NOVAS RELEXÕES SOBRE O CONTRATO INTERNACIONAL DE EMPREENDIMENTO COMUM (JOINT VENTURE)(*)
NOVAS RELEXÕES SOBRE O CONTRATO INTERNACIONAL DE EMPREENDIMENTO COMUM (JOINT VENTURE)(*)
Pelo Professor Doutor Xxxx xx Xxxx Xxxxxxxx(**)
SUMÁRIO:
Introdução. I. O conceito e tipologia dos contratos de empreendimento comum. II. Âmbito do estudo. III. Conformação dos contratos de empreendimento comum pelos sistemas estaduais. IV. A determinação do Direito aplicável ao contrato de empreendimento comum. A) Aspetos gerais. B) Regulação pelo Direito Internacional Público. C) Regulação pelo Direito da União Europeia. D) Regulação pelo Direito autónomo do comér- cio internacional. E) Regulação pela ordem jurídica estadual. V. Conside- rações finais.
Introdução
O desenvolvimento de relações de cooperação entre empresas é um dos traços mais marcantes da atual vida económica. A todo o momento se ouve falar de joint ventures, consórcios, agrupamentos de empresas, acor- dos de cooperação e alianças estratégicas. De entre a multiplicidade de manifestações da cooperação interempresarial, desde logo ocorrem certos exemplos paradigmáticos, que permitem uma primeira aproximação a este fenómeno e às suas diversas facetas.
(*) O presente trabalho foi elaborado com vista aos Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Xxxx Xxxxxx Xxxxxxxx.
(**) Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Praticamente todas as grandes empreitadas de obras públicas são realizadas por uma pluralidade de empresas que se agrupam para o efeito. Na maioria dos casos, estes grupos incluem empresas que relevam de paí- ses diferentes. É assim frequente que sociedades sediadas e estabelecidas em países estrangeiros se associem com sociedades portuguesas para con- correrem e, em caso de adjudicação, executarem, uma empreitada de obras públicas em Portugal. Segundo o art. 54.º/4 do Código dos Contratos Públicos, “Em caso de adjudicação, todos os membros do agrupamento concorrente, e apenas estes, devem associar-se, antes da celebração do contrato, na modalidade jurídica prevista no programa do procedimento”. A modalidade jurídica prevista no programa do procedimento é frequente- mente a de consórcio externo.
As empresas agrupam-se igualmente para concorrerem e executa- rem importantes contratos de concessão. Sirva de exemplo a concessão de obra pública e de exploração e manutenção da nova travessia rodo- viária sobre o Tejo, que foi atribuída a um consórcio internacional. Nos termos do regime legal aplicável e do contrato de concessão, deve cons- tituir-se uma sociedade concessionária, com sede em Portugal, contro- lada pelo “agrupamento” vencedor do concurso, com a qual é celebrado o contrato de concessão, um agrupamento complementar de empresas para o desenvolvimento das atividades de projeto e construção da nova travessia e uma sociedade “operadora”, que desenvolverá as atividades de operação das travessias e de manutenção do empreendimento conces- sionado.
Os projetos de desenvolvimento de um novo produto envolvendo avultados investimentos têm sido na grande maioria dos casos levados a cabo por duas ou mais empresas. Refira-se, como exemplos, o desenvolvi- mento em conjunto da aeronave Concorde pela sociedade francesa Sud Aviation e pela sociedade inglesa British Aircraft Company e o estabeleci- mento em Portugal de uma empresa comum, a Autoeuropa, tendo por objeto o desenvolvimento e produção de um veículo para fins múltiplos, pela Ford da Europa, filial da sociedade dos EUA Ford Motor Company, e pela sociedade alemã Volkswagen AG (a Ford saiu posteriormente desta empresa que é hoje detida exclusivamente pela Volkswagen).
Também os grandes financiamentos são normalmente assegurados por consórcios bancários. Pense-se no consórcio bancário formado por uma instituição financeira portuguesa e uma instituição financeira rele- vando do Direito de outro Estado da União Europeia, para financiar um grande projeto industrial a ser realizado num país africano de língua oficial portuguesa e em que o contrato de consórcio estabelece qual a quota do
financiamento que cada uma deve conceder e prevê mecanismos de assun- ção em comum dos riscos da operação.
Enfim, e sem qualquer pretensão de exaustividade, refira-se o agru- pamento de empresas na atividade de prospeção, pesquisa, desenvolvi- mento e exploração de petróleo, em que frequentemente se associam empresas transnacionais com parceiros locais.
O paradigma dos contratos de cooperação económica é o contrato de sociedade. Outros contratos nominados de cooperação económica são, designadamente, no Direito português, o contrato de consórcio, o contrato institutivo de um Agrupamento Complementar de Empresas e, a nível europeu, o contrato institutivo do Agrupamento Europeu de Interesse Eco- nómico.
Dediquei a minha tese de doutoramento, concluída em 1996, ao tema do contrato de empreendimento comum em Direito Internacional Pri- vado(1). Tanto quanto tenho conhecimento, foi o primeiro estudo de grande fôlego sobre o tema no mundo. Em todo o caso, creio que para além do estudo aprofundado do tema, a principal inovação da minha tese foi a chamada de atenção para a pluralidade de planos de regulação desta modalidade contratual, relevante também para a teoria geral do Direito Internacionl Privado.
Passados mais de 25 anos, verificaram-se naturalmente novos desen- volvimentos, que justificam novas reflexões que, sem pretenderem ser exaustivas nem porem em causa o quadro conceptual e metodológico da investigação concluía em 1996, incidem principalmente sobre a regulação do contrato internacional de empreendimento comum pelo Direito autó- nomo do comércio internacional e pela ordem jurídica estadual. Em todo o caso, parece-me útil incluir uma síntese, que inclui algumas breves notas de atualização, sobre o conceito e tipologia desta modalidade con- tratual, sobre a sua conformação por sistemas nacionais selecionados e sobre a sua regulação pelo Direito Internacional Público e pelo Direito da União Europeia.
(1) XXXX XX XXXX XXXXXXXX, Contrato de Empreendimento Comum (Joint Venture) em Direito Internacional Privado (1998), Almedina, Coimbra, 2003. Ver ainda, numa perspetiva de Direito mate- rial, “Breves considerações sobre a responsabilidade dos consorciados perante terceiros”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Xxxx Xxxxxxx, Vol. II, 165-179, Coimbra, 2003.
I. O Conceito e tipologia dos contratos de empreendimento comum
Os contratos de cooperação internacional de empresas são contratos de cooperação económica que nuns casos serão reconduzíveis a um tipo legal contido na ordem jurídica aplicável e, noutros casos, serão legal- mente atípicos perante esta ordem jurídica. Por acréscimo, basta uma observação superficial para verificar que há grandes divergências entre os sistemas jurídicos nacionais quanto à tipificação dos contratos de coopera- ção económica e à conformação de tipos específicos da cooperação inte- rempresarial. Por estas razões, não é possível, a priori, identificar o objeto deste estudo por referência a um determinado tipo legal de contrato ou a um elenco de tipos legais de contrato.
Por outro lado, é problemática a existência de um tipo do tráfico negocial a que se possam reconduzir todos ou, pelo menos, a maioria dos contratos de cooperação de empresas.
A própria caracterização da função económica dos contratos de coo- peração de empresas, que deverá estar subjacente a qualquer processo de tipificação destes contratos, se encontrava, no essencial, por realizar. Assim, na minha tese de doutoramento senti a necessidade de realizar todo um percurso para identificar, delimitar e sistematizar a realidade que me propunha estudar.
Este percurso levou-me a um conceito científico autónomo contrato de joint venture, ou empreendimento comum, que inclui três notas caracte- rísticas:
— contrato celebrado entre entes empresariais jurídica e economica- mente independentes entre si;
— para a realização de um empreendimento comum;
— mediante uma concertação das atividades das suas empresas ou a exploração de uma empresa comum complementar.
Atente-se melhor na nota “empreendimento comum”. Um empreen- dimento comum é uma operação económica concreta ou uma atividade económica exercida com certa permanência suscetível de gerar um resul- tado económico que, em princípio, beneficia todos os participantes. O empreendimento comum não consiste necessariamente numa atividade realizada por uma organização comum. Em certas hipóteses, as empresas participantes podem cooperar na realização do empreendimento estabele-
cendo entre si uma mera relação obrigacional. Noutras hipóteses, a organi- zação comum pode ser uma mera estrutura complementar, de coordenação das atividades empresariais individuais. Empreendimento comum não implica, portanto, empresa comum na aceção de unidade de ação econó- mica organizada.
Por conseguinte, deve pois evitar-se a confusão gerada pela inadvertida tradução da expressão “Joint Venture” por “empresa comum” [entreprise commune, Gemeinschaftsunternehmen], associada à ambiguidade da pala- vra “empresa”. Optei, por conseguinte, pela tradução de contrato de Joint Venture proposta por XXXXXXX XXXXX: contrato de empreendimento comum. Em certos sistemas, que adotam um conceito amplo de sociedade, os contratos de empreendimento comum estão, em princípio, sujeitos ao regime do contrato de sociedade. É o que se verifica nos sistemas do Com- mon Law e no Direito alemão. Outros sistemas adotam um conceito restri- tivo de sociedade que exige o exercício em comum de uma atividade econó- mica com fim lucrativo. Este conceito exclui a maior parte dos contratos de empreendimento comum, o que conduziu alguns destes sistemas a adotarem tipos específicos de cooperação interempresarial, tais como o consórcio e o agrupamento complementar de empresas no sistema português. É ainda de referir, ao nível europeu, o Agrupamento Europeu de Interesse Económico. Os contratos de empreendimento comum assumem conformações muito variadas. Estas conformações relacionam-se com diferentes tipos de
cooperação interempresarial, designadamente:
— a cooperação meramente obrigacional, em que o contrato de empreendimento comum não dá origem a qualquer organização comum;
— a empresa comum central, em que se forma uma empresa comum que constitui o polo organizativo da cooperação e dispõe de meios próprios para a sua concretização;
— a associação consorcial simples, em que se forma apenas uma organização de coordenação das atividades das empresas partici- pantes na realização do projeto de cooperação;
— enfim, a associação consorcial com empresa comum, caracteri- zada pela conjugação de uma organização de coordenação com uma empresa comum.
A multiplicidade de conformações assumidas pelos contratos de empreendimento comum não obsta ao desenvolvimento de tipos do tráfico
negocial internacional em determinados setores de atividade económica e, porventura, dentro de certas regiões. Para o desenvolvimento destes tipos negociais e para a sua individualização no tráfico jurídico contribuem os guias da elaboração de contratos de cooperação e os modelos contratuais elaborados por peritos provenientes dos setores em causa sob a égide de agências de organizações intergovernamentais ou de organizações não- governamentais.
No âmbito europeu, são de salientar o Model form of consortium agreement (2015) e o Short guide to the creation of a Joint Venture (2004) elaborados pela ORGALIM(2).
Um traço de regular verificação consiste na existência de um esquema negocial com certas características. À semelhança do que se veri- fica com outros contratos que no comércio internacional envolvem um processo negocial complexo e moroso, é frequente que o acordo definitivo seja precedido de cartas de intenções e de negócios preparatórios(3).
Mas o que há de verdadeiramente característico neste esquema nego- cial é a união de um contrato-base com uma pluralidade de acordos com- plementares ou de execução(4). Com efeito, é normal que as partes, quando alcançam um consenso sobre os pontos fundamentais da sua coo- peração, celebrem um negócio jurídico, assiduamente designado acordo de base [Heads of Agreement, accord de base, Grundvereinbarung] ou acordo de empreendimento comum [joint venture agreement](5) Este
(2) Federação europeia que representa os interesses das indústrias metalo-mecânica, elétrica e eletrónica.
(3) Ver MARI/XXXXXXXXX, “Agreements to agree, agreements to negotiate ed obbligo precontrat- tuale di buona fede nel diritto inglese e nel diritto nord-americano”, Diritto del commercio internazio- nale 6.2 (1992) 601-62, 601, ss., e bibliografia aí cit.; XXX XXXXXXX, Il diritto dei contratti internazio- nali. La cooperazione tra imprese, Pádua, 1985, 132, ss.
(4) Cf. XXXXXX XXXXXXXX e XXXXX XXX XXXXXXXX, “Zur internationalen Joint Venture”, in Fest. Xxxxxx Xxxxxx, 203-212, 1976; XXXXX XXXXXXX, Investitionsverträge im internationalen Wirtschafts- recht, Francoforte-sobre-o-Meno, 1986, 55, ss.; XXXXXX XXXXXXX, “Le Contrat de ‘Joint Venture’”, in Innominatverträge, Fest. Xxxxxx Xxxxxxx, 383-396, Zurique, 1988, 383-385 e 390-393, não excluindo que se possa tratar de um único “grande contrato” [392]; XXXXX XXXXXXXX, Joint Ventures, 2.ª ed., Bristol, 1989, 61, ss.; XXXXXX XXXXXXXX, Les accords de coopération dans le commerce interna- tional, Paris, 1989, 20, ss.; XXXXX XXXX XX XXXXXXXXXXX, Contratos Atípicos, Coimbra, 1995, 221.
(5) Cf. XXXX XXXXXXXXXX, “Filial comun y derecho internacional”, in Libro Homenaje Xxxxxxx Xxxxxxx-Xxxxxx, 175-215, 1975, 178; XXXXXXX XXXXXXXX, “Das Verhältnis zwischen joint venture-Ver- trag, Gesellschaftssatzung und Investitionsvertrag”, JZ (1987) 265-271, 266; XXXX XXXXX XXXXXXXX e XXX- XXX XXXXXX-XXXXXXX, Les associations d’entreprises (Joint Ventures) dans le commerce international, 2.ª ed., Paris, 1991, 59, ss.; XXXXX XXXXXXXXXX e XXXXX XXXXXXX, “Joint ventures”, in Noviss. Dig. it., Apêndice, Vol. IV, Turim, 1983, n.º 5; XXXXX XXXXXXXXX-WIRTH (org.), Joint Ventures im internationalen Wirtschaftsverkehr. Pratiken und Vertragstechniken internationaler Gemeinschaftsunternehmen, 1990, 125, ss.; XXXXX XXXXXXXXXXX, The Law and Practice of International Trade, 9.ª ed., Londres, 1990,
acordo constitui a matriz da relação global de cooperação. Neste acordo são enunciados os fins e o objeto da cooperação, definidos os principais direitos e obrigações das partes — com respeito às contribuições e aos resultados — os modos de coordenação e formas de organização da coope- ração, o Direito aplicável e os modos de resolução dos litígios.
Tratando-se de cooperação organizada, este acordo contém, por forma mais ou menos explícita e pormenorizada, um estatuto da associa- ção de empresas, que subsiste à constituição de uma filial comum, salvo quando esta centralizar económica e organizativamente a cooperação.
Entre os acordos complementares, são particularmente frequentes os que dizem respeito à licença de direitos de propriedade intelectual e à trans- missão de saber-fazer; os contratos que asseguram o financiamento da empresa comum através de empréstimos efetuados ou garantidos pelas par- tes; os contratos de gestão técnica e comercial por que uma das partes assume responsabilidades específicas na administração da filial comum; os contratos de fornecimento e de distribuição; os contratos de venda, aluguer ou locação financeira de equipamento; os contratos de venda de matérias- primas; os negócios constitutivos de filiais comuns; os acordos parassociais. A maioria dos contratos de cooperação interempresarial institui dire- tamente uma organização de coordenação das atividades que as empresas
participantes devem desenvolver para a realização do projeto comum.
