DANILO AUGUSTO DAVANZO
XXXXXX XXXXXXX XXXXXXX
A CLÁUSULA DE TOLERÂNCIA INJUSTIFICADA NO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS E SEU TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA CORRELATO À LUZ DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU
ESPECIALIZAÇÃO EM DIREITO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO
SÃO PAULO 2013
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO CURSO DE DIREITO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO
COORDENADORIA GERAL DE ESPECIALIZAÇÃO, APERFEIÇOAMENTO E EXTENSÃO – COGEAE
COORDENADOR: Dr. XXXXXXXXX XX XXXXX XXXXXXXX XXXX
ESPECIALIZANDO:
Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx
A CLÁUSULA DE TOLERÂNCIA INJUSTIFICADA NO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS E SEU TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA CORRELATO À LUZ DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Monografia apresentada com intuito de obtenção do título de Especialista em Direito das Relações de Consumo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, coordenado pelo Prof. Dr. Xxxxxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx.
SÃO PAULO 2013
Aos meus pais, Xxx e Xxxxx, pela dedicação, educação, crédito e paciência.
Aos professores Xxxxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx, responsáveis pelo meu interesse, entrada e desempenho no curso.
À Lucelena, pela compreensão e apoio incondicional.
“O legislador consumerista, por certo, não teve a intenção de criar um instrumento para suscitar discórdias, redistribuir riquezas ou ‘punir’ os ricos em favor dos pobres por meio das suas várias regras protetivas. Ao contrário, o microssistema introduzido por ele tem o claro objetivo de pacificar, dignificar e incrementar as relações entre consumidores e fornecedores, inclusive pelo sistema de responsabilidade (absoluta e objetiva) que comtempla.”
Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 1
2. BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA LEGISLAÇÃO RELACIONADA À 3
RESPONSABILIDADE CIVIL DAS CONSTRUTORAS
3. O PRAZO DE ENTREGA DO IMÓVEL 12
3.1. A OBRIGATORIEDADE DE SE ESTABELECER O PRAZO DE 12
ENTREGA DO IMÓVEL
3.2. A FORMALIDADE DA CLÁUSULA QUE ESTABELECE O PRAZO DE
ENTREGA DO IMÓVEL E A VINCULAÇÃO DA INFORMAÇÃO 15
4. A CLÁUSULA DE TOLERÊNCIA E SUA VALIDADE 22
4.1. CASO FORTUITO E FORÇA MAIOR 30
5. AS EXCLUDENTES DE RESPONSABILDADE 34
5.1. O CASO FORTUITO E A FORÇA MAIOR COMO EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE NO ÂMBITO CONSUMERISTA 37
6. A CORRETA REDAÇÃO DE EVENTUAL CLÁUSULA DE
TOLERÂNCIANO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS 50
7. TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA (TAC) 55
7.1. ORIGEM 55
7.2. LEGITIMADOS 59
7.3. FORMALIZAÇÃO 62
7.4. NATUREZA JURÍDICA E UTILIDADE 65
8. O TAC FIRMADO ENTRE A PROMOTORIA DE JUSTIÇA DO CONSUMIDOR DE SÃO PAULO E O SECOVI-SP 74
8.1. SECOVI-SP 74
8.2. PONDERAÇÕES SOBRE O TAC FIRMADO 75
8.3. A NÃO HOMOLOGAÇÃO DO TAC FIRMADO E A POSTURA DOS ENVOLVIDOS 84
8.4. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS LEGITIMADOS 89
9. A REAÇÃO JURISPRUDENCIAL 95
9.1. JURISPRUDÊNCIA 96
10. CONCLUSÃO 108
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 114
ANEXO I – TAC assinado pela Promotoria de Justiça do Consumidor do Estado de São Paulo e o SECOVI-SP em 26 de setembro de 2011
XXXXX XX – Decisão do PT nº. 161997/11 onde o Conselho Suerior do Ministério Público nega homologação ao TAC firmado com o SECOVI-SP
ANEXO III – Nota à imprensa do SECOVI-SP sobre a não homologação do TAC pelo Conselho Superior do Ministério Público
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho possui como escopo principal desenredar os aspectos jurídicos que cingem o prazo de entrega de imóveis na construção civil atualmente e, logo, os reflexos que a observância ou não de tais prazos trazem para a oferta de novos imóveis, para o comportamento dos consumidores, das construtoras e do judiciário em relação ao novo quadro.
O tema traz peculiar relevância principalmente pelo crescimento desmesurado que o mercado imobiliário vem atravessando nos últimos anos, consequentemente, aumentando o número de imóveis em oferta e o número de fornecedores do ramo imobiliário no mercado, cada qual inserindo no comércio de imóveis seu próprio padrão de qualidade, suas condutas, preços, tratamento, atendimento, técnicas de construção e, claro, infringências ao Código de Defesa do Consumidor.
Inserida na análise deste crescente panorama existe toda uma cadeia de discussões não menos importantes, como o momento e a forma com que os prazos e demais obrigações são estipulados, a responsabilidade civil de sua observância, o comportamento dos consumidores quando não cumprido o tempo previsto, a resposta do Poder Judiciário a este tipo de infração legal e, a partir dessa construção, surge um novo debate acerca das excludentes de responsabilidade do fornecedor de produtos e serviços, confrontando o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor.
Com o referido crescimento do mercado, o número de demandas envolvendo o tema central deste estudo cresceu significativamente, todavia, apesar de a legislação atualmente em vigor ser suficiente para dirimir tais questões, a discrepância observada entre as decisões obtidas em juízo sempre impediu que as construtoras e os consumidores trilhassem um rumo uniforme em direção a pacificidade da matéria.
Devido a este fato, a Promotoria de Justiça do Consumidor do Estado de São Paulo considerou a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) juntamente com o Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de São Paulo (SECOVI-SP), visando estabelecer definitivamente
um código de conduta de seus representados, novamente, valendo frisar, ainda que o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil já fossem capazes de fazê-lo.
No entanto, o TAC não foi assinado, segundo a Promotoria especializada, por desrespeitar direta e intimamente a lei consumerista, carecendo, obviamente, de sua aprovação, o que manteve o Poder Judiciário abarrotado destas questões e, pior do que isso, com decisões absolutamente desconexas, ora em favor de um, ora em favor de outro.
Intuitivamente até, isso nos leva a um novo questionamento, cujo levantamento também é abordado por este estudo: Uma vez que a declaração da Promotoria classificando o texto proposto pelo SECOVI-SP como ilegal e, consequentemente, negando-se a oficializar o TAC, não foi suficiente para fazer com que o Poder Judiciário passasse a resolver as questões correlatas mais uniformemente, eventual aceite da Promotoria e assinatura do TAC seriam capazes de fazê-lo? Em outras palavras, o TAC tem o condão de dirimir as discussões, afastar a legislação e vincular o Poder Judiciário?
A intenção deste trabalho é, primordialmente, portanto, provocar uma discussão abrangente sobre o tema, com bases sólidas e seguras, contribuindo para que seja dado um tratamento mais adequado e uniforme a matéria.
2. BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA LEGISLAÇÃO RELACIONADA À RESPONSABILIDADE CIVIL DAS CONSTRUTORAS
Apesar de a Constituição Brasileira de 1824, a primeira carta constitucional do país, prever a elaboração de dois códigos particulares, um civil e um criminal, apenas o segundo saiu do papel.
Assim, mesmo após a independência do Brasil, a responsabilidade civil seguiu sem regulamentação específica até a promulgação do primeiro Código Civil de nosso Ordenamento Jurídico, em 1916, vigente a partir de 1917, precedido pelas então vigentes Ordenações Filipinas advindas da legislação portuguesa.
Ocorre que a discussão congressista que culminou no advento do referido código levou mais de quinze anos para ser finalizada e, consequentemente, mesmo após a novel existência de regulamentação federal das relações civis, o tema da responsabilidade civil já se encontrava em descompasso com diversos aspectos da sociedade daquela época1.
O artigo 159 do Código Civil de 1916, marco inicial da responsabilização interpessoal codificada, definia tacitamente que os atos capazes de obrigar seus agentes a indenizar suas vítimas eram exclusivamente os ilícitos e privilegiava a teoria subjetiva, onde era imperioso analisar a culpa desse agente, ou seja, condicionando a reparação à verificação de eventual negligência ou imprudência do autor, fosse por ação ou omissão2.
A legítima defesa e o exercício regular de um direito, bem como a deterioração de patrimônio alheio com o intuito de eliminar perigo iminente, eram as exceções expressas pelo código para que o ato não fosse classificado como ilícito e, portanto, incapaz de obrigar seu agente à restituição. Todavia, com uma interpretação contrario sensu do caput do referido artigo, era possível deixar de indenizar a vítima, mesmo quando violado seu direito, desde que fosse comprovado que o ato não teve caráter voluntário, negligente ou imprudente, pois assim dispunha seu texto: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”.
1 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx. Introdução à história do Direito Privado e da codificação: uma análise do novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Editora Initia Via, 2011.
2 Cf. XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx, 2011. Ibidem.
Esse quadro legal, como levantado, já nasceu em desacordo com as experiências cotidianas daquela sociedade. Tanto que, em meados da década de 60, os principais juristas da ocasião, encabeçados por Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx, buscaram readequar os ditames vigentes com a elaboração do Anteprojeto de Código das Obrigações, que, por sua vez, jamais saiu do papel3.
Nessa conjuntura que, especificamente relacionado ao tema deste estudo, surgiram a Lei nº. 4.591/64, dispondo sobre condomínio em edificações e incorporações imobiliárias e, logo após, a Lei nº. 4.864/65, criando medidas de estímulo à indústria de Construção Civil.
Uma das mais importantes imposições da indigitada legislação datada de 16 de dezembro de 1964, foi trazer ao contrato de compra e venda da unidade imobiliária a obrigação de se constar o prazo de entrega da obra, denotando o que parece inclusive intuitivo, mesmo numa época onde o Código de Defesa do Consumidor sequer era planejado: os consumidores adquirentes têm então o direito de saber quando efetivamente serão proprietários de um bem, ou seja, precisam saber conscientemente quais as vantagens e desvantagens de se proceder ao negócio, pois, somente assim, poderão avaliar a real capacidade que possuem de cumprir o contrato e quais são as projeções que já podem ou não fazer daquela aquisição. Tudo isso, sem dúvida, integra o convencimento do consumidor antes de exercer seu arbítrio sobre a compra, consequentemente, qualquer alteração ou violação dessa condição, se apresentada com antecedência, pode inviabilizar o negócio.
Essa imposição, trazida precisamente pelo artigo 48, §2º da referida legislação, não foi a única determinação legal em prol do consumidor da referida legislação.
Art. 48. A construção de imóveis, objeto de incorporação nos moldes previstos nesta Lei poderá ser contratada sob o regime de empreitada ou de administração conforme adiante definidos e poderá estar incluída no contrato com o incorporador (VETADO), ou ser contratada diretamente entre os adquirentes e o construtor.
§2º. Do contrato deverá constar a prazo da entrega das obras e as condições e formas de sua eventual prorrogação.
A despeito dos vetos promovidos na Lei nº. 4.591/64 quando de sua publicação, bem como, das inclusões que seu texto recebeu em 2004, já na vigência do novo Código Civil
3 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Algumas lembranças. 1. ed. São Paulo. Editora: Forense Jurídica, 2001.
de 2002, vale destacar apenas, mantendo foco na discussão que aqui se pretende levantar, as prescrições diretamente relacionadas à nova obrigação das construtoras, recém-criada: o prazo de entrega das obras.
Art. 43. Quando o incorporador contratar a entrega da unidade a prazo e preços certos, determinados ou determináveis, mesmo quando pessoa física, ser-lhe-ão impostas as seguintes normas:
I – informar obrigatòriamente [gramática original] aos adquirentes, por escrito, no mínimo de seis em seis meses, o estado da obra;
II – responder civilmente pela execução da incorporação, devendo indenizar os adquirentes ou compromissários, dos prejuízos que a êstes [gramática original] advierem do fato de não se concluir a edificação ou de se retardar injustificadamente a conclusão das obras, cabendo-lhe ação regressiva contra o construtor, se fôr [gramática original] o caso e se a êste [gramática original] couber a culpa;
III – em caso de falência do incorporador, pessoa física ou jurídica, e não ser possível à maioria prosseguir [gramática original] na construção das edificações, os subscritores ou candidatos à aquisição de unidades serão credores privilegiados pelas quantias que houverem pago ao incorporador, respondendo subsidiariamente [gramática original] os bens pessoais deste [gramática original];
IV – é vedado ao incorporador alterar o projeto, especialmente no que se refere à unidade do adquirente e às partes comuns, modificar as especificações, ou desviar-se do plano da construção, salvo autorização unânime dos interessados ou exigência legal;
V – não poderá modificar as condições de pagamento nem reajustar o preço das unidades, ainda no caso de elevação dos preços dos materiais e da mão- de-obra, salvo se tiver sido expressamente ajustada a faculdade de reajustamento, procedendo-se, então, nas condições estipuladas.
Percebe-se aqui uma especificação na responsabilidade civil das construtoras, mais abrangente do que o então vigente Código Civil de 1916, posto que agora, sistematicamente, seria possível interpretar que mesmo que a demora na entrega da obra se desse por razões lícitas, alheias à imprudência ou à negligência, o incorporador responderia por perdas e danos dos adquirentes pelo fato de estas razões não serem suficientemente justificadoras do atraso.
Vislumbrava-se aqui, ainda que de forma embrionária, o que viria a ser a responsabilização pelo risco, ou seja, sem a análise da culpa.
Outra regra trazida pela novel legislação que também merece destaque foi a apresentação obrigatória pelo incorporador de uma série de documentos perante o competente
Cartório de Registro de Imóveis antes de se efetivar o negócio, sem os quais este seria impedido de negociar as unidades autônomas advindas da construção. Vale destacar o dispositivo:
Art. 32. O incorporador sòmente [gramática original] poderá negociar sobre [gramática original] unidades autônomas após ter arquivado, no cartório competente de Registro de Imóveis, os seguintes documentos:
a) título de propriedade de terreno, ou de promessa, irrevogável e irretratável, de compra e venda ou de cessão de direitos ou de permuta do qual conste cláusula de imissão na posse do imóvel, não haja estipulações impeditivas de sua alienação em frações ideais e inclua consentimento para demolição e construção, devidamente registrado;
b) certidões negativas de impostos federais, estaduais e municipais, de protesto de títulos de ações cíveis e criminais e de ônus reais relativante ao imóvel, aos alienantes do terreno e ao incorporador;
c) histórico dos títulos de propriedade do imóvel, abrangendo os últimos 20 anos, acompanhado de certidão dos respectivos registros;
d) projeto de construção devidamente aprovado pelas autoridades competentes;
e) cálculo das áreas das edificações, discriminando, além da global, a das partes comuns, e indicando, cada tipo de unidade a respectiva metragem de área construída;
f) certidão negativa de débito para com a Previdência Social, quando o titular de direitos sôbre [gramática original] o terreno fôr [gramática original] responsável pela arrecadação das respectivas contribuições;
g) memorial descritivo das especificações da obra projetada, segundo modêlo [gramática original] a que se refere o inciso IV, do art. 53, desta Lei;
h) avaliação do custo global da obra, atualizada à data do arquivamento, calculada de acôrdo [gramática original] com a norma do inciso III, do art. 53 com base nos custos unitários referidos no art. 54, discriminando-se, também, o custo de construção de cada unidade, devidamente autenticada pelo profissional responsável pela obra;
i) discriminação das frações ideais de terreno com as unidades autônomas que a elas corresponderão;
j) minuta da futura Convenção de condomínio que regerá a edificação ou o conjunto de edificações;
l) declaração em que se defina a parcela do preço de que trata o inciso II, do art. 39;
m) certidão do instrumento público de mandato, referido no § 1º do artigo 31;
n) declaração expressa em que se fixe, se houver, o prazo de carência (art. 34);
o) atestado de idoneidade financeira, fornecido por estabelecimento de crédito que opere no País há mais de cinco anos.
Efetuado o registro que trata o artigo acima, o incorporador possuía então 120 (cento e vinte) dias para concretizar a incorporação, caso contrário, novos documentos e novo registro deveriam ser providenciados para a concessão de novo prazo, de igual período:
Art. 33. O registro da incorporação será válido pelo prazo de 120 dias, findo o qual, se ela ainda não se houver concretizado, o incorporador só poderá negociar unidades depois de atualizar a documentação a que se refere o artigo anterior, revalidando o registro por igual prazo.
Já a Lei nº. 4.864/65, por sua vez, a fim criar medidas de estímulo à indústria de Construção Civil, ampliou este prazo para 180 (cento e oitenta) dias, mas, ainda assim, jamais alterou a redação estrutural do dispositivo.
Vale salientar que o artigo 33 da referida Lei não concede ao incorporador a extensão do prazo para a construção em si do prédio, mas sim, somente para o registro que concretiza a incorporação e precede a construção, sem o qual lhe é impedida a venda das unidades autônomas correlatas.
Esse destaque será mais bem aprofundado nos itens posteriores, que dizem respeito ao cerne do trabalho, neste momento, apenas para a análise evolutiva da legislação pertinente ao caso, basta frisar que mesmo inovando em nosso Ordenamento Jurídico, ambas as leis citadas encontravam guarida no Código Civil de 1916, então vigente.
Os grandes avanços no que diz respeito a responsabilidade civil dos fornecedores de produtos e serviços realmente se deram, em verdade, com o advento do Código de Defesa do Consumidor (CDC), em 1990.
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.
Elaborado a partir da raiz constitucional esculpida no principiológico artigo 5º, inciso XXXII de nossa Carta Magna, o CDC trouxe definitivamente a figura da responsabilidade objeta, sem a análise da culpa do agente, responsabilizando-o sob a teoria do
risco e restringindo suas excludentes entre (i) a comprovação de que o produto não foi colocado no mercado; (ii) a comprovação de que o defeito no produto ou no serviço inexiste; e (iii) a comprovação de que o dano se deu por culpa exclusiva da vítima ou de terceiro (frise- se que nos casos em que há culpa concorrente, o responsável ainda é integralmente o fornecedor). Em todas as situações, além de tudo, o ônus da prova é do próprio fornecedor, e nem poderia ser diferente.
Assim, na modalidade que se erguia, a responsabilidade civil baseava-se tão somente no dano e no nexo de causalidade, independendo se houve ou não culpa do agente.
Isso porque na sociedade moderna fez-se necessário que o explorador dos bônus de determinada atividade comercial, fosse responsabilizado pelos ônus que essa atividade viria a produzir, principalmente sob a ótica da produção massificada de produtos e/ou do fornecimento em massa de determinados serviços.
Para relações padrão, um contrato padrão, obrigações e deveres padrões, uma produção padrão e um atendimento padrão.
Tudo recebeu um molde, uma fórmula. As relações consumeristas começaram a deixar a individualidade e a excentricidade para ganhar características de larga escala, de essencialidade e de comportamento básico.
Esse novo mercado foi e ainda é imerso em contratos que aos olhos dos consumidores mais parecem mosaicos e labirintos sem lógica, razão ou justiça, deste modo, nada mais adequado que a legislação que cinge tais relações estipular que, independentemente da existência de culpa, eventual falha no produto ou no serviço devesse ser corrigida por aquele menos vulnerável na relação, aquele que detém a capacidade técnica, instrumental e, via de regra, econômica, para dirimir os danos que seu próprio produto ou serviço causou, causará ou causa dentro do mercado de consumo.
O ponto de discussão primordial a ser colocado em face da real intenção do legislador, e que gera controvérsia no mundo jurídico até os dias de hoje, é se as excludentes trazidas pelo CDC, acima mencionadas, devem ser interpretadas de forma taxativa, sem qualquer amplitude ou extensão, ou se é possível admitir que as excludentes inseridas no
Código Civil também sejam trazidas ao plano consumerista, ainda que não privilegiem a responsabilidade objetiva.
Responder a essa questão é importante principalmente para se atingir a ideia central de uma das maiores discussões da doutrina e da jurisprudência consumerista e, principalmente, deste estudo: dentre as excludentes de responsabilidade a serem aplicadas às relações de consumo, pode-se adotar o caso fortuito e a força maior, trazidos pelo Código Civil? Se sim, como e qual o limite? Se não, por quê?
Existe, de fato, uma coexistência entre ambos os códigos, onde o de caráter geral (Código Civil) é aplicado subsidiariamente às lacunas do especial (Código de Defesa do Consumidor), todavia, deixaremos de nos aprofundar nesta discussão momentaneamente em prol da continuidade da evolução histórica acerca da legislação pertinente, retomando-a em capítulo próprio.
Ao final da cronologia estabelecida temos a entrada em vigor do novo e atual Código Civil.
Com redação discutida desde a ditadura militar (em 1969) encabeçada pelo renomado jurista Xxxxxx Xxxxx, seu anteprojeto, publicado em 1973, somente teve final discussão no Congresso Nacional sob a presidência de Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, em 2002, quando foi aprovado e publicado, passando a viger a partir de 11 de janeiro de 2003, há quase dez anos4.
As disposições acerca da responsabilidade civil foram consideravelmente alteradas em relação ao código antecessor, principalmente por já trazer em seu bojo situações de aplicação da responsabilidade objetiva, além da manutenção da responsabilidade subjetiva, trazida pelo código de 1916. Todavia, sua coexistência com o Código de Defesa do Consumidor não foi alterada.
Ainda assim, merece especial destaque o parágrafo único de seu artigo 927, prestigiando a teoria do risco, já consagrada nas legislações italiana e portuguesa5 que serviram de espelho para seu texto.
4 Cf. XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx, 2011. Ibidem.
5 Cf. XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx, 2011. Ibidem.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Então, a responsabilidade objetiva indicada pelo atual Código Civil possui duas formas principais de verificação, (i) quando a atividade do agente, pela sua natureza, oferecer riscos a outrem e (ii) quando a referida modalidade de reparação decorrer de lei específica sobre determinada matéria, que é o caso das relações de consumo, já que possuem codificação própria.
Em que pese ser necessário atermo-nos ao segundo caso para o desenrolar deste estudo, vale esclarecer que o Centro de Estudos do Conselho da Justiça Federal, em sua 1ª Jornada de Direito Civil de 11 de setembro de 2002, elaborou enunciado esclarecendo como caracterizar a atividade do agente como sendo de risco para os demais, ipsis litteris:
38 – Art. 927: a responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade.
(Centro de Estudos do Conselho da Justiça Federal. Enunciados Aprovados na 1ª Jornada de Direito Civil. Disponível em < xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxx0.xxxx>. Acesso em 1º de dez. 2012).
