A Cláusula de Carência em Contratos de Llanos de Saúde como Fundamento para Limitação de Cobertura dos Casos de Emergência
A Cláusula de Carência em Contratos de Llanos de Saúde como Fundamento para Limitação de Cobertura dos Casos de Emergência
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I – INTRODUÇÃO
A saúde, como um direito fundamental indelével, encontra-se pre- vista no rol dos direitos sociais do artigo 6◦ da Constituiçáo Federal Brasi- leira, tratando-se, pois, de cláusula pétrea, por força do artigo 60, f4◦, IV da Carta Magna. Enfatizando a envergadura desse direito que pressupõe a própria vida, no mesmo corpo constitucional assentou-se a saúde como direito de todos e dever do Estado (artigo 196).
Apesar dos contornos éticos da saúde, no Brasil autorizou-se a ex-
ploraçáo econômica de serviço de saúde pela iniciativa privada (art. 197, CRFB), a partir de regulamentaçáo concentrada no Estado.
Tem-se, portanto, que a saúde, na sua acepção de serviço, pode ser caracterizada como pública ou privada.
Nos últimos anos, tem-se visto um aumento significativo do volume de açóes judiciais envolvendo a questáo da saúde, consequência do aumen- to do número de beneficiários dos planos de saúde e da notória insuficiên- cia do sistema público de saúde. Tal fenômeno vem sendo conhecido como “judicializaçáo da saúde".
Confirmando tal tendência, nos últimos meses, em atuação no Plan-
táo Judiciário Noturno da Capital, tenho verificado um grande número de
1 Juíza de Direito Titular da 2a Vara de Miracema.
açóes ajuizadas em face de operadoras de planos de saúde, com pedidos de antecipação de tutela inaudita altera pars. Dentre tais demandas, grande parte se refere a situações de emergência em contrato de assistência hospi- talar, em que a negativa ou limitação de cobertura pela empresa se apoia na cláusula de carência.
II – CARÊNCIA X URGÊNCIA/EMERGÊNCIA
Entende-se por carência o prazo pactuado no contrato de seguro para que o segurado tenha direito à determinada garantia em face de riscos previstos. Em outras palavras, é o “período corrido e ininterrupto, contado a partir da data da vigência do contrato do plano privado de assistência à saúde, durante o qual o consumidor paga as contraprestações pecuni- árias, mas ainda náo tem acesso a determinadas coberturas previstas no
contrato”2 . Decorrido, assim, o prazo de carência e estando em dia com o pagamento dos prêmios, adquire o segurado direito à cobertura contra os riscos contratados. Tem como função, a meu ver, evitar que o consumi- dor se inclua no plano exclusivamente quando necessitar de tratamento, abandonando-o em seguida, o que transformaria o seguro em puro finan- ciamento de despesas médico-hospitalares, desfazendo-se o mutualismo necessário entre os beneficiários saudáveis e doentes.
Os prazos de carência, além de previstos expressamente no contrato, devem seguir os balizamentos e limitações impostos na lei reguladora dos planos de saúde – Lei n◦ 9656/98.
Os prazos máximos de carência estáo previstos no inciso V do artigo
12 da lei citada. São eles:
I – Prazo máximo de 300 dias para partos a termo; II – Prazo máximo de 180 dias para os demais casos;
2 Gregori. Xxxxx Xxxxxx, Llanos de Saúde: A Ótica da Lroteçáo do Consumidor. 2a Ed.- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 224.
III – Prazo máximo de 24 horas para a cobertura dos casos de
urgência e emergência.
De acordo com o artigo 35-C da mesma lei:
É obrigatória a cobertura do atendimento em casos:
I - de emergência, como tal definidos os que implicarem risco imediato de vida ou de lesóes irreparáveis para o paciente, caracterizado em declaraçáo do médico assistente;
II - de urgência, assim entendidos os resultantes de acidentes
pessoais ou de complicações no processo gestacional.
Como se vê, a lei traça diferença marcante entre os conceitos de ur- gência e emergência, embora diversas decisões não raro os confundam.
Vale trazer o conceito de acidente pessoal, segundo a Agência Na-
cional de Saúde:
Acidentes pessoais sáo eventos ocorridos em data específica, provocados por agentes externos ao corpo humano, súbitos e involuntários e causadores de lesóes físicas náo decorrentes de problemas de saúde, como por exemplo, acidentes de carro,
queda e inalação de gases. 3
De qualquer forma, em ambos os casos, o tratamento legal é o mes- mo: ainda que o consumidor esteja em período de carência, a cobertura é total e ilimitada, até que cesse o estado de urgência ou emergência.
No que tange às situaçóes de urgência, na prática as operadoras náo vêm oferecendo significativa resistência à eventual internação ou cirurgia. O problema surge, porém, quando se está diante de situaçóes de emer- gência e por isso é em torno destes casos que pretendo aprofundar este trabalho.
3 “Carência, doenças e lesóes preexistentes, urgência e emergência: prazos de carência, cheque-cauçáo, preenchi- mento da declaração de saúde.” 3. ed., Rio de Janeiro: ANS, 2005, p. 22.
