CONFIANÇA E CIBERESPAÇO: UMA OBSERVAÇÃO SISTÊMICA DO DIREITO DOS CONTRATOS ELETRÔNICOS
CONFIANÇA E CIBERESPAÇO: UMA OBSERVAÇÃO SISTÊMICA DO DIREITO DOS CONTRATOS ELETRÔNICOS
Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx* Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxx**
RESUMO
Pretende-se realizar uma observação das relações contratuais e demonstrar como a dogmática jurídica vem reagindo diante das atuais configurações de uma sociedade complexa. O contrato, visto como uma instituição jurídica obrigacional, apresenta-se hoje diferenciado em relação à sua concepção tradicional. Isto ocorre devido ao advento da Internet, o que fez surgir o que se denomina contrato eletrônico. Deste modo, entende-se que a dogmática jurídica vem encontrando sérias dificuldades em conceituar e problematizar de uma maneira eficiente esta nova identificação do contrato. Isso se dá principalmente pelo fato deste instituto ter sua forma modificada, pois de uma noção física de contrato, passou-se a uma noção virtual, desmaterializada, portanto, não-presente. Os fenômenos advindos da contratação virtual, trouxe problemas que merecem uma observação diferenciada. Nos serviremos, para tanto, da Teoria dos Sistemas Sociais de Xxxxxx Xxxxxxx. Propõe-se, a partir de uma noção mais sofisticada do instituto jurídico da confiança, observar as contratações no Ciberespaço. A confiança surge, nessa perspectiva, como uma forma efetiva de redução da complexidade e de construção do social, notadamente quando passa a operar a nível sistêmico. Entende-se, assim, que a partir de noções como complexidade e confiança sistêmica, pode-se construir alternativas para a tomada de decisões no campo do Direito contratual e no Ciberespaço.
* Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UCS e da UNISINOS; Pós-doutor em Sociologia do Direito pela Universita degli Studi di Lecce; Doutor pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris (1989). Líder do Grupo Teoria do Direito – CNPq. E-mail: xxxxxx@xxxxxxxx.xx.
** Graduando do Curso de Direito da UNISINOS/RS; Bolsista de Iniciação Científica CNPq/PIBIC; Membro do Grupo de Pesquisa Teoria do Direito – CNPq. E-mail: xxxxxxxxx@xxxxx.xxx.xx.
PALAVRAS-CHAVE: DIREITO; CONTRATOS; COMPLEXIDADE; CONFIANÇA; TEORIA DOS SISTEMAS.
ABSTRACT
The aim is to achieve a point of contractual relations and demonstrate how dogmatic legal reacting comes forward from current settings of a complex society. The contract, seen as a legal obrigacional institution, today presents itself differently in relation to its traditional design. This is due to the advent of the Internet, which has shown what is called electronic contract. Thus, it is understood that the dogmatic legal finding has serious difficulties in characterise in question in a manner efficient identification of this new contract. This is mainly because of the institute have their modified form, because of a physical concept of contract, it moved to a virtual concept, desmaterializing, therefore non-present. The phenomena arising from the hiring virtual, brought problems which deserve a comment differently. In serve, and therefore the Theory of Social Systems, Xxxxxx Xxxxxxx. It is proposed from a more sophisticated concept of the institute's legal trust, noted the hiring in Cyberspace. Trust comes, in this perspective, as an effective way of reducing the complexity and construction of the social, especially when going to operate a systemic level. It is understood, therefore, that from notions such as complexity and systemic trust, you can build alternatives for decisions in the field of contract law in Cyberspace.
KEYWORDS: LAW; CONTRACTS; COMPLEXITY; TRUST; SYSTEMS THEORY.