Superada a evolução legislativa que nos traz até aqui, temos o seguinte quadro em relação aos prazos de entrega das construtoras: em primeiro lugar, são observados os dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, todavia, o texto relativo à comercialização de imóveis, trazido pelas Leis nº. 4.591/65 e 4.864/65, ainda coaduna com o Ordenamento Jurídico pátrio, entretanto, naquilo que não condiz com o CDC, as referidas legislações devem ser afastadas.
O Código Civil, em seu turno, coexiste pacificamente com a legislação consumerista e ainda é aplicado nas relações de consumo quando o CDC apresentar alguma lacuna, no entanto, discute-se se este é o caso das excludentes de responsabilidade, que
permeiam, dentre diversas situações da compra e venda de imóveis, o prazo de entrega da obra.
3. O PRAZO DE ENTREGA DO IMÓVEL
Como já visto no capítulo anterior, em vista da coexistência pacífica de determinadas normas com o atual sistema criado pelo CDC, podemos concluir que a obrigatoriedade de o incorporador ou construtor estabelecer um prazo para a entrega da obra no momento em que o imóvel é ofertado no mercado, advém de uma série de disposições legais.
Num primeiro momento, este capítulo pretende demonstrar a obrigatoriedade de ser estipulado um prazo de entrega para o imóvel, dentre outras razões, para possibilitar ao consumidor a ciência do momento em que o fornecedor entrará em mora.
Adiante, num segundo momento, mas ainda integrante deste mesmo capítulo, será apontada a forma com que este prazo deve ser pactuado.
Claro que, em suma, em sendo o contrato de compra e venda um instrumento escrito, a cláusula que estabelece prazo para o cumprimento da obrigação do fornecedor também o será e, vale adiantar, deverá ainda ser claramente percebida e entendida pelo consumidor, tais quais todas as outras informações indispensáveis para que este faça conscientemente sua escolha dentre os inúmeros produtos e fornecedores presentes no mercado.
3.1. A OBRIGATORIEDADE DE SE ESTABELECER O PRAZO DE ENTREGA DO IMÓVEL
Iniciaremos com as obrigações estabelecidas pelo próprio Código de Defesa do Consumidor.
Apesar de ser o artigo 6º do código o centro das atenções no que concerne aos princípios norteadores das relações de consumo, é o artigo 4º, inciso IV do CDC que primeiro realça a imprescindível necessidade de regrar o mercado de consumo sob a ótica da ampla e ostensiva informação. Não somente ao consumidor, mas também ao fornecedor.
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
(...)
IV – educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo (grifo nosso).
Logo a seguir, o diploma legal concede características basilares ao direito da informação dos consumidores, tornando-o, em verdade, um pressuposto para a redação de contratos de consumo, in verbis:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem.
O direito básico do consumidor à informação não se traduz por ser um fim em si. Não é exigido por mera obrigação legal. Esse direito tem como finalidade garantir aos consumidores o exercício um privilégio ainda mais comezinho não só do sistema consumerista, mas sim de nosso Ordenamento Jurídico como um todo, um princípio de caráter constitucional: a escolha consciente, o livre arbítrio.
Além de posto também no inciso que antecede o dispositivo acima repetido, a liberdade de escolha do consumidor, nas palavras do Professor Xxxxxxxx Nunes6, “tem supedâneo no princípio da liberdade de ação e escolha da Constituição Federal (arts. 1ª, III, 3º, I, 5º, ‘caput’, entre outros)”.
Adiante, o artigo 31 do Código de Defesa do Consumidor exemplifica quais são, possivelmente, as principais informações que devam constar da oferta dos produtos e serviços.
Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço,
6 XXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 141.
garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores (grifo nosso).
Frise-se aqui que o rol apresentado pelo artigo é meramente exemplificativo. Tanto porque ao seu final consta a expressão “entre outros dados”, quanto pelo fato de que algumas dessas informações possam ser tidas como desnecessárias, dependendo do caso.
Valemo-nos do exemplo do lápis, que dispensa algumas informações de sua composição, já que não se interligam com os fatores de escolha do consumidor, ou seja, talvez seja interessante para o adquirente saber que a madeira utilizada naquele lápis é de reflorestamento, mas o fato de se omitir quantos ou quais polímeros foram misturados ao grafite que está em seu interior não gera, sem sombra de dúvidas, nenhum prejuízo ao discernimento de escolha do consumidor.
Assim, da mesma forma que os fornecedores estão obrigados a ostentar dados importantes para aquele produto ou serviço que não estejam no referido rol, podem deixar de atender alguns deles caso sejam absolutamente inúteis para o consumidor.
Apesar de parecer óbvio que na compra de um imóvel em construção o prazo de entrega da obra é informação essencial para que o consumidor avalie seus próprios riscos e projetos e, ao final, selecione quais fornecedores melhor atendem suas necessidades, o Código de Defesa do Consumidor reforçou que a não observação desse dado, consiste em ilegalidade.
Assim dispõe o artigo 39, inciso XII do CDC:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
(...)
XII – deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação ou deixar a fixação de seu termo inicial a seu exclusivo critério (grifo nosso).
Não bastasse a legislação consumerista ser suficiente para impor às construtoras e incorporadoras que o prazo de entrega da obra obrigatoriamente deve constar no contrato, a legislação relacionada à construção civil, levantada já no início deste trabalho também destaca essa necessidade. Vejamos o §2º do artigo 48 da Lei nº. 4.591/64:
Art. 48. A construção de imóveis, objeto de incorporação nos moldes previstos nesta Lei poderá ser contratada sob o regime de empreitada ou de administração conforme adiante definidos e poderá estar incluída no contrato com o incorporador (VETADO), ou ser contratada diretamente entre os adquirentes e o construtor.
(...)
§2. Do contrato deverá constar o prazo da entrega das obras e as condições e formas de sua eventual prorrogação (grifo nosso).
Fica claro, portanto, que os dispositivos distribuídos acima nada mais pretendem do que privilegiar as duas normas fundamentais que estreiam este tópico: o direito do consumidor à informação e o consequente dever do fornecedor de informar (artigo 4º, inciso IV e artigo 6º, inciso III, ambos, do Código de Defesa do Consumidor).
No capítulo seguinte, ao se adentrar na discussão se o §2º doa artigo 48 da Lei nº. 4.591/64 possui ainda validade no que tange a possibilidade de se pactuar uma prorrogação deste prazo, ficará claro que, independentemente de se adotar uma posição positiva ou negativa, está mantido intocável o dever de informar sobre o fornecedor.
A formalização da cláusula que estabelece o prazo de entrega da obra seguirá os ensinamentos do tópico a seguir.
3.2. A FORMALIDADE DA CLÁUSULA QUE ESTABELECE O PRAZO DE ENTREGA DO IMÓVEL E A VINCULAÇÃO DA INFORMAÇÃO
Superada a obrigatoriedade de se estipular contratualmente um prazo para o adimplemento da construtora, faz-se necessário salientar a forma correta de se pactuar este lapso temporal.
Prescinde maiores esclarecimentos a dedução de que essa informação deve ser segura, clara, certa, precisa e adequada, nos termos do já destacado artigo 6º, inciso III do Código de Defesa do Consumidor, caso contrário, não há como conferir ao consumidor um cenário satisfatório o suficiente para que ele, livremente e à sua única escolha, opte por contratar determinado produto ou serviço, ou ainda, defina qual fornecedor melhor atende às suas necessidades.
Vale dizer, portanto, que não basta dar a informação, é preciso que seu conteúdo efetivamente atinja o consumidor.
Neste momento deve-se suprimir a ideia de se atender ao “homem médio”, posto que equivocada.
O mercado de consumo é composto por integrantes de todas as classes sociais, todos os grupos religiosos, todas as raças e assim por diante. Ninguém está alheio ao consumo na atual conjuntura mundial. Deste modo, não é possível traçar um paralelo entre as diversas espécies de consumidores (até porque inevitavelmente não seríamos capazes de elencar todas elas taxativamente) e obrigar o fornecedor a atender às necessidades somente daqueles cujas exigências fossem padronizadas. É preciso atender a todos, sem exceções.
O direito à informação, por conseguinte, deve ser exposto da forma como melhor atingir o discernimento do consumidor, esteja ele classificado sob qualquer ótica.
Nessa toada é que o mesmo diploma legal traça outros regulamentos mais específicos sobre o formato da informação, adicionando dinamismo ao caráter principiológico da Lei.
Os deveres de transparência e informação trouxeram nova formatação às relações de consumo e, mais ainda, aos próprios produtos e serviços oferecidos no mercado.
Isso porque os referidos princípios são exigidos antes mesmo do início de qualquer relação e, consequentemente, os fornecedores deveriam ver-se obrigados a agregá- los como verdadeiros componentes daquilo que oferecem, haja vista estarem os produtos e serviços impedidos de integrarem o mercado sem a informação adequada de suas características e sem a transparência necessária em seus contratos.
Em relação a isso, o CDC trouxe ao Ordenamento Jurídico a vinculação de toda informação prestada pelo fornecedor, seja em forma de contrato, em forma de publicidade, em forma de promessa verbal ou qualquer outra.
Assim dispõe o artigo 30 do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado (grifo nosso).
É intuitivo concluir que a busca do CDC aqui é a de evitar ao máximo a atração dos consumidores por meio de publicidade enganosa ou, ainda que verdadeira, com termos utilizados fora do contexto geral do que se oferecer, o chamado chamariz.
Volta e meia deparamo-nos aos montes com cartazes, placas e folhetos de imóveis em fase de construção com os dizeres “entrega para o mês X”, “pagamento em parcelas de X Reais”, “financiamento direto com o construtor”, e assim por diante.
O que estabelece o artigo em destaque é que até mesmo estas informações de caráter publicitário estão obrigadas a integrar o contrato a ser celebrado, pois são claras, precisas e capazes de atingir o consumidor de forma eficaz.
Assim, nos exemplos destacados, respectivamente, ilegal seria que a entrega não se desse no mês informado; que o pagamento, em verdade, se desse com parcelas volumosas nos dois, três ou quatro primeiros meses, por exemplo, e que somente o saldo remanescente fosse dividido em parcelas de “X” Reais, ou ainda, que essa parcela fosse mensalmente ajustada com índices até então desconhecidos; e, ainda, que o financiamento diretamente com o construtor tivesse fim com a entrega das chaves, cabendo ao consumidor procurar outra instituição para financiar o valor remanescente após a obra.
Para livrar-se desta vinculação, imposta legalmente, não cabe ao fornecedor de produtos e serviços simplesmente omitir as informações que julgar pertinentes, mesmo que inseridas furtivamente em contrato de adesão assinado pelo consumidor.
Isso porque o sistema estabelecido pela legislação consumerista impede que, por exemplo, o adquirente de uma unidade de imóvel seja obrigado a submeter-se a pacto cuja ciência não lhe fora antecipadamente concedida.
Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento
prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance (grifo nosso).
Assim, verifica-se que não há ilegalidade no contrato de adesão em si, ou seja, não existe proibição em estabelecer todos os parâmetros da compra e venda unilateralmente e por escrito, concedendo ao consumidor apenas a faculdade de adesão. O que a lei não admite é que as disposições deste contrato a contrariem, bem como, que tais disposições deixem de ser informadas ao consumidor antes da assinatura do contrato, principalmente quando este, equivocadamente, não contiver detalhes completos ou, ainda, seu entendimento esteja oprimido ou dificultado, pois, caso isso ocorra, as referidas cláusulas não poderão ser opostas ao consumidor.
Vale dizer, em arremate ao que foi explicitado até aqui, que, não prestar a informação de forma efetiva, de forma suficiente para que seu conteúdo atinja de fato o consumidor, é o mesmo que não prestar a informação, seja quem for o comprador, seja qual for a forma de contratação.
Cumpre, ao final, esclarecer também que ao se deparar com contrato cujas cláusulas sejam nulas de pleno direito em vista de infringência ao CDC, somente elas é que são desconsideradas. Todo o resto do contrato permanece vigente sempre que com a invalidação dos determinados dispositivos o negócio jurídico puder se aperfeiçoar sem o excessivo desequilíbrio entre as partes, tal qual impõe o §2º do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor, abaixo repetido:
Art. 51. (...)
§2º. A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.
Ainda, no que tange à vinculação das informações atinentes às relações de consumo, destaca-se ainda outro artigo do códex consumerista: “Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”.
Impedido de omitir as informações necessárias à realização do negócio, bem como incapaz de utilizar-se inadequadamente dos dados prestados, mesmo que por meio de publicidade, o fornecedor ainda não pode valer-se de cláusulas dúbias ou intencionalmente
mal redigidas, que distorçam o entendimento original ou que, em verdade, são interpretadas de forma alheia à intenção das partes.
O princípio protecionista esculpido no indigitado dispositivo advém do texto constitucional do artigo 170, inciso V da Constituição Federal que, ainda, impõe ao Estado o dever de promover a defesa do consumidor.
Esse favorecimento do consumidor se deve pelo princípio do interpretatio contra stipulatorem, onde o estipulante do texto pactuado é quem sofre o ônus de arcar com eventual ambiguidade ou contradição, uma vez que à outra parte não foi concedida a capacidade de levantar-se contra qualquer das cláusulas estabelecidas.
Ainda assim, quando o assunto é a relação e consumo, esse princípio tem sua força ainda mais ampliada.
Quando o comando legal dispõe que “as cláusulas” serão interpretadas de forma favorável ao consumidor, não faz distinção entre aquelas ambíguas, dúbias e/ou contraditórias e aquelas cujo texto seja aparentemente regular, motivo pelo qual, no âmbito de aplicação do CDC, todas as cláusulas serão interpretadas em favor do consumidor.
Esse entendimento é pactuado tanto por expoentes doutrinários quanto pela jurisprudência pátria, e assim não poderia deixar de ser, vez que o consumidor precisa ser tido como leigo em relação ao fornecedor, que é detentor de todos os dados acerca daquele mercado em específico e, principalmente, sobre aquele produto ou serviço.
Nesse sentido leciona o Professor Xxxxxxxx Xxxxx:
Com efeito, com base nesse princípio, nos contratos de adesão, havendo cláusulas ambíguas, vagas ou contraditórias, a interpretação se faz contra o estipulante. Contudo, na lei consumerista esse princípio veio estampado de maneira mais ampla no art. 47, que estabeleceu que as “cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”. Isto é, toda e qualquer cláusulas, ambígua ou não, tem de ser interpretada de modo mais favorável ao consumidor.
Assim, na dúvida o não, sempre se interpretará a cláusula contratual a favor do consumidor.
(XXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 561).
E assim tem decidido nossos tribunais já há muito tempo:
SEGURO-SAÚDE. AIDS. Epidemia.
1. A empresa que explora plano de seguro-saúde e recebe contribuições de associado sem submetê-lo a exame, não pode escusar-se ao pagamento da sua contraprestação, alegando omissão nas informações do segurado.
2. A interpretação de cláusula contratual, sobre a exclusão de despesas decorrentes de epidemia, está fora do âmbito do recurso especial (Súmula 5).
Recurso não conhecido. (...)
O segurado é um leigo, que quase sempre desconhece o real significado dos termos, cláusulas e condições constantes dos formulários que lhe são apresentados. Para reconhecer sua malícia, seria indispensável a prova de que, (1) realmente, fora ele informado e esclarecido de todo o conteúdo do contrato de adesão, e, ainda, (2) estivesse ciente das características de sua eventual doença, classificação e efeitos.
(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº. 86.095-SP. Omint Assistencial Serviços de Saúde S/C Ltda. e Valdir Cimino. Relator Ministro Xxx Xxxxxx xx Xxxxxx. Julgado em 22 de abril de 1996).
É desta forma, portanto, que percebemos a importância e o real peso do dever de informar: as informações prestadas, sob qualquer forma, obrigam o fornecedor a cumpri-las, nos termos do artigo 30. As informações não prestadas não podem obrigar o consumidor a cumpri-las, nos termos do artigo 46. E as informações prestadas à socapa ou de forma dúbia, cujo entendimento seja dificultado, somente serão consideradas em favor do consumidor, nos termos do artigo 47, todos do Código de Defesa do Consumidor.
Ainda assim, outra prática comum no mercado de imóveis que, de tão corriqueira, passou a ser a regra e não a exceção, é a estipulação pelo fornecedor de uma cláusula de tolerância ao prazo de entrega do imóvel.
Ou seja, visando estipular um prazo para o seu próprio adimplemento e cumprir os dispositivos estudados neste capítulo, o fornecedor grafa uma data certa em contrato, todavia, para abonar eventual atraso injustificado sem cometer, em primeira análise, qualquer infração, estabelecem uma cláusula que lhe concedam a possibilidade de realizar uma prorrogação ainda que injustificada, em tese, anuída pelo consumidor.
Apenas com caráter elucidativo, vale trazer trecho real de um contrato assinado entre consumidor, construtor e incorporador, destacando a forma corriqueira com que a manobra descrita é encontrada no mercado.
(grifo nosso)
Vale especial destaque para o uso da referida cláusula, no exemplo em questão, apenas no instrumento de aditamento do contrato inicial, ou seja, em momento posterior à assinatura do contrato original, onde a aceitação do consumidor já havia sido efetivada, o que, por si só, já é capaz de gerar repúdio.
Assim, para analisar a validade jurídica da cláusula de prorrogação passaremos ao capítulo que segue.
4. A CLÁUSULA DE TOLERÊNCIA E SUA VALIDADE
Não raras vezes, as construtoras e incorporadoras evadem-se da compulsão legal de fixar prazo para sua obrigação, claro que não com a completa omissão a data de entrega da obra (o que inclusive iria de encontro com o interesse do público, já que ninguém se interessaria por unidades de conclusão indefinida), mas sim, inserindo no contrato cláusulas de tolerância acerca do prazo de cumprimento de suas obrigações, onde o consumidor, ao assiná-lo, estaria avalizando eventual alteração unilateral do prazo pré-estabelecido, e isso, sem qualquer questionamento ou ressarcimento e, ainda, sem levantar sequer quais as justificativas que poderiam levar a esse atraso.
O Professor Xxxxxxx Xxxxx, ao comentar a obrigatoriedade de se estabelecer prazo para o cumprimento das obrigações de ambas as partes, utiliza como exemplo didático os atrasos específico das construtoras, o que destaca ainda mais que esta prática é reiterada por parte desses fornecedores e, consequentemente, facilmente encontrada no mercado nacional:
Essa norma, como, de resto, as demais similares, apenas demonstra como as práticas abusivas são reiteradamente praticadas no País. É absolutamente normal, porque esse é o princípio de contratos de consumo, que o fornecedor diga quando irá começar o serviço e/ou entregar o produto (como é normal dar o preço e fixar as formas de pagamento). De qualquer maneira, está aí o reforço legal: é prática abusiva não fazê-lo.
Lembre-se, a título de exemplo, da prática abusiva e enganosa das construtoras que prometem entregar o edifício de apartamentos pronto X meses após o “término das fundações”, mas estas se prolongam por meses a fio; por vezes anos.
(XXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 509.)
Ocorre que, em verdade, a legislação referente às incorporações imobiliárias – a Lei nº. 4.591/64 – preconiza ser possível pactuar uma prorrogação do prazo de entrega do imóvel, todavia, duas são as formas de analisar a referida norma: a primeira delas enxerga que o dispositivo que traz essa possibilidade foi derrogado pelo CDC e, portanto, não possui mais validade; a segunda entende que o CDC não foi capaz de tirar sua vigência e, portanto, ela ainda pode ser aplicada.
Em qualquer das visões, para que sejam esclarecidas, vale especial menção ao disposto no §2º do artigo 48 da Lei nº. 4.591/64:
Art. 48. A construção de imóveis, objeto de incorporação nos moldes previstos nesta Lei poderá ser contratada sob o regime de empreitada ou de administração conforme adiante definidos e poderá estar incluída no contrato com o incorporador (VETADO), ou ser contratada diretamente entre os adquirentes e o construtor.
(...)
§2. Do contrato deverá constar o prazo da entrega das obras e as condições e formas de sua eventual prorrogação (grifo nosso).
A legislação acima, antes da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, apesar de ter sido intitulada em referência ao condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias, também trazia em seu bojo disposições que eram aplicadas às relações de consumo referentes ao mercado imobiliário, pois tratava de tais edificações de forma ampla, ou seja, abrangia normas desde a aquisição do terreno pelo incorporador ou construtor até a venda ao morador final, passando por regras de construções, concessões, registros, alvarás e etc.
Todavia, a partir da publicação do Código de Defesa do Consumidor, os dispositivos da legislação então vigente que tratassem das relações de consumo imobiliário estariam derrogados, dada a posterioridade e a característica de regular por completo a matéria consumerista, de qualquer esfera, trazida pela nova legislação.
Essa construção se dá a partir da Lei e da doutrina, como se verá a seguir.
O Decreto-Lei nº. 4.657/42, antigamente conhecido como a Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), dispõe em seu artigo 2º, §1º, in verbis:
Art. 2º. Não se destinando à vigência temporária, a lei entrará em vigor até que outra a modifique ou revogue.
§1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (grifo nosso).
Uma vez que o §2º do artigo 48 da Lei nº. 4.591/64 é incompatível com o texto trazido posteriormente pelo Código de Defesa do Consumidor que, além disso, ainda regula a matéria consumerista de forma completa, a possibilidade de se pactuar uma prorrogação para o prazo de entrega de imóveis estaria derrogada, sob a ótica do dispositivo acima em destaque.
Grande nome da doutrina consumerista, o Professor Xxxxxxx Xxxxx Xxxxx, entende que essa derrogação se dá ainda e principalmente pela raiz constitucional presente no Código de Defesa do Consumidor, tornando-o capaz de sobressair às demais legislações infraconstitucionais em caso de antinomia de normas.
No caso do Brasil, por exemplo, existem artigo na Constituição Federal que obrigam: (i) o Estado a defender os consumidores (artigo 5º, XXXII); (ii) a promulgação de uma lei de defesa do consumidor (artigo 48 das disposições transitórias); (iii) a consideração da defesa do consumidor como um princípio da ordem econômica (artigo 170). Tais artigos são fundamentais para a garantia de que as leis de defesa do consumidor tenham algum tipo de destaque em relação a outras leis que não nascem por mandamento constitucional.
Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx, apesar de não dizer tal expressamente, admite que existe uma hierarquia material entre uma lei ordinária que nasce de um mandamento constitucional e uma outra lei ordinária, que não tem este fundamento. Isso porque, para a referida professora, o Código de Defesa do Consumidor é uma lei, como já vimos, com função social, além de ser uma lei de ordem pública. Um dos critérios básicos para a solução das antinomias será, então, a busca dos princípios da Constituição: “Procura-se, em verdade, alcançar uma interpretação ‘conforme a Constituição’ das normas em conflito para desta extrair a norma prevalente e solucionar a antinomia” (grifo nosso).
