O “MAIOR ACORDO DO MUNDO” E SEUS REFLEXOS NO
O “MAIOR ACORDO DO MUNDO” E SEUS REFLEXOS NO
CONTRATO DE TRABALHO
XXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX XXXX(*)
Ao promulgar a Lei Complementar n. 110, de 29.6.2001, o Governo Federal iniciou uma vasta campanha publicitária com a qual pretende defender a implantação daquilo que chama, de forma megalômana, de “maior acordo do mundo”. Essa iniciativa contou com o amparo do Congresso Nacional que aprovou, por maioria, o projeto que se trans- formou na citada Lei, e que fora gestado em um ajuste realizado com representantes de certas entidades sindicais, as mesmas cujos líderes emprestam seus depoimentos para validação da campanha publicitária já aludida. A impressão que se tem, lendo-se um dos anúncios de meia página pagos pelo Governo, é a de que se está vendendo um produto imobiliário, porque usa da narrativa dos ditos representantes sindicais para argumentar em favor da adesão que os trabalhadores devem realizar para obter os “benefícios” da Lei.
Não é nenhuma novidade que o atual Governo Federal tem proposto investidas gra- ves contra conquistas históricas dos trabalhadores, sendo mérito de sua gestão o de criar normas de “flexibilização” dos direitos trabalhistas. Vemos, mais recentemente, a proposta de alteração do art. 618 da CLT, que constitui verdadeiro genocídio à classe trabalhadora, e ainda o chamado pacote “antigreve”, usado para reprimir as reivindicações dos servidores federais e descumprir ordens judiciais.
Por isso, paira um ar de desconfiança quando se examina o tal “maior acordo do mundo”, no sentido de se indagar a quem interessaria efetivamente esse acordo, fator que se evidencia pela agilidade com que se dispôs o Governo a negociar o tema, postura incompatível com a forma que costuma conduzir os debates acerca de assuntos que são de interesse dos trabalhadores.
Um pouco de raciocínio lógico, porém, deixa evidente quais são as verdadeiras in- tenções na celebração desse acordo. O art. 4º da referida Lei Complementar expressa que “fica a Caixa Econômica Federal autorizada a creditar nas contas vinculadas do FGTS,
(*) Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Piracicaba/SP e membro da Associação Juízes para a Democracia.
a expensas do próprio Fundo, o complemento de atualização monetária resultante da aplicação, cumulativa, dos percentuais de dezesseis inteiros e sessenta e quatro centésimos por cento e de quarenta e quatro inteiros e oito décimos por cento, sobre os saldos das contas mantidas, respectivamente, no período de 1º de dezembro de 1988 a 28 de fevereiro de 1989 e durante o mês de abril de 1990”.
Em outro dispositivo está expresso que, como requisito para o recebimento dos percen- tuais referidos, o trabalhador deve firmar Termo de Adesão no qual fique registrada, dentre outras coisas, “declaração do titular da conta vinculada, sob as penas da lei, de que não está nem ingressará em juízo discutindo os complementos de atualização monetária rela- tivos a junho de 1987, ao período de 1º de dezembro de 1988 a 28 de fevereiro de 1989, a abril e maio de 1990 e a fevereiro de 1991” (art. 6º, III). Resta evidente, portanto, que a intenção do mencionado acordo foi o de eliminar as demandas a respeito dos percentuais de reajustamento das contas do FGTS, suprimidas por sucessivos planos econômicos, e que foram reconhecidos como devidos pelo Supremo Tribunal Federal. Aqui, acrescenta-se que, embora o STF tenha reconhecido somente a pertinência de dois dos índices reivindi- cados, a adesão ao “acordo” exige a manifestação do trabalhador de que não irá reivindicar judicialmente qualquer dos outros sujeitos à mesma situação.
