Tendências e pontos críticos dos contratos e editais de licitação de serviços de transporte público por ônibus no Brasil.
Tendências e pontos críticos dos contratos e editais de licitação de serviços de transporte público por ônibus no Brasil.
Xxxxxxxx Xxxxx Xxx xx Xxxxx Xxxx0,2; Xxx Xxxxxx Xxxxxxx Parente1
1 Fundação Xxxxxxx Xxxxxx - Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura (FGV CERI). Xxx Xxxxx xx Xxxxxx, xx 00/ Xx. 000, Xxx xx Xxxxxxx – RJ – 22231-000.
2 Universidade Federal do Rio de Janeiro – COPPE - Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Transportes. Xx. Xxxxxxx xx Xxxxxx, 0000. Bloco H – Xxxx 000 – Ilha do Fundão, Rio de Janeiro – RJ
– 21941-914.
SINOPSE
O artigo analisa contratos e editais de licitação de transporte público por ônibus brasileiros de cinco cidades grandes, e identifica elementos críticos que podem estar agravando a ameaça à viabilidade dos sistemas. São avaliados a alocação de risco, liberdade de planejamento dos operadores e duração dos contratos.
PALAVRAS-CHAVE
ônibus; contratos; licitação; eficiência; transporte público
INTRODUÇÃO
A prestação do serviço de transporte público por ônibus no Brasil é, em geral, realizada por operadores privados. Sob as regras da Lei das Concessões (Lei nº 8.987/95), as principais cidades brasileiras concederam seus sistemas de ônibus por meio de licitação competitiva a partir de 2008.
De acordo com Xxxx e Xxxxxxx (2018), os serviços de transporte público sob o domínio da iniciativa privada apresentam custos de capital menores, bem como melhor produtividade da força de trabalho em termos de salários e custos. A licitação, por sua vez, tem a capacidade de garantir que a prestação dos serviços de transportes ocorra em um nível eficiente de custos, especialmente quando os serviços eram prestados por um operador monopolista (Wallis et al., 2010).
Contudo, a implantação de um processo de licitação não simples. As autoridades precisam definir corretamente a estrutura do concurso, a fim de evitar efeitos negativos para o mercado de transportes local e, consequentemente, para os usuários dos serviços (Cambini and Filippini, 2003). A organização e implementação de um processo licitatório competitivo deve considerar e esclarecer muitos aspectos, tais como os objetivos da política de transportes, a estrutura de mercado, a alocação de risco dos contratos a serem licitados, a liberdade dada aos operadores na concepção dos serviços e a duração do contrato.
O quadro dos sistemas de transporte público por ônibus no Brasil é crítico. A tendência de queda no número de passageiros (25% entre os anos de 2014 e 2018, segundo a NTU (2018)), ameaça a viabilidade financeira da operação dos serviços. Apesar da viabilidade dos sistemas estar diretamente atrelada às condições macroeconômicas, o desenho dos contratos apresenta uma parcela de influência que pode agravar a susceptibilidade do sistema de acordo com as variações de demanda.
Neste sentido, o objetivo deste artigo é analisar alguns dos contratos e editais de licitação dos sistemas de transporte público por ônibus brasileiros, de forma a identificar elementos críticos dos contratos e editais de licitação que podem estar agravando o cenário de dificuldades financeiras que ameaça a viabilidade dos sistemas. O artigo utiliza revisão da literatura como metodologia e se concentra em três pontos específicos: (i) alocação de risco;
(ii) liberdade em intervir no planejamento e concepção dos serviços por parte do operador e
(iii) duração dos contratos e critérios para renovação. Além disso, com base na revisão da literatura sobre esses temas, o trabalho faz um benchmarking de cinco contratos brasileiros (Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Curitiba e Porto Alegre), apontando os pontos críticos identificados e suas implicações.
O trabalho está dividido em três seções além desta introdução. A seção de número dois, denominada “Diagnóstico” é dedicada à revisão da literatura. A terceira seção tem por objetivo apresentar os contratos e respectiva avaliação dos pontos destacados na revisão. Na quarta e última seção são apresentadas as conclusões do trabalho.
