O contrato de trabalho do praticante desportivo
O contrato de trabalho do praticante desportivo
O impacto do novo coronavírus na duração do vínculo e retribuição do praticante desportivo
17 de julho de 2020
Sumário:
O fenómeno desportivo, com particular realce para o desporto profissional, maxime relação jurídico-laboral do praticante desportivo, patenteia especiais e complexas especificidades assentes no eixo da natureza obrigacional e laboral da relação existente entre o atleta e a sua entidade empregadora.
Em Portugal, as relações laborais desportivas são especialmente reguladas e estruturadas pelo novo diploma legal que regimenta o contrato de trabalho desportivo, na linha da matriz desenhada pela Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto, nos termos da qual o regime jurídico contratual dos praticantes desportivos profissionais é definido na lei, “ouvidas as entidades representativas dos interessados, tendo em conta a sua especificidade em relação ao regime geral do contrato de trabalho.”
O impacto da Covid-19 na área do desporto conduziu à adoção de medidas de caráter excecional e temporário que visam responder aos constrangimentos provocados, designadamente no âmbito das federações desportivas, bem como das ligas profissionais e dos praticantes desportivos.
Palavras-chave: MGRA. Direito Desportivo. Direito do Trabalho. Contrato de Trabalho Desportivo. Praticante Desportivo. Vínculo Laboral. Retribuição. Covid-19. FIFA.
1. Introdução
O desporto desempenha um papel fundamental em qualquer sociedade. A popularização da cultura da atividade física brotou na segunda metade do séc. XIX, mas é em pleno séc. XX que granjeia um efeito de massas, e uma dimensão social e económica decisiva para o profissionalismo desportivo.
A ideia de desporto amador, vocacionado para o bem-estar e lazer, sem a menor intenção lucrativa, é ultrapassada à medida que o desporto no mundo se mercantiliza, e se torna numa verdadeira indústria do desporto.
Portugal acompanhou esta transição, e foi criado um regime jurídico contratual para os praticantes desportivos que espelhava a sua especificidade em relação ao regime laboral comum.
As matérias consagradas em diploma legal especial foram alvo de alterações atenta a necessidade do legislador em dar resposta à complexidade atual das relações laborais dos praticantes desportivos, com repercussões ao nível legislativo, regulamentar e organizativo, e mesmo no âmbito da pandemia de COVID-19.
2. Enquadramento – resenha histórica
O aumento significativo de conflitos de interesse suscitados pela crescente complexidade que o fenómeno desportivo revelou, maxime o desporto profissional, orientado para o rendimento, reclamava uma intervenção legislativa em ordem a harmonizar os particulares aspetos da relação jurídica laboral dos praticantes desportivos.
Esta intervenção que o nosso ordenamento jurídico aclamava encontra sustento nas especificidades que a actividade desportiva comporta, e a que o regime geral do contrato de trabalho não acompanha, nem se mostra apto a dar resposta.
O caminho para a afirmação do desporto profissional desde cedo se revelou emaranhado1, sendo que a construção da figura do praticante desportivo assalariado, tal como a conhecemos hoje, nem sempre foi pacífica.
Com efeito, a Lei de Bases do Sistema Desportivo2,3, preceitua que o regime jurídico contratual dos praticantes desportivos profissionais seria definido por diploma legal próprio, razão pela qual, por ordem a colmatar esta lacuna, foi publicado o Decreto-Lei nº 305/95 de 18 de novembro4, que estabeleceu o Regime Jurídico do Contrato de Trabalho do Praticante Desportivo e do Contrato de Formação Desportiva.
Posteriormente, e com a crescente complexidade que o fenómeno desportivo vinha a revelar, e na linha das transformações ocorridas no quadro jurisprudencial comunitário, foi publicada a Lei nº 28/98, de 26 de junho5.
1 Lei nº 2104, de 30 de maio de 1960. Pela primeira vez, o legislador admitiu expressamente o profissionalismo desportivo.
2 Artigo 14º, nº 4 da Lei nº 1/90, de 13 de janeiro (LBSD), aprovada no âmbito de autorização legislativa da Assembleia da República, por força da Lei nº 85/95, de 31 de agosto.