Como já assinalei, parece inegável que a multiplicidade de conforma- ções dos contratos de cooperação interempresarial não obstou ao desen- volvimento de tipos do tráfico negocial internacional, em determinados setores de atividade económica e, porventura, dentro de certas regiões. No entanto, em contraste com estas tendências para o desenvolvimento de tipos do tráfico negocial, há áreas da cooperação de empresas que tendem a escapar a qualquer forma de tipificação “social”. É o que se verifica, por um lado, com as alianças estratégicas que abrangem grandes áreas de negócios ou, quiçá, o conjunto das atividades das empresas participantes. É, por outra parte, o domínio da cooperação centralizada em empre-
sas comuns que satisfazem necessidades dos processos produtivos das empresas participantes, que se organiza fundamentalmente nos quadros dos tipos societários, cooperativos ou de outras formas específicas de associação de empresas legalmente previstas.
339; XXXXXXXX XXXXXXX, “La dissolution d’une joint venture et l’arbitrage commercial international. Rapport Introductif”, Inst. Int. Bus. L. Pract. 28-41 (1993) 30; XXXX XXXXXXXX, “Termination of joint ventures: problems of conflict of laws”, Inst. Int. Bus. L. Pract.: 44-62 (1993) 47; XXXXX XXXXXX e XXXXXXX XXXXXX, International Business Transactions, 2 Vols., St. Xxxx, Xxxx, 1995, 67, ss.
II. Âmbito do estudo
A cooperação internacional de empresas suscita problemas de regula- ção jurídica de vária ordem. Só uma parte destes problemas se encontra no âmbito do Direito Internacional Privado e do Direito Comercial Interna- cional.
Além dos problemas que tradicionalmente dizem respeito à regula- ção do contrato pelo Direito privado, as relações de cooperação de empre- sas também desencadeiam a atuação de diversos complexos normativos de Direito público ou que se encontram numa zona de transição entre o Direito público e o Direito privado. Os “acordos de cooperação de empre- sas” e as “empresas comuns” têm despertado grande interesse na ótica do Direito da Economia, mormente no que toca ao Direito da Concorrência e ao regime do investimento estrangeiro. Não é esta a ótica em que o con- trato de empreendimento comum será considerado no presente estudo. Há também aspetos jurídico-privados das relações de cooperação internacional de empresas que o presente trabalho se não propõe abranger. É o que se verifica com os aspetos relativos ao estatuto das pessoas coleti- vas ou entes análogos que sejam instituídos no implemento da coopera- ção, designadamente os que digam respeito às filiais comuns que porven- tura venham a ser constituídas. É também o caso dos problemas atinentes à dita representação orgânica ou à representação voluntária que se susci-
tem no quadro destas relações ou em conexão com elas.
Dada a complexidade do tema e a multiplicidade dos aspetos jurídi- cos envolvidos, a prudência aconselha a que o estudo se centre nos proble- mas mais gerais da determinação do Direito aplicável ao contrato de empreendimento comum, e que os aspetos relativos ao estatuto das pes- soas coletivas ou entes análogos só sejam tocados lateralmente, tendo principalmente em vista a delimitação do estatuto contratual e a sua conju- gação com o estatuto institucional.
Assim, não desenvolverei a matéria da determinação do estatuto pes- soal das sociedades nem do Direito Internacional Privado dos grupos de sociedades que, naturalmente, pode ter relevância, designadamente para as relações entre as sociedades que celebram contratos de empreendimento comum e as filiais comuns que se constituam no seu implemento. Também não examinarei as normas de Direito material especial privado aplicáveis às sociedades estrangeiras ou de estatuto pessoal estrangeiro. Destas nor- mas resulta frequentemente que as sociedades que desejam realizar um empreendimento comum num Estado diferente daquele em que se consti- tuíram ou onde está sediada a sua administração têm de cumprir certas for-
malidades no Estado local. O mesmo pode verificar-se quando uma filial comum deva realizar o empreendimento num país diferente daquele em que se constituiu ou está sediada a sua administração (por exemplo, o art. 4.º/1 C. Soc. Com.).
III. Conformação dos contratos de empreendimento comum pelos sistemas estaduais
Nos sistemas considerados, o contrato de sociedade surge-nos como o paradigma dos contratos de cooperação económica. O contrato de socie- dade é objeto de regulação sistemática quer nas grandes codificações de Direito Privado realizadas nas ordens jurídicas da família romano-germâ- nica quer nos países de Common Law, onde o contrato de sociedade de base personalística [partnership] se encontra, há muito, legalmente tipifi- cado.
O CC alemão veio definir, no seu art. 705.º, o conteúdo do contrato de sociedade em torno a esta ideia de “fim comum”.
“Pelo contrato de sociedade os sócios obrigam-se reciprocamente a promover a realização de um fim comum pelo modo determinado no contrato, em especial a prestar as contribuições estipuladas”(6).
Trata-se de um conceito amplíssimo de sociedade, uma vez que o objeto do contrato não é limitado à colaboração na realização de uma ati- vidade económica em comum ou por forma concertada nem o fim comum constitui necessariamente numa finalidade económica interessada. Este conceito de sociedade também dispensa qualquer elemento organiza- tivo(7).
Tenha-se em atenção, no entanto, que as disposições societárias do CC alemão só se aplicam diretamente às Gesellschaften des bürgerlichen Rechts (BGB-Gesellschaften) (sociedades regidas pelo Código Civil) e, por remissão legal, subsidiariamente, a algumas sociedades comerciais — as offene Gesellshaften (OHG) (sociedades em nome coletivo) e as Kom-
(6) “Durch den Gesellschaftsvertrag verpflichten sich die Gesellschafter gegenseitig, die Erreichung eines gemeinsamen Zweckes in der durch den Vertrag bestimmten Weise zu fördern, insbe- sondere die vereinbarten Beiträge zu leisten”.
(7) Cf. MünchKomm, BGB /SCHÄFER [2020: Vor Art. 705 n.º 9].
manditgesellschaften (KG) (sociedades em comandita simples) (cf. § 105
(3) e § 161 (2) do Handelsgesetzbuch). Em todo o caso, a possibilidade de a sociedade prosseguir qualquer fim legalmente permitido também é admi- tida em relação às Gesellschaften mit beschränkter Haftung (sociedades de pessoas com responsabilidade limitada) (§ 1 GmbHG).
No polo oposto, o conceito mais restritivo introduz duas notas quali- ficativas adicionais: a prossecução de um fim lucrativo e o exercício em comum de uma atividade económica(8), frequentemente associado à exploração de uma empresa. A noção que consta do art. 980.º CC port. ilustra este conceito restritivo: duas ou mais pessoas obrigam-se a contri- buir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa atividade económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa atividade.
A noção que consta do art. 980.º CC também é, em princípio, rele- vante para as sociedades comerciais (art. 2.º C. Soc. Com.). Embora o ponto seja controverso, é de entender que a noção do art. 980.º continua a ser útil como ponto de partida para a construção do tipo “sociedade comer- cial”(9). Os casos em que não se verificam todas as notas típicas que cons- tam dessa noção podem ser considerados desvios ao tipo normal de socie- dade comercial(10).
Num passado relativamente recente, seria possível agrupar os orde- namentos considerados em dois grupos, colocando de um lado, como seguidores de um conceito amplo de sociedade, o Direito alemão e os sis- temas de Common Law, e, do outro, os Direitos francês, italiano e portu- guês. A evolução verificada em França e Itália conduziu estes ordenamen- tos a uma posição intermédia, que talvez não se afaste muito, em resultado, da dos sistemas de Common Law.
Com efeito, é a seguinte a redação atual do art. 1832.º do CC fran- cês(11):
(8) Na jurisprudência ver, por ex., STJ 22/2/84 [BMJ 334: 477].
(9) Neste sentido, XXXXXXXX XXXXX, “A aplicação do artigo 980.º do Código Civil às sociedades comerciais”, in Liber Amicorum Xxxxx Xxxx xx Xxxxxxxxxxx. Revista de Direito Comercial, 2023, 561, ss. acessível em <xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx/x-xxxxxxxxx-xx-xxxxxx-000-xx-xxxxxx- civil-as-sociedades-comerciais>.
(10) Em sentido parcialmente diferente, MENEZES CORDEIRO/XXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX, “Art. 2.º”, in Código das Sociedades Comerciais Anotado, org. por Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, 5.ª ed., Coimbra, 2022, n.º 8, entendendo que a noção do art. 980.º CC só vale para as sociedades de pessoas. Ver ainda XXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX, Direito das Sociedades, Vol. I, 5.ª ed., com a colaboração de
A. Barreto Menezes Cordeiro, Coimbra, 2022, n.os 98, ss.
(11) A redação atual foi dada pela L n.º 85-697, de 11/7.
“La société est instituée par deux ou plusieurs personnes qui conviennent par un contrat d’affecter à une entreprise commune des biens ou leur industrie en vue de partager le bénéfice ou de profiter de l’économie qui pourra en résulter” (s.n.).
Continua a exigir-se a exploração de uma empresa comum, mas, a partir da reforma de 1978(12), passou a dispensar-se a realização, no patri- mónio da sociedade, de um lucro suscetível de distribuição, uma vez que se admite outras formas de aproveitamento económico dos resultados da atividade comum(13). É suficiente que o contrato tenha por fim a obtenção de vantagens que se produzem diretamente no património dos sócios.
O alcance da evolução do Direito italiano não é tão inequívoco. A par da configuração das cooperativas como sociedades em princípio mutualis- tas, a lei estabeleceu para as sociedades com participação pública um crité- rio de eficiência e racionalidade económica(14), e, além de outra legislação avulsa ter admitido sociedades sem fim lucrativo, verifica-se que, segundo um entendimento, as sociedades consorciais não prosseguem necessaria- mente um escopo lucrativo(15). Enquanto uns consideram estar-se perante aplicações anormais e contrárias ao sistema, outros admitem uma evolu- ção do conceito de sociedade(16).
A possibilidade de a sociedade ter por objeto uma atividade exercida em termos não empresariais continua a ser muito discutida(17).
O Direito português permanece, neste universo, como o mais restri- tivo(18).
Nos sistemas que adotam um conceito restritivo, as exigências for- muladas com respeito ao caráter comum da atividade e ao fim lucrativo
(12) L n.º 78-9, de 4/1.
(13) Ver XXXXXX XXXXX, XXXXXX XXXXXXX e XXXXXX XXXXXXXX, Droit commercial, 2.ª ed., Paris, 1980, Vol. II, 45, ss.; XXXXXXXXX XXXXXXX, Droit commercial et des affaires, 26.ª ed., Paris, 2020, n.º 359.
(14) Cf. arts. 1.º/2 e 4.º do Decreto Legislativo n. 175/2016 aggiornato alla Legge n. 197/2022.
(15) Ver XXXXXXXX XXXXXXXX, Trattato delle società, Tomo 1, Milão, 2022, 86, ss., 99, ss.
(16) Ver XXXXXXXXX XXXXXXX, “Società (dir. priv.)”, in Enc. dir., Vol. XLII. 1990; FRANCO DI SABATO, Manuale delle società, 3.ª ed., Turim, 1990, 30, ss., e XXXX XXXXXX XXXXXX e XXXXXXXXX XXXXXXX, Appunti di diritto commerciale, Vol. I, Impresa e società, 2.ª ed., Milão, 1992, 108, ss.
(17) A doutrina preponderante entende que toda a sociedade é necessariamente titular de uma empresa apesar de em sentido contrário se pronunciar boa parte da doutrina — ver XXXXXXXX XXXXX — Le società, in Trattato di diritto civile, org. por Vassali, Vol. X, T. III, Turim, 1971, 32; GALGANO (n. 16) n.º 6]; DI SABATO (n. 16) 10, ss., que assinala que a coincidência entre sociedade e empresa é normal mas não essencial; no mesmo sentido JAEGER/DENOZZA (n. 16) 109, que chama a atenção para as sociedades de profissionais independentes que não podem ser considerados empresários. Ver ainda DONATIVI (n. 15) 68, ss.
(18) Para uma aparente exceção, ver DL n.º 336/89, de 4/10 (sociedade de agricultura em grupo) [SAG], que admite sociedades que, segundo parece, poderão não ter por fim a produção de lucros suscetíveis de distribuição e cujo objeto poderá ser meramente complementar.
levarão a excluir a qualificação societária com respeito à grande maioria dos contratos de empreendimento comum. O Direito português é a este respeito paradigmático(19).
Assim, à face do Direito português, não há qualquer tipo societário que se ajuste à constituição e exploração de uma empresa comum que se destine a satisfazer diretamente necessidades das empresas-mães — por exemplo, assegurando a exportação das mercadorias produzidas pelas empresas-mães — embora haja notícia de sociedades que se constituíram e funcionaram durante algum tempo sem que tivessem por escopo a realiza- ção e partilha de lucros(20).
A constituição de sociedade tendo por objeto a realização de um empreendimento comum por forma concertada suscita acrescidas dificul- dades, uma vez que se exige o exercício em comum da atividade.
Para solucionar estes diversos problemas, os sistemas que adotam um conceito menos amplo de sociedade têm vindo a consagrar legalmente tipos de cooperação de empresas distintos dos tipos societários, o que ten- dencialmente não se verifica nos ordenamentos do primeiro grupo.
No Direito português, é o caso do Agrupamento Complementar de Empresas (doravante ACE) e do contrato de consórcio.
Na esteira do modelo francês, o ACE tem por fim principal melhorar as condições de exercício ou de resultado das atividades económicas das pessoas que nele se agrupem (Base I/1 da L n.º 4/73)(21); a realização e partilha de lucros só pode constituir um fim acessório, cuja prossecução carece de autorização expressa no contrato constitutivo (Base II/1 da L n.º 4/73 e art. 1º DL n.º 430/73)(22). Como exemplos de objeto do ACE, são referidas as atividades de investigação de natureza técnica ou econó-
(19) A posição diversa defendida por XXXXXXX XXXXXX XXXXXXX, Lições de Direito Comercial, Vol. II, Coimbra, 1968, 9 e 15, ss., com respeito às associações de empresas que não prosseguem fim lucrativo direto, não parece compatível com as opções legislativas entretanto exercidas relativamente ao enquadramento não societário dos Agrupamentos Complementares de Empresas e das cooperativas.
(20) Ver XXXX XXXXX XXXXXXX e XXX XXXXX XXXXXX, Dos agrupamentos complementares de empre- sas, Lisboa, 1980, 34, ss. Mas o Direito das Sociedades já não coloca impedimento a que se institua uma filial comum que atue, por exemplo, como central de compras ou como central de vendas, ou que produza outras mercadorias ou serviços destinados exclusivamente às empresas-mães, desde que pros- siga uma finalidade lucrativa própria, o que se há-de exprimir no pagamento das mercadorias forneci- das ou dos serviços prestados a preços de mercado.
(21) Xxxxxxx XXXX XX XXXXXXXX ASCENSÃO, Direito Comercial, Vol. I — Parte Geral (Lições pro- feridas no ano letivo 1986/1987), Lisboa, 1988, 322, a função do ACE pode ser “genericamente carac- terizada como a de proporcionar maior racionalidade económica ao conjunto, mas por forma diame- tralmente oposta à da fusão; pois o centro de gravidade continua a residir em cada empresa”.
(22) Cp. a crítica formulada por XXXX XXXXXXX, “Primeiras notas sobre o contrato de consór- cio”, ROA 41 (1981) 609-690, 626, ss.
mica, a aquisição e utilização em comum de maquinaria, a publicidade e comercialização dos produtos(23).
O contrato de consórcio encontra-se regulado no DL n.º 231/81, de 28/7, sem prejuízo de algumas normas especiais posteriormente adota- das. Segundo o art. 1.º deste diploma, “Consórcio é o contrato pelo qual duas ou mais pessoas, singulares ou coletivas, que exercem uma atividade económica, se obrigam entre si a, de forma concertada, realizar certa ativi- dade ou efetuar certa contribuição com o fim de prosseguir qualquer dos objetos referidos no artigo seguinte”.
Tem-se em vista relações entre empresários(24). Poderão consorciar-se empresas individuais ou coletivas, como expressamente decorre da lei(25). Geralmente, procura-se distinguir o consórcio da sociedade pelo seu objeto, contrapondo-se exercício em comum de uma atividade a exercício
separado mas concertado de atividades individuais(26).