(XXXXX, Xxxxxxx Xxxxx. A construção do direito do consumidor: um estudo sobre as origens das leis principiológicas de defesa do consumidor. São Paulo: Atlas, 2009, p. 80).
Como visto, o ensinamento acima indica uma hierarquia material entre uma lei que nasce de um mandamento constitucional e outra que não possui tal fundamento.
Todavia, de forma mais simples do que isso, é possível atingir a superioridade do CDC em relação às outras leis ordinárias que o conflitem a partir de uma análise unicamente sistemática de hierarquia de normas.
A exímia Professora Xxxxx Xxxxxx Xxxxx, indiscutivelmente conhecedora do assunto, leciona sobre a hierarquia das normas da seguinte forma:
A ab-rogação, que é a supressão total da norma anterior, por ter a nova lei regulado inteiramente a matéria, ou por haver entre ambas incompatibilidade explícita ou implícita (...);
A derrogação, que torna sem efeito uma parte da norma. A norma derrogada não perderá sua vigência, pois somente os dispositivos atingidos é que não mais terão obrigatoriedade.
(...)
A revogação poderá ser, ainda (...) tácita, quando houver incompatibilidade entre a lei nova e a antiga, pelo fato de que a nova passa a regular parcial ou inteiramente a matéria tratada pela anterior, mesmo que nela não conste a expressão “revogam-se as disposições em contrário”, por ser supérflua e por estar proibida legalmente, nem se mencione expressamente a norma revogada. A revogação tática ou indireta operar-se-á, portanto, por força de aplicação supletiva do art. 2º, §1º, primeira parte, da Lei de Introdução quando a nova lei contiver algumas disposições incompatíveis com as da anterior, hipótese em que se terá a derrogação (grifo nosso).
(XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Lei de introdução às normas do Direito brasileiro interpretada. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 88-90).
Sendo assim, no caso em tela, fala-se em derrogação e não puramente revogação, pois este é o gênero das duas espécies: derrogação e ab-rogação. Ainda segundo a autora, tacitamente, o CDC acabou por derrogar a parte da Lei nº. 4.591/64 que tratava da comercialização de edificações imobiliárias aos consumidores, posto que seu texto, a partir de então, tornou-se parcialmente incompatível com a nova lei que acabou por regular inteiramente a matéria consumerista.
Há ainda o artigo 119 do Código de Defesa do Consumidor7 que prevê a revogação de todas as disposições em contrário ao texto do códex a partir de sua publicação, o que, para autores como Rizzato Nunes8, é suficiente inclusive para transformar a derrogação em questão, tida como tácita, em direta, posto que seria um exagero exigir do legislador uma menção específica a cada disposição contrária que lhe precede.
Nessa toada, qualquer cláusula de prorrogação do prazo de entrega de imóvel, por si só, independentemente de ser bem fundamentada, clara ou detalhista, é nula, pois, como visto, por conta das novas regras do Ordenamento Jurídico impostas pelo CDC, não é permitido ao fornecedor oferecer no mercado contrato de venda de imóvel que não lhe imponha prazo certo e imutável para o cumprimento de sua obrigação.
Contudo, esse entendimento não é uníssono na doutrina nacional.
7 Artigo 119 do Código de Defesa do Consumidor: “Revogam-se as disposições em contrário”.
8 Cf. XXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, 2007. Ibidem.
O jurista Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxxxxxx e Xxxxxxxx, por exemplo, ao tratar das excludentes de responsabilidade do fornecedor, entende que o CDC não expressa todas as possibilidades encontradas no Ordenamento Jurídico, pois algumas, mais precisamente o caso fortuito e a força maior, devem ser importados do Código Civil às relações de consumo, entendendo, consequentemente, que o Código de Defesa do Consumidor não foi capaz de suprimir o texto civilístico que o precede e que trata apenas parcialmente de sua matéria, discordando da construção acima exposta:
A regra do nosso direito é que o caso fortuito e a força maior excluem a responsabilidade civil. O Código, entre as causas excludentes de responsabilidade não as elenca. Também não os nega. Logo, quer me parecer que o sistema tradicional, neste ponto, não foi afastado, mantendo- se, então, a capacidade do caso fortuito e da força maior para impedir o dever de indenizar (grifo nosso).
(XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxxxxxx e. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 67).
Essa corrente também não é única e já compreende adeptos na jurisprudência do alto escalão brasileiro. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) assim decidiu:
Ação de indenização. Estacionamento. Chuva de granizo. Vagas cobertas e descobertas. Art. 1.277 do Código Civil. Código de Defesa do Consumidor. Precedente da Corte.
1. Como assentado em precedente da Corte, o "fato de o artigo 14, § 3° do Código de Defesa do Consumidor não se referir ao caso fortuito e à força maior, ao arrolar as causas de isenção de responsabilidade do fornecedor de serviços, não significa que, no sistema por ele instituído, não possam ser invocadas. Aplicação do artigo 1.058 do Código Civil" (REsp n° 120.647- SP, Relator o Senhor Ministro Xxxxxxx Xxxxxxx, DJ de 15/05/00).
2. Havendo vagas cobertas e descobertas é incabível a presunção de que o estacionamento seria feito em vaga coberta, ausente qualquer prova sobre o assunto.
3. Recurso especial conhecido e provido.
(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Recurso Especial nº. 330.523-SP (2001/0090552-2). Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Hospital Xxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxx Xxxxx Xxxxxx. Relator Ministro Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Direito. Julgado em 11 de dezembro de 2001)
Deste modo, ainda que não nos pareça a melhor condução da exegese jurídica, a partir desta construção, o §2º do artigo 48 da Lei nº. 4.591/64 não torna a cláusula de
tolerância nula por sua própria existência, pois sua vigência é mantida dentro do Ordenamento Jurídico.
Entretanto, vale especial destaque ao final do dispositivo estudado: “(...) deverá constar o prazo da entrega das obras e as condições e formas de sua eventual prorrogação”.
Neste trecho, a conjunção coordenativa aditiva “e”, logo após a expressão “entrega das obras”, como toda a classe dessas palavras, possui na gramática da Língua Portuguesa uma função específica: a adição à frase inicial.
Assim, imperioso concluir que na referida legislação também está presente o dever trazido pelo CDC de se oferecer ao consumidor uma informação sempre precisa, clara, ostensiva e correta, pois a validade de eventual cláusula de tolerância somente será observada se também estiverem dispostas as condições e formas da prorrogação, não se admitindo que se deixe de constar qualquer um dos dois elementos (o prazo principal ou as condições de sua prorrogação).
Assim, ainda que a referida cláusula tenha base legal para existir juridicamente, o mandamento que a fundamenta não reveste de legalidade plena eventual pacto de tolerância que não atenda aos requisitos expressos no próprio dispositivo: as condições e formas da prorrogação.
Ou seja, mesmo admitindo-se a vigência completa do artigo 48 da Lei nº. 4.591/64, é possível afirmar que também é nula uma cláusula de tolerância aberta e genérica, que não indique detalhadamente as condições aptas a causar um atraso, bem como as formas com que a prorrogação será informada ao consumidor e realizada pela construtora. Seja por não cumprir os requisitos impostos pelo próprio artigo que embasou sua inserção no contrato, seja por não observar o dever de dar ao consumidor uma informação correta, clara, precisa e ostensiva, presente no Código de Defesa do Consumidor e privilegiado pelo próprio §2º do artigo 48 da legislação referente ao condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias.
Já esclarecidos os moldes com que se dá a vinculação da informação prestada pelo fornecedor no capítulo anterior, valemo-nos do artigo 51 e seu §1º do Código de Defesa do Consumidor para o arremate do tema relacionado à validade da cláusula:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
I – impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;
II – subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste código;
III – transfiram responsabilidades a terceiros;
IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;
V – (Vetado);
VI – estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor; VII – determinem a utilização compulsória de arbitragem;
VIII – imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor;
IX – deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor;
X – permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral;
XI – autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor;
XII – obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua obrigação, sem que igual direito lhe seja conferido contra o fornecedor;
XIII – autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração;
XIV – infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais;
XV – estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor;
XVI – possibilitem a renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias.
§1º. Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;
III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso (grifo nosso).
Desta forma, aplicando os ensinamentos deste capítulo na análise do artigo acima, para fins de se traçar a validade da cláusula de tolerância, temos o seguinte quadro:
Com a aceitação da derrogação parcial da Lei nº. 4.591/64 após a publicação do CDC, a cláusula de tolerância é nula de pleno direito, independentemente de sua formatação, segundos os incisos IV, IX, XIII do artigo 51 e os incisos I e II de seu §1º, todos, do Código de Defesa do Consumidor.
Com a aceitação da vigência completa da Lei nº. 4.591/64, a cláusula de tolerância é permitida, desde que comtemple em seu texto todas as condições e formas que se aplicam a eventual prorrogação, caso contrário, também torna-se nula de pleno direito, nos termos dos incisos III, IV, XII, XIII, XV do mesmo artigo 51 e os incisos I e II de seu §1º, todos, do Código de Defesa do Consumidor.
Mas, afinal, dada a discussão doutrinária que cinge a matéria, é quase intuitivo depararmo-nos com a seguinte questão: Se, com a vigência da Lei nº. 4.591/64, para ter validade, a cláusula de tolerância não pode deixar de apresentar certos elementos acerca das condições e formas que se dará a prorrogação, como definir quais elementos devem constar desta cláusula para torna-la válida? Quais eventos são os previsíveis, os evitáveis e, ao mesmo tempo, que se relacionam diretamente com a obra?
É sabido que o microssistema criado pelo CDC, além de estabelecer inúmeros direitos e vantagens ao consumidor, prevê também excludentes de responsabilidade do fornecedor, ainda não analisadas por este trabalho, mas que o serão em momento oportuno.
Responder quais são os elementos que necessitam inserção na eventual cláusula de tolerância tem vinculação direta com o tema das excludentes de responsabilidade, afinal, estes elementos que serão descritos pela referida cláusula, devem ser previsíveis e evitáveis a ponto de tornar possível sua inserção em contrato, ou seja, podem ser previstos. Assim, confundir-se-iam com a própria definição de caso fortuito e força maior ou lhes seriam um adicional? É permitido que tais elementos sejam adicionados às excludentes de responsabilidade? O caso fortuito e a força maior, em sendo similares a estes elementos ou não, fazem parte também das excludentes aplicáveis às relações de consumo?
A verdadeira resposta a estas perguntas equivale à própria definição de caso fortuito e força maior e à análise se tais institutos fazem parte das excludentes de responsabilidade do microssistema consumerista.
A partir do tópico seguinte, pretende-se resolver estes questionamentos.
4.1. CASO FORTUITO E FORÇA MAIOR
A definição de caso fortuito e força maior necessariamente percorre a distinção entre os dois, pois jamais existiu pacificidade doutrinária a respeito de seus conceitos e, portanto, sem uma definição estabelecida de cada um, sempre foi impossível discerni-los.
Não é de hoje que a distinção entre os dois institutos é vista como incoerente por grandes nomes do Direito.
O ilustre jurista e filósofo Xxxxxx xx Xxxxxxx, além de ressaltar tal irrelevância, destacava que proceder a tal distinção não traria qualquer segurança jurídica à sua aplicação.
Engrossando o coro do renomado doutrinador Pontes de Xxxxxxx, o Professor Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx, ao apontar o declínio de tal distinção em vários outros países, cita até o Código Napoleão como base para a falta de importância jurídica na distinção entre o caso fortuito e a força maior:
Essa mesma circunstância conduz igualmente a rejeitar as demais concepções que visam estabelecer uma diferença de origem, de natureza ou de grau entre o “caso fortuito e a fôrça [gramática original] maior”, ou atribuir a esta última uma eficácia mais ampla como causa liberatória de responsabilidade, pois o Código Napoleão, usando indiferentemente ora de uma, ora de outra expressão, – e, às vêzes [gramática original], de ambas, separadas pela disjuntiva “ou”, como sucede no dispositivo básico sôbre [gramática original] a matéria, que é o art. 1.148, – emprega até mais freqüentemente [gramática original] a primeira para designar acontecimentos destrutivos de tôda [gramática original] responsabilidade; o que afasta as únicas concepções que poderiam oferecer qualquer interêsse [gramática original] prático.
(XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx da. Caso fortuito e teoria da imprevisão. 3. ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1958, p. 102).
No entanto, também não é de hoje que outros tantos renomados juristas pensam de forma diferente e, portanto, são capazes de elaborar uma distinção entre os referidos institutos, no julgamento de Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx, valendo-se de uma “velha
concepção”9 de que o caso fortuito advém de forças ininteligentes, ou seja, absolutamente alheias à atitude do homem e a força maior corresponde aos fatos onde o ser humano possui certo papel.
Neste panorama, as forças da natureza, ainda inevitáveis pelo ser humano, estariam abarcadas pela ideia de caso fortuito e as ações de terceiros, independentemente de serem previsíveis ou imprevisíveis, corresponderiam à força maior.
Em absoluto respeito a todos os estudos realizados a respeito deste tema, despontam com maior precisão e clareza os ensinamentos do jurista Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx, in verbis:
O Código Civil, no parágrafo único do citado art. 393, praticamente os considera sinônimos, na medida em que caracteriza o caso fortuito ou de força maior como sendo o fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar, ou impedir. Entendemos, todavia, que diferença existe, e é a seguinte: estaremos em face do “caso fortuito” quando se tratar de evento imprevisível e, por isso, inevitável; se o evento for inevitável, ainda que previsível, por se tratar de fato superior às forças do agente, como normalmente são os fatos da Natureza, como as tempestades, enchentes etc., estaremos em face da “força maior”, como o próprio nome o diz. É o “act of God”, no dizer dos ingleses, em relação ao qual o agente nada pode fazer para evitá-lo, ainda que previsível.
(CAVALIERI FILHO, Xxxxxx. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 91).
Ou seja, trata-se exatamente do contrário.
Para o jurista, o caso fortuito abarca os fatores inevitáveis, mas pelo fato de serem imprevisíveis, já a força maior, como o nome já indica, corresponde àqueles fatores impossíveis de serem impedidos pelo ser humano, motivo pelo qual estariam aqui elencados os eventos da natureza que, ainda capaz de prevê-los, o homem é incapaz de impedi-los.
Ainda que seja capaz de academicamente elaborar tal distinção, o referido Professor destaca a inutilidade prática desta manobra, passando a afirmar que o entendimento ideal é o de que ambos sejam tratados como sinônimos:
9 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx da. Caso fortuito e teoria da imprevisão. 3. ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1958, p. 120.
Não cabe, aqui, discutir a diferença entre caso fortuito e força maior, mesmo porque não há uniformidade de entendimento entre os autores (...) até os que sustentam não mais haver campo de aplicação para o caso fortuito como causa excludente e de responsabilidade, porque nos tempos modernos tudo teria passado a ser previsível e evitável.
(CAVALIERI FILHO, Xxxxxx. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 321).
Todavia, não há como negar que os diversos avanços da ciência e da tecnologia tornaram alguns eventos da natureza previsíveis, ainda que inevitáveis, e que tais previsões já fazem parte da atividade direta de algumas empresas10, motivo pelo qual o autor, além de destacar de vez a desnecessidade de se diferenciar o caso fortuito da força maior, acaba por adotar unicamente o termo caso fortuito, contudo, repartindo-o em duas espécies: o interno e o externo.
O primeiro é aquele que se liga à organização da empresa, que se relaciona com os riscos da atividade desenvolvida, e o segundo é aquele estranho à organização do negócio, que não guarda nenhuma ligação com a empresa, e, dada sua autonomia e inevitabilidade, alguns autores o denominam de força maior11.
A partir desta ideia, forças da natureza podem apresentar-se tanto como fortuito interno como externo, assim como as ações humanas, que podem facilmente classificar-se em qualquer das duas espécies.
Apenas a título de exemplo, dada a infeliz recorrência com que tais acontecimentos têm sido verificados em nossa sociedade, ao fornecedor que oferece ao público a exibição de filmes, o cinema, parece-nos correto afirmar que um furto dentro de seu estabelecimento é um fortuito interno, já a entrada de um jovem portando armas pesadas às escondidas e que acaba por atirar desenfreadamente contra uma plateia absolutamente surpresa, atingindo e até matando outros consumidores, coloca-nos diante do fortuito externo.
Assim, para efeitos de continuidade deste trabalho e, obviamente, por entender estarmos diante da melhor construção jurídica a respeito, passaremos a adotar a teoria de que
10 Cf. XXXXXXXXX XXXXX, Xxxxxx, 2005. Ibidem.
11 Cf. XXXXXXXXX XXXXX, Xxxxxx, 2005. Ibidem.
ambas são sinônimas, e, em verdade, o caso fortuito é que pode ser subdividido em interno e externo.
Superada a questão das diferenças e definições acerca do caso fortuito e da força maior, voltamo-nos a questão: eles integram as excludentes de responsabilidade consumeristas?
Passaremos ao tema.
5. AS EXCLUDENTES DE RESPONSABILDADE
Antes de adentar ao mérito da questão se o caso fortuito e força maior fazem parte das excludentes de responsabilidades aplicáveis às relações de consumo, imperioso, primeiramente, abordar as excludentes que figuram expressamente no Código de Defesa do Consumidor.
Para uma análise individual das excludentes presentes do CDC destacamos em conjunto o texto dos terceiros parágrafos dos artigos 12 e 14 do códex:
Art. 12. (...)
§3°. O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar:
I – que não colocou o produto no mercado;
II – que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
E ainda:
Art. 14. (...)
§3°. O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
Assim, por meio de simples leitura dos referidos dispositivos, podemos concluir didaticamente que as excludentes de responsabilidades atinentes à matéria central deste trabalho serão observadas quando o fornecedor (i) comprovar que o produto não foi colocado no mercado; (ii) comprovar que o vício ou o defeito inexistem; e/ou (iii) comprovar que o vício ou o defeito decorreram de culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
A primeira das excludentes – o produto deixou de ser intencionalmente colocado no mercado de consumo – não parece trazer provável relação com o tema principal deste estudo.
Afigura-se até inimaginável a situação onde a construtora adote postura intentando comprovar que a edificação sequer foi comercializada, portanto, que inexistiria vício ou defeito no atraso de sua entrega. O próprio contrato assinado pelas partes, que seria
imprescindível para a efetivação do negócio jurídico e para a própria aptidão de eventual petição inicial do consumidor, impede essa construção.
A segunda situação – o atraso inexiste – não pode ser considerada impossível de ser levada a juízo na relação de compra e venda de um imóvel, todavia, é evidentemente improvável, principalmente porque, caso o seja, seria demanda de solução tão rápida, simples e lógica que não merece muitos detalhes aqui.
O vício e/ou o defeito que se aborda neste estudo seria a entrega do imóvel em prazo posterior ao estipulado.
Se o consumidor alegar que não recebeu o imóvel dentro do referido prazo, mas o fornecedor puder comprovar, por exemplo, que o apartamento está habitável, que os documentos atinentes à propriedade da unidade estão regulares, que o imóvel possui as necessárias autorizações administrativas para seu funcionamento e que o comprador já está de posse das chaves, consequentemente, deve-se considerar que o bem foi entregue.
Se essa data for além do prazo pactuado, há responsabilidade, indubitavelmente.
Se essa data coincidir com período anterior ou igual ao estabelecido, não há responsabilidade, evidentemente.
Não existem grandes articulações nessa situação.
A terceira possibilidade de quebra do dever de indenizar que vige sobre as relações de consumo, segundo o CDC – o vício ou o defeito decorreram de culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro –, merece maior destaque, todavia, não no que diz respeito à expressão “culpa exclusiva do consumidor”, mas sim, quando menciona “ou de terceiro”.
Tal qual acontece nas duas primeiras hipóteses, apresenta-se deveras insuscetível a situação onde o próprio consumidor seja o responsável pela entrega tardia de uma construção civil. Ainda assim, caso torne-se realidade este fato, a dilação probatória parece bastante simples e a solução do litígio acerca da responsabilidade do fornecedor será facilmente resolvida.
Entretanto, o dispositivo, ao seu final, complementa que a responsabilidade pelo vício ou defeito dos produtos e serviços não recairá sobre o fornecedor também quando se tratar de culpa exclusiva de terceiro.
Ao contrário do que já analisamos nas demais excludentes de responsabilidades, parece possível que um terceiro impeça, por exemplo, o andamento das obras, ou ainda, a expedição dos documentos necessários à sua regularização.
Um ou vários vizinhos que entendem que a obra ultrapassa os limites de propriedade, talvez, podem se voltar contra a edificação por meio de manifestações no próprio local, impugnações e/ou embargos documentais perante os órgãos administrativos que regulam as construções civis, dentre outras coisas.
Tais situações, desde que verdadeiras e devidamente comprovadas, são capazes de eximir as construtoras e/ou incorporadoras de ressarcir os consumidores adquirentes de suas unidades em caso de atraso na entrega, incontestavelmente.
Contudo, cumpre lembrar que o ônus da prova em eventual situação similar a esta seria do fornecedor, não somente por força do artigo 6º, inciso VIII do Código de Defesa do Consumidor que prevê a facilitação da defesa dos consumidores no processo civil, mas, principalmente, por força do próprio artigo 333, inciso II do Código de Processo Civil que impõe ao réu apresentar provar de fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito pleiteado pelo autor.
E é sob a análise deste dispositivo do Código de Processo Civil que outro destaque acerca do assunto merece ser levantado: a mera dificuldade de cumprir o contrato, solucionada com um simples esforço extraordinário do fornecedor, não caracteriza fator impeditivo, modificativo ou extintivo plausível para o rompimento do dever de indenizar.
Como já levantado anteriormente durante a análise do que realmente pode ser classificado como caso fortuito ou força maior, a superveniência desencadeada pelo terceiro deve ser, antes de tudo, impossível de ser prevista, superada ou contornada, caso contrário, não há que se falar em quebra do dever de indenização do fornecedor, já que este não teve a
seu favor extraordinário fator impeditivo, modificativo ou extintivo do direito pleiteado pelo autor, muito pelo contrário, nessas situações é possível caracterizar sua culpa concorrente.
É o caso de ser alegado, por exemplo, furto das máquinas e ferramentas de construção no meio da noite, todavia, tendo sido estes deixados à deriva, por dias, em local desprotegido e de acesso fácil e descontrolado.