3 A LBSD foi revogada pela Lei de Bases do Desporto (LBD) aprovada pela Lei n.º 30/2004, de 21 de Julho. Actualmente, encontra-se em vigor a Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto (LBAFD), aprovada pela Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro, que revogou a LBD.
4 No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 85/95, de 31 de Agosto, no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 1/90, de 13 de Janeiro, e nos termos das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição.
5 Estabelece um novo regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo e do contrato de formação desportiva e revoga o Decreto-Lei n.º 305/95, de 18 de Novembro. Na grande maioria das suas normas limitou-se a reproduzir as soluções constantes do seu predecessor, pelo que, relativamente a este, as alterações introduzidas em 1998 foram poucas, conquanto de grande significado.
Recentemente, na esteira deste diploma legal6, foi publicado o Novo Regime Jurídico do Contrato de Trabalho Desportivo, do Contrato de Formação Desportiva e da Atividade de Empresário Desportivo7, que no essencial, além de introduzir importantes alterações ao regime especial do trabalho desportivo, cumpre com o plasmado no nº2 do artigo 34º da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto8.
3. O regime jurídico do contrato de trabalho desportivo – aspetos gerais
No ordenamento jurídico português, a noção de praticante desportivo profissional oferece algumas reservas, desde logo pela sua concepção lata: “o estatuto do praticante desportivo é definido de acordo com o fim dominante da sua atividade, entendendo-se como profissionais aqueles que exercem a atividade desportiva como profissão exclusiva ou principal.”9
Em bom rigor, para efeitos do disposto na legislação laboral, o que releva considerar para qualificar um praticante desportivo como profissional é o exercício da sua atividade munido de um contrato de trabalho, id est, mediante retribuição e em regime de subordinação jurídica.
O praticante desportivo estabelece, pois, com a sua entidade empregadora (clube/sociedade desportiva) uma relação de tipo obrigacional, assente num genuíno contrato de trabalho, em que modalidades como a duração do vínculo laboral assume particular evidência pelas especificidades próprias em relação ao regime geral do contrato de trabalho.
Com efeito, as partes propendem, não raro, a qualificarem de forma errónea o contrato de trabalho desportivo como um contrato de prestação de serviços, uma asserção que tem conduzido os Tribunais a corrigir o nomen iuris adotado pelas partes10.
Este novo Regime Jurídico do Contrato de Trabalho Desportivo, do Contrato de Formação Desportiva e da Atividade de Empresário Desportivo procedeu a consideráveis alterações ao regime especial do trabalho desportivo, em matéria de formação e cessação do contrato de trabalho do praticante desportivo, ao regime jurídico do contrato de formação desportiva, e
6 A Lei n.º 28/98 teve como antecedente a Proposta de Lei n.º 96/VII apresentada pelo Governo à Assembleia da República, em Maio de 1997. Sobre esta Proposta de Lei recaiu o relatório e parecer da Comissão de Educação, Ciência e Cultura, em particular a seguinte passagem “No âmbito das disposições gerais não constatamos diferenças assinaláveis na perspectiva formal entre a proposta de lei e o Decreto-
-Lei n.º 305/95, de 18 de Novembro (...)”.
7 Lei que entrou em vigor no dia 19 de julho de 2017,e veio estabelecer o regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo, do contrato de formação desportiva e do contrato de representação ou intermediação, que revogou a Lei nº 28/98, de 26 de junho, cuja vigência permaneceu inalterável quase duas décadas.
8 Lei nº 5/2007, de 16 de janeiro, consagra que “O regime jurídico contratual dos praticantes desportivos profissionais e do contrato de fomação desportiva é definido na lei (…) tendo em conta a sua especificidade em relação ao regime geral do contrato de trabalho”.
9 Artigo 34º, nº 1 da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto.
10 Vd. Acórdão do STJ, de 15/09/2010, disponível em xxx.xxxx.xx.
procedeu à autonomização de um regime jurídico do contrato de representação ou dos empresários desportivos.
