Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Ciências Sociais Faculdade de Direito
Xxxxxxxx Xxxxx
Comércio internacional de commodities: contratos de compra e venda internacional padronizado pelas instituições GAFTA e FOSFA
Rio de Janeiro 2021
Comércio internacional de commodities: contratos de compra e venda internacional padronizado pelas instituições GAFTA e FOSFA
Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre ao Programa de Pós-graduação em Direito (área de concentração: Direito Internacional), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Orientadora: Prof.a Dra. Xxxxxxx Xxxxxx xx Xx Xxxxxxx
Rio de Janeiro 2021
CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CCS/C
B344
Xxxxx, Xxxxxxxx.
Comércio internacional de commodities: contratos de compra e venda internacional padronizado pelas instituições GAFTA e FOSFA/ Xxxxxxxx Xxxxx. - 2021.
126 f.
Orientador: Profª. Dra. Xxxxxxx Xxxxxx xx Xx Xxxxxxx.
Dissertação (Mestrado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Direito.
1.Lex mercatória - Teses. 2.Relações internacionais – Teses. 3.
Globalização – Teses. I.Xxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xx. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Direito. III. Título.
CDU 341.1/.8
Bibliotecária: Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxx CRB7/5906
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a fonte.
Assinatura Data
Comércio internacional de commodities: contratos de compra e venda internacional padronizado pelas instituições GAFTA e FOSFA
Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre ao Programa de Pós-graduação em Direito (área de concentração: Direito Internacional), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Aprovada em 21 de maio de 2021.
Banca Examinadora:
Profa. Dra. Xxxxxxx Xxxxxx xx Xx Xxxxxxx (Orientadora) Faculdade de Direito - UERJ
Profa. Dra. Xxxxxx Xxxxxxx Hill
Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ
Prof. Dr. Ely Caetano Xavier Junior Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro 2021
AGRADECIMENTOS
Primeiramente gostaria de agradecer a Deus.
Agradeço a minha orientadora, Profa. Dra. Xxxxxxx Xxxxxx xx Xx Xxxxxxx, por aceitar conduzir o meu trabalho de pesquisa.
A todos os meus professores do mestrado de Direito Internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro pela excelência da qualidade técnica de cada um.
Aos meus pais, Xxxxxx Xxxxx por acreditar e me dar condições de seguir meu desejo e Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxx que sempre esteve ao meu lado, mesmo que do seu jeito, me apoiou ao longo de toda a minha trajetória.
Xxxxxx não tenha conseguido fazer o melhor, mas lutei para que o melhor fosse feito. Não sou o que deveria ser, mas Graças a Deus, não sou o que era antes. (Xxxxxx Xxxxxx Xxxx)
Xxxxxxxx Xxxxx
XXXXX, X. Comércio Internacional de Commodities: contratos de compra e venda internacional padronizado pelas instituições GAFTA e FOSFA. 2021. 126 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.
Através do avanço da globalização, somado a outros fatores oriundos do período pós Segunda Guerra que auxiliaram a incrementar o comércio global, as relações comerciais ao redor do mundo se tornaram facilitadas. A deslocalização empresarial e a facilidade de deslocamento de capitais tornou muito mais fácil o relacionamento comercial entre países, transpondo obstáculos geográficos e de comunicação. No entanto, até pouco tempo alguns outros entraves como questões culturais e de compreensão idiomática, ainda eram capazes de ocasionar alguns problemas diante da elaboração dos contratos de compra e venda de produtos entre diferentes países. Neste sentido, as questões se desdobram ainda mais quando trata-se de importação ou exportação de commodities, cujo preço é estipulado de acordo com fatores externos baseados em demanda e capacidade de oferta global. Sendo assim, o objetivo da presente dissertação é, através de pesquisa bibliográfica, antes de tudo, traçar uma linha cronológica, histórica e social acerca da evolução dos contratos internacionais de compra e venda, desde os primórdios, passando pelo advento da chamada Lex Mercatória e culminando com a padronização utilizada hoje pelos INCOTERMS e pelos contratos-tipo. Por conseguinte, busca-se demonstrar o uso e a importância de tais instrumentos pactuados com o fito de dirimir barreiras geográficas, sociais, linguísticas e consuetudinárias, principalmente quando o assunto é a aplicação destes acordos na compra e venda de commodities do tipo soja.
Palavras-Chave: Lex Mercatória. Contratos-tipo. Commodities.
XXXXX, Xxxxxxxx. Commodities International Trade: standard trade contracts by GAFTA and FOSFA. 2021. 126 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.
Through the advancement of globalization, added to other factors caused by the post-World War II period there was helped to increase global trade, commercial relations around the world became easier. Corporate outsourcing and the ease of capital displacement have made commercial relations between countries much easier, overcoming geographical and communication obstacles. However, until recently, some other questions, such as cultural issues and idiomatic comprehension, were still capable of causing some problems when drafting contracts for the purchase and sale of products between different countries. In this sense, the issues unfold even more when it comes to the import or export of commodities, whose the price is stipulated according to external factors based on demand and global supply capacity. Therefore, the objective of this dissertation is, through bibliographic research, first of all, to draw a chronological, historical and social line about the evolution of international purchase and sale contracts, from the beginning, through the advent of the so-called Lex Mercatoria and culminating with the standardization used today by INCOTERMS and standard contracts. Therefore, the research seeks to demonstrate the use and importance of such instruments agreed with the aim of resolving geographical, social, linguistic, and customary barriers, especially when the subject is the application of these agreements in the purchase and sale of soy-type commodities.
Key words: Lex Mercatoria. standardized contracts. Commodities.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Modelo Inconterms. 88
CISG Convention on the International Sales of Goods (Convenção Internacional de Compra e Venda de Mercadorias).
UNCITRAL United Nations Commission on International Trade Law (Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional).
UNIDROIT International Institute for the Unification of Private Law (Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado).
ULIS Uniform Law on the International Sale of Goods (Lei Uniforme sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias).
ULFIS Uniform Law on the Formation of Contracts for the International Sale of Goods (Lei Uniforme sobre a Formação de Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias) ONU – Organização das Nações Unidas.
Mercosul Mercado Comum do Sul.
UNIDROIT UNIDROIT Principles for International Commercial Contracts (Princípios da UNIDROIT para Contratos Comerciais Internacionais de 2010) INCOTERMS – International Commercial Terms 2010.
BGB Bürgerliches Gesetzbuch (Código ivil Alemão) BW - Burgerlijk Wetboek (Código Civil Holandês) CDC – Código de Defesa do Consumidor.
UCC Uniform Commercial Code (Código Comercial Uniforme dos Estados Unidos).
CISG-AC CISG Advisory Council.
ICC International Chamber of Commerce (Câmara de Comércio Internacional).
GAFTA The Grain and Feed Trade Association (Associação de Comércio de Grãos e Alimentos).
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
1 GLOBALIZAÇÃO, DIREITO INTERNACIONAL E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 13
1.1 A Globalização e o Direito Internacional 14
1.2 O Direito Internacional Privado Contemporâneo 22
1.2.1 Evolução histórica
internacional......................................................... 25
1.2.2 Abertura Comercial Brasileira 27
1.2.3 A questão das commodities no Brasil................................................. 29
1.2.3.1 Exportação de Produtos do Complexo da Soja.................................. 31
2 DIREITO INTERNACIONAL DO COMÉRCIO................................... 34
2.1 Lex
Mercatoria.................................................................................. 39
2.1.1 Lex Mercatoria Antiga e Medieval...................................................... 41
2.1.1.1 Criação de Instituições Mercantis....................................................... 51
2.1.2 Lex Mercatoria
Contemporânea......................................................... 55
2.1.3 United Nations Convention on Contracts for the International Sale
of Goods – CISG 61
3 CONTRATO INTERNACIONAL DE COMÉRCIO…….……………… 68
3.1 Definição 68
3.2 Legislação Aplicável e Autonomia da Vontade............................. 72
3.3 Condições Gerais de Compra e Venda nos contratos internacionais 79
3.4 Os
INCOTERMS................................................................................ 85
4 CONTRATOS-TIPO
INTERNACIONAIS........................................... 91
4.1 Federações e Associações específicas......................................... 102
4.1.1 GAFTA 106
4.1.2 FOSFA 108
4.1.3 Instituições profissionais no Brasil: Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (ANEC) e Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais (ABIOVE)............................................... 109
CONSIDERAÇÕES FINAIS 113
REFERÊNCIAS 115
INTRODUÇÃO
As relações comerciais transfronteiriças ocorrem desde tempos remotos. Datam os registros mais antigos sobre a troca de mercadorias como óleos essenciais e perfumes de tempos Fenícios, ou seja, há cerca de três mil anos, ainda no período da Antiguidade1. Após um longo hiato, somente na Idade Média, houve uma transição para que o mercado fosse caracterizado como caráter fechado.
Além disso, ocorreu o empobrecimento do sistema feudal, com a ocorrência de um novo florescimento do comércio internacional durante a idade média em diante. Neste período, já se tem notícias acerca de modelos comerciais, sobretudo consuetudinários, usuais nas relações internacionais de compra e venda. Neste panorama surgiu o embrião do que se pode chamar de Lex mercatoria, no caso um sistema de resolução de conflitos afastado dos poderes de jurisdição estatais2.
No entanto, é inegável que com o advento da globalização, das facilidades de transporte e comunicação, além do período sem guerras de grande magnitude, houve um salto nas relações comerciais ao redor do mundo. Atualmente é difícil encontrar um produto industrializado no qual todos os componentes tenham origem no mesmo lugar. A deslocalização empresarial e a facilidade de deslocamento de capitais tornou muito mais fácil o relacionamento comercial entre países, transpondo obstáculos geográficos e culturais.
Contudo, nessa jornada relativa à comercialização de bens e serviços em âmbito global muitos problemas precisaram ser superados dentro da seara do Direito Internacional Privado, como por exemplo: em conflito contratual entre agentes distintos, qual lei prevalece? Ou então: quem arca com o seguro por uma eventual perda da mercadoria? Seria o comprador ou o vendedor? E ainda: qual seria o prazo aceitável para receber uma carga de mercadorias do outro lado do globo? Estes são apenas alguns dos questionamentos existentes quando o assunto é o contrato de compra e venda internacional.
As questões se desdobram ainda mais quando se trata de importação ou exportação de commodities, cujo preço é estipulado de acordo com fatores externos
1 XXXXXXXXX, M. C. N. O comércio, as trocas e o sistema do dom entre os fenícios. Interação social, reciprocidade e profetismo no mundo antigo. Salvador: Edições UESB, pp. 127-54, 2004.
2 XXXXXXX, X. A Lex Mercatoria como fonte do Direito do comércio internacional e a sua aplicação no Brasil. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 186, n. 47, p. 171-193, 2010.
baseados em demanda e capacidade de oferta global. Diante dos preços pré- determinados, fatores internos como combustíveis em alto preço, insumos, ou mão de obra, há a diminuição do lucro do produtor/vendedor. No caso do Brasil, este tema é ainda mais importante, já que que as commodities perfazem em média 65% do volume total de exportações no país3.
Portanto, visando tornar as relações igualitárias, sem excessivo lucro para um lado e, por conseguinte, prejuízo para o outro, contratos padronizados para os negócios de compra e venda internacional de commodities são instrumentos essenciais à segurança jurídica e ao bom funcionamento do mercado como um todo. Neste norte, o presente trabalho visa percorrer o caminho feito pelos contratos internacionais, desde o início de sua utilização até o presente. Sendo assim, no primeiro capítulo será feita a contextualização histórica das relações entre partes de diferentes países, avançando para a questão da tardia abertura comercial
brasileira e suas consequências.
No capítulo seguinte, o estudo será voltado para a chamada Lex Mercatoria, determinando as origens do instituto, e os traços comerciais que sobreviveram nos instrumentos contratuais contemporâneos4. Já no terceiro capítulo, será feita uma contextualização sobre os contratos internacionais de compra e venda, como a produção agrícola no Período Feudal, a diversificação da comercialização de produtos no Renascimento e ainda a implementação de novas tecnologias após o período da 2ª Guerra Mundial, abordando-se ponto a ponto a implementação de tais instrumentos.
O estudo culmina com o quarto e último tópico sobre os contratos-tipo internacionais, para que ao final seja possível compreender a formação de tais contratos, através de Instituições Internacionais surgidas para as classes de produtos considerados commodities, com intuito de auxiliar as partes nas negociações, os quais são utilizados também dentro do contexto do comércio internacional de commodities brasileiro, especificamente para o complexo da soja, produto com maior relevância na balança comercial nacional.
3 XXXXX, X. A; XXXXXXXXX, M. P. O papel das commodities para o desempenho exportador brasileiro. Indicadores Econômicos FEE, v. 40, n. 2, 2013.
4 XXXX, X. X. Xxx mercatoria-horizonte e fronteira do comércio internacional. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 87, p. 213-235.
Conforme narrado o assunto é de maior importância tanto na esfera prática, quanto acadêmica, pois, o dinamismo decorrente das tratativas internacionais requerem o correto amparo jurídico. Por esta razão, se faz necessária esta análise de maneira ampla e que abarque tanto o contexto histórico, quanto os aspectos práticos dos contratos-tipo.
1 GLOBALIZAÇÃO, DIREITO INTERNACIONAL E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
O processo de intensificação da integração política e econômica internacional, marcado pelo avanço nos sistemas de comunicação como telefone e a internet, pelas facilidades de transporte e ainda pelo aumento das empresas deslocalizadas, conhecido como globalização, ou mundialização, é uma importante ferramenta, que precisa ser utilizada com sabedoria pelo direito internacional privado5. Isto porque existem dois lados deste fenômeno. Por um lado a globalização pode ocasionar diferenças e contradições entre os Estados, ou amplificar desigualdades sociais ao redor do globo através da deslocalização dos empregos, ou ainda propiciar crises de soberania. Mas por outro, quando bem aplicado, também possibilita o intercâmbio de serviços, pessoas e informações, trazendo a estabilidade das relações jurídicas internacionais, que atendam o anseio de todos os envolvidos.
Assim, essa alavancagem no desenvolvimento mundial decorre da própria natureza humana, qual seja de se inter-relacionar com seus semelhantes. Logo, essa curiosidade natural leva ao contato com diferentes regiões, além das fronteiras nacionais6.
Muito embora existam patentes conflitos de interesses entre determinados Estados ou blocos, dentro dos mais variados temas, é preciso que sejam perquiridas respostas aos dilemas em âmbito global de maneira a não privilegiar os interesses de pequenos grupos de países mais influentes, mas sim buscando a necessidade de atingir os objetivos do chamado Interesse público Internacional.
A globalização de forma ética, quando vista sob a perspectiva do direito internacional busca o fortalecimento dos direitos humanos, a segurança jurídica, bem como fortalecer os laços de cooperação entre os países.
Nos últimos cem anos o direito internacional vem incorporando novos elementos no debate de seus pressupostos. Se no princípio o foco principal dos tratados e documentos eram relacionados as limitações buscando tornar menos
5 XXXXX, X.; XXXXX, F. L. Dossiê "Globalização". Revista de Sociologia e Política, n. 19, 2002. Disponível em xxxxx://xxxxxxxx.xxxx.xx/xxx/xxxxxxx/xxxxXxxx/0000/0000. Acesso em: 02 fev. 2021.
6 XXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. O direito processual transnacional como forma de acesso à justiça no século XXI: os reflexos e desafios da sociedade contemporânea para o direito processual e a concepção de um título executivo transnacional. Tese (Doutorado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, p. 37. 2013
cruéis as guerras como A Convenção de Haia sobre as Leis e Usos da Guerra Terrestre, de 18 de outubro de 1907, ou o Tratado de Paris sobre a "Renúncia da Guerra como instrumento de Política Nacional" (Pacto Briand-Kellog), de 27 de agosto de 1928, na contemporaneidade o que se vê é a elaboração de documentos com enfoque voltado aos problemas econômicos, como o Tratado da ONU sobre empresas e direitos humanos de 2019, culturais, como A declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas e ambientais como as metas do desenvolvimento sustentável7.
Neste norte, é possível dizer que a história da globalização, do direito internacional e, por conseguinte, das relações internacionais em geral, tem nos documentos elaborados pelas Nações Unidas seus maiores fundamentos.
A seguir iremos abordar estas nuances da evolução do Direito Internacional.
1.1 A Globalização e o Direito Internacional
A globalização não é um fenômeno pontual. Trata-se de um processo gradual e contínuo, caracterizado como um processo evolutivo contemporâneo que apresenta novos aspectos de acordo com o crescimento do intercambio mundial de comunicações, produtos, pessoas, entre outros. Sendo um processo em evolução continua e gradual, a globalização pode ser dividida em três períodos8.
O primeiro sobreveio através do advento da intensificação do comércio internacional e teve início com a expansão marítima europeia, marcada pelas grandes navegações. No final do século XV e início do século XVI os primeiros avanços nas comunicações e na navegação deram início as relações internacionais como são conhecidas nos dias de hoje. A busca por novos mercados e, principalmente, por matéria-prima pelos navegadores europeus fez crescer o
7 ICRC - INTERNATIONAL COMMITTEE OF THE RED CROSS. Convenção IV - Respeitando as
leis e costumes da guerra terrestre: regulamento relativo às Leis e Costumes da Guerra Terrestre. Haia, 18 out. 1907. Disponível em: xxxxx://xxx.xx/0x0xxXX. Acesso em 20 abr. 2021.
8 CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e Caribe. O caráter histórico e multidimensional da globalização. In: CEPAL (Org.). Globalização e Desenvolvimento, 2002. p. 17-
19. Disponível em: <xxxxx://xxxxxxxxxxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/00000/0000> Acesso em 22 jan. 2021.
comércio internacional, quando aportaram em novas terras proporcionando uma expansão comercial diante das novas rotas de navegação9.
O continente europeu foi o grande precursor do comércio internacional com a formação de colônias nos continentes americano, africano e asiático, modificando as relações comerciais, que até aquele momento contavam com economias caracterizadas pela relativa autonomia e isolamento social. O primeiro período da globalização teve como característica a “elevada mobilidade dos capitais e da mão- de obra, junto com o auge comercial, baseado mais numa grande redução dos custos de transportes do que no livre comercio”10.
O período inicial foi considerado encerrado na Primeira Guerra Mundial, dando lugar a uma era caracterizada pela retração do processo de globalização, na década de 30. Apesar de não ser um fenômeno unânime e igualitário em todas as partes do mundo, não pode ser ignorado, visto que fora devido a esse fenômeno de integração mundial que a força trazida pelos avanços tecnológicos nos transportes e na comunicação, passaram a ser sentidos por todos11. Iniciando as modificações que culminaram com a organização econômica mundial do período seguinte.
O segundo período da globalização teve início após a Segunda Guerra Mundial, a partir de 1945, quando o crescimento do comércio de manufaturas entre os países desenvolvidos resultou na formação de instituições de cooperação internacional, focadas inicialmente no aspecto financeiro e comercial, quando não havia extensiva mobilidade de mão-de-obra e de capitais12. Este período culminou com o desenvolvimento do Capitalismo Industrial, no qual o setor secundário da economia passou a gerar um maior número de postos de trabalho nos centros urbanos e exercer efeitos diretos nas sociedades desenvolvidas, através das matérias primas de caráter primário oriundas dos países menos desenvolvidos.
9 VASCONCELLOS, X. X. X. xx; XXXX, M.; SILBER, S. Manual de comércio exterior e negócios internacionais. 1ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2017, p. 02.
10 CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e Caribe. O caráter histórico e multidimensional da globalização. In:CEPAL (Org.). Globalizacao e Desenvolvimento, 2002. p. 18. Disponível em: <xxxxx://xxxxxxxxxxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/00000/0000> Acesso em 22 jan. 2021.
11 XXXXXXXXXXXX, X. X. X. xx; XXXX, M.; SILBER, S. Manual de comércio exterior e negócios internacionais. 1ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2017, p. 02.
12 CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e Caribe. O caráter histórico e multidimensional da globalização. In:CEPAL (Org.). Globalizacao e Desenvolvimento, 2002. p. 19. Disponível em: <xxxxx://xxxxxxxxxxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/00000/0000> Acesso em 22 jan. 2021.
O processo industrial também trouxe uma ampliação do mercado consumidor, aumentando o número de trabalhadores e, consequentemente, o de consumidores para as mercadorias produzidas em massa pelo sistema de produção conhecido como fordismo13.
A terceira fase de globalização, também conhecida como Nova Ordem Econômica Mundial, estima-se que deu seus primeiros passos a partir de 1975. O terceiro período conta com um conjunto amplo de inovações tecnológicas. A onda tecnológica deste período contou com alguns fatores importantes como o notável progresso nos transportes, não dependendo mais unicamente do transporte marítimo para que as trocas ocorram. O aumento da velocidade na divulgação de informações. E por fim o salto nas tecnologias das comunicações, inserindo o embrião da robótica e de novos modelos de produção especialmente de produtos eletrônicos, através, principalmente, da recuperação econômica do Japão14.
Importante salientar que concomitantemente a este período de abertura mercantil o cenário mundial acompanhava os desdobramentos da Guerra Fria, e a consequente divisão do mundo em dois grandes blocos15.
Além desses pontos, acrescenta-se um movimento em prol do livre comércio, com o surgimento de grandes corporações transnacionais no cenário internacional fazendo uso de sistemas de produção integrados espalhados por diversos Estados, o crescimento e a elevada mobilidade dos capitais, com a possibilidade de investimentos internacionais e a tendência dos modelos de desenvolvimento à homogeneização, além da subsistência de restrições aos movimentos da mão-de- obra, como pontos da terceira fase de globalização16.
13 XXXXXXXX, X. Inteligência artificial no mercado de trabalho: prevenção de impactos e a implementação de políticas públicas. 2019. Tese de Doutorado. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxxxxxxxx.xxxx.xxxxxx.xx/xxxxxx/0000/00000>. Acesso em 05 fev. 2021.
14 XXXXXXXX, X. Inteligência artificial no mercado de trabalho: prevenção de impactos e a implementação de políticas públicas. 2019. Tese de Doutorado. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxxxxxxxx.xxxx.xxxxxx.xx/xxxxxx/0000/00000>. Acesso em 05 fev. 2021.
15 Ibid.
16 CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e Caribe. O caráter histórico e multidimensional da globalização. In:CEPAL (Org.). Globalizacao e Desenvolvimento, 2002. p. 19. Disponível em: <xxxxx://xxxxxxxxxxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/00000/0000> Acesso em 22 jan. 2021.
De forma geral a globalização facilitou a transposição dos últimos obstáculos geográficos para o estabelecimento de uma infraestrutura global17. Contemporaneamente vivemos uma sociedade dinâmica e mundializada. E por isso é possível dizer que os problemas locais, poderão ter consequências globais. Nas palavras de Giddens18:
Vivemos num mundo de transformações, que afetam quase tudo o que fazemos. Para o melhor e para o pior, estamos a ser empurrados para uma ordem global que ainda não compreendemos na sua totalidade, mas cujos efeitos já se fazem sentir em nós (GIDDENS, 2016, p. ?)
O fenômeno conhecido como globalização não tem uma única definição na doutrina, podendo ser analisado por diferentes aspectos, resultando em definições diversas, porém convergentes entre si. Com efeito, no sentido de que todos os capítulos da modernidade são capítulos da globalização19, ao passo que o registro do fenômeno no tempo, ter se dado de forma gradual, ainda em expansão.
A globalização é definida por Vasconcellos como: “a intensificação das relações internacionais entre países,” porém o termo não possui consenso acadêmico em relação aos tipos de processos sociais que constituem a sua essência20. Apesar de se tratar de um relatório de 2002, a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), publicou um estudo sobre globalização e desenvolvimento, no qual define o fenômeno como o “a crescente gravitação dos processos financeiros, econômicos, ambientais, políticos, sociais e culturais de alcance mundial sobre aqueles de caráter regional, nacional ou local”, que segue atual21.
Adicionalmente, para Xxxxxxx (2016), o fenômeno é possuidor de múltiplas facetas, dando como por exemplos a comunicação facilitada pela rede mundial de
17 XXXXXX, X. A globalização. Santa Maria da Feira: Quasi Edições, 2006.
18 XXXXXXX, X. O mundo na era da globalização. Lisboa: Editorial Presença, 2006.
19 XXXXXXXX, Xxxxxxx apud: ARROYO, D. P. F. El derecho internacional privado en el início del Siglo XXI. In: ARAÚJO, N. de; XXXXXXX, C. L. (Org). O Novo Direito Internacional: estudos em homenagem a Xxxx Xxxxx. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 90.
20 XXXXXXXXXXXX, X. X. X. xx; XXXX, M.; SILBER, S. Manual de comércio exterior e negócios internacionais. 1ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2017.
21 CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e Caribe. O caráter histórico e multidimensional da globalização. In:CEPAL (Org.). Globalizacao e Desenvolvimento, 2002. p. 17-
19. Disponível em: <xxxxx://xxxxxxxxxxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/00000/0000> Acesso em 22 jan. 2021.
computadores; acesso à informação em tempo real; fluxo de capital transnacional, dando a possibilidade para investidores escolherem, internacionalmente, qual o melhor local para alocação de seus recursos, onde a economia não depende mais do Estado para captar recursos; dentre outros. Esses aspectos impactaram na forma que o comércio de bens e serviços é realizado, ampliando a circulação de bens, serviços, investimentos e pessoas e, por consequência, trazendo novos desafios para o direito internacional privado22.
