverem uma negociação justa e atentas à boa-fé.
O autor, ainda, esclarece que a norma deste dispositivo deve ser essencialmente analisada à luz das características especiais do comércio internacional167, sem embargo da complementação que lhe podem oferecer os critérios de boa-fé, geralmente aceitos nos diversos ordenamentos nacionais. GAXX XXXXXX (2006) afirma que o comentário oficial do artigo lembra os padrões da prática negocial, variando substancialmente segundo o ramo comercial e conforme o ambiente socioeconômico no qual operam as empresas, o volume de seus negócios, a competência técnica. Cita, ainda, a título de exemplo, o mercado internacional de café, cujos padrões são totalmente diversos dos adotados no mercado internacional de minérios, pois, segundo GAMA JUNIOR (2006), no primeiro exemplo, há uma maior liberdade de troca, sendo igualmente amplo o mercado de importações e exportações de café, usual e bastante comum; já o mercado de urânio, por exemplo, contempla matéria radioativa, o que leva à concentração das trocas entre poucos produtores e consumidores, e cuja formalização deve ser realizada de forma escrita e com sujeição à estrita regulamentação nacional e internacional. Por fim, o autor conclui dizendo que isso demonstra “que a boa-fé e a lealdade negocial sejam interpretadas à luz das condições específicas do comércio internacional.”168
165 GAMA JUNIOR , ref. 161, p. 313.
166 Essa expressão lealdade processual (fair dealing) está contida na versão inglesa dos Princípios da Unidroit, tanto de 2004 como de 2016.
167 O comércio Internacional é baseado em trocas e em moedas, normalmente, distintas do país de origem; de uma variada e abrangente gama de produtos e serviços; submetidas a regras internas e internacionais, e movidas, também, por acordos internacionais; submetidos a riscos econômicos e políticos.
168 GAMA JUNIOR, ref. 161, p. 316.
Enfim, o sentido definido no artigo ora comentado estabelece que as partes devem agir nos contratos de acordo com os padrões comerciais razoáveis, ou seja, devem agir com lealdade e confiança recíproca, colaboração mútua em todas as fases do contrato.
Quadro 3. Princípio Unidroit que aborda a Proibição de comportamento contraditório - o ARTIGO 1.8
ARTIGO 1.8. (Proibição de comportamento contraditório) Uma parte não pode agir em contradição com uma expectativa que suscitou na outra parte quando está última tenha razoavelmente confiado em tal expectativa e, em consequência, agido em seu próprio detrimento.169 | ARTICLE 1.8 (Inconsistent behaviour) A party cannot act inconsistently with an understanding it has caused the other party to have and upon which that other party reasonably has acted in reliance to its detriment.170 |
Fonte: Gaxx Xxxxxx (2006, p. 326 e p. 321)
O comportamento inconsistente, disposto no artigo 1.8 dos princípios da Unidroit, demonstra claramente o que se denomina de venire contra factum proprium – a cujo respeito foi falado no item 4.5.6.2. deste trabalho.
Trata-se de uma proibição de que a parte deve manter o comportamento inicial, sem gerar expectativas contraditórias, para que tal atitude não venha a comprometer a confiança estabelecida, sendo este um dever anexo à boa-fé. Assim, a boa-fé torna-se a base para a conservação de um comportamento correto até o final da relação e o alcance dos objetivos almejados.
A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium, protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte. Aquele que vende um estabelecimento comercial e auxilia, por alguns dias, o novo comerciante, inclusive preenchendo pedidos
169 GAMA JUNIOR, ref. 161, p. 326.
170 GAMA JUNIOR, ref. 161, p. 321
e novas encomendas, fornecendo o seu próprio número de inscrição fiscal, não pode
depois cancelar tais pedidos, sob alegação de uso indevido de sua inscrição.”171
Quadro 4. Princípio Unidroit que aborda as negociações de má-fé - o ARTIGO 2.1.15
ARTIGO 2.1.15 (negociações de má-fé) 1) Cada parte é livre para negociar e não se torna responsável pela frustração em se chegar a um acordo. 2) Entretanto, uma parte que negocia ou suspende as negociações de má-fé é responsável pelas perdas sobrevindas à outra parte. 3) Está, em particular, de má-fé a parte que entre ou permanece em negociações sem a intenção de concluir um acordo com a outra.172 | ARTICLE 2.1.15 (Maxxxxxx xoi dans les négociations) 1) Les parties sont libres de négocier et ne peuvent être tenues pour responsables si elles ne parviennent pas à un accord. 2) Toutefois, la partie qui, dans la conduite ou la rupture des négociations, agit de mauvaise foi est responsable du préjudice qu’elle cause à l’autre partie. 3) Est, notamment, de mauvaise foi la partie qui entame ou poursuit des négociations sachant qu’elle n’a pas l’intention de parvenir à un accord.173 |
Fonte: Villela (2009, p. 62) e Unidrot (2016, p. 59).
Esse dispositivo dispõe sobre as negociações de má-fé. Neste caso, subtende-se que a parte não pode afetar a negociação ou obstá-la agindo de má-fé e, por isso, poderá ser responsabilizada pelos danos ocasionados à outra parte. Isso não quer dizer que deva negociar, porque há a liberdade de contratar em razão do princípio da autonomia da vontade, contudo, se pretender negociar, deve proceder segundo os ditames da boa- fé.
Ademais, não se aceita que uma parte aja de má-fé estando ciente de que não pretenderá chegar a um acordo com a outra parte – intuito subjetivo de descumprir a negociação - isso, igualmente ao artigo supracitado, gera expectativas contrárias à outra parte.
171 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. A Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor. Rio de Janeiro: Aide, 1991. In GAMA JUNIOR, ref. 161, pp. 326/327.
172 VIXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx xt al. (2009). Princípios Unidroit Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais/2004 [versão em língua portuguesa]. São Paulo: Quartier Latin, p. 62. ISBN 85-7674-422-8. Essa é uma tradução da versão francesa.
173 UNIDROIT, ref. 1.
O direito das partes de entrar livremente em negociações e decidir em que termos negociar não é, todavia, ilimitado, e não deve entrar em conflito com o princípio da boa- fé e lealdade negocial estabelecidos no art. 1.7. [...] A responsabilidade de uma parte por negociar de má-fé é limitada às perdas causadas à outra parte (inciso 2). Em outras palavras, a parte lesada pode recuperar as despesas em que incorreu nas negociações e pode também ser compensada pela perda da oportunidade de concluir outro contrato com uma terceira pessoa. (o chamado interesse de confiança ou interesse negativo), mas não poderá, em princípio, recuperar o ganho que lhe teria resultado, caso o contrato original tivesse sido concluído (o chamado interesse de execução ou interesse positivo).”174
Nos comentários, fala-se também que o direito de romper negociações está sujeito ao princípio da boa-fé e lealdade negocial, de forma que, uma proposta feita somente pode ser revogada nos limites estabelecidos no art. 2.1.18, que versa sobre a retratação de proposta.
Quadro 5. Princípio Unidroit que aborda a modificação da forma particular contratual - o ARTIGO 2.1.18
ARTIGO 2.1.18 (Modificação sob forma particular) Um contrato escrito que contenha cláusula estipulando que toda modificação ou revogação amigável deve produzir-se sob uma forma particular não pode, por outro meio, ser modificado ou revogado. Entretanto, uma parte pode ser privada da benefício desta disposição, na medida em que sua conduta tenha induzido a outra parte a agir, razoavelmente, confiada no comportamento da primeira. | ARTICLE 2.1.18 (Modification sous une forme particulière) Le contrat écrit qui contient une clause stipulant que toute modification ou révocation amiable doit être faite sous une forme particulière ne peut être modifié ou révoqué sous une autre forme. Toutefois, une partie peut être privée du bénéfice de cette disposition si son comportement a incité l’autre partie à agir raisonnablement en conséquence. |
Fonte: UNIDROIT, ref. 166
Esse dispositivo abarca dois preceitos advindos da boa-fé, quais sejam: a modificação de comportamento que se alinha ao venire contra factum proprium; e o dever anexo da confiança.