A caracterização da culpa como concorrente, mesmo tendo o fornecedor falhado “apenas” no que tange ao dever in vigilando sobre seus equipamentos, é suficiente para que a responsabilização seja mantida e mais, mantendo-se a forma objetiva.
Isso porque o texto legal explicita que o pressuposto de rompimento da responsabilidade do fornecedor é a culpa exclusiva de terceiro. Vale dizer que, sendo esta culpa concorrente, inexiste quebra do dever imposto pelo caput do artigo correlato.
Dessa forma, pode-se concluir que, no que se refere ao vício/defeito de atraso no prazo de entrega de unidade de edificação, segundo dispõe o Código de Defesa do Consumidor, é presumível que o fornecedor seja condenado a ressarcir o adquirente dos danos experimentados em decorrência do descumprimento do prazo, uma vez que as situações apresentadas como rompentes do dever de indenização são, em regra, improváveis.
5.1. O CASO FORTUITO E A FORÇA MAIOR COMO EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE NO ÂMBITO CONSUMERISTA
Enfim, chegamos ao cerne de uma das principais discussões da doutrina nacional, que deve ser superada para que se atinja completa conclusão deste estudo.
O caso fortuito e a força maior rompem o dever de indenizar do fornecedor?
Caso se aceite que o §2º do artigo 48 da Lei nº. 4.591/64, conforme exaustivamente levantado, ainda possui vigência, é necessário que do contrato de compra e venda do imóvel conste tudo o que o fornecedor seja capaz de prever ou impedir ou a aceitação do caso fortuito e da força maior pode suprir tal exigência?
Novamente é aqui que a doutrina se divide.
A partir dos ensinamentos do Professor Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx, a versão de cada lado da bancada é demasiadamente simplista:
O “caso fortuito” e a “força maior”, por não terem sido inseridos no rol das excludentes de responsabilidade do fornecedor, são afastados por alguns autores. Entretanto, essa é uma maneira muito simplista de resolver o problema, como o é, também, aquela de dizer que o caso fortuito e a força maior excluem a responsabilidade do fornecedor porque a regra é tradicional no nosso Direito.
(CAVALIERI FILHO, Xxxxxx. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 513).
Em respeitosa discordância ao ínclito jurista e também para fazer jus ao bom resultado deste trabalho, analisaremos detalhadamente o primeiro entendimento antes de ponderarmos sobre o segundo, posto que, a nosso ver, as duas teorias apresentam-se dificultosas o suficiente para justificar uma exposição mais abrangente.
Para boa e renomada parte da doutrina, o caso fortuito e a força maior não rompem o dever de indenizar do fornecedor de consumo12.
Vale repetir os artigos que dispõem sobre as excludentes de responsabilidade no CDC, contudo, neste momento, com outro enfoque, sutil, mas determinante:
Art. 12. (...)
§3°. O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar:
I – que não colocou o produto no mercado;
II – que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
(...)
Art. 14. (...)
§3°. O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (grifo nosso).
12 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx. A responsabilidade civil do fornecedor de produtos pelos riscos de desenvolvimento. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000.
Verifica-se por simples leitura dos artigos acima que o caso fortuito e a força maior não foram expressamente tratados pelo legislador consumerista, todavia, por estarem presentes no Código Civil também como excludentes de responsabilidade, parte da doutrina especializada no tema entende que o texto civilístico deve ser aplicado também às relações de consumo, de forma subsidiária, em vista da lacuna deixada pelo códex do consumo.
Contrariando esta ideia, os Professores Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxx e Xxxxxx Xxxx Junior 13, um dos autores do anteprojeto do próprio Código de Defesa do Consumidor, entendem que esta inteligência claramente não coaduna com a intenção do legislador do dispositivo e, muito menos, com as demais regras que fundam a proteção do consumidor, para eles, não existe lacuna alguma no texto do CDC.
A falta de disposição negativa acerca da não aplicação do caso fortuito e da força maior em seu texto é proposital, demonstrando exatamente que tais institutos não fazem parte das excludentes de responsabilidade nas relações de consumo.
Nem parece razoável entender o contrário, pois, caso todos os institutos não aceitos pelo CDC devessem ser expressamente renegados em seu texto, o rol negativo seria maior que a própria parte destinada à proteção e ainda assim esse enorme teto seria inútil, visto que a principiologia adotada em seus sete primeiros artigos já é suficiente para a hermenêutica de todo o microssistema consumerista14.
Xxxxxxxx, portanto, que o rol acima em destaque é deliberadamente taxativo, o que atribui caráter de excludente somente ao que ali está disposto, ou seja, a falta de menção do caso fortuito e da força maior é intencional, exatamente para que estes não sejam utilizados nas relações de consumo.
As palavras do Professor Xxxxxx Xxxx Xxxxxx, destacam que, sem sombra de dúvidas, essa é a interpretação adequada ao tema:
O vocábulo “só” indica que a enumeração que se lhe segue é exaustiva, não admitindo ampliação. Os riscos de desenvolvimento, o caso fortuito e a
13 XXXX XXXXXX, Xxxxxx; XXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxx. Leis civis comentadas. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 195.
14 Cf. XXXX XXXXXX, Xxxxxx; XXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxx, 2006. Ibidem.
força maior não excluem o dever de indenizar, porque não estão previstas como causas de exclusão na norma comentada (grifo nosso).
(XXXX XXXXXX, Xxxxxx; XXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxx. Leis civis comentadas. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 195.)
E nessa linha diversos e não menos renomados doutrinadores fazem coro15.
A exegese adotada pelo Professor Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxxxx, um dos primeiros juristas a estudar e tecer comentários ao CDC após sua publicação, é a mesma.
Segundo sua análise, a expressão “só” inserida no texto dos §3º dos artigos 12 e
14 do Código de Defesa do Consumidor é determinante e suficiente para que o rol apresentado seja entendido como taxativo, impossível de ser ampliado hermeneuticamente.
Na hipótese de responsabilidade objetiva, a que se fundamenta na teoria do risco, o caso fortuito e a força maior não operam para exonerá-la. (...) O caso fortuito e a força maior se inserem como conteúdo do risco e, por isso, na responsabilidade objetiva ela se mantém. (...) Nas relações de consumo, o arts. 12, §3º, e 14, §3º, do Código do Consumidor, indicam as causas exonerativas, quando há defeito no produto ou no serviço. Entre elas não se encontra elencada a relativa ao caso fortuito, ou força maior. Sem validade o argumento que afirmasse a indicação dos artigos ser não-taxativa ou não- exaustiva, caso em que se poderia aplicar subsidiariamente o que dispõe o Código Civil. Isto porque, nos dois parágrafos, a expressão usada é “só não será responsabilizado quando provar” (o grifo é nosso), sinal indicativo que o rol é exaustivo. Assim, ao contrário do que ocorre na responsabilidade comum, a força maior, ou o caso fortuito, não são causas exonerativas da responsabilidade civil nas relações de consumo (grifo nosso). (NASCIMENTO, Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx do. Responsabilidade civil no Código do Consumidor. 1. ed. Rio de Janeiro: Aide, 1991, p. 53-54.)
Ademais, é novamente trazido nesta oportunidade o entendimento de que numa hermenêutica antinômica, como no caso, para a solução de conflitos hierárquicos, é fator preponderante a construção de um direito a partir de um mandamento constitucional, como leciona o Professor Xxxxxxx Xxxxx Xxxxx, referendando ainda entendimento jurídico defendido pela renomada jurista Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx:
No caso do Brasil, por exemplo, existem artigo na Constituição Federal que obrigam: (i) o Estado a defender os consumidores (artigo 5º, XXXII); (ii) a
15 LISBOA, Xxxxxxx Xxxxxx. Responsabilidade nas relações de consumo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
promulgação de uma lei de defesa do consumidor (artigo 48 das disposições transitórias); (iii) a consideração da defesa do consumidor como um princípio da ordem econômica (artigo 170). Tais artigos são fundamentais para a garantia de que as leis de defesa do consumidor tenham algum tipo de destaque em relação a outras leis que não nascem por mandamento constitucional.
Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx, apesar de não dizer tal expressamente, admite que existe uma hierarquia material entre uma lei ordinária que nasce de um mandamento constitucional e uma outra lei ordinária, que não tem este fundamento. Isso porque, para a referida professora, o Código de Defesa do Consumidor é uma lei, como já vimos, com função social, além de ser uma lei de ordem pública. Um dos critérios básicos para a solução das antinomias será, então, a busca dos princípios da Constituição: “Procura-se, em verdade, alcançar uma interpretação ‘conforme a Constituição’ das normas em conflito para desta extrair a norma prevalente e solucionar a antinomia” (grifo nosso).
(XXXXX, Xxxxxxx Xxxxx. A construção do direito do consumidor: um estudo sobre as origens das leis principiológicas de defesa do consumidor. São Paulo: Atlas, 2009, p. 80).
Mais do que permitido por sua raiz constitucional, como visto acima, o microssistema criado pelo CDC tem a autonomia necessária para tratar do assunto dessa forma peculiar.
A própria hierarquia das normas nacionais preconiza que a legislação consumerista afaste os ditames do Código Civil, conforme se vê, também repetidamente neste estudo, por meio do artigo 2º, §1º do Decreto-Lei nº. 4.657/42:
Art. 2º. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (grifo nosso).
A Professora Xxxxx Xxxxxx Xxxxx nos ensina, com propriedade, que a revogação é o gênero de duas espécies, a ab-rogação e a derrogação, e assim as define:
A ab-rogação, que é a supressão total da norma anterior, por ter a nova lei regulado inteiramente a matéria, ou por haver entre ambas incompatibilidade explícita ou implícita (...);
A derrogação, que torna sem efeito uma parte da norma. A norma derrogada não perderá sua vigência, pois somente os dispositivos atingidos é que não mais terão obrigatoriedade.
(...)
A revogação poderá ser, ainda (...) tácita, quando houver incompatibilidade entre a lei nova e a antiga, pelo fato de que a nova passa a regular parcial ou inteiramente a matéria tratada pela anterior, mesmo que nela não conste a expressão “revogam-se as disposições em contrário”, por ser supérflua e por estar proibida legalmente, nem se mencione expressamente a norma revogada. A revogação tática ou indireta operar-se-á, portanto, por força de aplicação supletiva do art. 2º, §1º, primeira parte, da Lei de Introdução quando a nova lei contiver algumas disposições incompatíveis com as da anterior, hipótese em que se terá a derrogação (grifo nosso).
(XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Lei de introdução às normas do Direito brasileiro interpretada. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 88-90).
A partir dessa lição é possível entender o que aconteceu com a relação de validade entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 1916 (vigente quando da publicação do CDC).
Ambos conviveram pacificamente, todavia, as disposições que o CDC estabeleceu para as relações consumeristas, mesmo que incompatíveis com o então Código Civil, deveriam prevalecer, exatamente pelo fato de serem incompatíveis e, portanto, ter a lei mais recente derrogado tacitamente tais dispositivos sobre a referida matéria.
Esta construção traz necessariamente a seguinte indagação: os dispositivos de responsabilidade civil do Código Civil de 1916, incluindo os que tratam de caso fortuito e força maior, tornaram-se permanente revogados pelo CDC?
Não, é claro que não.
Isso porque, desde 1988, com a promulgação Constituição Federal, a proteção ao consumidor passou a ser questão constitucional, matéria única, exclusiva, destacada, cuja legislação merecia ser individualizada.
O Código Civil, tanto o de 1916 quanto o atual, jamais regulou tão-somente as relações consumeristas, mas sim, as relações civis como um todo e, com a até então inexistência do CDC, seu texto era imperiosamente aplicado também às relações de consumo. Entretanto, a partir do advento do Código de Defesa do Consumidor por meio da novel exigência constitucional, o CC de 1916 teve seu texto limitado às relações civis não
consumeristas e, nestes casos, seus ditames seguiram vigentes e cogentes até sua completa substituição, em 2002.
Por outro lado, as relações de consumo são expressamente, amplamente e definitivamente tratadas pelo CDC e, portanto, são os dispositivos desta lei que recaem sobre elas. Não há em que se falar em aplicação concomitante de ambos os códigos sobre a mesma matéria, isso sequer é permitido pela hermenêutica nacional.
De toda forma, é sim possível a coexistência entre normas para que uma seja aplicada na lacuna da outra, e é exatamente isso que acontecia com o antigo Código Civil, porém, no âmbito do que se discute neste momento (as excludentes de responsabilidade), o CDC não possui lacunas, é expresso e taxativo, destarte, o Código Civil 1916, frise-se, especialmente no que tange às excludentes de responsabilidade, deveria ser afastado.
Com o advento do novo Código Civil, vigente a partir de 2003, nada mudou, pois, como visto nos ensinamentos da Professora Xxxxx Xxxxxx Xxxxx, em destaque acima, não somente a idade da lei é que determina a derrogação ou ab-rogação da anterior, mas sim, também, a matéria trazida em seu texto.
Desta forma, nova demarcação cronológica é cabível: a partir de 1916 todas as relações civis, consumeristas ou não, eram reguladas pelo então Código Civil vigente; a partir de 1988, as relações de consumo passaram a ter caráter constitucional, de interesse público e necessitavam de codificação própria, todavia, na inexistência dessa lei, o Código Civil de 1916 mantinha-se vigente em todas as relações civis; com o advento do CDC em 1990, o texto constitucional foi cumprido e as áreas do direito separaram-se, vigendo para as relações de consumo o CDC e para as demais relações civis o Código Civil de 1916. Já com a publicação do atual Código Civil, houve a ab-rogação do código anterior, contudo, nenhuma mudança ocorreu nas relações de consumo, posto que seu códex específico, vigente desde 1990, em nada foi alterado.
Mas não é só.
Uma análise bastante consistente sobre as características intrínsecas do caso fortuito e da força maior coloca também a aplicação destes institutos às relações de consumo fora de cogitação.
Segundo Xxxx xx Xxxxxx Leme16, “o conceito de caso fortuito é o contraposto do conceito da culpa e pode exprimir-se pela seguinte equação: caso fortuito não culpa. O que importa é saber em cada caso se há ou não culpa do agente”.
Vez que os referidos institutos são regrados pela escola subjetiva, onde se deve verificar, em cada caso concreto, a diligência com que agiu o obrigado, atinge-se após sua análise o grau de culpa do agente. Esse raciocínio é acompanhado ainda por Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx00 e Xxxxx Xxxxxx Xxxxx00.
É nesta modalidade que o agente será obrigado a indenizar a vítima sempre que observados três pressupostos básicos: a ação, o dano e o nexo de causalidade entre a ação e o dano, ou seja, o dano dever estar umbilicalmente conectado à ação do agente para que este seja compelido ao ressarcimento.
Entretanto, sempre que for verificada a existência de um caso fortuito ou de um acontecimento de força maior, a ação do agente sofrerá uma transformação, uma justificativa, uma aceitação na sua razão de ser devido a fatores externos à relação. Ainda assim, nada acontecerá com o nexo de causalidade ou, muito menos, com o dano causado à vítima, que permanecerão existentes na mesma proporção e no mesmo grau de nocividade.
Essa ação, pela teoria subjetiva que estamos analisando, tem seu exame baseado nas condições da culpa: imprudência, negligência e imperícia.
Assim, o caso fortuito e a força maior, quando existentes, justificarão e automaticamente desclassificarão eventual imprudência, negligência ou imperícia da conduta do agente. Em outras palavras, interferirão exclusivamente do pré-requisito da culpa que, por
16 XXXX, Xxxx xx Xxxxxx. Da responsabilidade civil fora do contrato. São Paulo: Saraiva, 1927, p. 68.
17 Cf. XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx da, 1958. Ibidem.
18 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de direito civil brasileiro. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 7.
sua vez, somente é capaz de influir na ação do atuante, descaracterizando-a como reprovável ou ainda tornando-a aceitável e, consequentemente, desobrigando-o do ressarcimento.
A conclusão que se infere é que o caso fortuito e a força maior estão estritamente vinculados à conduta do agente, sendo capazes de revesti-la de justificativa suficiente para que nenhuma outra lhe fosse exigida.
Acontece que a conduta do atuante não é levada em consideração quando se está diante da teoria objetiva de responsabilização, como é o caso do Código de Defesa do Consumidor.
A responsabilidade objetiva esculpida no CDC avalia somente a existência do dano e do nexo de causalidade entre o dano e a ação de um fornecedor, ainda que essa ação tenha guarida. Portanto, o caso fortuito e a força maior, ao conceberem caráter atenuante somente à ação do fornecedor – pressuposto descartado pela responsabilidade objetiva – apresentam-se como excludentes absolutamente alheias às relações de consumo.
Mais do que claro está que, para aderir à construção jurídica de que o caso fortuito e força maior não são capazes de excluir a responsabilidade do fornecedor, é necessário abraçar a ideia de que o Código de Defesa do Consumidor inseriu em nosso Ordenamento Jurídico a teoria do risco integral do fornecedor, aquela onde o prestador de serviço ou produtor do produto será acionado a partir de qualquer vício ou defeito que aconteça com seu produto ou com sua prestação de serviço, independentemente de o fato estar relacionado ou não à sua atividade, ao seu alcance ou à sua previsão. Isso justificado numa suposta previsão legal que visa equilibrar uma relação que já nasce desequilibrada.
E é a partir de uma crítica a esta conclusão que toda a teoria que acabou de ser levantado é rebatida.
O destaque do Professor Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx, avulta essa apreciação:
O fortuito externo, em nosso entender verdadeira força maior, não guarda relação alguma com o produto, nem com o serviço, sendo pois, imperioso admiti-lo como excludente da responsabilidade do fornecedor, sob pena de
lhe impor uma responsabilidade objetiva fundada no risco integral, da qual o Código não cogitou (grifo nosso).
(CAVALIERI FILHO, Xxxxxx. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 514).
Encabeçado pelo jurista, grande parte da doutrina acolhe que não há como conceber a ideia de que o Código de Defesa do Consumidor adotou o risco integral ao fornecedor.
Xxxxx Xxxxx Xxxxxx00 desenrola que tal entendimento dificultaria ou até inviabilizaria todo o setor produtivo, encerraria a pesquisa tecnológica, o progresso científico, diminuindo ou até estancando a oferta de novos produtos. Injusto ainda seria descarregar no fornecedor toda a responsabilidade do mercado, sobre riscos que ele até desconhece, trazendo consequências danosas ao próprio desenvolvimento social e, mais ainda, com o infeliz repasse destes custos ao preço final dos produtos e serviços, tolhendo a capacidade dos menos afortunados de consumi-los.
Ainda assim, o argumento mais sedutor desta teoria é o de que adotar essa responsabilidade integral não é suficiente para contribuir de alguma forma à prevenção dos danos, principalmente pelo fato de os defeitos começarem a ter seus estudos suprimidos, ainda que, eventualmente, pacifique a discussão sobre responsabilidade civil20.
Assim, naturalmente, entende-se que as excludentes de responsabilidade civilísticas integram sim as relações de consumo, pois a lacuna deixada no CDC pelo legislador não foi proposital e, portanto, deverá ser preenchida pelas regras gerais do Código Civil.
Tal qual a tese contrária, autores do anteprojeto da lei que culminou na criação do Código de Defesa do Consumidor também despontam à frente deste entendimento.
Como já ressaltado em capítulos anteriores, o jurista Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxxxxxx e Xxxxxxxx, ao tratar do tema, entende que o caso fortuito e a força maior, devem ser importados do Código Civil às relações de consumo:
19 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. O empresário e os direitos do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994.
20 Cf. XXXXXX, Xxxxx Xxxxx, 1994. Ibidem.
A regra do nosso direito é que o caso fortuito e a força maior excluem a responsabilidade civil. O Código, entre as causas excludentes de responsabilidade não as elenca. Também não os nega. Logo, quer me parecer que o sistema tradicional, neste ponto, não foi afastado, mantendo- se, então, a capacidade do caso fortuito e da força maior para impedir o dever de indenizar (grifo nosso).
(XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxxxxxx e. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 67).
Essa corrente predomina a jurisprudência nacional, representada aqui por decisão utilizada como precedente em diversos outros acórdãos do STJ:
Ação de indenização. Estacionamento. Chuva de granizo. Vagas cobertas e descobertas. Art. 1.277 do Código Civil. Código de Defesa do Consumidor. Precedente da Corte.
1. Como assentado em precedente da Corte, o "fato de o artigo 14, § 3° do Código de Defesa do Consumidor não se referir ao caso fortuito e à força maior, ao arrolar as causas de isenção de responsabilidade do fornecedor de serviços, não significa que, no sistema por ele instituído, não possam ser invocadas. Aplicação do artigo 1.058 do Código Civil" (REsp n° 120.647- SP, Relator o Senhor Ministro Xxxxxxx Xxxxxxx, DJ de 15/05/00).
2. Havendo vagas cobertas e descobertas é incabível a presunção de que o estacionamento seria feito em vaga coberta, ausente qualquer prova sobre o assunto.
3. Recurso especial conhecido e provido.
(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Recurso Especial nº. 330.523-SP (2001/0090552-2). Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Hospital Xxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxx Xxxxx Xxxxxx. Relator Ministro Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Direito. Julgado em 11 de dezembro de 2001).
A teoria que adere às excludentes de responsabilidade o caso fortuito e a força maior, mais precisamente na forma de sinônimos, com a subdivisão entre fortuito interno e externo, tal qual apontado pelo Professor Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx, desponta com a capacidade de resolver o dilema.
Este raciocínio, em conjunto com o avanço da tecnologia, da ciência e do acesso que os fornecedores têm a estes estudos, garantem ao consumidor maior proteção legal21, posto que o fortuito interno, aquele ligado diretamente à atividade do fornecedor de produtos e serviços, sempre responsabilizará o fornecedor, afinal, não se trata de caso fortuito, mas sim,
21 XXXXXX, Xxxxxx. A teoria da imprevisão no Direito Civil e no Processo Civil. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.
de fator previsível ignorado ou equivocadamente não considerado por ele, restando somente o fortuito externo com o condão de eximi-lo do dever de indenizar22.
Dessa forma, a questão a ser resolvida quando da análise da responsabilidade seria uma única: o fator causador do dano faz parte da atividade regular do fornecedor, ou seja, era previsível, evitável ou contornável pelo fornecedor diante dos seus recursos e sob a sua ótica? Em caso afirmativo, trata-se de fortuito interno e, portanto, seu dever de indenizar é certo. Em caso negativo, trata-se de fortuito externo e, consequentemente, sua responsabilidade poderá ser afastada.