Dentre os diversos prismas que a globalização pode ser analisada, sob a perspectiva antropológica, Benda-Xxxxxxxx reconhece que decisões diversas, estando elas relacionadas a atividades sociais, políticas ou econômicas, tomadas em um ponto do mundo, terão alcance global, influenciando indivíduos e comunidades em locais distantes, devido a velocidade das comunicações, bem como recente facilitação da mobilidade, trazidas pela globalização23.
Juntamente com a expansão das relações internacionais e influência mundial das decisões locais, é notável o aprofundamento das conexões pessoais, políticas, comerciais e demais atividades. O entendimento desse processo em suas diversas facetas é de suma importância ao passo que destes processos interligação mundial nascem novas redes de atividades globais e regionais, surgem novas instituições e regimes de governança com influência local e internacional.
Ademais movimentos sociais passam a ter potencial de disseminação largo, assim como outros tipos de associações transnacionais passam a ter poder para se formar, fazendo com que as interações legais globais tomem forma24.
As interações legais são cada vez mais comuns, sendo a legislação uma parte importante para os diversos prismas que a globalização estende seus efeitos. As diversas organizações sociais, políticas, econômicas, religiosas, culturais não receberem muita atenção sob o prisma do Direito, sendo assim são escassas as pesquisas empíricas sobre como estas afetam a globalização.
22 XXXXXXX, X. X. X. Novos Rumos do Direito Internacional Privado. IN: XXXXXX, Xxxxx X. X., XXXXXXXXX, J. A. M. Contratos Internacionales. Buenos Aires, Associación Americana de Derecho Internacional Privado, 2016.
23 XXXXX-XXXXXXXX, F.; XXXXX-XXXXXXXX, K.; XXXXXXXX, X. Mobile people, mobile law: an
introduction. In: ; , ed. Mobile people, mobile law: expanding legal relations in a contracting world. Surrey, UK: Ashgate, 2005, p. 01.
24 XXXXX-XXXXXXXX, F.; XXXXX-XXXXXXXX, K.; XXXXXXXX, X. Mobile people, mobile law: an
introduction. In: ; , ed. Mobile people, mobile law: expanding legal relations in a contracting world. Surrey, UK: Ashgate, 2005, p. 01.
Uma das respostas a globalização é a extensa influência legislativa extraterritorial, onde leis transnacionais e internacionais fazem parte de uma série de processos do fenômeno da mundialização dando origem a múltiplas interconexões que ultrapassam a esfera local, dando entre diferentes regiões e sociedades internacionais, sempre sob forte influência da mobilidade das pessoas, nos mais diversos níveis25.
Corroborando com os autores, Xxxxxxx (2016) complementa:
[...]na nova sociedade universal as principais forças produtivas ‘compreendendo o capital, a tecnologia, e força de trabalho e a divisão transnacional do trabalho, ultrapassam fronteiras geográficas, históricas e culturais, multiplicando-se assim as suas formas de articulação e contradição’. Desde o último quarto do século passado, a vida cotidiana foi definitivamente impactada pela revolução tecnológica que elevou a velocidade e o dinamismo como valores indissociáveis das instituições sociais[...] (XXXXXXX, 2016, p. ?)
Debates sobre a globalização sob o prisma legal exprimem o Direito como uma poderosa forma de expressão cultural, também sendo fonte de poder social, econômico e político. O Direito tem sua expressão definida ao compelir e permitir práticas sociais, e devido ao seu poder social apresenta para a sociedade as consequências das transgressões desse poder, sejam elas intencionais ou não intencionais26. Costumeiramente dividido em categorias como cultura, governança, política, ideologia ou economia, vale salientar, porém, que essas categorias não são excludentes, fazendo parte do todo do Direito.
De impacto exponencial sobre o Direito Internacional Privado, o reflexo dos efeitos da globalização altera o papel deste, dando lugar a redes de conexão mais complexas27. Portanto, reduzir o direito a uma única dimensão, como economia ou política, negaria a uma importante função legitimadora da lei nas organizações sociais, econômicas e políticas.
25 Ibid., p. 01.
26 Ibid., p. 02.
27 XXXXXXX, X. X. X. Novos Rumos do Direito Internacional Privado. IN: XXXXXX, Xxxxx X. X., XXXXXXXXX, J. A. M. Contratos Internacionales. Buenos Aires, Associación Americana de Derecho Internacional Privado, 2016.
Na definição hodierna, de acordo com a análise de Arroyo28 a globalização atual reflete pontos característicos essenciais, como: a vocação global, visto que apesar de seu extenso alcance, algumas regiões não estão incluídas no processo; de característica predominantemente econômica, porém, repercute, nas relações culturais e sociais, através do predomínio de sujeitos transnacionais e restrição do papel dos sujeitos estatais29.
Somados a esses pontos, alguns outros elementos característicos são identificados como30: a uniformidade de regras de trocas comerciais, como ocorre com a OMC. A presença forte de diretrizes traçadas por órgãos como o FMI e o Banco Mundial para definir políticas econômicas da grande maioria dos Estados, em especial para os Estados latino-americanos.
Xxxxxx, não só defende que é preciso levar em consideração a fundamental perspectiva econômica da globalização, mas também permite a extração de três dimensões básicas: a produtiva, a comercial e a financeira. Frente a isso, destaca que a globalização consagrou uma dinâmica única e peculiar: pensar globalmente e atuar localmente31.
Neste norte, o autor também se refere a alguns avanços importantes, como aqueles referentes à ecologia, proteção dos direitos humanos e preferência pela forma democrática de governo. Todos estes fenômenos incidem no objeto e no
28 Análise de Arroio sobre o texto de Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx: “la tendência a extenderse planetariamente; su alcance todavia parcial, ya que hay regiones, países, y buena parte de la poblacion del mundo estan todavia excluídos de la globalizacion, minetras que entre los países incluídos sus efectos no han sido totalmente homogêneos; su estabilidade em el tempo, em el sentido de que el processo na há sufrido retrocesos significativos, si se exclue el estrepitoso fracasso del Acuerdo Multilateral de Inversiones que praticamente quitaba toda participacion de ls Estados em la regulacions y orientacions de las inversiones internacionales; su caráter predominantemente econômico, aunque sus consecuencias se manifestam cada vez mais en âmbitos tales como la cultura o el derecho; la preeminência de los actores transnacionales y la consiguiente limitacion del papel de las actores estatales, los cuales, sin embargo, siguen manteniendo um margen importante - y, agregaria, indispensable- de accion; y por ultimo, su incapacidad para homogeneizar totalmente da diversidad cultural, politico-institucional y de valores existentes em el mundo” (ARROYO, D. P. F. El derecho internacional privado en el inicio del Siglo XXI. In: ARAÚJO, N. de; XXXXXXX, C. L. (Org). O Novo Direito Internacional: estudos em homenagem a Xxxx Xxxxx. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 91)
29 XXXXXX, Xxxxx X. Xxxxxxxxx. El derecho internacional privado en el inicio del Siglo XXI. In: ARAÚJO, Nádia de; MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. (Org). O Novo Direito Internacional: estudos em homenagem a Xxxx Xxxxx. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
30 Ibid., 2005.
31 XXXXXX, Xxxxx X. Xxxxxxxxx. El derecho internacional privado en el inicio del Siglo XXI. In: ARAÚJO, Nádia de; MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. (Org). O Novo Direito Internacional: estudos em homenagem a Xxxx Xxxxx. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
conteúdo do Direito Internacional Privado, ampliando e diversificando suas relações jurídicas. Até mesmo avanços tecnológicos da era global trazem efeitos jurídicos evidentes, como no caso dos recentes contratos internacionais celebrados via internet.
Na mesma esteira, ressalta-se32 que o Estado continua sendo um participante ativo da economia política global, a despeito da forte influência das empresas transnacionais. Mesmo considerando a notoriedade de organismos internacionais como o G7, G8, OMC, FMI, OCDE, as decisões finais são tomadas a nível estatal. E, neste sentido, deve se considerar os efeitos provocados pela globalização sobre o futuro dos Estados.
A sociedade não pode mais restringir as relações sociais a interações frente a frente, mas deve envolver os efeitos da tecnologia, consumo global e mudanças nas configurações geopolíticas. Direito transnacional tornou-se parte do cenário no qual não só concorre com e configura o direito do Estado, mas também compete com mecanismos de autorregulação, direito consuetudinário e as vezes direito religioso. O confronto com ideias jurídicas estrangeiras pode levar a revitalização do direito costumeiro pelos atores locais, adaptadas as circunstâncias contemporâneas e estratégias econômicas33.
O direito comercial internacional tem sido transportado através de relações de comércio e durante expansões hegemônicas dos Estados. Formas legais únicas, conjuntos específicos de instituições legais e um completo sistema jurídico têm encontrado caminho através das fronteiras nacionais em todos os períodos da história. Não existe uma única direção de desenvolvimento conduzindo o movimento contínuo de globalização. Séries de ondas de importação de leis levaram a configurações complexas e variáveis da legislação, modificando as relações mútuas34.
32 XXXXXXX, P. I. Enfoque teóricos sobre la acción colectiva: alcance y límites para el estudio de los movimientos globales. Agora: revista de ciencias sociales, n. 17, p. 41-81.
33 XXXXX-XXXXXXXX, F.; XXXXX-XXXXXXXX, K.; XXXXXXXX, X. Mobile people, mobile law: an
introduction. In: ; , ed. Mobile people, mobile law: expanding legal relations in a contracting world. Surrey, UK: Ashgate, 2005, p. 09-10.
34 XXXXX-XXXXXXXX, F.; XXXXX-XXXXXXXX, K.; XXXXXXXX, X. Mobile people, mobile law: an
introduction. In: ; , ed. Mobile people, mobile law: expanding legal relations in a contracting world. Surrey, UK: Ashgate, 2005, p. 07.
Várias categorias de pessoas viajantes como: trabalhadores migrantes e comerciantes, funcionários civis bem como agencias doadoras e Organizações não governamentais internacionais, têm condutas importantes no processo de empresas que atuam globalmente, mas agem localmente. Políticas de descentralização propagadas por doadores internacionais ou bilaterais como meio de aumentar a participação popular tem frequentemente efeito oposto, fortalecendo elites locais, reimplantando dependências e revivendo o direito consuetudinário35.
O Direito é uma importante fonte de poder e muitas das contribuições discutem as implicações nas redes de poder em torno da gestão dos recursos naturais quando um estado decide reconhecer o direito consuetudinário, por exemplo. Processos legislativos nos níveis nacionais, das províncias, distritos ou ainda internacionais levam a coexistência de formas fragmentadas de legalidade afinal a legislação do estado não é a única fonte legal de poder. A legitimação do poder através da revitalização do direito consuetudinário torna-se um processo nos qual, através da democracia e da descentralização, as estruturas locais de governo são rearranjadas36. Sendo assim, a seguir abre-se um parênteses para diversificar um pouco mais os conceitos acerca do Direito Internacional contemporâneo na esfera das relações privadas.
1.2 O Direito Internacional Privado Contemporâneo
A pluralidade é a palavra destaque na pós-modernidade, abrangendo a pluralidade de sujeitos do direito, agentes de mercado, de indivíduos, de fontes legislativas e de sistemas jurídicos, conforme pontua Ribeiro37. A internacionalização
35 XXXXX-XXXXXXXX, F.; XXXXX-XXXXXXXX, X.; XXXXXXXX, X. Mobile people, mobile law: an
introduction. In: ; , ed. Mobile people, mobile law: expanding legal relations in a contracting world. Surrey, UK: Ashgate, 2005, p. 08.
36 Ibid., p. 12-14.
37 XXXXXXX, M. R. S. Novos Rumos do Direito Internacional Privado. IN: XXXXXX, Xxxxx X. X., XXXXXXXXX, J. A. M. Contratos Internacionales. Buenos Aires, Associación Americana de Derecho Internacional Privado, 2016, p. 351, 2016.
de diversos aspectos da vida privada é realidade, que, segundo Jayme, significa pluralidade, comunicação, velocidade, ubiquidade e até mesmo fluidez38.
O fenômeno da internacionalização abrange diversos aspectos, como a abertura dos mercados para investidores estrangeiros, a aproximação entre pessoas e empresas das mais diversas nacionalidades e domicílios, a comunicação em massa através da rede mundial de computadores, consumo de bens e serviços internacionais e a facilidade e rapidez nos transportes, denominado de formas diferentes na doutrina, podendo ser citado como globalização, mundialização ou pós-modernidade39.
Devido a pluralidade de aspectos incorporados pela globalização, emergem diversos desafios para a sociedade e em consequência para o direito, agora não mais somente na esfera local, mas também regional e mundial.
Xxxxxxx (2016), afirma que um dos desafios do Direito Internacional Privado Contemporâneo é dar respaldo de forma eficiente e justa a crescente internacionalidade destes diversos paradigmas novos, que são parte da vida privada, assim como das relações comerciais e das relações civis.
Dessa forma o Direito Internacional Privado, no âmbito contemporâneo da sua aplicação, ultrapassa o conceito tradicional de ser um ramo do direito responsável por regular direta ou indiretamente as relações privadas internacionais. O momento é de atualização da matéria frente aos novos desafios impostos pela nova ordem global, fazendo com que o Direito Internacional Privado tenha de enfrentar grandes questões ligados a modernidade, como por exemplo o avanço das relações comerciais digitais e suas implicações40.
Ao ser colocado sob os holofotes pela globalização, o ramo especializado do direito interno, que hoje pode ser encontrado em diversos ordenamentos jurídicos pelos países do mundo, cresce ao passo que também crescem os contratos
38 JAYME, 2000, apud MARQUES, C. L. Ensaio para uma introdução ao direito internacional privado. In: DIREITO, C. A. M.; XXXXXXXX,A. A. C.; XXXXXXX, A. C. A. Novas perspectivas do direito internacional contemporâneo: estudos em homenagem ao professor Xxxxx X. xx Xxxxxxxxxxx Xxxxx. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 324.
39 JAYME, 2000, apud: MARQUES, C. L. Ensaio para uma introdução ao direito internacional privado. In: DIREITO, C. A. M.; XXXXXXXX, A. A. C.; XXXXXXX, A. C. A. Novas perspectivas do direito internacional contemporâneo: estudos em homenagem ao professor Xxxxx X. xx Xxxxxxxxxxx Xxxxx. Rio de Janeiro: Renovar, 2008 p. xxx
40 MARQUES, C. L. Ensaio para uma introdução ao direito internacional privado. In: DIREITO, C. A. M.; XXXXXXXX, A. A. C.; XXXXXXX, A. C. A. Novas perspectivas do direito internacional contemporâneo: estudos em homenagem ao professor Xxxxx X. xx Xxxxxxxxxxx Xxxxx. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. xxx
internacionais entre sujeitos privados plurilocalizados, como por exemplo na esfera familiar, com casamentos, divórcios, heranças, dentre outros, ou comercial, ou de consumo.
Desta forma, nota-se que uma das definições essenciais que a doutrina tem assumido e realçado é o caráter privado do Direito Internacional Privado. De acordo com o Arroyo (2005)41 tradicionalmente o Direito Internacional Privado é um direito público, em se tratando o caráter privado deste, refere-se ao objeto e conteúdo.
Está em curso um processo de privatização em três níveis: autonomia da vontade no caso concreto ou poder de autorregulação, ou seja, a margem de discricionariedade dos particulares para estabelecer seus marcos concretos de direitos e obrigações, o vinculado à atividade normativa e decisória e o que se encarrega de uma codificação internacional42.
O primeiro reafirma a autonomia não restrita à simples escolha da potestade judicatória ou direito aplicável, consagrando essencialmente como atinente às relações jurídicas efetivas. O segundo se dá no âmbito contratual, no qual as partes podem eleger organismos privados para resolver suas controvérsias. Por fim, o terceiro, que se refere ao avanço de organismos de codificação internacional de Direito Internacional Privado e Direito do Comércio Internacional.
Na sociedade as relações podem ser puramente internas, ou relações internacionais, que ainda podem ser divididas em relativamente internacionais, quando em contato com duas ordens jurídicas diferentes ou absolutamente internacionais, também denominadas plurilocalizadas43. O essencial para o Direito Internacional Privado é o tipo de relação jurídica que ele regula.
Presente em todos os ordenamentos jurídicos, com o objetivo de determinar dentro daquela jurisdição quais as regras de conexão definindo pela aplicação do
41 no lo es porque paradojicamente las concepciones tradicionales del DIPr han sido claramente ‘publicistas’, razón por la cual nunca está de más subrayar lo contrário. Por otro lado, debe recordase que el tratamento que antes hemos hecho acerca de la situácion privada internacional tenía que ver com la definición del objeto y la consecuente concreción del contenido” (XXXXXX, D. P. F. El derecho internacional privado en el inicio del Siglo XXI. In: 1
42 Xxxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxxxxxx. A Lex Mercatoria e as Novas Tendências de Codificação do Direito do Comércio Internacional. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 105.
43 JITTA, 1989, apud: MARQUES, C. L. Ensaio para uma introdução ao direito internacional privado. In: DIREITO, C. A. M.; XXXXXXXX, A. A. C.; XXXXXXX, A. C. A. Novas perspectivas do direito internacional contemporâneo: estudos em homenagem ao professor Xxxxx X. xx Xxxxxxxxxxx Xxxxx. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 324.
direito interno ou internacional, ou na relação jurídica que se encontra conectada a mais de um ordenamento jurídico. Dessa forma o Direito Internacional Privado é um “direito sobre o direito”, caracterizado pelas normas de conexão ou normas indiretas, que determinam qual o direito aplicável a situação em questão44.
1.2.1 Evolução histórica internacional
O ponto de partida da abertura econômica dos mercados internacionais é a revolução industrial quando a produção industrial passou por uma série de desenvolvimentos e modernizações em diversos setores produtivos, dentre elas as indústrias química, petrolífera e elétrica.
A revolução industrial modificou de forma drástica as relações comerciais, quando o comércio internacional começou a apresentar as primeiras características contemporâneas, que resultaram nas relações internacionais, comerciais ou não, como se encontram na atualidade. A abertura dos mercados, dentre outros aspectos resultantes desta evolução nas relações comerciais, resulta na crescente permeabilidade das fronteiras dos Estados45.
A abertura dos mercados, teve início no período pós-Segunda Guerra Mundial, quando os Estados, de forma gradual, abriram suas fronteiras para produtos e serviços. Até então os países em desenvolvimento possuíam uma parcela de participação muito pequena no comércio internacional, monopolizado pelas grandes potências mundiais.
A liberalização comercial no período pós-Segunda Guerra, possibilitou o crescimento da participação dos países em desenvolvimento no mercado global46. Essa participação dos países em desenvolvimento nas negociações internacionais culminou no crescimento do volume de mercadorias em circulação no mercado.
44 MARQUES, C. L. Ensaio para uma introdução ao direito internacional privado. In: DIREITO, C. A. M.; XXXXXXXX, A. A. C.; XXXXXXX, A. C. A. Novas perspectivas do direito internacional contemporâneo: estudos em homenagem ao professor Xxxxx X. xx Xxxxxxxxxxx Xxxxx. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 324.
45 VASCONCELLOS, M. A. S. de; XXXX, M.; SILBER, S. Manual de comércio exterior e negócios internacionais. 1ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2017, p. 13.
46 Ibid., p. 01.
Os resultados desse movimento de abertura são confirmados com o registro do crescimento do volume do comércio internacional, o qual superou o PIB (Produto Interno Bruto) mundial. Com o acréscimo no volume de negócios internacionais apresentado desde a liberalização dos mercados, emerge a necessidade da criação de regras comerciais que satisfaçam as necessidades sociais da atualidade e sejam aplicáveis a toda comunidade mercantil.
Visando se adequar a este novo panorama houve a criação de regras comerciais que prezam pela multilateralidade e o tratamento não discriminatório no comércio47.
Em relação ao Brasil, após a década de 1950, se iniciou de maneira absolutamente tardia o processo de internacionalização da economia, com foco no desenvolvimento de infraestrutura e a primazia de uma controversa política de incentivos tributários48. A mão de obra barata e os incentivos fiscais atraíram empresas transnacionais para o território brasileiro. Diante disto, houve o estabelecimento de novas indústrias de bens de consumo duráveis em território nacional. Contudo, também de forma tardia o Brasil adotou majoritariamente o sistema fordista, ao passo que outros países já avançavam para modelos mais modernos de produção.
Durante o período de regime militar foram criadas obras estruturais como usinas hidrelétricas e as rodovias. Porém, tais medidas deixaram muitos setores e regiões de fora, aumentando as desigualdades sociais e demonstrando que o aumento de renda per capita absoluta, não representou efetivamente uma melhoria na qualidade de vida dos nacionais de maneira ampla.
Ainda assim, a globalização é um fenômeno que possibilita inúmeros benefícios, não só no âmbito econômico de cada país, podendo-se aproveitar inúmeras oportunidades de integração entre Estados. O movimento da abertura dos mercados, oferece aos setores econômicos nacionais, com maior vantagem competitiva, que recebam um aporte preferencial de recursos a fim de aumentar sua eficiência econômica.
47 VASCONCELLOS, X. X. X. xx; XXXX, M.; SILBER, S. Manual de comércio exterior e negócios internacionais. 1ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2017, p. 02.
48 XXXXX, X. X. X. da. "Resumo Histórico-Econômico do Brasil: A Internacionalização da Economia e o Estado Empresário . Brasil Escola. [S. I]. [2020?] Disponível em:
<xxxxx://xxxxxxxxxxxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxxxx/xxxxxx-xxxxxxxxx-xxxxxxxxx-xxxxxx-xxxxxxxxxxxxxxxxxxx- economia.htm>. Acesso em: 20 abr. 2021.
Como vimos, o processo de abertura comercial não é isento de desvantagens, e neste sentido o caso da lenta e desigual abertura comercial brasileira é um bom exemplo49. Porém, em certos setores econômicos dos países em desenvolvimento é possível perceber avanços econômicos com taxas de crescimento superiores aos países desenvolvidos50.
A seguir iremos abordar os pormenores da abertura comercial brasileira desde os seus passos iniciais até o momento atual.
1.2.2 Abertura Comercial Brasileira
Muito embora na década de 50 o Brasil tenha recebido algumas fábricas internacionais de bens duráveis, conforme relatado anteriormente, o país passou a integrar o movimento internacional de abertura plena dos mercados somente no final dos anos 80, com a mudança na política de importações. Até 1988 a política de importações brasileira ainda estava pautada em uma legislação tarifaria dos anos
50. Pertencente a essa estrutura tarifária, havia uma série de restrições as importações, como utilização de barreiras não tarifárias, regimes especiais e alíquotas de impostos de importação defasadas51.
O sistema tarifário da época visava barrar a entrada de produtos estrangeiros, impedindo também a chegada de novas tecnologias, criando distorções no mercado, com o diferencial de preços entre os produtos nacionais e importados muito elevado. O protecionismo comercial no qual estava ancorada a política comercial brasileira tinha como objetivos a ampliação e diversificação da capacidade produtiva da indústria nacional, porém, na realidade acabou por barrar o crescimento econômico do país52.
49 XXXXXXXXX, X. X. Abertura Comercial: um estudo sobre o processo brasileiro de liberalização. Curitiba, Revista Paranaense de Desenvolvimento, n.92 set/dez, 1997, p.74.
50 VASCONCELLOS, X. X. X. xx; XXXX, M.; SILBER, S. Manual de comércio exterior e negócios internacionais. 1ª Ed. São Paulo, Saraiva, 2017, p. 09.
51 XXXXXXXXX, X. X. Abertura Comercial: um estudo sobre o processo brasileiro de liberalização. Curitiba, Revista Paranaense de Desenvolvimento, n.92 set/dez, 1997, p.71.
52 Ibid., p.75.
Com o advento da nova ordem econômica mundial, nota-se uma mudança de paradigma no cenário econômico, com a abertura comercial das fronteiras. No Brasil o efeito do pensamento contemporâneo da nova ordem econômica mundial teve seus primeiros reflexos quando o governo Xxxxxx, em 1990, propôs a implementação de um programa de liberalização comercial. O programa propunha uma ampla e abrangente reforma no regime comercial brasileiro, com objetivo de retirar restrições e regimes especiais para as importações, concessão de subsídios, isenções fiscais, entre outros, que havia no regime anterior53.
Na nova fase da abertura econômica brasileira o mercado passou a determinar o nível e a composição da indústria nacional através de uma nova política industrial e de comércio exterior baseada na livre concorrência, cujo objetivo maior era “maximizar a taxa de crescimento da produtividade e elevar o salário real”54.
Foi dada continuidade da política de abertura comercial brasileira pelos governos subsequentes a Collor, agora de forma a dar atenção a alguns setores que foram fortemente abalados pela nova política econômica, buscando o equilíbrio entre abertura comercial e proteção da indústria nacional.
Desta feita, da mesma forma que novos produtos chegavam houve um significativo aumento das exportações, principalmente no tocante aos produtos de origem agropecuária ou de extração mineral em estado bruto, as chamadas commodities. Estes produtos caracterizam-se pela produção padronizada e em larga escala, cujos preços são formados em bolsas de mercadorias no país ou no exterior. Desta forma, não há controle direto dos produtores sobre os preços destes bens, o que torna a liderança em custos a principal estratégia competitiva, através de ganhos de produtividade, na racionalização dos processos produtivos, no acesso aos recursos naturais, nas condições de infraestrutura e de logística55.