DIAGNÓSTICO
Segundo van de Velde et al. (2008), o processo de licitação ocorre em três fases: a fase de preparação, adjudicação e monitoramento. Durante a fase de preparação, a autoridade, em função das necessidades dos passageiros e das circunstâncias locais, define os objetivos que se deseja alcançar com o sistema de transporte. Os objetivos estratégicos definidos são, então, traduzidos nas características dos serviços durante no momento de concepção do contrato. Após o contrato ser esboçado, segue-se para a fase de adjudicação, em que o direito de operar os serviços é concedido por meio de um processo competitivo. A fase de monitoramento, por sua vez, refere-se ao período de vigência do contrato, em que o poder público é responsável pela correta execução do mesmo e pelo monitoramento e cumprimento das obrigações do operador durante o período.
Este trabalho se concentrará em três pontos específicos do processo acima descrito: alocação de risco, liberdade de intervenção no planejamento e concepção dos serviços e duração do contrato. Enquanto as questões relativas à alocação de risco e duração são definidas durante o desenho do contrato, às decisões quanto a liberdade de intervir no planejamento e desenho dos serviços por parte do operador podem ser tomadas durante as três etapas.
ALOCAÇÃO DE RISCO
O contrato de serviço público define direitos e deveres das partes contratantes, autoridade (poder concedente / municipalidades) e operador. A autoridade define as obrigações do operador, enquanto o operador deve cumprir o contrato e, em troca, recebe o direito a uma compensação. Dessa forma, o contrato serve como um meio de verificar se as obrigações das duas partes foram cumpridas da forma acordada (Souza Lima, 2019a).
Os objetivos estratégicos definidos na fase de preparação dos contratos resultam em requisitos bem específicos (van de Velde et al., 2008). Considerando que a alocação de risco é uma das dimensões que mais influenciam na elaboração de um contrato apropriado, o poder concedente deve estar consciente durante o desenho do contrato sobre o gerenciamento de risco, uma vez que todos os termos escolhidos no contrato terão consequências sobre o que será uma alocação apropriada entre o operador e autoridade (Souza Lima, 2019a).
Os principais riscos nos contratos de transporte público por ônibus são apresentados na Tabela 1.
Tabela 1: Principais riscos nos contratos de transporte público por ônibus Fonte: Xxx e Xxxxxxx-Xxxxxx (2007); van xx Xxxxx et al. (2008); Xxxxx x Xxxxxxx (2016); Souza Lima (2019a).
Custo | Receita | Outros riscos |
Operacional | Investimento | |||
Interno | Externo | |||
Podem ser influenciados diretamente pelo operador ex: custos operacionais e de manutenção (decisões do processo de produção e manutenção preditiva) | Não podem ser influenciados pelo operador ex: preço de energia, materiais, custos de pessoal, vandalismo, desastres naturais | Relacionados ao valor residual dos ativos (infraestrutura e veículos) ao fim do período de contrato | Relativos à variação da demanda Caso as receitas sejam maiores / menores do que o esperado no início do contrato, quem se beneficiará do lucro adicional ou ficará com o prejuízo? | Riscos de incentivos adicionais Risco de complexidade operacional (tamanho da rede, novas tecnologias veiculares, falta de experiência) |
A forma como esses riscos, em especial os de custo e investimento, são alocados e compartilhados é representada por três formas contratuais básicas (Macário, 2006; Xxx e Xxxxxxx-Xxxxxx, 2007; van xx Xxxxx et al., 2008; Souza Lima, 2019a):
• Contrato de gestão (management contract): A autoridade tem a posse e o controle de todas as garagens e veículos, recebe todas as receitas e paga por todas as despesas correntes. O operador não assume risco algum. Neste tipo de contrato, a compensação do operador é representada por uma taxa de gestão da rede.