Ocorre, porém, que há um relevante dado histórico que deve ser considerado, para que se entenda a efetiva dimensão da questão. Com efeito, o art. 7º da Lei n. 8.036, de maio de 1990, que regulamentou o FGTS depois da Constituição Federal de 1988, estabeleceu que a Caixa Econômica Federal, seria o agente operador, do Fundo, cabendo, dentre outras coisas, “centralizar os recursos do FGTS, manter e controlar as contas vinculadas, e emitir regularmente os extratos individuais correspondentes às contas vinculadas e participar da rede arrecadadora dos recursos do FGTS”.
Todavia, antes da vigência desta lei, as contas vinculadas do FGTS eram operadas por quaisquer instituições bancárias, conforme autorizavam as Leis ns. 5.107/66 e 7.839/89, fixando-se o princípio centralizador a partir da vigência da Lei n. 8.036/90, mas com um período de transição de um ano. Assim, o art. 12 dessa mesma lei estabeleceu que, “no prazo de um ano, a contar da promulgação desta lei, a Caixa Econômica Federal assu- mirá o controle de todas as contas vinculadas, nos termos do item I do art. 7º, passando os demais estabelecimentos bancários, findo esse prazo, à condição de agentes recebe- dores e pagadores do FGTS, mediante recebimento de tarifa, a ser fixada pelo Conselho Curador.”
Diante disso, tem-se que a Caixa Econômica Federal somente passou a ser agente operador único do FGTS em maio de 1991, sendo que, antes disso, ainda que tivesse sob seu controle grande parte das contas vinculadas, muitas delas ainda estavam sob a gestão de entidades bancárias, na maioria dos casos, privadas.
Quando compatibilizamos essa informação com o já citado art. 6º, III, da Lei Com- plementar n. 110/2001, notamos que o Governo Federal está querendo se “livrar” das correções monetárias devidas nos meses de junho de 1987, de 1º de dezembro de 1988 a 28 de fevereiro de 1989, de abril e maio de 1990 e de fevereiro de 1991, ou seja, todas elas justamente dos períodos em que as contas vinculadas não estavam sob a gestão da CEF, ao menos na sua integralidade, mas sim sob o comando de bancos, especialmente privados.
Desse simples exercício intelectual, observa-se qual teria sido a verdadeira motivação governamental em celebrar um acordo tão vasto e tão abrangente, e em tão pouco tempo: de forma a reiterar aquela que tem sido a marca registrada de sua gestão, usou um tema de cunho nitidamente social para, novamente, auxiliar o sistema bancário. Isso porque, se a ausência de correção monetária reconhecida como devida pelo STF se deu quando as contas vinculadas ainda não eram centralizadas pela CEF, cada instituição bancária que adminis- trava tais contas deveria ser responsável pela aplicação da citada correção, ao menos até sua transferência para a Caixa.
O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Incidente de Uniformização de Juris- prudência n. 77.791, em 26.2.97, definiu a legitimidade exclusiva da Caixa Econômica Federal para ser demandada em ação na qual se discute diferenças de correção monetária de contas vinculadas, e para tanto, partiu do princípio de que, como era a Caixa quem administrava o dinheiro, inclusive auferindo lucratividade pela sua aplicação ou uso no mercado financeiro, seria ela a única responsável por eventual correção, excluindo-se, com isso, a União Federal (essa matéria hoje se encontra sumulada pelo STJ, sob n. 249). Só que, pelo mesmo raciocínio, em se tratando de índices de correção devidos na época em que a administração da conta estava sob outra instituição bancária, ela é que deveria responder pelas diferenças decorrentes da aplicação do índice suprimido. Com isso, nunca a responsabilidade recairia sobre a União Federal e mesmo sobre a CEF só haveria uma responsabilidade reflexa, porque, como dito, a aplicação dos percentuais eliminados, na época de sua supressão, deveria ser feita por cada banco depositário.
Por conta disso, falaciosa foi a assertiva governamental ao justificar o “acordo”, di-
zendo que a “sociedade” pagaria essa conta. Boa parte desse passivo deveria ser custeado pelas instituições bancárias que, por muitos anos, beneficiaram-se dos recursos do FGTS, mas foram “liberadas” por um ato de misericórdia do Poder Executivo Federal, e realizado com “chapéu alheio”: a mesma Lei Complementar, além de reduzir os percentuais devidos aos trabalhadores, ainda criou novos tributos e obrigações pecuniárias aos empregadores. Ou seja, a sociedade efetivamente pagará por uma dívida que, na sua maior parte, seria do sistema bancário.