174 Do francês: Le droit d’une partie de négocier librement et de décider des clauses à négocier n’est toutefois pas sans limite et ne doit pas entrer en conflit avec le principe de la bonne foi posé à l’article 1.7. (...) La responsabilité d’une partie pour mauvaise foi dans la négociation est limitée aux préjudices causés à l’autre partie (paragraphe 2). En d’autres termes, le créancier peut recouvrer les dépenses encourues lors des négociations et peut aussi être indemnisé pour l’occasion manquée de conclure un autre contrat avec un tiers (ce qu’on appelle parfois “reliance” ou intérêt négatif), mais ne peut généralement pas recouvrer le profit qui aurait résulté si le contrat original avait été conclu (ce qu’on appelle parfois “expectation” ou intérêt positif). (UNIDROIT, ref. 1)
Partes que concluem um contrato escrito podem pretender assegurar-se de que nenhuma modificação ou extinção amigável do acordo se possa fazer senão também por escrito ou sob outra forma particular e, para esse fim, incluir uma cláusula no contrato.”175
Neste artigo, a atenção está voltada ao que foi firmado em acordo, principalmente na alteração ou na revogação que devem seguir a forma ajustada no contrato. Contudo, se uma parte adota uma conduta contrária, no sentido de se configurar o venire contra factum proprium, admite-se à parte oposta que aja de maneira diferente do estipulado, pelo que a primeira parte permitiu crer à segunda.
Quadro 6. Princípio Unidroit que aborda a fraude – o ARTIGO 3.2.5.
ARTIGO 3.2.5 (fraude) A nulidade do contrato por fraude pode ser invocada por uma das partes quando a sua contratação foi determinada por manobras fraudulentas da outra parte, nomeadamente a sua linguagem ou os seus actos, ou quando estes, contrários aos requisitos da boa-fé em matéria comercial, de forma fraudulenta, não informou a estreia de circunstâncias especiais que deveria ter divulgado.176 | ARTICLE 3.2.5 (Dol) La nullité du contrat pour cause de dol peut être invoquée par une partie lorsque son engagement a été déterminé par les manœuvres frauduleuses de l’autre partie, notamment son langage ou ses actes, ou lorsque cette dernière, contrairement aux exigences de la bonne foi en matière commerciale, a omis frauduleusement de faire part à la première de circonstances particulières qu’elle aurait dû révéler. |
Fonte: UNIDROIT (2016).
O artigo 3.2.5 trata da ideia de exercício doloso. Segundo o dispositivo, a parte submetida a tratamento enganoso, contrário à boa-fé no âmbito comercial, dentre outras atitudes fraudulentas disposta no citado artigo, tem o direito de anular o pacto.
Quadro 7. Princípio Unidroit que aborda a vantagem excessiva – o ARTIGO 3.2.7.
ARTIGO 3.2.7 (Vantagem excessiva) 1) A nulidade do contrato ou de uma das suas cláusulas por lesão pode ser invocada por uma parte quando, no momento da sua celebração, o contrato ou a cláusula conferir injustamente vantagem excessiva | ARTICLE 3.2.7 (Avantage excessif) 1) La nullité du contrat ou de l’une de ses clauses pour cause de lésion peut être invoquée par une partie lorsqu’au moment de sa conclusion, le contrat ou la clause accorde injustement un avantage excessif à l’autre |
175 Do francês: Les parties qui concluent un contrat écrit peuvent souhaiter s’assurer que toute modification ou révocation amiable soit faite par écrit ou sous une autre forme particulière et introduisent à cette fin une clause particulière dans le contrat. (UNIDROIT, ref. 179)
176 Tradução livre.
partie. On doit, notamment, prendre en considération:
a) le fait que l’autre partie a profité d’une manière déloyale de l’état de dépendance, de la détresse économique, de l’urgence des besoins, de l’imprévoyance, de l’ignorance, de l’inexpérience ou de l’inaptitude à la négociation de la première; et
b) la nature et le but du contrat.
2) Le tribunal peut, à la demande de la partie lésée, adapter le contrat ou la clause afin de le rendre conforme aux exigences de la bonne foi en matière commerciale.
3) Le tribunal peut également adapter le contrat ou la clause à la demande de la partie ayant reçu une notification d’annulation pourvu que l’expéditeur de la notification en soit informé sans tarder et qu’il n’ait pas agi raisonnablement en conséquence. Le paragraphe 2 de l’article 3.2.10 est alors applicable.
impossibilidade de negociar com o
primeiro; e
b) a natureza e o objetivo do contrato.
2) O tribunal pode, a requerimento do lesado, adaptar o contrato ou cláusula de forma a torná-lo conforme aos requisitos da boa-fé em matéria comercial.
3) O tribunal igualmente pode adaptar o contrato ou cláusula a pedido da parte que recebeu a notificação de anulação, desde que o remetente do aviso seja informado sem demora e não tenha agido de forma razoável em consequência. O parágrafo 2 do Artigo 3.2.10 é então aplicável.177
ou
inexperiência
urgentes, impropriedade,
econômica,
crise
dependência,
necessidades ignorância,
à outra parte. Deve-se, notadamente,
levar em consideração:
a) o fato de a outra parte ter se aproveitado injustamente do estado de
Fonte: Villela (2009, p. 138)
Também encontra-se a boa-fé disposta no artigo 3.2.7, segundo o qual a parte que for prejudicada, se o quiser, pode ter seu pacto ajustado pelo tribunal com o fito de que seja enquadrado nos limites da boa-fé em disciplina comercial.
Observa-se, portanto, que a disparidade excessiva não se harmoniza à boa-fé, capaz de impor limites de justeza à relação jurídica.
Quadro 8. Princípio Unidroit que aborda a Cooperação entre as partes – o ARTIGO 5.1.3.
Artigo 5.1.3 (Cooperação entre as partes) Cada parte deve cooperar com a outra quando tal cooperação possa ser razoavelmente esperada pela outra parte para o cumprimento das respectivas obrigações.178 | ARTICLE 5.1.3 (Devoir de coopération) Les parties ont entre elles un devoir de coopération lorsque l’on peut raisonnablement s’y attendre dans l’exécution de leurs obligations. |
Fonte: Villela (2009, p. 138)
177 Tradução livre.
178 VILLELA, ref. 172, p. 138.
O dever de cooperação entre as partes está adstrito à boa-fé, por meio do qual as partes precisam favorecer a satisfação da outra parte, num processo contínuo e mútuo, para que todos logrem concretizar os objetivos estabelecidos em contrato.
Os princípios Unidroit foram influenciados pelo Direito Europeu Continental, segundo esclarece TERASHIMA (2016)179, de forma que o princípio da boa-fé exerce um papel relevante na sua estrutura. Pelas citações acima indicadas, nas quais foi destacada apenas uma parte no contexto, nota-se que a boa-fé é “tida como um dos fundamentos basilares que permeiam os Princípios Unidroit.”180
O autor pondera que os Princípios Unidroit fazem referência expressa aos “ditames da boa-fé no comércio internacional", de forma a excluir o conceito de boa-fé previstos nos ordenamentos jurídicos nacionais para garantir a aplicação do “Direito Internacional Uniforme”.181 182
Portanto, há uma preocupação do direito em proteger a confiança e a lealdade que se devem reciprocamente os contratantes. Os deveres decorrentes da boa-fé, mesmo que não firmados contratualmente, não podem ser rechaçados e nem desprezados pelos contratantes, pois a boa-fé integrará o conteúdo jurídico do contrato, assim como toda normatividade jurídica não declarada ou querida pelas partes.183
179 TEXXXXXXX, Xxxxxxx Xxx (2016). O princípio da boa-fé na Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias – CISG. Tese (Mestrado em Direito das Relações Econômicas Internacionais) – Pontifícia Universidade de São Paulo. São Paulo, p. 83. Disponível no Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia: xxxxx://xxxx0.xxxxx.xx/xxxxxx/xxxxxx/00000. Acesso em 7 jul. 2021.
180 TERASHIMA, ref. 179, p. 83.
181 TERASHIMA, ref. 179, p. 85
182 “Sobre o conceito de uniformização – esta representa a combinação entre elementos de Direito Internacional e de direito material no que for possível. A uniformização detém maior flexibilidade e alcance do que a harmonização e uma extensão menor que a unificação, onde os conflitos são eliminados pela completa substituição das normas anteriores (que eram diversificadas). Com isso se ganha uma maior flexibilidade e alcance, mas aumentam-se os problemas de delimitação e conciliação.