Em matéria de formação do Contrato de Trabalho, destacamos; i) a fixação de um novo limite máximo do período de duração do contrato de trabalho desportivo11; ii) o reconhecimento expresso dapossibilidade de exploração comercial, pelo praticante desportivo, da sua imagem pública associada à prática desportiva (…)12; iii) a fixação da data de vencimento da retribuição do praticante desportivo no 5.º dia do mês subsequente ao da prestação do trabalho13; e, ainda,
iv) em caso de cedência temporária de praticantes desportivos, é estabelecida uma responsabilidade solidária do empregador cedente e do cessionário pelo pagamento das retribuições devidas ao praticante desportivo que se vençam durante o período da cedência.14
Em matéria de cessação do Contrato de Trabalho do Praticante Desportivo, sublinhamos a i) autonomização da denúncia contratual durante a vigência do período experimental como forma de extinção do contrato de trabalho desportivo15 e a ii) eliminação da previsão do direito à reintegração do praticante desportivo em caso de despedimento ilícito.
No que alude ao regime jurídico do contrato de formação desportiva, impõe frisar que i) o prazo máximo de duração do contrato é reduzido para 3 (três) épocas desportivas16 e ii) é eliminada a regulação pela lei do contrato-promessa de trabalho desportivo.
Por fim, a autonomização do regime jurídicdo do contrato de representação vem consagrar exigências formais, funcionais e de cariz remuneratório no âmbito da relação contratual estabelecida entre intermediário e praticante desportivo, com especial enfoque para a clarificação da sua natureza jurídica.
4. Implicações do novo coronavírus COVID-19
4.1. Duração do vínculo
11 Artigo 9º, nº 1estipula que “O contrato de trabalho desportivo não pode ter duração inferior a uma época desportiva nem superior a cinco épocas”.
12 Artigo 14º, nº 1 consagra que: “Todo o praticante desportivo tem direito a utilizar a sua imagem pública ligada à prática desportiva e a opor-se a que outrem a use para exploração comercial ou para outros fins económicos, sem prejuízo da possibilidade de transmissão contratual da respetiva exploração comercial.” 13 Artigo 15º, nº 3 e 4 alude: “3 - A retribuição vence-se mensalmente, até ao quinto dia do mês subsequente ao da prestação de trabalho, devendo estar à disposição do praticante desportivo na data do vencimento ou no dia útil anterior. 4 - As partes no contrato de trabalho desportivo podem decidir fracionar o pagamento das retribuições dos meses de junho e julho e dos subsídios de Natal e de férias, em número nunca inferior a 10 prestações, de montante igual, pagas com a retribuição dos restantes meses.”
14 Artigo 20º, nº 3 preceitua que “Cedente e cessionário são solidariamente responsáveis pelo pagamento das retribuições do praticante desportivo que se vencerem (…)”
15 Artigo 23º, nº 1,al. g): “Denúncia por iniciativa do praticante desportivo, quando contratualmente
convencionada, nos termos do artigo 25.
16 Artigo 30º, nº 1 do citado diploma legal.
O nosso ordemento jurídico-laboral consagra o contrato de trabalho comum como um contrato de duração indeterminada17, gerador de uma relação laboral estável para o trabalhador, sob a égide do princípio da estabilidade no emprego18.
Porém, em sede de contrato de trabalho desportivo, o cenário é vincadamente distinto, na medida em que este tipo de contrato é configurado como um contrato a termo19.
Na génese desta formulação radica a própria natureza da profissão, de desgaste rápido, cujas aptidões físicas e atléticas coincidem com o ciclo de juventude do ser humano, traduzindo-se numa atividade efémera, de curta duração e sujeita às particulares exigências da alta competição.
Mas a justificação de conceber o contrato de trabalho desportivo como um contrato a termo enraíza na sua função estabilizadora, pois proporciona ao empregador a vinculação do praticante durante um certo período de tempo, que se traduz numa obrigação deste de cumprir o contrato por todo o tempo acordado, sob a égide do pricípio pacta sunt servanda20.
Com efeito, o legislador consagrou um prazo máximo de 5 épocas desportivas para a duração do contrato de trabalho desportivo, uma alteração que se impunha21, e que fixa em moldes razoáveis o horizonte temporal de vinculação contratual do praticante desportivo.
Conhece estribo direto na lei22, nos termos da qual “entende-se por época desportiva o período de tempo, nunca superior a 12 meses, durante o qual decorre a atividade desportiva, a fixar para cada modalidade pela respetiva federação dotada de utilidade pública desportiva”.
Neste sentido, cumpre elucidar que as ligas profissionais (Liga Portugal) são associações de direito privado sem fins lucrativos, que exercem, por delegação da respetiva federação23, competências relativas às competições de natureza profissional24.