INTRODUÇÃO
O objetivo da presente comunicação é realizar uma observação da dogmática jurídica civilista a partir da matriz teórica pragmático-sistêmica1 de Xxxxxx Xxxxxxx. Para
1 Xxx XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Três Matrizes da Teoria Jurídica. In: Epistemologia Jurídica e Democracia. São Leopoldo: Unisinos, 2004.
tanto será dado um destaque na primeira fase2 de seus estudos, notadamente em suas obras “Sociologia do Direito” e “Confiança” 3.
A insuficiência das sociologias clássicas do Direito fez com que se necessitasse, para Xxxxxxx, de um instrumental teórico que permita uma observação adequada do fenômeno jurídico. Nesse sentido, tornou-se imprescindível “ver e pesquisar o direito como estrutura, e a sociedade como sistema em uma relação de interdependência recíproca” 4. Influenciado por Xxxxxxx Xxxxxxx0, Xxxxxxx desenvolve uma teoria que observa, sofisticadamente, a complexidade jurídico-social. Pois, na sociedade globalizada, os juristas vêm encontrando sérias dificuldades em trabalhar com as novas formas de produção de sentido normativo incorporadas nas contratações virtuais, como aquelas, v.g., por sites da Internet e via e-mail. Tudo isso tem gerado contratos jurídicos híbridos. Assim, para abordar adequadamente este problema, é essencial analisar as relações contratuais considerando-se toda a complexidade e contingência nelas existentes.
Em razão disso, destacamos que se podem observar alguns dos principais fenômenos que vêm ocorrendo hodiernamente na contratação, desde a opção pela análise empírica dos contratos de consumo, ou seja, do então denominado comércio eletrônico.
Ante tal problemática, defendemos a tese de que a confiança pode se apresentar como uma forma eficaz de produção e construção de sentidos jurídicos que possibilitam assim a delimitação de vínculos sociais e o restabelecimento de expectativas normativas, bem mais amplas do que permitiria a dogmática jurídica.
2 A obra de Xxxxxx Xxxxxxx pode ser dividida, basicamente, em dois momentos: o primeiro, do início da década de sessenta até meados da década de oitenta, é a fase em que o autor trabalhou a teoria dos sistemas a partir da concepção de Xxxxxxx Xxxxxxx, conhecida por “estruturalismo-funcional”; e o segundo momento, também conhecido por fase autopoiética. Como projeto de estudo/pesquisa, procurou-se desenvolver nesta etapa da pesquisa a aproximação entre a Teoria dos Sistemas e o Direito contratual, seguindo-se a orientação da primeira fase da teoria luhmanniana.
3 XXXXXXX, Xxxxxx. Confianza. México: Universidad Iberoamericana, 1996.
4 XXXXXXX, Xxxxxx. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983. p. 15.
5 XXXXXXX, Xxxxxxx. Os Sistemas das Sociedades Modernas. São Paulo: Pioneira, 1974.
2 XXXXXX XXXXXXX: BASES E DESENVOLVIMENTO DE UMA TEORIA SOCIOLÓGICA
O pensamento sociológico contemporâneo passou a receber notável contribuição com as idéias de Xxxxxx Xxxxxxx, especialmente, a partir da década de sessenta 6. Xxxxxxx se pôs a analisar o fenômeno social, pensando a sociedade como sistema, bem como suas inter-relações, em toda sua complexidade. Desse modo, conforme Xxxxxxx, para iniciar análises do Direito é necessário realizá-las conjuntamente com a sociedade, investigando os caminhos do convívio humano, este sensorialmente orientado. Igualmente, precisaria explorar os processos básicos de formação do Direito e sua função como um componente da estrutura de sistemas sociais.
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a relação do homem com o mundo é constituída de forma sensitiva. Este mundo proporciona ao homem um número infindável de experiências e ações, contrapostas ao seu limitado potencial em termos de ação atual e consciente 7. Em outras palavras, ele se apresenta ao homem como um excesso de possibilidades de ação, uma vez que incessantemente se criam situações as mais diversas; situações que se mostram simultaneamente complexas e contingentes. Conforme Xxxxxxx, por complexidade, quer-se dizer que “sempre existem mais possibilidades do que se pode realizar” 8. Em outras palavras, isso significa que o número de possibilidades de ação será sempre maior que o de possibilidades atualizáveis. Assim, “cuando se habla de ‘reducción de complejidad’ (...) se trata tan xxxx xx xx xxxxxx xx xx xxxxxxxx xx xx xxxxxxxxxxx, xx decir, de un traslado continuo de lo actual y lo potencial” 9.