Essa vergonhosa conduta associa-se à apologia que se tem feito, com os citados anún- cios oficiais, de que a melhor solução é aderir ao acordo. O principal argumento, usado até por um dos “depoimentos” colhidos, é o de que o recebimento das diferenças, nesse caso, seria feito sem a demora e os custos do Judiciário. E isso mostra claramente o desprestígio com que se tem tratado a Justiça neste país. Ao lado de seus problemas conjunturais, o Judiciário brasileiro sofre com problemas estruturais graves, decorrentes da condição de miserabilidade que lhe foi imputada pelas últimas gestões, com parcos recursos humanos e materiais, insuficientes para garantir à sociedade uma digna prestação jurisdicional. Nas esferas federais da Justiça, tem-se boa parte dos servidores e dos Juízes sem um reajuste salarial adequado há quase sete anos, e em vários estados a condição remuneratória é las- timável: a Justiça do estado mais desenvolvido do país ficou parada por 80 dias, diante de um impasse a respeito de condições de trabalho e de remuneração dos servidores.
Assim, quando o cidadão depende de uma Justiça maltratada como a nossa, só lhe resta a desesperança, ficando sujeito a “acordos” espúrios como este, como alternativa viável, se não do ponto de vista econômico, ao menos com a promessa de satisfação mais rápida da sua pretensão.
Porém, ao lado dessas considerações sócio-políticas, o tema sugere outros desdobra- mentos. Nos termos do art.18, par. 1º, da Lei n. 8.036/90, em caso de despedimento sem justa causa, praticado pelo empregador em contratos vigentes por prazo indeterminado, este fica obrigado a depositar na conta vinculada do empregado o equivalente a 40% do valor do saldo existente na data da dispensa, como forma de compensação pela despedida imotivada (regulamentação provisória do inc. I, do art. 7º, da CF). (1)
Tem-se, portanto, que essa indenização pela despedida injusta tem como base de cálculo o saldo do FGTS, ainda que dele não seja qualquer acessório. Dessa sorte, se au-
(1) Esse percentual foi elevado para 50%, mas apenas para ajudar a custear o “acordo” instituído pela Lei Complementar n. 110/01, continuando a ser repassado ao empregado o equivalente a 40% do saldo.
mentada for a base, conseqüentemente aumenta a indenização.
A discussão travada em torno da aplicação dos percentuais de correção monetária envolve, assim, outra relação jurídica, que não aquela entre o titular da conta vinculada e seu atual agente operador. Envolve, também, a repercussão da modificação dessa base de cálculo na indenização devida pelo empregador ao empregado. A questão que se lança, portanto, é sobre a pertinência da majoração da indenização pela modificação da base de cálculo, estendendo-se à legitimidade para responder por essa majoração, e até mesmo sobre o procedimento exigido para isso se obter, incluindo-se, nesse caso, a aferição sobre o prazo prescricional correspondente.
De plano, identificamos na situação a ocorrência de duas relações jurídicas distintas e, conseqüentemente, de duas lesões sucessivas. Uma lesão foi praticada pelo Banco deposi- tário da conta vinculada, nos momentos em que deixou de aplicar as correções monetárias devidas. Outra lesão praticou o empregador que, no momento em que criou o fato gerador da indenização (dispensa sem justa causa) calculou-a sobre o saldo da conta vinculada sem considerar as correções pertinentes.
O tratamento jurídico de ambas tem de ser distinto, até porque a existência de uma não implica, necessariamente, na ocorrência da outra: o empregado pode ter direito aos reajustes, mas não ter direito à indenização, como em casos em que pede demissão ou é despedido por justa causa. Por isso, cada um dos conflitos de interesse merece apreciação distinta, até mesmos pelas suas repercussões patrimoniais.
