Antónia Fialho Conde2
“VER A FILHA AUMENTADA DE ESTADO”: OS CONTRATOS DOTAIS DE CASAMENTO EM ÉVORA NO PERÍODO MODERNO (1600-1645)1
“Ver a filha aumentada de Estado”: wedding dowry contracts in Évora in the modern period (1600-1645)
Xxxxxxx Xxxxxx Conde2
Resumo: Partindo da análise de dotes de casamento em Évora nos inícios do século XVII procuramos entender os códigos que regiam a cidade em termos de administração patrimonial e de reprodução social, bem como analisar o que subsistia do seu esplendor (testemunhado pelo foral de 1501) a partir da composição dos dotes, em termos materiais e simbólicos.
Palavras-chave: Contrato dotal. Dotes de casamento. Período moderno. Évora.
Abstract: From the analysis of wedding dowries in Évora at the beginning of 17th century we try to understand the codes that governed the city in terms of heritage management and social reproduction, as well as to analyze what remained of the city splendor (as testified by the 1501 Charter) in light of the composition of dowries, both in a material and symbolic dimension.
Keywords: Dowry contracts. Wedding dowries. Modern period. City of Évora.
* INTRODUÇÃO
A questão do dote tem sido um assunto muito estudado, com abordagens diversas, procurando-se, através de análises à realidade social, entender diversos universos que lhe subjazem – questões legais, questões de género, história e cultura material, entre outras3. Trata- se de uma questão que percorre o tempo histórico, não sendo porém contínua4 nem uma prática universal5. Na Europa mediterrânica o dote tem características e funções muito específicas, falando-se de sistemas dotais, embora com diferenças intrínsecas. Os casos que têm vindo a ser mais estudados têm alguns denominadores comuns, como os relativos a casas ou linhagens, os que expressam a caridade de patronos ou instituições para jovens órfãs ou oriundas das classes menos abastadas e que não tinham capacidade de constituir dote para as filhas. Por outro lado, eram criados vínculos pelo dotador, de molde a garantir que os bens permanecessem unidos,
1 Fecha de recepción: 2013-06-26; Fecha de revisión: 2013-11-20; Fecha de aceptación: 2013-11-29; Fecha de publicación: 2014-03-20.
2 Doutorada em História. Professora Auxiliar do Departamento de História. Universidade de Évora/CIDEHUS-UÉ, Xxxxx xxx Xxxxxxxxx 0, 0000-000 Xxxxx, Xxxxxxxx. c.e. xxxxxxxxxxxx@xxxxx.xxx.
O presente artigo resulta da comunicação “Do bragal ao travesseiro d’ollanda: elementos para a cultura material em Évora no período moderno” apresentada no XXVIII Encontro da APHES, Universidade do Minho, Guimarães, 21-22 Novembro 2008. Este trabajo se enmarca dentro del Proyecto HAR2012-31909, financiado por el Ministerio de Economía y Competitividad (España). Proyectos de Investigación Fundamental. VI Programa Nacional de Investigación Científica, Desarrollo e Innovación Tecnológica, 2008-2011.
3 Para o caso português, refira-se o pioneirismo, neste domínio, do trabalho de XX, I. dos G. e XXXXXXXXX, M. E. Matos,
«A mulher e a estruturação do património feminino. Um estudo sobre dotes de casamento», in VVAA. Actas do Colóquio A mulher na Sociedade Portuguesa. Visão Histórica e Perspectivas actuais, Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra-Instituto de História Económica e Social, 1986, Vol. I, pp. 91-115.
4 XXXXX, A. e XXXX, A., «Femmes, dot et patrimoine», Clio – Femmes, Dots et Sociétés, 1998, nº 7. Acessível em xxxx://xxxx. xxxxxx.xxx/xxxxx000 [consultado el 17-10-2008].
5 Restringe-se, geograficamente, aos territórios de antigas civilizações caracterizadas também pela sua hierarquização; para a Europa mediterrânica, cfr. XXXXXX, X. X., «From brideprice to dowry in Mediterranean Europe», Journal of History, 1978, nº 3, pp. 263-296.
surgindo a vinculação como salvaguarda patrimonial6. Variando de acordo com a origem social dos contraentes, assegurava-se muitas vezes às mulheres um dote com valor acima das possibilidades da família (implicando por vezes pagamento faseado), assumindo a mulher um papel fundamental na circulação e transmissão da propriedade, sobretudo nos grupos de poder.
Desta forma, juntamente com as cartas de partilha e com os testamentos, os contratos de dote de casamento são reconhecidos como essenciais para a reconstituição histórica do património (sua formação e etapas de evolução), demonstrando como as estratégias matrimoniais subentendem técnicas diversas de conservação do património, e como maioritariamente o estabelecimento dos filhos depende do nível de fortuna dos pais7.
Para o contexto geográfico mediterrânico, Xxxxxx Xxxxxxx concluiu que não se pode dissociar a nupcialidade da estrutura familiar e da formação dos agregados domésticos8, estabelecendo uma interdependência entre a idade do matrimónio9, a regra de residência e a estrutura familiar.
Em Portugal, temos desde há muito reconhecidas abordagens sobre a questão do dote no século, ou dotação marital, procurando encontrar-se os seus fundamentos, entendendo-se que eles se situam no direito romano mas que também estão presentes na tradição germânica, regularizando as uniões entre marido e mulher10. Por outro lado, no período moderno os próprios dotes matrimoniais conheceram importantes evoluções, naturalmente também consignadas na legislação. Tanto no dote matrimonial como no conventual, os pais11 tinham a obrigação de
6 Cfr. XXXXXX XXXXXXXX, M. J., Patrimonio, parentesco y poder: Castelló, siglos XVI-XIX, Castelló de la Plana: Publicaciones Universidad Jaume I, 1998.
7 Cfr. BARBAZZA, M. C., «Registros parroquiales, particiones de bienes y censos de población. Historia de las familias campesinas y parentesco en Castilla la Nueva en los siglos XVI y XVII», en XXXXXX XXXXXXX, X. x XXXXXX X XXXX, Ll. (eds.), Familia, casa y trabajo, Seminario Familia y Elite de poder en el reino de Murcia siglos XV-XIX, Murcia: Universidad de Murcia, 1997, pp. 161-169.
8 Para a Península Ibérica, R. Xxxxxxx distingue três situações típicas: a sul (desde Lisboa a Logroño, incluindo o oeste e norte de Castela e o sul de Aragão e Catalunha), um sistema familiar neolocal, assente na precocidade do casamento feminino; a norte dessa linha, até ao País Basco, sistema patrilocal, associado ao casamento tardio para ambos os sexos; na parte norte da Catalunha e Aragão se assiste também a um sistema familiar patrilocal, mas com precocidade matrimonial feminina. Cfr. XXXXXXX, X., «Sistemas matrimoniales en la Península Ibérica (siglos XVI-XIX)», en XXXXX XXXXXX, X. x XXXXX, D.
S. (eds.), Demografia histórica en España, Madrid: El arquero, 1988, pp. 72-147.
9 A questão da idade do casamento não pode, porém, ser dissociada de factores como a morte dos pais que, provocando a divisão dos bens, poderiam influenciar a antecipação do casamento. Cfr. BARBAZZA, M. C., «Registros parroquiales, particiones de bienes y censos de población. Historia de las familias» ... op. cit.
10 “O dote era essencial ao «casamento legítimo». Antes de mais, era essa a tradição germânica, a respeito da qual não pode haver dúvidas, qualquer que seja o sentido que atribuamos ao dote ex marito. Mas não só a tradição germânica. No próprio direito romano vulgar não faltam provas de que a união a que faltava a dotação marital era encarada como irregular. [...]. O direito da mulher em relação ao dote é um direito de propriedade, não havendo a êste respeito distinção essencial entre o dote e outras quaisquer doações feitas à mulher”. XXXXX, P., «Dois estudos sôbre o dote no direito no direito medieval», Separata do Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra: Faculdade de Direito, 1943, pp. 11, 15-16. No segundo estudo Xxxxx Xxxxx frisa a prática do dote ex marito, quer com a própria designação de dote (dos), como era conhecido no período visigótico, quer com a denominação de arras (arrae), figurando textualmente a primeira vez em 962.
11 Tem vindo a ser muito tratada a questão do auxílio a jovens donzelas (órfãs ou não) na sua dimensão de obra pia, especialmente no período pós-tridentino. A este propósito, cfr. XXXXXX XXXXXX, X., «Casadas o monjas. Honor y caridad en el León del Antiguo Régimen», en ARAÚJO, M. M. L. de e XXXXXXX, A. (coords.), Tomar estado: dotes e casamentos (séculos XVI- XIX), Braga: CITCEM, 2010, pp. 215-233; BRAGA, I. D., «Tomar estado de casada. Os dotes de D. Xxxx xx Xxxxx xx Xxxxxx e Xxxx e a Misericórdia de Lisboa (1763-1775)», en ARAÚJO, M. M. L. de e XXXXXXX, A. (coords.), Tomar estado ... op.cit. pp. 351-365 e XXXXXX, M. M. L. de, «Fazendo o bem, olhando a quem: órfãs e dotes de casamento nas Misericórdias portuguesas (séculos XVI-XVIII)», en XXXXXX, X. X. X. xx e XXXXXXX, A. (coords.), Tomar estado ... op. cit., pp. 367-381. Em todos os trabalhos, e particularmente nos dois últimos para o caso português, sublinhamos a importância do estado da arte elaborado. Cfr. também, embora para um período um pouco mais tardio que o que abordamos e em circunstâncias diferentes particularmente no que toca aos dotadores e às dotadas, ARAÚJO, M. M. L., de Filha casada, casa arrumada: a distribuição de dotes de casamento na confraria de São Vicente de Braga (1750-1870), Braga: CITCEM, 2011.
constituir o dote, o que podia tornar o dote um factor de desagregação do património e uma via para a deslocação do mesmo para fora das famílias. Para evitar a desintegração patrimonial paterna, existiu uma tendência para que os dotes fossem constituídos essencialmente por bens de origem materna, ou seja, que a mãe levara para o casal: é a existência de um grupo de bens, à margem do património, destinados ao dote das filhas, e que mais tarde servirá, nos respectivos casamentos, para constituir os dotes das suas descendentes12. A estes bens juntavam-se, embora com menor significado, os bens recentemente adquiridos. Em ambas as situações os dotes são preferidos em relação a rendimentos de outro género; também em ambas os dotes são inalienáveis. Algumas distinções são, porém, fundamentais: no dote monástico, o seu valor é igual para todas as postulantes, pelo menos num mesmo convento; também nos conventos o período moderno significou a preferência pelo pagamento em dinheiro; por último, no momento da profissão, a religiosa perdia tanto o usufruto como a plena propriedade do dote, não podendo exigir que lhe fosse restituído13. No estado religioso, também se estabelecia a diferença, ao notar-se que os homens eram recebidos em religião sem dote algum e as mulheres o tinham que assegurar, com posteriores intervenções dos superiores das ordens em relação ao destino dos mesmos14.