O fim comum é prosseguido por cada consorciado mediante a realiza- ção de prestações individuais coordenadas entre si. Os meios pessoais e mate- riais utilizados para o efeito são próprios; mesmo quando se prevê, em alter- nativa à obrigação de realizar certa atividade, a obrigação de o contraente efetuar certa contribuição, esta não se destina à constituição de um patrimó- nio comum “que materialmente suporte a atividade comum”, uma vez que a constituição de um fundo comum é proibida pelo n.º 1 do art. 20.º(27).
(23) Ver XXXX XXXXXXX, “Sociedades complementares de empresas”, RFDUL 24 (1972) 13-21.
(24) XXXX XXXXXXX (n. 22) 634 toma “atividade económica” por sinónimo de “atividade de empresa”. A ser assim, as partes serão empresários e o consórcio será uma estrutura de cooperação de empresas — cf. OLIVEIRA ASCENSÃO (n. 21) 330; o que não é o mesmo que dizer que é uma estrutura jurí- dica de empresa — ver Id. [op. cit. 339, ss.]. Todavia, a noção do art. 1.º não permite, por si, afastar outras atividades económicas (por exemplo, as realizadas por profissionais independentes).
(25) Cp., porém, n.º 2 do Preâmbulo do DL n.º 262/86, de 2/9, que aprovou o C. Soc. Com., onde agrupamento complementar de empresas, consórcio e associação em participação são referidos como “institutos” de sociedades comerciais.
(26) Cf. Preâmbulo do DL n.º 231/81; XXXXXX XXXXXXX (n. 19) 19 e 20 n. 2 (na esteira da dou- trina italiana da época este autor encarava o consórcio como um cartel, i.e., como um acordo tendo por objeto regular a concorrência — cf. 19); XXXX XXXXXXX (n. 22) 638, ss. e 641]; OLIVEIRA ASCENSÃO (n. 21) 331]; XXXXX XXXXXX XXXXX, O contrato de concessão comercial, Coimbra, 1990, 297. O mesmo distinguiria o contrato de consórcio do ACE — cf. XXXX XXXXXXX [op. cit., 643]. Este último autor começa por afirmar que a distinção se traça em função do objeto e do fim [op. cit., 639], mas no desen- volvimento parece vir a recusar autonomia à diferença de fim [cf. 641]. Ver ainda XXX XXXXX XXXXXX, “Formas Jurídicas da Cooperação entre Empresas”, Direito das Sociedades em Revista 2 (2010) 137-
-157, 140, ss.
(27) Quanto aos meios pessoais, pode invocar-se o art. 14.º/1/f a contrario; quanto aos mate- riais, os arts. 4.º/2 e 20.º. Ver XXXX XXXXXXX (n. 21) 688, ss. Todavia, não é inconcebível que uma ativi- dade realizada mediante uma concertação de prestações individuais possa ser qualificada como exercí- cio em comum de uma atividade — ver LIMA PINHEIRO (n. 1) § 4.
O DL n.º 231/81 também parece confinar o consórcio aos objetos indicados no art. 2.º. A figura surge assim estreitamente delimitada pela impossibilidade da sua utilização para a constituição e exploração de um empresa comum, pelos traços típicos que se inferem do seu regime (desig- nadamente a proibição de fundo comum e, pelo menos nos consórcios externos, de partilha de lucros), e ainda, por uma tipificação das atividades que podem constituir o seu objeto(28):
— realização de atos materiais ou jurídicos, preparatórios quer de um determinado empreendimento, quer de uma atividade contí- nua;
— execução de determinado empreendimento;
— fornecimento a terceiros de bens, iguais ou complementares entre si, produzidos por cada um dos membros do consórcio;
— pesquisa ou exploração de recursos naturais;
— produção de bens que possam ser repartidos, em espécie, entre os membros do consórcio.
Segundo XXXXXXXX ASCENSÃO, a “intenção restritiva da lei não nos per- mite considerar esta tipicidade exemplificativa. Mas também não vemos motivo para a considerar taxativa. Deverá haver uma tipicidade delimita- tiva, sendo portanto possível uma extensão analógica”(29).
O consórcio diz-se externo quando as atividades ou os bens são for- necidos diretamente a terceiros por cada um dos membros do consórcio com expressa invocação dessa qualidade (art. 5.º/2 do DL n.º 231/81). São modalidades de consórcio interno (art. 5.º/1) aquela em que só um dos membros do consórcio estabelece relações com terceiros e aquela em que os bens são fornecidos diretamente por cada um dos membros do consór- cio mas sem expressa invocação dessa qualidade(30).
(28) Sobre estes objetos, ver XXXX XXXXXXX (n. 22) 643, ss.
(29) (N. 21) 33, ss. Cp. art. 4.º e considerações de XXXX XXXXXXX (n. 22) 650, ss.; contraria- mente ao afirmado pelo autor parece tratar-se de uma tipologia delimitativa e não taxativa. A admissi- bilidade de uma aplicação analógica do regime do consórcio a contratos atípicos é expressamente refe- rida pelo autor [op. cit., 647]. Não é admissível uma extensão a todos os contratos que correspondam à noção legal pois, neste caso, não haveria uma tipologia delimitativa. Mas não fica precludida a exten- são analógica a contratos de empreendimento comum com outros objetos, com base em analogia com uma das alíneas do art. 2.º, embora a dificuldade em apreender o sentido da sua exclusão possa criar alguma incerteza.
(30) Ver XXXX XXXXXXX (n. 22) 652.
No grupo de sistemas que adota um conceito mais amplo de socie- dade (em especial o sistema alemão, mas também, embora em menor grau, em Inglaterra e nos EUA), os contratos de cooperação interempresarial para a realização de um empreendimento comum são, em princípio, quali- ficados como sociedades de base personalística. No Direito alemão, fala- se de sociedades regidas pelo Código Civil e, nos sistemas de Common Law, de partnerships ou de um tipo societário específico.
No Direito alemão, os contratos de cooperação empresarial orienta- dos à constituição e (ou) exploração de uma empresa comum(31), bem como os contratos tendo por objeto a realização em comum ou por forma concertada de um empreendimento determinado (ditos “sociedades oca- sionais”), sem a instituição de uma empresa comum são, em regra, qualifi- cados como sociedades regidas pelo Código Civil.
Também nos sistemas de Common Law encontramos um conceito amplo de sociedade, com respeito à forma básica de sociedade de pessoas, que é o partnership.
No Direito inglês(32), o art. 1.º/1 do Partnership Act 1890 define o partnership como “a relação que se estabelece entre pessoas que realizam uma atividade económica [business] em comum com vista à realização de um lucro”(33). “Business” abrange qualquer “trade, occupation, or profes- sion”(34). Normalmente o partnership terá por objeto a prossecução de uma atividade com caráter permanente, mas o seu objeto pode resumir-se a um determinado empreendimento comum(35). A exigência de que a ativi-
(31) Cf. ZWEIGERT/VON XXXXXXXX (n. 4) 206; XXXXX-XXXXXXX XXXXXXXXXX, “Gemeinschaftsunter- nehmen im deutschen und europäischen Konzern- und Kartellrecht”, in Gemeinschaftsunternehmen (joint venture — Filiale commune) im Konzern- und Kartellrecht, org. por Xxxxxxxxxx, Xxxxxx e Xxxxxxxxx, Francoforte-sobre-o-Meno, 1979, 12, ss.; EBENTOTH (n. 5) 266, com respeito aos “contratos de joint venture”; com uma certa diferenciação; XXXXXXXX XXXXXXXX, Gemeinsame Tochtergesellschaft im deutschem Konzern- und Wettbewerbsrecht, Baden-Baden, 1976, 71, ss.; XXXXXXX XXXXXXX, Gesells- chaftsrecht, 4.ª ed., Colónia, Berlim, Bona e Munique, 2002, 1695, 1702, ss. e 1708-1709; DRINHAUSEN in Xxxxxx Xxxxxx e Xxxxxx Xxxxxxxx (orgs.), Internationales Gesellschaftsrecht- Grenzüberschreitende Umwandlungen, 5.ª ed., Munique, 2022, n.º 4; e KLAFT/MENRATH in Patrick Ostendorf (org.), Handbuch Internationale Wirtschaftsverträge, 3.ª ed., Munique, 2023, n.º 16, individualizando os consórcios (n.os 17, ss.).
(32) O partnership está submetido ao Partnership Act 1890. O art. 46.º do Partnership Act mantém em vigor as normas da equity e da common law que não sejam inconsistentes com a regulação legal; o papel desempenhado pelo Direito jurisprudencial continua a ser efetivamente importante — cf. CHARLES DRAKE, Law of Partnership, 3.ª ed., Londres, 1983, 26.
(33) “The relation which subsists between persons carrying on a business in common with a view of profit”.
(34) Art. 45.º do diploma cit.
(35) Cf. Lindley & Banks on Partnership, 21.ª ed. por Xxxxxxxx X’Xxxxx Xxxxx, Londres, 2022, n.º 2-05; e XXXXX (n. 32) 33.
dade seja realizada em comum pode excluir certos contratos de empreen- dimento comum [joint venture], designadamente contratos de exploração de petróleo, mas o exercício em comum é entendido em termos menos estritos do que perante a lei portuguesa(36).
Em princípio, os contratos de empreendimento comum são qualifica- dos como partnership. Com efeito, assinala-se que, os partnerships forma- dos por entes coletivos societários [corporate partnerships] se tornaram uma forma usualmente adotada para a conjugação de recursos na realiza- ção de um projeto específico, por exemplo, a exploração petrolífera(37). Também parece admitir-se algo de semelhante à dupla sociedade: o part- nership criado pelos joint venturers pode operar através de uma limited company(38).
Nos EUA, o art. 102.º/11 do Uniform Partnership Act [UPA] entende por partnership uma associação de duas ou mais pessoas para realizar como “contitulares” [co-owners] uma atividade económica [business] com fim lucrativo constituída ao abrigo desta lei ou que a ela fica sujeita(39). Enquanto para alguns autores o joint venture é uma modalidade de partnership, para outros é uma forma societária autónoma, cuja principal diferença do partnership consiste na duração e objeto da sua atividade, que se reporta a um empreendimento específico(40). É uma sociedade criada por acordo entre duas ou mais pessoas, que se obrigam a contribuir para a realização de um empreendimento específico, partilhando os lucros e, nor- malmente, também as perdas(41). Mas é geralmente reconhecido que o
(36) Cf. Lindley & Xxxxx (n. 35) n.os 2-16 e 5-10-5.12. O mesmo se diga do escopo lucrativo
— cf. op. cit., n.os 2-25, ss.
(37) Cf. Lindley & Xxxxx (n. 35) n.º 2-14, que mencionam também razões fiscais na escolha de tal forma associativa.
(38) Ver XXXXX XXXXXXXX e XXXX XXXXXX, Joint Ventures, 3.ª ed., Bristol, 1996, 41-42.
(39) O partnership é hoje encarado nos EUA como uma forma de organização da empresa [business enterprise] — cf. XXXXX XXXX e XXXX XXXXXXXXX — Laws of Corporations and Other Business Enterprises, 3.ª ed., St. Xxxx., Minn, 1983, 61. É regulado pela Common Law e pelas leis de cada Estado. O regime do limited partnership é primariamente de fonte legal, só se aplicando o Direito comum do partnership quando a lei para ele remete. O Uniform Partnership Act, de 1997, foi alterado pela última vez em 2013. Está em vigor em todos os Estados, salvo na Luisiana. O Uniform Limited Partnership Act (1916) foi objeto de duas revisões, de que resultaram os Revised Uniform Partnership Acts de 1976, com alterações de 1985, e de 2001. Está em vigor em todos os Estados com exceção da Luisiana, Nova Iorque, Porto Rico e Wyoming. A par de outras diferenças de pormenor, divergem tam- bém os Direitos estaduais consoante a versão do Uniform Limited Partnership Act que neles vigora. Apesar destas diferenças existem conceitos comuns de partnership, limited partnership e corporation.
(40) Ver “Joint Ventures”, in American Jurisprudence, 2.ª ed., Vol. 46, s.l., 2006, n.os 1 e 5. No sentido de se tratar de uma modalidade de partnership, Bromberg and Ribstein on Partnership, 3.ª ed. Por Xxxxxxxxx Xxxx, Xxxxxx Xxxxx, Xxxx Xxxxxxxx e Xxxxx Xxxxxxxx, Nova Iorque, 2022, § 1.01 [B]6,
(41) Ver American Jurisprudence (n. 40) n.º 1, e jurisprudência aí cit.; HENN/XXXXXXXXX (n. 37) 106.
regime aplicável ao joint venture, se não é o mesmo do partnership, é em vasta medida análogo(42).
Os aspetos de regime em que a individualização do joint venture parece assumir mais relevância são os que decorrem da limitação do seu objeto (do caráter singular ou ad hoc do empreendimento comum), o que terá desde logo consequências quanto à extensão dos poderes mútuos de representação dos parceiros e à extensão dos deveres fiduciários(43).
Decorre da noção de partnership anteriormente exposta que também se exige uma “atividade comum”. Um acordo entre pessoas que desenvol- vem separadamente as suas atividades e que põem em comum os seus resultados não é partnership(44). Mas aos autores não oferece dúvida que a “contitularidade da empresa” [co-ownership of the business], um certo grau de controlo comum, também tem de se verificar no caso do joint ven- ture(45). Ora, em muitos dos casos em que a jurisprudência entendeu haver um joint venture não se verifica um exercício em comum de uma atividade económica no sentido exigido pelo Direito português para a qualificação como sociedade(46).
(42) Cf. BROMBERG/RIBSTEIN (n. 40) § 1.01 [B]6, § 1.03 [A], § 1.03[C]1, § 2.01[A] e § 2.05[A];
American Jurisprudence [n.º 2]; XXXXXX XXXXXX, XXXXXX XXXXXX e XXXXXXX XXXXXX, Enterprise Organiza- tion. Cases, Statutes and Analysis on Employment, Agency, Partnerships, Associations, and Corpora- tions, 4.ª ed., Mineola, Nova Iorque, 1987, 381, entendem que ambas as perspetivas levam à mesma conclusão. Ver American Jurisprudence (n. 40) com respeito aos direitos e deveres recíprocos dos sócios [n. º 16]; à aplicação da doutrina do agency [n.os 16 e 34]; ao caráter fiduciário da relação e aos deveres de boa fé e lealdade que lhe são inerentes [n.º 26]; à responsabilidade perante terceiros [n.os 34 e 36]; à cessação do contrato e à dissolução [n.º 57]. Por conseguinte, a diferença entre estas duas cor- rentes reconduz-se à questão de saber se os joint ventures são partnerships ou se são organizações similares às quais o regime do partnership é aplicável por analogia.
(43) O que, por exemplo, circunscreve o dever de não-concorrência. Ver BROMBERG/RIBSTEIN (n. 40) § 6.07[H] e jurisprudência aí cit. [n.159-160]; American Jurisprudence (n. 40) n.os 3, 5 e 26. Entendem alguns que no joint venture não há “poderes gerais de representação mútua” [general mutual agency], mas tão-somente poderes especiais de representação [special agency] — cf. HENN/
/XXXXXXXXX [loc. cit.]. Ver ainda American Jurisprudence (n. 40) n.os 26 e 34. Para outras consequên- cias ver HENN/XXXXXXXXX (n. 39) 108 e n. 11, 476, e o caso coligido em XXXXXXX XXXX e XXXXXXX E XXXXXX XXXXXXXXX, Cases and Materials on Corporations, 7.ª ed., Westbury, 1995, 72, ss.
(44) Cf. XXXXXXX XXXXXX, Partnerships and other Personal Associations for Profit, in IECL, Vol. XIII, cap. 1, 1973, n.º 20.
(45) Cf. BROMBERG/RIBSTEIN (n. 40) § 2.06[C]4, e American Jurisprudence (n. 40) n.º 13.