A uniformização poderá possibilitar: a) a aproximação de diferentes povos (visão política) baseado na ideia de uma instituição comum que induz um modo de pensar similar no mundo; b) função de integração econômica; c) o aparecimento do sentimento de justiça comum diante de situações ligadas à diferentes sistemas jurídicos – aliada com a necessidade de ter-se garantido o respeito às leis e à ordem social.” TOIGO, Xxxxxxx Xxxxx. Os princípios do UNIDROIT aplicáveis aos contratos internacionais do comércio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2678, 31 out. 2010. Disponível em: xxxxx://xxx.xxx.xx/xxxxxxx/00000. Acesso em: 22 ago. 2021.
183 XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. A CISG no Brasil: uma análise comparativa entre as regras convencionais do comércio e o Código Civil Brasileiro. E-Civitas. X. 00, x. 0, 0000, x. 000. ISSN 1984- 2716.
5.2 Convenção das Nações Unidas Sobre O Contrato De Compra E Venda Internacional De Mercadorias (Convenção de Viena de 1980).
A Convenção da Organização das Nações Unidas - ONU sobre o Contrato de Compra e Venda Internacional de Mercadorias - CISG184, celebrada em Viena no ano de 1980, e elaborada a partir dos trabalhos da United Nation Comissiono n International Trade Law - Uncitral185, exibe vigor comparável a outros grandes diplomas internacionais de direito privado, tais como as Convenções de Genebra sobre Títulos de Créditos, de 1930 e 1931,; a Convenção da ONU sobre o Reconhecimento e Execução de Laudos Arbitrais Estrangeiros, em Nova Iorque, 1958. 186
Praticamente ignorada no Brasil, a Convenção de Viena foi adotada por 67 países, e levou inúmeros países europeus a modificarem a sua legislação interna. Suécia, Finlândia e Estônia adotaram normas da Convenção para aplicação em contratos internos; Alemanha e Holanda modificaram seus respectivos Códigos Civis com base nos princípios da Convenção: a Diretiva Europeia de Proteção ao Consumidor teve a redação influenciada por conceitos da Convenção. Também a Comissão Lanto, responsável pela elaboração de um esboço do Código Civil Europeu, encontrou na Convenção uma fonte de inspiração187.
Todavia, no Brasil, somente em outubro de 2014, é que a Convenção de Viena foi promulgada, por meio do Decreto nº 8.327 (BRASIL, 2014)188. Essa adesão já era
184. CISG. Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias. 1980. Disponível em: xxxxx://x0xx0000-00x0-0x00-xx00- 00x0x0000x0x.xxxxxxxx.xxx/xxx/000x0x_x0000xxxxxx00x000x0xx000x000000x.xxx Acesso em: 31jul. 2021.
185 Para mais informações: xxxxx://xxxxxxxx.xx.xxx/
186 GAMA JUNIOR.. Lauro. A Convenção de Viena Sobre a Compra e Venda Internacional de Mercadorias – 1980: essa grande desconhecida. Revista de Arbitragem e Mediação: RArb, v. 3, n. 9, abr./jun. 2006, p. 135. ISSN 1518-2703
187 XXXX XX. Ref. 186, p. 135.
188 BRASIL, ref. 212.
esperada há muito tempo, uma vez que os Estados Signatários da CISG figuram entre os principais parceiros comerciais do Brasil, como é caso da China e dos Estados Unidos.
5.2.1 Aplicação
A Convenção sobre o Contrato de Compra e Venda Internacional de Mercadorias trata da formação dos contratos de compra e venda internacional de mercadorias, além de determinar as obrigações do vendedor e comprador originárias do contrato e estabelecer medidas em caso de perdas e danos por violação contratual e outras formas de descumprimento.
A Convenção se aplica aos contratos de compra e venda de mercadorias quando as pessoas contratantes tenham estabelecimento em Estados distintos - que sejam signatários da convenção -, ou quando as regras de Direito Internacional Privado levarem à aplicação da lei de um dos Estados contratante.
Assim, as transações realizadas pelo Brasil poderiam ser estabelecidas com base nas regras da Convenção, mesmo antes de sua entrada em vigor no país. Um país signatário da CISG, por exemplo, pode pretender aplicar suas regras como parte de seu direito material. Observa-se a regra do art. 6º da CISG189, conhecida internacionalmente como opt out, contempla o princípio da autonomia contratual na relação de compra e venda internacional de mercadorias. O dispositivo estabelece que as partes podem excluir a aplicação da convenção e/ou derrogar suas disposições ou ainda modificar seus efeitos.190
Da análise integrada dos dispositivos da Convenção, sobressai-se a diretriz de conferir maior liberdade jurídica às partes envolvidas no contrato, com respaldo nos princípios de transparência e boa-fé (objetiva), a fim de se evitarem disputas a serem
189 CISG, ref. 184.
190 NORONHA. Xxxx Xxxxxx Xx. A Aplicação da CISG (Convenção Das Nações Unidas Sobre Os Contratos Para A Compra E Venda Internacional De Mercadorias) pelo Superior Tribunal de Justiça. In A CISG e o Brasil. Convenção Das Nações Unidas Sobre Os Contratos Para A Compra E Venda Internacional De Mercadorias. Org. por XXXXXXXXX, Xxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxx X. Xxxxxxxxx e XXXXXXX, Xxxxxxx. São Paulo, 2015, pp. 517-531. ISBN 978-85-66722-31-4.
dirimidas pelo sistema judiciário dos países, uma vez que prevê formas alternativas para a prevenção e solução de conflitos entre as partes.
XXXXX (2018)191 esclarece que o artigo 7º da Convenção estabelece que, na sua interpretação, serão levados em conta seu caráter internacional e a necessidade de promover a uniformidade de sua aplicação e ainda, o respeito à boa-fé no comércio internacional. Ou seja, objetiva uniformizar as regras aplicáveis ao Direito Comercial Internacional, “incluindo esforços para unificar interpretação de suas regras e também a jurisprudência.”192
XXXXX (2018) afirma que:
Um dos dispositivos mais importantes da CISG é o art. 7º, (1). A regra trata sobre os mecanismos de interpretação da convenção. Estabelece como pressupostos interpretativos a preservação de seu caráter internacional e a necessidade de promover a uniformidade de sua aplicação, assim como assegurar o respeito à boa-fé no comércio internacional. Convém esclarecer desde logo que a boa-fé na CISG é um instrumento de interpretação da convenção, não de interpretação dos dispositivos contratuais, muito menos, uma fonte normativa para deveres principais ou laterais não estabelecidos no contrato nem na própria CISG. A alusão da CISG à boa-fé deve ser entendida nesse contexto, sob pena de frustração de sua internacionalidade e de interferência inadequada dos sistemas jurídicos nacionais.193
A autora esclarece que, para que a regulação internacional alcance os objetivos propostos, os Estados contratantes, com origem na common law ou na civil law, devem interpretar a norma conforme os princípios veiculados no art. 7º da Convenção. Isso significa que, uma vez recepcionada por um Estado contratante, a CISG deve ser interpretada como uma norma em si própria. As normas ou jurisprudência nacionais jamais devem ser entendidas como o ponto de partida para o intérprete da convenção. Assim, cita o seguinte exemplo:
Por exemplo: voltando ao tema da boa-fé, se um vendedor norte-americano reclama violação de algum dever contratual pelo comprador brasileiro, o magistrado ou o árbitro não deve buscar dar ao princípio da boa-fé insculpido no art. 7º alguma eficácia correspondente à que a exigência de boa-fé poderia ter de acordo com o direito brasileiro.
191 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxx. A Harmonização do Regime dos Contratos na CISG (Convenção da Nações Unidas Sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadoria). Revista de Direito Privado, 2018, RDPriv v. 19, n.88, pág. 54. ISSN 1517-6290.