Nesse sentido, uma das primeiras dúvidas que surge é justamente a respeito da exis- tência ou não de responsabilidade do empregador pelas diferenças de indenização de 40% em razãoda alteração do saldo do FGTS, por conta da incidência da correção monetária indicada. A propósito disso, não temos dúvida em assinalar que essa responsabilidade existe e é exclusiva do empregador, já que a indenização é obrigação decorrente do contrato de trabalho. E, se o texto legal explícita que a base de cálculo da indenização é o saldo vi- gente quando do despedimento, isso deve ser composto por tudo o quando seria devido se existissem as incidências regulares da correção monetária. Imaginar-se que o empregador estaria isento de qualquer obrigação pelo fato de ter adimplido a indenização com base no valor informado na época da rescisão é um raciocínio singularmente simplista, e não condizente com adequadas interpretações do direito. Afinal, a obrigação só resta cumprida se a indenização for satisfeita integralmente na proporção cabível, consoante a correta base de cálculo que deve ser utilizada.
Polêmica similar se instaurou por conta da conduta de alguns empregadores que, ao pagar a indenização de 40%, não computavam os valores sacados pelo trabalhador para aquisição de casa própria, por exemplo. A jurisprudência postou-se, porém, no sentido de que esse procedimento seria incorreto, visto que a indenização deveria ser calculada com base no saldo que deveria existir na conta. E, obviamente, o empregador é que responde pelas diferenças disso decorrentes.
Não se sustenta, pois, a nosso ver, o argumento de que o empregador que faz o paga- mento da indenização com base no saldo informado pela CEF na ocasião do desligamento se exonera integralmente da obrigação, inclusive porque se houver algum equívoco na informação obtida, não se confere total quitação da parcela pelo empregado.
No mais, nem se pode afirmar que existe nisso algum prejuízo ao empregador. Isso porque, o reconhecimento do cabimento dos índices de correção monetária tem como pressuposto o fato de que sua supressão foi um artifício econômico que visou mascarar uma inflação efetivamente existente, e que somente não foi repassada às contas vinculadas. Portanto, o restabelecimento da correção monetária em questão somente recompôs às con- tas vinculadas o poder aquisitivo que foi irregularmente eliminado. Embora tenha havido um ”encarecimento” da indenização ao empregador, isso somente retrata a realidade da correção monetária existente entre a data do depósito e o desligamento do trabalhador.
Dessa conclusão, resulta imediatamente a inferência de que a ação própria para reivindicação das diferenças de indenização de 40%, para aqueles que já receberam, sem a devida correção na conta vinculada, é a reclamação trabalhista. Daí surge, na mesma medida, a discussão sobre a competência da Justiça do Trabalho para assim decidir, bem assim se haveria ou não algum pressuposto para tanto, cabendo-nos identificar como deve se conduzir o magistrado ao se deparar com ação em que o trabalhador reivindica tais diferenças.
A tal respeito, identificamos, no caso, três situações: a) a do trabalhador que, indivi- dual ou coletivamente, reivindicou na Justiça Federal a correção de sua conta vinculada;
b) a do trabalhador que não ingressou com ação na Justiça Federal e não aderiu ao acordo da LC n. 110/01; e c) a do trabalhador que aderiu ao acordo.
Na situação “a”, se já houve a iniciativa do trabalhador na busca da correção mo- netária na esfera própria, pode ter ele obtido uma decisão definitiva ou não. Se já houve decisão definitiva e seu pedido foi julgado improcedente, obviamente não teria as di-
ferenças de indenização de 40%, pela eficácia objetiva da coisa julgada na sua base de cálculo. De outra parte, mas no mesmo sentido, se procedente o pedido, automaticamente temos como devida a indenização correta, sendo devidas as diferenças reivindicadas. Caso o feito ainda esteja pendente de julgamento, parece prudente, pelas razões que foram expostas, que se aguarde decisão definitiva a respeito, aplicando-se as soluções indicadas em cada caso concreto.