(46) Segundo HEENEN (n. 44) n.º 187, o joint venture foi usado para uma grande variedade de empreendimentos envolvendo a criação e venda de gado; a compra, desenvolvimento e venda de pro- priedades; a compra para revenda de mercadorias e títulos; a participação conjunta em ofertas públicas de valores mobiliários; a descoberta, exploração e desenvolvimento de recursos minerais, tais como carvão, petróleo e gás; empreendimentos de pesca em que uma parte presta apoio financeiro e a outra põe à disposição um navio e a sua indústria; a construção de auto-estradas e de pontes; o fornecimento de serviços profissionais, por exemplo, em matéria jurídica; e, no desenvolvimento e venda de direitos de propriedade industrial; ver também American Jurisprudence (n. 40) n.o 38, ss.
O Direito dos EUA não parece excluir que uma relação de joint venture subsista à constituição de uma sociedade com personalidade jurídica [corpo- ration] para o implemento do empreendimento comum, dando origem a algo semelhante a uma sociedade dupla, mas parece que tal não será possível quando as partes que constituem a corporation são pessoas singulares(47). À luz do Direito português, serão particularmente frequentes os contra-
tos de cooperação interempresarial atípicos, uma vez que, dos sistemas con- siderados, é aquele que mantém um conceito mais restritivo de sociedade. Perante um contrato de cooperação interempresarial atípico, deverá sempre examinar-se a possibilidade de aplicar analogicamente o regime do consórcio, do agrupamento complementar de empresas e da sociedade (em especial da sociedade civil)(48). A circunstância de a cooperação interem- presarial se caracterizar mais frequentemente por uma realização concer- tada de um empreendimento do que pelo exercício em comum de uma ati- vidade permanente também não exclui a possibilidade de analogia com a sociedade civil quanto a certas questões jurídicas, por exemplo, no que concerne à partilha de lucros e perdas no caso de as receitas e despesas
serem levadas a um centro contabilístico comum.
Do que antecede poderia tirar-se a ilação que face a sistemas que não adotam um conceito amplo de sociedade seria reduzido o significado dos tipos societários para o desenvolvimento da cooperação interempresarial. Tal seria, porém, uma ilação errónea, porquanto é frequente que esta coo- peração implique a constituição de filiais comuns, que, nas hipóteses mais significativas, são instrumentais e estão inseridas no quadro mais amplo de uma coordenação de atividades empresariais.
A este respeito a diferença entre um conceito amplo e um conceito restritivo de sociedade manifesta-se novamente. Já sabemos que o pro- cesso negocial é frequentemente complexo e que é normal que as partes, quando alcançam um consenso sobre os pontos fundamentais da sua coo- peração, celebrem um negócio jurídico, assiduamente designado acordo de base ou acordo de joint venture.
Para os ordenamentos que adotam um conceito amplo de sociedade, o contrato-base, inclua ou não no seu objeto a constituição e exploração de
(47) Ver American Jurisprudence (n. 40) n.º 60.
(48) XXXXXX/DENOZZA (n. 16) 109, ss. dão como exemplo um negócio por parte de vários sujeitos que concorrem com o dinheiro necessário à compra de uma partida de mercadorias, a fim de realiza- rem lucros com a sua revenda. Segundo os autores, certas normas do contrato de sociedade são em geral aplicáveis aos outros contratos de comunhão de escopo; já não o serão aquelas que pressupõem o exercício em comum de uma atividade. O mesmo se diga com respeito ao aspeto organizativo-institu- cional.
uma empresa comum, define geralmente, por si, uma relação societária, com reduzida dimensão institucional. Nos casos em que o projeto de coo- peração passa pela constituição de pessoas coletivas societárias, surgem sociedades duplas.
Diferentemente, para os sistemas que adotam um conceito mais res- tritivo, só em hipóteses bem delimitadas o contrato-base poderá ser quali- ficado de sociedade. Por conseguinte, nas hipóteses mais significativas, o contrato-base é encarado como mero contrato preparatório do contrato constitutivo de uma filial comum e de outros negócios que acompanham a sua criação e funcionamento, e, contanto que também regule a atuação dos sócios na condução dos assuntos sociais, como acordo parassocial.
Assim, o contrato-base pode ser encarado como um contrato-qua- dro [Rahmenvertrag, framework agreement](49) — uma vez que contém
(49) Cp. as alusões ao “acordo-quadro” feitas por XXXXX XXXXXXXXXX e XXXXX XXXXXXX, “Joint ven- tures”, in Noviss. Dig. it., Apêndice, Vol. IV, Turim, 1983, n.º 5, e XXXXXXXXXXX (n. 5) 339, bem como ao “contrato-quadro” entre uma sociedade-mãe e um Estado envolvendo a celebração de negócios de exe- cução de uma sua filial com o mesmo Estado feita por XXXXXX XXXXXX, “The First ‘World Bank’ Arbitra- tion (Holiday Inns v. Morocco) — Some Legal Problems”, Brit. YBIL 51 (1980) 123-161, 138. A con- figuração do contrato-base como “contrato-quadro” é vagamente sugerida por XXXXX XXXXXXXX, La filiale comune internazionale, Milão, 1988, 231, ss. Cp. XXXXX XXXXXXXXXX, “Some Legal Aspects of Industrial Co-operation in East-West Relations”, RCADI 163 (1979) 247-309, 285, ss.]. Segundo INO- XXXXXX XXXXXX XXXXXX, Manual dos Contratos em Geral, 4.ª ed., Coimbra, 2002, 242, ss., há um con- trato-tipo (ou contrato-quadro) quando as partes fixam contratualmente o conteúdo das futuras con- venções e se obrigam a respeitá-lo. Tem-se entendido que o contrato-quadro, o contrato-promessa e o contrato normativo são espécies do género contrato preliminar ou preparatório. Distingue-se o con- trato-quadro do contrato-promessa fundamentalmente por neste os contraentes assumirem a obrigação de contratar, ao passo que no primeiro as partes apenas se obrigam a respeitar certa regulação (contra- tualmente) típica, caso venham a contratar. Estas duas modalidades distinguem-se do contrato norma- tivo porque aqueles só vinculam os contraentes, ao passo que este define regras aplicáveis a uma gene- ralidade de pessoas. Em sentido convergente, XXXXXXX XXXXXX, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª ed., Coimbra, 2000, 249, ss.; XXXXXXXXX XXXXXXXX, Contratto. Voci estratte dall’Enciclopedia del diritto, reimpressão (1979), Milão, 1962, 262 e 265, ss., que toma o contrato normativo como a cate- goria geral, de que o contrato-promessa [contratto preliminare] e o contrato-quadro [contratto-tipo] seriam subespécies, mas vem a inserir o contrato normativo e o contrato-promessa na categoria dos contratos preparatórios [cf. 326-327]; XXXXXXX XXXXXXX, Handelsrecht, 6.ª ed., Colónia, 2014, 727, ss.; XXXXXXXX XXXXXXXXXXX, XXXXXXX XXXXXXXXX, Schuldrecht, 12.ª ed., 2022, n.o 136, ss., assinalando, com razão, que o contrato-quadro não pode ser inserido na categoria dos contratos “preliminares” [vorläu- fige]; XXXX XXXXXX, Lehrbuch des Schuldrechts, Vol. I, Allgemeiner Teil, 14.ª ed., Munique, 1987, 88; XXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX, Tratado de Direito Civil, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2012, considerando as convenções coletivas de trabalho, o contrato de sociedade e o contrato-quadro modalidades de negócio normativo. Ver também Id, Tratado de Direito Civil, Vol. II, 5.ª ed., com a colaboração de A. XXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX, Coimbra, 2021, 753. Não deixa de ser contrato-quadro aquele que, predisposto para uma generalidade de contratos futuros, só vem a regular um contrato singular. E não se vê razão sufi- ciente para dar outra designação ao contrato que se proponha regular a celebração de um único con- trato, caso as partes, no futuro, o queiram celebrar. Em suma, dir-se-á que o contrato-quadro regula a
elementos sobre o conteúdo dos negócios que os participantes celebra- rão no implemento do seu projeto de cooperação, designadamente o negócio constitutivo de filial comum — e como contrato-promessa, se
— como geralmente sucede — obriga as partes a celebrar estes negó- cios e se predetermina o seu conteúdo em medida suficiente para esta vinculação(50).
A razão por que o contrato-base se apresenta frequentemente, sob certos aspetos, como um mero contrato-quadro, poderá, no entanto, dever- se principalmente à falta de determinação de elementos essenciais dos negócios a celebrar posteriormente(51).
IV. Adeterminação do Direito aplicável ao contrato de empreen- dimento comum
A) Aspetos gerais
O contrato de empreendimento comum é objeto do Direito Interna- cional Privado quando for internacional ou, como prefiro dizer, transna- cional, por ter contactos relevantes com mais de um Estado soberano.
Neste caso, surgem problemas específicos, como a determinação do Direito aplicável, a determinação da jurisdição competente e, eventual- mente, o reconhecimento de decisões estrangeiras. No presente estudo vou centrar-me na determinação do Direito aplicável perante o Direito de Conflitos geral, i.e., aplicável pelos tribunais estaduais. Não obstante, farei algumas referências às soluções aplicáveis na arbitragem CIRDI e na arbi-
celebração de contratos futuros — e tanto pode dispor sobre o conteúdo destes contratos como sobre o processo e os requisitos da sua formação, modificação ou cessação — sem vincular as partes à sua celebração.
(50) Sobre a unidade do negócio jurídico formado pelo “acordo de voto” e pelo “contrato-pro- messa” anteriores à constituição da sociedade, ver XXXX XXXXXXX, “Acordos de voto; algumas questões depois do Código das Sociedades Comerciais (CSC, art. 17.º)”, in Estudos vários sobre sociedades anónimas, 9-101, Coimbra, 1992: 26, ss.
(51) O ac. STJ 8/2/66 [BMJ 154: 384] decidiu que um acordo celebrado por troca de corres- pondência, por que uma das partes se obriga a celebrar com outra um contrato de associação para a execução conjunta de uma empreitada de obras públicas, se esta lhe viesse a ser adjudicada, com par- ticipação nos lucros e nos prejuízos em partes iguais, remetendo a regulamentação das “restantes con- dições de colaboração” para serem “assentes em negociações posteriores, dentro das melhores normas de equidade”, é um válido contrato-promessa de “contrato de associação”; isto, ainda que, designada- mente, não se tenham especificado as contribuições que cada uma das partes deveria realizar.
tragem transnacional em sentido estrito, geralmente designada arbitragem comercial internacional.
Quando é que o contrato de empreendimento comum é transnacional? Em primeiro lugar, entendo que será suficiente uma internacionali- dade subjetiva, mormente a localização das empresas participantes em paí-
ses diferentes.
Uma transferência de valores através das fronteiras não é necessária nem suficiente para que o contrato de empreendimento comum seja inter- nacional. Nos contratos de empreendimento comum haverá normalmente diversas transferências internacionais de valores, no sentido amplo que inclua designadamente capitais, bens intelectuais, saber-fazer e dividendos. Mas o significado destas transferências é muito variável. Podem ser insig- nificantes ou até inexistentes num contrato celebrado entre partes que desenvolvem as suas atividades em países diferentes — por exemplo, o contrato por que dois grupos empresariais (celebrado, designadamente, pelas respetivas sociedades-mãe), que dispõem de filiais em vários países, estabelecem um quadro de cooperação, que tem por objeto uma pluralidade de empreendimentos comuns, sendo cada um deles realizado num determi- nado país mediante a conjugação de atividades das filiais de cada grupo aí estabelecidas. Inversamente, um contrato de empreendimento comum ine- quivocamente localizado num Estado pode dar azo a uma transferência internacional de valores importante — por exemplo, o agrupamento for- mado por “empresas portuguesas” para realizar uma empreitada de obras públicas de grande envergadura em Portugal adquire um equipamento de valor avultado no estrangeiro com vista à realização da empreitada.
Daí que a internacionalidade do contrato de empreendimento comum com base num critério subjetivo não deva depender da concorrência de uma transferência de valores através de fronteiras. Daí também que seja por demais incerto o significado que pode assumir a existência de uma transfe- rência de valores através de fronteiras para a internacionalidade de um con- trato celebrado entre partes ligadas ao mesmo país e em cujo território deve ter lugar a atividade comum ou conjugada que as partes se obrigaram a rea- lizar. Esta transferência pode dizer respeito, como se verifica no exemplo anterior, a uma aquisição de meios para a realização do empreendimento, mas o nexo que assim se estabelece entre o contrato de empreendimento comum e tal contrato de venda internacional não é suficientemente impor- tante para que o primeiro deva ser considerado internacional.
A circunstância de os contratos de empreendimento comum serem frequentemente celebrados por empresas e grupos empresariais transna- cionais, a cada um deles correspondendo uma pluralidade de entes coleti-
vos ou, pelo menos, de centros de atividade, é de índole a suscitar as mais diversas dificuldades. Os contratos celebrados por filiais locais de socieda- des estrangeiras, que devam ser executados localmente, sem transcende- rem o âmbito organizativo e os recursos que se encontram afetos a estas filiais, serão, em princípio, contratos internos.
Já podem surgir dúvidas quando a participação no empreendimento comum envolver as sociedades-mãe e os seus centros de atividade locali- zados no estrangeiro, designadamente mediante instruções dirigidas às administrações das filiais e transferências de recursos especificamente destinados ao empreendimento. Em princípio, nestes casos, ainda que determinados negócios de execução sejam celebrados por filiais locais, existirá uma relação contratual de base entre as sociedades-mãe (ou entre uma sociedade-mãe e o parceiro local). Este contrato-base é internacional segundo um critério subjetivo.
Nas hipóteses em que porventura tal não se verifique, tão-pouco se poderá excluir o concurso de interesses legítimos das partes no sentido da escolha do Direito regulador do contrato. Por exemplo, parece defensável que duas filiais de sociedades portuguesas, estabelecidas no mesmo país estrangeiro, e que na sequência de “contactos informais” havidos entre estas sociedades, celebram um contrato de empreendimento comum, cuja execu- ção exigirá a transferência interna de recursos de cada uma das sociedades- mãe para a respetiva filial, possam submeter o contrato ao Direito português. Nem sempre a verificação de um critério subjetivo será condição necessária de internacionalidade do contrato. Pense-se no contrato de con- sórcio celebrado entre sociedades com sede da administração em Portugal para a realização de uma empreitada de construção civil em país estrangeiro. Entre os laços que podem servir para estabelecer a internacionalidade obje- tiva do contrato são de salientar o lugar de realização do empreendimento comum e o lugar onde a organização instituída pelo contrato de empreendi-
mento comum tenha a sua sede.
Mais em geral, na apreciação da internacionalidade dos contratos de empreendimento comum é por vezes necessária uma flexibilidade que não pode ser alcançada no quadro definido por um critério razoavelmente determinado, seja ele subjetivo, objetivo ou de transferência de valores. As tendências de desenvolvimento no que toca à formação de grupos empre- sariais e à transnacionalização das empresas parecem também trazer cres- centes dificuldades à definição de critérios precisos(52). Estas dificuldades
(52) Assinale-se também a tendência para uma crescente “desmaterialização” da riqueza e da
só podem ser resolvidas perante o conjunto das circunstâncias do caso, atendendo aos referidos critérios e à sua combinação, mas também aos interesses legítimos das partes, a outros fins subjacentes à norma de confli- tos em causa e ao sistema de Direito Internacional Privado em que se inte- gra, bem como aos princípios jurídicos que o enformam.
Esta exigência de flexibilidade pode ser satisfeita pelo critério geral dos “interesses do comércio internacional”, quando entendido no sentido de uma ponderação de todos os elementos relevantes para determinar se uma relação da vida económica deve ou não ser objeto do regime especial aplicável às situações transnacionais(53).