192 XXXXX, ref. 191, p. 54
193 XXXXX, ref. 191, p. 54
Deve procurar os contornos da boa-fé na doutrina e na jurisprudência da própria CISG, nas quais tem uma dimensão absolutamente distinta da que assume no direito nacional.194
5.2.2 Da Boa-fé
Para KALLÁS e SANTOS (2017)195 a interpretação da CISG deve ser feita nos termos da Convenção de Viena de 1969, levando-se em consideração a preservação do seu caráter internacional, o objetivo de se promover a uniformidade e a boa-fé no comércio internacional, de forma que, havendo disputas em relação ao seu significado e à sua aplicabilidade, todas as partes, incluindo os tribunais arbitrais e as cortes estatais, “deverão ser advertidos a observar a internacionalidade do contrato, em conformidade com os princípios gerais que norteiam a Convenção, atendendo assim, as peculiaridades e exigências do comércio internacional.”196
Os autores ainda explicam que, à luz do caso concreto, o princípio da boa-fé na interpretação do contrato regido pela Convenção é de extrema importância, “notadamente quanto à conformidade ou desconformidade de mercadorias, que deverá ser auxiliado pelas regras do art. 9 do texto convencional, haja vista os usos e costumes na praxe comercia.” 197
No Brasil a primeira decisão de um tribunal brasileiro que aplicou a Convenção de Viena ficou conhecida como o “caso dos pés de galinha”. Trata-se do acórdão n. Nº 70072362940 (Nº CNJ: 0000409-73.2017.8.21.7000). 198 O julgamento se referiu a um pedido de rescisão de contrato cumulada com indenização de danos materiais formulado pela compradora Noridane Foods S.A. em face da Comercial Importação e Distribuição LTDA EPP. Segundo consta do acórdão, o ajuste foi de um contrato de compra e venda de 135 toneladas de pés de galinha congelados, em 2014, totalizando
194 XXXXX, ref. 191, p. 54
195 KALLÁS; XXXXXX, ref. 183.
196 XXXXXX; XXXXXX, ref. 183, p. 71.
197 XXXXXX; XXXXXX, ref. 183, p. 78
198 TJRS. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Acórdão n. Nº 70072362940 (Nº CNJ: 0000409- 73.2017.8.21.7000), do TJ-RS, julgado em 14.02.2017. Disponível em xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxx/xxxxx/XXX/XXX_000000_XX.xxx Acesso em:31 jul. 2021.
o valor de USD$ 117.450,00. A autora da ação teria pago USD$ 79.650,00, referente a parte da mercadoria, mas jamais teria recebido as mesmas. Requereu, então, a declaração da rescisão contratual e a devolução dos valores pagos (USD$ 79.650,00, equivalentes a R$ 249.336,36 na data da propositura da ação).
A requerida, em sua defesa, chegou a confirmar o recebimento da quantia informada, mas sustentou que transferiu tal quantia para outra empresa, a qual ficou responsável pela compra da mercadoria, justificando que esse segundo negócio estava sendo tratado diretamente com o representante da autora; mas, por questões burocráticas, a entrega da mercadoria havia atrasado, e a prorrogação do prazo teria contado com a concordância da autora da ação. Mesmo assim, a requerida embarcou a mercadoria, quando foi surpreendida com a informação de que a empresa adquirente não queria mais a mercadoria. Asseverou que o valor recebido foi de R$ 117.619,50 e ao querer receber R$ 249.336,36, a autora pretendia auferir um lucro de R$ 71.716,86 com a rescisão do contrato.
Consta do acórdão que a autora / compradora tem domicílio na Dinamarca; a ré / vendedora tem domicílio no Brasil; e as obrigações relativas à execução do contrato, no tocante à transferência da propriedade das mercadorias negociadas e à sua entrega, pela vendedora, dividiam-se entre Brasil e Hong Kong, China. Assim, disse-se no acórdão que,
[...]caracterizando o elemento transnacional ínsito ao contrato qualificado como internacional. Ressalto que a conceituação do vínculo contratual havido entre as partes como contrato internacional de compra e venda de mercadorias aqui não se dá à toa. Justifica-se porque remete ao marco jurídico aplicável ao deslinde do mérito, o qual se compõe, no caso, pela Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (a assim chamada “Convenção de Viena de 1980”) e, ao mesmo tempo, pelos Princípios Unidroit Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais.199
Daí o acórdão teceu longas considerações sobre a aplicação tanto da Convenção como dos princípios Unidroit, de forma que tais normativos foram aplicados “simultaneamente” com o fim de reforçar os princípios da liberdade formal e da boa-fé.
199 TJRS, ref. 198, pp. 19-20.
A aplicação das regras Unidroit visou reiterar a possibilidade, por um lado, da existência do contrato ser provada apenas pelas faturas emitidas pela requerida -já que o contrato em si não constava entre os documentos apresentados na ação - e, por outro, da rescisão ser declarada com base em violação frontal à boa-fé objetiva por parte da requerida. Do exposto, observa-se que
redunda na aplicação da Convenção de Viena de 1980 e dos Princípios Unidroit para o enfrentamento do mérito, cabendo aqui ressaltar que a doutrina autoriza o uso da “nova lex mercatoria” como Direito aplicável às obrigações contratuais multiconectadas, mormente à luz do caráter obsoleto dos elementos de conexão dados pela LINDB [...]. Pois bem. Tanto o art. 11 da Convenção de Viena de 198024 quanto o art. 1.2 dos Princípios Unidroit25 consagram o princípio da liberdade formal do contrato de compra e venda, que não requer instrumento escrito nem se sujeita e requisitos específicos de forma, podendo a sua existência ser comprovada por quaisquer meios, inclusive a prova testemunhal. Portanto, está caracterizada no caso concreto a relação negocial de compra e venda entre as partes, ao abrigo da Convenção de Viena de 1980 e dos Princípios Unidroit, já que, como dito anteriormente, as faturas das fls. 22/23 dão conta de demonstrar a avença entre a autora e a ré. [...] A ré, entretanto, não logrou êxito em demonstrar ter satisfeito a obrigação de entrega da mercadoria e de transferência da respectiva propriedade, que se extrai do art. 30 da Convenção de Viena de 198028. Em contestação, reconheceu ter recebido o pagamento de US$79.650,00 (setenta e nove mil, seiscentos e cinquenta dólares), ao mesmo tempo em que informou ter efetuado a entrega, no porto de Hong Kong (fls. 55/62), o que, contudo, não veio respaldado por qualquer indício de prova, nos autos. [...] Portanto, dada a ausência de prova do cumprimento da obrigação em tela, está caracterizado o direito da compradora requerente à rescisão do contrato, com base no art. 49(1)(b) da Convenção de Viena de 1980.”200.
Ainda consta do acórdão que a autora da ação empreendeu reiteradas tentativas de contato com a devedora, com vistas a obter esclarecimentos quanto à entrega da mercadoria, o que, na prática, constituiu-se em prazo suplementar concedido em favor da requerida / vendedora, nos termos da norma do art. 47(1)201 da Convenção. Contudo, em face do transcurso de considerável interregno (oito meses), durante o qual o preposto da ré nem ao menos diligenciou no sentido de responder aos e-mails enviados pela ora requerente, a ação foi proposta. Assim, concluiu o acórdão:
Aliás, cabe aqui pontuar que, em função disso, o que se tem é que, no caso concreto, a declaração judicial de rescisão do contrato não se dissocia do reconhecimento de flagrante ofensa, pela vendedora / demandada, do dever das partes contratantes de
200 TJRS, ref. 198, p. 28, 29, 30 e 31.
201BRASIL, ref. 212
proceder segundo os ditames de boa-fé, o cânone maior das relações comerciais internacionais regidas pela “nova lex mercatoria”, como se infere da leitura do art. 1.7 dos Princípios Unidroit32 e do art. 7(1) da Convenção de Viena de 198033 – esse último, aliás, constituindo um comando explícito aos Juízes (estatais ou arbitrais) que a aplicam. Com efeito, no intuito de criar uma uniformidade de regras para o tratamento destinado às relações comerciais internacionais, a Convenção de Viena de 1980 estruturou a noção de contrato a partir de dois pilares fundamentais, a saber, a autonomia privada e a boa- fé objetiva35, da qual se pode extrair, entre outros, o dever das partes de atuar com lealdade negocial, a impor aos contratantes a compreensão de que o contrato de compra e venda internacional de mercadorias há de ser entendido como uma relação de cooperação entre os que dela participam36 . No caso concreto, como visto, houve frontal violação ao pilar da boa-fé, a ensejar a resolução do contrato, de conformidade com as demais normas a esse respeito ditadas pela Convenção.202
Observa-se, do voto, que as partes não haviam elegido as regras aplicáveis ao Contrato. Contudo, a CISG estabelece, expressamente, em seus artigos 7º e 11203, os princípios da boa-fé e da liberdade formal do contrato de compra e venda internacional, respectivamente.
Apesar de no acórdão citado não haver indicação da conduta que teria sido violadora da boa-fé objetiva, tal como prevista na CISG, dos fatos narrados, percebe-se que tal violação estaria no dever de informação e, por conseguinte, na afronta aos deveres de cooperação e de lealdade, corolários do princípio da boa-fé.
Contudo, essa violação concreta do dever de informação não justificaria, per si, uma violação essencial a ensejar a rescisão do contrato, considerando-se os princípios da boa-fé e do favor contractus inseridos na CISG. Mas, com base no art. 30 da Convenção de Viena204, o magistrado considerou que a empresa brasileira havia descumprido sua obrigação relativa à entrega e transferência de propriedade de mercadoria.