Tendo em vista o fato de Brasil ter sua economia primordialmente baseada neste tipo de produto, e a sua importância para o desenvolvimento deste estudo, a
53 Ibid., p.75.
54 XXXXXXXXX, X. X. Abertura Comercial: um estudo sobre o processo brasileiro de liberalização. Curitiba, Revista Paranaense de Desenvolvimento, n.92 set/dez, p.78.
55 XXXXXXXX, S. N.; XXXX, M. S. A Falácia da "Doença Holandesa" no Brasil. Documento de Pesquisa. São Paulo: Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais, 2006. p. xxx
seguir serão explanadas de forma objetiva as questões inerentes as commodities e a economia brasileira.
1.2.3 A questão das commodities no Brasil
A Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), no ano de 2016 publicou a pesquisa “State of Commodities Dependance”, que relata a influência do comercio de commodities em vários Estados56. O relatório apresenta o perfil 135 países, através da análise de 40 indicadores, relacionados principalmente a três dimensões: dependência de exportação de commodities, dependência de importações de commodities, e comércio e valor líquido de mercadorias.
No ano seguinte um novo relatório foi publicado, o “Commodities and Development Report57”, também da UNCTAD, que analisou, de um lado, a relação entre a dependência do comércio de commodities, e por outro lado o desenvolvimento humano e crescimento econômico, corroborando com o relatado no ano anterior. Importante sublinhar que a dependência do Estado da produção e comercialização de commodities, de acordo com os relatórios, afeta negativamente a economia, principalmente quando ponderados os aspectos relacionados a redução da pobreza e segurança alimentar dos Estados classificados como dependentes. Xxxxx (2005) sugere que a desindustrialização nos países latino-americanos está justamente relacionada às mudanças na política econômica nos anos 1990, que proporcionaram uma falta de investimento em indústrias, através da substituição de importações para retornarem à posição pretérita, associada a vantagens comparativas de acordo com a abundância de recursos tradicionais.
Outro fundamento capaz de explicar a dependência das economias do comércio de commodities é o ocorrido no período de 2003 até 2012, quando o
56 UNCTAD - United Nations Conference on Trade and Depelopment. The State of Commodity Dependence 2016. Switzerland [2016?] Disponível em:
<xxxxx://xxxxxx.xxx/xx/xxxxx/XxxxxxxxxxxXxxxxxxx.xxxx?xxxxxxxxxxxxxx0000>. Acesso em 20. Abr. 2021.
57 Mais detalhes em: UNCTAD - Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento. [2021]. Disponível Em: xxxxx://xxxxxx.xxx/xx/xxxxx/XxxxxxxxxxxXxxxxxxx.xxxx?xxxxxxxxxxxxxx0000 Acesso em 20 abr. 2021.
comércio global viveu a alta crescente nos valores das commodities. Todavia, desde 2012 até 2017, quando o relatório foi publicado, o registro é da queda no valor comercial, devido a desaceleração no crescimento econômico dos países em desenvolvimento, portanto o fornecimento de commodities ainda não havia se ajustado a esse novo movimento econômico.
Com efeito, o Brasil está entre os países classificados como dependentes economicamente do comércio internacional de commodities, visto que as exportações brasileiras de commodities agrícolas representaram cerca de 63% do total exportado pelo país, com referência o período entre 2014-2015, conforme relatório.
Sob panorama mundial relatado pela UNCTAD, a dependência das commodities afeta dois terços dos países em desenvolvimento, dentre os quais Brasil e Argentina, dois países proeminentes na produção de soja e seus derivados, que quando observados juntos eles respondem por quase metade da produção de soja do mundo; quase metade das exportações de soja; dois terços das exportações de farelo de soja e 60% das exportações de óleo de soja.
Corroborando com a pesquisa da UNCTAD, no ano de 2018 foi registrada a segunda maior colheita de grãos da história do Brasil. Somente os produtos do complexo da soja representam 14% do volume de exportações, enquanto outros setores apresentaram resultados negativos, o superávit gerado pelo agronegócio foi superior a U$ 87 bilhões no ano58. Nos números registrados em relação aos embarques de soja em grãos, o crescimento acumulado do ano foi de 23%, farelo de soja registrou 19% e os do óleo 5%59.
Somado aos fatores expostos pela UNCTAD, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou que em 2100 o mundo deve alcançar cerca de 10,9 bilhões de habitantes, um crescimento de 42%, se comparado com os 7,7 bilhões de
58 MDIC - Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Estatísticas de Comércio Exterior. [s.l]., 2020. Disponível em: xxxx://xxx.xxxx.xxx.xx/xxxxxxxx-xxxxxxxx/xxxxxxxxxxxx-xx- comércio-exterior/comex-vis/frame-brasil Acesso em: 20 abr. 2021.; CEPEA - Centro De Estudos Avançados Em Economia Aplicada - ESALQ/USP. Índices de Exportação do Agronegócio. 2018.
Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxx.xxxxx.xxx.xx/xxxxxx/xxxxxxxx/xxxxx/Xxxxx_XxxxxxXxxx Acesso em: 20 abr. 2021.
2018_.pdf>
59 CEPEA - Centro De Estudos Avançados Em Economia Aplicada - ESALQ/USP. Índices de Exportação do Agronegócio. 2018. Disponível em:
xxxxx://xxx.xxxxx.xxxxx.xxx.xx/xxxxxx/xxxxxxxx/xxxxx/Xxxxx_XxxxxxXxxx abr. 2021.
2018_.pdf> Acesso em: 20
habitantes de 201960. Esse crescimento populacional representa um desafio para os produtores agrícolas, devido as projeções de crescimento exponencial do mercado.
Em relação a balança comercial, o país atingiu um superávit de mais de U$ 58 milhões e um crescimento de 10,2% no valor total das exportações no ano de 201861. Em dezembro de 2018 foi notado crescimento de 29% nas exportações de soja, se comparado com o mesmo mês do ano anterior. No ano seguinte o volume de exportações do Brasil pelo setor agrícola cresceu 4,7%, no comparativo com 2017. Resultando em mais um ano de recorde das exportações brasileiras de produtos agrícolas e agropecuários, em volume e valor62.
Dito isso, denota-se a importância do comércio internacional de commodities para o Brasil, influenciado pela inclusão do país no movimento global de integração econômica, ou globalização.
Portanto, demonstrado o fato de que o Brasil é um país dependente do comércio internacional de commodities, e que quaisquer oscilações do setor impactam diretamente na economia brasileira, a atenção volta-se para essas relações comerciais. A busca por segurança jurídica para as partes, dentre outros aspectos relacionados ao contrato internacional, embasa o escopo dessa dissertação, contudo, antes de que se adentre ao mérito, é preciso explanar melhor a questão específica da exportação da soja e seus derivados.
1.2.3.1 Exportação de Produtos do Complexo da Soja
60 UNITED NATIONS. World Population Prospects 2019: Highlights. Department of Economic and Social Affairs. .2019. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxxxxxx.xx.xxx/xxx/Xxxxxxxxxxxx/Xxxxx/XXX0000_00XxxXxxxxxxx.xxx> Acesso em: 20 abr. 2021.
61 MDIC - Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Estatísticas de Comércio Exterior. [s.l]., 2020. Disponível em: xxxx://xxx.xxxx.xxx.xx/xxxxxxxx-xxxxxxxx/xxxxxxxxxxxx-xx- comércio-exterior/comex-vis/frame-brasil Acesso em: 20 abr. 2021.
62 CEPEA - Centro De Estudos Avançados Em Economia Aplicada - ESALQ/USP. Índices de Exportação do Agronegócio. 2018. Disponível em:
xxxxx://xxx.xxxxx.xxxxx.xxx.xx/xxxxxx/xxxxxxxx/xxxxx/Xxxxx_XxxxxxXxxx abr. 2021.
2018_.pdf> Acesso em: 20
Os produtos do complexo da Soja são commodities63 bens originados diretamente na natureza, como petróleo, minério, produtos agropecuários, florestais e derivados, com nenhum ou algum grau de processamento industrial64. Dentro desse amplo leque de produtos encontram-se as commodities agrícolas, que por definição são mercadorias de origem primária, produzidas em grande escala, de qualidade e características uniformes, independente da origem, e que possuem grande relevância mundial65.
O complexo da soja, composto pelo grão, farelo e óleo teve efetiva expansão no Brasil a partir de 1970 com a crescente demanda do produto no mercado internacional, sendo o produto mais exportado pelo país, movimentando grandes montantes de divisas e recursos. Entretanto, por se tratar de um produto de baixo valor agregado demanda processos logísticos bem executados, pois esses valores afetam fortemente o custo final.
Um estudo da relação entre o preço do frete e o preço dos produtos: valor máximo, valor médio e valor mínimo para as safras entre 1993 e 1997, apresentou que os custos do transporte da soja no país representavam cerca de 29% do valor do grão. Somados ao custo do transporte, os custos operacionais do Brasil afetam de forma negativa a competitividade do produto nacional. De toda forma é inegável que a soja é um produto estratégico para o país66.
As novas tecnologias implementadas na produção e comercialização de commodities agrícolas transformaram o mercado, outrora simplista e rudimentar, e atualmente com negociações complexas. Dessa forma, as novas tecnologias de
63 O CRB – Commodity Research Bureau, compõe seu índice com mais de 20 produtos negociados em bolsa, dentre eles: metais, óleos, produtos agrícolas, têxteis e fibras. Disponível em xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxx.
64 ApexBrasil – Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos. Análise ApexBrasil Conjuntura & Estratégia: As Exportações Brasileiras e os Ciclos de Commodities: tendências recentes e perspectivas. Julho, 2011. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxxx.xxx.xx/Xxxxxxx/xxxxxxx/0x000x0x-xxx0-0000-0000-x0x0000xx000.xxx. Acesso em: 20 abr. 2021.
65 XXXXX, R. S., XXXXXXXX, T. D. P., XXXXXX XX, H. M. O Uso da Arbitragem no Mercado de Commodities Agrícolas. IN: Arbitragem no Agronegócio. Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxx (Coord.) São Paulo: Editora Verbatim. 2018, p. 53-65. p. xxx
66 XXXXXXX, X. X. xx al. A logística do mercado brasileiro exportador de soja. In: VII Simpósio de Excelência em Gestão e Tecnologia, Resende, RJ: SEGET, 2010. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxxx.xxx/xxxxxxx/Xxxxxx_Xxxxxxxxxx0/xxxxxxxxxxx/000000000_X_Xxxxxxxxx_xx_Xxx cado_Brasileiro_Exportador_de_Soja/links/563b898f08aec6f17dd4dfc8.pdf. Acesso em: 20 abr. 2021.
produção e comercialização demandam novos conhecimentos, do comprador e do vendedor, tornando os contratos internacionais de commodities instrumentos complexos, tanto do ponto de vista comercial, quanto jurídico67.
Por tratar-se de um mercado com características especificas, as formas contratuais com que a comercialização de commodities agrícolas são negociadas variam, destacando-se: o mercado físico; o mercado a termo, o mercado futuro e o mercado de opções68.
Nesse cenário, tendo em vista os impactos econômicos, existem alguns instrumentos que podem ser utilizados pelas partes para blindar as negociações do comércio internacional de commodities, dentre eles o contrato-tipo, ou standard contract form, objeto dessa dissertação69.
A seguir o presente trabalho irá adentrar nas questões próprias da disciplina comercial contratual internacional, partindo do direito internacional do comércio.
67 XXXXX, R. S., XXXXXXXX, T. D. P., XXXXXX XX, X. X. O Uso da Arbitragem no Mercado de Commodities Agrícolas. IN: Arbitragem no Agronegócio. Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxx (Coord.) São Paulo: Editora Verbatim. 2018. p. xxx
68 Para mais detalhes, consultar: XXXXX, X. X. XXXXXXXX, T. D. P., XXXXXX XX, H. M. O Uso da Arbitragem no Mercado de Commodities Agrícolas. IN: Arbitragem no Agronegócio. Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxx (Coord.) São Paulo: Editora Verbatim. 2018. p 53-65.
69 Ibid.
2 DIREITO INTERNACIONAL DO COMÉRCIO
O surgimento do Direito Internacional do Comercio retoma a época em que a Europa era dividida em pequenos feudos, onde a produção agrícola era o meio de subsistência, sem qualquer atividade comercial entre eles. Com o advento do Renascimento, o comércio nas cidades italianas, através de feiras mercantis, registrou o crescimento nas negociações de produtos de diversas origens dentro e fora da Europa. Este movimento mercantilista deu origem a um conjunto de regras próprias autônomas utilizadas pelos comerciantes, a fim de garantir segurança jurídica das partes, visto que a legislação aplicada pelos senhores feudais não supria as novas necessidades comerciais70.
As fontes do Direito comercial internacional são mistas possuindo tanto fontes de direito transnacional, quanto de direito interno71. Neste norte, é preciso esclarecer que dado o nascimento deste direito no contexto europeu feudal, se faz necessária a relativização do que conhecemos hoje como transnacional.
A divisão da época dos feudos, considerava como reinos distintos locais que na atualidade fazem parte de uma mesma comunidade. Isto serve como fundamento, inclusive, para a força das normas de caráter consuetudinário no universo do direito comercial internacional, uma vez que, desde os primórdios das relações comerciais era preciso respeitar particularidades culturais das partes envolvidas aderindo como regra aquilo que fosse mais justo.
Como dito, não se pode medir épocas pretéritas com a régua do presente. Na realidade, não é possível transpor o entendimento atual sobre o conteúdo do Direito Internacional Privado e seu regime jurídico. Contudo, o estudo do passado se faz importantíssimo no que concerne a detecção de regras comuns entre diversos ordenamentos, sendo estes os embriões do Direito Internacional moderno. Em igual sentido é preciso delimitar o objeto pertinente ao estudo do Direito Internacional Comercial72.
70 FIAD, P. S. A criação do direito do comercio internacional: uma uniformização desuniforme. Rio de Janeiro. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, V.2, n. 22, jul/dez 2012, p. 01.
71 XXXXXXXX, X. Direito do comércio internacional e lex mercatoria. São Paulo: LTr, 1996. p. xxx
72 Fonte?
Com o passar dos anos e a mudança de um paradigma econômico feudal73 para o mercantilismo, e por fim o capitalismo, deixou de ser clara a própria distinção entre fatos transfronteiriços jus privatistas daqueles vinculados a ramos do Direito Público, em razão da intervenção do Estado em diversos áreas do direito. Com o advento da modernidade o espectro de abrangência do direito internacional privado teve que ser ampliado, pois as relações tornaram-se bem mais complexas do que as transações simples de produtos realizadas nas épocas feudais e mercantilistas74.
Nos últimos dois séculos o Direito Internacional Privado consolida-se graças à forte expansão capitalista industrial. Outrossim, a emancipação das ex-colônias teve o poder de forçar a Europa a trabalhar na construção de regramentos de comércio internacional, pois já não era mais possível simplesmente explorar os recursos das antigas colônias europeias sem nenhum tipo de controle. Assim, surgiram as primeiras codificações, que introduzem regras de regência dos fatos transnacionais.
Sendo assim, no momento presente é possível afirmar que o Direito Internacional do Comércio tem dois prismas para sua aplicação. O primeiro, de caráter transnacional, diz respeito a uniformização de normas de caráter internacional, como por exemplo convenções e tratados negociados pelos Estados. Esse aspecto tem uma maior proximidade com o Direito Internacional Público, visto que somente o Estado, fazendo uso dos seus preceitos de soberania, pode participar desse tipo de acordo.
O segundo prisma diz respeito as regras internas, relativas à escolha do ordenamento jurídico pertinente para a resolução de conflitos com elemento internacional. Esse conjunto de regras faz parte do ordenamento jurídico interno de cada Estado, conhecido como normas de conexão, portanto ligado primordialmente ao Direito Internacional Privado75.
73 Xxx XXXXXX Xx., X. A europeização do Direito Internacional Privado. Curitiba: Juruá, 2012. XXXXXXXXX, A.V.M., “Les conséquences de l´intégration européenne sur le développement du droit international privé”. In: 232 Recueil des Cours de l´Académie de Droiti nternational de La Haye. 1992, p. 257-383.
74 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx. A Lex Mercatoria e as Novas Tendências de Codificação do Direito do Comércio Internacional. Curitiba: Revista Brasileira de Direito Internacional, jan/jun 2008. V. 7, n 7. p 103.
75 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx. O Enquadramento dos Contratos Internacionais em face da Lex Mercatoria e a Busca de Estabilidade nas Relações Transfronteiriças. Rio de Janeiro: Revista da Faculdade de Direito da UERJ, 2014, p. 8.
Contudo, ainda que tenha havido patentes evoluções a respeito da forma de aplicação e codificação das normas que regem as relações comerciais internacionais, o direito comercial internacional moderno deve alguns de seus princípios fundamentais à Lex mercatoria desenvolvida na Idade Média, que se baseava em costumes dos comerciantes europeus daquele período, sendo que tais costumes e princípios acabaram por se incorporar aos códigos comerciais iniciais. Nas palavras de Goldman76:
Precisamente um conjunto de princípios, instituições e regras com origem em várias fontes, que nutriu e ainda nutre estruturas e o funcionamento legal específico da coletividade de operadores do comercio internacional. (XXXXXXX, 2005, p. ?).
Com efeito, a Lex mercatoria evoluiu, assim como o comercio internacional, dando origem ao Direito Internacional do Comércio, ou Direito Internacional Comercial, que pode ser analisado sob o prisma da uniformização das normas de direito comercial, através da criação de mecanismos internacionais com esse objetivo77.
Importante salientar que o Direito Internacional do Comércio não pode ser confundido com o Direito Internacional Econômico, direito que trata das relações econômicas entre Estados, da liberalização do comércio, quando os Estados buscam mecanismos internacionais de integração regional e integração econômica multilateral, como por exemplo a criação da Organização Mundial do Comercio (OMC). Dessa forma Inocêncio (2017) define:
O Direito do Comércio Internacional enquanto disciplina estuda as normas, princípios, práticas, usos e costumes do Direito Comercial nas relações jurídicas entre pessoas coletivas ou singulares quando haja um elemento de conexão internacional (INOCENCIO, 2017, p. ?).
Outrossim, o Direito Internacional do Comércio tem parte de seu estudo focado no direito transnacional, aquele direito originário dos usos e costumes mercantis, onde na esfera transnacional encontram-se as tentativas de
76 STRENGER, 2005 apud FIAD, P. S. A criação do direito do comercio internacional: uma uniformização desuniforme. Rio de Janeiro. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, V.2, n. 22, jul/dez 2012, p.1.
77 SCHUTZ, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p.47-49.
regulamentação através da uniformização de normas mercantis entre os Estados, para que os particulares possam ser beneficiados pela segurança jurídica, resultado da uniformização. O comércio internacional está em constante evolução e atualização, devido à grande influência dos usos e costumes nas negociações, o que indica que, uma forma eficiente de solucionar os conflitos comerciais internacionais é a uniformização, a padronização, ou ainda a sua harmonização78.
Dada a importância da Xxx Xxxxxxxxxx para o comércio internacional, sob o prisma da segurança jurídica pode-se dizer que foi através dela que o direito, em seu aspecto regulador das atividades comerciais internacionais, foi concebido79. Com efeito, a Lex Mercatoria evoluiu, assim as relações comerciais internacionais, dando origem ao Direito Internacional do Comércio80. Porém por se tratar de instituto da maior importância, na sequência serão explanados seus principais conceitos e as mudanças mais importantes desde os primeiros casos em que fora implementada, até os dias atuais.
2.1 Lex Mercatoria
Primeiramente cabe mencionar que discussão sobre as fontes deste instituto é necessária e válida para os objetivos do presente estudo. Contudo, tendo em vista que se trata de assunto controverso, antes que se adentre ao mérito principal da sua evolução será feita uma breve introdução acerca do ponto em que não possui discrepâncias: a importância da Lex mercatoria para o entendimento do Direito do Internacional do Comércio. A nomenclatura desse fenômeno jurídico de origem consuetudinária definida como Lex mercatoria para alguns autores, mantendo a
78 FIAD, P. S. A criação do direito do comercio internacional: uma uniformização desuniforme. Rio de Janeiro. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, V.2, n. 22, jul/dez 2012, p.1-2.
79 XXXXXXXXX, X. Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.10 jul/dez 2017, p. 51.
80 SCHUTZ, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p. 47-49.
nomenclatura ainda para sua manifestação hodierna, enquanto outros a denominam direito transnacional ou “terceiro Direito”81.
A concepção moderna desse direito de origem nos usos e costumes da sociedade comercial internacional é reflexo da aceitação dos ordenamentos jurídicos estatais de que existe um o pluralismo jurídico entre os princípios gerais do Direito e as fontes informais do ordenamento jurídico82.
Para Xxxxxxxx, Xxxxxxxx e Xxxxxxx, em razão da originalidade das necessidades a que respondem, os princípios gerais do Direito constituem uma fonte importante de um novo Direito do comércio internacional e dos contratos (CRETELLA NETO, 2016, p. ?).
Dentre os conceitos doutrinários mais ambiciosos da Lex mercatoria, está o fato de que esta não faz parte da ordem jurídica especificamente de nenhum dos Estados. Cretella conceitua como “uma forma autônoma de ordem jurídica “a- nacional”, ou seja, existe independentemente de qualquer ordem jurídica estatal”.83
O autor cita Xxxxxxx e Xxxxxxxx, doutrinadores com uma visão mais restritiva da Xxx xxxxxxxxxx, conforme observamos84:
Direito criado pelo empresariado, independente de intermediação dos poderes dos Estados e destinadas a disciplinar de modo uniforme as relações comerciais que se estabelecem nos mercados (CRETELLA NETO, 2016, p. ?).
81 “O fenômeno da lex mercatoria é cunhado com diversas expressões ao longo da história, tais como ius mercatorum, law Merchant, direito mercantil, droit comercial et maritime, direito comercial. É também comum a referência a the law of international trade (ou international trade law), the law of international comercial transactions, direito corporativo, princípios gerais de direito comercial internacional, entre outros.” SCHUTZ, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p.50).
82 XXXXXXXX XXXX, Xxxx. Contratos Internacionais do Comércio. 2ª Edição. São Paulo: Letz Total Media Creative Projects, 2016, p. 179.
83 ICC – International Chamber of Commerce. Developing neutral legal standards for international contracts. [s. L]. 2017. Disponível em: xxxxx://xxxxxx.xxx/xxxxxxx/xxxxxxx/xxxxx/0/0000/00/Xxxxxxxxxx- Neutral-Legal-Standards-Int-Contracts.pdf Acesso em: 20 abr. 2021; XXXXXXXX XXXX, Xxxx.
Contratos Internacionais do Comércio. 2ª Edição. São Paulo: Letz Total Media Creative Projects, 2016, p. 180.
84 XXXXXXXX XXXX, Xxxx. Contratos Internacionais do Comércio. 2ª Edição. São Paulo: Letz Total Media Creative Projects, 2016, p. 181.
Refutando essa visão aparentemente amplificada, Strenger85 tem outro ponto de vista. O Autor não compactua com a ideia de que a Lex mercatoria não possui vinculação com o direito estatal, pois ao passo que os contratos internacionais possuem vinculação a algum Direito estatal quando deste depende aspectos contratuais como validade, capacidade das partes, entre outros, seria incabível a caracterização da Lex mercatoria como normatização independente.
Já Schutz86 pondera algumas definições doutrinárias e define a nova Lex mercatoria, de forma preliminar como:
(i) direito material; (ii) transnacional, isto é, não produzido em nível nacional ou internacional por nenhum Estado específico; (iii) comportando, de outro lado, uma dimensão local trans nacionalizada; cujas regras são (iv) criadas de forma espontânea, em maior ou menor escala, pela própria classe mercantil; (v) aplicável aos contratos comerciais internacionais; e que (vi) que tem um aspecto comunicativo importante (SCHUTZ, 2010, p. 49)
Conforme narrado de maneira breve anteriormente, por se tratar de um fenômeno advindo dos usos e costumes mercantis, existe a dificuldade em definir de forma clara quais os primeiros registros reais dessa manifestação jurídica. Para alguns doutrinadores a Lex mercatoria tem seus primeiros registros com o surgimento das primeiras formas de comércio internacional, podendo ser considerada a origem do Direito do Comércio Internacional87.
Mais uma vez a sua origem costumeira traz divergências quanto a sua definição, e apesar de citada por muitos autores, a doutrina não encontra uma única definição88.
Muito embora as principais vozes da doutrina detalhem os primeiros registros da xxx xxxxxxxxxx como oriundos dos feudos europeus, é possível afirmar que os embriões destas relações internacionais já estavam presentes em tempos ainda mais remotos, neste caso saliente-se a “Lex Rhodia de Jactu” documento de 475
a.C. que regulamentava o comércio internacional e os aspectos referentes às
85 XXXXXXXX, X. Contratos Internacionais do Comércio. São Paulo: LTr, 4ª ed, 2003, p. 93.
86 SCHUTZ, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p. 49.
87 CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 93.
88 Ibid., p. 90.
atividades marítimas. Posteriormente, os gregos instituíram o “Nauticum foenus” como fonte para regular os negócios entre comerciantes. Por outro lado, os romanos criaram o sistema do “Jus gentium”, que também teve caráter de internacionalidade e regulou o comércio internacional entre os romanos e os demais comerciantes da Antiguidade, além de permitir aos estrangeiros a possibilidade de invocar normas de caráter interno em sua proteção89.