Na hipótese “c”, feita a prova da adesão ao acordo, tem-se que o trabalhador auto- maticamente adquiriu o direito à correção prevista na lei, abdicando, pelo art. 6º, III, do texto legal, das demais diferenças em seu favor. Desde logo, pois, tem-se que seu saldo será corrigido gradativamente, segundo o escalonamento que a própria lei estabeleceu. No entanto, incorreta é a conclusão de que somente quando for aplicado cada imple- mento financeiro na conta vinculada do trabalhador é que ele terá o direito à majoração. Na realidade, a LC n. 110/01 reconheceu o direito da correção monetária, pelos índices propostos, mas incidentes a partir de cada data de supressão. Assim, todos os trabalha- dores que tinham contas vinculadas na ocasião de cada uma das supressões, devem ter os efeitos econômicos da incidência admitida pela LC n. 110/91 retroagidos às datas dessas supressões, o que modifica, obviamente, a base de cálculo da indenização de 40% por ocasião da dispensa. Dessa sorte, postuladas as diferenças de 40% por trabalhador optante pelo acordo, consideramo-las devidas, com base no percentual aplicado por força da Lei Complementar n. 110/91.
A situação que, com certeza, causa maiores reflexões, é aquela enfocada no item “b”. Poderia o empregado reclamar as diferenças de 40% sem ter movido a ação contra a CEF buscando a correção do saldo do FGTS? Pensamos que sim, não sendo necessário que o trabalhador primeiramente promova a ação em questão como um pressuposto para sua reclamação.
Com efeito, pode-se afirmar que o juiz do trabalho não teria competência para decidir a respeito do cabimento da correção monetária, visto que o art. 109 da CF fixa a competência absoluta da Justiça Federal para as demandas envolvendo empresas públicas federais. Mas isso não impede que o magistrado trabalhista resolva, de forma incidental, a pertinência da correção monetária, decidindo estar incorreta a base de cálculo e estabelecendo o direito do trabalhador às diferenças de 40% reclamadas. São inúmeras as situações concretas em que o juiz do trabalho tem de decidir temas que não fazem parte de sua competência principal, como pressuposto fundamental para a decisão meritória típica do direito do tra-
balho. Exemplo disso ocorre quando, na ação trabalhista, o juiz estabelece a existência ou não de conduta criminosa do empregado, a fim de decidir se houve ou não falta grave. Ou ainda, quando se decide a respeito da garantia de emprego do art. 118 da Lei n. 8.213/91, é comum a avaliação, na própria ação trabalhista, da ocorrência de acidente de trabalho, tema para o qual não haveria competência trabalhista.(2)
Essa possibilidade de decisão incidental é absolutamente pertinente. Afinal, a jurisdição é um poder unitário, que sofre divisões de competência apenas e tão-somente por razões estruturais e organizacionais. O império da decisão judicial, porém, não se discute, por traduzir a vontade concreta da lei, passível de ser modificada somente por outra decisão judicial. Assim, ainda que o juiz não possa decidir sobre certa matéria, de forma definitiva, pode pronunciar-se de modo incidente, desde que ela constitua um pressuposto para a apreciação do conflito fundamental que está sob seu exame. Eliminar-se essa possibilidade equivaleria à abdicação do poder de julgar, conduta incompatível com a demanda social em um Estado Democrático de Direito: o que espera a sociedade do juiz é que ele decida, e não que fique escudado em meras assertivas formais que não solucionam o litígio colo- cado sob seu exame.
Notamos que decisões incidentais, usadas meramente como fundamentos ou questões prejudiciais da decisão principal, não produzem coisa julgada (art. 325, do CPC), exceto se houve requerimento expresso de uma das partes para que haja declaração incidente do juiz (art. 5º, do CPC). Portanto, essa possibilidade que ora defendemos, além de demonstrar a afirmação do poder jurisdicional do juiz do trabalho, não pode ser qualificada como sendo ofensiva à segurança jurídica, porquanto se o magistrado trabalhista vier a decidir pela pertinência da correção monetária à conta vinculada e deferir a diferença de indenização, isso não irá produzir qualquer efeito em eventual ação posterior, movida pelo trabalhador contra a CEF.