• Contrato de remuneração indireta (gross cost): A autoridade renuncia o controle dos veículos e outras infraestruturas. O operador assume apenas o risco do custo de produção e a autoridade retém o risco de receita. Nesta forma contratual o pagamento recebido pelo operador representa o custo de produção dos serviços contratados mais um lucro justo.
• Contrato de remuneração direta (net cost): A autoridade renuncia o controle dos veículos. O operador assume tanto os riscos de receita quanto de custo. Neste tipo contratual, o pagamento representa o saldo esperado das receitas menos os custos de produção.
Vale notar que tais formas contratuais podem ter variações, como por exemplo, contratos de gestão e gross cost com incentivos para passageiros, compartilhamento de riscos em contratos net cost etc.
De acordo com Souza Lima (2019a), a realização dos riscos pode ocorrer tanto no processo de adjudicação ou durante o contrato. Na adjudicação, os riscos podem acontecer devido à má qualidade de dados para cálculos de receita e custos de produção, incompetência do poder concedente no desenho dos serviços, má avaliação das propostas, tipo de contrato estabelecido e nível dos incentivos adicionais. Durante a execução, os riscos podem ser externos (ex: desastres naturais, vandalismo, variação da demanda no caso de contrato net cost), internos (má operação) ou até por cálculo errado por parte do operador.
Um dos pontos críticos na alocação de riscos são os incentivos (ex: aumento das receitas e redução de custos) que estes criam para as partes que arcam com eles. Assim, é necessário que a autoridade aloque os riscos de forma apropriada, a fim de não criar efeitos negativos. Por exemplo, contratos gross cost podem encorajar o operador a otimizar os custos de produção dos serviços, mas não o estimular a transportar mais passageiros. Por outro lado, os contratos net cost incentivam os operadores a minimizarem os custos de produção e maximizarem a demanda, mas apresentam alto risco, o que pode vir a reduzir a competição no processo licitatório.
Em contratos de baixo risco, o risco é previsível e/ou não crítico para os operadores em caso da sua realização. Desta forma, o prêmio de risco calculado pelos operadores será baixo. Contratos de risco alto apresentam alta incerteza e/ou criticidade para o operador em caso de sua realização, refletindo, dessa forma, em preços mais altos. Além disso, o alto grau de incerteza aumenta as chances de insolvência do contrato por parte dos operadores em caso da sua realização. Há situações em que o risco é insustentável, isto é, tão imprevisível ou crítico para o operador em caso de materialização que acabam por impedir a participação no processo licitatório (bateria de entrada no mercado). Como resultado tem-se baixa competitividade e preços mais altos (Souza Lima, 2019a).
As vantagens e desvantagens, bem como indicações de quando se utilizar os contratos net cost e gross cost estão sintetizadas na Tabela 2.
Tabela 2: Vantagens e Desvantagens dos tipos contratuais. Xxxxxxxx xx Xxxxx Xxxx (2019a)
Contrato Gross Cost | Contrato Net Cost | |
Definição dos serviços | Poder Público | Em geral a responsabilidade é compartilhada, com significativa influência do operador |
Considerado nas situações em que | Reduzir monitoramento de dados caros para alocar a receita entre as operadoras, onde há grandes receitas fora do ônibus. | Deseja-se incentivar o operador aumentar o número de passageiros / receita. O compartilhamento de receita fora do ônibus não é visto como um problema. A autoridade deseja fixar o valor absoluto do subsídio. |
Vantagens | Reduz o risco do operador, incentivando mais propostas na licitação. Estimativa da receita do operador mais confiável Alta segurança jurídica Garantia do interesse público (ex: manter nível tarifário) Fácil integração com outros modos de transporte Neutralidade competitiva | Incentivo direto para que as operadoras invistam em melhorar a qualidade e aumentar o número de passageiros. Interesse em empreender preservado. Custos menores de monitoramento – Demanda como “fator de ajuste” Remuneração constante e mais elevada para o operador. Poucos requisitos a respeito do serviço devem ser definidos |
Desvantagens | Incentiva operadoras a reduzir custos em detrimento da qualidade do serviço. Falta de interesse em empreender. Alto grau de regulação. Pouca confiabilidade orçamentária por parte da autoridade pública. Exige grandes esforços de monitoramento | A capacidade da autoridade de realizar mudanças essenciais na rede é restrita caso afete negativamente a receita de contratos de net cost preexistentes. Baixa segurança jurídica (no caso de licitação sem base de dados) Riscos mais altos para o operador (prêmios e remuneração mais altos). Integração com outros modos de transporte mais difícil. Falta de incentivos para considerar objetivos sociais, ambientais e políticos. |
De acordo com Xxxx e Xxxxxxxx (2010), a variação da demanda de passageiros está mais relacionada com as condições gerais da economia do que com o desempenho do operador. Assim, em contratos net cost e gross cost com incentivos, sugere-se ajustar a remuneração dos operadores de acordo com o estado da economia para reduzir os prêmios de risco, ao invés do que simplesmente compartilhar o risco de demanda proporcionalmente entre as partes.