No entanto, é ponto basilar que ainda que haja divergências sobre a origem do instituto, uma vez que, embora já existissem leis de caráter transfronteiriço na antiguidade estas ainda assim possuíam alcance limitado, a criação de órgãos de uniformização internacional como o Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT), criado em 1926 como órgão auxiliar da Liga das Nações, com o objetivo de estudar as necessidades e métodos para modernizar, harmonizar e coordenar o direito privado e, em particular, o direito comercial, formulando instrumentos jurídicos, princípios e regras uniformes.
Muitos dos rascunhos do UNIDROIT deram origem a convenções internacionais, como a Convenção sobre a Formação de Contratos para a Venda Internacional de Mercadorias, que foi adotada em uma conferência diplomática dos Estados membros em Haia em 1964 (INTERNATIONAL, 2014). E a Convenção de Viena sobre a Venda Internacional de Mercadorias. Além de destacarmos a criação da Câmara de Comércio Internacional (ICC), fundada em 1919. Posteriormente nesta pesquisa serão vistos alguns dos princípios do UNIDROIT aplicados a esfera prática, bem como a sua congruência com diplomas de alcance internacional atuais.
Sem encontrar unanimidade na doutrina, é possível afirmar que a evolução da lex mercatoria se deu em três fases90.
A primeira fase ocorre na Idade Média com Jus mercatorum, e o advento do comércio internacional nas feiras medievais que reuniam comerciantes de dentro e fora da Europa. A segunda no advento do Estado moderno, já como Lex mercatoria, e a terceira fase em seu renascimento, após a Segunda Guerra Mundial, com o desenvolvimento da Lex mercatoria contemporânea, quando ocorre a intensificação do comércio internacional devido a modernização dos transportes, comunicações,
89 STRENGER, I. Contratos Internacionais do Comércio. São Paulo: LTr, 4ª ed., 2003. p. xxx
90 XXXXXXXXXXXX, 2012, p 20-37 apud SCHUTZ, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado.
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p.49.
possibilitando a mobilidade das pessoas, produtos e serviços pelo globo. Neste sentido preconiza Lambert91:
Nascida como a lei mercante medieval unicamente através dos fatores econômicos, e sem qualquer ratificação das autoridades estatais, este novo direito comercial criado pelos comerciantes tem, como a lei mercante medieval, a aptidão de se expandir livremente para além das fronteiras nacionais. Ela possui desde sua origem um caráter cosmopolita, pois as atividades comerciais e industriais, a partir das quais ela é invocada a reger o jogo, são elas mesmas atividades internacionais (LAMBERT, 1934. p. 498).
Com o fito de abordar de forma abrangente cada uma destas fases, elencando os pontos que serviram como embasamento para as normativas em vigor no mundo atual, na sequência será feito o estudo ponto a ponto da contextualização histórica da Lex Mercatoria.
2.1.1 Lex Mercatoria Antiga e Medieval
Embora seja comum acreditar que a globalização é um fenômeno recente é possível afirmar que em tempos muito antigos certas partes do mundo já contavam com vibrantes sistemas comerciais internacionais. O registro de comércio entre os povos retorna ao comércio marítimo realizado pelos Fenícios, nos séculos XV e XIV
a. C92. A humanidade sempre utilizou da atividade mercantil, que em seus primórdios funcionava pelo sistema de trocas, culminando nos sistemas modernos de compra e venda, entretanto, ainda registra avanços, pois de acordo com a modificação das relações comerciais, é necessária a evolução legal, tendo em vista que o direito é uma ciência que busca se adequar aos fatos.
91 “Né comme la loi marchande médiévale de la seule force des faits économiques, et sans aucune consécration d`autorités étatiques territoriales, ce nouveau droit commercial fait par les commerçants a, comme la loi marchande médiévale, l`aptitude à se répandre librement par dessus les frontiéres des Etats et des nationalités. Il prend dès as naissance um caractere accusé de cosmopolitisme, parce que les activités commerciales ou industrielles, dont il est appelé à régler le jeu, sont elles- mêmes des activités internationales”. (LAMBERT, 1934. p. 498. apud BADDACK, 2005. p. 18. Apud CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 102.
92 CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 93.
Os primeiros registros dos usos e costumes comerciais organizados em um conjunto de normas, data dos séculos VIII a VI a. C. Normas oriundas principalmente do comércio marítimo entre os povos93. Sendo assim, ainda hoje são encontrados nos contratos internacionais princípios utilizados na época94.
Ainda remontando a tempos pretéritos, antes do advento da idade medieval, de acordo com Strenger a civilização helenística95 foi palco de grande evolução econômica96. O autor cita que os helenistas apresentaram uma “evolução econômica unicamente comparável, em magnitude, as revoluções comerciais industriais da Era Moderna”. A expansão da civilização helenística foi marcada pela criação de novas rotas de comercio marítimo e terrestre, a partir das conquistas de Xxxxxxxxx, o Grande, acarretando a expansão seus negócios para novos mercados97. A partir dessa difusão do comércio internacional, a população como um todo passou a ter acesso a uma maior diversificação de produtos.
Não obstante, em Roma, a partir da metade do século III a. C., as relações comerciais entre estrangeiros e cidadãos romanos passam a ser regidas por um direito diferente do direito que regulamentava as relações civis entre cidadãos romanos. O jus civile, direito que regulava as relações civis dentro do estado
93 DAL RI JUNIOR, 2004 apud: CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 93.
94 “É neste período [cidades-estado gregas] que surgem também alguns costumes que historicamente se consolidaram como importantes normas de comércio marítimo, até hoje previstas na maioria dos contratos nesta matéria. É o caso da chamada Lei de Rodes - posteriormente latinizada como lex Rhodia -, prevendo que, em caso de necessidade de jogar no mar parte da carga de uma embarcação mercantil, evitando assim o naufrágio, o prejuízo seja dividido em partes iguais por todos os estados proprietários das mercadorias que estão sendo transportadas. (...) O mesmo acontece com a regra do nautikon daneion – posteriormente latinizada como nauticum fenus, prevendo que o comerciante que tivesse contraído um empréstimo para carregar sua embarcação, sendo que em meio à viagem tivesse acontecido um naufrágio, estaria isento do pagamento da dívida. Ao contrário, tendo a viagem marítima obtido sucesso, o comerciante deveria pagar juros que poderiam ir de 30% a 50%”.
95 “Os gregos chamam-se de helenos , e os estudiosos modernos utilizam o termo helenístico para referirem-se à civilização que se utilizava do grego como língua oficial, a partir das conquistas de Xxxxxxxxx, o Grande (336 a.C.), até o domínio romano da Grécia, em 146 a.C.” (Civilização Helenística. Professor Xxxxxxxx [s.l.], [2021]. Disponível em
<xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxx/00/xxxxxxxxxxx-xxxxxxxxxxx>. Acesso em: 20 abr. 2021.
96 XXXXXXXX, X. Direito do comércio internacional e lex mercatoria. São Paulo: LTr, 1996, p. 56.
97 “Xxxxxxxxx conquistou um imenso território: as cidades gregas todas, mas também o Egito, a Palestina, a Mesopotâmia, a Pérsia (Irã), chegando à Índia. Depois de sua morte prematura, o Império dividiu-se em três reinos, centrados na Macedônia, no Egito e na Mesopotâmia”. (Civilização Helenística. Professor Xxxxxxxx [s.l.], [2021]. Disponível em
<xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxx/00/xxxxxxxxxxx-xxxxxxxxxxx>. Acesso em: 20 abr. 2021.
romano, este regramento somente era aplicado em disputas entre os nacionais, deixando descobertas as relações civis e comerciais entre nacionais e estrangeiros, o que dificultava a resolução destes98.
Como sabido os romanos conquistaram um imenso território, estendendo-se por toda a Europa, Norte da África e Oriente Médio99. É importante salientar ainda que o império romano era primordialmente comercial, as rotas comerciais praticadas pelos romanos ultrapassavam as fronteiras do império, chegando a regiões remotas como a China, através da Rota da Seda e a Índia, por rotas marítimas a partir dos portos no mar Vermelho100. A principal mercadoria transacionada eram os cereais, sendo também comercializados outros alimentos, além de toda sorte de outros “bens” que iam desde pedras preciosas a escravos. Diante deste cenário surgiu a necessidade de criação de um direito aplicável a esta nova situação jurídica que apresentava crescimento, juntamente com a expansão comercial entre os povos. Neste panorama fora criado o chamado jus gentium, considerado uma fonte do comércio internacional, utilizado em casos nos quais uma das partes não fosse cidadã ou subordinada as regras do império Romano. O jus gentium possuías regras especificas e pertinentes as relações comerciais internacionais.
Traçando um paralelo com os diplomas e sistemas contemporâneos, é possível afirmar que este regramento se assemelhava ao processo arbitral atual, e ainda com o sistema common law, pois as decisões dos conflitos baseavam-se em pareceres exarados por especialistas nos temas pertinentes a contenda. Ademais, as disputas comerciais tinham suas decisões baseadas em julgamentos prévios de matéria similar, conhecidos no direito atual como jurisprudências101.
Desde o século III Roma sofreu ao enfrentar constantes ameaças Bárbaras, que perdurou por séculos, o que propiciou um declínio do império e, por
98 CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, p. 94.
99 XXXXXXX, X. Space, Geography, and Politics in the Early Roman Empire. [S.l.]: University of Michigan Press. 1991. p. xxx
100 XXXXXX, X. X. The Cambridge Ancient History: The High Empire A.D. 11. [s.l.]: Cambridge University Press. 2000. p. xxx
101 CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 94.
conseguinte, das relações comerciais102. Este longo período de queda nos negócios mercantis entre diferentes povos criou um isolamento comercial da sociedade romana. Após a ascensão e queda do Império Romano e um longo hiato nas relações comerciais transfronteiriças, tais vínculos voltaram a se restabelecer durante a idade média.
Com a emigração dos feudos, as antigas cidades começaram a ser reocupadas fazendo com que rotas comerciais, antes esquecidas, voltassem a ser utilizadas, principalmente por vias terrestres, devido as distâncias relativamente curtas entre os países do continente europeu103. Nesse período os comerciantes passaram a se organizar em feiras comerciais, periódicas e regulares, fato que facilitava o comercio de variados produtos, atraindo compradores de diversas partes da Europa e de fora dela, registrando o crescimento da atividade mercantil104.
Nestes tempos o domínio das jurisdições territoriais ainda cabia aos senhores feudais. A gestão dos feudos, era feita através de normas impositivas, as quais eram calcadas em privilégios ligados a relações familiares ou políticas da burguesia da época, além de sofrer interferências das imposições do direito canônico105. Assim, na medida em que o comércio passou a se fortalecer, a classe mercantil foi se tornando mais independente dos senhorios.
O passo seguinte não poderia ser outro senão formar sua própria ordem jurídica, beneficiando-se do tratamento diferenciado dado às relações de troca locais em relação as de longa distância. As autoridades políticas locais e religiosas possuíam, dentre suas prerrogativas, autoridade para, em troca do pagamento de tributos, autorizar o comercio e organização de feiras, concedendo aos comerciantes de longa distância o salvo-conduto para exercer sua atividade106. Dessa forma os mercadores estavam isentos da lei local ao participarem destas feiras comerciais
102 STRENGER, I. Direito do comércio internacional e lex mercatoria. São Paulo: LTr, 1996, p. 57. 103 SCHUTZ, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p.51.
104 CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 95.
105 CRETELLA XXXX, 2016, p. 178.
106 SCHUTZ, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p.51.
medievais, regendo sua atividade através dos usos e normas comerciais costumeiras, a lex mercatoria. Nas palavras de Schutz107:
Inicialmente, para regular o comercio marítimo, a classe mercantil se baseou na Lex Rhodia, recebida pela Grécia e pelos romanos e transmitida para a Europa Ocidental, assim como no jus gentium romano para direito das obrigações. As cidades portuárias passaram então a criar compilações de regras de direito marítimo, como a Távola Amalfitana, adotada por todas as cidades italianas e em vigor no Mediterrâneo até segunda metade do século XVI. As cidades do Atlântico, do Mar do Norte e Inglaterra adotaram a Rôle d’Oleron. Mencione-se também a existência das Laws of Wisby, no mar Baltico, e o Llibre del Consolat de Mar, coleção, regida no século XIII, de costumes marítimos observados pela corte consular de Barcelona. Estas regras e costumes, que cuidavam de direito marítimo e também de contratos de transporte marítimo de carga, espalharam-se para outros centros comerciais (SCHUTZ, 2010, p. 49).
Como seria de se esperar, em razão das relações comerciais oriundas de diferentes localidades, marcadas por uma patente descentralização, o direito mercantil não possuía uniformidade nesse período, que apesar de vago, devido a sua recente criação, já havia a dotação de autonomia, visto que, se diferenciava do direito comum ou Common Law of the Land, com normas e doutrinas jurídicas aplicadas especificamente aos comerciantes, regulando as transações comerciais. Esse direito, considerado distinto, estava presente em todos os países que possuíam atividade mercantil, conforme afirma Inocencio108:
Apesar de ser vago, o Direito Mercantil existia. Em todo País Comercial na Europa, havia normas e doutrinas jurídicas para os comerciantes e para as transações comerciais que eram consideradas pelos comerciantes e juristas como um Direito distinto do Direito comum de um País (“Common Law of the Land”) (INOCENCIO, 2017, p. ?).
Neste panorama se deu a criação de um conjunto de normas, fundado nas regras de comercio marítimo e terrestre, aplicável às transações comerciais, chamado de jus mercatorum, ao passo que os mercadores buscavam transpor barreiras normativas da época, criado e executado pela classe mercantil109.
107 Ibid., p.51.
108 XXXXXXXXX, X. Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.10 jul/dez 2017. p. xxx.
109 SCHUTZ, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p. 55.
Conforme citado brevemente no introito deste capítulo, para muitos doutrinadores as normas advindas das transações comerciais efetivadas nas feiras comerciais europeias são o marco inicial real do surgimento da Lex mercatoria. Esse conjunto de normas tem como característica marcante a sua produção de forma voluntária e espontânea pela comunidade mercantil, desenvolvida num contexto de pluralismo jurídico do qual faziam parte o Direito local, Direito consuetudinário de origem germânica e o Direito Romano, nomeado “ius commune”.110
A lex mercatoria regulava os mercadores, uma classe especifica da sociedade, em lugares especiais, as feiras, mercados e portos.111 Esse conjunto de normas era composto de sistemas jurídicos de natureza costumeira e legislativa, baseado em princípios que se mantem, nos dias de hoje para o direito do comércio internacional. Tais princípios buscavam evitar a discriminação entre comerciantes locais e estrangeiros, ou seja, favorecendo o princípio não discriminação, bem como da equidade e boa-fé nas relações comerciais.
De acordo com Inocêncio112, na Idade Média a Lex Mercatoria apresentava as seguintes características:
Direito aplicável aos comerciantes em virtude do seu estatuto pessoal nas transações internacionais e não tinha qualquer elemento de conexão com o Direito dos Estados/ Reinos (era parte do pluralismo jurídico existente durante o período). 2) Direito espontâneo baseado em usos, práticas e costumes mercantis que foi parcialmente codificado em instrumentos de negociação (Títulos de crédito, por exemplo) dos comerciantes. Essencialmente a Lex Mercatoria derivava dos usos e costumes mercantis nas feiras medievais anuais. 3) Os comerciantes eram os “juízes do sistema”. A aplicação da Lex Mercatoria não era confiada aos Tribunais eclesiásticos ou dos diversos Reinos ou cidades onde se realizavam as feiras. 4) O processo de aplicação da Lex Mercatoria era rápido e informal 5) O princípio regulador da resolução de conflitos era a equidade (justiça) nas disputas entre comerciantes (XXXXXXXXX, 2017, p. ?).
A natureza voluntária, espontânea e universal da Lex Mercatoria não encontra unanimidade na doutrina. Alguns autores, como por exemplo Xxxxxxxx e
110 XXXXXXXXX, X. Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.10 jul/dez 2017. p. xxx.
111 SCHUTZ, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p. 55.
112 XXXXXXXXX, X. Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.10 jul/dez 2017, p. 55.
Dellavale113 afirmam que o conjunto de normas mercantis surgido nas feiras comerciais medievais, era um “corpus iuris dotado de relevância prática” e não uma lei efetivamente114. Para Xxxxxx, o caráter distintivo da Lex mercatoria medieval reside na natureza essencialmente autorregulatória da classe mercantil, tanto na criação do direito (sujeitos e fontes) quando na solução de disputas115.
O reconhecimento da expansão da Lex mercatoria pode ser verificado a partir do momento em que Tribunais do Mar, como o de Veneza e Cortes Inglesas, com a Law Merchant, fazem uso desse conjunto de normas para julgar suas disputas, assim como o aparecimento desta nas jurisprudências da Liga Hanseática, conforme afirma Cordeiro116.
A definição das regras comerciais era de livre escolha dos comerciantes, sem regulamentos impostos pelos soberanos, e somando a isso o crescimento do comércio internacional, as populações europeias passaram a ter mais acesso a uma maior diversidade de produtos, incluindo produtos estrangeiros. Como o crescimento do comércio entre povos era do interesse da sociedade em geral, a expansão da aplicação da Lex mercatoria se deu de forma orgânica, sob a égide da necessidade de se proporcionar segurança jurídica para além das fronteiras de determinadas regiões.
A Lex mercatoria foi definida por Malynes117 como “a lei de todas as nações”, que diferentemente do direito interno de cada Estado, proporcionava aos comerciantes a possibilidade de encontrar uniformidade legislativa diante de um conjunto de regras universais consuetudinárias, aplicado por cortes comerciais
113 2012, p. 64-68 apud XXXXXXXXX, X. Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.10 jul/dez 2017, p. 55.
114 Ibid.
115 CUTLER, p. 10 data apud: XXXXXX, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p. 55.
116 CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 95.
117 1622. p. 10 apud PEREIRA, 2002; p. 287 apud CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 96.
especiais criadas com o objetivo de dirimir os litígios comerciais entre os comerciantes de diferentes estados. De acordo com Cordeiro118:
As chamadas piepowder courts existiam em praticamente todos os mercados ingleses desde o século XIII. Eram compostas por árbitros que tinham domínio da prática mercantil, e julgavam com agilidade e rapidez eventuais conflitos surgidos entre comerciantes, aplicando então esse conjunto de regras nascido da prática mercantil, denominado lex mercatoria. Outras cortes medievais aplicavam, também, a denominada lex mercatoria, como as English Staple Courts, criadas em 1354 e as alemãs Bozner Merkantilgerichtsrat, criadas a partir de 1635. O estatuto das English Staple Courts, por exemplo, estabelecia que “todos os comerciantes, ao chegar a Staple, serão regulados pela lei mercante e não pela lei comum local, nem pelos usos e costumes das cidades, burgos ou outros locais (CORDEIRO, 2008, p. ?).
Muito embora houvesse outras cortes para as quais recorrer, os comerciantes somente tinham suas pretensões garantidas quando a disputa fosse levada as próprias cortes criadas: pela classe mercantil. Sobre esta diversidade de cortes e sua diversidade de jurisdição, preleciona Schutz119:
Compostas pelos próprios mercadores e denominadas de court of pie- power, as cortes eram estabelecidas, por consentimento real, com definição da respectiva jurisdição, nas próprias feiras, mercados e cidades portuárias (SCHUTZ, 2010, p. 49).
Ainda no campo doutrinário, acerca das razões que proporcionaram a expansão comercial na época medieval, Schimitthoff, teoriza que são quatro as principais causas do internacionalismo medieval: “caráter unificador do direito das feiras, universalismo dos usos marítimos, as cortes especificas com competência específica para disputas e as atividades do notário público”120.
Entretanto, a Lex mercatoria como conjunto de normas paralelo ao poder estatal, caiu em desuso após a expansão das grandes codificações, com ponto
118 CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 97-98.
119 SCHUTZ, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p.57.
120 XXXXXXXXXXXX, p.22-4 apud SCHUTZ, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado.
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p.57.
inicial marcado pelo advento do Code Civil Napoleônico, de 1804121. O caráter universal manteve-se até o século XVII, quando o ius mercatorum começou a ser incorporado pelo Estado, através de codificações estatais, agora que o Estado passou a ser o detentor das normas comerciais.
O pensamento mercantilista, linha de ação e pensamento que unifica economia e política na teoria e na prática, elegeu o direito positivo para regular o comércio internacional. Com o entendimento de que o comércio internacional tinha papel importante para o fortalecimento e sustentação do poder político, os monarcas iniciaram o movimento de nacionalização e localização do ius mercatorum122.
Alguns anos depois, o Iluminismo, período que ficou amplamente conhecido pelo racionalismo científico em diversos ramos da ciência, teve influência registrada nos novos códigos de direito. A racionalidade da época deu origem à codificação do Direito, onde toda a legislação e o Direito em geral, incluídos os usos e costumes, foram unificados de acordo com conceitos jurídicos pré-concebidos, dando origem ao que foi chamado de Direito Comercial123. Portanto, o direito advindo dos usos e costumes comerciais foi organizado pelos Estados em forma de códigos legislativos, neste sentido diz Inocêncio124 “a codificação implica a substituição do direito tradicional por um Direito sistematizado e compreensivo, planejado de forma consciente numa ordem racional”.
Sendo assim, as únicas fontes de direito aceitáveis a partir de então eram aquelas emanadas pelo Estado. Havendo a substituição dos usos e costumes como fonte normativa, para os sistemas legais mais próximos do que conhecemos na atualidade, dando origem a visão positivista do direito.
121 XXXXXXXX XXXX, Xxxx. Contratos Internacionais do Comércio. 2ª Edição. São Paulo: Letz Total Media Creative Projects, 2016, p. 180.
122 SCHUTZ, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p.58.
123 XXXXXXXXX, X. Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.10 jul/dez 2017, p. 56.
124 ZWEIGERT e KOTZ data apud XXXXXXXXX, F. Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.10 jul/dez 2017, p. 56.
Paralelamente, a solução de disputas, bem como a execução de decisões, se tornou função da esfera pública. Além de ser uma realização política, Schutz, ao citar Xxxxxx, define essa transição do direito consuetudinário para a formalização125.
A expansão geográfica das relações comerciais tornou inadequado o sistema de autoaplicação dos comerciantes. A coleta de informações sobre credibilidade e honestidade dos comerciantes ficou mais cara. As sanções de exclusão de mercado e perda de reputação tornaram-se difíceis de aplicar à medida que os mercados proliferavam em número, à medida que o comércio se estendia a lugares distantes e a prática da troca simultânea nos mercados foi substituída por trocas não simultâneas ao longo do tempo e à distância. A imposição de falências e a execução de acordos tornaram-se prerrogativas dos estados e, portanto, dependem da intervenção nacional à medida que os estados adotam leis e procedimentos que regem a execução e a execução de acordos comerciais126.
Dessa forma, a Lex mercatoria, como era conhecida na época, ou seja, uma legislação comercial transnacional independente, desapareceu durante o século XIX, tornando-se um direito nacional (BERGUER, s.d]). Esse movimento de codificação foi apoiado pela classe mercantilista, que, juntamente com a monarquia absolutista, se fortaleceu com a expansão europeia devido à conquista de novas colônias.
A ascensão do poder político do Estado acarretou a redução da força política exercida pela classe burguesa mercantilista, o que não condizia com o crescimento econômico de burguesia. Dessa forma, no século XVIII, houve o advento do liberalismo, jusnaturalismo e direito natural, quando essa classe social, apesar de ter seus interesses em convergência com os interesses políticos, almeja o desenvolvimento de forma autônoma, refletindo a cultura do período em que se encontrava. “A formação do Estado Nacional proporcionou a burguesia ascensão e dimensão de poder inéditos” diz Xxxxxx (2010).
A burguesia mercantilista, com o crescimento do comércio internacional, passa a retomar seu poder político frente ao poder do Estado, quando o direito
125 SCHUTZ, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010. P 58-59.
126 “The geographic expansion of comercial relations rendered the self-enforcement system of merchants inadequate. The collection of information regarding the creditworthiness and honesty of merchants became more expensive. The sanctions of Market exclusion and loss of reputation became difficult to enforce as markets prolifereted in number, as commerce extended to faraway places, and the practice of simultâneos Exchange in markets was replaced by nonsimultaneos exchanges over time and distance. The imposition of bankruptcy and the enforcement of agréments became prerrogatives of states and thus contingente upon national internvention as states adopted laws and procedures governing the enforcement and execution of comercial agreements”. Tradução livre.
comercial, mesmo que regulado pelo Estado, volta a ser matéria de direito privado. “A partir da segunda metade do século XIX, os usos comerciais voltam a ter papel na criação do direito, ainda que subordinados à lei e ocupando o último lugar na hierarquia de normas”127.