17 Xxxx Xxxx Xxxxx, Vinculação versus Liberdade [O Processo de Constituição e Extinção da Relação Laboral do Praticante Desportivo], Coimbra Editora, 2002, que “O modelo do contrato laboral comum assenta na regra da contratação por tempo indeterminado, nos termos do artigo 129.º do CT, que é desajustado para a actividade laboral desportiva, onde, atendendo à sua essência e carácter temporário, a regra é a da contratação a termo (…) “é mesmo a única categoria contratual admitida na relação laboral do praticante desportivo.”
18 Garantia constitucional ínsita no artigo 53º da Constituição da República Portuguesa.
19 Vd. Xxxxxxx do S.T.J. de 7 de Março de 2007, processo n.º 06S1541, disponível em xxx.xxxx.xx.
20 “O princípio pacta sunt servanda, entendido no sentido de que os contratos livremente firmados existem para serem cumpridos, obrigando as partes nos precisos limites da lei, integra o conceito de ordem pública internacional do Estado português”, in Acórdão do TRL de 13/07/2018.
21 O DL nº 305/95 fixou-o em 4 épocas desportivas, ao passo que a Lei nº 28/98, à boleia do Acórdão Bosman, alterou este limite para 8 épocas desportivas.
22 Artigo 9º, nº 6 da Lei nº 54/2017, de 14 de julho.
23 Federação Portuguesa de Futebol.
24 cf. artigos 22.º da Lei 5/2007 e 27.º do Decreto Lei 248-B/2008, na redação dada pelo Decreto Lei 93/2014, de 23 de junho);
Assim, dispõe o Regulamento das Competições da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (Liga Portugal)25 no artigo 4º, nº 1 ibidem que “A época desportiva das competições organizadas pela Liga Portugal tem início em 1 de julho e termina em 30 de junho do ano seguinte.”26
Sucede que, no seguimento da situação excecional que se vive propiciada pela pandemia da doença Covid-19, foram tomadas medidas extraordinárias com implicações na duração da época desportiva27.
Neste sentido, a Federação Portuguesa de Futebol2829,na esteira da salvaguarda da integridade das competições30, e em observância pelo princípio da estabilidade competitiva e do mérito desportivo31, deliberou no sentido de alterar o Comunicado número 1 da FPF32 no que alude ao termo da época desportiva, tendo fixado o seu término no dia seguinte ao último jogo oficial das competições desportivas da época 2019/20.
Ainda no âmbito da duração dos contrato e vínculos dos praticantes desportivos, foi outorgado em 04/05/2020 um Memorando de entendimento33 entre a Federação Portuguesa de Futebol, a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol e a Associação Nacional de Treinadores de Futebol.
Em linhas gerais, o aludido Memorando definiu, entre outros, que “o termo da época desportiva 2019/2020 ocorre no dia seguinte ao último jogo oficial das competições desta época”, e que “Os contratos de trabalho desportivo ou de formação desportiva, celebrados entre clubes participantes da Liga NOS e treinadores e jogadores, e respetivos vínculos desportivos cujo termo ocorra na época desportiva em curso, tal como definida regulamentarmente, consideram-se automaticamente prorrogados até termo da época tal como definido no número anterior.”
25 Com as alterações aprovadas nas Assembleias Gerais Extraordinárias de 27 de junho de 2011, 14 de dezembro de 2011, 21 de maio de 2012, 28 de junho de 2012, 27 de junho de 2013, 20 de junho de 2014, 19 e 29 de junho de 2015, 21 de outubro de 2015, 15 de março de 2016, 28 de junho de 2016, 07 de fevereiro de 2017, 12 de junho de 2017, 29 de dezembro de 2017, 27 de fevereiro de 2018, 27 abril de 2018, 25 de maio de 2018, 29 de junho de 2018, 22 de maio de 2019 e 08 de junho de 2020).
26 Adotado ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico das Federações Desportivas, aprovado pelo Decreto-lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro, nos termos do artigo 1º do Regulamento das Competições da Liga Portugal.