Demais disso, diante do pronunciamento do STF a respeito do mérito da matéria, não parece razoável que a pretensão de correção monetária venha a ser indeferida, ainda que não exista qualquer vinculação dessa decisão à postura dos demais magistrados.
Por isso, afirmamos com segurança que, havendo postulação do empregado a res- peito de diferenças de indenização de 40%, em face do empregador, o juiz do trabalho
(2) Aqui, fazemos referência à competência para ações acidentárias típicas, movidas contra o INSS, pois entendemos, acompanhando corrente minoritária, que o art. 114 da CF não excluiu a competência trabalhista para ações de indenização por acidente de trabalho movidas contra o empregador.
pode decidir, incidentalmente e independentemente da existência de outra ação anterior, pelo cabimento da correção monetária da sua conta vinculada, como pressuposto para a concessão da diferença vindicada.
Feitas tais considerações, cumpre avaliar como seria o fluxo prescricional para os pleitos ora examinados. É matéria pacífica junto ao Superior Tribunal de Justiça que a prescrição para o trabalhador reivindicar a correção monetária de sua conta vinculada é de trinta anos, nos termos da Súmula n. 210 daquela Corte. Nesse sentido, a Ementa abaixo transcrita:
“FGTS. 1. Administrativo. Processo civil. CEF. Legitimidade. Correção mone- tária. Conta vinculada. a CEF é parte legítima passiva nas ações em que se discute a correção monetária das contas vinculadas ao FGTS.
2. Prescrição. As ações propostas contra o FGTS, reclamando diferenças de cor- reção monetaria não creditadas nas contas vinculadas, prescrevem em trinta anos.
3. Direito econômico. Correção monetária. Janeiro de 1989. abril de 1990 e fevereiro de 1991. O saldo existente em 31 de janeiro de 1989 na conta vinculada ao FGTS deve ser corrigido monetariamente a base do percentual de 42,72%, e pela variação integral do IPC nos meses de abril de 1990 e fevereiro de 1991. Recurso especial conhecido e provido, em parte.” (RESP. 102249/SC — 1996/0046889-3, 2ª Turma, Rel. Min. Xxx Xxxxxxxxxx, julgto. 15.5.1997, DJ 2.6.97, p. 23.778)
Essa mesma manifestação foi adotada em decisões recentes, como nos RESP 327859/ RN relatado pela Min. Xxxxxx Xxxxxx, da 2ª Turma, julgado em 14.8.2001 e RESP 327273/ SP, relatado pelo Min. Xxxxxx Xxxxxx, da 1ª Turma, julgado em 28.8.2001, evidenciando que a jurisprudência daquela Tribunal Superior é totalmente inclinada para a adoção da prescrição trintenária não só para a cobrança das contribuições ao Fundo (Súmula n. 210), mas também para reivinidcação das diferenças de correção monetária nas contas. Portanto, a partir de cada correção suprimida, tem o trabalhador trinta anos para buscar a correspondente reparação.
Já a reclamação trabalhista reivindicando as diferenças de indenização de 40% do FGTS tem de se fundar no art. 7º, XXIX, da CF, que resulta na possibilidade de postula- ção dessas diferenças em até dois anos da extinção do contrato, porque a lesão (no caso, a despedida sem pagamento ou com pagamento incorreto da indenização) se dá com o
despedimento do empregado.
Com isso, embora tenhamos supressões de correção monetária ocorridas desde 1988, sendo trintenária a prescrição para a reivindicação das correções da conta, caso o empre- gado reclame as diferenças de 40% dentro do biênio posterior ao despedimento, poderá o juiz do trabalho decidir incidentalmente pela pertinência da incidência das ditas correções, deferindo ao trabalhador as diferenças por ele pretendidas, conforme o caso em que se enquadrar.