Creio que na aplicação deste critério se deve sobretudo atender aos laços objetivos que se estabelecem entre os elementos da relação contro- vertida e a vida económica de Estados diferentes. O mais importante não é a perspetiva macroeconómica, a relevância da transação no plano das rela- ções entre Estados, mas a circunstância de as partes ficarem colocadas numa posição específica que justifica a aplicação do regime especial dos contratos comerciais internacionais. Esta posição específica decorre essen- cialmente dos laços que se estabelecem com diferentes Estados quer no momento da celebração do contrato quer durante a sua execução.
Tenho defendido que a regulação de situações transnacionais pelo Direito Internacional Privado não se limita à regulação no plano da ordem jurídica estadual através do Direito de Conflitos geral.
Por um lado, no plano da ordem jurídica estadual existem outras téc- nicas de regulação, como o Direito material unificado.
Por outro lado, a regulação também é operada noutros planos: o plano do Direito Internacional Público, o plano do Direito da União Europeia e o plano do Direito autónomo do comércio internacional.
Os contratos de empreendimento comum são uma dos melhores exemplos na necessidade de atender ao pressuposto metodológico funda- mental da pluralidade de planos de regulação. Por conseguinte, vou tratar do problema da determinação do Direito aplicável no plano do Direito
sua circulação, que assim deixa de estabelecer um contacto material com territórios determinados. Sobre esta tendência ver XXXXXXXX XXXXXX, “Les situations juridiques individuelles dans un système de relativité générale”, RCADI 213 (198) 7-407, 46, ss.
(53) Cf. XXX XXXXX, “The Conflict of Laws of Contracts. General Principles”, RCADI 189 (1984) 223-447, n.º 64. Ver também LIMA PINHEIRO (n. 1) 531, ss.] e XXXXXXX XXXXXX XXXXXX, “Sobre o conceito de contrato internacional”, in Est. Xxxxxxx xxx Xxxxxx, Vol. I, 161-192, Coimbra, 2005, 187, ss. Cp. XXXXXXX XXXXXXX, “Natura e contenuto della internazionalità dei contratti”, in Studi Xxxxxxx Xxx, Vol. IV, 349-382, 357, ss., que critica o critério dos interesses pela margem de discricionariedade que deixa ao órgão de aplicação e por se basear em critérios extra-jurídicos.
Internacional Público, do Direito da União Europeia, do Direito autónomo do comércio internacional e da ordem jurídica estadual, mas, natural- mente, sempre de forma resumida e centrada nas especificidades que assu- mem relativamente aos contratos de empreendimento comum.
B) Regulação pelo Direito Internacional Público
Uma relação de cooperação na realização de atividades económicas inscreve-se seguramente na ordem jurídica internacional quando for esta- belecida por ato de Direito Internacional.
Basta, designadamente, que dois ou mais Estados ou organizações internacionais, no âmbito de atividades económicas por si realizadas, cele- brem um tratado com este objeto. Há diversos exemplos deste tipo de rela- ções, que em geral não correspondem à cooperação na realização de empreendimento comum: trata-se de atividades económicas que não são desenvolvidas em moldes empresariais e (ou) de empresas internacionais comuns economicamente auto-suficientes e geridas com independência ou, ainda, de contratos de mera coordenação(54).
Em alguns casos, porém, as empresas internacionais comuns são comparticipadas por entes públicos ou privados que desenvolvem uma ati- vidade empresarial e, por conseguinte, são suscetíveis de organizar a coo- peração interempresarial. No entanto, na maioria destes casos não se trata de cooperação interempresarial em sentido próprio, em virtude da autono- mia jurídica e económica destas empresas. Nestas empresas comuns há uma preocupação de autonomia organizativa e financeira, principalmente face aos Estados e entes públicos envolvidos, que está nos antípodas da interdependência e da coordenação de atividades empresariais. Tal não exclui em absoluto a possibilidade de a empresa internacional comum, embora organizativa e financeiramente autónoma, ser instrumental do ponto de vista económico, quando for instituída com um fim de tipo coo- perativo.
(54) XXXXXXXXX XXXX, “The Commercial Law of Nations as Reflected by CMND. 1 TO 10,000”, Brit. YBIL 60 (1989) 359-434, 421, ss., dá conta da celebração de numerosos “tratados, usual- mente descritos como acordos de cooperação ou co-produção” que em Direito privado seriam referi- dos como joint ventures. O primeiro caso referido é o dos Films Production Agreements celebrados entre o Reino Unido e a França, Itália, Canadá e Noruega. XXXX XXXXXXX, “Les accords bilatéraux de coopération scientifique et technique”, Ann. fr. dr. int.14 (1968) 692-700, 682, ss.] refere a existência de numerosos tratados de cooperação científica e técnica entre os quais se contam aqueles que têm em vista a realização de um determinado empreendimento ou realização em conjunto de certas atividades.
Em segundo lugar, temos negócios jurídicos de cooperação na reali- zação de empreendimento comum, que não sendo tratados, são por ato de Direito Internacional submetidos a um regime internacional e a um dis- positivo de resoluções de diferendos ao nível internacional. Os mais importantes, entre estes casos, são os que concernem a contratos celebra- dos por um Estado ou ente público autónomo com um nacional de outro Estado.
A excecional envergadura de certos empreendimentos comuns e os seus condicionamentos e implicações no domínio jurídico-público, che- gam mesmo a obrigar à celebração de tratados bilaterais tendo por objeto, não só a cooperação intergovernamental, mas também o enquadramento e, até certo ponto, a definição do regime aplicável à colaboração privada na realização de um determinado empreendimento comum(55). Por exemplo,
o Tratado Sobre a Construção e Exploração por Sociedades Privadas Concessionárias de uma Ligação Fixa Trans-Mancha, assinado em 1986, entre a França e o Reino Unido.
Outra hipótese é a de contrato de cooperação interempresarial cele- brado por particulares ser anexado ao tratado internacional ou por ele aprovado. Por exemplo, o Acordo internacional para a construção de um avião civil supersónico, foi assinado, em 1962, pelos Governos da França e do Reino Unido(56), com vista à construção do Concorde.
Uma terceira hipótese, é a de ser atribuída a uma jurisdição quási-
-internacional competência para decidir os litígios emergentes de um con- trato de empreendimento comum, sem que o regime do contrato seja, ainda que parcialmente, definido por normas contidas num tratado interna- cional. Também neste caso os contratos são regulados direta e imediata- mente pelo Direito Internacional Público(57).
O exemplo mais saliente é o dos “contratos de investimento” celebra- dos entre um Estado, ou um ente público autónomo, e um nacional de outro Estado, em que as partes consentem que os litígios deles emergentes sejam resolvidos por arbitragem organizada pelo Centro Internacional para a Resolução de Diferendos Relativos a Investimentos (CIRDI).
(55) XXXXXXXX XXXX, “Droit international économique, droit du développement, lex mercatoria: concept unique ou pluralisme des ordres juridiques?”, in Études Xxxxxxxx Xxxxxxx, 97-107, Paris, 1983, 107 assinala que frequentemente o contrato “chave na mão” “na sua moderna formulação” e numerosos contratos de empreendimento comum têm “a sua fonte neste mecanismo complexo de dupla cooperação”.
(56) In Ann. fr. dr. int. [11 (1965) 174].
(57) Ver, com mais desenvolvimento e referências, XXXX XX XXXX XXXXXXXX, Direito Comercial Internacional, Coimbra, 2005, 153, ss.
Diversos autores defenderam que esta categoria de contratos poderia ser alargada a casos em que não concorre um ato geralmente reconhecido como sendo de Direito Internacional. Mencione-se com respeito a certos contratos de Estado, i.e., contratos celebrados entre Estados e nacionais de outros Esta- dos, a doutrina da ordem jurídica de base (VERDROSS, XXXXXXX XXXX)(58) e a dos contratos quási-internacionalpúblicos [BÖCKSTIEGEL, XXXXX XXXXXXX, XXXXX- XXXXXXXXXXXX(59), entre nós, XXXXX XXXXXXXXX XXXXXXX e XXXXXX XX XXXXXXX](60).
Este alargamento parece-me de admitir mas só com respeito a contra- tos de Estado em que se verifiquem dois pressupostos(61):
— não se encontrem exclusivamente submetidos ao Direito e à juris- dição dos tribunais do Estado Contratante;
— sejam, pelos procedimentos observados por parte do contraente público e pela posição dos órgãos públicos que intervêm na sua celebração ou nela consentem, materialmente comparáveis a tra- tados internacionais.
Uma das consequências desta visão das coisas será a subtração destes contratos quási-internacionalpúblicos às normas de conflitos atrás referi- das e a aplicação de regras e princípios de Direito Internacional de Confli- tos, i.e., de Direito de Conflitos de fonte internacional aplicável às situa- ções que relevam na ordem jurídica internacional.
A Convenção CIRDI é uma convenção quási-universal e, por con- seguinte, as soluções conflituais aí contidas podem constituir a base
(58) Cf. XXXXXX XXXXXXXX, “Die Sicherung von ausländischen Privatrechten aus Abkommen zur wirtschaftlichen Entwicklung mit Schiedsklauseln”, Zeitschrift für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht 18 (1957/1958) 635-651; Id., “Gibt es Verträge die weder dem innerstaatlichen Recht noch dem Völkerrrecht unterliegen?”, ZRvgl. 6 (1965) 129-134, e XXXXXXX XXXX, “Problèmes relatives aux contrats passés entre un Etat et un particulier”, RCADI 128 (1969) 95-240; Id., “Les clauses de sta- bilisation ou d’intangibilité insérées dans les accords de développement économique”, in Mélanges Xxxxxxx Xxxxxxxx, 301-328, Paris; Id., “Droit international et contrats d’Etat”, in Le droit internatio- nal: unité et diversité, Mélanges Xxxx Xxxxxx, 549-582, 1981; Paris; Id., “Principes généraux du droit et contrats d’État”, in Études Xxxxxxxx Xxxxxxx, 387-414, Paris, 1982.
(59) Cf. XXXX-XXXXX XXXXXXXXXXX, Der Staat als Vertragspartner ausländischer Privatunterneh- men, Francoforte-sobre-o-Meno, 1971, 178, ss., 184, ss., 233, ss. e 303, ss.; XXXXX XXXXXXX, Die interna- tionale Konzession, Viena e Nova Iorque, 1974, 345, ss. e 483, ss.; Id., “Bemerkungen zur Lehre von Xxxxxx Xxxxxxxx über den ‘quasi-völkerrechtlichen’ Vertrag im Lichte der neuersten Entwicklung — Zugleich ein Beitrag zur Theorie über die vertraglichen Rechtsbeziehungen zwischen Staaten und transnationalen Unternehmen“, in Fest. Xxxxxx Xxxxxxx, 379-401, Berlim, 384, ss.; e XXXXX XXXXX-XXXXX- XXXXXXX, International Economic Law, 3.ª ed., 1999, 44, ss.
(60) Manual de Direito Internacional Público, 3.ª ed., Coimbra, 1993, 176, ss.
(61) Xxx XXXX XXXXXXXX (n. 1) § 15 C.
para o desenvolvimento do Direito Internacional Público geral neste domínio.
Portugal também é parte em diversos tratados bilaterais em matéria de investimento internacional que, sob certas condições, submetem os lití- gios emergentes dos contratos celebrados entre o investidor e um dos Esta- dos contratantes a arbitragem CIRDI, mas também a tribunais ad hoc, estabelecidos, designadamente, de acordo com o Regulamento de Arbitra- gem da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Interna- cional (CNUDCI).
Passo agora a examinar muito sumariamente as soluções contidas no art. 42.º da Convenção CIRDI.
O n.º 1 do art. 42.º da Convenção CIRDI determina, em primeiro lugar, que o “tribunal julgará o diferendo em conformidade com as regras de direito acordadas entre as partes”. Isto é geralmente entendido no sen- tido de se poder escolher Direito não estadual ou um conjunto individuali- zado de regras.
Na falta de acordo sobre as regras jurídicas aplicáveis, “o tribunal deverá aplicar a lei do Estado Contratante parte no diferendo (incluindo as regras referentes aos conflitos de leis), bem como os princípios de direito internacional aplicáveis”.
No que toca à definição da posição recíproca do Direito do Estado Contratante e dos princípios de Direito Internacional, prevaleceu o entendi- mento segundo o qual o tribunal deve, primeiro, averiguar a solução perante o Direito do Estado Contratante e, em seguida, indagar da sua com- patibilidade com o Direito Internacional. Este último Direito prevalece em caso de conflito. Por acréscimo, a jurisprudência recorre ao Direito Interna- cional para suprir as lacunas do Direito do Estado Contratante.
Nesta ordem de ideias, poderá então dizer-se que ao Direito Interna- cional é atribuída uma competência condicionante e complementar.
Em alguns casos em que a pretensão do investidor se fundamenta na violação de regras contidas em tratados bilaterais de proteção do investi- mento, os árbitros têm admitido que a posição recíproca do Direito do Estado Contratante e dos princípios de Direito Internacional depende muito das circunstâncias do caso concreto. Estes casos têm sido decididos essencialmente com base nos tratados bilaterais e no Direito Internacional Público geral(62).
(62) Ver, com mais desenvolvimento, XXXX XX XXXX XXXXXXXX, “A arbitragem CIRDI e o regime dos contratos de Estado”, in Est. Xxxxx xx Xxxxx Xxxxx, Vol. III, 225-245, Coimbra, 2010 [=Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação 1 (2008) 75-105].
C) Regulação pelo Direito da União Europeia
O Direito da União Europeia apresenta uma vocação mais ampla que o Direito Internacional Público atual para regular imediatamente situações transnacionais(63). Com efeito, segundo o entendimento seguido pelo Tri- bunal de Justiça da União Europeia (TUE), e que merece certo favor na doutrina portuguesa, o Direito da União Europeia auto-executório tem efi- cácia para os particulares independentemente do Direito interno dos Esta- dos-Membros(64).
A seguir-se este entendimento, o Direito da União Europeia é suscetí- vel de eficácia direta para os particulares e, por conseguinte, certas rela- ções entre particulares (bem como entre particulares e entes públicos) podem ser imediatamente conformadas e reguladas pelo Direito da União Europeia.
Por exemplo, o Agrupamento Europeu de Interesse Económico [AEIE] é um tipo associativo de cooperação na realização de atividades económicas que é disciplinado primariamente pelo Reg. (CEE) n.º 2137/
/85. O seu estatuto é primariamente definido pelo Direito da União Euro- peia(65).
No entanto, deve reconhecer-se que a relevância das relações entre particulares na esfera institucional da União Europeia é limitada: as juris- dições competentes para conhecerem dos litígios emergentes das relações entre particulares são normalmente estaduais ou arbitrais. Estas jurisdições não estão hierarquicamente subordinadas ao TUE.
Em minha opinião, as jurisdições estaduais, quando aplicam o Direito da União Europeia, fazem-no por força de normas da ordem jurídica esta- dual (mormente as normas constitucionais de receção)(66). Xxxxx que este entendimento pode ser mantido mesmo perante disposições constitucio- nais como a que, após a revisão constitucional de 2004, consta do art. 8.º/4 CRP(67), e que a situação não foi substancialmente alterada pelo Tratado
(63) Cf. G. XXXXXXX, “Le droit international privé des Communautés européennes”, RCADI 191 (1985) 9-182, 19.
(64) Ver XXXX XX XXXX XXXXXXXX, Direito Internacional Privado, Vol. I, Introdução e Direito de Conflitos/Parte Geral, 3.ª ed., Lisboa, 2014, § 5 B, com mais referências.
(65) Xxx XXXX XXXXXXXX (n. 1) 834, ss., com mais referências.
(66) Xxxxxxx XXXX XXXXX e XXXXXXX XX XXXXX, EU Law, 5.ª ed., Londres, 2011, 300, é também este o entendimento dominante na maior parte dos Estados-Membros.