A retomada em momento posterior da Lex mercatoria como parte do conjunto criativo de normas comerciais, de acordo com parte da doutrina, ocorre em decorrência do caráter essencialmente cosmopolita desta, que acompanha as mudanças econômicas, adaptando suas normas de acordo com necessidades comerciais inerentes ao comercio internacional de maneira muito mais veloz que os códices positivados. A localização e nacionalização da lex mercatoria impediam que a criação e desenvolvimento de normas, bem como a adaptação dessas, se desse na velocidade necessária para fomentar as relações comerciais, fator importante para que a Lex Mercatoria, gradativamente, retomasse sua posição, a partir do século XIX.
Visando explicar melhor este percurso, bem como o papel essencial do mercantilismo e da classe dos comerciantes no desenvolvimento das legislações comerciais contemporâneas, se faz necessária uma explicação mais efetiva sobre como a história da Lex mercatoria, se relaciona com a história da organização do direito comercial como um todo. Sendo assim, a seguir será feita uma explanação sobre os primórdios das Instituições Mercantis, para posteriormente, retomarmos a linha do tempo rumo a aplicação da Lex mercatoria no direito contemporâneo.
2.1.1.1 Criação de Instituições Mercantis
Conforme narrado anteriormente, a organização do comércio em feiras mercantis aproximou comerciantes de ramos similares, fazendo com que o surgimento de necessidades comuns nas transações comerciais, além da necessidade de busca por direitos que oportunizassem proteção a toda uma classe e não somente a alguns indivíduos desse origem a associações mercantis. Ante a
127 SCHUTZ, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p.60.
falta de um poder político central, uniram-se formando grupos, de acordo com a atividade exercida por seus membros, conhecidas como associações mercantis, ou guildas128. Nas palavras de Xxxxxxx e Hunt:
Os comerciantes da época, que passaram a ganhar dinheiro nessas feiras, passaram a unir-se com associações (guildas), com a finalidade de elaborar um novo ordenamento jurídico, mais adequado as práticas comerciais da época, bem como em instituir regras para a arbitragem comercial, destinada a solucionar litígios entre eles (XXXXXXX; HUNT, 2016, p. ?).
Recebiam o nome de guildas as associações formadas por artesãos profissionais e independentes, em igualdade de condições, destinadas a proteção de interesses específicos ou até mesmo a luta para que fossem mantidos certos privilégios de ordem tributária, por exemplo. Além das guildas, existiam também as hansas, associações de comerciantes ao invés de estarem ligados unicamente pelo seu ramo de atividade, conectavam seus interesses baseados em delimitações territoriais. Em ambos os casos havia a cobrança de uma taxa dos associados, assim como ocorre com os sindicatos de categorias nos dias atuais.
As associações mercantis foram criadas com o intuito inicial de auxiliar seus membros nas disputas comerciais. Porém, passaram a incorporar outras funções de acordo com as necessidades distintas de cada grupo. Nos centros comerciais começaram a ser desenvolvidos diversos instrumentos financeiros modernos, como o início da atividade bancária, gerando novas necessidades aos comerciantes, tornando assim a atividade comercial incompatível com as restrições impostas pelos costumes e tradições feudais129.
Esses grupos, que constituíram seus patrimônios através de doações de seus associados, aos poucos assimilaram também a função jurisdicional, sendo portanto, uma associação de proteção aos membros130.
128 CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008,
p. 96. XXXXXXX e XXXX 1988, p. 27 apud XXXXXXXX XXXX, Xxxx. Contratos Internacionais do Comércio. 2ª Edição. São Paulo: Letz Total Media Creative Projects, 2016, p. 179.
129 XXXXXXX e XXXX apud XXXXXXXX XXXX, Xxxx. Contratos Internacionais do Comércio. 2ª Edição. São Paulo: Letz Total Media Creative Projects, 2016. p. xxx.
130 CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008.
Somada, às funcionalidades citadas acima, ao assumir a função jurisdicional na resolução de conflitos entre mercadores, as associações assumiam também as seguintes funções:131
A magistratura mercantilista assumia, então, (i) funções políticas (ao defender a honra e dignidade das corporações às quais pertenciam, colaborar com a manutenção da paz, etc.), (ii) funções executivas (observar o cumprimento das disposições estatutárias, leis e usos mercantis) e (iii) funções judiciais (solucionando os conflitos mercantis).
Dessa forma, diferentemente do que ocorreu antes, esse conjunto de normas não surge da atividade legislativa de um poder central, nem da criação de jurisconsultos. O intuito superar normas feudais e eclesiásticas obsoletas, com um conjunto de normas direcionadas a um grupo específico de profissionais tal e qual ocorre com os sindicatos, federações e conselhos de classe no mundo atual.
Este novo tipo de organização social, buscava corresponder aos interesses de um inovador modelo de comércio nacional e internacional, lastreado nos usos e costumes dessa classe.
A aplicação das normas da Lex Mercatoria, criadas a partir das necessidades da comunidade mercantil, não eram aplicadas às disputas em tribunais estatais. Neste caso os conflitos eram solucionados por cortes medievais mercantis especializadas na resolução de disputas comerciais. Essas cortes, bastante semelhantes as cortes arbitrais atuais, tinham como julgadores comerciantes experientes, conforme a área do comércio relativa à disputa. As suas decisões deveriam ser cumpridas de forma espontânea e a aplicação do direito transnacional era a regra de ouro para seu bom funcionamento. Sobre as cortes medievais de solução de conflitos comerciais132:
Eram compostas, em sua maioria por comerciantes experientes e com amplo conhecimento da matéria que seria julgada, ao invés de juristas. Ainda, as cortes medievais também aplicavam uma lei transnacional adequada as necessidades comerciais da época e, assim como as cortes atuais, suas decisões eram cumpridas espontaneamente pelos comerciantes, os quais temiam desrespeitar uma decisão da corte e ariscar suas reputações perante a comunidade mercante internacional, podendo
131 Ibid., p. 96.
132 CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 98.
até mesmo ser excluídos da participação nas feiras medievais caso tal fato ocorresse. As cortes nacionais, então, eram raramente invocadas para a execução das decisões proferidas pelas cortes medievais (CORDEIRO, 2008, p. 98).
Via de regra, a atuação destas cortes se direcionava de acordo com as normas que regiam cada classe ou guilda de comerciantes, ou em locais específicos no caso das Hansas, visto que estas, como dito, se relacionavam com normas atreladas as cidades mercantis e não com o tipo de produto comercializado. De toda forma, é sabido que as cortes se localizavam principalmente em lugares nos quais havia maior movimento comercial com destaque para as cidades marítimas do norte da Itália como: Amalfi, Pisa, Gênova e Veneza133. Vale ressaltar que cada uma destas cidades, diferentemente do que ocorre hoje, perfazia uma república independente na Idade Média134. A localização pontual destas cortes acarretava a dificuldade de acesso a seus julgamentos por parte dos comerciantes, o que similarmente acontece nas cortes arbitrais nos dias de hoje, devido aos custos elevados dos procedimentos, assim como pela localização destas, com cortes tradicionais localizadas em Londres, Viena e Nova Iorque.
Sobre o funcionamento destas cortes135:
Cada corporação formava um pequeno Estado, dotado de um poder legislativo e de um poder judiciário. Essas corporações participavam mediante seus representantes oficiais nos conselhos da Comuna, vigiavam sobre a guerra e sobre a paz, sobre represálias, formavam as próprias leis e estatutos e mediante jurisdição própria cuidavam da sua observância. Essas corporações possuíam patrimônio próprio, constituído pela contribuição dos associados e por taxas extraordinárias e pedágios. A magistratura formava- se por meio de cônsules de comerciantes (cônsules mercatorum) eleitos pela sua assembleia, possuindo funções políticas (defesa da honra e dignidade das corporações a que pertenciam, ajudar os chefes a manter a paz, etc.) funções executivas (observar e fazer observar os estatutos, leis e usos mercantis, administrar o patrimônio, etc.) e funções judiciais, julgando causas comerciais. Decidiam com a máxima brevidade, sem formalidade. Das sentenças nos casos mais graves, dava-se a apelação para outros comerciantes matriculados na corporação e aos sorteados os quais se atribuía o título de sobre cônsules (STRENGER, 1996, p. ?).
133 Xxxxxxx Xxxxxxx, Civilisation matérielle, économie et capitalisme. XVe-XVIIIe siècle, Paris, Xxxxxx Xxxxxx, 1979 ; Xxxxx Xxxxxxx, DEBT The First 5.000 years, Ed. Melvillehouse Brooklyn, New York, 2011.
134 CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 98.
135 STRENGER, I. Direito do comércio internacional e lex mercatoria. São Paulo: LTr, 1996, p. 58- 59.
Após a consolidação do capitalismo, as associações de comerciantes passaram a apresentar um caráter mais urbano, devido à deslocalização dos empregos, que passaram de uma premissa basicamente rural, para um panorama crescente em matéria fabril. Sendo assim, as demandas das classes organizadas passaram a ter um caráter diverso, não mais voltado apenas ao comércio, mas também às relações empregatícias, uma vez que as classes de pessoas também se diversificaram, devido à pluralidade de funções criadas no período pós-revolução industrial136.
Em igual sentido, é possível dizer que as semelhanças advindas do início das atividades comerciais com a atualidade não se limitam aos dispositivos legais. A criação de associações de categorias de comerciantes permanece até os dias atuais, contudo através de regras mais complexas, tendo em vista a inerente complexidade que acompanhou as relações comerciais dos dias pretéritos até o momento.
A seguir, será feita uma breve explanação acerca da aplicabilidade da Xxx Xxxxxxxxxx após o período da revolução industrial até os dias atuais.
2.1.2 Lex Mercatoria Contemporânea
O desaparecimento da Lex Mercatoria como era conhecida na época medieval se deu de forma gradual. O crescimento do poder monarca, que apresentava crescente interesse na política e econômica de cada região, passou então a influenciar o panorama legal, visto que a independência do direito dos comerciantes configurava uma crescente ameaça aos poderes soberanos. Por esta razão, durante séculos XVI e XVII, as monarquias da Europa criaram os primeiros códigos comerciais, voltando a tomar para si o papel de criadores das normas comerciais.
Sobre este período nos esclarece137:
136 XXXXXX, X. X. Xx vários significados da História Pública. Revista Transversos. 2016. p. xxx.
137 CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 99.
Na França, o Rei Xxxx XXX promoveu grandes reformas legislativas, dentre as quais se destacam a Ordennance ser le commerce de terre, em 1673, e a Ordennance sur le commerce de mer, em 1681, ambas codificando preceitos antes presentes no domínio da chamada lex mercatoria. Em 1807, ainda, a França publicou o seu Código Comercial, enfraquecendo ainda mais a atividade livre dos comerciantes (CORDEIRO, 2008, p. 99).
Mais tarde a revolução francesa e o princípio da liberdade, que foi trazido à tona por esta, favoreceram o comércio internacional, podendo ser notada, ainda nos dias de hoje, forte influência desse período nas relações comerciais internacionais hodiernas.
A decadência da norma comercial costumeira ocorreu quando no poder centralizador monarca, no século XVII, a Xxx Xxxxxxxxxx foi incorporada a legislação estatal, desaparecendo o conceito de uma legislação independente do poder do Estado, conforme denota o trecho da carta de princípios da Xxx Xxxxxxxxxx em tradução livre, citado a seguir138.
Consequentemente, os princípios e regras da Lex Mercatoria medieval foram incorporados às principais codificações europeias do direito comercial, como o Código de Comércio Francês de 1807, o Código Comercial Geral Alemão (Allgemeine Deutsches Handelsgesetzbuch, ADHGB) de 1861 ou a English Sales of Goods Act de 1893. Através dessa técnica, as legislaturas domésticas retomaram o controle sobre os assuntos governados até agora pelo comerciante de direito, eliminando assim o vácuo legal que poderia ter existido ali (pelo menos da perspectiva da teoria positivista clássica de fontes legais), sem ter que confiar em uma nova abordagem regulatória, potencialmente separada das necessidades do comércio e do comércio (BERGER, ANO, p. ?).
Outras mudanças muito importantes também contribuíram para esta mudança de paradigmas no direito internacional comercial, como por exemplo o desenvolvimento do sistema common law no século XVII, na Inglaterra. Com este novo sistema legal, as cortes comerciais inglesas especializadas na atividade comercial foram extintas, bem como as Cortes do Almirantado, que passaram a ter seus casos resolvidos pelas disposições da common law.
138 Consequently, the principles and rules of the medieval Lex Mercatoria were incorporated into the major European codifications of commercial law like the French Code de Commerce of 1807, the General German Commercial Code (Allgemeines Deutsches Handelsgesetzbuch, ADHGB) of 1861, or the English Sale of Goods Act of 1893.Through this technique, domestic legislatures regained control over the subject matters governed so far by the law merchant, thereby eliminating the legal vacuum that may have existed there (at least from the perspective of the classical positivistic theory of legal sources), without having to rely on a new regulatory approach, potentially detached from the needs of commerce and trade. Tradução livre. (XXXXXX, X. X. The Lex Mercatoria (Old and New) and the
O movimento de incorporação da lex mercatoria nas codificações europeias seguiu ainda no século XIX, perdendo sua importância diante da infinidade de diferentes codificações criadas. Praticamente opostos, o Estado Nacional e a lex mercatoria possuíam objetivos sobrepostos, pois se por um lado tão somente a proteção da soberania estatal era visada pelo Estado, por outro, as relações comerciais careciam da agilidade e do caráter transnacional da lex mercatoria.
Neste cenário, quem não se beneficiava era a sociedade, que não conseguia obter a segurança jurídica das relações comerciais em moldes satisfatórios, sendo assim os representantes da comunidade mercantil passam a manifestar publicamente sua insatisfação com os regimes monárquicos e absolutistas, conforme exposto por Voltaire139:
Não é um absurdo e uma coisa terrível que aquilo que é verdade em uma cidade seja falso em outra? Que tipo de barbarismo é esse no qual cidadãos devem viver sob leis diferentes? [...] Quando você viaja neste reino você troca de sistema jurídico tão frequentemente quanto você troca de cavalos (XXXXXXXX, 2008, p.100).
Devido as tensões entre o regime estatal e a sociedade tornou-se evidente a necessidade de criação de uma “nova lei mercante”, visto que não havia segurança jurídica para os comerciantes dirimirem seus conflitos devido à dificuldade em definir de forma clara qual a lei aplicável ao litígio quando este ultrapassasse as fronteiras estatais.
Sendo assim ocorreu a codificação da Lex mercatoria, sobre a qual não houve oposição da classe mercantil, visto que com a acentuada expansão do comercio internacional por diferentes localidades, as sanções aos comerciantes ficaram mais difíceis, os custos para verificação da reputação dos comerciantes aumentaram, assim como as trocas deixaram de ser simultâneas, e, neste norte, a intervenção do estado para execuções de acordos comerciais tornou-se necessária140.
139 XXXXXXXX apud CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 100.
140 SCHUTZ, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p. 60.
Porém, este movimento de nacionalização e localização da Lex mercatoria, colocando os usos comerciais em segundo plano, não apresentou avanços no desenvolvimento e estrutura desta, que apesar de verificados pontos convergentes com o Estado, contava com pontos negativos para os comerciantes. Desta feita, tendo em vista a crescente expansão do comércio internacional, a classe mercantilista volta a aspirar, nas palavras de Xxxxx, por um “direito cosmopolita, universal e desterritorializado sem a submissão a qualquer direito estatal específico”141.
Posteriormente, já no período da Revolução industrial houve a transformação dos mercados e a transição para os processos de produção de bens dentro do sistema capitalista. Perante o crescente desenvolvimento econômico as relações comerciais se desdobraram e os processos se tornaram mais complexos, e assim fez-se necessário o aprimoramento dos instrumentos jurídicos capazes de gerir tais procedimentos142. De acordo com Xxxxxxxx (1995):
A globalização representa a continuação da expansão mundializante originariamente inerente ao capitalismo. Continuação que é, contudo, acentuação e aceleração, com manifestações na economia, na política, nas atividades culturais e nos comportamentos sociais (GORENDER, 1995, p.
?).
Inseridas neste panorama inovador começam a surgir as teorias mais importantes sobre o papel da Xxx Xxxxxxxxxx no mundo moderno, como por exemplo a definição de Xxxxxxx sobre a qual a Lex Mercatoria seria um conjunto autônomo de regras e princípios que sustenta o funcionamento legal específico dos operadores do comércio internacional, tendo por base, nas palavras de Strenger143: “Os princípios gerais do direito, os provimentos contratuais, como cláusulas especiais e novos tipos convencionais e as decisões arbitrais que contribuíram para a elaboração de princípios do comércio internacional”.
141 Ibid., p. 61.
142 XXXXXXXX, X. X. X. xx. Os contratos Internacionais e a Lex Mercatoria. 2017. Tese de Doutorado. Universidade de Coimbra. Disponível em: xxxxx://xx.xx.xx/xxxxxxxxx/00000/00000/0/Xxxxxxxx%X0%X0%X0%X0x-Xxxxxx- Lex%20Mercatoria%20e%20contratos%20internacionais%20.pdf . Acesso em 13.03.2021.
143 STRENGER, I. Direito do comércio internacional e lex mercatoria. São Paulo: LTr, 1996 p. 72.
O advento da “nova” Lex mercatoria se deu nos anos 60, a qual define o doutrinador Xxxxxxxx Xxxxxxxx, “como um conjunto de princípios, instituições e regras com origem em diversas fontes, o qual rege as relações de um determinado grupo de pessoas; os comerciantes internacionais”144.
Definição publicada em 1964 no artigo Frontieres du Droit et lex mercatoria da revista Archives de Philosophie du Droit. Assim como Xxxxxxxx, os trabalhos precursores sobre o tema são de Fragistas, Xxxxxxxxx, Xxxxxxxxxxxx, Xxxx e Fouchard145.
Em 1993, Goldmann146147 constata ainda que:
As relações econômicas internacionais são efetivamente governadas, inteira ou parcialmente, pelos princípios, regras e pelos usos e costumes transnacionais, formados espontaneamente e adotados na conclusão das negociações, sem que qualquer autoridade estatal ou interestatal as tenha imposto – e esta é a lex mercatória (GOLDMANN, 1993, p.?).
Algumas destas fontes, citadas acima por Xxxxxxxx, têm natureza de “Soft Law”, utilizadas no Direito do Comércio Internacional, porém não são princípios ou normas vinculativas para as Partes, pois são essas derivadas da autonomia e autorregulação no Direito Internacional do Comércio, ou seja, não fazem parte do direito estatal formalmente, utilizadas de forma consuetudinária.
A par das concepções doutrinárias sobre o direito comercial é preciso compreender que a economia mundial passou por inúmeras transformações, desde a Revolução Industrial até os dias de hoje. A consolidação do capitalismo como sistema econômico predominante trouxe consigo diversas consequências para a
144 STRENGER, 1996, p.71-76 apud CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 102.
145 BERGER, 1999, p. 2 apud CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 102.
146 Xxxxxxxx 1993 apud CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 103.
147 “(…) les relations économiques internationales sont effectivement gouvernées, entièrement ou partiellement, par des principles, des règles et des usages transnationaux, spontanément formés ou adoptés dans la conclusion et le fonctionnement des ces relations, sans qu’une autorité étatique ou interétatique les aient imposes – et c’est cela la lex mercatoria.” (XXXXXXX, B. Nouvelles Réflexions sur la Lex Mercatoria. Festschrift Xxxxxx Xxxxxx, Basel. Frankfurt: a.M., 1993. p. 244 apud XXXXXXXX, Xxxxxxx X. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional” Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008 p. 103).
ordem mundial. A urbanização dos grandes centros, em grande parte impulsionada pela industrialização, exigiu a adaptação dos usos e costumes aplicáveis ao comércio, primeiramente na esfera local, e com maior força no que concerne ao comércio internacional148.
As revoluções industriais também avançaram de maneira gradativa na fase chamada primeira revolução industrial ocorreram mudanças na forma de organização social pautadas em um forte êxodo rural, além da absorção do trabalho de pessoas sem qualificação especializada, pois nas indústrias não era necessário ter as habilidades de um artesão, por exemplo149. Ademais o desenvolvimento deu- se principalmente na Europa durante este período.
Já a segunda fase foi mais abrangente ultrapassando as fronteiras europeias trazendo avanços tecnológicos, novas indústrias, bem como um aumento da capacidade produtiva das fábricas já existentes, alcançando novos índices de progresso, e como consequência exigindo instrumentos jurídicos adequados a esta expansão.
Posteriormente, a terceira revolução industrial, cujo início se deu no período após a Segunda Guerra Mundial, firmou definitivamente as relações econômicas e jurídicas em escala global. Este momento histórico foi um dos mais importantes para o retorno da expansão comercial e a consequente criação de novos regramentos, devido a expansão de novas tecnologias, incluindo a rede mundial de computadores, que facilitou a troca de informações entre pessoas e empresas localizadas em diferentes regiões do globo. O período pós-guerra possibilitou um avanço sem precedentes, pois com a ausência de necessidade de tecnologia bélica, as tecnologias desenvolvidas foram redirecionadas para fins pacíficos, resultando em grandes transformações.
Essa facilidade nas comunicações é um dos fatores para a disseminação dos usos e costumes do comércio internacional, abrangendo a lex mercatoria, uniformização do direito comercial transnacional e estatal, buscando, mais uma vez, a segurança jurídica das partes nas relações comerciais.
148 DE AZEVÊDO, P. P. A Lex Mercatoria e sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro.
Prim@ facie: Revista da Pós-graduação em Ciências Jurídicas, v. 5, n. 9, p. 93-105, 2006.
000 XXXXXXXX, X. Inteligência artificial no mercado de trabalho: prevenção de impactos e a implementação de políticas públicas. 2019. Tese de Doutorado. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxxxxxxxx.xxxx.xxxxxx.xx/xxxxxx/0000/00000>. Acesso em 05 fev. 2021.
Contudo, o período pós-guerra também contou com aspectos negativos como a fragmentação política, que acarretou a existência de inúmeras leis nacionais, desfavorecendo o comércio internacional, devido as particularidades dos diversos ordenamentos jurídicos. Não obstante, os entraves ocasionados por divergências políticas muitas vezes são capazes de frear o dinamismo dos negócios internacionais, tornando-se um entrave ao comércio global150. A crescente internacionalização do comercio, apresentada no século XX, comprova a necessidade do desenvolvimento de um corpo de regras que supram as necessidades da comunidade mercantil, que não são satisfeitas pelas leis nacionais. Um dos principais instrumentos legais em âmbito mundial, visando a uniformização dos parâmetros contratuais e que hodiernamente serve como embasamento para os contratos internacionais de compra e venda, é a chamada Convenção das Nações Unidas para venda internacional de mercadorias, conhecida como CISG (United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods)151. Este instrumento de hard law conta com grande adesão em âmbito global, preconizando diretrizes importantes sobre a formação dos contratos e as provisões relativas as obrigações do comprador e do vendedor. Na sequência, serão explanados brevemente os principais aspectos deste documento, apenas com o fito de esclarecer as normas de larga amplitude que se relacionam com o tema em
comento.
2.1.3 United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods – CISG
Conforme mencionado a diversidade jurídica e cultural no mundo moderno cria a necessidade constante de concepção de mecanismos visando a
150 SCHUTZ, A. B. Os contratos comerciais internacionais na sociedade pós-industrial: reflexões sobre a nova lex mercatoria. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p. 62.
151 UNITED NATIONS, United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods – CISG. Disponível em xxxxx://xxxxxxxx.xx.xxx/xx/xxxxx/xxxxxxxxx/xxxxxxxxxxx/xxxx_xx_xxxxx/xxxx.
harmonização, unificação e uniformização do direito internacional, especialmente no que concerne aos contratos feitos no âmbito do direito privado152.
Após algumas tentativas frustradas de uniformização global da matéria, a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (UNCITRAL) deu início à elaboração de um texto capaz de conciliar os tratamentos jurídicos dados por cada país ao contrato internacional de compra e venda de bens. Neste cenário fora criada a CISG, que atualmente conta com oitenta e cinco países signatários e conta com ampla aceitação em âmbito mundial153.
Também com o objetivo de uniformização do direito privado, o UNIDROIT publicou, em 1994, publicou obra intitulada Princípios do UNIDROIT para Contratos Comerciais Internacionais154.
A formação de contratos em geral, e as negociações contratuais em particular, têm sido um assunto delicado para o direito uniforme internacional desde o início do século XX155. Durante a conferência de Viena para a adoção da CISG, a questão de se a Convenção deveria estabelecer as regras para a fase pré-contratual gerou intensos debates, pois ainda existem divergências acerca da necessidade de 9por um instrumento de hard law, acerca das disposições inerentes a formação de contratos. No nível de soft law, os Princípios UNIDROIT de Contratos Comerciais Internacionais (UPICC), os Princípios de Direito Europeu dos Contratos (PECL) e o Projeto de Quadro Comum de Referência (DCFR) contêm disposições específicas relacionadas às negociações de contratos, e para grande parte dos autores, estes instrumentos já seriam suficientes156.
152 XXXXXXX, X. X. X; XXXXX, L. F. C. A interpretação de contratos internacionais segundo a CIGS: Uma análise comparativa com o Código Civil Brasileiro, À Luz Dos Princípios Do Unidroit. [s. l], [s. d]. Disponível em: xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx/xxxxxxxxxxxxxxxxx/xxxxxxx/Xxxxxx%00Xxxxxxx%00x%00X uiz%20Felipe%20DIPrivado.pdf. Acesso em: 20 de abr. 2021.