27 Exceção a que alude o nº 2 do artigo 4º do Regulamento das Competições da Liga Portugal.
28 As federações desportivas são associações de direito privado sem fins lucrativos, a que, através da atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva, são conferidos poderes de natureza pública (cf. artigos 14.º e 19.º da Lei 5/2007, de 16 de janeiro - Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto -, e artigos 10.º e 14.º do Decreto Lei 248-B/2008, de 31 de dezembro);
29 Autorização legislativa por força da Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, que declara a situação de calamidade em Portugal, no âmbito da pandemia da doença COVID-19.
30 Liga NOS e Final da Taça de Portugal 2019/2020.
31 Princípios elencados nas diretivas Regulamentares da FIFA publicada através da Circular nº 1714 e nas linhas orientadoras emitidas pela UEFA quanto à aplicação dos princípios de elegibilidade para as Competições de Clubes da UEFA 2020/21 – COVID 19.
32 Aprovado na reunião do Comité de Emergência da Federação Portuguesa de Futebol, de 28 de junho de 2019, de acordo com o disposto no artigo 10.º e nas alíneas a) e c) do número 2 do artigo 41.º, do Decreto-Lei n.º 248- B/2008, de 31 de dezembro, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 93/2014, de 23 de junho, e artigos 51, número 2, alíneas a) e b) e 53º dos Estatutos da FPF, para vigorar na época desportiva 2019/2020, com início a 1 de julho de 2019 e termo a 30 de junho de 2020
33 Disponível em xxxxx://xxx.xxx.xx/Xxxx/Xxxxx-xx-xxx%X0%XXxxxx/Xxx%X0%XXxxx/xxxx/00000.
4.2. Retribuição
A situação de calamidade drecretada em Portugal no âmbito da pandemia da doença COVID- 19, afetou gravemente a atividade normal das empresas em geral, e dos clubes/sociedades desportivas em particular.
Neste sentido, milhares de empresas e algumas sociedades desportivas aderiram ao regime de layoff simplificado34 que se traduziu na suspensão dos contratos de trabalho por iniciativa da entidade empregadora, ou na redução temporária dos períodos normais de trabalho.
Sucede que, na decorrência da suspensão das competições profisionais, as entidades empregadoras (clube/sociedade desportiva) que não reuniam as condições exigidas por lei para aderir ao regime de layoff simplificado definido nos termos do Decreto-Lei n.º 10-G/2020, de 26 de Março35, encontraram na redução da retribuição do praticante desportivo uma solução de recurso.
Porém, a admissibilidade desta prática suscita fundadas reservas, desde logo porque a retribuição do praticante desportivo, o quantum retribuitivo é negociado entre este e a entidade empregadora36, em estrito cumprimento das normas imperativas jurídico-laborais, e quando aplicável, ao ajustado em sede de contratação coletiva37, designadamente no que alude à remuneração mínima.
Decorre da legislação laboral comum38 a proibição de qualquer empregador diminuir a retribuição do trabalhador, à luz do princípio da irredutibilidade39, embora admita algumas excepções que não têm aplicação no âmbito das relações laborais desportivas.
Porém, se atendermos ao disposto na Lei n.º 54/2017 de 14 de Julho40, o legislador consagra uma excepção àquele princípio, segundo a qual apenas é admissível a diminuição da retribuição em
34 A entidade empregadora teria de demonstrar, entre outros, que houve uma “quebra abrupta e acentuada de, pelo menos, 40% da faturação no período de 30 dias anterior ao do pedido junto da Segurança Social”.
35 Estabelece uma medida excecional e temporária de proteção dos postos de trabalho, no âmbito da pandemia COVID-19.
36 Sociedade anónima desportiva, sociedade desportiva unipessoal por quotas, ou clube (Associação).
37 Artigos 31º e seguintes do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol. convenção colectiva de trabalho publicada no BTE, 1.ª Série, n.º 33, de 8 de Setembro de 1999.
38 Artigo 129.º, n.º 1, alínea d) do Código do Trabalho.
39 “O princípio da irredutibilidade da retribuição apenas se aplica à retribuição considerada em sentido estrito, ou seja, não abrange todas as componentes da retribuição, excluindo-se as parcelas da retribuição habitualmente designadas de complementares ou acessórias, relacionadas com um maior esforço, risco ou penosidade do trabalho (subsídio de risco; subsídio de compensação por penosidade do trabalho), com situações de desempenho específicas (isenção de horário de trabalho), ou situações de maior trabalho (trabalho prestado para além do período normal de trabalho”, in Ac. do TRC, de 06/12/2019.