(67) Ver XXXXXX XXXXXX XXXXX, “Constituições dos Estados e eficácia interna no Direito da União e das Comunidades Europeias — em particular sobre o Artigo 8.º, n.º 4, da Constituição Portuguesa”, in Est. Xxxxxxxx Xxxxxxx, Vol. II, 295-331, Coimbra, 2006; e XXXXX XXXXXXX, “O artigo 8.º da Constitui- ção e o Direito Internacional”, in Est. Xxxxx Xxxxxxx do Amaral, 415-458, Coimbra, 2010, 435, ss.
de Lisboa. Com efeito, por exigência de alguns Estados, a referência ao primado não consta do texto dos Tratados, mas apenas de uma declaração anexa ao Tratado de Lisboa (Declaração n.º 17), cujo valor jurídico é con- troverso(68).
Em suma, a situação atual caracteriza-se por um certo compromisso ou transição entre o quadro que corresponde ao relacionamento do Direito Internacional derivado clássico com o Direito interno dos Estados por ele vinculados e o que resulta da integração das ordens jurídicas destes Esta- dos numa ordem jurídica complexa.
D) Regulação pelo Direito autónomo do comércio internacional
Por forma geral, as teses favoráveis à lex mercatoria, ou Direito autó- nomo do comércio internacional, encontram nos contratos de empreendi- mento comum um privilegiado campo de aplicação(69).
Por Direito Autónomo do Comércio Internacional, entendo aquelas regras e princípios aplicáveis às relações do comércio internacional que se formam independentemente da ação dos órgãos estaduais e supraesta- duais, a nova lex mercatoria. Tenho em vista, designadamente, os usos e costumes do comércio internacional, o costume jurisprudencial arbitral e as regras criadas no âmbito da autonomia associativa dos operadores do comércio internacional ou por entidades gestoras de mercados regulamen- tados de instrumentos financeiros.
Em tema de contratos internacionais de empreendimento comum, as monografias mostram pouco entusiasmo quanto à aplicação da lex merca-
(68) Cp. art. 51.º do Tratado da União Europeia, segundo o qual os Protocolos e Anexos dos Tratados fazem deles parte integrante, e FAUSTO DE QUADROS, Direito da União Europeia, 3.ª ed., Coim- bra, 2013, 536, ss.
(69) Cf. XXXXXXXX XXXXX, Die Rechtsgrundlagen der internationalen Kartelle, Berlim, 1929, 39, ss.; XXXXXXXXX XXXXXXX, “La lex mercatoria dans les contrats et l’arbitrage international: realité et perspectives”, Clunet 106 (197) 475-505, 491, ss.; XXXXX XXXXXXXX, “L’avenir du droit international privé” (1973), in Choix d’articles rassemblés par ses amis, 315-331, Paris, 1976, 322, ss.; Id., “L’ état du droit international privé en France et dans l’europe continentale de l’ouest” (1973), in Choix d’arti- cles (cit.), 11-31, 18, ss.; Id., Les contrats en droit international privé comparé, Montréal, 1981, 7, ss.; XXXXXXXX XXXX (n. 55) 100 considerando que os empreendimentos comuns [entreprises conjointes] são um dos domínios em que a lex mercatoria revela o seu dinamismo perante um “conjunto de regras assaz pobre apresentado pelos Direitos estaduais”. Propostas específicas de enquadramento e regula- ção de contratos de empreendimento comum por Direito autónomo do comércio internacional são as avançadas por XXX XXXXXXX (n. 3), XXXXXXX (n. 5) 35, ss.; e XXXXXX XXXXXXX e XXXXXX X’XXXXXX, Coope- razione tra imprese e appalto internazionali (Joint-ventures e Consortium Agreements), 1991. Sobre estas propostas, ver XXXX XXXXXXXX (n. 1) § 18B.
toria(70). A vigência de regras objetivas da lex mercatoria neste domínio é praticamente ignorada.
Não deve, porém, subestimar-se as consequências práticas, para a regulação destes contratos, que já decorrem da tendência para uma auto- regulação negocial exaustiva, da padronização do conteúdo negocial e do recurso à arbitragem. Em determinados ramos de atividade já se desen- volveram mesmo tipos do tráfico negocial(71).
No ramo da prospeção e exploração petrolífera, por exemplo, esta uniformização contratual repousou, em grande parte, em práticas esta- duais, nos modelos contratuais predispostos pelos Estados produtores, mas noutros ramos, designadamente no que se refere aos contratos internacio- nais de cooperação para a celebração e execução de um contrato de fornecimento de bens ou prestação de serviços, em especial para a realiza- ção de empreitadas de construção civil, resultou principalmente de guias e modelos elaborados por associações industriais ou profissionais interna- cionais.
A maior parte destes modelos manifesta uma certa aspiração à auto- suficiência do contrato, tanto no que se refere a determinação dos efeitos que o contrato visa produzir como na previsão de todas vicissitudes que possam influir sobre o desenvolvimento da relação contratual.
Perante um grau elevado de padronização contratual, que inclua uma regulação minuciosa de todos os aspetos da relação, a relevância dos regi- mes jurídico-materiais do Direito estadual competente tende a restringir-se às suas normas e princípios imperativos. As normas imperativas que inte- gram o regime típico dos contratos entre comerciantes ou empresários — ou que podem ser transpostas para a fixação do regime de contratos atípi- cos entre os mesmos celebrados — limitam-se geralmente a questões par-
(70) Cf. LANGEFELD-WIRTH (n. 5), conquanto admitindo que uma remissão para princípios não- estaduais pode ser de preferir, enquanto solução de recurso, à falta de acordo sobre o Direito aplicável; XXXXXXXX/XXXXXX-XXXXXXX (n. 5) 111; XXXX XXXXXXX, International Joint Ventures: A Practical Guide, St. Xxxx, Minn., 1992, 198 e 204, ss., não referindo a lex mercatoria, e considerando que a imprevisi- bilidade das soluções a que os árbitros chegarão numa decisão segundo os princípios gerais poderá suprimir as vantagens da aplicação de um Direito neutral a contratos de empreendimento comum cele- brados entre Estados e particulares; HERZFELD (n. 4) [31, ss.; menos reservado, mas também não enca- rando a lex mercatoria como Direito objetivo aplicável a estes contratos, XXXXXX XXXXX, Das Joint-Ven- ture im internationalen Privatrecht, Basileia e Francoforte-sobre-o-Meno, 1992, 51, ss. Com respeito aos joint ventures em países em desenvolvimento, XXXXXX XXXXXXXXXXXX, Das Wirtschafts- und Ver- tragsrecht transnationaler Gemeinschaftsunternehmen in Entwicklungsländern, Berlim e Nova Ior- que, 1991, 265, ss., admite a existência de usos do comércio e “conceções jurídicas uniformes”, limi- tando a sua relevância a uma função interpretativa.
(71) Xxx XXXX XXXXXXXX (n. 1) § 2 B.
ciais bem delimitadas. Daí decorre que tais relações são, em vasta medida, objeto de uma conformação e regulação autónomas.
Para além disso, verifica-se a reiterada utilização de modelos contra- tuais, ou pelo menos de certo número de cláusulas, e, com ela, a existência de usos ou complexos de usos do comércio que podem constituir a base de formação de Direito consuetudinário, mas que, independentemente disso, são sempre relevantes na arbitragem transnacional.
A jurisprudência arbitral também pode contribuir para a formação de regras autónomas, mas ainda não deu corpo um regime autónomo aplicá- vel aos contratos internacionais de empreendimento comum.
Tudo isto não obsta a que na decisão arbitral de litígios emergentes de contratos internacionais de empreendimento comum possam ser apli- cadas regras e princípios autónomos, pelo menos quando as partes os escolham ou constituam costumes ou usos do comércio(72).
E) Regulação pela ordem jurídica estadual
Embora a necessidade de atender a diferentes modalidades de con- trato de empreendimento comum não se limite à regulação pela ordem jurídica estadual, ela assume especial relevância perante o Direito de Con- flitos geral, aplicável pelos tribunais estaduais.
Em todas modalidades de contrato de empreendimento comum há geralmente uma pluralidade de contratos, designadamente o contrato-base e acordos de execução. O que coloca desde logo a questão de saber se os acordos de execução estão submetidos à mesma lei que o contrato-base ou a uma lei diferente.
Nas modalidades em que se institui uma empresa comum é indiscutí- vel que há também que ter em conta o estatuto institucional do ente cole- tivo, designadamente a lei pessoal da sociedade que explora a empresa comum. Mas mesmo quando se institui apenas uma organização de coorde- nação, coloca-se a questão de saber se esta organização é regida por um estatuto institucional que pode ser diferente da lei que rege o contrato-base.
Vou começar pelo problema do estatuto institucional.
As pessoas coletivas têm como lei pessoal a lei do Estado onde têm a sede principal e efetiva da administração (art. 33.º/1 CC). O art. 3.º/1 C. Soc. Com. manda também atender à lei da sede estatutária das sociedades
(72) Ver XXXX XX XXXX XXXXXXXX, Direito Internacional Privado, Vol. II — Direito de Conflitos/
/Parte Especial, T. I, 5.ª ed., Lisboa, 2023, § 77 B e C, com mais referências.
comerciais nas relações com terceiros e, na prática, é a lei da sede estatutá- ria que é normalmente aplicada às sociedades comerciais(73).
Quanto ao Direito aplicável à filial comum, importa distinguir con- forme a sua gestão está apenas submetida a diretrizes globais convertidas em atos de gestão corrente pela administração da filial ou são de facto geridas pelas partes do contrato de base. Neste segundo caso, na medida em que seja relevante a sede da administração, esta localiza-se no lugar onde as decisões são tomadas pelas partes do contrato de empreendimento comum(74).
E relativamente aos entes organizados sem personalidade jurídica? Segundo o entendimento dominante, nas doutrinas germânica e portuguesa, as normas de conflitos reguladoras das pessoas coletivas são aplicáveis ana- logicamente a certos entes organizados sem personalidade jurídica(75).
A atribuição de um estatuto institucional deve basear-se na conforma- ção concreta e global do ente e, no mínimo, há-de pressupor uma unidade que atua no tráfico jurídico como ente individualizado, graças a mecanis- mos jurídicos que permitam a formação de um vontade coletiva e a impu- tabilidade de atos praticados em seu nome. De entre os outros traços caracterizadores a ter em conta, salientam-se o grau de estruturação orgâ- nica, a existência de um património autónomo(76), a fixação de um sede(77) e o emprego de uma denominação social(78).
Já não se justifica uma aplicação analógica das normas de conflitos reguladoras das pessoas coletivas nos casos em que o Direito considere externamente relevantes meras relações contratuais de cooperação ou aquelas em que exista uma organização meramente interna.
É o que manifestamente se verifica, por exemplo, quando as partes de um consórcio estabeleçam um órgão de coordenação das suas atividades e designem um chefe de consórcio, sem que o consórcio seja invocado perante terceiros e atuando o chefe do consórcio, na relação com terceiros, em seu próprio nome e não na sua qualidade funcional.
(73) Xxx XXXX XXXXXXXX (n. 72) § 59 D.
(74) Xxx XXXXXXXXX/MARTINY/GÖTHEL, Internationales Vertragsrecht. Das internationale Priva- trecht der Schuldverträge, 9.ª ed., Colónia, 2022, n.º 24.11.
(75) Ver LIMA PINHEIRO (n. 72) § 58 B, com mais referências.
(76) Afeto à atividade da organização e que responda pelas dívidas resultantes desta atividade, com ou sem exclusão da responsabilidade pessoal dos seus membros.
(77) EBENROTH (n. 5) 266 adverte que a sede da empresa comum constituída ao abrigo do con- trato de joint venture não pode ser vista como centro organizativo do acordo de base; uma vez que são as partes que, de facto, dirigem o joint venture, como seu centro organizativo deve antes considerar-se o lugar onde se realizam as reuniões regulares das partes.
(78) Cp., por forma acentuadamente restritiva, IPRG Komm./VISCHER/WEIBLE, Zürcher Kom- mentar zum IPRG, 3.ª ed., Zurique, Basileia e Genf, 2018, Art. 150 n.os 23-25, e XXXXX (n. 70) 61, ss.
Nestes casos, o problema da aplicabilidade das normas relativas à administração ou à representação terá de ser examinado em função das relações individualizadas. Nas relações internas, entre os sócios, tais dis- posições serão aplicáveis quando integrarem a lex contractus. Nas rela- ções com terceiros, haverá que ter em conta, em primeiro lugar, a lei apli- cável a estas relações bem como a que for competente para reger a representação voluntária(79).
No caso de relações de cooperação meramente obrigacional ou em que se institui apenas uma organização interna, aplica-se ao contrato de empreendimento comum o Regulamento Roma I(80).
Quando, por se instituir uma empresa comum ou uma organização externa, entra em jogo um estatuto institucional, coloca-se a questão de saber se o contrato-base de empreendimento comum fica submetido a este estatuto. Alguns autores respondem afirmativamente(81). Não é esta a minha posição.
O papel da organização comum é muito variável. Frequentemente trata-se apenas de coordenar as atividades desenvolvidas por cada uma das partes e de assegurar a realização de certas tarefas complementares ou marginais. Esta organização pode estar submetida a um regime até certo ponto semelhante ao das pessoas coletivas; mas as principais atividades necessárias à realização do empreendimento comum são desenvolvidas em nome e por conta dos seus membros.
Também quando se constitui uma ou mais filiais comuns, se torna necessário, na maioria dos casos, regular a colaboração num contrato-
-base, limitando-se o ato constitutivo às menções legalmente exigidas. Além das disposições parassociais, que dizem respeito à atuação dos sócios nos órgãos da sociedade, é o contrato-base e outros negócios com- plementares que regulam toda a teia de relações que se estabelecem.
Em minha opinião, o próprio contrato de sociedade está, em princípio, submetido às normas de conflitos reguladoras das obrigações voluntárias(82).
(79) Ver, sobre o ponto, XXXXX XXXXXXX, XXXXXX XXXXX e XXXXX XXXX, Internationales Vertrags- recht, 2.x, Xxxxx, 2000, 314; XXXXXX XXXXX, XXXXXXX XXXXXXXXX e XXXXX XXX, Cases and Materials on Con- flict of Laws, 9.ª ed., Westbury, Nova Iorque, 1990, 971, ss. e 975, ss.; Cp. art. 3º/a da Convenção sobre a Lei Aplicável aos Contratos de Mediação e à Representação (1978)
(80) Ver MünchKomm./XXXXXXX [2021: Art. 4 Rom I-VO n.º 350]; XXXXXXXXX/XXXXXXX/XXXXXX (n. 74) n.º 24.7; ver também MünchKomm./KINDLER [2021: IntGesR n.º 730], relativamente ao Direito aplicável ao acordo de base, vindo a defender que em última instância se atenda ao ponto de referência preponderante da relação jurídica visada, designadamente o estatuto da empresa comum.
(81) Xxx XXXXXXXXX/XXXXXXX/XXXXXX (n. 74) n.º 24.25
(82) Xxx XXXX XXXXXXXX (n. 72) § 59 C, com mais referências.
O domínio de aplicação da lei reguladora do negócio constitutivo abrange todas as questões relativas à formação e validade do negócio que não sejam objeto de conexões especiais, bem como às obrigações geradas pelo negócio. No entanto, no que toca às pessoas coletivas constituídas com a intervenção de órgãos públicos, deve entender-se que as normas imperativas relativas ao contrato de sociedade integram o estatuto da cons- tituição e não o estatuto do negócio. Por conseguinte, serão aplicáveis as normas imperativas relativas ao contrato de sociedade que vigorem no Direito do lugar da constituição(83). Para além disso, a lei reguladora do negócio é a exclusivamente aplicável à interpretação e à integração do mesmo.
Quanto ao Direito de Conflitos aplicável a estes contratos é necessá- rio distinguir.