153 XXXXX, X. Some introductory remarks on the CISG. [s.l]. 2006. Disponível em: xxxx://xxx.xxxx.xxx.xxxx.xxx/xxxx/xxxxxx/xxxxx.xxxx Acesso em 20 abr. 2021.
154 Tradução livre. No original, UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts.
155 PANNEBAKKER, E. International Instruments: CISG and Soft Law. In Letter of Intent in International Contracting. Intersentia. 2016. Pp. 275-326.
156 XXXXXX-XXXXXXXX, X. X. X common frame of reference and the creditor's option in breach of contract. Universidad de La Sabana. 2016. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxx.xxx/xxxxxxxx/000/00000000000/xxxx/xxxxx.xxxx . Acesso em: 20 abr. 2021.
Contudo, a CISG prevê em seu bojo dispositivos visando a fase pré contratual. Nos ensinamentos de Shwenzer157, a oferta, de acordo com as regras da CISG (artigos 14 a 17), deve conter três elementos: haver a intenção do ofertante em se vincular à proposta, ser a proposta suficientemente definida e tornar-se efetiva. Ainda dentro do espectro da disciplina da formação do instrumento, a aceitação (artigos 18 a 22 da Convenção) também requer a satis- fação de três elementos simultâneos: haver a indicação de concordância em relação à oferta; ser incondicionada e ser feita de maneira efetiva, e não ter sido previamente retirada.
Por ser um projeto ambicioso que buscava conciliar as normas da Convenção com as regras de direito civil de todos os países envolvidos, levou muitos anos para a CISG ser ratificada por algumas nações, haja vista certas incompatibilidades dentro dos ordenamentos locais. Em contrapartida alguns teóricos afirmam que as regras presentes no texto da CISG na realidade teriam sido aprovadas apenas pelo fato de serem as únicas sobre as quais fora possível obter consenso e não necessariamente pelo fato destas regras serem melhores se individualmente consideradas158.
Conforme mencionado anteriormente, para fins desta pesquisa a análise dos dispositivos da CISG e consequentemente dos princípios UNIDROIT, não será aprofundada, todavia, a seguir serão explanados os princípios mais importantes relacionados ao tema específico desta dissertação, no caso os contratos tipo internacionais.
De antemão é importante salientar que existem alguns princípios comuns importantes sobre os contratos internacionais de direito privado, visando não apenas a uniformização positivada, mas também a uniformização interpretativa. Como exemplo temos a Regra contra proferentem. Esta normativa de interpretação é amplamente reconhecida em diversos regramentos internacionais e, muito embora, não possua texto expresso na CISG, está positivada nos princípios UNIDROIT159.
157 XXXXXXXXX, X.; XXXXXXXXX, C. A. P.; XXXXXXX, X. A CISG e o Brasil: Convenção das
Nações Unidas para os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias. Xxxxxxx Xxxx, 2015. p. 20, 80
158 XX XXXXX, G. S.; XX XXXXX XXXXXXXX, L. C. Convenção de Viena para compra e venda internacional de mercadorias. Entendimentos acerca de seus benefícios e suas regras. [s. l.], [s.d]. Disponível em: < xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx/xxxxxxxxxxxxxxxxx/xxxxxx0/xxxxxxxx_xxx/xxxxxxx/xxx_x0_X. pdf>. Acesso em: 20 abr. 2021.
159 XXXXX, X. Specific Rules of Interpretation. In Interpretation and Gap Filling in International Commercial Contracts. Intersentia. 2019. P. 79-96.
Este regramento sustenta que ambiguidades na linguagem do instrumento devem ser interpretadas na forma mais favorável para a parte que não o redigiu. Contudo, nos contratos tipo, como veremos mais adiante, já foram pensados visando evitar este tipo de problemática, pois as cláusulas pré-formatadas evitam a utilização de termos que possam confundir as partes contratantes.
Por outro lado, a CISG não faz distinções entre usos, práticas ou costumes nacionais, regionais ou internacionais. O fundamental é que as partes tenham acordado que um certo uso faz parte do contrato, de modo explícito ou implícito a ele. O art. 7.o da CISG, pedra angular da interpretação da Convenção, não se dirige às partes, mas tão somente ao juiz ou árbitro160.
Outro aspecto básico contido nos princípios UNIDROIT e na CISG é a ampla autonomia de vontade, determinando que as partes são livres para celebrar um contrato e determinar o seu conteúdo161. No mesmo norte estão os princípios do consensualismo, da lealdade, da boa-fé contratual e da força obrigatória dos contratos. Normativas genéricas e ligadas ao direito contratual como um todo, certamente aplicáveis tanto em âmbito global, quanto local.
A respeito da força obrigatória dos contratos, também denominado princípio da sacralidade dos contratos, é baseada na autonomia de vontade e traz a ideia de rigidez no que diz respeito tanto aos particulares como o Estado, na atuação jurisdicional. 162
Ponto salutar sobre a liberdade contratual dentro do preconizado pela CISG é que com relação a jurisdição adequada para sanar possíveis embates fora adotada a concepção mais ampla, podendo as partes designar a jurisdição competente, além de indicar qual será a lei aplicável ao contrato163. A autonomia preconizada diz
160 NALIN, P.; XXXXXXX, R. C. Compra e venda internacional de mercadorias. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p.161.
161 “ARTIGO 1.1 - Liberdade contratual: “As partes são livres para celebrar um contrato e determinar o seu conteúdo”. UNIDROIT - International Institute for the Unification of Private Law. Unidroit principles: a common law of contracts for the americas. Austrália. 2012. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxxxxxxxxx/000-xxxx-xxx-xxxxxxxxxxx-xx-xxxxxxxx-xxxxxxxxxx/000-xxx- principios-de-unidroit-un-derecho-comun-de-los-contratos-para-las-americas-the-unidroit-principles-a- common-law-of-contracts-for-the-americas. . Acesso em: 20 abr. 2021.
162 XXXXXXX, Xxxxxxxxx. A gestão de conflitos em contratos internacionais do petróleo. Revista Brasileira de Direito Constitucional: n. 18, jul/dez 2011, p. 252.
163 PIGNATTA, F. A., Comentários à Convenção de Viena de 1980 – Artigo 6. 2012. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxxxx.xxx, março/2012. Acesso em 15 mar. 2021. p. xxx.
respeito ainda a aplicação ou não da CISG ao contrato, bem como a possibilidade de derrogar determinados artigos da convenção.
Outro aspecto que deve ser ressaltado é a importância da sede da arbitragem internacional como fonte presumida de eleição da lei de regência da interpretação contratual, quando omissas as partes na escolha da lei substantiva ao julgamento do contrato164.
Já na linha específica das tratativas internacionais temos os Princípios da internacionalidade e uniformidade. Acolhidos no Artigo 1.6 dos Princípios do UNIDROIT e no artigo 7º da CISG.
O princípio da internacionalidade advém da necessidade de interpretar os dispositivos e conceitos dos princípios no contexto do comércio internacional, sem se atrelar formalmente ao sistema jurídico nacional. Dessa forma, em casos de conceitos “emprestados”, a interpretação deve coadunar com o contexto internacional165. Esta norma de caráter interpretativo relaciona-se diretamente com o princípio da uniformidade, contida nos primeiros artigos (princípios gerais) da UNIDROIT e no comando do artigo 5º da CISG que preceitua seu "caráter internacional e a necessidade de promover a uniformidade de sua aplicação".
Por conseguinte, no tocante aos principais princípios esculpidos na CISG e no UNIDROIT, está o “Favor contractus”, segundo o qual, a despeito das deficiências que possa apresentar um contrato internacional, é mais interessante para todos os envolvidos mantê-lo íntegro, ao invés de ter que retornar ao status quo anti, buscando realizar novas parcerias e relações comerciais166.
Importante salientar que a aplicação da CISG não deve ser dirigida pela legislação do Direito Privado interno de cada país. Há conceitos na Convenção como o fundamental breach of contract (quebra de contrato), ou a figura da desconformidade das mercadorias que não devem ser interpretados a partir das regras gerais de inadimplemento, mas, sim, à luz da própria da CISG.
164 XXXXX, P. R. R.; XXXXXX, H. C. A Convenção de Viena de 1980 e a sistemática contratual brasileira: a recepção principiológica do Duty to Mitigate the loss. 2012. p. xxx.
165 VISCASILLAS, 1996, p. 429-430. VISCASILLAS, M. del P. P. UNIDROIT Principles of
Internacional Comercial Contracts: Sphere of Application and General Provisional. In: Arizona Journal of International and Comparative Law. vl. 13. 1996, p. 429-430.
166 XXXXXX, M. J. The UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts: Why? What? How? In: Tulane Law Review, vol. 69, April 1995, p. 1137.
Neste norte, o suprimento de eventuais lacunas deve vir de decisões pretéritas, ou do suprimento através de outras fontes regulatórias, como os já amplamente citados princípios do UNIDROIT. Além disso, importante mencionar que em 2001 foi criado o CISG Advisory Council, iniciativa cujo objetivo é promover a aplicação uniforme da Convenção por meio da elaboração de Opiniões sobre matérias específicas. Tais pareceres contêm diretrizes e explicações sobre a aplicação aconselhada de determinado dispositivo ou conjunto de dispositivos da Convenção, com o fim de guiar e facilitar a sua interpretação uniforme167.
Premente indicar ainda que os princípios e garantias fundamentais também fazem parte do conjunto de normas de segurança da CISG no que concerne a sua interpretação, pois, a produção de mercadorias, ainda mais atualmente, pode contar com mão de obra infantil ou escrava, por exemplo. O que daria uma interpretação diversa a certas disposições contratuais. Outrossim, de acordo com Xxxx e Xxxxxx (2017)., a dignidade da pessoa humana pode ser um fator limitador acerca da autonomia de vontades, dentro de parâmetros de adequabilidade social e valores transindividuais.
Por fim, válido mais uma vez destacar a importância da arbitragem no que diz respeito a sistemática da CISG e sua relação com os contratos de compra e venda internacionais. Diante disso é fato que o julgamento de contratos internacionais por painéis arbitrais internacionais, acaba por lançar mão do uso de princípios e de casos pretéritos visando sanar as contendas, ao invés de normas específicas contidas em instrumentos de hard law.
Conforme mencionado para fins desta pesquisa foram abordados apenas os princípios gerais concernentes a CISG, visando a compreensão da disciplina dos contratos internacionais de comércio, uma vez que a interpretação das normas deste diploma é significativa para o entendimento amplo da formatação de tais instrumentos. Diante disso, importa preconizar que os objetivos da CISG, bem como dos princípios da UNIDROIT sempre foram unificar as relações contratuais, visando evitar desacordos e demandas judiciais.
Em concordância com esta filosofia, os contratos de comércio internacionais foram criando mecanismos próprios de padronização, visando os mesmos objetivos,
167 XXXXXXXXX, X.; XXXXXXXXX, C. A. P.; XXXXXXX, L. A CISG e o Brasil: Convenção das Nações Unidas para os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias. Xxxxxxx Xxxx, 2015, p.20.
culminando com a criação dos INCOTERMS e Contratos- tipo, conforme se verá mais adiante.
Sendo assim, após a observância dos princípios e normas gerais que regem as questões atinentes aos contratos de comércio internacional, no capítulo seguinte adentraremos a disciplina contratual pura, traçando um paralelo entre os contratos comuns e os contratos internacionais, para posteriormente ingressar definitivamente nos moldes referentes aos contratos-tipo.
3 CONTRATO INTERNACIONAL DE COMÉRCIO
O instrumento que configura a base para as relações econômicas internacionais é o chamado contrato internacional. Para as negociações transfronteiriças de mercadorias, o contrato internacional de comércio é o instrumento jurídico formal, garantindo a segurança jurídica das partes contratantes. A priori é preciso traçar algumas delimitações no que concerne a diferenciação dos contratos em âmbito local, da disciplina dos contratos internacionais, tendo em vista que ambos partem de um pressuposto comum, no caso o acordo de vontade entre as partes.
3.1 Definição
De acordo com Strenger168, as manifestações bi ou plurilaterais das partes, objetivando relações patrimoniais ou de serviços, cujos elementos sejam vinculantes de dois ou mais sistemas jurídicos extraterritoriais, pela força do domicílio, nacionalidade, sede principal dos negócios, ou qualquer circunstância que exprima um liame indicativo de direito aplicável, podem ser considerados contratos internacionais. Neste norte, de acordo com Araújo169, a caracterização do contrato se dá através de um elemento de estraneidade que o ligue a dois ou mais ordenamentos jurídicos nacionais. Já sobre a diferenciação entre os instrumentos contratuais de direito interno, e aqueles de direito internacional, Engelberg170 esclarece que a diferença basilar se encontra no fato de que no contrato internacional as cláusulas relacionadas à conclusão, capacidade das partes e o objeto se relacionam a dois ou mais sistemas jurídicos.
168 STRENGER, I. Contratos Internacionais do Comércio. São Paulo: LTr, 4ª ed, 2003. p. xxx.
169 XXXXXX, X. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. xxx.
170 Xxxxxxxxx, X. Contratos Internacionais do Comércio. São Paulo: Atlas, 2007. p. xxx.
Baseado em uma análise introdutória, Cretella171 identifica o contrato internacional como:
Reconhecer um fenômeno que o legislador nacional não consegue regulamentar em sua inteireza; determinar um tipo de relação que a lei nacional, mesmo que seja aplicada a ela não contempla nas suas disposições (estas, na maioria das vezes, dirigidas a regular relações sem qualquer vinculação com o exterior); confrontar-se com um tipo de exegese dos textos normativos que é fixado por padrões não nacionais (por várias razoes, sendo a mais comum o fato de os contratos internacionais serem redigidos em uma língua franca, a da comunidade internacional dos comerciantes) (CRETELLA, 2016, p. ?).
O contrato internacional é diferenciado do contrato nacional devido a seus critérios geográficos ou espaciais, sendo estes pontos de partida para sua análise, porém não se limita a esta para satisfazer a compreensão do mesmo. A falta de um “código de contratos internacionais”, conforme afirma Cretella172, sujeita os contratos internacionais a seguinte disciplina:
De uma convenção internacional que lhe seja, eventualmente, aplicável; não sendo o caso de aplicação de uma convenção, ou para questões não abrangidas pela convenção aplicável, pelo Direito nacional, conforme escolhido pelas partes ou determinado pela aplicação das normas de conflitos de leis; e nas mesmas circunstancias, pelos usos e costumes do comercio internacional, a título exclusivo, quando as partes puderem descartar a aplicação de qualquer Direito nacional, ou, a título subsidiário, para integrar as lacunas da convenção ou do Direito nacional aplicáveis (CRETELLA, 2016, p. ?).
Strenger173 complementa que “os contratos internacionais são o motor, no sentido estrito, do comercio internacional, e, no sentido amplo, das relações internacionais, em todos os seus matizes”
Além dos pontos definidos afirma, o contrato pode ter uma “gama de variações com maior amplitude” conforme as observações de Xxxx Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx citado por Strenger174, neste caso:
171 XXXXXX, 1995 pp 151-198 apud XXXXXXXX XXXX, Xxxx. Contratos Internacionais do Comércio. 2ª Edição. São Paulo: Letz Total Media Creative Projects, 2016, p. 21-22.
172 XXXXXXXX XXXX, Xxxx. Contratos Internacionais do Comércio. 2ª Edição. São Paulo. Letz Total Media Creative Projects, 2016, p. 87-88.
173 STRENGER, I. Contratos Internacionais do Comércio. São Paulo: LTr, 4ª ed, 2003, p. 32.
174 Ibid., p. 34-35.
São contratos que desenvolvem o intercâmbio de mercadorias serviços e capitais, entre empresas pertencentes a diferentes países; b. são contratos nos quais ao menos uma das partes desempenha papel preponderante no meio econômico internacional, no que concerne a matéria objeto do acordo;
c. são contratos – devido a concentração oligopolista dos bens e a atual estrutura do comercio mundial – não só afetam aos Estados diretamente conectados a operação que instrumentalizam, mas a todos os países que integram a área do mercado dos bens ou serviços aos quais se referem; d. são contratos que – em razão da organização transnacional dos poderes econômicos privados – põe em jogo, direta ou indiretamente, os interesses corporativos do conjunto de empresas que se dediquem habitualmente ao setor de atividades em que se inclua a operação; e. normalmente, a forma desses contratos responde a caracteres peculiares, entre os quais se destacam: homogeneidade de suas disposições, a existência de clausulas de submissão, a arbitragem e o emprego de terminologia unificada (STRENGER, 2003, p. 126).
No Brasil, Xxxxxx Xxxxx, em 1938 assinalou alguns dos elementos objeto do estudo dos contratos internacionais: “residência das partes em Estados diferentes, e a execução do contrato em Estado diverso daquele no qual foi pactuado”175. O professor Xxxxxx Xxxxxxxx, três décadas depois publicou o livro “Contratos Internacionais de Comércio”, que serve de marco jurídico brasileiro para a matéria, onde define o contrato internacional176.
No exterior dois casos emblemáticos trouxeram grande contribuição para a doutrina e jurisprudência internacionais, quando a Suprema Corte dos EUA decidiu a favor da autonomia da vontade das partes, afastando a norma estatal, afirmando que as obrigações livremente e voluntariamente contraídas pelas partes, por força de um contrato elaborado por pessoas capazes, devem prevalecer sobre normativas de cunho nacional177. A decisão se coaduna com a teoria de que em uma era de expansão mundial do comércio, não se pode imaginar que as relações serão regidas exclusivamente pelas normas estatais americanas.
A Suprema Corte americana definiu ainda três fatores característicos do contrato internacional, na ocasião do julgamento dos casos citados acima178:
O fato de que as partes tinham nacionalidades diferentes, com seu principal centro de negócios e o maior volume de atividade em seus respectivos
175 CONDE, 1938, p.37 apud: XXXXXXXX XXXX, Xxxx. Contratos Internacionais do Comércio. 2ª Edição. São Paulo. Letz Total Media Creative Projects, 2016, p. 15.
176 Ibid., p. 14.
177 XXXXXXXX XXXX, Xxxx. Contratos Internacionais do Comércio. 2ª Edição. São Paulo. Letz Total Media Creative Projects, 2016, p. 15.
178 Ibid., p. 17.
países; as negociações haviam ocorrido em diversos países e envolveram consultas com especialistas em marcas e patentes desses países; e principalmente, o objeto do contrato referia-se a venda de empresas comerciais submetidas principalmente a legislação de diversos países da Europa, cujas atividades eram inteiramente (ou quase) dirigidas a mercados europeus (AUTOR, ANO, p. ?).
Sobre a utilização destes instrumentos contratuais, pode se dizer que as maiores responsáveis pelo crescimento no uso dos contratos internacionais são as empresas transnacionais. Tendo em vista que buscam por flexibilidade e autonomia, se beneficiando de tratados multilaterais e acordos regionais, desenvolvendo estratégias globais que impulsionam o comercio internacional179.
Dentro do sistema capitalista o contrato internacional é um dos instrumentos com papel preponderante, chamado de “força vital do comércio internacional” por Kaczorowska180 e Schimitthoff181, fazendo uma analogia do contrato para a empresa a do automóvel para seu condutor. Essa analogia deve-se ao fato de as partes contratantes prestarem pouca atenção aos detalhes contratuais, tendo somente uma visão do todo indivisível, e, assim como o condutor do automóvel somente atenta para as partes do automóvel quando estas apresentam algum defeito, os contratantes só atentam as especificidades das cláusulas contratuais no surgimento de alguma disputa.
Não somente das partes encontrarem-se em Estados diferentes, contratos internacionais de comércio são marcados pelas especificidades de cada produto negociado, resultando em cláusulas técnicas descritivas e demais pontos relativamente breves182.
Diante disso, o estudo das legislações envolvidas no processo de elaboração e validação deste tipo de pacto se faz essencial para observar as nuances e a evolução do direito pertinente a disciplina. Na sequência será dado início a análise das leis aplicáveis visando um entendimento mais profundo do instituto.
179 XXXXXXXX XXXX, Xxxx. Contratos Internacionais do Comércio. 2ª Edição. São Paulo. Letz Total Media Creative Projects, 2016, p. 18.
180 1995, p. 14 apud XXXXXXXX XXXX, Xxxx. Contratos Internacionais do Comércio. 2ª Edição. São Paulo. Letz Total Media Creative Projects, 2016, p. 19.
181 Ibid.
182 VICENTE, 1979, p. 46-47 apud STRENGER, I. Contratos internacionais do comercio. [s.l.] : Ed. Rev. dos Tribunais, 1992, p. 76.
3.2 Legislação Aplicável e Autonomia da Vontade
Os contratos internacionais são parte do estudo pertencente a parte especial do Direito Internacional Privado, sendo o “princípio da autonomia da vontade na determinação do direito aplicável um dos tópicos mais importantes”, segundo Araújo183. O contrato internacional como o conhecemos, tomou forma somente no século XIX. Antes desse período os comerciantes negociavam seus produtos diretamente no porto, onde o comprador era também dono do navio que iria transportar a carga internacionalmente.
Com a profissionalização do transporte internacional, após o surgimento das embarcações marítimas a vapor, surge a figura do armador, o dono do navio e responsável somente pelo transporte, quando a partir de então o transporte internacional é negociado em contrato autônomo, e o contrato de compra e venda passa a ser negociado diretamente entre comprador internacional e vendedor184.
Então, devido a contratação de compra e venda internacional se dar de forma antecipada ao contrato de transporte, composto por partes pertencentes a jurisdições diferentes, emergiram questões jurídicas especificas, como validade e execução do contrato, trazendo à tona questionamentos acerca de qual seria a legislação aplicável a relação jurídica estabelecida.
Visando a resolução de questões referentes a uma possível parcialidade da legislação escolhida, nas negociações de contratos internacionais, frequentemente se observa a necessidade de submeter esses contratos a uma norma neutra e a da escolha da lei de um terceiro país, que não esteja envolvido na negociação para regular o contrato, muitas vezes é a solução encontrada pelas parte para resolver o impasse185.
A escolha da lei de um terceiro país, entretanto, pode trazer resultados inesperados para as partes em casos de disputas, visto que são raros os casos em que não existe conhecimento aprofundado da lei escolhida. Somando-se isso a possibilidade de que a lei escolhida eventualmente não cumpra com as provisões
183 XXXXXX, X. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 151, 153, 546, 549.
184 XXXXXX, X. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 151, 153, 546, 549.
185 Ibid.
contratuais, esta solução incorre no risco de permitir lacunas interpretativas preenchidas por princípios gerais do direito internacional do comércio.
Diante disto, empresários e conselheiros jurídicos têm demonstrado crescente interesse em normas jurídicas transnacionais, como alternativa à lei nacional, para estruturar seus contratos internacionais, porém, a doutrina não entende essa como uma abordagem única.
Existem duas abordagens que visam buscar a neutralidade na legislação aplicável ao contrato186. A primeira, tradicionalmente mais utilizada, é a escolha de uma legislação nacional e complementar ao contrato, incluindo a referência a normas especialmente projetadas para transações internacionais. A segunda, considerada revolucionária, e menos utilizada, é a assunção da existência de um sistema normativo autônomo nos mesmos moldes de uma Lex mercatoria, que pode reger os contratos no lugar da norma jurídica nacional, desenvolvendo soluções sob medida para os contratos internacionais de comércio.
Como visto, diferentemente dos contratos nacionais que, via de regra são regidos por códigos de direito interno, o contrato internacional pode trazer consigo a problemática sobre qual legislação é aplicável ao contrato, haja vista ser celebrado por partes pertencentes a diferentes jurisdições e, portanto, com diferentes legislações, que não se submetem de forma espontânea e direta as normas de um único Estado, exceto nos casos de haver uma uniformidade do direito187.
Sendo assim, a doutrina se encarrega de apontar os melhores caminhos para que sejam supridas lacunas e discrepâncias de ordem interpretativa.
De acordo com Cretella188, a regra geral para nortear a aplicabilidade do que fora avençado em um contrato internacional é a da liberdade das convenções. Esta premissa determina que, dentro de alguns limites, as partes têm autonomia para definir qual será a norma sob a qual o contrato é celebrado, podendo assim buscar,
186 ICC – International Chamber of Commerce. Developing neutral legal standards for international contracts. [s. L]. 2017. Disponível em: xxxxx://xxxxxx.xxx/xxxxxxx/xxxxxxx/xxxxx/0/0000/00/Xxxxxxxxxx-Xxxxxxx-Xxxxx-Xxxxxxxxx-Xxx- Contracts.pdf Acesso em: 20 abr. 2021.
187 STRENGER, I. Contratos Internacionais do Comercio. São Paulo LTr, 4ª ed, 2003, p. 126.
188 XXXXXXXX XXXX, Xxxx. Contratos Internacionais: Cláusulas Típicas. Campinas. Millennium Editora, 2011, p. 239.
conforme a necessidade, a regulamentação que melhor representar aos seus interesses.