Os dotes eram, para as mulheres, uma das grandes ocasiões de transmissão da propriedade
(podendo significar, pelo seu montante, a ruína da família da dotada), além do momento das partilhas, onde se destacava o varão. Por ocasião do dote eram recebidas menos terras do que nas partilhas; acrescentemos ainda que, na altura do matrimónio, o dote significaria entre 30 a 50% dos bens recebidos15; já o direito romano consagrava que os bens dotais femininos, enquanto tal, não podiam ser absorvidos pelo património do marido. Nessa perspectiva, coloca duas interessantes questões: a do acesso das filhas ao património dos pais face aos irmãos masculinos e o das relações patrimoniais entre os esposos. São questões fulcrais, uma vez que se sabe da desigualdade nas heranças entre os herdeiros masculinos e os femininos. Sendo propriedade da mulher, e sendo gerido pelo marido, devia existir um fundo de garantia que cobrisse o montante dos bens, caso existisse venda dos mesmos, e, enviuvando, a mulher tinha o direito de exigir total restituição do dote. Porém, esta restituição não significava necessariamente um regresso ao
12 Cfr. XXXXXXXX, J. F., «Circuit des biens dotaux et stratégies familiales dans la Venise du XVII.ème siècle», en KLAPISCH-ZUBER, Ch., La Famille, les femmes et le quotidien (XIVe-XVIII siècle), Paris: Publications de Xx Xxxxxxxx, 0000, pp. 291-307.
13 Cfr. XXXXX, A. F., Cister a Sul do Tejo. S. Xxxxx xx Xxxxxxx e a Congregação Autónoma de Alcobaça, Lisboa: Colibrí, 2009, pp. 245-274.
14 “Y sería fácil cosa si esto se hiciese reducirse a estas santas vírgenes a un estado bueno de poder pasar con lo que tienen y de podérseles con seguridad poner tasa en las dotes que tan excesivas son, y que tanto divierten y apartan a muchas mujeres virtuosas y honradas de seguir dicho estado tan necesario a nuestra República, por no poder llegar sus dotes a tantos gastos como la impropiedad y abuso de estas causas ha causado”. XXXXXXXX XX XXXXXXXXX, M., Memorial de la política necesaria y útil restauración a xx xxxxxxxxx xx Xxxxxx x xxxxxxx xx xxxx, x xx xxxxxxxxx xx xxxxx xxxxxx, Xxxxxx: Instituto de Estudios Fiscales, 1991 [XXXXX XX XXXXX, J.L. (ed.), Valladolid, 1600], p. 61. Gostaríamos ainda de citar, para Portugal, o trabalho de Xxxxx X’Xxxxx para o período contemporâneo, em que o sistema igualitário de heranças no norte conduziu ao controlo do número de herdeiros (casar um filho e melhorá-lo, os outros casavam com alguém de estatuto social inferior ou emigravam), verificando-se ainda a tendência para o atraso na idade de casamento do herdeiro e para o surgir de bastardos. X’XXXXX, B. J., Proprietários, lavradores e jornaleiros: desigualdade social numa aldeia transmontana, 1870-1978, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984.
15 Cfr. XXXXXX XXXXXXX, X., «Continuidad de costumbres y transmisión de la propiedad en el sistema familiar castellano. Siglos XVI-XVIII», en XXXXXX XXXXXXX, F. (ed.), Historia Social de la familia en España, Alicante: Instituto de Cultura Xxxx Xxx-Xxxxxx, 1990, pp. 47-59.
património familiar de origem: para tal, era preciso que a viúva morresse sem herdeiros e sem ter feito testamento. A restituição do dote, acrescentada de eventuais legados do marido defunto, podia levar à acumulação de riqueza da mulher através de casamentos que se sucedessem (xxxxx, os dotes nas viúvas permitem explicitar as vicissitudes do processo de restituição e a alteração da composição patrimonial dos dotes, bem como as práticas testamentárias do marido para com a mulher). Tal situação, a que acrescia a não existência de filhos do casal, favorecia um novo casamento. Só quando ficava viúva, e recuperando-o, a mulher se tornava verdadeira proprietária do dote, podendo dele dispor através do testamento, ou quando, por exemplo, estipula as condições de um novo casamento16.
Por outro lado, a questão da composição dos dotes revela importantes detalhes nomeadamente sobre o estatuto da mulher no casal e na família; de facto, mais do que comparar dotes e enxovais, devemos atender à função dos bens dotais como complemento aos do esposo, permitindo a viabilidade de uma nova unidade económica17. Reforçamos ainda a ideia de que o dote não deve ser entendido isoladamente: é um contrato que faz parte de uma estratégia familiar gizada a longo prazo (futuros dotes conseguidos pelos filhos homens, partilhas e heranças, entre outras) e, especialmente, como estando na base do modelo social reprodutivo do período moderno18.
1. OS DOTES DE CASAMENTO EM ÉVORA NO PERÍODO MODERNO
Para a compreensão dos dados sobre o casamento em Évora em inícios do período moderno, importa sublinhar a importância das estratégias matrimoniais em relação ao modo de transmissão patrimonial, comportando não apenas uma dimensão material como também simbólica. Efectivamente, o aumento, a conservação ou a dispersão do património material e simbólico da família dependiam do casamento, e da política exercida, através dele, pelo chefe de família, definindo estratégias matrimoniais em função da situação económica do grupo familiar, dos seus recursos materiais e do simbolismo do seu poder, mais do que da normativa jurídica, como explicita Xxxxxx Xxxxxxxx. De acordo com o mesmo autor, as desigualdades sociais e de riqueza tendem a criar pontos de segmentação nos pretendentes, ditados pela posição hierárquica da família, ao mesmo tempo que o dote exclui alianças entre famílias muito desiguais, sendo que as estratégias de casamento tendem primacialmente a ser definidas pelos homens mais velhos (herdeiros agnáticos decidem o futuro económico e político das respectivas famílias)19. Nessas
16 XXXXXXXXXX, A., «Dot et richesse des femmes à Venise au XVIe siècle», Clio–Femmes, Dots et Sociétés, 1998, nº 7. Acessível em xxxx://xxxx/xxxxxx.xxx/000, [consultado el 17-10-2008].
17 XXXXX-XXXXXX XXXXXX, M. V., «Mujer y Familia en la Edad Moderna, ¿dos perspectivas complementarias?», en XXXXXX XXXXXXX, X. x XXXXXXXXX XXXXXX, J. (eds.), Espacios Sociales, Universos familiares. La familia en la historiografía española, Murcia: Ediciones de la Universidad de Murcia, 2007, pp. 193-218. A autora frisa que o dote pode ser entendido como adiantamento do património familiar dos pais, ao mesmo tempo que os testamentos provam que os dotes não eram compreendiam todos os pertences da mulher.
18 A este propósito, cfr. XXXXXX XXXXXXXXX, M., «La dote matrimonial: implicaciones sociales sistemas familiares y práctica sucesoria: Castilla y Europa en la Edad Media», en XXXXXXX, X. X. x XXXXXXXX ROSÉS, A. (eds.), Matrimonio y nupcialidad: perspectivas interdisciplinares. Actas del Congreso Internacional de la Población: V Congreso de la ADEH, Logroño: Gobierno de La Rioja, Instituto de Estudios Riojanos [etc.], 1999, Vol. 4, pp. 78-100 e XXXXX XXXXX, L., «Dote y matrimonio en la base del modelo social y reproductivo de la burguesía leonesa maragata, siglos XVI-XIX», en ARAÚJO, M.
M. L. de e ESTEVES, A. (coords.), Tomar estado … op. cit. pp. 85-105.
19 Esta questão de homogamia encontra explicação na hipotética restituição do dote, sendo que o homem não deveria casar acima da sua posição na estrutura da relação de poder não apenas por questões materiais mas também pela sua posição na estrutura de relações do poder doméstico (tal como não deveria casar muito abaixo, por questões de honra, e impossibilidade de dotação dos mais novos). Cfr. XXXXXXXX, P., «Les stratégies matrimoniales dans le système de reproduction», Annales. Économies, Sociétés, Civilisations, 1972, nº 4-5, pp. 1105-1127.
complexas estratégias (implicando nomeadamente questões sucessórias, ficando demonstrado por Xxxxxxxx que tão importante como o casamento do herdeiro era o celibato dos filhos mais novos) residiam momentos de demonstração de autoridade na família pelo herdeiro, sendo a determinação do montante dos dotes uma dessas ocasiões (montante esse muito dependente do número e sexo dos irmãos e do seu lugar na hierarquia familiar, daí também a importância das estratégias de fecundidade, pois o pagamento permanente de dotes poderia provocar a falência das economias domésticas). Essas estratégias contribuíram fortemente para a perpetuação de jerarquias sociais como para a reprodução social, pois o matrimónio possibilitava o acesso aos recursos, sendo reconhecida a importância dos mecanismos do celibato e da emigração como igualmente importantes, pois limitavam esse acesso, fazendo parte do sistema social reprodutivo de molde a evitar a dispersão patrimonial20.
Nesta perspectiva, e atendendo às questões acima colocadas, foram analisados 253 livros notariais do Arquivo Distrital de Évora21, de 14 notários distintos, cobrindo uma franja temporal situada entre 1600 e 164522. Localizaram-se 170 contratos de dote de casamento, procurando-se entendê-los enquanto testemunho da realidade socioeconómica e mental da época, possibilitando- nos também apreciar o quotidiano e a cultura material de Évora em começos de Seiscentos. Esta aproximação cronológica deve ser também entendida à luz das Ordenações Filipinas, determinando que “[...] todos os casamentos feitos em nossos reinos e senhorios se entendam serem feitos por carta de ametade, salvo quando entre as partes outra cousa for acordada e contratada”23, como em muitos contratos consultados é referido.
Dos contratos de dote de casamento analisados, 158 deles (93%) foram xx xxxxxx xx Xxxxx, 0 xx xxxxx xx xxxxxx (xxxxxxxxxx xxxxxx de S. Xxxxxx, X. Xxxxxx, X. Xxxxxx da Abóbada, Santa Sofia e Tourega), e 3 fora no termo da cidade: 1 do termo de Portel (freguesia de Santa Ana), 1 no termo de Monsaraz (freguesia de Nossa Senhora das Neves da Vidigueira, no Esporão) e 1 no termo de Montemor-o-Novo; embora alguns dos contratos realizados em Évora fossem com noivos oriundos de fora da cidade (Montemor-o-Novo, Alcácer do Sal, Niza, Veiros, ou herdades no termo da cidade) ou noivas (Lisboa), nota-se uma clara tendência endogâmica24
20 Cfr. COMAS D’XXXXXXX, M. D., «Matrimonio, patrimonio y descendencia. Algunas hipotesis referidas a la Península Ibérica», en CHACÓN JIMENEZ, X. x XXXXXXXXX XXXXXX, J. (coords.), Poder, familia y consanguinidad en la España del Antiguo Régimen, Barcelona: Anthropos, 1992, pp. 157-176.
21 Foi ainda analisado no Arquivo Distrital de Évora [ADE.] o Fundo Arquivo da Família Cordovil [FAFC.], Secção Património [SR.] 06, onde foram localizados 4 dotes de casamento (1593, 1596, 1625 e 1653) e que, embora referindo-se a uma família da cidade, permite comparações com a realidade da cidade para o período em causa.