O Regulamento Roma I exclui do seu âmbito de aplicação as “ques- tões reguladas pelo direito das sociedades e pelo direito aplicável a outras entidades dotadas ou não de personalidade jurídica, tais como a constitui- ção, através de registo ou por outro meio, …” (art. 1.º/2/f). Esta formulação pode ser interpretada no sentido da exclusão dos negócios diretamente cons- titutivos de todos os entes com organização externa que sejam regulados enquanto tal pela lei competente para definir o seu estatuto institucional. A estes negócios constitutivos, geradores de obrigações, e que não estejam submetidos a um estatuto especial, aplicam-se as normas de confli- tos internas reguladoras das obrigações voluntárias (arts. 41.º e 42.º CC)(84). Em suma, as normas de conflitos sobre obrigações voluntárias de fonte interna são aplicáveis aos contratos de empreendimento comum que além de estabelecerem uma relação obrigacional instituam diretamente
pessoas coletivas ou organizações a elas assimiláveis(85).
Quanto aos efeitos organizativos ou institucionais, haverá que aten- der ao disposto nas normas de conflitos em matéria de pessoas coletivas, quando a organização constituída pelo contrato for uma pessoa coletiva ou quando, tratando-se de uma organização sem personalidade jurídica, se justificar a aplicação analógica destas normas de conflitos.
(83) Naturalmente que os efeitos da invalidade do negócio sobre o ente coletivo ficarão depen- dentes da sua lei pessoal.
(84) Haverá que ter em conta, além das normas contidas nos arts. 41.º e 42.º CC, ao Direito de Conflitos dos negócios jurídicos em geral (arts. 35.º, ss.), bem como ao conjunto das normas sobre interpretação e aplicação das normas de conflitos que integram o sistema geral de normas de conflitos.
(85) MünchKomm./XXXXXXX [2021: Art. 4 Rom I-VO n.º 351] defende a aplicação das regras do Regulamento Roma I ao acordo de base que visa a instituição de uma empresa comum, mas distinto do contrato de sociedade propriamente dito. Ver também DRINHAUSEN (n. 31) n.os 13-15.
As relações contratuais de cooperação entre sujeitos inseridos em diferentes sociedades estaduais são um dos domínios em que o fenómeno da dispersão dos elementos de conexão se manifesta mais frequentemente e por forma mais acentuada.
Por vezes será muito difícil determinar o Direito aplicável a um con- trato de empreendimento comum.
Perante estas dificuldades, a escolha pelas partes do Direito aplicá- vel ao contrato de empreendimento comum é especialmente aconselhável (art. 3.º do Regulamento Roma I e art. 41.º CC)(86).
As partes podem submeter todo o esquema negocial a uma única lei, ou submeter os diversos negócios jurídicos que o integram a leis diferentes ou ainda submeter partes separáveis de cada contrato a leis diferentes. Tem sido assinalada a importância prática das designações parciais com res- peito aos contratos de empreendimento comum. Por um lado, há um com- preensível interesse na submissão do esquema negocial, no seu conjunto, a uma única lei(87). Evitam-se assim as contradições normativas e as dessin- tonias resultantes da aplicação de uma pluralidade de leis.
Por outro lado, porém, dada a frequente complexidade e longa dura- ção das operações envolvidas, são múltiplos os aspetos que as partes podem ter interesse em submeter a um estatuto especial. Alguns destes aspetos poderiam mesmo ser objeto de contratos separados, tornando-se com isso evidente o caráter separável da questão quando as partes os com- preendam num único contrato. São igualmente separáveis certas cláusulas características das relações contratuais de longa duração — por exemplo, as cláusulas relativas à adaptação do contrato e à renegociação — bem como certas cláusulas que são específicas dos contratos celebrados com Estados ou com outros sujeitos públicos, designadamente as cláusulas de estabilização e intangibilidade(88).
A escolha da lei aplicável pode ser expressa ou tácita. Um indício importante, mas não de per si conclusivo, da escolha tácita da lei de deter- minado Estado, é a atribuição de competência aos tribunais do mesmo Estado. A constituição da filial comum central segundo o Direito de deter- minado Estado também é um indício relevante(89).
(86) Ver, em sentido convergente, KLAFT/MENRATH (n. 31) n.º 34.
(87) Cf. XXXX XXXXX, “L’autonomie de la volonté des parties dans les contrats internationaux entre personnes privées. Rapport provisoire”, Ann. Inst. dr. int. 64-I (1991) 36-52, 42, e XXXXXXX (n. 5) 34.
(88) Xxx XXXX XXXXXXXX (n. 1) § 15 C. A possibilidade de submeter a cláusula de indexação a uma lei diferente é mencionada por XXXXX XXXXXXXX e XXXX XXXXXXX, “Rapport concernant la conven- tion sur la loi applicable aux obligations contractuelles”, JOCE C 282, 31/10, 17.
(89) Xxx XXXXXXXXX/XXXXXXX/XXXXXX (n. 74) n.º 24.31.
Na falta de escolha pelas partes da lei aplicável, os autores têm apontado diversos caminhos para evitar ou tornear dificuldades geradas pela dispersão de elementos de conexão nas relações contratuais de coope- ração económica.
Em geral, reconhece-se que não se afigura possível encontrar uma solução satisfatória mediante a consagração de uma regra de conflitos especializada de tipo tradicional, i.e., com um elemento de conexão deter- minado. Sugere-se antes que se explore todas as virtualidades dos critérios legalmente consagrados, tanto no que se refere à determinação da presta- ção característica quanto na concretização do critério da conexão mais estreita com base noutros elementos(90). Mas isto nem sempre conduz a soluções satisfatórias.
Como o contrato de empreendimento comum não integra nenhum dos tipos referidos no art. 4.º/1 do Regulamento Roma I, o contrato será regulado pela lei do país da residência habitual do devedor da prestação característica, se esta for determinável (art. 4.º/2).
Todavia, a doutrina da prestação característica foi pensada para os contratos comutativos, principalmente para aqueles que concernem à troca de bens e serviços por dinheiro. A sua transposição para os contratos de empreendimento comum e, mais em geral, para os contratos de fim comum, suscita dificuldades que são, em muitos casos, insuperáveis(91).
Isto não obsta a que os critérios geralmente utilizados para identificar o devedor da prestação característica sejam transponíveis para certos con- tratos de empreendimento comum.
É o que se verifica, em primeiro lugar, com aqueles contratos de empreendimento comum em que uma das partes contribui preponderante- mente com transferência de tecnologia, quando as contribuições realiza-
(90) Cf. XXXXXXXXX/XXXXXXX/XXXXXX (n. 74) n.º 24.33.
(91) Cf. XXXXX XXX XXXXXXXX, “General Report on Contractual Obligations”, in European Pri- vate International Law of Obligations, org. por Xxxxx, et al., 1-41, Xxxxxxx, 1975, 9]; XXXXXXXX/VON XXXXXXXX (n. 4) 208; XXXXX (n. 53) 388; XXXXXX XXXXXX XXXXXXX, “El Convenio de Roma de 19 de junio de 1980 sobre ley aplicable a las obligaciones contractuales”, in Tratado de Derecho Comunitario Europeo, Vol. III, 753-825, Madrid, 1986, 785; MünchKomm./MARTINY [2021: Art. 4 Rom I-VO n.º 350]; XXXXXXXXX/XXXXXXX/XXXXXX (n. 74) n.os 24.35-24.36; XXXXX (n. 70) 96; XXXXXXX XXXXXXX, Il col- legamento più stretto nel diritto internazionale privato dei contratti, Milão, 1991, 153; XXXXXXX XXXXXX TELES, A prestação característica: um novo conceito para determinar a lei subsidiariamente aplicável aos contratos internacionais. O artigo 4.º da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais (relatório mestrado policopiado), s.l, 1994, 62, ss. e 111, ss.; XXXXXXX XXXXXXXXX, “La legge applicabile ai contratti di cooperazione tra imprese secondo la Convenzione di Roma”, in La Conven- zione di Roma sul diritto applicabile ai contratti internazionali, org. por Xxxxxxxxx e Frigo, 2.ª ed., Milão, 1994, 174, ss. e 177. Ver ainda XXX XXXXXXXXX, “Die Behandlung der Innominatverträge im inter- nationalen Privatrecht”, in Innominatverträge, in FS Xxxxxx Xxxxxxx, 501-513, 1988, 508.
das pelas outras partes consistirem principalmente em dinheiro. Será possí- vel, neste caso, contrapor a prestação que realiza a transferência de tecnolo- gia, como característica, às prestações pecuniárias das outras partes(92). Assim, por exemplo, se duas partes, estabelecidas em países diferentes, colaboram na realização de um empreendimento comum em terceiro país, e uma delas contribui preponderantemente com transferência de tecnologia, enquanto a outra contribui exclusivamente com dinheiro.
Isto é, porém, contestado por outros autores, que assinalam que a contribuição de transferência de tecnologia não caracteriza o contrato de empreendimento comum(93).
Seja como for, na maioria dos casos não será possível estabelecer uma contraposição tão clara entre as contribuições realizadas pelas partes, porque todas se obrigam a transmitir ou licenciar direitos de propriedade intelectual ou saber-fazer, ou nenhuma delas assume um dever principal com esse conteúdo ou apesar de só uma delas contrair tal dever as presta- ções que as outras devem realizar também não consistem principalmente na entrega de uma quantia pecuniária.
Um outro grupo de casos em que parece possível individualizar uma prestação característica é aquele em que uma das partes assume o encargo da administração da organização instituída diretamente pelo contrato de empreendimento comum. Esta parte obriga-se a realizar uma prestação que assume inegável especificidade, a par de outra ou outras prestações, e o conjunto das suas prestações reveste-se de maior complexidade que as prestações devidas pelas restantes partes. Razão por que parece possível considerá-la como sendo a devedora da prestação característica(94). Se, por
(92) Cf. XXXXXXXXX/XXXXXXX/XXXXXXXXXXXX, 4.ª ed., 1988, n.º 816.
(93) Cf. XXXXXXXXX/XXXXXXX/XXXXXX (n. 74) n.os 24.35-24.36. Convergentes, em resultado, XXXXX (n. 70) 103 e 110, por entender que sendo o contrato caracterizado pelo elemento de cooperação, só em casos excecionais, quando outros critérios não permitam estabelecer a conexão mais estreita, será de considerar a prestação da parte que transfere a tecnologia como caracterizadora da relação de base; e EUGÉNIA GALVÃO TELES (n. 91) 63, ss., entendendo que nestes contratos não se pode considerar que a prestação não pecuniária é característica, porque a prestação em dinheiro não constitui uma retri- buição ou pagamento duma prestação, mas sim uma contribuição para um fim comum. No entanto, este último entendimento baseia-se num particular critério “de identificação da prestação caracterís- tica” (o da “prestação contra pagamento ou retribuição”) que por se prender a considerações específi- cas dos contratos sinalagmáticos não é transponível para os contratos de fim comum.
(94) Ver XXXXXXXX XXXXXXXXX, XXXXXXXX e XXXXXXX XXXXX, “Les accords de joint venture et les limi- tes du droit international privé”, in Conflits et harmonisation, Mélanges Xxxxxx xxx Xxxxxxxx, 747-
-768, Friburgo, 1990, 764, ss., invocando a jurisprudência do Tribunal federal suíço em matéria de sociedade simples; XXXX XXXXXXXXX, “La Convenzione di Roma del 1980 sulle obbligazioni contrattuali e le società commerciali”, Rivista del notariato 47 (1993) 1-14, 12 (a respeito do consórcio bancário). Observe-se ainda que XXXXX XXXXXXX e A. VON PLANTA, Internationales Privatrecht, 2.ª ed., Basileia,
exemplo, duas partes estabelecidas em países diferentes celebram um con- trato de consórcio para a realização de uma empreitada de construção civil num terceiro país, e uma delas assume o encargo de coordenar a execução da empreitada e de representar externamente o consórcio.
O que ainda deixa de fora todos aqueles casos em que o contrato de empreendimento comum não institui diretamente uma organização ou em que, instituindo-a, a sua administração não seja confiada exclusivamente a uma das partes.
Pode suceder que o contrato não institua diretamente uma organiza- ção, mas regule a constituição, por negócio separado, de uma empresa comum com personalidade jurídica, bem como a atuação das partes na condução dos assuntos sociais. Se a gestão da empresa comum for, pelo contrato-base, atribuída exclusivamente a uma das partes, será ainda possí- vel encontrar aí a individualização da prestação característica.
Tendo-se em primeira linha em vista aqueles joint ventures em que se institui uma empresa comum, foi ainda sugerido que se poderia considerar como característica a prestação da parte que exerce uma influência deter- minante sobre o joint venture e que realiza os principais investimentos, detendo uma participação maioritária(95). Todavia esta sugestão não pode ser aceite à face da doutrina da prestação característica, tal como se encon- tra consagrada no Regulamento Roma I. Nem a influência determinante nem o quantum da contribuição conferem à prestação realizada por uma das partes aquela especificidade que, segundo essa doutrina, permitiria caracterizar o conteúdo do contrato. Isto não quer dizer que tais elementos não possam ganhar alguma relevância para estabelecer a conexão mais estreita, quando elementos mais significativos se mostrem inconclusivos.
Nos contratos de objeto complexo, a individualização da prestação característica encontra dificuldades de outra ordem.
Se o contrato contém a par de um elemento de empreendimento comum um elemento comutativo, será na maioria dos casos individualizá- vel uma prestação característica neste segundo elemento. Pense-se, por exemplo, no contrato em que uma das partes se obrigue, por determinado preço, a construir e instalar e uma unidade fabril que será objeto de explo- ração conjunta durante certo período. Todavia, a possibilidade de indivi-
1982, 183, se pronunciam no sentido de submeter os contratos de sociedade à residência habitual do sócio que em primeira linha está encarregado dos negócios da sociedade.
(95) Cf. XXXXX XXXXXXXX, “Internationale Joint Ventures — verfahrens—, anwendungs- und schiedsgerichtsrechtliche Fragen”, in Kooperations- und Joint Venture Verträge, org. por Xxxxx-
-Schatz, 81-89, 1994, 95.
dualizar, como característica do elemento comutativo do contrato, a pres- tação da parte que constrói e instala a unidade fabril ou que assegura o transporte, não significa que o contrato deva, no seu conjunto, ser subme- tido à lei do respetivo devedor. Parece que só deverá ser assim se o ele- mento a que disser respeito for o elemento preponderante do contrato(96). Não sendo possível determinar a prestação característica, resta recorrer subsidiariamente ao critério geral da conexão mais estreita (art. 4.º/4)(97). Uma conexão manifestamente mais estreita com um Estado também pode, excecionalmente, afastar a lei de outro Estado primariamente aplicá-
vel ao contrato (art. 4.º/3 — cláusula de exceção).
É geralmente reconhecida, no domínio dos contratos obrigacionais, uma primazia dos interesses das partes. Como se observou anteriormente, as partes têm um interesse conflitual na aplicação da lei a que estão mais intimamente ligadas. De onde resulta que os elementos de conexão pessoais são os que em primeira linha devem servir para estabelecer a conexão mais estreita com o contrato. São também estes elementos de conexão que melhor podem traduzir a inserção do contrato de empreendimento comum na esfera económico-social de um Estado. Por certo que o empreendimento comum, em si considerado, pode apresentar-se mais ligado à vida econó- mica do Estado em cujo território é executado. Mas trata-se aqui de conec- tar a relação contratual de cooperação considerada no seu conjunto e não a atividade que resulta desta cooperação.
Se as partes do contrato de empreendimento comum têm a sede ou o estabelecimento relevante no mesmo país, pode partir-se do princípio que o contrato apresenta a conexão mais estreita com este país(98).
Já quando nem todas as partes se encontrarem ligadas ao mesmo país por laços tão importantes quanto o lugar da sede ou o estabelecimento, poderão ser decisivos elementos de conexão reais, designadamente o lugar da execução do contrato e, no caso da cooperação organizada, o lugar da sede da organização instituída diretamente pelo contrato.
Por outro lado, se estes laços não forem conclusivos no caso con- creto, nem a filial for regida a partir de outro Estado, há outros laços que podem ser relevantes, como o laço com Estado em que está localizada a
(96) Ver, sobre o ponto, VIRGÓS SORIANO (n. 91) 785. Ver também Considerando n.º 19 do Regu- lamento Roma I.