Contudo, é preciso saber que essa escolha jamais é absoluta, devendo sempre respeitar as normas imperativas de cada ordenamento jurídico, onde a liberdade de pactuar pressupõe que limites como licitude, adequação e tempo do contrato devem ser observados. Neste diapasão, é vedado as partes transacionar sobre produtos que possam ser ilegais em um dos países, por exemplo, ainda que no outro o bem esteja legalizado.
A este respeito complementa Strenger189:
[...]na prática do comercio internacional, tem sido reconhecido e respeitado, tanto pelos tribunais nacionais como pelas cortes de arbitragem, que as partes podem, expressamente, designar a lei regedora da convenção, à medida que essa escolha não seja contraria a ordem pública e as disposições imperativas, como, p. ex., aquelas relacionadas com a legislação monetária[...] (XXXXXXXX, 2003, p. 126).
No que concerne as fontes para as regras para definição da lei aplicável aos contratos internacionais no Século XX, estas são delineadas por duas ideias principais: A Lei da Celebração, datada da Idade Média e a Lei do Local da Execução, elaborada por Xxxxxxx.
A lei da celebração, surgida na Idade Média, também chamada de Lex contractus, indicava que o local da celebração do contrato era fator preponderante na definição da lei aplicável a relação jurídica. É importante preconizar que esta regra se adequava melhor aos tempos pretéritos, uma vez que naquela época os contratos celebrados a distância eram pouco comuns. Xxxxxxx, por sua vez, formulou uma nova regra de conexão a partir da sede da relação jurídica, considerando mais importante o local da execução do contrato190.
Alguns contratos internacionais são omissos, estando sujeitos às regras de conexão do ordenamento jurídico ou arbitral, de acordo com o método de resolução de conflitos escolhido pelas partes, ao qual a questão se coloca, conforme define Strenger191:
189 XXXXXXXX, X. Contratos Internacionais do Comercio. São Paulo LTr, 4ª ed, 2003, p. 126.
190 ARAUJO, N. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 549.
191 STRENGER, I. Contratos Internacionais do Comercio. São Paulo: LTr, 4ª ed., 2003, p. 126.
Significa que os contratos sem clausula de lei aplicável estão sujeitos aos elementos de conexão vigentes nos ordenamentos positivos de Direito Internacional Privado. Nessa hipótese, a escolha vai depender não só da qualificação como dos critérios que o próprio contrato enseja adotar (STRENGER, 2003, p. 126).
Além disso, há certa dificuldade nas negociações pretéritas, uma vez que são deixados de lado importantes questões relevantes ao contrato em si, como é o caso da extensão da responsabilidade e o grau de reparação de danos devido192.
Entretanto, a maioria dos contratos internacionais faz uso do princípio da autonomia da vontade, além da provável inserção de cláusula específica definindo expressamente a lei que será aplicável ao contrato nos casos em que surgirem dúvidas ou demandas.
Referida cláusula deverá ser previamente determinada pelas partes, de acordo com a prática amplamente admitida pelos usos e costumes do comércio internacional, inclusive nos contratos-tipo193.
O estilo originário utilizado na redação dos contratos internacionais de comércio é o Direito inglês, ou Common Law. Independentemente da lei aplicável a interpretação dos contratos, a Common Law se mantém como legislação base dos modelos padronizados de contratos internacionais de comércio, apesar de Civil e Common Law apresentarem diferenças importantes na regulamentação e interpretação dos contratuais194.
Apesar das divergências das regras de Direito Internacional Privado na Common law e Civil law, como, por exemplo, em relação os indivíduos, na esfera contratual há uma convergência entre as normas para a determinação da lei aplicável. O direito americano, com o First Restatement of Conflits of Law, adotava a regra da lei do local da celebração até 1971, quando o Second Restatement adotou a teoria da autonomia da vontade como regra e definiu o princípio da proximidade, onde na ausência de escolha de lei aplicável ao contrato, a norma de conexão ocorre de acordo com os vínculos contratuais mais próximos195.
192 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xx Xxxxxxx. Batalha das formas e negociação prolongada nos contratos internacionais. In: XXXXX, Xxxx Xxxxxxxx; NECKEL. Contratos Internacionais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.252.
193 STRENGER, I. Contratos Internacionais do Comercio. São Paulo LTr, 4ª ed, 2003, p. 126-127.
194 CORDERO-XXXX, X. Boilerplate Clauses, International Commercial Contracts, and the Applicable Law. New York. Cambridge University Press, 2011, p.1-2.
195 XXXXXX, X. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 550.
Na Europa o advento da Convenção de Roma, no século XX, trouxe o entendimento para a divergência persistente entre alguns países, os que na maioria adotavam a teoria de Xxxxxxx e os que adotavam a lei do local da celebração, tendo agora como regra geral a teoria da autonomia da vontade, e para os casos omissos ou subsidiariamente a regra dos vínculos mais estreitos, nas palavras de Araújo196:
Pode-se dizer que a American Revolution e as regras dali advindas foram importadas pelos negociadores da Convenção de Roma ao adotarem a regra dos vínculos mais estreitos. Parece-nos que essa convergência teve, entre outras razoes, as de cunho econômico, já que a possibilidade de escolher a lei aplicável é uma decisão comercial que traz ganhos substanciais as partes envolvidas na transação (ARAUJO, 2004, p. ?).
Alguns sistemas jurídicos possuem restrições ao princípio da autonomia da vontade, porém, observada a ressalva da ordem pública, a maioria dos tribunais reconhece a validade em favor da lei aplicável definida no contrato, a par das regras gerais aplicáveis. Essa autonomia tem restrições a serem observadas de acordo com a jurisdição escolhida, onde alguns sistemas jurídicos limitam a escolha a “uma lei que tenha inevitavelmente relações com as partes ou com a transação”, conforme aponta Strenger197.
A relação necessária entre o contrato e a lei aplicável pode ser a lei do lugar da execução do contrato, ou lex loci executions, ou ainda, em algumas jurisdições, devendo ser a lei nacional ou domiciliar de uma das partes. Existe ainda uma corrente da doutrina totalmente liberal e menos aceita, a qual reconhece que as partes teriam liberdade para escolher livremente a lei aplicável. Nesta última hipótese as partes podem escolher a legislação que melhor responde as suas necessidades negociais, ou uma legislação neutra, de um país terceiro, desde que este não esteja envolvido na relação negocial198.
Mister salientar que até mesmo perante as correntes mais liberais, há de ser respeitada a ordem pública e os direitos e garantias fundamentais, definidos como
196 ARAUJO, N. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.549.
197 XXXXXXXX, X. Contratos Internacionais do Comercio. São Paulo LTr, 4ª ed, 2003, p. 127.
198 STRENGER, I. Contratos Internacionais do Comercio. São Paulo LTr, 4ª ed, 2003, p. 127.
norma soberana pelo estado brasileiro, por exemplo, sendo inadmissíveis os dispositivos que contrariem tais regramentos199.
Importante ressalvar que a aceitação das normas e princípios reguladores de lacunas não se deu de maneira igualitária em todas as partes do mundo. Na América Latina, por exemplo, o princípio da autonomia da vontade plena não foi aceito, diferentemente do que ocorria nos Estados Unidos e Europa. A maioria dos países da região consolidou a regra da lei do local da celebração do contrato. Já a Argentina, Paraguai e Uruguai, por sua vez, priorizavam a lei do local da execução do contrato200.
Tais manifestações de contrariedade por parte de alguns países Sul- americanos ocorreram devido a um problema pontual. No caso a tentativa de transportadores que desembarcavam suas cargas, principalmente no porto uruguaio, Nesta situação, os transportistas seriam obrigados a arcar com qualquer tipo de dano a carga uma vez que ao aferir como norteadora a regra do local de execução do contrato, os importadores sofreriam com os custos, devido ao grande incidente de acidentes ao desembarcar as cargas no referido porto201.
Contudo, em momento posterior a necessidade de se inserir no mercado internacional tornou necessária a modificação da legislação e do entendimento das regras necessárias para cumprir algumas lacunas.
Um dos momentos chave para o início de tais mudanças ocorreu durante a formulação dos princípios na V Conferência Interamericana sobre Direito Internacional Privado (CIDIP V), da OAE em 1994, que aprovou Convenção Interamericana sobre Direito Aplicável aos Contratos Internacionais.
Apesar de apresentar inovações, com a inclusão da autonomia da vontade das partes para a escolha da lei aplicável e a inserção de norma subsidiária para os casos omissos, a regra da lei dos vínculos mais estreitos, a convenção não teve o número de ratificações esperado202.
199 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx. O Enquadramento dos Contratos Internacionais em face da Lex Mercatoria e a Busca de Estabilidade nas Relações Transfronteiriças. Rio de Janeiro: Revista da Faculdade de Direito da UERJ, 2014, p. 17.
200 ARAUJO, N. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 551. 201 XXXXXX, X. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 551. 202 Ibid, p. 553.
Dessa forma, os países da América Latina continuam com diferentes regras nacionais sobre a lei aplicável aos contratos internacionais.
Especificamente com relação ao Brasil, em se tratando de contrato internacional, independentemente de as partes contratantes serem ou não nacionais do mesmo Estado e terem ou não o mesmo domicílio, aplica-se a lei do lugar do ato, de acordo com a Lei de Introdução as normas do Direito brasileiro 203.
Neste diapasão, no Direito Internacional Privado Brasileiro o contrato internacional possui entendimento uniformizado, onde a regra aplicável é aquela de acordo com a lei do lugar em que residir o proponente. Seguindo as mesmas regras aplicáveis ao direito interno, pois de acordo com o Código Civil o contrato que se presume celebrado no lugar em que foi proposto204.
É salutar mencionar que a possibilidade escolha das partes pela cláusula compromissória passou a ser regulada no Brasil através da Lei de Arbitragem - Lei nº 9.307 de 1996, sendo que em âmbito jurisprudencial é possível dizer que o Supremo Tribunal Federal já considerou plenamente válida tal disposição, conferindo a prevalência da cláusula compromissória até mesmo nos contratos elaborados antes da vigência da lei interna supracitada. Além disso, em inúmeras decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça205, em homologação de laudos arbitrais estrangeiros, a autonomia da vontade não foi contestada. Portanto, com relação a aplicabilidade da autonomia de vontade plena e do afastamento do princípio da inafastabilidade do poder judiciário, no caso do Brasil, coube aos tribunais superiores, o papel de harmonizar e uniformizar tais questões.
203 DECRETO-LEI Nº 4.657, DE 4 DE SETEMBRO DE 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, Artigo 9º.
204 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF. 2002.
205 Sentença Estrangeira. Juízo Arbitral. Contrato internacional firmado anteriormente à edição da lei de arbitragem (9.307/96). Acordo de consórcio inadimplido. Empresa brasileira que incorpora a original contratante. Sentença homologada.1. Acordo de consórcio internacional, com cláusula arbitral expressa, celebrado entre empresas francesa e brasileira. 2. A empresa requerida, ao incorporar a original contratante, assumiu todos os direitos e obrigações da cedente, inclusive a cláusula arbitral em questão, inserida no Acordo de Consórcio que restou por ela inadimplido. 3. Imediata incidência da Lei de Arbitragem aos contratos que contenham cláusula arbitral, ainda que firmados anteriormente à sua edição. Precedente da Corte Especial. 4. Sentença arbitral homologada. (SEC
.831/EX, Rel. Ministro Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx, Corte Especial, julgado em 03.10.2007, DJ 19.11.2007
p. 177). (STJ – Superior Tribunal de Justiça. [2021]. Disponível em: xxx.xxx.xxx.xx. Acesso em 20. Abr. 2021).
Conforme explanado, muito embora existam divergências entre países e sistemas legais acerca das regras que deverão ser aplicadas como fundamentos para a resolução de conflitos nos contratos internacionais, é possível auferir que na medida em que são implementados documentos e pactos transnacionais, como a Convenção Interamericana sobre Direito Aplicável aos Contratos Internacionais tais divergências vão sendo supridas. Outrossim, existem princípios de ordem internacional, estabelecidos visando a uniformização das regras aplicáveis. Sobre estes princípios e também sobre as regras gerais do contrato internacional de compra e venda tratará o tópico seguinte, visando esclarecer pontos em aberto, importantes para o tema principal do presente estudo.
3.3 Condições Gerais de Compra e Venda nos contratos internacionais
Conforme analisado até aqui, os contratos internacionais de comércio podem abranger diversos tipos de negociações comerciais as quais possuem como partes atores plurilocalizados. Contudo, é inegável que desde sua origem os contratos internacionais comerciais mais utilizados são aqueles que disciplinam as relações de compra e venda. Neste caso, haja vista ser este o tema principal da presente dissertação é necessário entender as cláusulas e princípios comuns dentro do espectro deste tipo de pacto contratual, visando dar um passo à frente no entendimento dos contratos padronizados.
Sendo assim, primeiramente devem ser abordados os princípios comuns a todos os contratos de comércio em âmbito internacional. Tais princípios constituem um padrão de regramento consuetudinário que funciona guiando os tomadores de decisão em disputas advindas de contratos internacionais. Estes apontamentos norteadores são as principais inspirações para o desenvolvimento da Lex Mercatoria e do comércio internacional como um todo e em todas as épocas, permitindo uma determinação mais acertada das controvérsias e seus meios de solução, assim como também reforça a possibilidade de melhores expectativas das partes em tais demandas.
O primeiro deles é o princípio da Autonomia da Vontade e Liberdade Contratual206. Com relação a este princípio é possível afirmar que seu surgimento se deu com o fito de proporcionar a restauração da ordem liberal e espontânea do comércio internacional, outrora perturbado pelos debates sobre a intervenção da sociedade no mercado econômico ou na economia estatal. Este Princípio alude que as partes têm autonomia para celebrar e determinar os termos do contrato. Vigora atualmente o consenso entre os sistemas jurídicos nacionais a respeito da vantagem do encorajamento do empreendedorismo fortalecido pela liberdade contratual e autonomia da vontade, movimentando e desenvolvendo o mercado, os signatários e os países em que eles se desenvolvem. É considerado um pré-requisito para o comércio internacional e qualquer regra contrária se desenvolve em caráter de exceção.
O segundo princípio a ser destacado é o Pacta Sunt Servanda207. Este pode ser considerado um desdobramento do princípio anterior, afirmando que uma vez que o contrato é assinado, fará lei entre as partes passando a ter força vinculante. Saliente-se que este princípio não impede alterações posteriores que se fizerem necessárias, contudo, qualquer alteração que seja feita terá força vinculante após ser assinada pelas partes. Ademais, este princípio em âmbito internacional, não se aplica somente a acordos entre Estados, mas também a contratos entre Estados e empresas privadas.
Já o terceiro princípio diz respeito a Boa-fé e Tratamento Equânime, funcionando como norma suplementar aos demais, baseando-se em uma presunção de que a boa-fé e a dignidade dos contratantes devem ser preservadas em todos os momentos208. Celebrar negócios sem observar o princípio da boa-fé poderia ser de grande malefício para as partes contratantes, em especial as mais vulneráveis.
Corroborando com os princípios norteadores supracitados, os contratos internacionais de compra e venda também contam com outros instrumentos, podendo ser uniformizadores209 ou harmonizadores210, ou ainda de “soft law”211,
206 XXXXXXXX, X. X. Xxxxxxxxx internacionais. São Paulo: Lex Editoria, 2010. p. xxx.
207 Ibid.
208 XXXXXXXX, X. X. Xxxxxxxxx internacionais. São Paulo: Lex Editoria, 2010. p. xxx
209 “[...], o Direito Uniforme (que, na distinção que fazemos, vem a ser o Direito Uniformizado) estabelece regras materiais, substanciais, diretas, que se aplicarão uniformemente aos litígios, às situações jurídicas que venham a ocorrer em jurisdições diversas, enquanto o Direito Internacional Privado é composto de regras indiretas, que apenas indicam qual o direito substancial – dentre
trazidos aos debates negociais. A convenção das Nações Unidas para Contratos de Venda Internacional de Mercadorias (United Nations Convention on Contracts for International Sale of Goods), é atualmente um dos principais instrumentos de harmonização neste sentido212. Este instrumento trás normas que são largamente utilizados pelas câmaras arbitrais ao redor do mundo, bem como foi internalizado por diversos ordenamentos jurídicos nacionais desde sua criação.
De acordo com Schmitthof213, o rol de cláusulas gerais dos contratos internacionais de compra e venda compreende diversas disposições e algumas serão elencadas a seguir:
A primeira delas é a chamada Cláusula geral que estabelece a sujeição dos contratos de compra e venda às condições estabelecidas pelo vendedor.
A segunda é a Cláusula de retenção de título, estabelecendo que, geralmente, a propriedade definitiva só será transferida após o pagamento integral do preço. Sobre esta cláusula é salutar mencionar que ela não se aplica no caso dos Incoterms, conforme será visto adiante.
A terceira é a Cláusula sobre juros, visando informar as partes qual será a taxa de juros aplicável nos casos em que este tipo de negócio for aplicável. Nestes casos é usual o apontamento de uma taxa de juros referenciada internacionalmente visando manter a paridade dos termos contratados inicialmente.
sistemas jurídicos contendo normas divergentes – haverá de ser aplicado. Aquele é direito, este, direito sobre direito”.
210 “51. Os termos unificação e harmonização são, usualmente, utilizados de forma intercambiável. Em termos estritos, a unificação significa a adoção de normas comuns de Direito, por mais de um Estado ou região, enquanto a harmonização denota maior flexibilidade, já que ela não necessariamente se refere a textos uniformes, mas antes ao alinhamento dos critérios jurídicos baseados em fundamentos comuns, leis-modelo ou princípios uniformes. Tanto as normas conflituais como as normas materiais podem ser objeto de unificação ou de harmonização. ” (XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Contratos Internacionais e a Escolha do Direito Aplicável: tradução dos Princípios Haia e Guia da Organização dos Estados Americanos (OEA). Curitiba: 2020, p. 255.
211 “(...) Soft law é uma expressão utilizada para se referir a uma ampla gama de materiais que, ao contrário dos textos de hard law, não se espera sejam necessária e formalmente adotados pelos Estados por meio de ratificação de tratados ou legislação, mas que, de qualquer forma, podem ter grande influência na prática e no desenvolvimento do Direito. Um destes métodos pode ser explicado como um tipo de declaração de Direito, também chamado “princípios”. A soft law também inclui guias legislativos que oferecem exemplos de texto redigido na forma de regras e regulações; também inclui outros tipos de guias e instrumentos similares. ” (Ibid, p. 111)
212 UNITED NATIONS - Commission On International Trade Law. [s.l], [2021?]. Disponível em: xxxxx://xxxxxxxx.xx.xxx/. Acesso em: 20 abr. 2021.
213 XXXXXXXXXXX, C. M.; Xxxxxxxxxxx'x export trade: the law and practice of international trade.
9 ed. London: Stevens & Sons,1990.
A quarta diz respeito à Cláusula da escala de preços, muito importante quando se trata de commodities, estabelece que antes de firmado o contrato entre as partes, as condições comerciais do vendedor podem oscilar, de acordo com o mercado, ou de acordo com os aumentos nos custos de mão de obra, transporte ou matéria-prima. Mencione-se que esta cláusula não se confunde com os dispositivos sobre Força maior, também encontrados em contratos internacionais, contudo com aplicação diversa, pois dizem respeito a situações que ocorrem sem serem possíveis de serem previstas pelas partes, por uma força maior as expectativas das partes.
Como quinta cláusula fundamental nos contratos internacionais pode-se indicar a escolha da lei aplicável. Neste caso, se o instrumento não a identificar expressamente, o contrato será submetido às legislações de Direito Internacional Privado dos dois países, que através de múltiplos fatores indicarão a legislação aplicável.
Já a sexta cláusula, não faz parte de todos os instrumentos de direito internacional comercial uma vez que se trata da Cláusula de escolha do idioma. Na hipótese dos países do vendedor e do comprador utilizarem a mesma língua, a aplicabilidade do dispositivo não se faz necessária.
Como complemento da escolha da Lei aplicável a sétima cláusula elencada diz respeito a possibilidade de atribuição da jurisdição através de dispositivo específico. Esta cláusula também poderá ser utilizada para indicar, qual será o país determinado no contrato, por conseguinte será a jurisdição desde país a legislação específica utilizada para dirimir o litígio. Importante salientar que no caso do Brasil, e nos demais países signatários da convenção das Nações Unidas para Contratos de Venda Internacional de Mercadorias, estes ao se tornar parte e internalizar as normas das convenções, optam pelas regras presentes no instrumento nos casos de conflito ou lacuna contratual214.
Outra cláusula crucial para os contratos internacionais comerciais é a cláusula resolutiva, prevendo a possibilidade de rescisão unilateral dos pactos, seja em caráter regular, seja nos casos de contratos por prazo indeterminado ou em razão
214 XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Contratos Internacionais e a Escolha do Direito Aplicável: tradução dos Princípios Haia e Guia da Organização dos Estados Americanos (OEA), Curitiba: 2020, p. 142.
da ocorrência de eventos atípicos como a insolvência de uma das partes ou o descumprimento por elas das obrigações contratuais215.
Colocada no rol de cláusula típica dos contratos comerciais internacionais, porém não obrigatória, está a cláusula de confidencialidade, muito comum em contratos sobre novas tecnologias, visam a proteção de informações técnicas, administrativas ou mercadológicas. Um exemplo muito atual sobre este tipo de cláusula pode ser explanado através das recentes aquisições de vacinas da Pfizer pela União Europeia. Após a assinatura do contrato a cláusula de confidencialidade sobre os preços praticados ao redor do mundo foi vazada e isso trouxe diversos problemas tanto para a empresa, quanto para potenciais compradores216.
Assim, como os contratos internos, os contratos internacionais, via de regra, também contam com cláusulas penais, estipulando multa ou indenização em caso de descumprimento da parte contrária. Sobre a cláusula penal nos esclarece Irineu Strenger217:
É de extrema eficácia, par conduzir à sanção, os comportamentos incondizentes com os ajustes contratuais, que, exemplificativamente, podem ser elencados entre a mora na execução, inexecução das garantias de rendimento ou de qualidade, falhas no fornecimento, inexecução de obrigação de compra, inexecução por parte do transmitente de licença e de suas obrigações, relativas à defesa de patentes, ou ainda inexecução das obrigações de não fazer. (...) além disso, esta cláusula desempenha papel que está longe ser simples, pois pode ser associada, paradoxalmente, a um mecanismo de recompensa à diligência do empresário, ou ainda, ao inverso, desde que seja legalmente possível, responder a preocupação de limitação da responsabilidade (STRENGER, 1986, p. 81).
Praticamente a regra nos contratos comerciais internacionais, a Cláusula compromissória, citada em capítulo anterior, é um dos institutos que mais se aproxima da referida Lex Mercatoria, uma vez que propõe a solução de conflitos através de um tribunal arbitral, uma forma de resolução de disputas entre as partes, que visam evitar a necessidade de buscar à justiça estatal. Neste caso as decisões
215 XXXXXX, X. X. X. Contratos internacionais Comerciais: Planejamento, Negociação, Solução de Conflitos, Cláusulas Especiais, Convenções Internacionais. 1. ed. São Paulo: Saraiva,1994. p. xxx.
216 Diário de Notícias. Fuga de informação. Pfizer cobra 12 euros à UE por cada dose de vacina. Portugal. 2020, Disponível em: xxxxx://xxx.xx.xx/xxxxx/xxxx-xx-xxxxxxxxxx-xxxxxx-xxxxx-00-xxxxx-x- ue-por-cada-dose-de-vacina-13154969.html . Acesso em 25 fev. 2021.
217 STRENGER,1986, p. 81.
arbitrais atuam como sentenças judiciais, executáveis, perfazendo coisa julgada e, portanto, irrecorríveis, em sua maioria218.
Para Cretella219, cláusulas típicas de contratos internacionais são aquelas encontradas devido a necessidade, como por exemplo: preâmbulo, eleição de foro e lei, arbitragem, moeda, idioma, confidencialidade, força maior e hardship. De encontro, Schimitthoff220, define como cláusulas mais importantes a serem incorporadas aos contratos pelo exportador, nos contratos internacionais de comércio: os termos gerais, retenção de título, aumento de preço, juros, força maior, escolha da lei aplicável, arbitragem e jurisdição.
Os dados do vendedor, comprador e agente intermediário, se aplicável, são cláusulas comuns aos modelos de contratos analisados, bem como a chamada cláusula geral em que o vendedor concorda em vender e o comprador concorda em comprar221 de acordo com os termos descritos no contrato222.
Todas as cláusulas supramencionadas são usualmente encontradas nos contratos comerciais internacionais. Além destas, destacamos as cláusulas essenciais sobre a forma de pagamento, que deve estar claramente disposta. Assim como as que se referem ao prazo de entrega e recebimento que são cláusulas de suma importância, talvez até mesmo as mais significativas.
Em razão de sua patente importância, estes dados e cláusulas contratuais foram padronizados em âmbito internacional, com o escopo de trazer maior segurança jurídica aos contratantes. Por esta razão, a Câmara Internacional de Comércio de Paris elaborou uma lista de termos comerciais padrão, denominados Incoterms, que são largamente utilizados no comércio internacional. A utilização de um Incoterms significa a inclusão de uma cláusula contratual complexa, estabelecendo obrigações entre as partes sobre responsabilização em caso de
218 XXXXXX, X. X. X. Contratos internacionais Comerciais: Planejamento, Negociação, Solução de Conflitos, Cláusulas Especiais, Convenções Internacionais. 1. ed. São Paulo: Saraiva,1994.