Deve-se destacar, ainda, que as partes privadas devem suportar apenas os riscos que estão dentro do seu controle, caso contrário irão exigir prêmios de risco elevados e haverá um grande risco de insolvência do contrato (Xxxxxxx e van de Xxxxx, 0000; Xxxx e Xxxxxxxx, 2010).
Assim, um dos pontos críticos na alocação de risco é o trade-off entre os efeitos positivos e negativos inerentes a esses incentivos. Portanto, a questão a ser respondida é: quando que o prêmio de risco calculado pelo operador é inferior aos efeitos positivos do uso desse incentivo? (Souza Lima, 2019a).
PLANEJAMENTO E CONCEPÇÃO DOS SERVIÇOS
Ao especificar as características dos serviços a serem prestados, o poder concedente pode optar por dar maior ou menor liberado ao operador. Em caso de maior liberdade, o poder concedente estabelece apenas alguns parâmetros de qualidade e nível de serviço os quais o operador deve cumprir. O operador, por sua vez, durante o processo licitatório, deve apresentar a sua proposta de serviços. Este tipo de concepção do serviço em que a autoridade se limita a definir os padrões de serviço que o operador deverá cumprir, sem especificá-los de forma exaustiva, é conhecida como funcional (Souza Lima, 2019b).
Quando se deseja dar menor liberdade para o operador, a autoridade deve especificar detalhadamente os serviços (ex: estabelecendo a ordem de serviço). Este tipo de planejamento é chamado construtivo, em que a ordem de serviço já está estabelecida no momento da licitação. Neste modelo, o risco de receita não deve ser alocado no operador, uma vez que este não participou do planejamento. Prefere-se, assim, a utilização de contrato gross cost; contudo, na falta de incentivos (remuneração atrelada à demanda), são necessários indicadores de qualidade para induzir o operador a fornecer os serviços planejados pela autoridade em um nível adequado (Souza Lima, 2019b).
A flexibilidade/liberdade no planejamento e concepção dos serviços também é importante durante o período contratual, uma vez que fatores externos, mudanças nos objetivos de política, ou mesmo demanda variável podem exigir alterações dos serviços (van de Velde et al. 2008). A forma como essa flexibilidade é introduzida no contrato dependerá do tipo contratual.
Contratos gross cost com planejamento construtivo devem garantir que a autoridade possa modificar os serviços durante a sua vigência, desde que mantenham o equilíbrio econômico- financeiro. Já nos contratos net cost com planejamento funcional deve-se permitir que o operador redesenhe os serviços de forma autônoma, respeitando os padrões mínimos estabelecidos pela autoridade (van de Velde et al., 2008).
De acordo com Souza Lima (2019b), quanto maior for o contrato, maior será a necessidade de flexibilidade no planejamento e concepção dos serviços. Em casos de alta incerteza sobre fatores futuros, impossíveis de estimar, que possam influenciar a demanda (desenvolvimento urbano, entrada de aplicativos de transporte etc.), um período de contrato mais curto é recomendado, podendo incluir cláusulas de extensão.