Esta ideia é lecionada e corroborada pelo por Xxxxxxxxx Xxxxx:
O “fortuito interno”, assim entendido o fato imprevisível e, por isso, inevitável ocorrido no momento da fabricação do produto ou da realização do serviço, não exclui a responsabilidade do fornecedor porque faz parte da sua atividade, liga-se aos riscos de empreendimento, submetendo-se à noção geral de defeito de concepção do produto ou de formulação do serviço. Vale dizer, se o defeito ocorreu antes da introdução do produto no mercado de consumo ou durante a prestação do serviço, não importa saber o motivo que determinou o defeito; o fornecedor é sempre responsável pelas suas consequências, ainda que decorrente de fato imprevisível e inevitável. (CAVALIERI FILHO, Xxxxxx. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 513).
E arremata:
Entre as causas de exclusão de responsabilidade do fornecedor de serviços, o Código de Defesa do Consumidor (art. 14, §3º) não se referiu ao caso fortuito e à força maior, sendo assim possível entender que apenas o fortuito externo o exonera do dever de indenizar.
(CAVALIERI FILHO, Xxxxxx. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 323).
Construída a tese de que o caso fortuito e a força maior, ou, melhor dizendo, o fortuito interno e o fortuito externo, fazem parte das excludentes de responsabilidade consumeristas, ressaltando-se que o primeiro instituto jamais exime o fornecedor do dever de indenizar e o segundo o faz, resume-se a celeuma em definir se o fato gerador do dano está
22 Cf. XXXXXXXXX XXXXX, Xxxxxx, 2005. Ibidem.
atrelado à atividade da empresa ou não, ou seja, basta determinar se o fator é um fortuito interno ou externo.
6. A CORRETA REDAÇÃO DE EVENTUAL CLÁUSULA DE TOLERÂNCIA NO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS
Recapitulando o desenrolar deste estudo, vimos que a validade da cláusula de tolerância inserida nos contratos de compra e venda de imóveis possui divergência doutrinária.
Aos que entendem que o dispositivo que a embasa foi derrogado pelo Código de Defesa do Consumidor, ela é nula de pleno direito, independentemente da forma com que é escrita.
Já no entendimento daqueles que aceitam a completa vigência da legislação correlata, mesmo após a entrada em vigor do CDC, para que seja válida, é imprescindível que estipule as formas e condições da prorrogação do prazo estabelecido. Mais ainda, com a aplicação concomitante dos princípios do CDC ao seu texto, tal informação deve ser correta, clara, precisa e ostensiva, caso contrário, perderá validade jurídica.
Vale dizer, após toda a exposição acerca do caso fortuito e da força maior e sua aceitação dentro do microssistema consumerista, que, para que a cláusula de tolerância tenha validade a partir desta segunda linha de raciocínio, ela deverá conter, detalhadamente, todos os fortuitos internos da empresa, acabando por informar ao consumidor quais são os fatores que se pode esperar que o fornecedor supere ao longo da execução da obra, bem como, dando plenas condições de caracterização de sua excludente ao julgador de eventual processo de indenização.
Contudo, diante do irrefreável avanço da tecnologia, dos estudos científicos e da própria indústria, o que pode ser considerado, de fato, fora da atividade empresarial? Em outras palavras, o que efetivamente é imprevisível, inevitável ou, ainda, irremediável a ponto de ser considerado um fortuito externo?
Evidente que fatores e situações tidas em determinadas épocas como aleatórias ou impossíveis de serem superadas, mesmo que previsíveis, passaram a ser controladas pelo homem.
Apontamos novamente à doutrina de Xxxxxxxxx Xxxxx:
Na verdade, dado o avanço da ciência, tornou-se possível a previsibilidade de fenômenos naturais, como furacões, terremotos, temporais etc., mas é verdade, também, que nem sempre é possível evitar a ocorrência desses fenômenos (...). Ademais, a previsibilidade capaz de afastar o fortuito é específica, relativa a determinado fato e ao momento em que ele poderia ocorrer, e não genérica, levando-se em ainda em conta a ótica do agente, e não de terceiros. Em suma, é preciso saber se o agente, nas condições em que se encontrava, tinha ou não condições de prever e evitar o evento danoso.
(CAVALIERI FILHO, Xxxxxx. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 322).
Desta feita, quando se está diante de uma análise de responsabilidade, faz-se absolutamente necessário estabelecer uma distinção entre o que realmente é impossível de ser previsto ou ultrapassado e o que se apresenta como mera dificuldade no adimplemento da obrigação correlacionada.
Especificamente no âmbito das construções civis, é comum observar que construtoras e incorporadoras, ao longo de anos, baseadas em informações de seu próprio sindicato patronal, alegam judicialmente, basicamente, os mesmos fatores para justificarem eventual atraso. Tanto o referido sindicato quanto as jurisprudências correlatas terão, adiante, tópicos e capítulos próprios, portanto, para fins de elaboração deste raciocínio, faz-se suficiente o resumo de tais justificativas.
É comum que, quando se tornam litigantes judiciais, as construtoras e incorporadoras levantem a recorrente e irremediável escassez de mão de obra qualificada, as intempéries meteorológicas, a falta de material no mercado e a recorrente paralisação de funcionários em busca de melhorias de cunho trabalhista.
Parece-nos claro que as condições meteorológicas de um município, por exemplo, ainda que não atinjam 100% (cem por cento) de precisão, são acuradas o suficiente para se determinar, dentro de três anos (prazo médio de uma construção civil residencial), novamente, por exemplo, qual a precipitação esperada e, por consequência, qual o planejamento possível para o caminhar de uma construção.
Se, por exemplo, uma obra é programada para ser realizada em 650 (seiscentos e cinquenta) dias de trabalho, mas, é possível presumir que a precipitação em determinados meses será suficiente para interrompê-la por 100 (cem) dias, é razoável que os responsáveis pela obra, projetem-na no tempo dentro de, no mínimo, 750 (setecentos e cinquenta) dias.
Inválido seria ofertá-la ao mercado, prometendo sua conclusão dentro de 650 (seiscentos e cinquenta) dias e, dada a precipitação imaginada, prorrogar a entrega por mais 100 (cem) dias. Afere-se que, ainda que a chuva dentro do que era imaginado justifique a prorrogação, sendo ela algo esperado pela construtora, deveria ter sido considerada quando da oferta. Fosse ofertando a obra com conclusão para 750 (setecentos e cinquenta) dias, fosse estipulando em cláusula de tolerância uma prorrogação de 100 (cem) dias de interrupção pela chuva.
Tal medida garantiria a informação ao consumidor e possibilitaria facilmente a caracterização de sua excludente até o limite de 100 (cem dias): Eventual precipitação além do esperado, que ultrapassasse os dias previstos de paralisação, tornar-se-iam automaticamente um fortuito externo e, portanto, incapaz de lhe responsabilizar. Toda e qualquer precipitação dentro dos 100 (cem dias) estariam devidamente informadas ao consumidor e seus direitos e prerrogativas de informação estariam garantidos, bem como, estaria também afastado o dever de indenização, afinal, o vício inexiste, foi informado.
Assim, verifica-se que a precisão no texto da cláusula de tolerância, além de garantir os direitos do consumidor, é a forma mais eficiente que têm as construtoras e incorporadas de alegarem, comprovadamente, que os fatores do atraso são, em verdade, fortuitos externos e, portanto, excludentes de sua responsabilidade.
Uma cláusula de tolerância que apenas prevê prorrogação injustificada será tida como nula, pois tanto o direito à informação do consumidor foi suprimido, quanto será muito mais difícil ao julgador, se não impossível, determinar se o fator do atraso se trata de um fortuito atinente à atividade da construtora ou não.
O maior número de dados que o fornecedor trouxer ao contrato, mais fácil será caracterizar o fato gerador do atraso como fortuito externo e, por consequência, excludente de sua responsabilidade perante o consumidor.
Sem levar em conta ainda, que o próprio fornecedor terá o interesse de cada vez mais buscar novos dados e informações, já que, quanto mais completa for sua previsão, mais fácil será comprovar o rompimento de seu dever de indenizar.
O consumidor, por sua vez, terá uma contratação recheada com um de seus direitos mais importantes, o da informação, capacitando-o escolher até entre aqueles fornecedores que melhor preveem seus projetos ou, ainda, melhor contornam os obstáculos previstos ao longo da obra. Em outras palavras, referendando o Professor Xxxxxxxx Xxxxx00, o consumidor terá nesta relação muito mais elementos que o aproximem de seu direito mor: a escolha consciente, o livre arbítrio.
O mesmo acontece com a escassez de recursos e de mão de obra, afinal, após tantos anos de alegações desta seara no judiciário, em conjunto com tantos informativos emitidos pelo sindicato patronal, é mais do que razoável exigir das construtoras e incorporadoras um norte acerca do quanto é plausível que se perca de tempo ao procurar novas saídas, de pessoal e de material.
O mesmo acontece com os índices de paralisação de obras por questões trabalhistas. Ainda que seja impossível projetar no tempo com precisão quando ocorrerá a próxima discordância de determinada classe em relação aos seus empregadores, é certo que, em média, sempre que existe este tipo de situação, a solução do conflito perdura por certo número de dias, previsíveis.
Este raciocínio deve ser estendido a todos os outros elementos que interfiram na conclusão da obra, os acima levantados somente foram ressaltados dada a recorrência com que aparecem no Poder Judiciário, todavia, são meramente exemplificativos.
Adotando a formalidade necessária à garantia dos direitos do consumidor, as construtoras e incorporadoras só têm a ganhar.
Uma vez que o fornecedor estabelece contratualmente todas as previsões possíveis ligadas à conclusão da obra, mais protegido ele próprio estará, podendo até pactuar com o
23 Cf. XXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, 2007. Ibidem.
comprador um prazo de prorrogação superior aos tradicionais 180 (cento e oitenta) dias, normalmente e indiscriminadamente utilizados no mercado, como se verá ao avanço deste trabalho.
Sendo assim, foram encontradas soluções às questões anteriormente levantadas: A cláusula de tolerância, quando não considerada nula de pleno direito por sua própria existência, será considerada válida a partir do momento que trazer em seu bojo os subsídios e condições que traduzem o fortuito interno da construtora ou incorporadora, fazendo com que o fortuito externo integre as excludentes de responsabilidade estabelecidas no CDC, sempre que assim o for classificado.
Sedimentada toda a abrangência legal que cinge o cumprimento do prazo de entrega estabelecido entre as construtoras, incorporadoras e consumidores, tem especial relevância a presença do tema também em instrumento diverso de nosso Ordenamento Jurídico, o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), que será destrinchado a seguir.
7. TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA (TAC)
O TAC caracteriza-se por um título executivo extrajudicial, firmado por entes determinados, visando que fraudadores habituais da legislação transindividual ajustem sua conduta ao regramento legal, garantindo-lhes benefícios e/ou contrapartidas para tanto, bem como determinando cominações sancionatórias em caso de descumprimento.
Antes ainda de se iniciar o estudo mais detalhado sobre o referido instituto, cabe consignar desde logo que quase todas as suas características possuem discussão na doutrina e na jurisprudência, desde sua validade e natureza jurídica até a definição de quem é legitimado para integrá-lo e como se formaliza seu texto. Todavia, todos estes embates não são considerados como os mais importantes para este trabalho que, ao final, intenta esclarecer qual seria efetivamente a utilidade desta medida, aparentemente inócua e deveras subjetiva.
7.1. ORIGEM
A primeira aparição em nosso Ordenamento Jurídico de algo similar ao que hoje se entende pelo ajustamento de conduta estava presente na já revogada Lei de Pequenas Causas, a Lei nº. 7.244/84, que em seu artigo 55, parágrafo único, estabelecia que “valerá como título executivo extrajudicial o acordo celebrado pelas partes, por instrumento escrito, referendado pelo órgão competente do Ministério Público”.
Importante frisar que, também a partir deste artigo, parte da atual doutrina e jurisprudência iniciam a teoria de que o TAC teria, em verdade, natureza jurídica de acordo, de transação.
Isso porque, apesar de revogado pela Lei nº. 9.099/95, o texto do indigitado dispositivo foi simetricamente repetido pelo artigo 57, parágrafo único da novel legislação e continua hoje vigente.
Ainda assim, é o artigo 5º, §6º da Lei nº. 7.347/85, a chamada Lei da Ação Civil Pública (LACP), que traz expressamente em seu bojo a possibilidade de utilização do instituto em comento, todavia, tal fato não está assim colocado desde a publicação da referida
legislação, quando o mencionado artigo sequer possuía um sexto parágrafo. Foi o advento do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, que adicionou ao corpo da LACP que “os órgãos públicos legitimados (a propor a ação civil pública) poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”.
É neste momento que surge a primeira das várias divergências que abarcam o TAC: parte da doutrina entende que o artigo 113 do CDC, em verdade, foi tacitamente vetado pelo Poder Executivo quando da publicação da legislação consumerista, ou seja, o dispositivo inserido na LACP que concede aos legitimados da ação civil púbica a firmarem ajustamento de conduta não possui guarida válida, sequer poderia existir.
Xxxxxx e renomada defesa dessa teoria é encontrada nos ensinamentos do Professor Xxxxxxxxx Xxxxxx:
Os §§ 5º e 6º foram acrescidos pelo artigo 113 do Código de Defesa do Consumidor.
Acontece, porém, que, ao vetar o artigo 92, § ún., do CDC, o Presidente da República também vetou expressamente (e não implicitamente), esses §§ 5º e 6º (v. DOU 12.9.90, supl., p.11).
Provavelmente, como esse veto foi feito “incidenter tantum”, no meio das considerações relativas ao artigo 92, § ún., não se prestou atenção ao fato de que aí também se vetavam os §§ 5º e 6º do artigo 5º da Lei 7.347. Assim, por engano, a publicação oficial do Código de Defesa do Consumidor dos deu como sancionados, quando em realidade, foram vetados.
A publicação, no Diário Oficial, do texto vetado, como se tivesse sido aprovado, obviamente não pode trazer como consequência ser considerado em vigor, pois o Congresso jamais rejeito o veto, que, portanto, ainda subsiste, à espera de ser aprovado ou rejeitado (grifo nosso).
(XXXXXX, Theotônio. Código de Processo Civil comentado e legislação processual em vigor. 36. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 1.071).
Com todo o devido respeito ao ínclito jurista, a tese não possui fundamento suficiente para prosperar.
Acontece que nosso Ordenamento Jurídico não permite que se aproveite a mensagem de veto de determinado artigo a outro aparentemente similar, o poder de veto concedido ao Executivo, conforme estipulado em nossa Constituição Federal, deve observar pressupostos peculiares quanto à forma, como, por exemplo, ser expresso e estritamente
direcionado aos artigos correlatos. Vale dizer que, apesar da insistência do distinto jurista destacado acima em discordar dessa construção, o veto em questão se deu de forma implícita, e isso não é permitido em nosso país.
Ademais, afigura-se um tanto quanto absurdo aceitarmos que o Poder Executivo, principalmente na pessoa de seu representante mais importante, o Presidente da República, exerça sua função com tamanho desleixo a ponto de publicar legislação federal eivada de engano no que tange ao veto exarado.
Ora, não estamos falando aqui de um mero equívoco não substancial, de digitação, por exemplo. Estamos diante de um engano acerca do exercício adequado do poder de veto, ou seja, aceitar a tese de que os referidos dispositivos foram vetados é aceitar que o Presidente da República exerça seu cargo com falta de atenção. Ainda mais diante de lei enraizada na Constituição Federal, de caráter público e deveras importante ao cenário jurídico brasileiro.
Vale salientar que classificar o veto implícito como um engano ou uma falta de atenção não torna pejorativa ou partidária a análise da lei, uma vez que o próprio defensor da teoria do veto utilizou-se de tais nomenclaturas, como já destacado acima.
Outrossim, a camada discordante do veto implícito não possui menor tamanho ou
expressão.
O Professor Xxxxxxx Xxxxx salienta:
E sob o prisma do funcionamento do sistema jurídico no Brasil, um veto para valer tem que: a) em primeiro lugar existir no mundo dos fatos; b) ser formal e materialmente referido e adequado. É que a Constituição Federal (art. 84, C, c.c. o art. 66, §§ 1º e 2º) garante o direito de veto ao Presidente da República, dizendo que ele pode ser total ou parcial. Mas para vetar é necessário que o Presidente expressamente se pronuncie a respeito, pois “decorrido o prazo de quinze dias, o silêncio do Presidente da República importará sanção” (§ 3º do art. 65 da CF) (grifo nosso).
(XXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 835).
Ainda assim, dada a minúcia ao apresentar seu estudo sobre o tema, importa trazer os ensinamentos de Xxxxx de Xxxxx Xxxxxxxxx, in verbis:
Ora, o veto “power”, importante contribuição do direito constitucional americano aos países de regime de governo presidencialista, é, em regra, expresso, podendo ser implícito quando o ordenamento jurídico assim o faculta. O artigo 66 da Constituição Federal não prevê essa possibilidade. A regra, portanto, no nosso sistema é a de que o veto tem que ser sempre explícito e relativo formalmente a todos os dispositivos aos quais se quer vetar, o que quer dizer que quando se trata de veto parcial o Chefe do Executivo deve demonstrar a recusa em sancionar formalmente cada artigo, parágrafo, inciso ou alínea. Na verdade, tecnicamente o presidente não formalizou o veto ao artigo 113. Por conseguinte, não se pode defender a existência de um veto incidental porque as razões do veto de um dispositivo não podem ser aplicáveis a outro que não expressamente vetado. Se por descuido ou cochilo do Executivo o veto não foi aposto a preceitos idênticos, estes encontram-se em pleno vigor. Devemos combater a interpretação de Xxxxxxxxx Xxxxxx porque muitos podem dela tentar se valer para descumprirem a norma que instituiu o ajustamento de conduta, por conseguinte limitando o acesso à justiça de toda coletividade, beneficiaria da previsão normativa de um mecanismo adequado para o deslinde de diversos conflitos coletivos.
(XXXXXXXXX, Xxxxx xx Xxxxx. Ação civil pública e termo de ajustamento de conduta: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 107).
Deste modo, como não poderia deixar de ser, os tribunais não acolheram a tese de que os novos parágrafos incluídos na LACP foram tacitamente vetados e, portanto, estão vigentes em nosso Ordenamento Jurídico.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Compromisso de ajustamento. Execução. Título executivo.
O compromisso firmado perante o IBAMA e o Ministério Público constitui título executivo, nos termos do art. 5º, §6º, da Lei 7347/85, que está em vigor.
Recurso conhecido e provido. (...)
Faltou na mensagem da Presidência da República a expressa menção do art. 113 do CDC, que assim não foi objeto de veto: nem a referência constante daquele documento, quando tratava de justificar o veto ao art. 92, veio a ser votada no Congresso Nacional como compreensiva do tal veto. Portanto, concluo que a legislação em vigor permite a constituição de título executivo mediante a assinatura de termo de compromisso de ajustamento de conduta, de acordo com o par. 6º do art. 5º da Lei 7347/85, na redação dada pelo art. 113 do CDC.
(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº. 213.947-MG. Ministério Público do Estado de Minas Gerais e Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx.
Relator Ministro Xxx Xxxxxx xx Xxxxxx. Julgado em 6 de dezembro de 1999).
Superada a vigência dos dispositivos que permitem o ajustamento de conduta, cumpre esclarecer quem são os legitimados para fazerem uso deste instituto.
7.2. LEGITIMADOS
A legitimidade dos capazes para tomarem termo de ajustamento de conduta advém dos legitimados para a propositura da ação civil pública, estabelecida pelo artigo 5º da Lei nº. 7.347/85 (LACP). São eles: o Ministério Público, Defensoria Pública, a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, as autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista e associações com mais de um ano de constituição e que possuam em sua finalidade institucional a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
Essa legitimidade é simultaneamente plural e autônoma, ou seja, dentre todas as pessoas possíveis, é admissível que cada uma delas use de sua condição, bem como é cabível que duas ou mais se unam para a mesma finalidade.
A expressão mais adequada e preferida tecnicamente é a concebida pelo jurista Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, que caracteriza essa legitimação como concorrente e disjuntiva24.
Todavia, é o famigerado §6º deste mesmo artigo que delimita quais das pessoas elencadas acima possuem também a capacidade ativa para tomarem termo de ajustamento de conduta ao estabelecer que “os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”.
24 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx. Temas de direito processual: terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 198.
Assim, dentre todos os entes discriminadas no caput do artigo 5º, somente os órgãos públicos é que incorporam essa qualidade.
Neste momento mais uma divergência doutrinária se apresenta.
Uma parcela dos estudiosos especializados entende que o texto do §6º deve ser entendido de forma restrita, ou seja, somente seriam legitimados a tomarem TAC com os interessados os órgãos essencialmente públicos indicados.
A construção lógica mais atraente em prol desta teoria é a de Xxxxxxxx Reverendo Xxxxx Xxxxxx ao salientar que a publicidade do TAC eventualmente celebrado é pressuposto imprescindível à sua efetividade e os órgãos privados, apesar de aptos a conceder total divulgação de seus atos, não são legalmente obrigados a isso. Já os entes públicos possuem a publicidade como princípio básico e norteador de sua constituição.
Outro ponto que nos parece de extrema relevância é quanto à publicidade do compromisso de ajustamento de conduta, pois, enquanto os órgãos públicos estão obrigados a dar ampla publicidade de seus atos, homenagem ao princípio insculpido no “caput” do artigo 37 de nossa CF, à mesma obrigação não estariam ligadas as associações civis, o que poderia trazer inúmeros prejuízos para a efetivação das medidas tendentes à correção das ilegalidades praticadas em face dos interesses difusos e coletivos.
Realmente, não tendo a coletividade e os demais órgãos públicos notícia do ajustamento de conduta, poderiam ser tomadas medidas desnecessárias em face do responsável, assim como os termos daquele acordo não seriam de conhecimento geral, para análise e eventual.
(XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx. Compromisso de ajustamento de conduta ambiental. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2003).
No entanto, a esmagadora maioria da doutrina relacionada ao tema não comunga da mesma linha de raciocínio que o jurista em destaque.
O que vem sendo entendido pelos estudiosos do país é que o termo “órgãos públicos” deve ser entendido de forma bem definida, ou seja, sem confundir-se com pessoas jurídicas. Órgãos são desmembramentos das pessoas, com o intuito de descentralizar suas funções a fim de aperfeiçoar a atuação do ente.