O julgador entendeu que a vendedora violou o dever de boa-fé – art. 1.7 dos Princípios Unidroit205 e art. 7 da Convenção de Viena206 -, sendo esses um dos fundamentos direito do comércio internacional, não respeitado pela empresa requerida.
202 TJRS, ref. 198, pp. 32-33
203 BRASIL, ref. 212
204 BRASIL, ref. 212
205 UNIDROIT, ref. 1, p. 17
206 BRASIL, ref. 212
6 A BOA-FÉ APLICADA AOS CONTRATOS INTERNACIONAIS
Como visto na seção 2 deste trabalho, a boa-fé é um modelo de conduta social, caracterizada pela atuação em conformidade com determinados padrões de lisura, probidade e lealdade. Ela se relaciona à interpretação das cláusulas presentes nas relações contratuais – na verdade, em quaisquer relações jurídicas. E visa colmatar a intenção e o comportamento dos agentes nas contratações.
A interpretação das leis é obra de xxxxxxxxxx e de lógica, mas também de discernimento e bom senso, de sabedoria e experiência, como expõe XXXXXXXXXXX (2017)207, que ainda afirma que o exegeta deve possuir um intelecto respeitoso da lei, porém, ao mesmo tempo, inclinado a lhe quebrar a rigidez lógica, apto a compreender os interesses individuais, equilibrando-os à coletividade.
Quando diplomas normativos trazem em seu corpo normas de interpretação, ali estão traçados princípios que o intérprete deve aplicar. A interpretação jurídica não é simplesmente entender um texto jurídico, mas entendê-lo mediante a aplicação de métodos prescritos, devendo o exegeta evitar não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo encaixar, na regra escrita, suas próprias paixões. “A interpretação deve ser objetiva, desapaixonada, equilibrada, às vezes audaciosa, porém não revolucionária, aguda, mas sempre atenta respeitadora da lei.” 208
Enfim, tratar de normas de interpretação significa reconhecer a intrínseca legalidade do agir hermenêutico, extraindo-se o seu sentido em conformidade com a lei.
Caminho de grande interesse em relação às questões interpretativas relativas aos contratos internacionais é a utilização da cláusula geral da boa-fé objetiva como padrão de comportamento apto a orientar a compreensão do contrato e de suas cláusulas, como preleciona CARVALHO (2018) que
207 XXXXXXXXXXX, Xxxxxx. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro, Editora Forense, 21ª edição, 2017, p. 93.
208 MAXIMILIANO, ref. 207, p. 95.
considerando que o comércio internacional conta com o árduo desafio de sintetizar conceitos jurídicos locais, de maneira a compor um mínimo denominador comum a todos os sistemas, é essencial que conte com um conceito peculiar de boa-fé objetiva, que dê conta da demanda por parâmetros interpretativos dos contratos, bem como da busca por balizas comportamentais para as condutas das partes.209
XXXXXX (2017)210 esclarece que a jurisprudência arbitral se utiliza dos Princípios do Unidroit para interpretar o direito nacional aplicável. Cita, a título de exemplo, o Laudo Arbitral 8.908, de setembro de 1998, do Tribunal ICC International Court of Arbitration211, em Milão, o qual dispôs que o árbitro, ao decidir os méritos do caso, consultou repetidamente, além das provisões relevantes do Código Civil italiano, as provisões contidas na Convenção de Viena das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias - CVIM212 e nos Princípios de Unidroit (UNIDROIT, 2016), tendo definido ambos como os textos normativos que podem ser considerados úteis na interpretação de todos os contratos de uma natureza internacional. Ainda informa que, no caso citado, o Tribunal arbitral tanto aplicou dispositivos do Código Civil italiano, como as regras contidas nos artigos 1.7 e 4.1. a 4.8 dos Princípios Unidroit (UNIDROIT, 2016). O autor então concluí que
não há dúvidas de que os Princípios do Unidroit representam, para quem se interessa pela evolução do comércio internacional, especialmente em relação à arbitragem internacional, um passo positivo, um auxílio favorável para a formação gradual e uniforme de um regime jurídico a ser utilizado na solução concreta dos litígios comerciais internacionais.213
209 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xxxxx. O dever de cooperação nos contratos de venda internacional de mercadorias: pressupostos teóricos e repercussões práticas da cláusula geral da boa-fé objetiva para a aplicação da CISG.” Revisa de Direito Internacional, Brasília, v. 15, 2018, n. 3, p.364.. Disponível em file:///C:/Users/pnlea/Downloads/Boa-f%C3%A9%20contratos%20internacionais.pdf. Acesso em 24 jun. 2021.
210 XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx de. A lei aplicável ao contrato internacional: a possibilidade de utilização dos princípios do Unidroit como norma aplicável. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Vol. 104, ano 25, 2017, p. 315. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, nov.-dez. 2017. Acesso em: 14 jun.
2021.
211 “O Tribunal Internacional de Arbitragem é a instituição arbitral líder mundial. Desde 1923, temos ajudado a resolver as dificuldades em disputas comerciais e comerciais internacionais para apoiar o comércio e os investimentos” (ICC, 2017).
212 BRASIL. Decreto-nº 8.327, de 16 de outubro de 2014. Promulga a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias - Uncitral , firmada pela República Federativa do Brasil, em Viena, em 11 de abril de 1980.
213 XXXXXX, ref. 210, p. 315.
No caso do Direito Comercial Internacional, a noção de boa-fé constitui uma das bases fundamentais da lex mercatoria, com o fim de lançar sua influência sobre diversos institutos jurídicos com vistas a moralizar as transações. E, para tanto, o acolhimento da boa-fé não deve advir de ideias revolucionárias, pois, acima de tudo, tem o condão de promover a lealdade contratual, com o devido respeito e consideração à parte ocupante do polo oposto da relação obrigacional e à autoridade e uniformidade das normas regentes do comércio internacional.
XXXXXXX-XXXXX (2018)214 esclarece que, no âmbito internacional, a expressão “boa-fé” tem significado que varia culturalmente. Assim, na sua apreciação, a atenção do intérprete deve voltar-se aos modelos advindos da práxis contratual (lex mercatoria). Entretanto, XXXXXXX-XXXXX alerta ao fato de que a circulação da prática contratual enseja considerar os efeitos, no plano jurídico, das trocas econômicas e comerciais, bem como a circulação de decisões, judiciárias ou arbitrais, que induzem a alargar horizontes, a verificar o que ocorre em outros países e a sopesar resultados de aplicações de princípios. Em síntese, o acolhimento da boa-fé objetiva significa averiguar o sentido que essa pessoa abstrata atribuiria à declaração negocial, nas mesmas circunstâncias em que se encontravam declarante e declaratórios verdadeiros.
Por fim, XXXXXX (2014)215 comenta que a influência da boa-fé não depende da natureza do contrato, sendo essa uma visão desatualizada. Ela depende essencialmente das circunstâncias que cercam o contrato. “Não há contratos que não estejam sujeitos à incidência do princípio da boa-fé”216, o que pode ocorrer é que determinados tipos de contrato ensejam mais oportunidades para atuação da boa-fé, “por elementos de fato que se repetem em vários casos e podem, nessa medida, ser objeto de alguma abstração e generalização quanto aos efeitos da boa-fé.”217
Há alguns deveres acessórios, segundo indica XXXXXX, que surgem em determinados tipos de contratos, como no caso de contratos com prazos longos, “o princípio da boa-fé quase sempre imporá deveres mais elevados de boa-fé se
214 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Saraiva-jur, 2ª edição, 2018, p. 317 ISBN 978-85-472-2895-8.