DURAÇÃO DO CONTRATO
Em geral, a duração do contrato está relacionada com o período de amortização dos investimentos em veículos e infraestrutura. De acordo com Xxxx e Xxxxxxxx (2010), o tempo ideal de contratos de ônibus são de anos e, caso seja permitida a utilização de veículos usados, a duração pode ser ainda menor, dois a três anos. Existem, contudo, outros fatores que podem influenciar na duração do contrato.
Quando há alta incerteza em relação à demanda futura (principalmente em contratos net cost), sugere-se a utilização de contratos mais curtos com objetivo de ter maior flexibilidade. Por outro lado, em caso de altos investimentos com longos períodos de amortização, ou quando há necessidade de ações substanciais por parte do operador (em casos de planejamento funcional), isto é, tempo hábil para o operador poder desenvolver medidas e colher os benefícios de sua implantação, sugere-se contratos mais longos (van de Velde et al., 2008).
A duração do contrato tem impactos também na competição do processo licitatório. Contratos muito curtos podem aumentar a incerteza e resultar em menor interesse (menor competição) dos operadores naquele contrato. Contratos longos, por sua vez, podem estimular maior competição devido a menor incerteza. Vale notar, entretanto, que contratos demasiadamente longos tendem a calcificar o mercado e reduzir a competição (van de Velde et al., 2008).
Assim, as autoridades devem decidir sobre o trade-off entre flexibilidade e incentivar a fazer mais investimentos.
PROPOSIÇÕES E RESULTADOS
A partir do referencial teórico apresentado na seção anterior, fez-se uma avaliação dos contratos e editais de licitação de cinco cidades brasileiras: Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Brasília, Curitiba e Porto Alegre. A tabela 3 apresenta algumas características gerais dos contratos dessas cidades. Vale destacar que os valores contidos na Tabela 3 foram baseados nas informações dos editais de licitação e não necessariamente refletem os dados após o início da operação ou o real valor de assinatura dos contratos.
Tabela 3: Caracterização dos contratos e editais de licitação das cidades brasileiras
Cidade | Ano | Dens. Pop. (hab/km²) | Valor estimado dos lotes (R$) | Demanda média diária | Lotes | Linhas | Veículos |
Belo Horizonte | 2008 | 7.167 | 00.000.000.000,00 | 0.000.000 | 0 | 000 | 0000 |
Curitiba | 2009 | 4.027 | 8.657.236.823,29 | 1.106.126 | 3 | 465 | - |
Rio de Janeiro | 2010 | 5.573 | 00.000.000.000,00 | 0.000.000 | 4 | 506 | 8.811 |
Distrito Federal | 2012 | 514 | 6.099.230.227,30 | 1.103.000 | 5 | 860 | 8.663 |
Porto Alegre | 2015 | 2.978 | 363.057.164,92 | 1.100.000 | 6 | 424 | 1.704 |
Os contratos e editais de licitação foram avaliados em três quesitos: (i) a alocação de riscos, em especial de receita e custo, (ii) liberdade do operador no planejamento e concepção dos serviços no processo licitatório e durante o contrato e (iii) duração do contrato. Essas informações estão consolidadas na Tabela 4. Além dessas informações, algumas cláusulas contratuais foram analisadas.