22 Lembremos que só após o Concílio de Trento os matrimónio se registam com regularidade nos paroquiais (óbitos e baptizados são anteriores), sendo que a presente análise não se baseou nos paroquiais e sim nos contratos de dote de casamento registados pelo tabelionado eborense no período apontado.
23 Codigo Philipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal, Livro IV, título XLVII, «Das arras e camera cerrada», 1603. A este propósito, cfr. as considerações a propósito da concepção jurídica do dote colocadas por XXXXX, A., «Casar, mas receber dote: estratégias familiares na escritura dotal (Mangualde, 1684/1715)», en DE ARAÚJO, M. M. L. e XXXXXXX, A. (coords.), Tomar estado … op.cit. pp. 73-84.
24 Desenvolvem-se tendencialmente, segundo M. J. Xxxxxx Xxxxxxxx, diversos tipos de endogamia (paralela, sucessiva, recorrente, de acordo com a tipologia de F. M. Xxxxxx Xxxxxxx, que aponta como a combinação dos diferentes tipos concentrava poder, autoridade, prestígio, influência e património), sendo que, para a localidade estudada pela autora, Castelló, é frisado o seu carácter localista entre membros da oligarquia local; só um casamento conveniente fazia abandonar a localidade. XXXXXX XXXXXXXX, M. J., Patrimonio, parentesco y poder … op.cit. pp. 218-219 e 282 e BURGOS ESTEBÁN, F. M., Los lazos del poder: obligaciones y parentesco en una élite local castellana en los siglos XVI y XVII, Valladolid: Universidad de Valladolid, 1994, pp. 120, 198 e 199.
(isogâmica, no sentido antropológico do termo).
Em relação aos dotadores, a maioria dos casos (41) são os pais da noiva que a dotam (pai e mãe conjuntamente - o conteúdo refere-se a dotar o futuro noivo para que case com a filha do casal), seguindo-se depois as mães que dotam a noiva (28 casos), sendo que, em 4 deles, os irmãos da noiva também são dotadores, um caso em que o padrasto também participa no dote e um caso em que a noiva reforça o dote da mãe com autodote. Seguem-se os pais que dotam as filhas (18 casos, sendo que em dois o fazem juntamente com irmãos da noiva, num deles com a madrasta e noutro o noivo também a dota com a sua terça).
Os pais do noivo dotam-no em 8 casos (em que num deles o noivo acrescenta autodote), e há contratos em que os progenitores de ambos os noivos os dotam (6 casos). O pai do noivo dota o filho em 4 casos, sendo que em dois casos o dotou com o seu ofício: o de alcaide de Évora, e o de tabelião das notas; neste último caso, foi Xxxxxxxx Xxxxxxx que, em 1627, doou a seu filho, Xxxxxxx xx Xxxx Xxxxxxxx, entre os demais bens, o seu ofício, de acordo com uma provisão régia que lhe dava o poder de nomear um dos filhos, e que se para tal fosse necessária escritura de renúncia a faria25. As mães dos noivos dotam-nos em 6 casos (sendo que num deles o fazem juntamente com um irmão e noutro com um tio paterno do noivo),e até uma noiva, viúva, em 1625, não especificando os bens que entram no dote, Xxxxxx Xxxxxx, dota o noivo com a terça dos seus bens após o seu falecimento26. Era também usual na composição dos dotes entrar a doação de ofícios ou privilégios em numerário. Em 1637, Xxxx Xxxxxxxxx Xxxxxx, alcaide de Évora, dotou o filho, Xxxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx, para além dos bens de capela do avô e bisavô, com o ofício de alcaide. Por sua vez, a noiva, Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxx, representada no contrato pelos irmãos, os licenciados Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx e Xxxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx, ambos sacerdotes do hábito de S. Xxxxx, e que se juntavam, como dotadores, à mãe, Xxxxxx Xxxxxx, foi dotada com todos os bens móveis e de raiz dos dotadores, ficando-lhes reservados 30$000 réis para poderem testar por suas almas27. No ano seguinte, 1638, foi feito um contrato de dote de casamento a Xxxxx Xxxxxx, filho de Xxxxx Xxxxxx Xxxxxx, cavaleiro-fidalgo da Casa Real, dote composto na sua totalidade por bens de raiz que herdara do irmão, Xxxx Xxxxxx, escrivão da correição de Évora. Por mercê régia, o pai da noiva, Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx, escrivão da provedoria da comarca de Évora, nomeado pelo rei, dotava-a, para além dos bens de raiz, com o seu ofício, que passaria ao genro28. Em 1637, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxx, viúva de Xxxxxxxx xx Xxxxx, meirinho da Universidade, dota a filha, Xxxxxxxx Xxxxxx, para ela casar com Xxxxxx Xxxxx. No dote, de 300$000 réis, entrava a legítima do pai, sendo 2/3 em bens móveis. A mãe dotou-a ainda com a sua terça e como o reitor e padres do Colégio da Companhia lhe tinham feito mercê da vara de xxxxxxxx da Universidade para um dos seus filhos, e por o seu filho varão ser menor,
25 ADE. Notarial de Évora, Livro 423, f. 66.
26 ADE. Notarial de Évora, Livro 554, f. 116.
27 Neste caso, veja-se, à semelhança de Castelló, o papel da mulher na circulação e transmissão da propriedade, tendo-se tornado a irmã, receptáculo dos bens dotais, como a possibilidade de a propriedade se transmitir de forma directa e individual. Cfr. XXXXXX XXXXXXXX, M. J., Patrimonio, parentesco y poder … op.cit. pp. 218-219 e 282.
28 ADE. Notarial de Évora, Livro 444, f. 123. Exemplos similares são encontrados no Arquivo da Família Xxxxxxxx, embora um pouco mais tardiamente: em 1653, Xxxxxxxxxx xx Xxxxx, provedor da fábrica e canos da água de Prata, ofício que valia 500$000 réis/ano, dotou o filho, Xxxxx xx Xxxxx e Xxxxxxx, com o citado ofício (além dos 200$000 réis em bens móveis e do morgado que possuiria por morte do pai, valendo cerca de 10.000 cruzados, de que ficaria já recebendo renda). ADE. FAFC. SR. 06, Dotes de casamento, peça 12.
recebia da instituição 25$000 réis/ano enquanto o filho não atingisse a maioridade, dinheiro que ela doava à filha até essa altura. No caso dos privilégios que se traduziam em numerário, temos o contrato de dote que o Dr. Xxxxxxxxx Xxxxxx, inquisidor apostólico, fez a Xxx xx Xxxxx Xxxxxxx, de Montemor-o-Novo, para ele se casar com sua sobrinha, Xxxxxx Xxxxxx. O dote consistia em bens móveis e de raiz (casas e uma quinta à Peramanca), sendo ainda que o inquisidor doava à sobrinha, vitaliciamente, a sua conezia na Sé, no valor anual de 100$000 réis. O noivo entrou para o casal com o morgado que herdara do pai, expresso em bens de raiz localizados especialmente em Santiago do Escoural e Serpa29.
Temos ainda 8 irmãos que dotam um dos noivos, maioritariamente a noiva (num dos casos, o cunhado da noiva entra no acórdão do contrato dada a ausência de herdeiros, noutro uma freira dota a irmã noiva, e noutro um clérigo, o Padre Manuel Fialho, dotou o irmão para casar) e uma avó que dota a neta. Quanto à questão dos tios (ou tias), temos que em 4 casos eles dotam o noivo, sendo que surge na sequência do dote da noiva, e os tios (ou tias) tomam a iniciativa de dotar sobrinhas em 12 casos. Casos mais raros são aqueles em que está não presente uma relação parental. São 13 casos, entre os quais 4 são patrões que dotam serviçais (casas dos marqueses de Ferreira e dos condes de Basto), normalmente damas de companhia30; uma freira que dota uma afilhada órfã; 5 em que os noivos dotam as noivas, órfãs, ou ainda uma viúva que dota o seu futuro noivo (sem que ele leve nada para o casal).
A questão dos autodotes acaba por ser muito reveladora: 5 noivos apresentam autodote no contrato de dote de casamento, surgindo, em três deles, na sequência do dote da noiva, e num outro como reforço ao dote que os pais já lhe haviam feito, pois tratava-se de um moço solteiro emancipado. No caso das noivas, 8 fazem autodote, sendo duas já viúvas, e uma como reforço ao dote dos pais, mas em qualquer destes casos os noivos entram sem bens no casal. Também há situações em que ambos se auto-dotam: temos 17 casos, sendo em 7 deles ambos viúvos.
Em relação ao estado civil dos «futuros noivos», como são designados na documentação, no caso das noivas (gráfico 1) surgem identificadas 136 donzelas solteiras (8 com autodote e 2 dotadas pelo noivo), número a que se juntavam 4 órfãs e 1 recolhida, 14 maiores, solteiras e emancipadas e 13 viúvas, sendo que uma delas dota o noivo para com ela se casar. Entre os homens (gráfico 2), temos 137 mancebos solteiros (sendo que 5 fazem autodote), mancebos solteiros e emancipados são 21, e 8 viúvos. Em 4 casos, de homens e mulheres, o dote é recebido já depois de estarem casados.
29 ADE. Notarial de Évora, Livro 567, f. 10.
30 Num dos casos, em 1626, o marquês de Xxxxxxxx faz a doação do hábito de Cristo ao noivo. ADE. Notarial de Évora, 421.
Gráfico 1: Situação das dotadas à altura do contrato de dote de casamento Fonte: Arquivo Distrital de Évora, Notariais de Évora, Livros 373-62631.
Evidencia-se no gráfico 1, em relação às nubentes femininas, a presença das órfãs e de uma noiva que se encontrava num recolhimento da cidade, bem como a maior percentagem de viúvas que contraem novo matrimónio, sendo porém menor o número de mulheres emancipadas32:
Gráfico 2: Situação dos dotados à altura do contrato de dote de casamento Fonte: Arquivo Distrital de Évora, Notariais de Évora, Livros 373-626.
2. O ESTATUTO SOCIAL DE DOTADORES E DOTADOS
Entre os dotadores com ocupação identificada, temos os relacionados com a Casa Real: 3 fidalgos da Casa Real, 1 cavaleiro-fidalgo da Casa Real e 1 moço fidalgo da Casa Real, além dos que faziam parte do Conselho Régio, como os marqueses de Ferreira (que dotam 3 vezes, sendo
31 Nos gráficos e quadros foram usados os dados recolhidos de todos os livros notariais analisados do Fundo dos Notariais do Arquivo Distrital de Évora (livros 373 a 626); nas notas de rodapé foi usado um destes livros notariais em particular, sempre que se justificou, identificados com o respectivo número.