6 Ver, em especial, sobre esta fase: XXXXXXX, Xxxxxx. Vertrauen. Ein Mechanismus der Reduktion sozialer Komplexität. Stuttgart: Xxxxxxxxx Xxxx Verlag, 1973. (com tradução para o espanhol: XXXXXXX, Xxxxxx. Confianza. México: Universidad Iberoamericana, 1996); XXXXXXX, Xxxxxx. Legitimation durch Verfahren, 1969 (com tradução para o português: Legitimação pelo procedimento. Brasília: UnB, 1980), e XXXXXXX, Xxxxxx. Rechtssoziologie I und II, 1972 (com tradução para o português: Sociologia do Direito I e II. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, 1985). Far-se-á uso, neste ensaio, das traduções supracitadas.
7 XXXXXXX, Xxxxxx. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 45.
8 Idem. Ibidem, p. 45.
9 XXXXXXX, Xxxxxx. La Sociedad de la Sociedad. Tradução de Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx. México: Ed. Herder/Universidad Iberoamericana, 2007, p. 107.
Já, por contingência, quer-se dizer que “as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas, ou seja, que essa indicação pode ser enganosa por referir-se a algo inexistente, inatingível” 10.
Nessa mesma esteira, afirma-se que as relações humanas são permeadas por expectativas; estas, segundo Xxxxxxx, têm por função primordial “orientare in modo relativamente stabile la comunicazione e il pensiero di fronte alla complessità e alla contingenza del mondo” 11. Mas o que é uma expectativa? Para esta resposta, podem-se buscar pistas em contribuições da teoria motivacional. Nesse sentido, segundo Xxxxx e Veroff, a expectativa “es un manera abreviada de denominar ‘la previsión de que la realización de una determinada actividad conducirá a un cierto objetivo’. Este determinante atribuye a un organismo la facultad de previsión, y permite que el resultado o consecuencia de una actividad ayude a regular la propia actividad”12 . Em outras palavras, a expectativa é a capacidade de antecipação que um organismo possui. Nesse sentido, Xxxxxxxx afirma que “os organismos têm a capacidade de antever e, por conseguinte, de avaliar a possibilidade de que uma dada ação resulte num dado desfecho” 13.
É básico que se tenham expectativas não só sobre o comportamento, mas sobre as próprias expectativas que o outro possui sobre o agir de alguém (ou sobre suas expectativas). Desse modo, não existem somente expectativas, mas sim, expectativas de expectativas, e assim sucessivamente. Conforme Xxxxxxx, quem tem “expectativas sobre as expectativas de outro [...] pode ter um acesso mais rico em possibilidades ao seu mundo
10 Idem. Ibidem, p. 45.
11 XXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXX, Xxxxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx. Xxxxxxx In Glossario: I Concetti Fondamentali Della Teoria dei Sistema Sociali. Milano: Xxxxxx Xxxxxx, 1996, p. 46
12 XXXXX, Xxxxx y XXXXXX, Xxxxxx. La Motivación: un Estudio de la Acción. Alcoy – España: Editorial Marfil, 1969, p. 15.
13 XXXXXXXX, Xxxxxx X. A Psicologia como Ciência Social. São Paulo: Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1975, p. 116.
circundante” 14. Em suma, é exatamente essa capacidade de antever as conseqüências do comportamento que confere a direção ao indivíduo 15.