Tabela 4: Avaliação dos contratos e editais de licitação brasileiros
Cidade / Região | Tipo do contrato | Liberdade do operador no planejamento e concepção dos serviços durante | Duração do contrato | |
Licitação | Contrato | |||
Belo Horizonte | Net cost | Funcional | Liberdade para alterar quadro horário Alteração de linhas depende da aprovação do poder concedente | 20 + 0 |
Curitiba | Net cost* | Construtiva | Não está prevista | 15 + 10 |
Rio de Janeiro | Net cost | Construtiva | Depende da aprovação do poder concedente | 20 + 20 |
Distrito Federal | Net cost* | Construtiva | Não está prevista | 10 + 10 |
Porto Alegre | Net cost* | Construtiva | Depende da aprovação do poder concedente | 20 + 0 |
Observa-se uma tendência das cidades brasileiras de adotarem os contratos do tipo net- cost, em que a remuneração dos operadores está atrelada ao número de passageiros. Tais contratos são caracterizados por alto risco e, quando conjugados com a necessidade de grande número de veículos e alta complexidade operacional, podem limitar a participação de players pequenos no processo licitatório. Contudo, os tipos contratuais de Curitiba, Distrito Federal e Porto Alegre não são puramente net-cost, apresentando alguns dispositivos adicionais quanto a alocação de risco.
Em Curitiba, a remuneração dos operadores é feita de acordo com o número efetivo de passageiros pagantes, multiplicado pela tarifa técnica. Entretanto, existe uma Câmara de compensação que distribui o valor arrecadado com as tarifas proporcionalmente ao custo de cada um dos lotes. Tais custos são calculados pelo produto do Custo/Km médio total do lote multiplicado pela quilometragem total de cada lote. Os operadores também estão sujeitos a descontos de até 3% da remuneração em função do desempenho em indicadores de qualidade.
Assim como Curitiba, a remuneração dos operadores de Porto Alegre está relacionada com os passageiros pagantes, e é compartilhada proporcionalmente a participação de cada um dos lotes (custo/km médio). Neste mecanismo, a remuneração é atrelada ao número de passageiros geral do sistema. Isto significa que o risco de receita atribuído a um operador não depende unicamente dele, e sim da operação do conjunto.
No Distrito Federal, a remuneração dos operadores também está atrelada ao número de passageiros. Porém, há duas cláusulas no contrato que reduzem significativamente os riscos de receita e de custo. A primeira é que o poder concedente assume o risco de redução da quantidade de passageiros pagantes em relação aos números apresentados no projeto básico. A segunda é que cabe revisão e processo de reequilíbrio econômico financeiro (manutenção da TIR) quando ocorrer variação na quilometragem rodada e variação na demanda de passageiros pagantes. Este modelo se aproxima do contrato de gestão, no qual não há riscos de receita e custo para o operador, diferenciando-se apenas na possibilidade dos lucros excedentes (maior demanda que o previsto) serem capturados pelos operadores. Contudo, isto é pouco provável em função de ser um serviço, em grande parte, subsidiado.
Quanto à liberdade do operador de intervir no planejamento e concepção dos serviços, a cidade de Belo Horizonte e o Distrito Federal são as mais coerentes. Em Belo Horizonte, o risco de receita está todo alocado no operador, exigindo, assim, maior liberdade (planejamento funcional) para que o operador possa influenciar tal risco. De forma equivalente, o Distrito Federal, ao adotar o planejamento construtivo, reduziu a liberdade de influenciar a demanda, mas também alocou esse risco no poder concedente. Tais modelos seguem a regra de que o risco deve ser alocado à parte privada somente se esta é capaz de influenciá-lo.
Os demais contratos alocam o risco de demanda no operador, mas adotam o planejamento construtivo, impedindo-os de influenciá-lo. Além disso, a própria natureza variável da demanda durante o contrato e fatores externos como um desenvolvimento imobiliário ou entrada de um novo serviço de transportes inevitavelmente impactarão a demanda. Dessa
forma, operadores ficam sujeitos a um risco que não possuem controle. Isso, por sua vez, aumenta a incerteza em relação ao contrato e, consequentemente, pode ter gerado prêmios de risco maiores no processo licitatório.
Os prazos dos contratos brasileiros são, de forma geral, longos. Estes estão bastante acima dos oito anos sugeridos por Xxxx e Xxxxxxxx (2010). Apesar disso, não se verifica necessidade de altos investimentos com longos períodos de amortização, uma vez que os ativos necessários para a operação são basicamente ônibus. Uma justificativa para a duração poderia ser a necessidade de maior tempo para execução de ações substanciais de planejamento por parte do operador para colher lucros, entretanto, com exceção de Belo Horizonte, todas as cidades adotam planejamento construtivo.