32 É com esta designação que nos surgem nos contratos de dote, tanto os noivos como as noivas: maiores de idade e vivendo de sua fazenda, e que, na altura do contrato dotal, reforçavam o dote que recebiam, dotavam o par ou faziam auto-dote.
que numa delas o marquês doou o hábito de Cristo ao noivo) ou os condes de Xxxxx. Ligados ao aparelho inquisitoral, além de 2 inquisidores apostólicos, temos um médico do Santo Ofício e um guarda dos cárceres da Inquisição, revelando a presença da instituição na Évora da altura. Dentro do aparelho administrativo e judicial locais, ao alcaide juntavam-se o provedor, o juiz dos órfãos e juiz de fora, os meirinhos e os escrivães da Câmara, dos casamentos e da almotaçaria, além do vedor do conde do Vimioso e o almoxarife do barão de Xxxxxx. O clero regular (aqui através das religiosas que dotam a irmã ou a afilhada) e secular também está presente nos contratos de dote, xxxxxxx xx 0 xxxxxxxxx xx Xx xx Xxxxx e um seu arcediago, tal como o padre reitor de Santo António; também um licenciado. Os oficiais mecânicos estão bem presentes, com os ferradores (3), sapateiro (de obra grossa), barbeiro, atafoneiro, seleiro, surrador, chapineiro, caldeireiro, carreteiro, sombreireiro e guadameseiro, a que se juntavam os charamelas (3) e o ourives do ouro, mostrando ainda uma cidade dinâmica e com actividades bem diferenciadas, sem perder o seu cunho rural, dada a presença dos lavradores (4) dos trabalhadores (2) e do quintaneiro, a que acresciam os que “viviam de sua fazenda” (2) e o ourives. Os pais dotam as filhas para melhorar, ou pelo menos manter, o seu status a nível social. É uma preocupação da xxxxxxxxx, ou mesmo dos homens da Inquisição, que, através de bons dotes, buscam o reconhecimento social das dotadas, sendo, porém um fenómeno que atravessa a sociedade: o matrimónio procura pelo menos manter o estatuto, e o sombreireiro dota a filha para casar com o boticário, tal como o escrivão da almotaçaria dota a sua para casar com o meirinho da correição.
Em termos das ocupações dos noivos, quatro são identificados como fidalgos da Casa Real,
1 comendador da Ordem de Cristo, 1 estribeiro de infante D. Xxxxx (contrato de 161033), 1 cirurgião do Santo Ofício34, 4 escrivães (2 escrivães xx xxxxxx, 0 xx Xxxxx Xxxxxx x 0 xx xxxx xx xxxxxxxx da Universidade) um tabelião das notas, um juiz do fisco, dois estudantes universitários, 13 oficiais mecânicos (2 carpinteiros, 3 sapateiros e 3 sapateiros de obra prima, 2 pedreiros, 1
atafoneiro, 1 esparteiro, 1 agulheiro), 1 boticário, 1 barbeiro, 1 hortelão, 1 trabalhador, 1 criado dos marqueses e, significativamente, 17 lavradores (dos quais 5 viúvos e 5 autodotados, sendo um destes viúvo) e um caseiro viúvo.
Numa sociedade pouco receptiva social e juridicamente às mulheres, os dados revelam- nos que as dotadoras são identificadas a partir do casamento (temporal ou espiritual): ou como viúvas de um fidalgo, de um funcionário da administração local ou de um oficial mecânico, ou então como monjas. Por sua vez, as dotadas vêm a sua ocupação referenciada especialmente em relação à família que servem: as casas dos condes de Basto ou dos marqueses de Ferreira, enquanto criadas ou damas de companhia; as que se auto-dotam são a maior parte viúvas: em 5 casos, 4 são identificadas como lavradoras e que estabelecem contrato de dote com auto- dotados preferencialmente lavradores (isto é, as lavradoras contratam-se com lavradores).
Aconcessão de dotes correspondia a uma política de reprodução social, solidificando o espaço social da nobreza, que intercambiava património e benefícios através das relações matrimoniais,
33 Trata-se de Fernan del Rio d’Aguillar, morador em Alconchel, que casou com Xxxxx xxx Xxxxx (assinou maria de los Angeles no documento), viúva. ADE. Notarial de Évora, Livro 482, f. 43v.
34 Este cirurgião, Domingos Lourenço do Rego, casou com a irmã do escrivão dos casamentos, declarando que “[…] avendo respeito a dita Xxxxxxxx Xxxxxx sua futura molher ser donzela e de muyto pouqua ydade de vinte anos pouco mais ou menos e pessoa muito nobre e de bom parecer e partes e ele dito Domingos Lourenço do Rego ser homem de ydade que passa de sincoenta anos he contente de dar e dotar a ella dita Xxxxxxxx Xxxxxx dous mil e quinhentos cruzados em satisfaçam E recompensa da dita desygualdade da ydade”. ADE. Notarial de Évora, Livro 427, f. 87v.
expressos em bens materiais mas também simbólicos, como é o caso dos bens vinculados. De facto, entre fidalgos da Casa Real, e respectiva descendência, observou-se que era usual nos contratos de dote de casamento constarem capelas, morgados (instituição ou instituição e/ou administração), constituindo por vezes a totalidade do dote, ou dotes compostos, pelo menos em parte, por legação e administração de legítimas e terças, em circunstâncias diversas. Em 1616, Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxx, primogénito varão de D. Xxxxxxx xx Xxxxxxxx xx Xxxx, morador em Cabeço de Vide, recebeu bens do morgado dos pais; a noiva, D. Xxx xx Xxxxx, recebeu bens de raiz do morgado da mãe, D. Xxxxx Xxxxx, viúva de Xxxxxx xx Xxxxx, a que se juntaram, para completar o dote, alguns bens móveis (móveis de casa e peças de prata, no valor de 2000 cruzados)35. A noiva tinha duas irmãs religiosas no mosteiro de S. Xxxxx xx Xxxxxxx, já dotadas na altura do seu casamento: Xxx Xxxxx00 e Vicência Moniz37, que entraram no mosteiro em 1603, dotadas pela mãe, com um dote de 400$000 réis (mil cruzados) cada uma; o pagamento de um destes dotes ocorreu apenas depois do casamento da irmã. Estabelecendo um paralelo com este mosteiro, S. Xxxxx xx Xxxxxxx, em relação à questão das legítimas e heranças, temos que, no período cronológico considerado (entre 1522 e 1797), em mais de metade dos contratos (52,5%) o mosteiro fazia questão que figurasse o seu direito às legítimas da monja (já depois de professa). Esta situação acentuou-se entre 1649 e 1755: neste período, essa exigência do mosteiro figura em 75,17% dos contratos. A mesma tendência, com números muito próximos, se registou em relação à declaração do mosteiro como herdeiro dos bens da monja, á altura da sua morte: em todo o período considerado, o mosteiro assim o conseguiu em 58,9% dos casos, acentuando-se também entre meados do século XVII a meados do século XVIII: 75,2% (entre 1649 e 1755). No momento de partilhas as famílias tentavam também que os dotes entrassem em colação, sendo que, no caso estudado, o mosteiro de S. Xxxxx xx Xxxxxxx, apenas em 22,4% deles o mosteiro se viu obrigado a ceder às exigências das famílias. Porém, e mais uma vez, é possível ser traçada uma tendência distinta entre 1698 e 1755: durante este período, nos contratos figura a cláusula de que, em caso de partilhas, o dote deveria entrar em colação em 84,2% dos casos, numa tentativa clara de obstar a que o património das famílias chegasse às instituições eclesiásticas38.
Em 1642 Xxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxxx, de Évora, faz um contrato de dote de casamento e doação
e instituição de morgado composto por bens no termo de Mourão; o morgado foi instituído com base em casas, herdades, courelas, ferragiais, com obrigação de 15 missas rezadas/ano na matriz da vila junto da campa do pai do instituidor, Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxxx. Por sua morte e da futura
35 ADE. Notarial de Évora, Livro 478, ff. 167-176.
36 Contrato fora do mosteiro, nas pousadas dos pais, tal como no de sua irmã, D. Vicência., sendo procurador e feitor do mosteiro Frei Arcanjo da Paixão. As propinas eram de 400 réis a cada monja professa, na entrada e quando tomasse mantilha. Biblioteca Pública de Évora [BPE.], Cód. CXXXI/2-2, f. 127v.
37 O seu dote foi pago apenas em 1622, pelo seu cunhado Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxx, através do seu procurador, seu pai, Xxxxxxx xx Xxxxxxxx xx Xxxx. A mãe, D. Xxxxx Xxxxx, na altura já falecida, fizera-lhe escritura de dote de 400$000 réis ao tempo de entrar, fora ordinárias, cama e alimentos do noviciado, cera da entrada e profissão. O cunhado entregou o dote, sendo feita uma declaração, em que se diz que no dote entrava toda a legítima e herança de pai e mãe, e que D. Vicência ficaria possuindo uma capela ou capelas que lhe foram deixadas, cobrando delas os rendimentos. Ficava também livre de eventuais dívidas dos pais. Xxxxxx, f. 127v. e f. 254v.
38 CONDE, A. F., «Os contratos de dote no mosteiro cisterciense de S. Xxxxx xx Xxxxxxx (Évora) no período moderno», en VVAA., Actas do III Congreso Internacional sobre el Cister en Galicia y Portugal, Ourense: Monte Casino, 2006, Tomo I, pp. 343-373.
esposa, Xxxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx, xx Xxxxxxx, os bens deste morgado passariam para o filho segundo, pois o primeiro herdaria outro morgado que Xxx Xxxxxxx herdara dos antepassados; declara-se ainda que, se não houvesse filhos, passaria à filha segunda, preferindo-se sempre o filho ainda que de menor idade, com possibilidade de anexação dos morgados. Por morte do casal sem descendência, a sua posse passaria para o tio da noiva, seu procurador no contrato, o licenciado António da Costa Pereira, e seguiria para a linha dos avós da noiva, Xxxxxxx Xxxxx e Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxx, ficando claro que “[...] não socedera neste Morgado quem tiver a rasa de nacam Ebrea, mulato imfiel, negro mouro”39. O herdeiro também ficaria privado dos bens (para que não fossem confiscados) se cometesse crime de lesa-majestade.
Os contratos de casamento podiam ser também ocasião para, em escritura, ficarem estabelecidas vontades em termos de administração futura dos morgados. Assim, em 1632, quando o inquisidor Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx estabelece o dote para o Doutor Xxxxxxxxx xx Xxxxxxxx, juiz do fisco, casar com sua irmã, D. Xxxxx Xxxxxxx, além dos 4000 cruzados em dinheiro de contado, e dos 1000 cruzados de bens móveis, o Inquisidor fixa na nota que, por sua morte, instituía na pessoa de sua irmã 3000 cruzados de bens de raiz “[...] para ella e seus descendentes e em falta delles ho parente mais chegado por via da famylya dos dellgados”40. Em 1642, D. Xxxxxx Xxxxx é dotada pelo irmão, D. Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxx, e pela mãe, D. Xxx Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx, viúva de Xxxxxx Xxxxx xx Xxxx, fidalgo da Casa Real, para casar com Xxxx xx Xxxxx xx Xxxxx, também fidalgo da Casa Real. Com o argumento de que D. Xxxxxx não tinha bens, os 3000 cruzados do dote seriam retirados exclusivamente dos rendimentos das herdades anexas ao morgado do irmão, num total de 120$000 réis/ano, sendo-lhe ainda garantidos cinco anos de alimentos41. Em Fevereiro de 1641, na freguesia de Nª Sr.ª de Machede, herdade da Fonte, o padre Manuel Fialho, clérigo do hábito de S. Xxxxx e xxxxxxxx xx Xx, dotou o irmão em troca das legítimas que ficassem do pai e da mãe. O dote, de 1000 cruzados, constava de bens de raiz (casas, vinhas, ferragial, olival, metade de uma seara à Fonte Coberta) e móveis (100$000 réis em dinheiro); a noiva, Xxxxxxxxx Xxxx, viúva, dotou-se com 2000 cruzados em bens móveis42. Já em 1624 Xxxxxx xx Xxxxxxxxxx, viúva, dotara a filha exclusivamente com as legítimas do pai e as suas, num contrato em que o noivo faz declaração de arras43.