Essa posição é bem definida e defendida por Xxxx xxx Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx:
Não se confundem os órgãos e as pessoas jurídicas. Estas são as entidades dotadas de personalidade jurídica, o que as torna aptas a adquirir direitos e contrair obrigações no mundo jurídico. Os órgãos são partes internas das pessoas, traduzindo mera divisão de trabalho através da desconcentração de funções, objetivando maior celeridade e eficiência na autuação da pessoa a cuja estrutura pertencem. Apenas como esclarecimento, o Estado membro é uma pessoa jurídica de direito público, mas suas secretarias, superintendências, departamentos, divisões e outros compartimentos que lhe integram a estrutura orgânica caracterizam-se como órgãos públicos “estaduais”. Por sua natureza, portanto, são despersonalizados e, salvo em situações extremamente peculiares, não têm capacidade jurídica própria.
Há dois elementos nos órgãos públicos: um subjetivo, concernente aos agentes, pessoas físicas, que os integram; outro objetivo, relacionado com as funções que lhes são atribuídas. Sendo assim, não há como deixar de reconhecer um vínculo jurídico indissociável entre o Estado e seus órgãos e agentes. Nesse vínculo, a vontade do órgão e do agente é imputada diretamente ao Estado, ou seja, quando o órgão e seu agente expressam sua manifestação volitiva, é como se esta se originasse diretamente do próprio Estado. Os efeitos jurídicos dessa manifestação ficam imputados ao Estado, pouco importando se o desempenho funcional se houve com os aspectos positivos ou negativos.
(XXXXXXXX XXXXX, Xxxx xxx Xxxxxx. Ação civil pública: comentários por artigos. 3. ed. Rio de Janeiro: Xxxxx Xxxxx, 0000, p. 200).
Segundo essa teoria, a lei teria adotado um sentido mais vasto da expressão “órgãos públicos”, enfatizando as atribuições públicas de cada legitimado.
Pactuando dessa narrativa, conclui-se que são legitimados a firmarem o TAC o Ministério Público, a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, as autarquias e fundações, as agências reguladoras (que nada mais são do que autarquias ou fundações públicas) e os conselhos profissionais, quando moldados na forma autárquica.
Consequentemente estariam sem amparo legal para a mesma finalidade as associações, as fundações públicas de direito privado e as sociedades de economia mista, por conterem em sua estrutura sempre a personalidade jurídica de direito privado, o desempenho de atividade de natureza econômica e a vinculação aos fins definidos na lei que as instituíram e, portanto, não disporiam elas da isenção necessária para assumir tal responsabilidade, principalmente em vista de sua colocação no mercado de concorrência ao lado de outras empresas, também privadas.
Vale dizer que o caráter privado dessas pessoas induz à conclusão que estas estariam mais predispostas ou mais suscetíveis a pactuarem com os interessados exclusivamente conforme seus próprios interesses, em desfavor ou até de forma alheia aos interesses comuns dos representados.
Como se verá mais adiante, até mesmo os entes públicos legitimados acabam transacionando os direitos que lhe são conferidos de foram equivocada, muito mais ao tom do que parece razoável aos fornecedores infratores do que aos próprios consumidores, em vista da enorme pressão econômica que somente os primeiros são capazes de exercer em nossa sociedade. Conceder igual legitimidade aos entes de caráter privado seria agravar consideravelmente essa situação.
Ao fim deste item, vale salientar ainda que a legitimidade destes órgãos, com exceção ao Ministério Público, deve obedecer também ao caráter temático entre o interesse do ente e o objeto da norma.
Por exemplo, seria sem sentido e carente segurança jurídica que o IBAMA, por exemplo, firmasse TAC na área do consumidor, ou ainda, que a ANATEL o fizesse no âmbito petrolífero, ou mesmo que o Município tomasse termo em interesses pertencentes à União25.
Já do outro lado da relação, como polo passivo do TAC, qualquer um pode figurar, sejam pessoas físicas, jurídicas, de direito público ou privado. Basta que tenham ou estejam na iminência de infringir os interesses transindividuais tutelados em nosso Ordenamento Jurídico.
7.3. FORMALIZAÇÃO
O Termo de Ajustamento de Conduta, por sua qualidade extrajudicial, tem caráter administrativo e, portanto, é também regulado pela Lei nº. 9.784/99, a chamada Lei do Processo Administrativo Federal.
25 XXXXXX XXXXX, Orlando. O Ministério Público e o termo de ajustamento de conduta. 238 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2008, p. 186.
Seu artigo 22 assinala que “os atos do processo administrativo não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir”.
A legislação correlata ao TAC (LACP e CDC) não estabelece forma específica para sua formatação, portanto, em vista da imposição do referido artigo acima, conclui-se que o ajustamento de conduta não possui parâmetros ou estrutura formal obrigatória a ser observada, sendo facultado às partes estabelecerem o que houverem por bem.
Evidentemente que alguns dados intuitivamente se apresentam como imprescindíveis à eficácia do instituto, bem como à sua mínima cognição pelos demais atingidos.
O jurista Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxx00 dissertou sobre quais seriam essas informações básicas e, dada sua precisão ao fazê-lo, importa aqui acompanhar seu raciocínio.
É fato que para conferir maior segurança jurídica ao termo, principalmente visando eventual execução de seu texto, o pacto deverá ser reduzido a termo, em língua portuguesa, com a necessária qualificação dos envolvidos e do amparo legal correspondente.
Vez que se trata de ajustar a conduta infratora à legislação atinente, valioso descrever em sequência lógica as razões do possível ou rotineiro desrespeito, da motivação que culminou no ajuste e sob quais aspectos da norma legal estão tratando os envolvidos.
O documento ainda necessitará de esclarecimentos acerca do objetivo que se traça com a assinatura do termo e, logicamente, do teor das cláusulas que passam a imperar sobre as relações das partes.
Por se tratar de título executivo, o TAC deve possuir liquidez, caso contrário, sua execução em caso de descumprimento estaria impedida, já que títulos ilíquidos não possuem o condão de embasar execuções. Motivo pelo qual o termo deve ostentar alguma previsão sancionatória, inclusive no que tange a grandeza econômica determinada ou determinável.
26 XXXXXX XXXXX, Orlando. O Ministério Público e o termo de ajustamento de conduta. 238 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2008, p. 194.
Adentrando mais ao mérito do que à forma propriamente dita, cumpre ressaltar que é interessante que a sanção fixada seja capaz de, na prática, atribuir caráter cominatório ao infrator e jamais se tornar uma opção admitida em ajuste. Ou seja, o ente no polo passivo do instituto não deve enxergar na sanção uma alternativa para o inadimplemento, uma saída para que nem a lei, nem o ajuste sejam observados e cumpridos. Deve ser algo de grandeza suficiente para que este se esquive veementemente de ser penalizado, prestigiando assim o objeto e o objetivo do TAC, bem como a atenção à legislação que o embasa.
O Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo, inclusive, editou súmula nesse sentido:
Súmula n. 23 – A multa ficada em compromisso de ajustamento não deve ter caráter compensatório, e sim cominatório, pois nas obrigações de fazer ou não fazer normalmente mais interessa o cumprimento da obrigação pelo próprio devedor que o correspondente econômico.
O indigitado jurista elenca também o prazo do ajuste, entretanto, salientado sua desnecessidade em regra, salvo nos casos onde há termo para o adimplemento da obrigação.
Cumpre esclarecer ainda que tudo o que se levantou até aqui acerca do ajustamento de conduta carrega consigo a ideia de que existe (i) uma finalidade útil para sua constituição, (ii) uma vinculação aparentemente obrigatória e automática dos infratores ao seu texto e (iii) uma aparente compensação satisfatória aos consumidores que, abrindo mão relativamente de seu direitos transindividuais, seriam abençoados com suposto conforto e/ou remédio mais célere do que a proteção jurisdicional que hoje dispomos, fazendo com que o instituto encontre sua utilidade no mundo prático.
Contudo, respeitando e contrariando essa linha, este estudo não extrai essa mesma conclusão, vez que, após uma análise mais aprofundada da natureza jurídica e da real vinculação do TAC sobre seus envolvidos, é possível deduzir quase que intuitivamente que a utilidade do dito acordo é deveras questionada. Como será verificado a seguir.
7.4. NATUREZA JURÍDICA E UTILIDADE
Em que pese ser praxe que a natureza jurídica seja quase sempre uma das primeiras características levantadas para o estudo da imensa maioria dos institutos jurídicos, sua aparição somente ao final deste capítulo acontece de forma intencional.
Isso porque a maior discordância apresentada por este estudo concentra-se nesse assunto tão basilar que, em virtude do rompimento que se pretende ao final desta explanação, caso o fosse feito desde o início, todo o escólio dos demais atributos anteriormente apresentados seria prejudicado.
O primeiro ponto a ser levantado para a aferição da natureza jurídica do TAC deve ser precedido, mais uma vez, de solução sobre embate doutrinário.
Boa parte dos estudos sobre o tema acolhe que o Termo de Ajustamento de Conduta tem caráter de transação, como se acordo fosse e, consequentemente, pressupõe uma relação onde há concessões recíprocas a fim de se atingir um equilíbrio que satisfaça ambos os lados.
Entretanto, parcela não menos considerável dos estudiosos deste instituto entende que, por se tratar exclusivamente de direitos indisponíveis, os legitimados estão impedidos de praticarem concessões sobre esses direitos e, por conseguinte, os ajustes de conduta não apresentam qualquer caráter transacional.
Ambas as teorias terão aqui como expoente a jurista Xxxxx de Xxxxx Xxxxxxxxx, que, antes de qualquer menção acerca de seu próprio entendimento, bem resumiu as duas formas de hermenêutica do tema:
Praticamente todos os autores que enquadram o ajuste como transação evidenciam que não seria o caso de uma transação ordinária, mas sim de uma transação especial diante da indisponibilidade intrínseca dos direitos transindividuais bem como da diversidade entre os legitimados a celebrar o ajuste e os titulares do direito material em questão. Assim, a realização de concessões mútuas, o que é típico nas transações, só poderia atingir uma esfera acidental do exercício desses direitos, ou seja, as condições de tempo, lugar e modo, mas jamais versar sobre o próprio cerne do direito.
Essa excepcionalidade não descaracteriza o instituto como transação, uma vez que apesar dessa esfera diminuta de possibilidade de transigência, o instituto teria uma eficácia típica de transação, qual seja prevenir ou encerrar o conflito. Ademais, a própria lei teria admitido a possibilidade de transação desse direito indisponível ao prever o permissivo do ajustamento.
Outra parcela dos autores compreende que o ajustamento de conduta não é uma hipótese de transação, mas sim de ato ou negócio jurídico. Não seria transação devido à natureza indisponível desses direitos. Não haveria uma verdadeira transação, ainda, porque o conteúdo do direito em questão não pode ser reduzido ou limitado, aliás, ponto em que praticamente toda a doutrina é concorde. Essa indisponibilidade objetiva dos direitos transindividuais é agravada pelo problema da legitimação subjetiva do exercício desses direitos, o que torna ainda mais inadequada a compreensão do ajustamento de conduta como transação. Por outro lado, em regra os direitos transindividuais têm natureza extrapatrimonial, o que retiraria da esfera de abrangência da transação.
(XXXXXXXXX, Xxxxx xx Xxxxx. Ação civil pública e termo de ajustamento de conduta: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 142).
Após a análise das teorias estudadas, o que se conclui, no entanto, é que os dois ensinamentos apresentam obscuridades profundas capazes de destituir toda a apreciação contígua.
No primeiro caso – onde se entende pelo caráter transacional do TAC – salta aos olhos uma indagação cujas respostas, esquadrinhadas na doutrina ao longo deste estudo, com o devido respeito, não satisfazem a intenção protetiva do Código de Defesa do Consumidor, não condizem com a ordem pública da legislação consumerista e, muito menos, com a raiz constitucional exaustivamente destacada desde o início: se a legislação consumerista foi estabelecida em nosso Ordenamento Jurídico pátrio a fim de regular área do direito onde havia (e ainda há) patente desequilíbrio entre as partes, dado a intrínseca vulnerabilidade dos consumidores e, mais ainda, se sua proteção adveio de mandamento constitucional que, dentre outras coisas, fez nascer nova parcela de direitos indisponíveis, a serem protegidos por toda e qualquer forma admitida em direito, como é que um instrumento extrajudicial, que relativiza essa indisponibilidade, exercido de forma indireta por representantes nem sempre tão qualificados ou interessados na coletividade, que limita e/ou abre mão de benefícios estabelecidos legalmente pode ser interessante para o consumidor?
Uma das respostas mais complexas e interessantes encontrada na pesquisa foi delineada pelo já mencionado jurista Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxx00 que, em síntese, defende que a urgência encontrada na proteção dos direitos transindividuais teria feito com que o legislador flexibilizasse sua indisponibilidade, a fim de conceder uma assistência mais célere aos consumidores, vez que o TAC é consumado extrajudicialmente. Isso, por si só, segundo o jurista, caracteriza-o como muito mais vantajoso ao titular do direito pelo simples fato de que uma sentença judicial, provavelmente, levaria anos para ser definitivamente atingida.
O digníssimo mestre em direito não olvida que existiria sim uma limitação e/ou diminuição dos direitos legalmente conferidos e, mais ainda, admite que o TAC trata-se sim de instituto formado com a intenção de premiar o fornecedor infrator com alguma benesse pelo simples fato de ele aceitar cumprir a lei que deveria ser-lhe imperativa.
Tudo isso somente porque, em tese, é melhor receber rapidamente seu direito, mesmo que em parte, do que aguardar a morosidade do Poder Judiciário para um deslinde que pode ou não ser mais justo, haja vista a incerteza quanto seu mérito durante toda “a espera”.
Conclui ainda que essa flexibilização advém do bom-senso e da vivência cotidiana das Promotorias de Justiça para que a sobrevivência prática do instrumento do TAC prevaleça sobre as teses meramente acadêmicas.
Com a devida vênia e respeito que cabe aos operadores do direito, a defesa dessa construção jurídica afigura-se um tanto quanto insustentável.
No capítulo seguinte, onde um TAC específico sobre as construtoras e incorporadoras será posto em exame, muitos dos argumentos aqui lançados poderão ser fielmente verificados, todavia, é imprescindível que os contrapontos a que se referem sejam colocados neste momento.
Vale iniciar esclarecendo que, por se tratar de termo de confissão de transgressão de normas ou sua iminência, bem como que a discussão entre as partes seja calorosa em vista da resistência em ceder seus próprios direitos, a assinatura e posterior homologação de um
27 XXXXXX XXXXX, Orlando. O Ministério Público e o termo de ajustamento de conduta. 238 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2008, p. 157-168.
Termo de Ajustamento de Conduta podem levar anos para serem consumadas, assim como uma ação judicial.
Aparentemente esse período é reduzido pelo fato de não ser anunciado o momento em que a negociação foi iniciada, mas somente o momento de conclusão do instrumento, cuja homologação, por exemplo, pelo Conselho Superior do Ministério Público, frise-se, pode e normalmente também leva anos.
Há uma agravante ainda.
Em vista do mercado capitalista de concorrência em que o fornecedor está inserido, onde toda e qualquer medida adotada reflete diretamente por diferentes prismas em sua estrutura, esse período de negociação somente consegue ser reduzido quando o ente legitimado acaba cedendo mais e mais benefícios ao infrator ou, pior ainda, acaba tolhendo mais ainda os direitos legais e constitucionais de seus representados.
Ademais, acolher que devido à sociedade que hoje vivemos seria impossível obrigar os fornecedores mais endinheirados a cumprir a legislação que os relaciona sem conceder-lhes uma contrapartida seria uma verdadeira vergonha28.
Estaríamos então convalidando a ineficiência do Poder Judiciário e suas medidas sancionatórias, ultrajando e diminuindo a cogência de nosso Ordenamento Jurídico e, mais do que isso, submetendo-nos a regulação de nossa sociedade, pacificamente, aos interesses das grandes empresas e companhias, deixando de lado os conceitos comezinhos de soberania e democracia de nossa República.
Já o bom-senso e a vivência do que efetivamente se vê na prática, quando usados como forma de justificativa para a caracterização do TAC como transação, como levantado pelo jurista, certamente nos levam a conclusão bastante diversa da que foi apresentada.
O próprio autor da dissertação destaca:
28 XXXXXX XXXXX, Orlando. O Ministério Público e o termo de ajustamento de conduta. 238 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2008, p. 156.
Aliás, se os legitimados para o termo de ajustamento de conduta são também, com completa autonomia, para a propositura da ação civil pública, o que garantirá que realizem pedido perfeito e adequado à completa e irrestrita adequação do comportamento do agente às determinações da lei e à completa reparação do bem lesado?
Se não se controla sequer o pedido em eventual ação civil pública, que dizer de futura sentença.
(XXXXXX XXXXX, Orlando. O Ministério Público e o termo de ajustamento de conduta. 238 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2008, p. 159).
Em verdade, o que se vê na prática é que os órgãos dos legitimados que se destinam a tomarem o TAC agem, não raras vezes, de forma desqualificada, tutelando diversamente os reais interesses dos titulares dos direitos que eles representam e, em consequência disso, abrem mão em demasia dos benefícios estabelecidos pelo Ordenamento Jurídico ou concedem aos infratores iterados verdadeiras mordomias que, disfarçadamente, legitima a manutenção de suas atitudes contrárias à lei.
Mas não é essa a única linha que nos leva a invalidade do TAC que transaciona os indisponíveis direitos transindividuais.
É cediço que o mundo legal adota o antigo brocardo do pacta sunt servanda como princípio cível, que significa, em tradução livre, que os contratos devem ser respeitados. Entretanto, é uníssona a hermenêutica que conclui que este termo, em verdade, não pode ser meramente traduzido, mas sim, que deve ser utilizado para definir todo o conceito jurídico de que os contratos têm força de lei e igualmente obrigam suas partes, desde que não infrinjam o Ordenamento Jurídico.
Essa presunção de obrigatoriedade dos contratos nos limites da lei é posta também expressamente pelo Código Civil, mais precisamente em seu artigo 104, que adverte que a validade do negócio jurídico deve ser precedida de “I – agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável”; e “III – forma prescrita ou não defesa em lei”.
Por outro lado, mas com a mesma finalidade, dispõe o artigo 166 do mesmo diploma legal que é nulo todo negócio jurídico quando “II – for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa;” e “VII – a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção”.
Apesar de ser a base da exegese da teoria explicitada, jamais houve expressamente qualquer relativização da indisponibilidade dos direitos transindividuais objetos de TAC. Assim, qualquer negociação que os relacionem de forma abrandada, suavizada ou parcial, automaticamente, terá objeto impossível, de forma defesa em lei, ilícito, fraudador de legislação imperativa e declaradamente nulo, já que são, com o perdão da redundância, absolutamente indisponíveis.
À luz dessa natureza jurídica, o que se conclui é que esse acaba sendo o final objetivo do TAC: o fornecedor, que age reiteradas vezes em assumida afronta à lei e que não consegue ser eficazmente penalizado pelo Judiciário, acorda com o os legitimados formas de dar ares de regularidade à sua conduta irregular e ainda usa desse documento firmado nas contestações das ações em que figura como réu. Além disso tudo, negocia uma amenização da aplicação da lei em relação a si para, ao final, fechando com verdadeira chave de ouro, publicar no mercado que é signatária de um TAC como forma de comprovar seu respeito aos direitos de seus consumidores, quando está, em verdade, descumprimento a lei de forma mitigada.
A segunda teoria acerca da natureza jurídica do TAC – de que não existe caráter transacional em seu bojo –, por seu turno, apesar de parecer mais acertada, também não está livre de críticas que, tal qual ocorre com a primeira teoria, a torna inconclusiva.
A indagação que se levanta aqui é outra e apresenta-se desmembrada: se não existe a possibilidade de se estabelecer concessões mútuas em vista da indisponibilidade dos direitos que cingem o TAC, qual a vinculação dos envolvidos com seu texto? Em outras palavras, o que efetivamente pode acontecer ao infrator do TAC? Se, como visto anteriormente, uma penalidade mais amena é considerada como infringência à lei, deveriam então ser estipuladas pelo TAC sanções mais agressivas do que as legais? Se for este o caso, não se estaria usando do referido instrumento para se construir uma onerosidade excessiva ao fornecedor? Um desequilíbrio? Qual a razão, afinal de contas, de o infrator submeter-se a tal propósito?
É verdade que os ajustamentos de conduta sempre estabelecem sanções aos envolvidos que deixam de cumprir com o que foi acertado, na esmagadora maioria das vezes, pecuniária, todavia, tais sanções não são capazes de gerar qualquer tipo de efeito na seara
criminal ou administrativa, bem como os efeitos civis não são automáticos, dependem de demanda própria.
Através do compromisso de ajustamento, então, não se impõem sanções penais ou administrativas, assim como a sua celebração não impede que essas venham a ser impostas por meio dos instrumentos próprios. Simplesmente, o ajustamento não conduz a qualquer influencia criminal ou administrativa, podendo apenas, no máximo, influenciar positiva ou negativamente a quantificação de eventual pena.
(XXXXXX XXXXX, Orlando. O Ministério Público e o termo de ajustamento de conduta. 238 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2008, p. 147).
Assim, ao descumprir o texto do TAC o fornecedor poderá se tornar réu somente em ação cível, no caso, de execução de título extrajudicial. O teor do pacto será analisado à luz da legislação e somente após tortuoso caminho de dilação probatória é que o réu talvez seja condenado, sendo-lhe possível alegar inclusive que a sanção estabelecida pelo ajustamento é desmedida, enquanto privilegia o princípio da ampla defesa.
Ora, tal situação assemelha-se em muito com uma simples ação ordinária de consumidor(es) prejudicado(s) em face de fornecedor infrator da legislação consumerista.
Não se afigura como enorme vantagem para nenhum dos lados o fato de que a ação iniciada por desrespeito ao TAC tenha rito executivo, enquanto a baseada em infração ao CDC seja ordinária. Os transtornos que a primeira demanda pode enfrentar para que perdure por anos a fio em trâmite dentro do Poder Judiciário são exatamente os mesmos que obstariam a celeridade da segunda.
Evidente também que nenhuma sanção pactuada pode ser mais enérgica do que as já estabelecidas em lei.
A legislação consumerista veio para equilibrar uma relação que permanece desigual desde que foi criada. Não há necessidade de que sejam estabelecidas novas regras, em forma de títulos executivos, como se a lei pertinente fosse falha ou demasiadamente benéfica aos infratores.
As imposições do Código de Defesa do Consumidor são suficientes para equilibrar a relação, basta que seu texto seja aplicado e que os fornecedores respeitem seus ditames.
Não é necessário gastar energia inventando meios de se regulamentar cada vez mais as relações de consumo, ora de uma forma, ora de outra forma. Muito mais atraente seria usar essa energia para criar meios que tornem a legislação já existente efetivamente eficaz, com forte fiscalização e penalização dos infratores.