40 Artigo 15º, nº 2 ibidem.
caso de descida de escalão competitivo em que esteja integrada a entidade empregadora desportiva.
Adicionalmente, o Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre a Liga Portugal e o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF)41 também consagra a regra geral de que o praticante desportivo mantém os seus direitos, deveres e garantias em caso de suspensão da prestação do trabalho por facto que não lhe seja imputável.
4.3. Questões regulatórias da FIFA
A indústria do desporto sofreu um impacto sem precedentes devido à pandemia da doença COVID-19, cujos efeitos tiveram repercussões relativamente ao normal funcionamento e organização das federações desportivas, ligas profissionais e associações nacionais, designadamente a suspensação dos campenatos e competições de futebol em todo o mundo.
Na qualidade de organismo que rege o futebol mundial, a FIFA considera que não tem competência para dar indicações específicas quanto às várias questões suscitadas pela pandemia42, pelo que cabe a cada um dos seus membros, em observância do estipulado pelas autoridades públicas de saúde decidir em conformidade.
No entanto, a FIFA reconhece a responsabilidade de recomendar às associações nacionais princípios orientadiores, diretrizes e linhas de atuação em certas matérias, em ordem a amenizar as consequências dos efeitos propiciados pela COVID-19, assegurando, deste modo, uma resposta harmonizada e em consonância com os interesses daquelas.
Assim, o Conselho da FIFA (Bureau) reuniu no passado dia 18/03/2020 um grupo de trabalho43 para discutir possíveis alterações ao Regulations on the Status and Transfer of Players (RSTP)44, e indicou 3 matérias que reclamam uma rápida intervenção:
i. Acordos cujo vencimento ocorre no final da época desportiva em curso e novos acordos (já assinados e cuja vigência se inicia na próxima época desportiva);
ii. Acordos frustrados/incumpridos em consequência da COVID-19;
iii. Perídos adequados para os períodos de registo de jogadores (“Transfer windows”).
41 O artigo 14º, alínea c) proibe à entidade patronal “Diminuir a retribuição, salvo nos casos previstos na lei do trabalho ou desta convenção”.
42 V.g. Reinício das competições desportivas em cada país.
43 Vd. Circular nº 1714, de 07.04.2020 da FIFA, disponível em xxxxx://xxxxxxxxx.xxxx.xxx/xxxxx/xxxxxx/0000- covid-19-football-regulatory-issues.pdf?cloudid=x9q8h6zvyq8xjtfzmpy9.
44 Regulamento disponível em xxxxx://xxxxxxxxx.xxxx.xxx/xxxxx/xxxxxx/xxxxxxxxxxx-xx-xxx-xxxxxx-xxx- transfer-of-players-march-2020.pdf?cloudid=pljykaliyao8b1hv3mnp.
Este Conselho decidiu, à luz do art.º 27 do RSTP45 que a situação propiciada pela COVID-19 deve ser considerada como “força maior”, o que consente na suspensão temporária da aplicação do supradito Regulamento para proteger clubes e jogadores relativamente às situações contratuais.
Nesse ensejo, o Conselho aclarou um conjunto de princípios orientadores, dos quais destacamos a matéria referente à vigencia dos contratos de trabalho dos praticantes desportivos, e os novos acordos celebrados entre estes e as entidades empregadoras.
Com efeito, os contratos de trabalho dos praticantes desportivos e os acordos de transferência no futebol são geralmente efetuados nos períodos de registo46, definidos por cada uma das associações filiadas na FIFA para vigorar em cada território de jurisdição.
No âmbito desportivo, a abertura do primeiro período de registo coincide, geralmente, com o primeiro dia da nova época desportiva47.
Tendo presente que o artigo 6.º n.º 1 do RSTP determina que os jogadores só podem ser inscritos durante um dos dois períodos de inscrição anuais fixados pela respectiva federação, o adiamento ou suspensão dos campeonatos e/ou ligas profissionais, que entretanto foram retomados, apenas serão concluídos depois da data do término da época desportiva.