A constituição do mundo social, portanto, se apresentará sempre a partir de um horizonte duplo de perspectivas, pois, além de mim, existe sempre o outro: isso quer dizer que a contingência simples, aqui, se eleva à dupla contingência. Isto é, “no momento em que dois indivíduos entram em contato nesse marco, cada um receberá essa contingência, tanto referida a si mesmo como ao outro” 16. Diante disso, erigem-se estruturas de expectativas, que têm por função básica fortalecer a seletividade, por permitirem a dupla seletividade. Desse modo, nas palavras de Xxxxxxx Xxxxxxxx,
a dupla seletividade pode ser observada em dois momentos. O primeiro é constatável quando se opta por uma comunicação dentre várias possíveis. [...] O segundo momento é observável pela comunicação em si mesma e pela capacidade de entendimento via expectativas oferecida pela linguagem17.
De acordo com Xxxxxxx, existem duas possibilidades contrárias de reação a desapontamentos: faz-se aqui uma diferenciação entre expectativas cognitivas e normativas. Quanto às primeiras, há certa flexibilidade, ou seja, existe a possibilidade de alteração da expectativa. Ou mesmo, “ao nível cognitivo são experimentadas e tratadas as expectativas que, no caso de desapontamentos, são adaptadas à realidade” 18. Já, no tocante às expectativas normativas, estas não são abandonadas se alguém as violar. Conforme Xxxxxx Xx.,
[...] atitudes normativas são, de outro lado, expectativas cuja durabilidade é garantida por uma generalização não adaptativa, isto é, admitem-se as
14 XXXXXXX, Xxxxxx. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 48.
15 XXXXXXXX, Xxxxxx X. A Psicologia como Ciência Social. Op. cit., p. 116.
16 XXXXXX XXXXX, Xxxx Xxxxxxx. A Sociedade e o Direito na obra de Xxxxxx Xxxxxxx. In: Xxxxxx Xxxxxxx: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica. XXXXXX, Xxxxx-Xxxx; XXXXX XX. Dalmir. (Org.) Rio de Janeiro: Xxxxx Xxxxx, 0000, p. 302.
17 XXXXX, Xxxxxx, XXXXXXXX, Xxxxxxx, XXXX, Xxxx. Introdução à Teoria do Sistema Autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 77.
18 Idem. Ibidem, p. 56.
desilusões como um fato, mas estas são consideradas como irrelevantes para a expectativa generalizada19.
Na dogmática, desde a teoria sociológica de Xxxxxxx, o Direito pode ser visto, então, como uma estrutura de generalização congruente de expectativas comportamentais normativas 20. Ou seja, o Direito é visto como a estrutura de um sistema social, e a congruência (coerência) das expectativas é utilizada no sentido de uma seleção mais específica. A função do direito seria reduzir a complexidade por meio da produção de sentido. Isso a partir da seleção de expectativas comportamentais que possam ser generalizadas em três dimensões: temporal, social e prática.
Na dimensão temporal, as expectativas são estabilizadas contra desapontamentos por meio da normatização. Entenda-se que a tática de que se vale contra o desapontamento é a sanção. Na dimensão social, as expectativas são institucionalizadas; com o conceito de institucionalização, consegue-se “delinear o grau em que as expectativas podem estar apoiadas sobre expectativas de expectativas supostas em terceiros” 21. Em relação à dimensão prática, as expectativas são fixadas por um sentido idêntico. Pois,
[...] já que não podemos participar diretamente da consciência de outras pessoas, a expectativa de expectativas (ou expectativas reflexivas) só é possível através da mediação de um mundo em comum, no qual estão fundamentadas todas as expectativas22.