Estando o consumidor, portanto, em período de carência e ocorrendo uma situação de emergência (por exemplo, um infarto), tenho constatado que os planos de saúde vêm adotando duas posturas: a primeira é a negativa de cobertura, normalmente por discordar da declaraçáo do médico assistente de que se trata de caso de emergência ou por entender que a doença é pree- xistente à contrataçáo; a segunda é a limitaçáo da cobertura em 12 horas.
III - DA LIMITAÇÃO DA COBERTURA EM DOZE HORAS
É bem verdade que a limitação de internação em 12 horas nos casos de emergência em planos com cobertura hospitalar está baseada na Reso- luçáo do Conselho de Saúde Suplementar – CONSU – n◦ 13/1998, art. 3◦, f1◦ c/c Art. 2◦, abaixo transcritos:
Art. 2° O plano ambulatorial deverá garantir cobertura de ur- gência e emergência, limitada até as primeiras 12 (doze) horas do atendimento.
Parágrafo único. Quando necessária, para a continuidade do atendimento de urgência e emergência, a realização de procedi- mentos exclusivos da cobertura hospitalar, ainda que na mesma unidade prestadora de serviços e em tempo menor que 12 (doze) horas, a cobertura cessará, sendo que a responsabilidade financei- ra, a partir da necessidade de internação, passará a ser do contra- tante, não cabendo ônus à operadora.
Art. 3° Os contratos de plano hospitalar devem oferecer cobertura aos atendimentos de urgência e emergência que evoluírem para internação, desde a admissão do paciente até a sua alta ou que sejam necessários à preservação da vida, órgãos e funções.
§1º. No plano ou seguro do segmento hospitalar, quando o aten- dimento de emergência for efetuado no decorrer dos períodos de carência, este deverá abranger cobertura igualmente àquela fixa- da para o plano ou seguro do segmento ambulatorial, não garan- tindo, portanto, cobertura para internação.
Analisando tais artigos em conjunto, verifica-se que o f1◦ do art. 3◦, ao tratar do atendimento de emergência (náo menciona urgência), ocorrido no período de carência em planos com cobertura hospitalar (náo somente ambulatorial), afirma que a cobertura será igual à fixada para o plano do segmento ambulatorial, este por sua vez previsto no art. 2◦ da mesma resolução.
Consultando, entáo, o art. 2◦, vê-se a regra de que a cobertura estará
limitada às primeiras 12 horas de atendimento.
Vale ressaltar que o art. 3◦, f1◦ náo trata das situaçóes de urgência, sendo, nesses casos, segundo a própria resoluçáo, a cobertura ilimitada, daí porque náo se encontra grandes problemas na prática.
í claro que a limitaçáo de cobertura por si só já pressupóe o reco- nhecimento por parte da operadora de que o caso é de emergência, pois, do contrário, haveria a negativa de atendimento em razáo da carência.
Pois bem: a questáo aqui demanda necessariamente a análise da va- lidade da Resoluçáo n◦ 13/98 da CONSU, em seus artigos 3◦,f1◦ c/c 2◦, que, como dito acima, limitam o atendimento de emergência em 12 horas.
O texto constitucional brasileiro, em seu art. 5◦, II, expressamente
estatui que “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei.”
O princípio da legalidade estampado na norma constitucional in- voca a ideia de supremacia da lei, dentro da estrutura hierarquizada do ordenamento jurídico, situando-a num patamar imediatamente inferior ao da Constituiçáo, que figura no ápice do sistema normativo, e superior a todos os demais atos do Estado, particularmente aqueles produzidos pelo Poder Executivo, como regulamentos e atos administrativos.
Nesse sentido, em razáo do princípio da legalidade, as normas in- fralegais, meramente regulamentares, não podem incluir no ordenamento jurídico regra geradora de direito ou obrigaçáo novos e jamais podem con- trariar a lei ou ditar restrições a ela, ainda que a pretexto de esclarecê-la.
No caso em análise, a Resoluçáo n◦13/98 do CONSU, ao limitar o atendimento em 12 horas durante o período de carência, restringe fla-
grantemente o conteúdo do art. 35-C, I da Lei n◦ 9656/98, que prevê a cobertura total, sem qualquer limitaçáo temporal, sempre que o médico assistente atestar que o caso é de emergência.
Como se vê, para a lei, basta que o médico assistente declare que o paciente sofre risco imediato de vida ou de lesóes irreparáveis para a cober- tura integral ser devida. É, portanto, ilegal a limitação do atendimento em 12 horas e, por consequência, inválida a resoluçáo neste ponto.
Não se poderia nem argumentar que as 12 horas arbitradas pela resolução seriam suficientes para retirar o paciente da situação de emergên- cia, pois sabe-se que isso dependerá do caso concreto, havendo hipóteses em que o estado do paciente pode até ser agravado após as primeiras 12 horas, quando entáo haverá necessidade de continuidade do atendimento. Daí porque somente o médico, de acordo com cada caso, pode dizer se há risco imediato de vida ou de lesóes irreparáveis.