Num complexo processo de contrato de casamento entre primos (Xxxxxx Xxxxxxx, e Xxxxxxxxx
de Xxxxxxxx) os tios de ambos baseiam-se também na questão das terças. Em 1626, Xxxxxxxxx Xxxxxxx00, sargento-mor de Évora, casado com Xxxxxx xx Xxxxx, estabelece um contrato de casamento com Xxxxxxxxx Xxx Xxxxx, casado com Xxxxxxxxx xx Xxxxxxxx (em segundas núpcias). Xxxxxxxxx dotou a filha do primeiro casamento, Xxxxxxxxx, com a terça dos seus bens à altura do seu falecimento (reservando 20$000 réis que haveria por morte da actual mulher) e em seu nome e da actual mulher davam e dotavam Xxxxxx, seu sobrinho, também a terça dos seus bens
39 ADE. Notarial de Évora, Livro 597, f. 19.
40 ADE. Notarial de Évora, Livro 443, f. 87.
41 ADE. Notarial de Évora, Livro 616, f. 55. 42 ADE. Notarial de Évora, Livro 593, f. 133v. 43 ADE. Notarial de Évora, Livro 492, f. 117.
44 Xxxxxxxxx Xxxxxxx surge noutro contrato de casamento como tutor de Xxxxxx xx Xxxx, recolhida no Recolhimento das Donzelas de Évora, órfã de Xxxxxx xx Xxxxx e de Xxx Xxx. Ela deveria casar com Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, que para tal apresentou licença que obtivera junto do arcebispo D. Xxxx xx Xxxx. ADE. Notarial de Évora, Livro 423, f. 21.
(reservando também 20$000 réis) que, por morte de Xxxxxx, se anexariam ao morgado que os pais do noivo instituiriam no contrato (a partir das suas terças). Estes últimos dotaram o noivo e sua futura mulher com 500$000 réis (em bens móveis, que incluíam o pagamento do vestido da noiva, e de raiz), e as terças que se achassem à hora da sua morte, tomadas dos melhores bens do casal, reservando também 20$000 réis para poderem testar, ficando com a obrigação de 5 missas/ano no convento do Carmo pelo oitavário de Todos-os-Santos. Determinavam que os bens deveriam para sempre ficar juntos e unidos à capela e seus bens45, passando ao varão mais velho (ou filha, se não houvesse filho varão) e seus descendentes; se o descendente “[...] se cazar com alguma pessoa que tenha alguma Rasa de Judeu ou de mouro que em tal cazo perderá a dita capela e bens della e passara logo ao outro herdeiro conforme o direito”46.
3. OBRIGAÇÕES DOS DOTADOS
Em 1640, quando Xxxxxxxxx Xxxxxx, lavrador natural de Portel, assegurava aos noivos, além do dote inicial, uma renda anual durante seis anos, exigindo ao noivo, estudante de Filosofia na Universidade de Évora, que “[...] estudará os dous annos q[ue]lhe faltão pera acabar a filosofia, E os quatro annos aprendera medesina na cidade de Coimbra E acabados os ditos seis annos E elle dito futuro noivo formado pela Universidade lhe pormete mais sincoenta mill reis logo depois de ser formado”47. Muitas das obrigações são obrigações pias, tratando-se especialmente de dotes que envolvem bens vinculados. Algumas dotadoras, particularmente em relação a irmãs, estão em espaço de clausura. Tal é o caso, em 1626, de Xxxxxxxx xx Xxxxxxxxxx, recolhida em S. Xxxxx xx Xxxxxxx, e que se faz representar no contrato de dote de casamento da irmã pelo advogado Xxxxx Xxxxxx. Xxxxxxxx dotou a irmã, Xxxxx xx Xxxx, para casar com o pedreiro Xxxx Xxxxxx, com todos os seus bens móveis e de raiz, dinheiro, ouro e prata. Porém, no contrato ficava explícita a obrigatoriedade de pagamento de uma renda vitalícia a Xxxxxxxx de 2000 réis/ano por altura da Páscoa48. Um ano antes, em 1625, Brites de S. Xxxxxx, também recolhida, mas no mosteiro de Santa Clara, participou no dote de casamento do sobrinho, Xxxxxxx Xxxxxxx, meirinho da Universidade de Évora, para casar com Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx, filha de Xxxxxx Xxxxxxx, que fora familiar do Santo Ofício. Dotou-o com uma vinha ao Degebe, foreira in perpetuum à Sé da cidade49; no mesmo dote participou outra tia de Xxxxxxx, solteira, essencialmente com bens imóveis, e com todo o móvel que tivesse à altura da morte, reservando para o enterro e “bem d’alma” 10$000 réis50. Este contrato de dote completar-se-ia com o dote da noiva pela mãe em 500$000 réis em dinheiro de contado, 240$800 réis em peças de ouro e prata e móveis de
45 “[…] os quais bens que assim ficarem e couberem em ambas as ditas tersas em tempo algum não se poderam vender dar doar tocae escambar partir devidir antas andaram sempre junJuntos E unydos a dita capella e bens della sem se poderem apartar a qual capela e bens della ficara ao filho macho e mais velho do dito Fellipe Xxxxxxxx e da dita sua molher Xxxxxxxxx xx Xxxxxxxx em falta de macho antam ficara a dita capela a filha mais velha e day em diante andara a dita capela e bens della nos descendentes delle Fellipe Xxxxxxxx e os que despois delle herdarem sobcederem na dita capela das ditas tersas seram hobrigados cada hum deles a anexar em suas tersas a dita capela pera que assim as gerasois vam em crescimento e se nam deminuam”. Ibidem, f.7v.
46 Idem.
47 ADE. Notarial de Évora, Livro 626, f. 49.
48 ADE. Notarial de Évora, Livro 556, f. 102.
49 ADE. Notarial de Évora, Livro 494, f. 144.
50 Ibidem, f. 142v.
casa, e ainda bens imóveis: uma quinta no sítio da torre de S. Xxxxx e a legítima do pai (59$917 réis e um ceitil na metade de uma quinta ao Motum); os bens imóveis implicavam obrigações em missas, aos bacharéis da Sé e aos frades de S. Xxxxxxxxx, respectivamente51. Se algumas obrigações passam pela exigência dos dotadores em que bens vendidos que fizessem parte do dote terem que ser necessariamente repostos por outros com características de bens dotais52, outros contratos são mais complexos nas suas exigências. Tal foi o caso do dote que fizeram Xxxxx xx Xxxxx, fidalgo da Casa Real, e sua mulher, Xxxxxx xx Xxxxx, a Xxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxx, também fidalgo da Casa Real, para casar com a filha, Xxxxxxxx xx Xxxxx. O dote constava de 2000 cruzados, a maior parte (3/4, ou seja, 1500 cruzados) em bens de raiz, que seriam tomados das suas terças; para este efeito, nomearam 30$000 réis de foros/ano, pelos ditos 1500 cruzados à razão de 5%. Os 30$000 réis de foros foram doados aos noivos em morgado, com obrigação de duas missas/ano. Além disso, deveriam assegurar a continuidade do morgado, conservando limpeza de sangue53.
Alguns dos contratos analisados expressam, logo no título, a sua abrangência: são contratos
de dote de casamento e declaração dele e obrigação, como aconteceu em 164054, com o Dr. Xxxxxxx Xxxxxx e D. Xxxxx xx Xxxxxx, filha e genro de D. Xxxxx xx Xxxxxx Xxxxxxx e do licenciado Xxxx Xxxx. Um irmão deste último, Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxx, morrera sem descendentes, e do remanescente dos legados determinara a instituição de um morgado composto por toda a sua fazenda, e que passaria à sobrinha depois do falecimento do pai. Xxxx Xxxx prometera que largaria o morgado caso a filha xxxxxxx, circunstância que o contrato testemunhava, simultaneamente a um conjunto de obrigações que os noivos teriam que cumprir: 20$000 réis/ano vitaliciamente aos pais, que largavam o morgado, 20$000 réis/ano à viúva de Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxx, 6$000 réis para “ [...] aviarem a seu filho pero xxxxxxxx de távora [irmão da noiva] para ha yndia [...]”, devendo pagar 1000 cruzados a Xxxx Xxxxxxxx e outro tanto a Xxxxxxxx xx Xxxxxx, irmãs da noiva, para com “[...] com elles tomarem estado de vida [...]”, devendo ainda os noivos sustentá- las e alimentá-las em sua casa até que isso acontecesse. O morgado tinha muitas dívidas por cobrar, tarefa a que os pais da noiva se comprometiam, com a obrigação, porém, de os noivos lhes entregarem, das dívidas cobradas, 900$000 réis, além de, ainda no ano de 1640, terem de receber ainda metade dos rendimentos do morgado.
4. MONTANTE E COMPOSIÇÃO DOS DOTES
O dote mais elevado atribuído a um noivo foi de 4.000$000 réis, e o menor de 100$000 réis, sendo o mais frequente o de 300$000 réis e apenas com 3 casos55. No caso das noivas, além
51 Ibidem, f. 145v.
52 Xxxxxx xx Xxxxxxxxxx, médico do Santo Ofício, dotou a filha, Xxxxxxx Xxxxxxxxx, para ela se casar Xxxxxxx xx Xxxxxx xx Xxxxx. Do dote, avultado (5000 cruzados), 2000 cruzados foram em bens móveis, 1000 numas casas à Freiria, em Évora, e os restantes 2000 cruzados em bens de raiz localizados no termo de Viseu, que, a serem vendidos pelos noivos dada a distância a que se encontravam, teriam que ser substituídos por bens com o mesmo valor e com as características de bens dotais. ADE. Notarial de Évora, Livro 573, f. 42.