As possíveis discrepâncias existentes nas generalizações das diferentes dimensões de sentido apresentam-se extremamente complexas, pois existe a possibilidade de se dispor não apenas de um, mas sim, de vários possíveis direcionamentos funcionalmente equivalentes para os problemas surgidos nas diferentes dimensões. E há, como se pode observar, certa incompatibilidade recíproca dos diversos mecanismos de generalização. É
19 XXXXXX XX., Xxxxxx Xxxxxxx. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 104.
20 XXXXXXX, Xxxxxx. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 121.
21 XXXXXXX, Xxxxxx. Sociologia do Direito I. Op. cit., p. 77.
22 Idem. Ibidem, p. 94.
nesse sentido que atua o Direito, ou seja: produzindo congruência seletiva, disponibilizando caminhos congruentemente generalizados para as expectativas.
A sociedade, por sua vez, é vista como o sistema social, em um ambiente altamente complexo e contingente. Assim, pode-se afirmar que a sociedade é que traça os limites da complexidade social, limitando as possibilidades. Conforme Xxxxxxx Xxxxxxx,
[...] la società è quel sistema sociale che instituzionalizza le ultime basilari riduzioni di complessità e, con ciò, crea le premesse per l’operare di tutti gli altri sistemi sociali (interazioni ed organizzazioni). La selettività della società consente quella degli altri sistemi sociali23.
Nessa perspectiva, o sistema não é visto como um sistema composto de pessoas, senão somente de comunicações. Partindo dos contributos de Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx00 Xxxxxxx define sistema como uma diferença. Nas palavras de Xxxxxxx, “el sistema es la diferencia que resulta de la diferencia entre sistema y entorno” 25.
3 CONFIANÇA
Confiança é um pressuposto simbólico importante para a produção de sentido no Direito. Neste ponto, abordar-se-á a confiança na obra de Xxxxxx Xxxxxxx. Observar como se estabelece uma relação de confiança – não só pessoal, mas sistêmica - pode fornecer indícios e propor alternativas de mudança na forma de como se erigem relações jurídicas perante a complexidade social.
3.1 COMPLEXIDADE E CONFIANÇA
23 XXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXX, Xxxxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx. Xxxxxxx In Glossario: I Concetti Fondamentali Della Teoria dei Sistema Sociali. Milano: Xxxxxx Xxxxxx, 1996, p. 215.
24 XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. Laws of Form. Nova York, 1979.
25 XXXXXXX, Xxxxxx. Introducción a la Teoria de Sistemas. Lecciones publicadas por Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx. México: Universidad Iberoamericana, 1996, p. 78.
A sociedade é complexa. Nessa perspectiva, fica evidente que as relações humanas já vêm, habitualmente, carregadas de certa carga de imprevisibilidade. Desse modo, o Direito dogmático procura produzir segurança nessas relações por meio do contrato. No entanto, com a ampliação da incerteza e dos riscos contemporâneos, cada vez mais estão ocorrendo processos jurídicos com alta carga de desconfiança. Assim, entendemos que a complexidade se relaciona com a confiança.
Neste texto pretendemos observar até que ponto a forma confiança/desconfiança poderá se tornar um redutor de complexidade a partir de uma nova conceituação da idéia de confiança. Considera-se aqui a confiança não como algo fundado em algum subjetivismo, mas sim, como um mecanismo que possibilita a construção do social.
Observada nessa perspectiva, a confiança para operar precisa de tempo. Em outras palavras, a confiança é uma forma que possibilita o controle do tempo. Ela encontra-se entre o passado e o futuro, possibilitando que, no presente, reduza-se complexidade. Segundo Xxxxxxx, o cerne de tal problemática “consiste en el hecho de que el futuro contiene muchas más posibilidades de las que podrían actualizarse en el presente” 26. Ou seja, confiar não é propriamente eliminar os perigos existentes no futuro – que, por sua vez, é incerto e permanecerá sendo incerto –, mas agir como se o futuro fosse certo, ou melhor: confiável.