215 XXXXXX, ref. 147, p. 154.
216 XXXXXX, ref. 147, p. 155.
217 XXXXXX, ref. 147, p. 155.
comparados com contratos instantâneos de troca.”218 Assim, num contrato mais longo, as partes subordinam interesses de curto prazo a interesses maiores de longo prazo e, “um espírito de cooperação existe quando os contratantes exercem alguma limitação na busca de próprio interesse para o sucesso do empreendimento.”219
Assim, um contrato associativo ou de longo prazo tem uma incidência maior da boa-fé do que um contrato de compra e venda, de execução instantânea. Não que este não esteja sujeito à boa-fé; ao contrário, sua execução deve a ela se conformar. Mas, justamente por ser de execução instantânea, e não continuada, é mais fácil para as partes preverem eventuais contingências, eventos futuros ou circunstâncias alteradas. Até porque, há menos tempo para que tais ocorram. Fique claro, porém, que na sua ocorrência, exigindo das partes alguma cooperação para garantir a consecução da finalidade do contrato ou preservar os interesses dessa parte (mitigação de danos, por exemplo), a boa-fé é aplicável tal qual nos contratos de outra categoria. Em resumo, o que se quer dizer é: a boa-fé deve ser chamada em menos oportunidades para atuar em alguma circunstância do contrato, mas em sendo, não há razão para sua incidência ser diferente da dos demais contratos.”220
Quanto às convenções internacionais, é facultado aos contratantes elegê-los como lei aplicável ao contrato, com as ressalvas de cada legislação nacional, posto que alguns sistemas jurídicos dão margem a essa escolha, enquanto que, em outros países, existem restrições a isso221. Para tanto, é necessário distinguir os casos a serem submetidos a uma corte nacional daqueles que deverão ser submetidos ao sistema de arbitragem.
Outro aspecto que deve ser visto diz respeito à aplicação do princípio da boa-fé objetiva aos contratos, quando vistos sob os aspectos existenciais e de lucros. O conceito de contratos de existência e lucro, segundo EROLES (2018) 222, está na finalidade ou propósito do contrato. Assim, por exemplo, a finalidade de uma empresa é a obtenção de lucro. Com efeito, adotando-se esse critério, assume-se que a função social da
218 XXXXXX, ref. 147, p. 155.
219 XXXXXX, ref. 147, p. 155.
220 XXXXXX, ref. 147, p. 155.
222 EROLES, ref. 123, p. 123.
empresa só poderá ser cumprida caso ela consiga manter a sua finalidade última que é a obtenção de lucros. Desse modo, “contratos firmados entre duas empresas serão sempre contratos de lucro, uma vez que a causa final de todas as partes envolvidas é a obtenção de lucro.”
Evidentemente que existem muitas discussões a respeito da causa final da empresa: se atividade voltada para a obtenção de lucro, ou o lucro sendo uma das muitas facetas dessa mesma atividade. Atualmente, têm prevalecido as discussões que projetam essa atividade na sociedade, de forma que nada foge, em primeira mão, ao interesse social. Observe-se o que diz FRAZÃO (2017):
A função social, conforme construída pela doutrina italiana, não tem por finalidade apenas a anulação de condutas antissociais, mas também o direcionamento e a orientação do exercício dos direitos para a realização do interesse público, sem comprometer o núcleo de individualidade a eles inerente. Segundo Xxxxxx Xxxxxxxxxxx, a função social não serve apenas à delimitação dos limites dos interesses e direitos subjetivos, mas também comporta uma dimensão ativa ou impulsiva. 223
Mas, seguindo-se a linha de EROLES (2018), com o propósito de ajustar a incidência da boa-fé objetiva nos contatos, ele explica que os contratos de lucro seriam celebrados entre empresários ou entre empresários e não empresários com intuito de lucro, enquanto os contratos existenciais seriam aqueles celebrados entre o empresário e o não empresário, mas não entre dois empresários, sempre que para a parte não empresária não haja intenção de lucro.224
Então o critério introduzido é o relativo à intenção ou não de lucro entre as partes contrates. Obviamente que essa conceituação comporta em si uma infinidade de situações, já que é bastante genérica. O próprio EROLES (2018) esclarece isso ao dizer que se trata de conceituação vinda de AZEVEDO (2004) que, por sua vez, também a coloca de maneira imprecisa. Do exposto, observa-se que
Com o estabelecimento do critério acima quanto a diferenciação entre contratos de existência e os lucros, tendo como base a causa final das partes contratantes, uma série
224 EROLES, ref. 123, p. 124.
de outros questionamentos podem ser levantados, principalmente quando se tem em vista que a dicotomia contratos existenciais/de lucro fora estabelecida por Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx com o fim de estabelecer critérios operativos para maior ou menor incidência da cláusulas de boa-fé objetiva, a função social do contrato, e outros.225
Então, nesse sentido, o autor questiona se seria adequado, para fins de incidência do princípio contratual da boa-fé objetiva, tratar-se de forma equivalente um contrato de joint venture entre duas empresas e um contrato entre uma grande empresa com uma pequena empresa fornecedora de produtos ou serviços, tendo em vista que, nos dois casos, ambas visam à obtenção de lucro.226
Não há, na verdade, uma resposta precisa a respeito do assunto, pois a gama de situações contratuais é muito extensa, daí o porquê de a boa-fé objetiva, além de cláusula contratual, constituir-se em um verdadeiro princípio, e, dessa forma, a boa-fé objetiva abrange as diversas categorias e situações, sendo moldada a cada evento específico, mantendo, é claro, sua linha mestra.
Só para se ter uma ideia dessa gama de possibilidades que demanda pela cláusula de boa-fé: existem contratos em que, mesmo visando à obtenção de lucros por ambas as partes, as possibilidades de negociação não são simétricas, ou seja, as partes não detêm condições e possibilidades de negociação semelhantes; já há outros contratos cujas partes têm condições semelhantes de negociação. Como exemplo desta última categoria, há o contrato de joint venture, firmado entre duas grandes empresas com condições semelhantes de negociação; mas há os contratos entre uma joint venture e uma pequena empresa fornecedora ou em que a própria joint venture contrata uma pequena empresa fornecedora e apresenta a essa um contrato com cláusulas pré- redigidas, típico contrato de adesão, embora ambas as partes visem a lucros.
Há, portanto diversos questionamentos que poderiam ser colocados em relação aos critérios para a especificação a respeito das categorias de contratos, principalmente os relativos à obtenção de lucros. Mas, da mesma forma que Xxxxxx (2018) esclarece, também este trabalho não visa ao detalhamento e análise de cada uma das categorias de contratos. A intenção aqui foi a de esboçar um certo número de hipóteses contratuais
225 AZEVEDO, ref. 124 In EROLES, ref. 123, p. 293.
226 EROLES, ref. 123, p. 130.
a partir das categorias de contratos de existência e lucros, a fim de enfrentar a questão sobre a dispositividade gradual do princípio contratual da boa-fé objetiva nos contatos. EROLES (2018), então, fala que poder-se-ia estabelecer que, em relação à dispositividade gradual do princípio da boa-fé objetiva, que ela seria maior nos contratos de lucro simétrico, ou seja, aqueles em que as condições negociais se assemelham, e
diminuiria gradativamente conforme a categoria contratual.
Pode-se levantar a hipótese de que, nos contratos de lucro simétrico, o princípio contratual da boa-fé objetiva seria plenamente dispositivo (sempre respeitadas eventuais regras aplicáveis derivadas da boa-fé objetiva).
O princípio contratual da boa-fé objetiva será aplicado topicamente, mas, de forma a poder-se estabelecer critérios para determinação de sua incidência a priori, e detalhar sua incidência partir de categorias contratuais, as quais estarão necessariamente em constante aperfeiçoamento. Fala-se, portanto, na dispositividade gradual do princípio contratual da boa-fé objetiva, estritamente relacionada aos chamados ‘deveres anexos’ nos contratos, de acordo com a categoria contratual.227
6.1 Boa-fé Como Elemento de Interpretação dos Contratos
Em se tratando dos Princípios Unidroit (UNIDROIT, 2016), o capítulo 5 contempla oito artigos a respeito da interpretação do contrato, dos quais foi citado o 4.8, no capítulo 6. GAMA JR (2006) afirma que a regra de ouro está no artigo 4.1.228 que determina que o contrato se interpreta segundo a “intenção comum das partes” (UNIDROIT, 2016). Assim, se essa intenção não puder ser estabelecida, o contrato deverá ser interpretado conforme o significado que lhe for atribuído, nas mesmas circunstâncias, por pessoas razoáveis situadas na mesma posição das partes.229
TERASHIMA (2016), fazendo referência à CISG, em sua dissertação de mestrado, informou que o entendimento da boa-fé como regra de interpretação é compreender
227 EROLES, ref. 123, p. 135.
228 ARTICLE 4.1 (Intention des parties) 1) Le contrat s’interprète selon la commune intention des parties. 2) Faute de pouvoir déceler la commune intention des parties, le contrat s’interprète selon le sens que lui donnerait une personne raisonnable de même qualité placée dans la même situation. (UNIDROIT, 2016, p. 17).