53 ADE. Notarial de Évora, Livro 574, f. 5v. 54 ADE. Notarial de Évora, Livro 447, f. 26.
55 O Fundo da Família Xxxxxxxx regista um dote de 800$000 réis dos pais do noivo ao filho, Xxxxxxxx Xxxxxxx, em 1625 (a noiva levou bens de raiz no valor de 1$400 réis); e o dote de casamento de Xxxxx de Xxxxx xx Xxxxxxx com Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxx, em que os pais dotam o filho com 11.250 cruzados, dando ainda 1000 cruzados de arras à noiva, e o irmão da noiva, monge de Xxxx, dota-a com 9.320 cruzados, sendo alguns bens de morgado. ADE. FAFC. SR. 06, peças 9 e 12.
de se registar uma maior amplitude nos dotes (entre os 10$000 réis e os 16.000$000 réis), as categorias intermédias também se impuseram, sendo os dotes mais frequentes os de 800$000 e 300$000 réis (5 casos cada), seguidos dos de 400$000 réis (4 casos) e 500$000 réis (3 casos). Para as donzelas que entravam em religião no mosteiro de S. Xxxxx xx Xxxxxxx o dote mais frequente ao longo do século XVII (tal como o fora no século anterior) é o de 400$000 réis, com uma percentagem de 25,4%. Os dotes de 600$000 réis, 23,1% dos casos analisados, tornaram- se comuns a partir do último decénio do século XVII. O dote menos significativo é de 50$000, variando até 1.000$000 de réis, não esquecendo o papel primacial que o dote desempenhava nas economias monásticas femininas56.
Em relação aos bens móveis, a presença de dinheiro, vestidos, roupas de cama e de mesa (surgindo estes três itens de forma descriminada) é típica da constituição dos dotes femininos57; ouro, prata e jóias só aparecem em dois dotes de noivos. A referência a tapetes e alcatifas na formação dos dotes apenas consta nos dotes femininos, ao passo que móveis de casa já são de mais comum referência em ambos. Os escravos, presentes em 15,5% dos contratos analisados, fazem parte tanto de dotes masculinos como femininos, variando entre um e nove, sendo que os maiores números (oito e nove) faziam parte de um dote masculino; o seu valor oscila entre 30$000 e 70$000 réis. O dote masculino de 1613 em que entravam os 9 escravos contou também com 300 ovelhas, 100 porcos, 8 bois, 20 cabras, 2 cavalos e 2 mulas, além dos bens imóveis e de alguns móveis. Dos bens com que Xxxxxxxx Xxxxx, viúva, entra neste casal constam também escravos “[...] xxxxx xxxxx, Xxxxxx xxxxxxx e Xxxxxx mullata [...]” 58; o gado, se faz sobretudo parte dos dotes masculinos, não está ausente dos femininos, havendo casos em que os “bens semoventes e artigos de lavoura” estão presentes no mesmo valor, entre noivo e noiva, num contrato de 1623.
Na constituição do valor dos dotes entrava algumas vezes de forma bem específica a
cobrança de dívidas antigas, de dinheiro a juro ou ainda, como já acima referenciámos, que o dote incluía legítimas do pai ou da mãe, ficando em muitos casos a promessa que, pelo contrato do dote, a noiva ou o noivo podiam ter acesso à terça dos progenitores/dotadores. Os contratos de dote tornavam-se ocasiões por excelência para que na nota ficassem registados compromissos incumpridos, e em que só o pagamento do dote permitia saldar, entrando esta cobrança na composição total do dote. Isto passava-se mesmo entre senhores e criados. Tal foi o caso do dote de casamento de D. Xxx xx Xx Xxxxx, em 1638. D. Xxx era dama de companhia da marquesa de Ferreira, e era para casar com Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx, também criado dos marqueses, que assistiram ao contrato. A noiva entrava no casal com bens imóveis, sendo nomeada uma casa em Madrid, avaliada em 1.394.000$720 réis (um conto de réis mais 394$720 réis), bens móveis (essencialmente vestidos, roupa branca, jóias, ouro e prata) mas também 186$000 réis que
56 “La economía de las religiosas se contenía en un marco teórico y unos princípios de legitimación moral y de autorepresentación que, más allá de la riqueza y poder de conventos y monasterios, subrayaban los valores del claustro, de la pobreza y del desprecio a la ociosidad”. XXX XXXXXXXX, O., «Las instituciones monásticas femeninas, ¿centros de producción?», Manuscrits: Revista d Història Moderna, 2009, nº 27, p. 73.
57 A este propósito, cfr. XXXXXX XXXXXXXXX, M., «El patrimonio doméstico y su simbología. La cultura popular castellana a través del ajuar mobiliario del hogar durante el antiguo régimen», en DE DIOS, S. (coord.), Historia de la propriedad: patrimonio cultural. III encuentro interdisciplinar, Madrid: Servicio de Estudios del Colegio de Registradores, 2003, pp. 71- 102.
58 ADE. Notarial de Évora, Livro 474, f. 78.
emprestara à falecida marquesa; os actuais marqueses, além de dotarem D. Ana com 400$000 réis, reconheciam a dívida anterior, comprometendo-se a saldá-la, em nome dos seus bens e fazenda59. Em 1633 um caso muito semelhante envolvera Xxxxxxx Xxxxx, vedor de D. Xxxxxx xx Xxxxxxxx, conde de Vimioso. Xxxxxxx e a mulher, Xxxxxx Xxxx xx Xxxxxxx, dotaram a filha em 400$000 réis, dote composto na sua totalidade por bens móveis: 200$000 em móveis e pertenças de casa e 200$000 em dinheiro de contado, dinheiro que o conde lhe estava devendo e lhe enviaria, conforme ficou escrito no contrato60. Observamos que os casos de dívidas eram alvo de preocupações especiais na altura das escrituras, devendo ficar também neles clara a obrigação de quem as saldaria. Em 1634, Xxxxxxx Xxxxxx, viúvo e com filhos, sapateiro de obra-prima, e Xxxxx xx Xxxxxxxxxx, também viúva, chegam a acordo para firmarem contrato de casamento. Xxxxx entra sem nenhum bem para o casal, porque tudo lhe haviam tomado das dívidas do falecido marido; Xxxxxxx tem a preocupação de deixar bem claro que casava com a condição de nada pagar das dívidas que eventualmente envolvessem Xxxxx, e, no caso de morrer primeiro que Xxxxx, quer houvesse filhos do casal quer não, ela nunca levaria mais do que metade dos adquiridos, pois entrara no casal sem nada61.
Em 30 casos (17,5%) quantifica-se com clareza no contrato a totalidade dos bens móveis dotados, não sendo muitas vezes possível estabelecer a proporção entre bens móveis e de raiz. Nos restantes, há uma correspondência absoluta entre o total de bens móveis dotados e o valor total do dote em 10 casos, representando em mais 19 casos entre a metade e dois terços do total do dote. Um dos contratos de dote de casamento mais curiosos que localizámos, não tanto pela descrição em termos de bens materiais mas pelas quantias envolvidas, respeita ao contrato de casamento, em 1635, entre Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx, viúvo, e D. Xxxxx xx Xxxxxxx, também viúva, e representada no acto contratual por D. Xxxxxxxx xx Xxxxxx, cónego prebendado da Sé de Évora. O noivo, além dos 8 escravos, gado, móveis de casa, armações e prata com que entrava no casal, somando 6000 cruzados, acrescentava ainda rendas diversas, recolhidas em herdades, casas, pomares, hortas, nos termos das Alcáçovas, Torrão, Viana do Alentejo, Ferreira, Santiago do Cacém, Alvito, além de juros recolhidos no almoxarifado de Évora e uma demanda com D. Xxxxx xx Xxxxxx, e seu filho Xxxxxx Xxxxxx xx Xxxx, em que pedia 7200 cruzados. Por sua vez, a noiva apresentou um rol, através do seu procurador, onde os bens móveis e de raiz somavam 40.000 cruzados, representando os de raiz 26.000 cruzados e 180$000 réis62. Somam-se vários foros em Mafra, em Algés, Vila Fria, junto a Oeiras, Benfica. A noiva aguardava ainda a liquidação de uma dívida da Câmara de Lisboa, que durante 7 anos usufruíra indevidamente dos rendimentos do casal em Loures (significando 12 moios de trigo/ ano); assinou o rol que foi apresentado, fazendo questão de notar que haveria muitas “[...] cousas de que não tenho noticia que se acharão”63.
Nos dotes mais descritivos, é perceptível o facto de as dotações para as filhas, donzelas
59 ADE. Notarial de Évora, Livro 444, f. 85.
60 ADE. Notarial de Évora, Livro 437, f. 48. 61 ADE. Notarial de Évora, Livro 438, f. 117v.
62 Os bens de raiz incluíam umas casas no Rossio, em Lisboa, uma quinta “[…] a que chamão alcabedeche yunto a uila de Cascaes em seo termo que comtem casas muito nobres pumares uinhas com hum casal que Rende dois moyos de pão porque se dão as terras delle ao terço […] hum oliual ao chafaris daRoios yunto desta Cidade com casas que /Rendem sette mil Reis sameandose a terra que Rende o dito oliual auendo nouidade huma pipa de azeite […] hum casal de Loures”. ADE. Notarial de Évora, Livro 517, f. 46.
63 Idem.
solteiras, serem mais significativamente compostos por bens de uso quotidiano ou de adorno, numerário, peças de ouro, prata e jóias, roupa de cama e de casa, mobiliário, em vez de bens imóveis64 – seriam bens para sustentabilidade imediata do casal, como o prova também a existência de escravos, nos dotes mais significativos. Porém, quando passamos para a questão da mulher viúva, sobretudo da estabelecida numa herdade, tal supremacia não é visível. Casos singulares também surgem, como, em 1644, o de D. Xxxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx, donzela maior de idade e emancipada, que, além do dote da mãe, se dotou a si mesma em 9000 cruzados, onde entravam 3000 cruzados em dinheiro, vários bens imóveis, cobrança de dívidas e também em 600$000 réis que lhe chegariam das 17 caixas de açúcar, 13 de açúcar branco e 4 de açúcar mascavado, que estavam para se vender no porto de Lisboa, mais 180$000 que estava à espera que lhe chegassem da Baía de Todos os Santos (supomos que também em açúcar)65.
A grande riqueza desta documentação tem precisamente a ver com as descrições, que, se permitem algumas generalizações, também devem ver sublinhados os seus particularismos. Em 1640, Xxxxxxxxx Xxxx Xxxxx Xxxxxx, moço solteiro e emancipado natural de Portel, dota Xxxx Xxxxxxxx, natural de Viana, e Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxx, natural da Guarda, e estudante na Universidade de Évora. Do dote da noiva constam, em peças móveis, em que constam roupa de cama e de mesa, vestuário e jóias66. Outra descrição do vestuário feminino na Évora da altura encontra-se no dote de Xxxxxxxx Xxxxxxx, em 1631, em que entravam 2 vestidos, um preto e um de cor, “E o preto será na maneira seguinte: saio e saia e gibão e manto de sarja e o de cor saio e xxxxxxxxx e manteo tudo nouo”67. Alguns anos antes, em 1615, no autodote de Xxxxx Xxxxxxxx, constam 2 vestidos “[...] hum de xxx xxxxxxxxx saio e saya e yubam e outro de perpetuana e hum manto de butate, seis toalhas de cabessa de linho e ollanda seis lensos de linho e ollanda seis camisas de linho e naual dois giboes laurados de canequim [...]”68. No grandioso dote de
D. Xxxxx xx Xxxxxx, de 40.000 cruzados, entre os muitos bens constam 13 dúzias de botões de ouro, valendo, em 1635, 40$000 réis69. Algumas descrições de jóias são muito curiosas: “[...] esmeraldas das orelhas com seus pensamentos [...]”, como vemos no dote de D. Xxxxx xx Xxxxxxx, em 163870. Em relação ao vestuário, às jóias e às peças de ouro e prata que constam dos dotes temos as seguintes referências nos contratos analisados:
64 Cabe aqui lembrar o conteúdo do foral manuelino de Évora, de 1501, em que circulavam na cidade 350 produtos, tanto onerados como isentos, sendo que eram 25 no foral medieval da cidade, e que, no foral xxxxxxxxx xx Xxxxxx xxxx 000 x xx xx Xxxxxxxx 000; desses produtos, 37% eram considerados de luxo (artigos de marçaria, especiarias, tinturaria, panos finos, pedraria fina e preciosa); eles representavam 30% nos forais de Lisboa ou Santarém. São também referidos materiais de construção de primeira qualidade (tal como Lisboa e Santarém), provando a qualidade urbanística e a sua relação com o poder: mármores do Levante, por exemplo.