Ademais, assim como diminuir os direitos dos consumidores com concessões mútuas é considerado equivocado por ser patentemente ilegal, é por essa mesma razão que estabelecer penalidades além do permitido parece-nos também incorreto. Até porque, as mais pesadas sanções que o fornecedor pode sofrer (penais e administrativas) estão estabelecidas no CDC e não podem ser objeto de TAC, ou seja, mesmo que se entendesse pela possibilidade de agravar as sanções aos infratores, tecnicamente falando, os legitimados estariam impedidos de fazê-lo.
Já se levantou, e ainda será exemplificado pelo capítulo que segue, que não rara as vezes o texto do ajustamento de conduta venha a ser mal redigido, seja pelo seu mérito, seja pelos interesses que efetivamente estejam sendo protegidos, todavia, ainda cumpre esclarecer que, qualquer dos legitimados que entenda que o texto pactuado esteja inadequado, possui capacidade para postular em juízo sua anulação, modificação e/ou a condenação do infrator pelos ditames legais, desconsiderando-se o TAC.
Acerca do assunto breve e claramente instrui Xxxx Xxxxx Xxxxxxxx00 que “se qualquer dos co-legitimados à ação civil pública não aceitar o compromisso de ajustamento tomado, poderá desconsiderá-lo e buscar os remédios jurisdicionais cabíveis”.
Desta feita, até em combinação com as duas teorias sobre a natureza jurídica do TAC, temos que (i) o desrespeito às suas cominações não garante a outra parte direito maior ou melhor do que a provocação jurisdicional; (ii) a vinculação dos envolvidos beira a facultatividade, já que os próprios legitimados podem desconsiderar seu texto em caso de
29 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor e outros interesses difusos e coletivos. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 209.
discordância e buscar os meios que entenderem necessários; (iii) os legitimados a tomarem o termo podem deixar de representar os reais interesses dos titulares do direito, seja por deficiência técnica, por falta de interesse ou pela pressão exercida pelos fornecedores relacionados; (iv) o objeto do TAC não pode suprimir direitos dos representados, caso em que se tornaria ilegal, todavia, sem essa supressão mínima, não há interesse dos fornecedores em aceita-lo; e, por fim, (v) a necessidade de se firmar o ajustamento, como é de sua própria natureza, já pressupõe situação de infringência iterada ou iminente à legislação de raiz constitucional sem a devida punição por parte das autoridades públicas e/ou do Poder Judiciário, deixando à mesma deriva eventual coerção para que o TAC seja efetivamente cumprido no futuro.
Levando tudo isso em consideração, ainda é necessário questionar: qual a real utilidade do instrumento em questão?
Ao passo que a resposta que mais se aproxima da realidade é: nenhuma.
Em verdade, o que se vê, é que o ajustamento de conduta mais se apresenta como um instrumento político do que efetivamente jurídico. De um lado, os fornecedores que visam legitimar de alguma forma suas atitudes sabidamente ilegais em troca de uma aplicação abrandada da lei e, de outro, o Estado, cujo Poder Judiciário tem encontrado duras falhas no que tange a morosidade, coercitividade e eficácia, tentando, à socapa, mostrar aos jurisdicionados que a situação está sendo controlada quando, na realidade, o controle está nas mãos de quem aceita submeter-se a um TAC.
8. O TAC FIRMADO ENTRE A PROMOTORIA DE JUSTIÇA DO CONSUMIDOR DE SÃO PAULO E O SECOVI-SP
Imprescindível análise sobre o instituto do ajustamento de conduta se fez necessária no capítulo anterior para que, neste momento, o estudo pudesse ater-se ao seu tema central: o TAC proposto em relação ao prazo de entrega na construção civil e a cláusula de tolerância.
Isso porque o Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de São Paulo (SECOVI-SP) firmou, em 26 de setembro de 2011, Termo de Ajustamento de Conduta com a Promotoria de Justiça do Consumidor de São Paulo, órgão do Ministério Público, estipulando, dentre outras coisas, prazo de tolerância para a entrega da obra sem qualquer justificativa comprovada dos fornecedores aos consumidores adquirentes.
Superado o entendimento acerca das principais características do referido instituto, é possível então apresentar as pertinentes análises ao referido TAC específico e, principalmente, entender se o indigitado instrumento altera o que já restou explicitado até aqui.
8.1. SECOVI-SP
Brevíssima explicação é necessária acerca dos pontos institucionais do SECOVI- SP antes de adentrarmos aos meandros do TAC firmado.
Fundado em 1946, como todo sindicato, tem como principal norte de sua atividade a defesa dos interesses das empresas de seu ramo, o imobiliário, todavia, supostamente, sob uma ótica cidadã.
Sua missão, segundo informações da própria organização, é a de “desenvolver, representar, promover e defender a atividade imobiliária em seus segmentos, dentro de padrões reconhecidamente éticos e comprometidos com o anseio da coletividade”30.
Entretanto, o ponto mais interessante da instituição não é seu caráter associativo que busca soluções para as principais dificuldades de seus associados, pois essa característica é peculiar de todo e qualquer sindicato, mas sim, o que chama mais atenção é sua pretensão de colocar-se também como instituição de ensino.
O SECOVI-SP desenvolveu o que chama de Universidade Secovi. Trata-se de instituição de ensino onde são oferecidos cursos que capacitam e aprimoram os profissionais, além de conferirem-lhes designações. Indica ainda parcerias relacionadas com entidades educativas respeitáveis e importantes tanto no cenário nacional quanto internacional.
Sob essa análise, parece-nos que a meta cidadã da organização foi devidamente atingida. Entretanto, como se verá adiante, a postura adotada na defesa de seus interesses perante as relações de consumo infringe princípios basilares do Direito do Consumidor e não condiz com qualquer espécie de auxílio à coletividade ou com os atributos intrínsecos de uma instituição de ensino de respeito.
8.2. PONDERAÇÕES SOBRE O TAC FIRMADO
Em que pese o inteiro teor do referido ajustamento ser breve o suficiente para ser aqui colacionado inteiramente, seu texto será desmembrado, visando um entendimento mais didático do todo. Outrossim, cópia integral do documento encontra-se disponibilizada ao final deste trabalho31.
As alíneas “b” e “b.1” do item 1 do indigitado TAC dispõem que as empresas incorporadoras, associadas ou não, serão orientadas pelo SECOVI-SP para que:
30 SECOVI-SP. Missão. Disponível em <xxxx://xxx.xxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxxxx/xxxxxx-x-xxxxxxxx-xx- qualidade>. Acesso em 1º de dez. 2012.
31 Anexo I – Termo do Ajustamento de Conduta assinado pela Promotoria de Justiça do Consumidor do Estado de São Paulo e o SECOVI-SP em 26 de setembro de 2011.
b) incluam cláusula contratual que, junto com a cláusula de informação do prazo estimado de obra (“Prazo Estimado de Obra”), indique com clareza, transparência e com o mesmo destaque, se há previsão de prazo de tolerância (“Prazo de Tolerância”) para a conclusão da construção;
b.1) a informação ou publicidade que mencionar o Prazo Estimado de Obra deverá também indicar o Prazo de Tolerância, se houver.
(Anexo I – Termo do Ajustamento de Conduta assinado pela Promotoria de Justiça do Consumidor do Estado de São Paulo e o SECOVI-SP em 26 de setembro de 2011).
A afronta a toda a legislação já mencionada aqui é descarada.
Antes de tudo, vale salientar que, dentre todas as construções jurídicas que desaguam na imprescindível necessidade de o construtor ou incorporador apresentarem prazo determinado para a entrega das obras, o já realçado artigo 48, §2º da vigente Lei nº. 4.591/64, cumulado com o inciso XII do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, são expressos ao determinar que não há que se falar em prazo estimado de obra. A obrigação deve possuir uma data pétrea para o adimplemento.
Isso parece até bastante óbvio, pois somente assim seria possível aferir o termo inicial da responsabilidade civil do fornecedor, todavia, o ajustamento em destaque optou por ignorar a legislação imperativa.
Seguindo com seu texto, orienta que as construtoras informem claramente o prazo de tolerância que estará sendo unilateralmente imposto ao consumidor pelo contrato a ser aderido.
Como já vimos, o consumidor é protegido pela legislação de raiz constitucional acerca do momento em que deverá receber a informação sobre o prazo determinado para o adimplemento da obrigação do fornecedor, qual seja, antes da contratação.
É possível verificar ainda que a incongruência entre as duas alíneas é tamanha que elas mesmas, desconsiderando-se até a ótica do CDC, são inconclusivas.
Ora, se o prazo de entrega de obra não é determinado, é apenas estimado, qual a razão para se estipular além dele um período de tolerância injustificada? Bastaria abranger a estimativa do primeiro prazo oferecido ao consumidor e infringir a legislação uma única vez.
E afinal, quando inicia o prazo de tolerância, já que o termo final da entrega é meramente estimado?
Nem é preciso esclarecer que, para o referido órgão, é adequado adotar-se a plena vigência da Lei nº. 4.591/64, principalmente no que tange ao seu artigo 48, §2º, todavia, absolutamente nenhuma menção é feita pelo referido TAC no que tange a obrigação imposta pelo próprio artigo cuja validade é defendida: discriminar as condições e formas com que se dará eventual prorrogação. Uma mera e infundada extensão do prazo, pautada em lapso de dias indiscriminadamente estabelecido não respeita a legislação em questão, muito menos o CDC.
São perguntas evidentemente sem respostas, que nos direcionam para um único caminho, já apresentado no capítulo anterior: o TAC tem sido usado com o único objetivo de os fornecedores encontrarem meios para legitimamente fraudarem a lei, mitigando sua aplicação.
A alínea “c” do mesmo item 1 é a mais esmiuçada e, portanto, será analisada em partes. Impõe seu texto que o SECOVI-SP se prontificará a orientar as construtoras para que estas incluam em seus contratos algumas regras acerca do prazo de tolerância esculpido no dispositivo que o precede, a saber, “c.1) o Prazo de Tolerância não poderá ser superior a 180 (cento e oitenta) dias além do Prazo Estimado de Obra”32.
Não. Não há que se falar em limitar o prazo de tolerância, uma vez que a quantidade de fatores que podem contribuir para a extensão do prazo é ilimitada e, se foram devidamente estipuladas, poderão garantir ao fornecedor um prazo até superior ao pretendido pelo TAC. Ele por si só, sem o acompanhamento de suas condições e formas detalhadas, infringe as regras do CDC e da legislação correlata às construtoras, além de impedir que o adquirente utilize-se de seu direito mor: a escolha consciente.
Seguindo.
32 Anexo I – Termo do Ajustamento de Conduta assinado pela Promotoria de Justiça do Consumidor do Estado de São Paulo e o SECOVI-SP em 26 de setembro de 2011.
c.2) a incorporadora deverá encaminhar periodicamente (com intervalo máximo de 180 dias) aos adquirentes de unidades autônomas (“Consumidores”) de cada empreendimento relatórios informativos sobre o andamento das respectivas obras da incorporação.
(Anexo I – Termo do Ajustamento de Conduta assinado pela Promotoria de Justiça do Consumidor do Estado de São Paulo e o SECOVI-SP em 26 de setembro de 2011).
Sobre este dispositivo faz-se obrigatório levantar a completa inutilidade de sua existência, vez que seu texto repete sistematicamente o comando do inciso I do artigo 43 da Lei nº. 4.591/64, destacado e analisado anteriormente, portanto, cuja repetição aqui não se faz interessante.
A disposição seguinte, “c.3”, é uma das mais contraditórias, e prescreve que “a incorporadora deverá informar, com antecedência mínima de 120 (cento e vinte) dias, se o Prazo Estimado de Obra se estenderá pelo Prazo de Tolerância”33.
Já foi salientado que a própria existência de um ajustamento de conduta pressupõe uma reiterada postura irregular por parte dos fornecedores envolvidos. Entretanto, a alínea “c.3” do referido TAC firmado entre a Promotoria de Justiça do Consumidor e o SECOVI-SP, já que eivada de nulidade quanto ao seu mérito, serve apenas de confissão a respeito da completa ilegalidade que banha as condutas das construtoras e incorporadoras.
A grande questão aqui é a insistência em tratar o prazo primeiramente estabelecido como estimado.
Tal qual já frisado, o simples fato de o prazo para a entrega da obra ser meramente estimado já é suficiente para tornar o termo de ajustamento patentemente ilegal. Anteriormente também acabou por se questionar como seria definido o termo inicial para o prazo de tolerância, já que o primeiro deles é incerto.
Esta disposição, provavelmente, pretendia resolver essa questão, no entanto, afundou seu teor mais ainda em invalidade jurídica quando admitiu que somente no período compreendido entre os últimos 120 (cento e vinte) dias para a data provável de entrega é que
33 Anexo I – Termo do Ajustamento de Conduta assinado pela Promotoria de Justiça do Consumidor do Estado de São Paulo e o SECOVI-SP em 26 de setembro de 2011.
o consumidor será informado qual o termo final que o fornecedor adotou para seu adimplemento, em total e intencional desrespeito aos indicados artigos 39, inciso XII do CDC e 48, §2º da Lei nº. 4.591/64.
Os dois próximos itens que seguem merecem apreciação conjunta, bem como repúdio veemente de seu texto:
c.4) a incorporadora deverá informar, com clareza e transparência, que o Prazo de Tolerância dispensa a comprovação de motivos justificadores da postergação do Prazo Estimado de Obra;
c.5) a incorporadora deverá informar, com clareza e transparência, que o Prazo Estimado de Obra poderá se estender além do Prazo de Tolerância, desde que alegados e comprovados motivos de caso fortuito ou força maior, ou culpa exclusiva dos consumidores.
(Anexo I – Termo do Ajustamento de Conduta assinado pela Promotoria de Justiça do Consumidor do Estado de São Paulo e o SECOVI-SP em 26 de setembro de 2011).
Na primeira alínea o que se pretende é muito claro e não há necessidade de qualquer pudor para ser criticado. Não se trata de interpretação lógico-sistemática para que o caso fortuito e a força maior integrem as excludentes de responsabilidade, mas sim de verdadeiro insulto aos maios comezinhos princípios do Direito e, principalmente, do equilíbrio entre as partes.
O SECOVI-SP intenta, por meio deste comando, impor que o inadimplemento das construtoras e incorporadoras sequer seja subjetivamente apreciado, planeja-se aqui, em verdade, expressamente legitimar que o atraso dos fornecedores seja admitido de forma absolutamente injustificada, em total dissonância com os exaustivamente indicados artigos 39, inciso XII do CDC e 48, §2º da Lei nº. 4.591/64.
Mas esta ofensa aos direitos consumeristas não parece suficiente ao TAC, que prossegue violando.
Novamente, o próprio texto do ajustamento se confunde, mesmo ignoradas as regras impostas pelo CDC, afinal, se já foi estabelecido que a construtora não deve qualquer satisfação ao consumidor em relação aos motivos que levaram-na à inadimplência num primeiro momento, seguindo a mesma linha absurda e irresponsável, o caso fortuito e a força
maior também poderiam ser substituídos pela completa ausência de justificativa num segundo momento, já que, enfim, o direito violado é o mesmo.
Assim, vê-se que ou a incapacidade técnica do legitimado neste caso foi imensa ou a pressão política do sindicato formado pelos fornecedores é tamanha que até para seguir o raciocínio ilógico que permeia o texto do referido TAC encontra-se dificuldade cognitiva.
Contudo, em resumo, ficou estabelecido até aqui que: (i) o prazo instituído para a entrega da obra será impositivamente tolerado em até cento e oitenta dias sem qualquer justificativa de sua necessidade e, (ii) caso sejam verificados hipóteses de caso fortuito ou força maior, o adimplemento do fornecedor poderá inclusive ultrapassar essa tolerância, atingindo até futuro completamente incerto, uma vez que não precisaria ser estabelecida qualquer previsão para os fatos geradores do atraso.
Mais adiante, o SECOVI-SP pretende pactuar com a Promotoria de Justiça especializada que, de qualquer forma, durante o injustificado prazo de tolerância, nenhum ressarcimento será devido ao consumidor cujo bem não foi entregue, transferindo à ele, portanto, o risco da atividade das construtoras e das incorporadoras.
c.6) a incorporadora deverá informar, com clareza e transparência, que durante o Prazo de Tolerância, por sua própria natureza, não incide qualquer penalidade moratória ou compensatória, que tenha como causa o não cumprimento do Prazo Estipulado de Obra.
(Anexo I – Termo do Ajustamento de Conduta assinado pela Promotoria de Justiça do Consumidor do Estado de São Paulo e o SECOVI-SP em 26 de setembro de 2011).
É cediço que a doutrina consumerista ainda discute se a teoria imposta pelo Código de Defesa do Consumidor ao fornecedor é a do risco integral ou do risco parcial, entretanto, não há dúvidas de que o risco da atividade a ser exercida jamais recairá direta e primeiramente ao consumidor, como se pretende aqui.
Já as alíneas que seguem tratam das cláusulas penais que o SECOVI-SP indicará às empresas do ramo imobiliário como necessárias aos seus contratos:
d) incluam cláusulas penais (“Cláusulas Penais”), sendo:
d.1) uma de natureza de cláusula penal compensatória (“Cláusula Penal Compensatória”) no valor correspondente a 2% (dois por cento) do valor até então pago pelo Consumidor, corrigido pelo mesmo índice de correção do contrato, a título de preço (o valor do principal, excluídos eventuais juros moratórios ou multas moratórias), aplicáveis uma única vez a partir do final do Prazo de Tolerância;
d.2) outra, como cláusula penal moratória (“Cláusula Penal Moratória”) no valor correspondente a 0,5% (meio por cento) ao mês (ou fração, calculado “pro rata dies”) do valor até então pago pelo Consumidor, corrigido pelo mesmo índice de correção do contrato, a título de preço (o valor do principal, excluídos eventuais juros moratório ou multas moratórias), a partir do final do Prazo de Tolerância.
(Anexo I – Termo do Ajustamento de Conduta assinado pela Promotoria de Justiça do Consumidor do Estado de São Paulo e o SECOVI-SP em 26 de setembro de 2011).
Tal qual tudo o que foi elencado pelo referido TAC, as destacadas cláusulas penais deverão ser consideradas abusivas sempre que constarem em contrato de compra e venda de imóvel.
Devidamente delimitado o prazo de entrega da unidade autônoma, a construtora deverá ser responsabilizada por todos os danos, materiais e morais, que fizer insurgir na vida do consumidor pelo injusto atraso. Não há que se falar em estipular de antemão que a compensação correspondente ao dano seja limitada à determinada porcentagem. Mais desacertado ainda é estabelecer juros moratórios abaixo do que a legislação vigente entende como mínimo.
Igualmente, apesar de já salientado, vale repetir que não se pode considerar como termo inicial da mora da construtora o início do tal prazo de tolerância. Inexiste base legal para a existência de cláusula nesse sentido. Os juros, a mora e os danos serão calculados a partir do dia seguinte ao prazo em que o dano se deu, qual seja, o atraso injustificado.
Ademais, o principiológico artigo 6º, inciso II do Código de Defesa do Consumidor bem define que um dos direitos básicos do consumidor refere-se a “educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações”. Vale dizer que, assegurada a igualdade nas contratações, os índices utilizados para o cálculos dos juros moratórios e/ou compensatórios em decorrência de inadimplemento do consumidor serão também utilizados nos casos de não cumprimento da obrigação por parte do fornecedor, não pode o TAC violar este princípio,
desequilibrando mais ainda a relação que já pende para o lado do fornecedor naturalmente, desde seu nascimento.
Este princípio de igualdade inclusive já seria o bastante para que o referido ajustamento não fosse assinado, afinal, seu texto estabelece que o fornecedor tenha benefícios quanto ao adimplemento de sua obrigação, injustificadamente, que não são concedidos também ao consumidor, tornando a contratação, de pronto, mais desequilibrada.
Findas as orientações das quais o SECOVI-SP se prontificou a repassar às construtoras, o TAC firmado com a Promotoria de Justiça comtempla multa sancionatória caso o referido sindicato não o faça:
4. O SECOVI-SP ficará sujeito ao pagamento de multa (“Multa”) correspondente a 3% (três por cento) sobre o valor total da contribuição sindical das incorporadoras por ele representadas para o exercício de 2011, no caso de descumprimento da Obrigação assumida por este Termo de Compromisso, sem prejuízo das medidas judiciais cabíveis.
(Anexo I – Termo do Ajustamento de Conduta assinado pela Promotoria de Justiça do Consumidor do Estado de São Paulo e o SECOVI-SP em 26 de setembro de 2011).
De fato, infringência legal o referido dispositivo não possui, entretanto, serve para demonstrar a fragilidade que o instrumento de ajustamento possui em face de seu fornecedor tomador.
Qual a intenção que o SECOVI-SP teria para não cumprir um TAC cujo objeto é simplesmente repassar uma informação? Informação essa de total interesse de seus associados e demais empresas do setor, haja vista que o teor do documento diretamente autoriza-os, todos, a infringirem a lei com uma possível chancela estatal em eventual homologação do referido termo pelo Conselho Superior do Ministério Público.
Não que devesse ser dificultoso o cumprimento do TAC, mas num pacto de concessões mútuas, de quais concessões por parte do fornecedor (ou seu representante) efetivamente estamos falando no ajustamento que acabamos de decompor?
O objetivo do termo levantado é meramente informar, orientar e divulgar as empresas do setor. Sequer é necessário documento de tamanha formalidade para atingir esse objetivo. Bastaria ao SECOVI-SP providenciar publicidade em jornais de grande circulação ou, mais simples do que isso, enviar correspondência física ou até mesmo eletrônica diretamente aos seus associados.
Afinal, após a orientação passada pelo sindicato às empresas de que elas devem integrar tais cláusulas aos seus contratos, pergunta-se: e se elas desobedecerem à orientação? O que vai acontecer? Ora, nada.
Verifica-se, portanto, que mesmo que o texto do TAC fosse efetivamente favorável ao consumidor e surgisse de forma realmente capaz de regrar a conduta irregular dos fornecedores, suas disposições ainda careceriam de coerção. Não obstante o fato de que se afigura bem distante a situação onde este seja o único problema do referido ajustamento.
Os dispositivos do TAC são patentemente ilegais e ferem cabalmente as proteções concedidas aos consumidores pela via legal após décadas na busca de equilíbrio entre as partes.
Somente diante da avaliação realizada neste capítulo é que podemos concluir o que foi levantado pelo capítulo anterior com relação à natureza jurídica e a utilidade de um termo de ajustamento de conduta.