Os contratos longos, geralmente, em função da redução da incerteza, apresentam maior atratividade. Entretanto, estes reduzem a flexibilidade da autoridade pública para recalibrar cláusulas contratuais. Isso pode ser um problema para a autoridade neste momento crítico de queda da demanda (25% entre os anos de 2014 e 2018), principalmente em serviços subsidiados ou em que o risco de receita é da autoridade (Distrito Federal). O que no momento do processo licitatório poderia ser um elemento de redução da incerteza, pode ter atribuído um fardo aos operadores, especialmente em um momento de transição do setor (mobilidade compartilhada e novos modos). Ainda, sob o ponto de vista da autoridade pública e dos usuários, os contratos longos podem resultar em uma calcificação do mercado e redução da concorrência no futuro, provocando efeitos negativos na qualidade do serviço.
Os contratos de concessão apresentam também cláusulas de reajuste e revisão tarifária. Os reajustes têm o intuito de acompanhar a variação de preços dos insumos necessários para produção dos serviços. Já as revisões têm o objetivo de recalcularem o valor da tarifa para manutenção do equilíbrio econômico financeiro estabelecido no contrato. Nas cidades de Curitiba e Porto Alegre a revisão tarifária ocorre anualmente. Já nas cidades de Belo Horizonte e Rio de Janeiro as revisões contratualmente previstas são quadrienais, ocorrendo anualmente apenas os reajustes. No Distrito Federal as revisões podem ocorrer a qualquer momento em que seja verificado desequilíbrio econômico-financeiro. Esse mecanismo reduz consideravelmente o risco de receita e custo. Porém ele é limitado, uma vez que os usuários não conseguirão suportar aumentos excessivos nas tarifas.
CONCLUSÕES
Os contratos brasileiros avaliados, com exceção do Distrito Federal, são de alto risco. Em geral, o risco da demanda está todo atribuído aos operadores, que, muitas vezes, não possuem liberdade para influenciá-lo. De forma a compensar este alto risco, cláusulas de revisão tarifária e contratos longos podem ter sido estabelecidas. Contudo, tais cláusulas podem ser insuficientes para reduzirem o risco de demanda, uma vez que usuários tem capacidade limitada de suportarem os aumentos das tarifas. Ademais, os contratos longos com objetivo de reduzir a incerteza e aumentar a atratividade podem ter produzido um efeito contrário ao que se esperava. A falta de flexibilidade para recalibrar as cláusulas é especialmente grave no contexto de queda de demanda constante e transformações imprevisíveis no setor de transporte urbano.
Para reduzir a susceptibilidade dos operadores, sugere-se a adoção de contratos gross cost com incentivos por passageiros. Este modelo reduz o risco de demanda do operador, alocando-o na autoridade, ao mesmo tempo que o incentiva a atender mais passageiros para maximização do seu lucro. Quando a autoridade não deseja assumir riscos, contratos net cost são indicados, desde que haja planejamento funcional, isto é, que os operadores tenham capacidade de influenciar a demanda.
Contratos mais curtos aumentariam a flexibilidade e a capacidade de adaptação da autoridade a fatores externos/extraordinários. Além disso, é necessário ter bastante cuidado com cláusulas de revisão tarifária. Estas podem incentivar os operadores a serem ineficientes e não se preocuparem em maximizar a demanda, dado que isto será compensado na nova tarifa.
Este artigo é parte inicial de um projeto maior de pesquisa que visa mapear e identificar diferentes aspectos dos contratos de transporte público por ônibus brasileiros. Espera-se, em pesquisas futuras, aumentar a amostra de cidades analisadas e o escopo de análise, considerando questões como barreiras de entrada no mercado, critérios de seleção, sistemas de indicadores de qualidade e mecanismos de incentivos e penalidades.
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