(97) Xxx XXXX XXXXXXXX (n. 1) 1215, ss.
(98) Em sentido convergente, ZWEIGERT/VON XXXXXXXX (n. 4) 208; XXXXXXXXX/XXXXXXX/XXXXXX- XXXXXX (n. 92) n.º 817; MünchKomm./MARTINY [2021: Art. 4 Rom I-VO n.º 351]. Ver ainda, em tese geral, XXX XXXXX XXXXX, Da Lei Aplicável ao Contrato de Trabalho Internacional, Coimbra, 1991, 541, ss.
parte que realiza a prestação principal ou que administra a organização ou a localização dos bens afetos à organização(99). Tem-se aqui primeira- mente em vista a organização instituída pelo contrato para coordenar o conjunto das atividades desenvolvidas pelas partes para a realização do empreendimento comum, a associação consorcial.
Quando se trate de cooperação meramente obrigacional, pode partir- se do princípio que a conexão mais estreita, num contrato celebrado entre partes de países diferentes e em que não é possível determinar a prestação característica, se estabelece com o país onde o contrato deve ser execu- tado(100). Esta solução encontrará, porém, dificuldades nos casos em que haja uma pluralidade de lugares de execução ou em que se trate de servi- ços transfronteiriços, como o são, por exemplo, os transportes ou as teleco- municações internacionais. No primeiro caso, é concebível que se atenda ao lugar de execução preponderante, quando exista. Um dos lugares onde ocorre uma parte importante da execução do contrato, ainda que não seja a preponderante, pode ser relevante para a determinação da conexão mais estreita, se coincidir com a sede ou o estabelecimento de uma das partes.
Passe-se agora a considerar o contrato de empreendimento comum que leve à constituição de uma empresa comum central. Normalmente trata-se de uma filial comum que é instituída por um negócio constitutivo separado. O lugar da sede da filial comum não constitui, por conseguinte, um elemento de conexão que se reporte a um dos elementos do contrato- base. No entanto, existe um nexo funcional entre o contrato-base e a filial comum, que pode ser tido em consideração para determinar a conexão mais estreita do contrato-base(101), quando as partes não tenham a sua sede ou estabelecimento relevante no mesmo país.
Se a sede da empresa comum é estabelecida no mesmo país em que uma das partes tem a sua sede ou estabelecimento relevante, será este o país que, em princípio, apresenta uma conexão mais estreita com o con- trato(102). Contudo, as circunstâncias do caso podem apontar em sentido
(99) Ver sem sentido convergente XXXXXXXXX/XXXXXXX/XXXXXX (n. 74) n.º 24.48.
(100) O supracit. ac. STJ 8/2/66 (n. 51) pronunciou-se sobre um relação contratual, que quali- ficou como contrato-promessa de associação (tendo em vista a “colaboração técnica” na realização de uma empreitada), estabelecida por uma empresa portuguesa aparentemente com um profissional inde- pendente ou empresário em nome individual estrangeiro. O caso é apreciado como se fosse meramente interno, sendo certo que se situava em Portugal a sede de uma das partes bem como o lugar de execu- ção do contrato.
(101) Ver também XXXXX (n. 70) 104. Para o efeito é irrelevante que o contrato-base contenha ou não uma promessa de constituição da sociedade.
(102) Em sentido convergente, ver ZWEIGERT/VON XXXXXXXX (n. 4) 208; XXXXXXXXX/XXXXXXX/
/KLEINSCHMIDT (n. 92) n.º 817.
diferente, designadamente quando o joint venture é constituído por força da lei de investimento estrangeiro do Estado da constituição e a parte local não dá um contributo material efetivo para a realização do empreendi- mento comum(103).
Não se verificando esta hipótese, deve ter-se em atenção que, nesta modalidade de cooperação, o contrato-base tem principalmente uma eficá- cia parassocial, a partir do momento em que é constituída a empresa comum. Tem sido defendido que os acordos parassociais apresentam uma conexão mais estreita com o país onde está sediada a sociedade(104). A solução parece em princípio de reter para os contratos de empreendi- mento comum ora em consideração, mas só quando elementos de conexão relativos às partes não apontem para outro país.
Como procurei demonstrar noutro lugar, mesmo nos sistemas que adotam a teoria da sede em matéria de estatuto pessoal das sociedades, e que, por isso, atendem formalmente à sede da administração, a sede rele- vante nesta matéria é, em princípio, a sede estatutária(105). No entanto, no que toca à determinação da lei aplicável ao contrato de empreendi- mento comum, a sede mais relevante para a concretização do critério da conexão mais estreita é a sede da administração. E a este respeito deve ter-se em conta a que a filial comum pode ser gerida, mesmo quanto aos atos de gestão corrente, pelas partes do contrato de empreendimento comum a partir de um Estado diferente do da sua sede. O laço com este Estado pode ser mais importante para a determinação da lei aplicável ao contrato.
Quanto aos contratos de empreendimento comum celebrados por particulares com Estados ou outros sujeitos públicos estaduais, o Regula- mento Roma I apenas é diretamente aplicável àqueles que não envolvam o exercício de poderes de autoridade (art. 1.º/1). Poderia pensar-se em conti- nuar a aplicar a Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais (1980) aos contratos com sujeitos públicos estrangeiros que envolvam o exercício de poderes de autoridade e não estejam submetidos
(103) XXXXXXXXX/XXXXXXX/XXXXXX (n. 74) n.º 24.46.
(104) Cf. SCHWANDER (n. 90) 510; IPRG Komm./XXXX XXXXXXXXXXX (n. 77) [Art. 117 n.º 191]; BAL- LARINO (n. 92) 972, ss., com diferenciação. Cp. MünchKomm./KINDLER [2021: IntGesR n.os 595-596, dis- tinguindo acordos obrigacionais dos sócios, submetidos às regras do Regulamento Roma I, por um lado, dos acordos sobre responsabilidade e dos acordos de voto, submetidos ao estatuto da sociedade, por outro; DRINHAUSEN (n. 31) n.º 16, distinguindo acordos dos sócios que afetam a estrutura da socie- dade, submetidos ao estatuto da sociedade, e outros acordos, submetidos às regras do Regulamento Roma I.
(105) Xxx XXXX XXXXXXXX (n. 72) § 59 B e D.
a Direito Internacional de Conflitos(106). No entanto, uma vez que o Regu- lamento Roma I visou substituir a Convenção de Roma, será mais defensá- vel a aplicação analógica do regime do Regulamento Roma I a esses con- tratos de Estado, com os ajustamentos que se imponham(107).
Já sabemos que, com muita frequência, o contrato-base é secundado por contratos de execução ou complementares separados. No seu con- junto, estes contratos formam um esquema negocial que tem subjacente uma mesma operação económica. Com base no nexo funcional que une os negócios de execução ou complementares ao contrato-base pode estabele- cer-se uma conexão acessória para estes negócios(108).
Esta conexão acessória pode fundamentar-se quer numa escolha tácita da lei que rege o contrato-base(109), quer, se os indícios não forem suficientes para estabelecer uma vontade tácita, com base na cláusula de exceção, se a lei primariamente aplicável for determinável com base nos arts. 4.º/1 ou 2, ou, caso contrário, com base no critério subsidiário da conexão mais estreita (art. 4.º/4)(110).
O nexo de acessoriedade constitui assim um dos elementos que relevam para o estabelecimento da conexão mais estreita. Por conseguinte, o contrato- base e os contratos de execução ou complementares deverão ser considerados como dizendo respeito a uma relação global, em princípio submetida à
(106) Ver, aparentemente neste sentido, XXXX XXXXXXX e XXXXX XXXXXXXXX, “De la convention de Rome au règlement Rome I”, R. crit. 97 (2008) 727-780, 733.
(107) Xxx XXXX XXXXXXXX (n. 62) I.C e (n. 72) § 65 A; Xxxxxxxxxx/XXXXXX [2011: Art. 1 Rom I-VO n.º 26 e Art. 4 n.º 626], mas só em relação ao art. 3.º, uma vez que defende a conexão supletiva com o Direito do sujeito público contratante; e MünchKomm./MATINY [2021: Art. 1 Rom I-VO n.º 6].
(108) Ver VISCHER/XXXXX/OSER (n. 79) n.os 270-271 e 276; XXXXX XXXXXXXX e XXXX XXXXXXX, Droit international privé, Vol. II, 7.ª ed., Paris, 1983, 300, ss.; XXXX XXXXX, “Kollisionsrechtliche Techniken für Langzeitverträge mit Auslandsberühung”, in Der komplex Langzeitvertrag. Strukturen und Inter- nationale Schiedsgerichtsbarkeit, org. por Xxxxx Xxxxxxxxx, 311-318, Heidelberga, 1987, 313; XXXXXXX XXXXX e XXXXX XXXXXXX, Internationales Privatrecht — ein Studienbuch, 9.ª ed., Munique, 2004, 665]; XxxxxXxxx./XXXXXXX [2021: Art. 4 Rom I-VO n.os 301, ss., e 309]; EUGÉNIA GALVÃO TELES (n. 91) 93; relativamente aos contratos complexos de longa duração, XXXXXXXXX XXX XXX XXXXXX, Akzessorische Ank- nüpfung und engste Verbindung im Kollisionsrecht der komplexen Vertragsverhältnisse, Heidelberga, 1989, 276, ss.; especificamente em relação aos contratos de joint venture, XXXXXXX XXXXXXXXX, “Rap- porti tra fonti normative negli accordi di joint venture con particolare riferimento ai paesi europei (già) socialisti”, RDIPP 27 (1991) 925-952, 951; XXXXX (n. 70) 98, ss.; e KNOEPFLER/MERKT (n. 94) 767. Cp. SCHNYDER (n. 95) 95, no sentido da submissão ao “seu próprio Direito” de “acordos especiais” tais como os contratos de gestão ou os acordos de saber-fazer. XXX XXXXXX e XXXX XXXXX, Allgemeine Lehren des internationalen Privatrechts, Zurique, 1986, 284, ss., referem-se à conexão acessória [akzessoris- che Anknüpfung] no sentido de conexão dependente. Cp. VON DER SEIPEN, op. cit., 48, ss.
(109) Xxx XXXXXXXXX/XXXXXXX/XXXXXX (n. 74) n.os 24.63, ss.; ver também XXXXXXXX/LAGARDE (n. 88) 49.
(110) Xxx XXXXXXXXX/XXXXXXX/XXXXXX (n. 74) n.º 24.68.
mesma lei que rege o contrato-base, seja a título de lei escolhida pelas partes ou de lei do país que apresenta a conexão mais estreita com este contrato. Só será de conectar separadamente os contratos de execução ou complementares quando as partes os submetam a uma lei diferente ou da avaliação do con- junto das circunstâncias resulte que não é justificada uma conexão acessória baseada numa designação tácita ou na cláusula de exceção(111).
Foi anteriormente assinalado que o Direito de Conflitos das obriga- ções voluntárias de fonte interna tem um papel a desempenhar na regula- ção de certos contratos de empreendimento comum que se encontram excluídos do âmbito de aplicação do Regulamento Roma I.
Nos termos do art. 41.º CC, as partes podem escolher a lei aplicável ao contrato, desde que escolham lei de um Estado que tem uma conexão atendível com o contrato ou tenham um interesse sério nessa escolha. Nos termos do art. 42.º CC, o contrato é submetido, na falta de escolha pelas partes, à lei da residência habitual comum ou da sede comum das partes e, na sua falta, à lei do lugar da celebração.
Nas mais das vezes os contratos de empreendimento comum, à seme- lhança do que se verifica com a generalidade dos contratos internacionais, são contratos entre ausentes, caso em que o elemento de conexão lugar da celebração constitui um laço jurídico que carece de ser concretizado mediante uma construção jurídica. Segundo o entendimento que tem sido defendido entre nós, é de proceder a uma transposição, com adaptações, do critério estabelecido no art. 224.º CC sobre o momento da perfeição da declaração negocial recetícia. De onde resulta que o contrato se considera celebrado, em princípio, no lugar onde seria normalmente recebida ou conhecida a aceitação(112).
Estas soluções são cada vez menos adequadas aos contratos interna- cionais(113), razão porque, apesar do seu reduzido campo de aplicação, a disciplina de certos contratos internacionais de empreendimento comum reforça a justificação para a sua reforma.
(111) Xxx XXXX XXXXXXXX (n. 1) § 23 B e XXXXXXXXX/XXXXXXX/XXXXXX (n. 74) n.º 24.73. Ver ainda VON DER SEIPEN (n. 108) 315, ss.
(112) Ver art. 25.º/II do Anteprojeto de 1951 e comentário, in Xxxxxxx XXXXXX XXXXXXX eF. XXX- XXXXX XXXXX, Direito Internacional Privado. Leis e Projectos de Leis. Convenções Internacionais, Coim- bra, 1988, 57]; XXXXXX XX XXXXXXXXX COLLAÇO 1954, Da Compra e Venda em Direito Internacional Pri- vado, Aspectos Fundamentais, Vol. I , Lisboa, 1954, 229, ss.; Id., Direito Internacional Privado. Sistema de normas de conflitos portuguesas. Das obrigações voluntárias (Lições proferidas no ano letivo de 1972/1973. Apontamentos de alunos), Lisboa, 1973, 58, ss.; art. 27.º/2 do Anteprojeto de 1964; XXXX XX XXXX XXXXXXXX, A Venda com Reserva da Propriedade em Direito Internacional Privado, Lisboa, et. al., 1991, 96]. Ver também ac. STJ 6/1/1977 [BMJ 263: 185].
(113) Xxx XXXX XXXXXXXX (n. 72) § 66 A.
V. Considerações finais
À semelhança do que assinalei anteriormente com respeito aos smart contracts(114), também o problema da determinação do Direito aplicável aos contratos de empreendimento comum é, em princípio, solucionável com base em técnicas conflituais “tradicionais”. O problema é que estas soluções nem sempre são satisfatórias.
A prestação característica pode ser determinável em alguns casos, mas nem sempre permite aplicar a lei com uma ligação especialmente sig- nificativa com o contrato. A cláusula de exceção só permite excecional- mente resolver o problema. Seria preferível uma solução do tipo da Con- venção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, em que a conexão mais estreita seja o critério de conexão primário e a doutrina da prestação característica só intervenha quando não é possível determinar claramente a conexão mais estreita com um determinado Estado.
No entanto, a dispersão dos elementos de conexão também pode reduzir o significado do critério da conexão mais estreita como critério de conexão. A conexão mais estreita nem sempre representará, neste caso, uma ligação significativa com o contrato. É o que se verifica nos casos em que o contrato de empreendimento comum celebrado entre parceiros de países diferentes seja executado parcialmente, por cada um deles, nos res- petivos países, mas compreenda igualmente uma fase de execução inte- grada, num terceiro país. Existe uma conexão mais estreita com este ter- ceiro país, mas não é uma ligação significativa.
Por conseguinte, também no caso de contratos de empreendimento comum que não apresentam uma clara conexão mais estreita com um determinado Estado o critério das regras de Direito mais apropriadas ao litígio, permitido pelo Direito Transnacional da Arbitragem(115), poderia facultar soluções mais satisfatórias.
(114) “Smart Contracts e Direito Aplicável”, in Discussões sobre Direito na Era Digital, org. por Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx, 503-527, Rio de Janeiro, 2021, e “Laws Applicable to International Smart Contracts and Decentralized Autonomous Organizations (DAOS)”, LSN Comparative Law eJournal, Vol. 22, N.º 121, 06/13/2023(=Transnational Litigation/ Arbitration, Private International Law, & Conflict of Laws eJournal, Vol. 9, No.80 6/13/2023), Law & Society: Private Law — Contracts eJour- nal, Vol. 8, N.º 18, 6/12/2023) (acessível em <xxxx://xxxxxx.xxxx. com>).
(115) Ver, sobre este critério, XXXX XXXXXXXX (n. 72) § 77 B.