A confiança, assim, vai se erigindo tridimensionalmente. Duas dessas dimensões pertencem ao âmbito da confiança pessoal. Nessa perspectiva, ela é condição essencial para o convívio dos indivíduos em sociedade, pois o homem orienta-se especialmente pela confiança que é depositada nas pessoas e no mundo. Contudo, transcende-se este âmbito em situações de elevada complexidade: surge então uma terceira dimensão, denominada por Xxxxxxx confiança sistêmica, a qual para operar depende dos meios de comunicação simbolicamente generalizados. Em suma, duas dimensões da confiança estão diretamente
26 XXXXXXX, Xxxxxx. Confianza. Op. cit., p. 20.
vinculadas à confiança pessoal, sendo que uma terceira dimensão, demonstra como se estabelece uma relação de confiança sistêmica. É sobre estas três dimensões da confiança que trataremos a seguir.
3.2 CONFIANÇA PESSOAL
O “Tao te King” 27, de Xxx Xxx, já dizia: “se não confiares o suficiente nas pessoas, elas não poderão confiar-te nada”. Esta frase resume bem a idéia de confiança no âmbito pessoal. Em um primeiro momento, o indivíduo pode confiar em sua própria confiança em outra pessoa, atribuindo à sua confiança a habilidade para motivar terceiros. Essa habilidade pode ser comparada à característica capacidade que o indivíduo tem de pensar sobre seus próprios pensamentos28. Por conseguinte, naquele que se pode chamar um segundo momento da confiança pessoal, pode o indivíduo confiar na confiança que outros têm nele. Nesses dois momentos (podendo-se falar então em duas dimensões), a confiança se apresenta como confiança reflexiva. Conforme Xxxxxxx, “por reflexividade, devemos entender que inicialmente um processo é aplicado a si mesmo, ou a processos do mesmo tipo, e só depois utilizado em termos definitivos” 29.
E é justamente devido à reflexividade existente na relação de confiança, que se aumentam os riscos, pois existe a possibilidade, por exemplo, de uma das partes contratantes num dado negócio jurídico se questionar sobre a confiança do outro, pondo, assim, a perder toda a negociação celebrada. Por conseguinte, pode-se falar na relação de confiança que alguém estabelece com outros que confiem na terceira parte da mesma forma que ele: aqui começa a se falar na terceira dimensão da confiança, ou seja, na confiança sistêmica 30.
27 XXX, Xxx. Tao te King. 4. ed. Lisboa: Estampa, 1989.
28 XXXXXXX, Xxxxxx. Confianza. Op. cit., p 120.
29 XXXXXXX, Xxxxxx. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1985, p. 13.
30 XXXXXXX, Xxxxxx. Confianza. Op. cit., p. 120.
3.3 CONFIANÇA SISTÊMICA
Diante da crescente complexidade e conseqüente diferenciação funcional na sociedade moderna, surgem, segundo Xxxxxxx, meios de comunicação simbolicamente generalizados. Para ele, estes são
[…] mecanismos adicionales al lenguaje cotidiano, que son códigos de selección simbólicamente generalizados, cuya función es proveer la capacidad de transmisión intersubjetiva de los actos de selección, a través de condenas más largas o más cortas31.
Esses meios são: a verdade, o poder, o amor e o dinheiro. Eles possibilitam a formação de estruturas, aliviando, dessa forma, a elevada contingência existente na sociedade. Sob essa ótica, a contingência incrementada por meio da linguagem exige dispositivos suplementares que, na forma de códigos simbólicos adicionais, dirijam a transmissão, de forma efetiva, da complexidade reduzida32. Vale, assim, trazer a lição de Xxxxxxx e De Giorgi: “Tuttavia non si tratta né semplicemente di linguaggi particolari né di media della diffusione, ma di un tipo di media di genere diverso: di un'altra forma, di un altro genere di distinzione, di un diverso codice” 33.