Logo, como regra, tendo o consumidor contratado o plano há mais de 24 horas e a situaçáo sendo de emergência - assim declarada pelo médi- co assistente - será obrigatória a cobertura, sem limitaçóes de tempo.
Assim vem julgando nosso egrégio Tribunal de Justiça, como se vê no acórdão, in verbis:
Apelação cível. Obrigação de fazer. Custeio de cobertura médica de emergência. Plano de saúde. Período de carência. Risco de vida. Internação necessária. Art. 12, V, “c”c/c art. 35-C, I, am- bos da Lei nº 9.656/98. Tratamento isonômico para situações de urgência e emergência. Resolução que extrapola os limites da lei. Quantum indenizatório razoavelmente fixado. Acerto da senten- ça. Recurso manifestamente improcedente e contrário à jurispru- dência deste Tribunal, a que se nega seguimento na forma do art. 557, caput, do CPC.4
4 Processo n ◦ 0039467-63.2009.8.19.0002 – APELACÁO; 1a Ementa; DES. wAGNER CINELLI - Julgamen- to: 09/11/2011 - SEXTA CÂMARA CÍVEL
O Superior Tribunal de Justiça, da mesma forma, vem declarando
nula a cláusula de carência em situaçóes de urgência ou emergência.
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRU- MENTO - NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIO- NAL - INEXISTÊNCIA - PLANO DE SAÚDE - CARÊN- CIA -TRATAMENTO DE URGÊNCIA - COBERTURA DEVIDA - ACÓRDÃO RECORRIDO EM HARMONIA COM O ENTENDIMENTO DESTA CORTE - AGRAVO IMPROVIDO.5
CIVIL E PROCESSUAL. ACÓRDÃO ESTADUAL. NU- LIDADE NÃO CONFIGURADA. PLANO DE SAÚDE. CARÊNCIA. TRATAMENTO DE URGÊNCIA. RECUSA.
ABUSIVIDADE. CDC, ART. 51, I. I. Não há nulidade do acórdão estadual que traz razões essenciais ao deslinde da con- trovérsia, apenas por conter conclusão adversa ao interesse dos autores. II. Irrelevante a argumentação do especial acerca da na- tureza jurídica da instituição-ré, se esta circunstância não cons- tituiu fundamento da decisão. III. Lídima a cláusula de carência estabelecida em contrato voluntariamente aceito por aquele que ingressa em plano de saúde, merecendo temperamento, todavia, a sua aplicação quando se revela circunstância excepcional, cons- tituída por necessidade de tratamento de urgência decorrente de doença grave que, se não combatida a tempo, tornará inócuo o fim maior do pacto celebrado, qual seja, o de assegurar eficiente amparo à saúde e à vida. IV. Recurso especial conhecido em parte e provido.6
5 AgRg no Ag 1322204/PA, Relator o Ministro MASSAMI UYEDA, DJe de 20.10.2010
6 REsp 466667/SP, RECURSO ESPECIAL, Relator o Ministro XXXXX XXXXXXXXXX XXXXXX, DJ de
17.12.2007
IV – CONCLUSÃO
O diminuto esboço dessa problemática inserta no complexo emara- nhado de situaçóes jurídicas relativas à saúde privada que diuturnamente batem às portas da justiça mostra a necessidade do tema ser sumulado por nosso tribunal, em vista da grande quantidade de ações iguais versando exatamente sobre essa questão.
De qualquer sorte, aguarda-se a urgente revogação por parte do Conselho de Saúde Suplementar da regra limitativa de direitos por ele editada, já que flagrantemente ilegal.
Muito embora até se compreenda preocupaçóes do setor de saúde suplementar com a seleçáo adversa (pessoas que já contratam o seguro saú- de doentes) e declaraçóes médicas viciadas, o fato é que tais problemas de- vem ser combatidos de outras formas licitamente previstas, e não impondo aos seus consumidores limitaçóes abusivas aos seus direitos legítimos.
Talvez valesse aqui uma bem-vinda intervenção da Agência Regulado- ra do setor – ANS –, a fim de guiar as empresas ao cumprimento da lei.
Há de se levar em conta, afinal, que “o serviço que se opera neste
mercado afeta um bem constitucionalmente indisponível: a vida, a qual só
pode caminhar pelos trilhos da saúde.”7 ◆
V- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Llanos de Saúde: A Ótica da Lroteçáo do
Consumidor. 2a Ed.- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Curso de Direito Administrativo – 16a Ed. – São Paulo: Editora Malheiros, 2003.
XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx. Judicialixaçáo da Saúde - Rio de Janeiro: Edi- tora Lumen Juris, 2010.
7 Planos de Sáude. cit., p. 214.
MENICUCCI, Telma Xxxxx Xxxxxxxxx. Lúblico e Lrivado na LolÓtica de Assistȇncia à Saúde no Brasil: atores, processos e trajetórias – 1a reimpressão - Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011.