65 ADE. Notarial de Évora, Livro 531, f. 77v.
66 “[…] oito lençóis de linho, 6 travesseiros, 6 almofadinhas de linho fino d’olanda, hu pavilhão, seis mesas de toalhas adamascadas e de linho, oito toalhas de mão guarnecidas, dous colchões […] dous mantos de seda hum de pezo com sua renda flamenga outro de bureta de seda, hum vestido de gala negro saja E gibão, outra saja e gibão de tafetá dobre, outra saja de flandres da mesma cor, com gallão de pratta, outra saia E gibão de sarafina acabellada, Roupão de satim negro guarnecido fraldelim de pano fino vermelho com pasamanes E bordado de tafetá, mais vestidos de seu uzo dous cobertores, hum novo de papa, outro azul, seis aneis de ouro, huas orilheiras, huas cristallinas estremadas // de ouro. Xx Xxxxxxx co sua crus e uinte aljofres na gornissão, outra crus de ouro, hua Verónica emcastrada em leal ouro hua jarrinha de ouro hu tapete tres guardamesins hua tripessinha de Estrado com tres gavetas da India, hua arca emcourada, hu Bofete duas cadeiras, hu vellador da India alguas toalhas da cabessa hua teia de linho, loussa e dous pratos de Estanho”. ADE. Notarial de Évora, Livro 626, ff. 49v-50.
67 ADE. Notarial de Évora, Livro 509, f. 58.
68 ADE. Notarial de Évora, Livro 477, f. 87. 69 ADE. Notarial de Évora, Livro 517, f. 44v. 70 ADE. Notarial de Évora, Livro 523, f. 53v.
QUADRO 1. COMPOSIÇÃO DOS DOTES – VESTUÁRIO, JÓIAS E METAIS PRECIOSOS
Roupa de vestir | Descrição das jóias | Descrição de peças de ouro e prata |
- camisas (de linho e naval) - fraldelim - gibão (lavrado de canequim; de perpetuana) - lenços (de linho e Ollanda) - manteo de cochonilha - mantilha (de chamalote d’ouro forrada de pelúcia; de veludo) - mantos - roupão (de veludo - saia - saio - fraldelim - colete - vasquinha (de grã barrada) - vestido inteiro - chapins; chapins de damasco - capote | - corais (finos com extremos e cruz de ouro, estremados) - contas guarnecidas de ouro - “esmeraldas das orelhas com seus pensamentos” - jóia de ouro do peito - rosário com cruz e aljofres na decoração - verónica encastrada em ouro | - anéis (de ouro, de ouro com suas pedras) - apertador de cabeça de ouro - brincos d’orelhas de ouro (ou orilheiras de ouro) - botões de ouro - cabaça de prata - cadeia de ouro (de 2 voltas; com crucifixo de ouro) - colar de ouro - colheres e garfos de prata - copo de prata - púcaro de prata - taça de prata - cristalinas estremadas de ouro - cruz de ouro - jarrinha de ouro - relicário de ouro - crucifixo de ouro |
Fonte: Arquivo Distrital de Évora, Notariais de Évora, Livros 373-626.
Mesmo nos dotes mais humildes, figurava sempre uma cama de roupa e adereços do leito, “[...] a saber hum çeo com suas cortinas de canequim e hum colchão cheo de lãa e hum chumaso de tres cheo de lãa e hum cubertor de pano vermeljo goarnesido [...]” 71. O uso da cama de roupa também se verifica no dote de Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, em 1631, quando o pai a dota com “Huma cama de roupa como he costume entre pessoas de sua callidade e todos os uestidos que a dita sua filha de presente tem E allem dello lhe prometião mais um sayo de baeta noua ou dous mill reis por elle e algum mouel de casa”72. Vários trabalhos têm vindo a abordar a questão da presença do leito, em termos físicos, e da sua raridade nos lares, recorrendo-se muitas vezes a simples estrados ou catres73; a análise do presente conjunto documental prova
71 ADE. Notarial de Évora, Livro 526, f. 66. 72 ADE. Notarial de Évora, Livro 562, f. 91v.
73 A este respeito, remetendo para a função simbólica do leito enquanto objecto que reflectia o poder e a riqueza do proprietário, cfr. XXXXX, X., «Entre o campo e a cidade: bens móveis e de raiz nos dotes de casamento em Guimarães», en XXXXXX XXXXXXXXX, X. x XX, I. dos G. (coords.), Portas adentro: comer, vestir e habitar na Península Ibérica (ss. XVI-XIX),
efectivamente a sua raridade nas descrições (surgindo algumas vezes a referência ao catre) mas quando surge é normalmente de uma forma exuberante. Em 1615 temos a referência, no autodote de Xxxxx Xxxxxxx, um “leito de bordo com suas quartinas sobreseo de naval guarnecido com suas franjas”74; em 162475, “um leito novo de bordo com suas cortinas e séo” fazia parte do dote de casamento de Xxxxxxxx Xxxxx; em 1627, no dote de D. Xxx xx Xxxxxxx00 constava “um leito de seo e cortinas de tafetá amarelo e encarnado com seu cobertor de tabí encarnado”; do dote de Apolónia Martins77 (1631), um leito com suas cortinas; do de Xxxxx xx Xxxxx00, no ano seguinte, um leito dourado (avaliado em 3$000 réis) e umas cortinas com seu céu do leito com suas franjas (4$000 réis); constava do rol de D. Xxxxx xx Xxxxxxx, que sua mãe enviara ao noivo, Xxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx, em 1638, um leito dourado com cortina de seda79; em 1642 encontramos referência, no dote de Cecília, moça ao serviço de D. Madalena de Lencastre, a “um leito novo com paramento de cramezim com as franjas de retros”80. Da análise dos contratos de casamento, em relação à roupa e aos móveis utilizada no quotidiano eborense, temos os seguintes dados:
Valladolid: Universidad de Valladolid, Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial - Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010, pp. 171-192. O leito seria o móvel, raro e desconhecido certamente pelos mais humildes, com cortinas, aparelhado pela cama de roupa; o autor do artigo chama porém a atenção das acepções diversas que o termo pode ter, sobretudo se se recuar para a medievalidade. Também o trabalho de Xxxxxxx Xxxxxx sobre o Porto no século XVII com base na Pragmática de 1609 sublinha o valor cimeiro de objecto de luxo atribuído ao leito, logo seguido das roupas de cama completas. Cfr. DURÃES, A., «Luxo e vida privada: O exemplo da Pragmática de 1609», Boletim Informativo do Núcleo de Estudos de População e Sociedade, 2007, série II, nº 1, pp. 19-40. Para zonas próximas de Évora, Xxxxx Xxxxxxx refere a existência de apenas um leito ou catre por habitação para o casal, dormindo os restantes membros do agregado familiar em estruturas mais rudimentares (por exemplo, esteiras). Cfr. XXXXXXX, X., «O interior doméstico em Montemor-o-Novo no século XVII», Almansor: Revista de Cultura (1ª Série), 1991, n° 9, pp. 155-194.
74 ADE. Notarial de Évora, Livro 477, f. 87. 75 ADE. Notarial de Évora, Livro 553, f. 17v.
76 ADE. Notarial de Évora, Livro 421, f. 140, em que o pai de D. Xxx, o Dr. Xxxxxxxxx xx Xxxxxxxxxx xx Xxxxxxx, a dotava, depois de ela estar já casada por igreja há 3 anos, vivendo em sua casa.
77 ADE. Notarial de Évora, Livro 509, f. 58. 78 ADE. Notarial de Évora, Livro 511, f. 65v. 79 ADE. Notarial de Évora, Livro 523, f. 53. 80 ADE. Notarial de Évora, Livro 595, f.66v.
QUADRO 2. COMPOSIÇÃO DOS DOTES – MÓVEIS E ROUPAS DE CAMA E MESA
Móveis de casa | Roupa de cama | Roupa de mesa e casa |
- arca (encourada, | - almofadinhas | - guardanapos (lavrados, adamascados) - toalhas (de mão guarnecidas, de pano de linho, de frandres guarnecidas, da terra guarnecidas, de canequim, de naval, meias toalhas da terra) - toalha de rede de janela |
de cedro, de bordo, | - cama de roupa | |
de freixo, pequena | - cobertores (de damasco | |
atamarada, pequena | amarelo forrado de tafetá, | |
de toucados com seu | de cochonilha, ou de | |
tapete, pequena de | cochonilha barrado, de | |
bordo com cofre de | xxxx, xx xxxx xxxxx, xx | |
xxxxxxx) | xxxx xxxxx) | |
- xxxxxxxx | - xxxxxxx (xxxxxx da | |
- bufete | Índia, da terra franjada, | |
- cadeira81 (rasa, de | de rede xxxxxxx xx xxxx | |
xxxxxxxx, xxxxx xx | xx Xxxxx) | |
descanso, de estrado) | - colchões (de linho, | |
- catre de nogueira | meios colchões de | |
- cofres (de toucados; | pano de linho) e meios- | |
de vestidos, peças de | colchões | |
ouro e brincos) | - chumaços | |
- escritório (grande, | - dianteiras de cama | |
da China, de | - lençóis (de linho, | |
nogueira, de prata e | d’ollanda) | |
tartaruga) | - pavilhão | |
- estrado de pinho; | - toalhas ( de baptizar, | |
estrado com esteira | de águas mãos, de | |
- lambel (de arcas, de | águas mãos de ollanda | |
cores de estrado) | guarnecidas | |
- leito (dourado, de | - travesseiros ( de | |
bordo) | trancinha, d’ollanda, | |
- mesa (de bordo, de | d’ollanda guarnecidos | |
bordo com seus pés) | lavrado, chão) meios- | |
- tarrocheiro da China | travesseiros, com fronhas | |
- tripessa de estrado | e chumaços | |
com três gavetas da | ||
Índia | ||
- velador da Índia |
Fonte: Arquivo Distrital de Évora, Notariais de Évora, Livros 373-626.