Xxxxxxx não se refere, especificamente, ao estabelecimento de uma relação de confiança entre pessoas, mas na confiança que elas depositam em tais mecanismos e, conseqüentemente, em um sistema. Os indivíduos que confiam nestes mecanismos estão diretamente participando de um sistema, mesmo que inconscientemente. E, segundo Xxxxxxx, “al cambiar la confianza personal por la confianza xx xx xxxxxxx, xx xxxxxxx xx
00 Xxxx, xxxxxx, p. 82.
32 XXXXXXX, Xxxxxx. Complejidad y Modernidad: de la Unidad a la Diferencia. Edición e traducción de Xxxxxxx Xxxxxxx y Xxxx Xxxxx Xxxxxx Xxxxxx. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 104.
33 XXXXXXX, Xxxxxx; DE XXXXXX, Xxxxxxxx. Teoria della Società. Milano: FrancoAngeli, 1994, p. 106.
aprendizaje se hace más fácil, pero el control es más difícil”34. Essa afirmação significa que quem confia em tais mecanismos não pode corrigi-los, todavia, precisa manter a confiança, como se estivesse coagido; não obstante, institucionalizada a confiança, cria-se uma espécie de certeza equivalente35. Mesmo diante desse caráter paradoxal da confiança no sistema, tal possibilidade se apresenta um tanto conveniente. Sai-se de uma contingente vinculação com um indivíduo em específico, uma vez que não existe só uma, mas sim, várias decisões individuais vinculadas a um mecanismo que, por sua vez, está vinculado à formação das estruturas de um sistema.
A xxxxxxx00, vista como um meio de comunicação simbolicamente generalizado, desempenha um papel primordial, pois se encontra presente no estabelecimento de uma relação de confiança sistêmica concomitantemente com outros meios, tais como o dinheiro ou o poder. Desse modo, pode-se dizer que, em especial, a verdade e o dinheiro são os meios presentes em uma relação contratual. A verdade é o meio que atua como portador da redução de complexidade intersubjetiva. Assim, assegura Xxxxxxx, “la confianza solamente es posible donde la verdad es posible, donde la gente puede llegar a un acuerdo acerca de alguna entidad dada que es obligatoria para una tercera parte”37.
4 DO FÍSICO AO VIRTUAL: O ADVENTO DO CONTRATO ELETRÔNICO
As palavras de Xxxxxxx permitem perceber a dimensão do impacto do computador nas relações humanas: “Há boas razões para acreditar que, neste momento, quando ingressamos na idade do computador, estamos nos estágios iniciais de uma das grandes mudanças irreversíveis na história do homem” 38. Devido ao surgimento da rede mundial de computadores, as atuais relações obrigacionais surgem, por meio do contrato, revestidas
34 XXXXXXX, Xxxxxx. Confianza. Op. cit., p. 86.
35 Idem. Ibidem, p. 86.
36 Neste ensaio, aborda-se a verdade baseando-se nas lições de Xxxxxxx contidas em sua obra Confianza. Para uma concepção mais abrangente de verdade - a partir da fase autopoiética do autor - ver: XXXXXXX, Xxxxxx. La Ciencia de la Sociedad. México: Universidad Iberoamericana, 1996.
37 XXXXXXX, Xxxxxx. Confianza. Op. cit., p. 88.
38 XXXXXXX, X. X. O Tempo na História: concepções de tempo da pré-história aos nossos dias. Rio de Janeiro: Xxxxx Xxxxx, 1993, p. 201.
com configurações de notável complexidade. Conforme Xxxxx, “cela s’ accompagne d’une modification radicale de notre regard sur le monde, de notre manière d’envisager lês problèmes et de lês résoudre” 39. O contrato, visto na dogmática jurídica como uma instituição que emerge de uma relação obrigacional, apresenta-se diferenciado quanto à sua forma física: encontra-se desmaterializado, virtual. Na dogmática jurídica, para Pontes de Miranda, o contrato pode ser visto como “o negócio jurídico (ou o instrumento jurídico) que estabelece entre os figurantes, bilateral ou plurilateralmente, relações jurídicas, ou as modifica, ou as extingue” 40. Ou seja, o contrato é o instrumento adequado a fim de se erigirem relações jurídicas para onde convergirão expectativas das partes que serão estabilizadas temporalmente.