219 XXXXXXXX XXXX, Xxxx. Contratos Internacionais: Cláusulas Típicas. Campinas. Millennium Editora, 2011. p. 75.
220 XXXXXX, X., XXXXXXXX, X., XXXXXX-XXXX, D. Xxxxxxxxxxx: The Law and Practice of International Trade. 12. ed. Londres: Sweet & Maxwell. 2012. p. 891.
221 “Sellers have agreed to sell and Xxxxxx have agreed to buy”.
222 XXXXXXXXXXXX, X. X. The law and practice of International Trade. UK. Sweet & Maxwell. 2012. p. 9, 894, 897.
perdas e danos, questões securitárias, formas de pagamento e de transporte223. A seguir a disciplina dos Incoterms será melhor entendida através do estudo minucioso deste tipo de pacto contratual padronizado, visando fornecer as bases para o entendimento dos instrumentos chamados contratos-tipo.
3.4. Os INCOTERMS
A inexistência de uniformidade com relação aos termos contratuais nos contratos comerciais internacionais é um entrave que pode tomar grandes proporções. É importante que se tenha em mente que com o mundo globalizado as informações circulam em grande velocidade e por certo é mais fácil para que países distantes tenham acesso a informações entre si. No entanto, não se pode subestimar os traços culturais e consuetudinários, que neste caso podem ser cruciais para o bom desenvolvimento das relações comerciais. Sendo assim, visando buscar uma base de uniformização, a Câmara de Comércio Internacional (International Chamber o Commerce, sigla: ICC), instituição criada em 1919, elabora desde 1936 um conjunto de definições comerciais padronizadas (standard trade definitivos), que são parte essencial na definição dos direitos e obrigações das partes durante cada etapa da transação comercial224.
A história da criação desse conjunto de definições comerciais teve início em 1923 quando, após a criação do ICC, seus membros iniciaram um estudo dos termos comerciais costumeiramente utilizados. Esse estudo apresentou disparidades na interpretação desses termos, portanto um segundo estudo, agora aplicado em mais de 30 países diferentes, a fim de esclarecer as definições utilizadas internacionalmente. Este levantamento deu origem a primeira publicação dos Incoterms pelo ICC, em 1936, agrupando 6 termos comerciais relativos aos embarques marítimos225.
223 XXXXXXX, X. Incoterms e lex mercatoria. Cadernos da Escola de Direito, v. 1, n. 12, 2010.
224 XXXXXXXX XXXX, Xxxx. Contratos Internacionais do Comércio. 2ª Edição. São Paulo. Letz Total Media Creative Projects, 2016, p. 210.
225 Incoterms: FAZ (free alongside ship), FOB (free on bord) , C&F (cost and freight), CIF (cost, insurance, freight), Ex Ship (deliver the goods at destination port) and Ex Quay (deliver the goods to the wharf at the destination port). (ICC – Internations Chamber of Commer. Incoterms rules history
Durante a Segunda Guerra Mundial as revisões suplementares dos Incoterms ficaram suspensas, tendo a primeira revisão ocorrido somente em 1953, quase 20 anos após a primeira edição. Esta revisão contou com a inclusão de três novos termos referentes ao transporte ferroviário, rodoviário e um termo referente a entrega no local de destino com as despesas pagas226. Nos anos de 1967, 1976 e 1980 novos termos foram incluídos ao conjunto de definições comerciais.
A quinta revisão ocorreu em 1990, quando, pela primeira vez os Incoterms termos publicados em 1953 foram revisados, de forma completa, de acordo com as novas práticas comerciais internacionais. Nessa data, com o intuito de simplificar os Incoterms, foram excluídos os que continham provisões referentes a meios de transporte específicos, tendo como suficiente o FCA (free carrier), que faz com que o vendedor disponibilize a mercadoria em sua sede ou transporte até o local indicado pelo importador. Sendo ainda responsável por realizar o desembaraço aduaneiro, além de considerar a utilização de mensagens eletrônicas em novas provisões descritivas dos termos comerciais.
Na sequência, nos anos 2000, a sessão dos Incoterms FAS e DEQ: “licenças, autorizações e demais formalidades” foram modificadas para obedecer à maneira como a maioria das autoridades aduaneiras abordam essas questões para importadores e exportadores. Nessa revisão foram publicados treze diferentes termos comerciais.
Posteriormente, após uma nova rodada de revisões os termos foram reduzidos a onze. Estas onze regras passaram a ser utilizadas, tanto nas negociações domésticas, quanto nas negociações internacionais, divididas em dois grandes grupos: aqueles para uso marítimo ou transporte interno via fluvial, onde a carga é entregue no porto e aqueles utilizados para qualquer outra modalidade de transporte227.
[2021]. Disponível em: xxxxx://xxxxxx.xxx/xxxxxxxxx-xxx-xxxxxxxx/xxxxxxxxx-xxxxx/xxxxxxxxx-xxxxx- history/ Acesso em 20 abr. 2021).
226 Incoterms incluídos: FOR (free on rail); FOT (free on truck); DCP (delivered cost paid). (ICC – Internations Chamber of Commer. Incoterms rules history [2021]. Disponível em: xxxxx://xxxxxx.xxx/xxxxxxxxx-xxx-xxxxxxxx/xxxxxxxxx-xxxxx/xxxxxxxxx-xxxxx-xxxxxxx/ Acesso em 20 abr. 2021).
227 XXXXXXXXXXXX, X. X. The law and practice of International Trade. UK. Sweet & Maxwell. 2012, p. 09.
Em 2020 após a atualização os Incoterms sofreram novas modificações, primeiramente alinhando diferentes níveis de cobertura de seguro no Cost Insurance and Freight (CIF) e Carriage and Insurance Paid To (CIP). Além de incluir requisitos relacionados à segurança nas obrigações e custos de transporte. Outra mudança editada pela nova versão foi a previsão da necessidade demonstrada do mercado em relação aos Bill of Lading (BL) com a notação on-board e com a regra Incoterms de Free Carrier (FCA)228. Contudo, as onze siglas continuam mantidas229.
Para que se possa compreender melhor a disciplina dos Incoterms é preciso ter em mente que estes documentos englobam fundamentalmente quatro as questões regulatórias: a entrega das mercadorias, a divisão dos custos, a transferência dos riscos e certas formalidades de documentação aduaneiras e fronteiriças. Tais questões são elencadas (termo a termo), gradativamente aumentando as obrigações do vendedor ao passo em que afrouxa certas regras sobre o comprador. A primeira da lista, venda “na fábrica” (EXW), é a que faz recair sobre o vendedor o mínimo de obrigações, ao passo que a última (DDP, entrega com “direitos pagos”) o leva ao máximo os seus deveres230.
Para os modelos de contrato sob o Incoterms CIF231, o exportador é o responsável por entregar a carga no porto de destino, usualmente no país do importador, conforme acordado no contrato. Somado ao frete internacional, está dentro das obrigações do exportador, o seguro internacional.
Nos modelos de contrato negociados com o Incoterms FOB232, o exportador é responsável pelos custos de liberação da mercadoria na alfandega do país de
228 ICC – Internations Chamber of Commer. INCOTERMS 2020. Disponível em: xxxxx://0xx.xxxxxx.xxx/xxxxxxxxx-0000-xxx-xxxxxxxxxxx_xxxxxxx-Xxxx/
229 Os Incoterms 2020 com redação livre são EXW – Ex Works – Na Origem; FCA – Free Carrier – Livre No Transportador; FAS – Free Alongside Ship – Livre Ao Lado Do Navio; FOB – Free On Board
– Livre A Bordo; CPT – Carriage Paid To – Transporte Pago Até; CIP – Carriage And Insurance Paid To – Transporte E Seguro Pagos Até; CFR – Cost And Freight – Custo E Frete (porto de destino nomeado); CIF – Cost Insurance And Freight – Custo, Seguro E Frete; DAP – Delivered At Place – Entregue No Local; DPU – Delivered At Place Unloaded – Entregue No Local Desembarcado; DDP – Delivered Duty Paid – Entregue Com Direitos Pagos.
230 XXXXXXXX, X. X. Incoterms 2010: em especial o termo CIF. 2015.
231 Para definição detalhada: XXXXXXXX XXXX, X. Contratos Internacionais do Comércio. 2. ed. São Paulo. Letz Total Media Creative Projects, 2016. p. 210.
232 Para definição detalhada: XXXXXXXX XXXX, X. Contratos Internacionais do Comércio. 2 ed. São Paulo. Letz Total Media Creative Projects, 2016. p. 230.
origem, até embarque no navio e datas informados pelo importador, que se torna responsável pela mercadoria a partir desse momento.
Atualmente o estudo do contrato internacional de comércio torna-se praticamente impossível sem que os Incoterms sejam devidamente detalhados, visto que são termos comerciais utilizados em mais de cento e quarenta países, com trinta e uma traduções disponíveis, servindo de guia para importadores, exportadores, profissionais do direito, transportadores e estudantes de comércio internacional.
Na figura 1, podemos verificar que os Incoterms, primordialmente, envolvem três partes: vendedor ou exportador; comprador ou importador e transportador. Isso significa que em um contrato de compra e venda, para que seja cumprido, requer contratos adicionais, como por exemplo: de transporte, visto que as mercadorias devem ser transportadas do local do vendedor para o local definido pelo importador, portanto, uma das principais propósitos dos Incoterms é definir os papeis de cada parte em relação ao contrato de transporte, elencando ainda outras obrigações conforme delineado nos parágrafos anteriores233.
Figura 1 – Modelo Inconterms.
Fonte: ????.
Apesar de sua importância, os Incoterms não substituem o contrato comercial internacional, apesar de indicar normas básicas e responsabilidade do vendedor e comprador, bem como entrega, risco e relacionamento de um contrato que envolvem um contrato comercial internacional, e quando aplicável, também no âmbito
233 ICC - International Chamber of Commerce. INCOTERMS 2010. [s.l], [2010]. Disponível em: xxxxx://xxxxxx.xxx/xxxxxxxxx-xxx-xxxxxxxx/xxxxxxxxx-xxxxx/xxxxxxxxx-xxxxx-0000/ Acesso em 20 abr. 2021.
doméstico. Os termos são definidos pelo ICC234 como “ ...]um conjunto de onze dos termos de três letras mais comumente usados, por exemplo CIF, DAP, etc., refletindo a prática business-to-business em contratos de venda e compra de bens.
Em relação às obrigações do vendedor e comprador, os termos descrevem “quem faz o que”, ou seja, qual das partes irá organizar o transporte ou seguro da mercadoria ou quem ficara responsável por providenciar os documentos de embarque e licenças de exportação ou importação. A definição de onde será feita a entrega da mercadoria do vendedor para o comprador, quando o risco é transferido, também se encontra definido nos Incoterms. E acrescida a essas definições, a escolha do Incoterms implica em definir qual parte esta responsável por quais custos, como por exemplo: transporte, embalagens, custos no embarque e desembarque, e custos relativos à inspeção e segurança, sem especificidades, podem ser aplicados para quaisquer tipos ou quantidades de mercadorias.
De acordo com o INCOTERMS 2020, é importante salientar os pontos os quais os Incoterms não normatizam:
se existe um contrato de venda; as especificações dos produtos vendidos; a hora, local, método ou moeda de pagamento do preço; os remédios que podem ser procurados por violação do contrato de venda; maioria das consequências de atraso e outras violações no cumprimento de obrigações contratuais; o efeito das sanções; a imposição de tarifas; proibições de exportação ou importação; força maior ou dificuldade; direito de propriedade intelectual; ou o método, local ou lei da resolução de disputas em caso de violação.235
Os Incoterms não são o contrato em si, e sim tornam-se parte do contrato existente, quando incorporados a este. Neste sentido, pode se dizer que os Incoterms integram os contratos padronizados utilizados no direito do comércio internacional236.
As siglas presentes nos Incoterms determinam algumas regras a serem cumpridas no contrato, porém não todas, tampouco abarcando todas as espécies de
234 ICC – Internations Chamber of Commer. INCOTERMS 2020. Disponível em: xxxxx://0xx.xxxxxx.xxx/xxxxxxxxx-0000-xxx-xxxxxxxxxxx_xxxxxxx-Xxxx/ Acesso em 20 abr. 2021
235 “whether there is a contract of sale at all; the specifications of the goods sold; the time, place, method or currency of payment of the price; the remedies which can be sought for breach of the contract of sale; most consequences of delay and other breaches in the performance of contractual obligations; the effect of sanctions; the imposition of tariffs; export or import prohibitions; force majeure or hardship; intellectual property rights; or the method, venue, or law of dispute resolution in case of such breach.” In INCOTERMS 2020
236 XXXXXX, V. C. S. Contratos-tipo da compra e venda: a prática do comércio internacional. Rev. Faculdade Direito Universidade Federal Minas Gerais, v. 45, p. 411, 2004.
produtos. Neste caso, as associações comerciais possuem um papel crucial na busca pela normatização dos instrumentos e a paridade das relações de comércio internacional. Para viabilizar estes objetivos, as associações, empresas e até mesmo entes estatais costumam indicar o uso de instrumentos padronizados de comércio internacional, os chamados contratos-tipo, os quais serão objeto de estudo no tópico seguinte.
4 CONTRATOS-TIPO INTERNACIONAIS
Visando estabelecer uma maior segurança política no âmbito do direito privado, uma das soluções encontradas foi a utilização de contratos-tipo. Sendo este um modelo de contrato com clausulas padronizadas, costumes comerciais, regras uniformes desenvolvidas e publicadas por organizações internacionais que representam a comunidade mercante237.
Sua importância decorre da gestão preventiva de conflitos, trazendo os postulados da clareza e transparência aos negócios internacionais238. Os diversos setores que compõe a rede de comércio internacional têm necessidades diferentes entre si, uma vez que existem muitas variáveis em jogo, porém, em alguns pontos existe uma convergência legal, onde os contratos-tipo podem ser de grande valia para a realização dos negócios internacionais conforme a norma consuetudinária.
No comércio internacional de mercadorias muitas negociações são conduzidas através de contratos padronizados disponibilizados por associações internacionais, a fim de facilitar as negociações, os chamados contratos-tipo239.
Contratos são os instrumentos através dos quais as partes se comunicam, sendo este o instrumento responsável por definir as responsabilidades e expectativas quanto ao resultado esperado da relação comercial. A dificuldade em visualizar sutis distinções de termos e conceitos jurídicos em diferentes sistemas jurídicos é um obstáculo sanado através da uma padronização de regras e práticas contratuais, para que não seja necessário retomá-las a cada nova negociação240.
Sobre os contratos tipo nos esclarece Engelberg241:
Surgem, no plano profissional, acordos entre associações profissionais cujas atividades sejam complementares. No comércio de resinosos, por
237 XXXXX, X. O Direito Internacional Privado do Novo Mlilênio: A Proteção da Pessoa Humana Face à Globalização (2000). Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito–PPGDir./UFRGS, v. 1, n. 1, 2003. p. xxx.
238 XXXXXXX, Xxxxxxxxx. A gestão de conflitos em contratos internacionais do petróleo. Revista Brasileira de Direito Constitucional: n. 18, jul/dez 2011, p. 254.
239 XXXXXXXXXXXX, X. X. The law and practice of International Trade. UK. Sweet & Maxwell. 2012. p. 9, 894, 897.
240 STRENGER, I. Contratos internacionais do comercio. [s.l.] : Ed. Rev. dos Tribunais, 1992 p. 83.
241 XXXXXXXXX, X. Contratos Internacionais do Comércio. São Paulo: Atlas, 2003. p. xxx.
exemplo, serradores suecos e floresteiros finlandeses (exportadores), propõem e discutem contratos-tipo com várias associações de importadores: japoneses, franceses, belgas, ingleses, canadenses etc. Estes contratos-tipo têm, cada um, um número de código e são adaptáveis às particularidades de cada país ou região com a qual os escandinavos estejam se relacionando comercialmente. Pode-se dizer que estes contratos são uma espécie de tratado entre as associações, o qual salvaguarda os interesses divergentes destas. Existem inúmeros acordos deste gênero. Nota-se então, que os contratos-tipo garantem o caráter dinâmico no âmbito do direito comercial internacional, pois baseiam-se nas práticas comerciais, sejam elas formuladas ou não (STRENGER, 1992, p. 83)
Tanto os contratos padronizados, também chamados de contratos-tipo quanto os Incoterms são instrumentos jurídicos desenvolvidos para enfrentar um desafio que afeta o processo de contratação comercial internacional: a multiplicidade de sistemas jurídicos e as regras comerciais diversas.
Além disso, existem mercados de interesse mundial, como é o caso do petróleo, que criam conflitos baseados nos acontecimentos da economia e da política. Dessa forma, a variação de sua cotação com o aumento ou diminuição da demanda, ou ainda questões tecnológicas gera a denominada Era da Ansiedade em Suprimento de Energia242.
Já no contexto do mercado futuro, o advento da internet facilitou a prospecção de investidores para diversas áreas, como é o caso dos derivativos. No entanto, apesar dessa facilidade, ainda há a disponibilização de contratos padronizados para aumento da celeridade. Logo, os juristas necessitam acompanhar as implicações deste ato, ainda que não haja vastas obras sobre o tema243.
Este cenário gera interesses divergentes entre seus participantes. Assim, faz- se necessário a solução dessa problemática através dos contratos padronizados. A demanda é tamanha que se utiliza nomenclatura própria para este setor, como é o caso da Production-Shering Contracts244.
Cretella245 compreende que a compra e venda internacional é facilitada com a utilização de um contrato uniforme nas relações comerciais internacionais. O autor,
242 XXXXXXX, Xxxxxxxxx. A gestão de conflitos em contratos internacionais do petróleo. Revista Brasileira de Direito Constitucional: n. 18, jul/dez 2011, p. 244-246.
243 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xx Xxxxxxx. Batalha das formas e negociação prolongada nos contratos internacionais. In: XXXXX, Xxxx Xxxxxxxx; NECKEL. Contratos Internacionais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 273.
244 Ibid., p. 247.
245 XXXXXXXX XXXX, Xxxx. Contratos Internacionais do Comércio. 2ª Edição. São Paulo. Letz Total Media Creative Projects, 2016, p. 14.
assim como Cordeiro-Moss246, afirma que da relação jurídica estabelecida pelo contrato internacional origina-se uma serie de obrigações das partes, com contratos acessórios, como o contrato de seguros; de transporte; de financiamento; de assistência técnica; de transferência de know-how, entre outros. Outrossim, o procedimento negocial está focado, tipicamente em problemas legais específicos, como: garantias, limitações de responsabilidade, o termo, resolução de disputas e lei aplicável ao contrato247.
A expansão do comércio global anda de mãos dadas com a necessidade de contratos padronizados para as diversas negociações internacionais. A aceitação desses modelos padronizados é bastante abrangente, ao passo que diversas instituições públicas e privadas disponibilizam modelos próprios para seus membros. Respondendo as necessidades do mercado a Câmara Internacional de Comércio disponibiliza um modelo básico de contrato internacional de compra e venda, abrangendo condições contratuais claras e concisas em um modelo confiável e equitativo. No entanto, vale salientar que em se tratando de contratos-tipo, quanto mais específicos e voltados para uma certa área de atuação, melhores serão os instrumentos.
Neste diapasão, mister mencionar a disciplina normativa dos contratos-tipo, deve ser enaltecido o papel das organizações internacionais na sua elaboração, precisamente o caso da Câmara Internacional do Comércio. Nas palavras de Silva248, os dispositivos criados pela CIC “Seriam as bases do sistema jurídico as normas criadas por uma autoridade profissional, que celebrasse contratos-tipo. “
Alguns autores consideram os contratos-tipo uma fonte para os demais contratos de comércio internacionais. Sendo primeiramente um modelo com o escopo de inspirar a elaboração dos contratos comerciais transfronteiriços. Posteriormente, após haver a inclusão do particular que pretende contratar e sua
246 CORDERO-XXXX, X. Boilerplate Clauses, International Commercial Contracts, and the Applicable Law. New York. Cambridge University Press, 2011.
247 CORDERO-XXXX, X. Boilerplate Clauses, International Commercial Contracts and the Applicable Law. New York. Cambridge University Press, 2011, Preface xxi, p. 12.
248 XXXXX, X. X. Direito internacional público. Belo Horizonte: inédita, 1999, p. 36.
consequente autonomia de vontade o contrato se tornaria concreto, isto é, um contrato internacional249.
No mesmo podem ser inseridos disposições acerca de seguro, para assegurar indenização em caso de sinistro ou ainda dos Princípios Unidroit250. Desta observação decorre que os contratos tipo têm sua importância no fato de serem peças reguladoras e dos contratos internacionais, pois, a origem precípua de tais instrumentos é a autonomia da vontade das partes contraentes, sendo os contratos- tipo instrumento acessório na composição dos contratos internacionais de maneira ampla.
Modelos de contratos padronizados confiáveis são os que tem como referência os padrões negociais internacionais, tornando-se um instrumento crucial para as partes na gestão de suas relações internacionais251. O intuito de utilizar modelos de contratos uniformizados é fornecer as partes um apanhado de cláusulas padronizadas que estejam de acordo com as boas práticas do comércio internacional, desenvolvidas para a alocação dos riscos do negócio perfazendo um instrumento simplificado e sob medida para as necessidades dos pactuantes252.
Xxxx, membro do comitê de contratos FOSFA e GAFTA, bem como do comitê de arbitragem, aponta que os contratos-tipo são elaborados de acordo com as necessidades especificas para “diferentes commodities, diferentes origens, diferente métodos de transporte ou diferente termos de negociação”253.
Esses contratos padronizados chegam a conter mais de 200 linhas texto que tem como objetivo refletir em seus termos os aspectos relevantes de como o comércio de commodities é conduzido. Importante salientar que esses contratos,
249 XXXXXX, X. X. X. Contratos-tipo da compra e venda: a prática do comércio internacional. Rev. Faculdade Direito Universidade Federal Minas Gerais, v. 45, p. 411, 2004.
250 XXXXXXX, Xxxxxxxxx. A gestão de conflitos em contratos internacionais do petróleo. Revista Brasileira de Direito Constitucional: n. 18, jul/dez 2011, p. 259-260.
251 ICC – International Chamber of Commerce. MODEL INTERNATIONAL CONTRACT SALE. [2020] Disponível em: xxxxx://xxxxxx.xxx. Acesso em 20 abr. 2021.
252 CORDERO-XXXX, X. Boilerplate Clauses, International Commercial Contracts and the Applicable Law. New York. Cambridge University Press, 2011, Preface xxi, p. 12, 22-23.
253 Tradução livre: “These contract forms are for different commodities, different origins, different methods of transportation of diferente trade terms” Xxxxx X Xxxxxx Xxxxx Arbitration Procedures The Journal of the Chartered Institute of Arbitrators vol 56 No 3 August 1990 p 150 at 151 apud Covo, Xxxxxxx. Commodities, Arbitrations and Equitable Considerations. ASA Bulletin, vol. 10, no. 2, June 1992, p. 136. HeinOnline.
disponibilizados pelas associações internacionais de comércio de commodities abrange as negociações a termo, não incluindo negociações de contratos futuros.
Os contratos-tipo reduzem a quase zero as diferenças culturais, evitando dúvidas e divergências durante e após as negociações, visto que são instrumentos amplamente analisados e testados previamente. Via de regra, contam com poucas cláusulas simples, concisas e objetivas. De acordo com Costa254, eles são “regulamentações ou fórmulas padronizadas, com numerosos pontos, comuns, diferindo geralmente tão só no que tange às particularidades de cada ramo do comércio”.
A variação dentro do universo dos contratos tipo ocorre tão somente acerca de condições específicas do produto, como armazenamento, transporte, conservação e embalagem. Cláusulas sobre a forma de negociação já são previamente estipuladas de acordo com a prática mercantil da área, justamente para evitar qualquer tipo de contratempo ou mal-entendido em razão de diferenças linguísticas, culturais ou consuetudinárias.
Então, cabe às partes contraentes (importador e exportador), por meio da fonte delegada da autonomia da vontade, apenas completar as “lacunas” deste modelo de contrato: os prazos, os valores, as obrigações, a forma de pagamento e a qualificação das partes255.
Neste tipo de contrato é possível encontrar aspectos similares a todos os setores, como por exemplo a escolha da arbitragem como forma de resolução dos conflitos comerciais, representada na clausula compromissória, que retira da esfera estatal a competência para julgar possíveis disputas provenientes daquele acordo entre as partes256.
254 XXXXX, X. X. Xx princípios informadores do contrato de compra e venda internacional na Convenção de Viena de 1980. In: XXXXXXX, Xxxxx X. (Org.). Contratos lnternacionais e Direito Econômico no MERCOSUL. São Paulo: LTr, 1996. p. 163 - 187.
255 XXXXXX, X. X. X. Contratos-tipo da compra e venda: a prática do comércio internacional. Rev. Faculdade Direito Universidade Federal Minas Gerais, v. 45, p. 411, 2004.
256 CORDEIRO, D. A. “A Lex Mercatoria E As Novas Tendências De Codificação Do Direito Do Comércio Internacional”. Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.7, n.7, jan./jun.2008, p. 101.