Parece-nos imperioso notar a diversa tipologia das arcas, em termos de materiais (couro, cedro, freixo, adornos e funções, a par dos cofres; neste universo, notemos ainda a alusão ao
81 As questões do uso quotidiano dos objectos vêm sendo estudadas desde há algum tempo, de que salientamos a obra de XXXXX, D., Histoire des choses banales. Naissance de la consommation dans les sociétés traditionnelles (XVIIe-XIXe siècles), Paris: Fayard, 1997. Um dos exemplos que pode ser observado é o do uso das cadeiras, na medievalidade reservadas quase exclusivamente ao rei e ao clero, significando o século XV o seu uso a nível doméstico; na documentação compulsada são referidas, como vemos, as cadeiras rasas, as de descanso e as de estrado, denunciando variedade de funções.
Oriente (tarrocheiros e escritórios da China, tripeças e veladores da Índia) a par do exotismo e riqueza das matérias-primas: nogueira, prata e tartaruga. Ao mobiliário e roupas se juntavam ainda os objectos pessoais (espelhos, teias da cabeça e lenços, escabelos), os adereços de casa (alcatifas, panos-de-arras, almofadas), as louças (desde porcelanas da Índia aos espetos e bacias de amassar) e utensílios de cozinha, ficando-nos ainda o registo do notável conjunto de tecidos e suas procedências, bem como de aplicações, que ainda circulavam na cidade:
QUADRO 3. COMPOSIÇÃO DOS DOTES – ADEREÇOS, LOUÇAS E TECIDOS
Objectos pessoais e adereços de casa | Louça/utensílios de cozinha | Tecidos/aplicações |
- alcatifa (de estrado, da Índia) - pano de Ras (Arras) - almofadas (de couro, de veludo e damasco) - castiçais de latão - céu de cortinas com alparavazes franjados - cortinas com seu céu do leito, com suas franjas - coxins de veludo - espelho - escabelo de pinho - panos de guadamesins (de peles) - guardaporta (de peles) - retábulos - tapete - cortinas - toalhas de rede de janela - armilha - toalhas de cabeça/ de cabelo (de linho, de naval - teias da cabeça - lenços (de linho, d’ollanda) | - almofariz - bacias grandes e pequenas de arame - bacia de amassar - caldeirão grande de cobre para tirar água do poço - candeias - colheres de ferro - espeto - jarro - porcelanas da Índia - prato (de estanho, de águas mãos de estanho, prato e jarro de estanho de água mão) - rapadouros de ferro - saleiro - tacho de cobre - cântaro de cobre - trempe - bacia de amassar - tabuleiros | - baeta; bureta de seda; butate - canequim; cetim; chamalote - damasco - espolim - flandres - galão de prata ; grã - linho fino da Holanda - naval - pano (de linho, da Índia, fino avermelhado com passamanes, bordado de tafetá) - perpetuana - renda flamenga - serafina acabelada; sarja; seda - tafetá cobre - veludo - felpa - tela; tabí - serafina (ou perpetuana picotada) |
Fonte: Arquivo Distrital de Évora, Notariais de Évora, Livros 373-626.
Comparando com o dote de entrada em religião para a mesma altura no mosteiro que vimos citando, o mosteiro feminino cisterciense de S. Xxxxx xx Xxxxxxx, ele continha uma tripla
exigência material: o dote, as pensões (alimentos, propinas, jantares, cera, duas camas) e o enxoval (normalmente, vestidos e roupa de cama); deste último, as descrições exaustivas não são muito abundantes, e algumas dessas descrições correspondem a momentos de partilha de herança82, onde determinadas peças inventariadas são citadas como já tendo sido levadas pelas religiosas aquando da entrada para o mosteiro. Em 1662, aquando das partilhas por morte de Xxxxxx Xxxxxxx, médico, foi contabilizado o que sua filha já recebera em dote para entrar em
S. Xxxxx xx Xxxxxxx, Xxx Xxxxx xx Xxxxxxxxxx (entre os quatro descendentes). Além do dinheiro recebido, 300$000 réis, propinas de entrada e profissão para as demais religiosas, é também descrito o enxoval83.
Nos contratos de novo casamento (segundas núpcias) analisados entre 1600 e 1645 os bens imóveis têm clara predominância sobre os móveis, o que não acontece no primeiro casamento (sendo normalmente, no máximo, ¼ do total), o que resulta do investimento do fundo dotal feito pelo marido defunto84. Em relação aos bens móveis, nem em todos os contratos eles estão descriminados de forma pormenorizada (muitas vezes é indicado apenas o montante em dinheiro), sendo a sua descriminação esclarecedora em 110 deles, permitindo uma análise relacionada com a cultura material coeva85. Nem todos os contratos tinham o total clarificado, e, de entre eles, 16 respeitavam na sua totalidade a bens de raiz, sendo 10 relativos a dotes atribuídos a homens.
5. MONTANTE E COMPOSIÇÃO DAS ARRAS86
Uma palavra ainda para a esparsa referência às arras, mas referidas enquanto tal (e não como doação à noiva pelo noivo, como também ocorreu) nos contratos analisados, tendo presente a legislação que as contextualizava. Em apenas 4 contratos localizámos declaração de arras. Em 1611, Xxxxx xx Xxxxx, donzela de D. Xxxxx xx Xxxxxx, mulher de D. Xxxxx xx Xxxxxx, estabelece contrato de casamento por dote e arras com Xxxxxxxxx Xxxxxx, escrivão da Câmara da vila de Garvão87. Vinte anos depois, em 1631, Xxxxxxxxx Xxxxxxx, solteiro e emancipado, ourives
82 Em diversos inventários de bens de meados do século XVI ao primeiro quartel do século XVII, que precediam partilhas, nos destinados a S. Bento encontramos notícia de escravos, de tecidos vários – “travesseiros d´ollanda, côvados de llondres, de peças de estanho e cobre, caixas e escritórios da Índia”, e até referência para porcelanas da Índia, Veneza e China. BPE. Fundo
S. Xxxxx, Xxxxx 21, Peça 1, f. 5 e Fundo S. Xxxxx, Xxxxx 20, Peça 82.
83 “[…] um manto de sete côvados de sarja, uma saya de serafina, um manteo de panno azul e quatro camizas, tres jubois de quanequim e três toalhas, e hum veo branco e huas botinas e hus capellos seis lensois e tres colchois pequenos de freira quatro traveceiros quatro almofadinhas e hum cobertor de panno e huã bacia de cama e hum catre de pao negro abronzeado e huns enserados que custarão seis mil reis e dois volantes de sarja para a profição hum espelho e hum gral, que tudo importa em trinta mill reis”. BPE. Livro Tombo S. Xxxxx, x. 151.
84 No estudo de Xxxx Xxxxxxxxxx sobre os dotes de casamento em Veneza no século XVI, também a percentagem de bens imóveis presentes nos dotes de segundas núpcias (59%) é muito superior aos do primeiro casamento (26%); esta última percentagem é, aliás, muito próxima da verificada em Évora. XXXXXXXXXX, A., «Dot et richesse des femmes à Venise» ... op.cit.
85 Cfr. XXXXXX XXXXXXXXX, X., «La dote femenina: posibilidades de incremento del consumo al comienzo del ciclo familiar. Cultura material castellana comparada (1650-1850)», en XXXXXX XXXXXXXXX, X. x XX, I. dos G. (coords.), Portas adentro … op.cit. p. 126.
86 Codigo Philipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal, Livro IV, título XLVII, «Das arras e camera cerrada», 1603. Acessível em: http:/xxx.xxxxxxxxxxxxx.xxxxx.xxx.xx/xxxxxxxx.xxx?xx_xxxxxx00&xx_xxxxx00&xxxxxxx000 [Consultado el 15-6- 2013]
87 No contrato estabelece-se que: “[…] o cazamento se entendera ser antre elles Xxxxxxxxx xxxxxxx E xxxxxx xx Xxxxx celebrado por dote e Xxxx na forma abaixo declarada e nem per carta da metade segundo custume deste Rejno salluo no que tocar aos bens adquiridos e nesses ainda com a limitassam abaixo declarada”. ADE. Notarial de Évora, Livro 460, f. 97v.
do ouro, para casar com Mécia Tavares “[...] dotou e deu de Arras a dita mesia Tavares pella calidade e honestidade da sua pessoa [...]88 100$000 réis em bens de raiz. Um ano depois, no contrato de dote de casamento de Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx, o pai do noivo, dotador, assumiu que se o filho morresse antes da noiva os 200$000 réis do dote em móveis que levava ficariam de arras para a noiva89. Em 1642, Xxxxxx xx Xxxx Xxxxxx, moço solteiro e emancipado, daria darras à noiva, se morresse antes dela e sem terem filhos “[...] por honestidade de sua pessoa quatrosentos mill reis de Xxxx xxxx xxxxxx e de Rais”90. São, pois, referências muito pontuais, mas precisas, reconhecendo especialmente a qualidade e a honestidade das donzelas, sendo que, no primeiro caso, a legislação se faria cumprir apenas em relação aos bens adquiridos.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Numa cidade sob domínio filipino, cada vez mais periférica, a história do quotidiano e da cultura material em Évora em inícios do século XVII, apreciada a partir dos contratos de dote de casamento, prova a circulação de bens e produtos que, em contexto socioeconómico e político desfavorável, provam o seu vigor. A alusão a produtos de luxo, a grandiosos enxovais que contracenam com humildes doações de início de vida, favorece também a ideia de uma sociedade de extremos. Curiosamente, será junto dos mais humildes que se nota maior solidariedade: a nobreza e a fidalguia optam pela doação de bens vinculados, assegurando a sua propriedade, e os dotes mais significativos têm quase sempre a ver com segundos matrimónios, provando ser o estado de viuvez um dos que consignava à mulher maior independência económica, quer quando contraíam segundas núpcias quer quando encaminhavam as suas descendentes (rapazes ou raparigas) para casamentos vantajosos. Por outro lado, se os dotes matrimoniais eram diversos, dependendo da proveniência socioeconómica dos nubentes, os dotes conventuais eram uniformes e fixados previamente para um mesmo mosteiro, devendo alhear-se das fortunas pessoais. Não eram, pois, iguais em todos os mosteiros nem em todas as ordens, sendo porém fixados pelos respectivos superiores. Naturalmente, no mesmo mosteiro o dote também variava de acordo com a conjuntura económica que o mesmo atravessava. A dispensa total ou parcial do dote dependia da Santa Sé e, a partir da instituição da Congregação Autónoma de Alcobaça, também da licença do abade geral.
Regista-se que também em Évora, em inícios do século XVII, o dote matrimonial,
maioritariamente atribuído às mulheres, é utilizado como veículo de transmissão patrimonial e administração de vínculos. Podendo entrar na sua composição a doação de ofícios ou privilégios em numerário, o dote é constituído por uma tipologia diversa de bens, sendo que a presença maioritária de bens imóveis no dote da noiva se verifica especialmente quando esta contraía segundas núpcias; os bens móveis são mais significativos no caso do primeiro casamento.
88 ADE. Notarial de Évora, Livro 508, f. 16. 89 ADE. Notarial de Évora, Livro 511, f. 16v. 90 ADE. Notarial de Évora, Livro 529, f. 148.