229 GAMA JUNIOR, ref. 161, p. 354.
literalmente o que estabelece o artigo 7º230. Nada obstante, segundo aduz o autor, é frequente ouvir-se que não há a obrigação das partes em agir de boa-fé nas relações contratuais regidas pela CISG, já que sua exigência estaria restrita ao âmbito da interpretação de suas disposições e não na conduta das partes. Ele cita, então, um julgado da Câmara do Comércio Internacional - CCI, que numa sentença arbitral envolvendo litigantes da Espanha e da Alemanha (essa vencedora), decidiu-se que a boa-fé prevista no artigo 7º da Convenção é restrita à interpretação e que não devia ser considerada como fonte de direitos e obrigações das partes no que concerne à execução do contrato. Trata-se do ICC Arbitral Award 8611/HV/JK (1997).231
XXXXXXX-XXXXX (2018) esclarece que interpretar é fundamentalmente atribuir sentido ao texto normativo, definindo o seu alcance, mas não se limita a isso, embora esteja no núcleo da atividade hermenêutica. Abrange igualmente “problemas de relevância, de qualificação, de valoração dos fatos e de prova” 232, isto é, envolve aspectos axiológicos e metodológicos.
É uma etapa indispensável ao processo hermenêutico aplicativo, segundo a autora, na medida em que a qualificação assegura a circulação entre o mundo do dever- ser ao mundo do ser. “Pela qualificação, classificamos e colocamos em relação ao que é o fato e o que deve ser o direito do caso, apontando as consequências dessa qualificação”.233 E conclui dizendo que toda interpretação é suscitada pelo problema prático a resolver: “o problema chama a interpretação.”234
XXXXXXX-XXXXX (2018) prossegue afirmando que a boa-fé, em sua função hermenêutico-integrativa, acompanha o desenvolvimento da obrigação durante todo o seu percurso, orientando as partes acerca dos comportamentos que devem ter, a fim de assegurar o cumprimento do ajuste, em atenção ao fim para o qual foi constituído, e da maneira menos gravosa para cada parte.235
230 CISG, ref. 184.
231 TERASHIMA, ref. 179, pp. 91/92.
232 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Saraiva-jur, 2ª edição, 2018, p.485. ISBN 978-85-472-2895-8.
233 XXXXXXX-XXXXX, ref. 232, p. 486.
234 XXXXXXX-XXXXX, ref. 232, p. 486.
235 XXXXXXX-XXXXX, ref. 232, p. 490.
A boa-fé serve, pois, fundamentalmente, “como critério para auxiliar a determinação do significado que a operação contratual revela segundo uma valoração conduzida à luz da conduta conforme a boa-fé.”236
Para XXXXXX (2014)237, a interpretação do contrato compreende a determinação de seu conteúdo, com imposição de obrigações e deveres acessórios. Por meio da interpretação da vontade, é possível integrar o conteúdo do negócio jurídico com outros deveres que não emergem diretamente da declaração. Diz ele que, em muitos casos, é difícil determinar com clareza o que é resultado da aplicação do princípio da boa-fé e o que é conquista da interpretação integradora. A integração do contrato deve ser feita de maneira a não alterar os termos do contrato ou a esfera de risco das partes, bem como a própria interpretação. “Por meio da integração, o árbitro impõe deveres, obrigações e completa o contrato de forma a promover a sua finalidade e preservar seu espírito – não o alterar, afetando a alocação de riscos feita pelas partes.” 238
Completa XXXXXX (2014), dizendo que, neste ponto, os pressupostos estabelecidos para a implicação de termos (implication of a term), conforme o Direito inglês, podem ser adaptados à nova lex mercatoria, como importante ponto de partida para que a tarefa de integração se desenvolva adequadamente, de forma não exagerada ou desmedida.
Por fim, deve-se ter em conta que os contratos internacionais podem apresentar divergências linguísticas, entre as versões de um mesmo contrato ou omissões que devem ser suprimidas. Sobre isso, Xxxx Xxxxxx (2006) diz que o intérprete deve levar em consideração o artigo 4.8 dos Princípios Unidroit (UNIDROIT, 2016), segundo o qual afere-se sobre a intenção da partes, natureza e o objeto do contrato, a boa-fé, e o que for razoável. 239
236 XXXXXXX-XXXXX, ref. 232, p. 490.
237 XXXXXX, ref. 147, p. 157.
238 XXXXXX, ref. 147, p. 158.
239 GAMA JUNIOR, ref. 161, p. 354.
6.2 Boa-fé Como Elemento Controlador do Exercício dos Direitos Contratuais
O contrato, que faz lei entre as partes, deve ser exercido dentro dos ditames da boa-fé, caso contrário, ou seja, no exercício de um direito contratualmente estabelecido, se houver desrespeito à boa-fé, a conduta será tida por civilmente ilícita e ensejadora de responsabilidade civil. Essa é a xxxxx xxxxxxxx xx xxxxxx 000 xx XX xxxxxxxxxx (XXXXXX, 2002).
XXXXXX (2014) cita o caso Xxxxxxxx, no qual o tribunal arbitral fixou que o princípio da boa-fé, que também inspira a nova lex mercatória, “deve presidir a formação e a execução dos contratos.” 240 Na nova lex mercatória, a boa-fé é aplicável a todo o ciclo contratual, incluindo-se o período das tratativas, tido como pré-contratual.
Certo que a função do princípio da boa-fé objetiva exige das partes conduta proba em todas as fases do contrato. No Direito Comparado, segundo expõe TARTUCE (2013), citando o exemplo português, não resta dúvidas sobre a aplicação da boa-fé nas diversas fases pela qual passa o contrato, incluindo-se aí a fase de negociações, ou pré- contratual:
Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx, professor de Coimbra, que: ‘entende-se que, durante as fases anteriores à celebração do contrato – quer dizer, na fase negociatória e na fase decisória
– o comportamento dos contratantes terá de pautar-se pelos cânones da lealdade e da probidade. De modo mais concreto: apontam-se aos negociadores certos deveres recíprocos, como, por exemplo, o de comunicar à outra parte a causa da invalidade do negócio, o de não adotar uma posição de reticência perante o erro em que esta lavre, o de evitar a divergência entre a vontade e a declaração, o de abster de propostas de contratos nulos por impossibilidade do objecto; e, ao lado de tais deveres, ainda em determinados casos, o de contratar ou prosseguir as negociações iniciadas com vista à celebração de um acto jurídico. O reconhecimento da responsabilidade pré-contratual reflecte a preocupação do Direito de proteger a confiança depositada por cada uma dos contratantes nas expectativas legítimas que o outro lhe crie durante as negociações, não só quanto à validade e eficácia do negócio, mas também quanto à sua futura celebração.241
Os Princípios Unidroit (UNIDROIT, 2016) contêm normativo a respeito da questão, no artigo 1.7, citado na seção 5.1, segundo o qual o comportamento das partes, ao longo
240 XXXXXX, ref. 147, p. 159.
241 XXXXX, Xxxxxxx. (1979). Direito das Obrigações. Coimbra: Almedina. In TARTUCE, ref. 75, p. 224.
da vida contratual, incluindo a fase de negociação, deve se conformar à boa-fé e à lealdade negocial. Objetivamente:
a) Fase pré-contratual: trata-se de uma responsabilidade em função da quebra de algum dever anexo durante a fase de negociações preliminares, enfatizando- se a responsabilidade pela ruptura desmotivada das negociações. Por ser uma fase negocial, a situação jurídica é marcada pela discussão, e findada na proposta em sentido técnico - não se confunde com a violação de contrato preliminar, pois esse já se encontra no campo contratual típico.
Nesta fase pode ocorrer o dever de indenizar, mas não uma obrigação de celebrar o contrato, pois isso feriria a liberdade de contratar. Entende-se que, no momento em que surge a confiança na contratação, o motivo para ruptura deve ser justificado. Isso em decorrência do surgimento desta expectativa de contratar, normalmente advinda do progresso das negociações;
b) Fase contratual propriamente dita: os deveres decorrentes da boa-fé objetiva, exigidos na fase pré-contratual são praticamente os mesmos deveres exigidos na fase contratual, só que com maior amplitude. As atitudes que se esperam das partes na fase de celebração do contrato podem ser qualificadas como lealdade ao tratar, clareza e abstenção de qualquer forma de dolo que possa induzir a uma falsa determinação da vontade da parte contrária.