Apresenta-se bem mais cristalina agora a ideia de que não se pode imprimir caráter transacional ao ajustamento de conduta. Primeiramente pelo fato de que os direitos transindividuais são indisponíveis, como já salientado, mas também porque a justificativa dos defensores dessa tese baseia-se na argumentação de que uma simples relativização desses direitos é que será efetivada em prol do TAC, ou seja, somente uma singela alteração nos benefícios concedidos pela lei é que será concretizada.
É facilmente perceptível que o que vem a ser uma singela alteração pra uns, pode não o ser para outros. Esse conceito mostra-se demasiadamente subjetivo e, por não possuir qualquer limite, concede margem a ajustamentos completamente transgressores, como é o caso do instrumento destacado neste estudo.
Não se viu aqui mera relativização dos direitos dos consumidores, mas sim, verdadeira dilaceração do CDC e da legislação correspondente. Pior ainda, em favor de interesses políticos e econômicos de infratores iterados que pretendem, em verdade, desconstituir os ditames legais que lhe são impostos.
A subjetividade desmedida não encontra teto nem mesmo após ultrapassar os limites do exagero.
Ainda assim, não há como comungar sem ressalvas da teoria de que o TAC não deve possuir atributos transacionais, haja vista ser intuitivo concluir que nenhum fornecedor se interessaria em assinar um pacto que não lhe trouxesse qualquer benesse.
Deste modo, infelizmente, o definitivo acato pela tese de que o instrumento trazido pelo legislador, visando cultivar a proteção dos direitos dos consumidores, em verdade, é inútil, apresenta-se acertado de forma muito mais aguda e exasperada. Se não pela sua completa ineficiência quando retirado seu caráter transacional – vez que lhe resta somente repetir o texto legal –, pela sua completa distorção quando inserido o atributo de transação, já que a subjetividade exacerbada acerca dos limites da relativização da indisponibilidade dos direitos transindividuais acaba por torná-lo uma ferramenta contra o consumidor, verdadeiro vulnerável e titular do direito que se pretende proteger.
8.3. A NÃO HOMOLOGAÇÃO DO TAC FIRMADO E A POSTURA DOS ENVOLVIDOS Mesmo que a existência do Termo de Ajustamento de Conduta destrinchado pelo
item anterior já tenha sido usada como forma de contestação, desde sua assinatura, nas ações em que as construtoras e incorporadoras figuram como rés, em 19 de junho de 2012, o Conselho Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo decidiu, por unanimidade, não homologar o pacto.
O texto integral do voto da Procuradora de Justiça Conselheira Xxxx Xxxxxx, acompanhado por todos os demais integrantes, segue anexado a este trabalho34 e não há necessidade de que seu texto integral seja repetido, todavia, algumas apreciações pontuais merecem espaço no estudo.
Apesar de apontar inúmeras infringências que o referido ajustamento comete, todas levantadas por meio do item anterior, a principal crítica da digníssima Procuradora foi que o texto do TAC ignora completamente o princípio da igualdade nas relações, imposto pelo artigo 6º, inciso II do CDC, também já salientado.
Foi, portanto, prestigiado o entendimento de que se estaria conferindo benefícios aos fornecedores sem igual concessão aos consumidores, o que, em uma relação de partes iguais, já salta aos olhos o desequilíbrio e, mais ainda, numa relação de consumo, onde o consumidor já possui uma vulnerabilidade intrínseca, o balanço necessário para o contrato é totalmente suprimido.
Vale destacar um dos principais trechos de seu voto:
Realmente, tal cláusula de tolerância, inserida nos contratos de promessa de compra e venda de imóveis, como um prazo de 90, 120 ou 180 dias, após o prazo final estabelecido para a entrega do imóvel, dentro do qual se admite o atraso da empresa na entrega da obra, sem qualquer justificativa e sem a imposição, a ela, de qualquer ônus, não é igualmente estabelecida em favor do consumidor, que não goza do mesmo benefício, no tocante aos prazos fixados para o cumprimento de suas obrigações.
(SÃO PAULO. Conselho Superior do Ministério Público. PT nº. 161997/11. Queiroz Galvão Desenvolvimento Empreendimento S/A, Xxxx Xxxxxxxxx e SECOVI-SP. Conselheiro Relator Doutor Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx. Julgado em 19 de junho de 2012, p. 4).
Evidentemente, é necessário deixar claro que este argumento, tal qual como qualquer outro que infrinja a legislação federal tratada, é suficiente para embasar judiciosamente a não homologação do referido TAC, contudo, não se pode disseminar a ideia de que então, para legalizar o seu texto, basta conceder ao consumidor os mesmos benefícios que se pretende dar aos fornecedores, ou seja, verificar a existência de descumprimento ao
34 Anexo II – SÃO PAULO. Conselho Superior do Ministério Público. PT nº. 161997/11. Queiroz Galvão Desenvolvimento Empreendimento S/A, Xxxx Xxxxxxxxx e SECOVI-SP. Conselheiro Relator Doutor Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx. Julgado em 19 de junho de 2012.
princípio do equilíbrio das contratações já torna desnecessária a análise de todas as outras infringências, posto que o TAC já poderia ser desconsiderado de pronto, entretanto, caso seja “remediada” a questão da desigualdade, não há que se falar em adequação do ajustamento aos ditames legais, pois ainda segue eivado de inúmeras outras improbidades.
Antes de finalizar seu voto, a Procuradora de Justiça Conselheira encontra outra forma de denotar uma das construções jurídicas que se abstrai do item anterior deste mesmo capítulo: que o próprio texto do TAC, mesmo que não seja posto à luz do Código de Defesa do Consumidor, é contraditório e injustificável, o que nos leva à conclusão de que tê-lo como manifestamente político e intencionalmente alheio aos princípios consumeristas é uma ideia bastante plausível. Assim descreve:
Compete à empresa assumir os ônus e os riscos de sua atividade empresarial, na mesma medida em que a executa para obtenção de seus lucros.
Não pode querer transferir ao consumidor, ainda que dentro de um determinado prazo, todo o ônus do atraso da obra, por fatores externos usuais, como são aqueles justificadores do denominado “prazo de tolerância”.
Realmente, se a cláusula de tolerância, por até 180 dias, já vem sendo há anos adotada pelo mercado imobiliário, disto resulta a conclusão lógica e necessária, de que o atraso da obra, dentro deste período, é absolutamente previsível para as empresas, não sendo razoável, nem consentâneo com os princípios da boa fé e da equidade, que já não tenha, este mesmo mercado imobiliário, passado a adotar tal prazo de tolerância como inserido no prazo final de entrega da obra.
Ou seja, se os atrasos não fossem comuns, corriqueiros e previsíveis, dentro do estabelecido “prazo de tolerância”, não se justificaria a inserção da cláusula de tolerância na maioria dos contratos.
Assim, o correto seria a empresa estabelecer um único prazo de entrega da obra, assumindo, a partir daí, em caso de atraso, os ônus disto advindos, tais como eventual rescisão contratual pedida pelo consumidor, ação indenizatória por perdas e danos, multas e juros porventura estabelecidos no contrato, etc. (grifo nosso).
(SÃO PAULO. Conselho Superior do Ministério Público. PT nº. 161997/11. Queiroz Galvão Desenvolvimento Empreendimento S/A, Xxxx Xxxxxxxxx e SECOVI-SP. Conselheiro Relator Doutor Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx. Julgado em 19 de junho de 2012, p. 6).
Deste modo, em virtude do acatamento unânime dos argumentos bem delineados pela Procuradora Conselheira Xxxx Xxxxxx, o Ministério Público houve por bem, como é de praxe inclusive, emitir nota oficial à imprensa informando a não homologação do texto do
ajustamento firmado pela Promotoria de Justiça do Consumidor com o SECOVI-SP, destacando ainda os principais argumentos que o levaram a esta decisão.
A nota, cuja íntegra também segue anexa35, deu especial destaque a um fato levantando pelo indigitado voto vencedor: existem ainda em curso nove ações civis públicas ajuizadas pelo próprio órgão signatário do TAC por meio das quais pretende exatamente a declaração de nulidade da referida cláusula de tolerância. Em uma dessas ações, inclusive, foi homologado acordo com a ré no sentido de que esta se abstenha terminantemente de incluir em seus contratos o benefício da tolerância injustificada, bem como sejam pactuadas sanções acerca de seu inadimplemento dentro do prazo estabelecido.
Com isso, insurge mais uma razão para que o TAC não seja aceito, afinal, nas palavras da própria Procuradora “não podemos dar por vencida uma luta que ainda podemos vir a ganhar, até porque embasada em corretos e jurídicos fundamentos”36.
Do outro lado do fato e com ótica distinta sobre os preceitos e princípios de defesa do consumidor, o SECOVI-SP também se manifestou publicamente.
Em 26 de junho de 2012, uma semana após a decisão do Conselho Superior do Ministério Público, a página eletrônica do sindicato destacava a notícia de seu resultado e, ao final, não somente a repudiava, mas também fazia questão de destacar que, em virtude de suposta aceitação massificada do Poder Judiciário, a ilegal tolerância imposta injustificadamente aos consumidores adquirentes de unidades autônomas continuaria a ser adotada, confessando assim não só o passado e iterado desrespeito aos ditames legais, mas também o futuro37.
Para justificar os motivos que o levaram a classificar a não homologação do TAC como equivocada, o SECOVI-SP esclareceu:
35 Anexo III – NOTA À IMPRENSA – Atraso na entrega das obras: “Não Homologação do TAC firmado com o SECOVI, pelo Conselho Superior do Ministério Público”.
36 SÃO PAULO. Conselho Superior do Ministério Público. PT nº. 161997/11. Queiroz Galvão Desenvolvimento Empreendimento S/A, Xxxx Xxxxxxxxx e SECOVI-SP. Conselheiro Relator Doutor Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx. Julgado em 19 de junho de 2012, p. 10.
37 SECOVI-SP. Conselho Superior do MP-SP rejeita TAC relativo a atraso de obras. Disponível em
<xxxx://xxx.xxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxxx-xxxxxxxx-xx-xx-xx-xxxxxxx-xxx-xxxxxxxx-x-xxxxxx-xx-xxxxx/0000>. Acesso em 1º de dez. 2012.
1. O prazo de tolerância de até 180 dias é praticado há décadas nos contratos imobiliários e amplamente aceito pelos Tribunais devido às particularidades da produção imobiliária, que envolve uma infinidade de componentes e um longo prazo de produção, além de ser um acordo entre as partes perfeitamente legal.
2. A "não homologação" do TAC com o Secovi-SP não implica em proibição da cláusula de tolerância, que é admitida pelo sistema legal e pela jurisprudência, como acima destacado.
3. Cumprindo o compromisso assumido com o Ministério Público, o Secovi-SP continuará a recomendar a seus associados e representados que adotem os procedimentos constantes no TAC: eles beneficiam o mercado e preservam os interesses do consumidor.
4. O Secovi-SP continuará insistindo no diálogo transparente com os inúmeros interlocutores do mercado, especialmente o Ministério Público, a fim de encontrar uma equilibrada relação de consumo, que pressupõe conhecimento profundo do setor e suas especificidades, sem preconceitos.
Especial destaque para a classificação do infundado prazo de tolerância como regular à luz do Ordenamento Jurídico, bem como para a insistência até bitolada de que ela beneficiaria o mercado, e mais, preservaria os direitos dos consumidores.
Não é necessário mais do que uma cognição superficial para se concluir que a preservação dos direitos dos consumidores não é objeto das medidas adotadas pela instituição e que a referida alegação, se não puder ser tida como manifestadamente falsa, deve ser vista, ao menos, como estreita, pois não se coaduna, em nenhuma hipótese, com a legislação protetiva levantada neste trabalho, em que pese a insistência do SECOVI-SP em discordar.
Assim, vemos que o TAC em nada altera a conclusão obtida após a análise dos preceitos legislativos que regulam o tema. Não pelo fato de estar ausente sua homologação, mas sim por ser totalmente contrário à lei, ocasionando, portanto, em afastamento obrigatório de seu texto pelos juízos que discutem sua aplicação.
Outrossim, caso a homologação pelo Conselho Superior do Ministério Público tivesse ocorrido, nada obsta o entendimento acerca da inutilidade do instrumento do TAC em si, já que, como visto neste capítulo, seu texto (i) não necessariamente vincula os envolvidos,
(ii) pode objetivar simples manobra política, (iii) não está livre de basear-se em afronta à lei,
(iv) não possui segurança de ter sido projetado, analisado ou revisto de forma adequada pelos legitimados e, (v) para que não destitua direitos básicos do consumidor ao invés de relativizar
sua indisponibilidade, é obrigado a apenas repetir as disposições legais, faltando-lhe, todavia, o poder de coerção necessário.
8.4. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS LEGITIMADOS
Finalizando o capítulo dedicado ao termo de ajustamento, percebe-se que a não homologação do referido TAC pelo órgão superior do Ministério Público não garante a segurança dos direitos transindividuais destacados ao longo do trabalho, uma vez que o órgão inferior do mesmo ente, signatário do indigitado termo e cujo principal objeto de constituição é a defesa dos interesses dos consumidores, dispôs-se a afrontar a legislação consumerista e sujeitou um pacto nitidamente ilegal e tendencioso à apreciação de seu Conselho Superior que, em caso de homologação, estaria dilacerando os ditames do Código de Defesa do Consumidor.
Desta feita, urge questionar: no caso de infringência à lei por parte dos fornecedores que, contudo, possuem chancela de um homologado TAC, ainda que com teor ilegal, a responsabilidade solidária prevista no CDC estende-se aos signatários do TAC que autorizaram essa afronta legal?
É cediço que sempre que um jurisdicionado sentir-se lesado por ato de órgão estatal terá em suas mãos a possibilidade de procurar as vias de ressarcimento que julgar necessárias, e o Estado, como responsável por tutelar o direito, não pode deixar de responder quando causar dano a terceiros por violação desse direito. Ademais, sendo pessoa jurídica, é titular de direitos e deveres.
Superada a ideia de que o consumidor prejudicado não ficará sem o ressarcimento do Estado, pergunta-se: qual ente, órgão ou membro do Estado deverá ser responsabilizado? A Procuradoria especializada, a pessoa do procurador, o Ministério Público ou o próprio Estado? Sob qual teoria, objetiva ou subjetiva? Qual a fundamentação?
É verdade que o artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor integra os serviços prestados pelo Estado aos ditames consumerista, entretanto, não é razoável classificar que a Promotoria de Justiça do Consumidor, ao exercer seu papel de legitimado para firmar
um TAC em prol dos titulares do direito, atue como prestador de serviço público, portanto, não há que se falar em responsabilização por defeito na prestação de serviço sob as regras do CDC.
Ainda assim, os órgãos que eventualmente lesarem os particulares não estão eximidos de responsabilidade.
A Constituição Federal, em seu artigo 37, §6º, define que:
§6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Uma grande repartição na doutrina sempre houve em relação a este dispositivo visando determinar a aplicação ou não do artigo 70, inciso III do Código de Processo Civil quando o assunto são os entes públicos38.
Isso porque, o indigitado dispositivo prevê que a denunciação da lide é obrigatória “àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda”.
Grandes nomes da doutrina, em quantidade e em expressão, entendem pela não aplicação da denunciação da lide ao caso, em vista, principalmente, da existência de diversos fundamentos de responsabilidade do Estado e do servidor; do simples fato de a denunciação acabar por introduzir outra lide no bojo da contenda entre a vítima e o Estado, alheia à discussão iniciada, retardando seu fim; bem como ao fato de o aludido dispositivo referir-se ao garante, o que não incluiria o servidor no caso da ação regressiva39.
Contudo, a Professora Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xx Xxxxxx nos traz a distinção feita pelo renomado jurista Xxxxxx Xxxx Xxxxxx, que parece por fim à discussão.
38 Artigo 70, inciso III do Código de Processo Civil: “Art. 70. A denunciação da lide é obrigatória: (...) III - àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda”.
39 DI XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 630.
Segundo o ínclito Professor40, duas são as hipóteses de aplicação da denunciação à lide quando se estiver diante da responsabilização do Estado: a primeira consiste em ação fundada na responsabilização objetiva do Estado ou falha anônima do serviço, sem distinguir o agente causador e, a segunda, quando a própria ação de indenização deduzir pretensão em vista de ato doloso ou culposo do funcionário público.
O primeiro caso – quando a falha é anônima – a denunciação à lide seria impossível, em vista de trazer ao processo novo fundamento não invocado pelo autor, a culpa do funcionário. Já no segundo caso – quando a própria ação discute a culpa ou o dolo da pessoa que representa o Estado – a denunciação é permitida, em vista de não trazer inovação aos pedidos da exordial e, mais ainda, asseguraria o direito de regresso do responsável direto, no caso, o Estado.
Outra importante lição que a Professora Xx Xxxxxx nos ensina a extrair do mandamento constitucional em destaque baseia-se no artigo da Constituição Federal de 1946 correlacionado ao atual, que preconizava que “as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros”.
Isso porque essa análise histórica permite definir a teoria sob a qual será analisada a responsabilidade do Estado, qual seja, a objetiva:
Entende-se que, a partir da Constituição de 1946, ficou consagrada a teoria da responsabilidade objetiva do Estado; parte-se da ideia de que, se o dispositivo só exige culpa ou dolo para o direito de regresso contra o funcionário, é porque não quis fazer a mesma exigência para as pessoas jurídicas.
(XX XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 623).
Desta forma, podemos arraigar-se na ideia de que sim, haverá responsabilização do Estado no caso de praticar ato que gere danos aos jurisdicionados. Essa responsabilidade é objetiva, ou seja, independe de culpa, e a ação é proposta em face do Estado, que será o responsável direto pelo ressarcimento, cabendo-lhe o direito de regresso em face do órgão causador do dano nos casos em que fique comprovada sua culpa.
40 DI XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 630-631.
No entanto, a relação de responsabilidade do Estado com o Ministério Público, ou seus órgãos, ocorre de forma distinta das demais pessoas de direito público.
Essa distinção se faz presente em nossa doutrina principalmente pelo jurista Xxxx Xxxxx Xxxxxxxx, que com muita propriedade discorre sobre o tema.
Primeiramente, salienta que, por classificação, o Ministério Público faz parte da classe de agentes capazes de cometerem decisões finais do Estado na esfera de sua atribuição, ou seja, apesar de possuírem sistemas de freios e contrapesos, possuem independência funcional e, portanto, um sistema próprio de responsabilidade e, posteriormente, completa:
Os agentes políticos não são, portanto, funcionários públicos comuns; daí porque o sistema de sua responsabilidade não é a comum. Eles têm responsabilidades próprias. Pelo exercício regular das suas funções, seus danos determinarão a responsabilidade indenizatória do Estado.
(...)
Alguns juristas têm sustentado, como Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxx em seu clássico livro Direito Administrativo Brasileiro (19ª ed., pg. 72-3), que os agentes políticos são pessoalmente responsáveis em caso de abuso de poder, má-fé e até mesmo em razão de culpa grosseira. Também eu, há alguns anos, cheguei a pensar assim. Xxxx, entretanto, recuso a responsabilização do agente político em caso de mera culpa.
Por que não haveria responsabilidade civil do membro do Ministério Público pelos danos que tenha causado por culpa?
Ora, ele é um agente político, dotado de plena independência funcional. Está relacionado entre as autoridades estatais para as quais a Constituição e as leis impõem um regime próprio de responsabilidade. Tão importante é o livre exercício de sua independência funcional, que a própria Constituição considera crime de responsabilidade do Presidente da República atentar contra as garantias institucionais do Ministério Público. Tão importante é o livre exercício do Ministério Público que, se o próprio Presidente da República atentar contra as garantias da instituição, poderá perder o cargo.
Sendo assim tão relevante para a ordem constitucional o exercício independente do Ministério Público, a tal ponto que foi erigido a princípio institucional, resta inquirir qual é a finalidade dessa garantia. Consiste em proteger o livre exercício da função ministerial. Por isso que, se o agente do Ministério Público errar, o Estado sempre responderá perante o lesado; o próprio Ministério Público, jamais responderá; o membro do Ministério Público será pessoalmente responsável só nos casos de dolo ou fraude. (XXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. A responsabilidade civil do membro do Ministério Público. Disponível em
<xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx>. Acesso em 1º de dez. 2012, p. 14-15).
Sob a ótica do jurista, o Ministério Público é agente dotado de critérios de responsabilização próprios. Seu caráter é tão importante que sequer o Presidente da República é capaz de atentar contra suas garantias de constituição sem a ameaça de seu cargo. Esse regime, apesar de não o ser, pode ser visto como uma proteção, entretanto, essa proteção visa garantir sua função ministerial, fazendo com que o Estado é quem responsa pelos seus atos, visto que atua como seu agente direto.
Em explanação seguinte justifica a tese:
Por que Ministério Público não responsabilizará jamais à própria instituição? Porque esta não detém personalidade jurídica. O Ministério Público é órgão do Estado; é o Estado. Já vi sentenças cíveis condenando o Ministério Público em encargos da sucumbência… [sic] Trata-se de equívoco significativo, pois o Ministério Público é o Estado; pela teoria da organicidade, o Ministério Público é a pessoa jurídica da qual ele faz parte. Quanto ao membro do Ministério Público, a regra é sua inviolabilidade na esfera civil. Esta ocorre sempre que o exercício da função for regular, isto é, sempre que o membro esteja agindo de boa-fé, dentro de suas atribuições funcionais. Se ele tem atribuições para o ato (competência no sentido administrativo, não jurisdicional, evidentemente), se está agindo dentro das normas de razoabilidade (princípio implícito que rege a Administração) e se não está movido por dolo ou fraude — não há de ser responsabilizado pessoalmente na esfera civil. Não pode ser punido por agir, se, nesses casos, a lei supõe que sua ação é um dever.
(XXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. A responsabilidade civil do membro do Ministério Público. Disponível em
<xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx>. Acesso em 1º de dez. 2012, p. 14-15).
Assim, por ser ente que não detém personalidade jurídica e pela teoria da organicidade, o Ministério Público é o próprio Estado, ele é a própria pessoa jurídica da qual faz parte, deste modo, não há o que se falar em ação regressiva do Estado contra o próprio Estado. Usa ainda como exemplo o manifesto equívoco de condenações judiciais do Ministério Público em encargos de sucumbência, onde estaria o Estado reembolsando custas ao próprio Estado.
Desta feita, ultima-se que, agindo, por exemplo, na tomada de um TAC manifestamente ilegal, o Ministério Público em si, ou sua Promotoria de Justiça, não responderia pelos danos causados ao consumidor. Tal ressarcimento se daria pelo próprio