Em consequência, sublinha-se as implicações suscitadas na duração dos contratos de trabalho, particularmente naqueles que têm i) previsão de vigência até ao final da época desportiva em curso; ii) nos acordos (definitivos e empréstimos) de transferência (e contratos de trabalho celebrados em consequência desses acordos) que têm previsão de início de vigência para o início da próxima época desportiva; ou nos iii) contratos de trabalho com início de vigência prevista para o início da próxima época desportiva.
A FIFA sinaliza ainda que, não obstante o disposto nas legislações nacionais relativamente ao início e fim dos contratos, a verdadeira intenção das partes deve ser o factor principal a observar no momento da determinação do período de vigência do contrato dos praticantes desportivos, no momento do reinício das competições.
Neste ensejo, nos termos do disposto no artigoº 18.º n.º 2 do RSTP, no que alude aos contratos de trabalho desportivos, a proposta do Conselho da FIFA48 incide nos seguintes vetores:
45 Esta norma estatui que todas situações não previstas expressamente nas disposições do RSTP e os casos de força maior são decididos pelo Conselho da FIFA, sendo tal decisão definitiva.
46 Tabela 2 – “Períodos de inscrições e transferências”, do Comunicado Oficial nº 1 - Época desportiva 2019/2020 da Federação Portuguesa de Futebol.
47 O conceito de “época desportiva” é definida no RSTP como o período que se inicia com o primeiro jogo oficial dos campeonatos nacionais e que termina com o último jogo oficial dos campeonatos nacionais. 48 A FIFA identificou algumas matérias que podem requerer a necessidade de serem definidos princípios de orientação global junto das respetivas Federações.
i. Onde se depare previsto que o final da sua vigência ocorrerá no final da época desportiva em curso tal como definida inicialmente, uma vez que a época desportiva tem de ser prolongada, esse final de vigência ocorrerá apenas no final dessa nova época desportiva;
ii. Onde se encontre previsto que o início da sua vigência ocorrerá no início da época desportiva tal como definida inicialmente, uma vez que a nova época desportiva tem de ser adiada, esse inicio de vigência ocorrerá apenas no inicio dessa nova época desportiva;
iii. Em caso de sobreposição de épocas desportivas e/ou de períodos de registo, a não ser que as partes acordem de forma diversa, a prioridade deve ser dada à eventualidade de o anterior clube conseguir completar a época desportiva com o seu plantel original, de forma a salvaguardar a integridade das competições dos respectivos campeonatos e/ou ligas.
5. Conclusão
A Lei nº 54/2017, de 14 de julho, veio estabelecer o novo regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo, do contrato de formação desportiva, e do contrato de representação ou intermediação49.
A noção de contrato de trabalho desportivo tal como configurada na alínea a), do artigo 2º da Lei nº 54/2017, de 14 de julho traduz uma adaptação do conceito genérico de contrato de trabalho, convencionado nos artigos 1152º do Código Civil e 11º do Código do Trabalho.
O contrato de trabalho do praticante desportivo é, portanto, um contrato de trabalho com regime especial, que reflete a sua especificidade em relação ao regime geral do contrato de trabalho, as particulares características da área socioeconómica em que gravita, bem como da natureza da atividade profissional que contempla.
No plano das alterações introduzidas em relação à Lei nº 28/98, de 26 de junho, o novo regime especial do praticante desportivo trouxe outra perspetiva quanto à duração do vinculo laboral, tendo reduzido a duração máxima de 8 para 5 épocas desportivas,
No que concerne à retribuição do praticante, numa ótica de harmonização do período remuneratório com o calendário competitivo, e ainda ao ciclo de tesouraria dos clubes/sociedades desportivas, foi inserido um clausulado que permite ao praticante desportivo e a estas convencionarem o diferimento em 10 prestações das retribuições de junho e julho.
49 Artigo 1º ibidem.
O impacto no futebol despoletado pelo novo coronavírus COVID-19 afetou de sobremaneira os clubes e sociedades desportivas, precipitando a suspensão de todas as competições de futebol um pouco por todo o mundo.
Estas vicissitudes desencadearam um conjunto de questões que conduziu a FIFA a publicar um documento designado “COVID 19 – Football Regulatory Issues – Fifa Working Group – March 2020” em que recomenda às Associações nacionais algumas medidas e princípios orientadores em resposta aos efeitos da pandemia, em harmonia com os interesses dos clubes/sociedades desportivas e praticantes desportivos profissionais.
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