Já a Convenção de Viena não faz menção expressa à necessidade de observância da boa-fé na execução do contrato. Entretanto, é comumente utilizado na interpretação dos contratos. XXXXXXXXX (2016) indica que a interpretação da boa-fé como norma de conduta das partes pode levar o aplicador do direito, o julgador da causa, a condenar aquele que infringe tal princípio ao pagamento de perdas e danos. Sustenta ainda que “existe a interpretação da boa-fé como uma norma inserida na lex mercatoria, esta na qualidade de um sistema autônomo de direito comercial internacional passível de ser aplicado por julgadores como fonte de normas de Direito.”242
242 TERASHIMA, ref. 000, x. 00
Xx Xxxxxx Xxxxx xxxxxxxxxx (XXXXXX, 2002), o art. 422 dispõe que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé”243. Assim, ao se falar em boa-fé na fase contratual, que deve culminar com seu adimplemento, deve-se considerar que as partes não só têm que cumprir o pactuado, como sujeitarem-se aos seus efeitos.
O princípio do pacta sunt servanda encontra-se mitigado pelo princípio da boa-fé objetiva, que impede que o credor exija além do ponto de equilíbrio que o ajuste deve ter, sendo este ponto o resultado das circunstâncias do caso, as particularidades da pessoa, o tempo, o lugar e as modalidades do negócio. A boa-fé transita entre a equidade e o senso de justiça.
c) fase pós-contratual: mesmo quando o contrato tem fim, permanecem os deveres exigidos pela boa-fé objetiva. Na fase pós-contratual, ainda há a possibilidade de se exigir boa-fé dos contratantes, pois os deveres anexos, como os de colaboração, de informação e de segredo, continuam a vigorar.
Um exemplo típico da boa-fé nessa fase é o relativo ao dever de a parte se abster de difundir informações que tenha conhecido por força do contrato e cuja divulgação possa causar prejuízos ao contratante adverso. Esse é um exemplo típico de violação dos deveres anexos de conduta, possibilitando à parte prejudicada reclamar por indenização de danos.
Em conclusão: se a violação dos deveres de conduta ocorrer antes da formação do contrato, configurar-se-á a chamada responsabilidade civil pré-contratual; se ocorrer durante a execução da relação contratual, restará configurada a responsabilidade civil contratual; mas se, após o adimplemento da obrigação, um desses deveres for violado, estar-se-á diante da responsabilidade pós-contratual. Em todas as fases, cabe à parte lesada a reclamação por indenização.
243 BRASIL, ref. 17.
6.3 Boa-fé Como Norma de Conduta (deveres laterais)
Já se disse, ao longo deste trabalho que na relação contratual as partes devem agir com zelo, respeito e probidade, considerando não só o contrato, mas o exercício regular dos direitos nele previstos, observando-se os deveres de agir com retidão, segurança, consideração, informação e, a depender do negócio ajustado, sigilo. Isso resulta em que, aos contratantes, cabe a observação do princípio da boa-fé objetiva, que é a necessidade de se observarem os chamados deveres anexos ao contrato.
Voltando a EROLES (2018), o autor afirma que os deveres de conduta que acompanham as relações contratuais vão ser denominados de deveres anexos, ou deveres instrumentais, ou laterais, ou deveres acessórios de conduta, deveres de conduta, deveres de proteção ou deveres de tutela. Esclarece que “dever” significa “sujeição a uma determinada conduta”244. Esses deveres são nascidos da observação da jurisprudência alemã, ao visualizar que o contrato, por ser fonte imanente de conflitos de interesses, deveria ser guiado e, mais ainda, guiar a atuação dos contraentes conforme o princípio da boa-fé nas relações.
Esses deveres impostos pela boa-fé objetiva não são os centrais ou nucleares dos contratos, mas os anexos, marginais, e que sequer precisam estar redigidos. São obrigações que nascem da justa expectativa que existe nas relações sociais de lidar com pessoas íntegras e probas. Nesse sentido, o autor cita os seguintes deveres245: o de informar, como sendo o mais conhecido de todos os deveres anexos; o dever de cooperação, que seria a colaboração durante a execução do contrato; e o dever de cuidado, que tem por fim preservar o cocontratante moral, física e patrimonialmente.
Assim sendo, tratam-se de deveres que afetam a segurança do contratante, o sigilo que resguarda a intimidade e a vida privada dos contratantes e do cidadão - a depender da forma de contrato -, prevalecendo aí a segurança à informação dos termos contratados, ou seja, clareza a fim de se evitarem interpretações equivocadas das cláusulas contratuais, e a lealdade que os contratantes devem guardar um em relação
244 EROLES, ref. 123, p. 96.
245 EROLES, ref. 123, p. 97.
ao outro. É claro que há diversos desdobramentos a partir dos deveres indicados, tais como os de aviso e esclarecimento, de prestação de contas, de colaboração e cooperação etc..
XXXXXX (2014) esclarece que também na nova lex mercatoria há a criação de deveres acessórios a partir da boa-fé.
Como direito pretoriano, ela é em grande parte formada pela atividade dos árbitros. São os precedentes arbitrais que extraem, evidenciam e enunciam os princípios gerais (e deveres ou regras deles decorrentes) e os usos da nova lex mercatoria, formando pouco a pouco uma jurisprudência arbitral, fonte normativa do ius mercatorium. 246
Também, com relação aos princípios Unidroit (UNIDROIT, 2016), Xxxxxx (2014) diz que o primeiro comentário ao artigo 1.7 (Boa-fé e Lealdade Negocial) esclarece que há “várias disposições ao longo dos diversos Capítulos dos Princípios que constituem uma aplicação direta ou indireta do princípio da boa-fé e lealdade comercial.”247
XXXXXX (2014) conclui dizendo que a criação de deveres acessórios a partir da boa- fé é essencial para a nova lex mercatoria, e que tais deveres contribuem para o desenvolvimento do próprio conteúdo da boa-fé e criação de regras específicas, aumentando a transparência e a previsibilidade da aplicação do referido princípio, inclusive pelos árbitros.
Quanto maior o número de deveres específicos e regras identificadas e quanto mais consolidadas forem, melhor. O modelo ideal da boa-fé para o comércio internacional, parece-nos, é a combinação de um princípio geral (que permite a criação de novas regras e adaptação do sistema) com regras e deveres específicos, que agregam transparência e previsibilidade da nova lex mercatória.248
246 XXXXXX, ref. 147, p. 139.
247 XXXXXX, ref. 147, p. 139.
248 XXXXXX, ref. 147, p. 141.
A presente dissertação dedicou-se à análise da boa-fé objetiva aplicada aos contratos internacionais, desde seu conceito, convenções e princípios aplicáveis, abarcando a estrutura dos contratos, os meios de utilização, as atividades empresariais, e a boa-fé e suas concepções nas atividades empresariais e nas relações contratuais internacionais.
Questões como autonomia da vontade, liberdade contratual e obrigatoriedade dos contratos passaram a conviver com princípios outros, entre eles o da boa-fé objetiva. Confiança razoável, transparência, lealdade, cooperação, diligência, apesar de não conter elementos mais concretos, são também noções abertas contribuindo para o entendimento da boa-fé.
A confiança representa um importante parâmetro para avaliação e operacionalização da boa-fé. Já a lealdade atribui caráter objetivo à boa-fé e tem o sentido de, como a cooperação, preservar o interesse social da outra parte na medida necessária para consecução de finalidade do contrato.
Dessa forma, a tríplice função da boa-fé objetiva - interpretação dos negócios jurídicos, restrição do exercício de direitos subjetivos e criação de deveres anexos à prestação principal - foi, no presente trabalho, objeto de dedicação especial.
No Capítulo 3 do presente estudo, a boa-fé foi conceituada, e abordadas suas vertentes subjetiva e objetiva. Tratou-se, também, da importância fundamental que a boa-fé objetiva possui nas relações obrigacionais, como um conjunto de padrões éticos que devem ser sempre seguidos pelas partes contratantes em todas as fases dessas relações. Seguiu-se abordando a boa-fé codificada, mostrando como, de plano subjetivo, a boa-fé passou ao Direito positivo, de forma a assegurar o desenvolvimento do comércio interno e externo das nações.
No Capítulo 4, antes de se chegar propriamente aos contratos, fez-se uma abordagem sobre as relações obrigacionais, as correntes doutrinárias que as definem, e a questão da boa-fé nessas relações do ponto de vista dos princípios que a estruturam, ou seja, os princípios da probidade, solidariedade e cooperação, e função social,