Delineando este instituto numa perspectiva mais sistemista, é possível afirmar-se que o contrato pode ser definido como uma expectativa normativa que as partes possuem, ou seja, em frente a situações conflituosas complexas e contingentes, ele se mantém, traduzindo as vontades dos pólos contratantes. O contrato, como instituição, contribui “para a elevação do grau de abstração, da elasticidade, da capacidade de adaptação e da possibilidade de diferenciação de expectativas comportamentais institucionalizadas” 41.
É imprescindível fixar que a idéia de contrato descrita acima é esboçada a partir da primeira fase da obra de Xxxxxx Xxxxxxx. Contudo, numa perspectiva autopoiética, existe uma ampliação que vale ser observada. Conforme Xxxxx e Dutra, “o contrato passa então a ser visto como um acoplamento entre estruturas do Direto e da Economia, um evento capaz de irritar e desencadear alterações determinadas pelas estruturas independentes de ambos”
42. Ou seja, sendo os sistemas do Direito e da Economia operativamente fechados, operando
39 XXXXX, Xxxxxxxx. Cyberculture et info-éthique. Relier les Connaissances: le défi du XXI siècle. Journées thématiques conçues et animées par Xxxxx Xxxxx. Paris: Éditions du Seuil, 1999, p. 371. (“Isso se acompanha de uma modificação radical de nosso olhar sobre o mundo, de nossa maneira de encarar os problemas e de resolvê-los”) Tradução livre.
40MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Parte Geral; Tomo III. Campinas: Bookseller, 2000, p. 246.
41 XXXXXXX, Xxxxxx. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 90.
42 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx; DUTRA, Jéferson Xxxx Xxxxxxxxxx. Notas Introdutórias à Concepção Sistemista de Contrato. In: Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: programa de pós-graduação em Direito da
a partir de seus códigos próprios e de abertura cognitiva a irritações provenientes do ambiente, não obstante, ressalva-se ser o contrato, simultaneamente, uma operação jurídica e econômica. Sob esse aspecto, o contrato tem efeitos distintos não apenas nesses sistemas, mas igualmente em qualquer sistema parcial que se tome como ponto de observação 43.
4.1 O “CONTRATO ELETRÔNICO”
A idéia de contrato eletrônico reflete bem a realidade contemporânea, vale dizer, uma realidade cada vez mais dominada pelo virtual. Conforme Miaille, “na medida em que a Internet é uma rede de redes, não há qualquer cabeça e, praticamente, nenhum meio de limitar sua extensão e funcionamento” 44. Sob esse ponto de vista, o instituto do contrato, hodiernamente, vem recebendo essa influência, desmaterializando-se. Buscando delinear esta nova modalidade de contratação, faz-se uso, inicialmente, das palavras de Xxxxxxxxxx, segundo o qual, “uma vez constatado que o meio digital é utilizado para celebrar, cumprir ou executar um acordo, estaremos diante de um ‘contrato eletrônico’” 45. Ou seja, o contrato vem se despindo gradualmente da tradicional forma física com a qual é conhecido. As expectativas normativas que as partes possuem agora são depositadas em um instrumento virtual, propiciando, desse modo, uma possibilidade de construção jurídica bem mais flexível. Conforme Wielewicki, os contratos eletrônicos podem ser definidos como “instrumentos obrigacionais de veiculação digital. São todas as espécies de signos eletrônicos transmitidos pela Internet que permitem a determinação de deveres e obrigações jurídicos” 46. A virtualização pode ser vista como uma mudança radical de paradigma, de abrangência incontrolável, uma vez que o virtual tentar abarcar o mundo: bancos, lojas, empresas etc.
UNISINOS: mestrado e doutorado. Orgs. Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx; Xxxxx Xxxx Xxxxxx; Xxxx Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxx... (et al.). Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed. São Leopoldo: UNISINOS, 2005, p. 296.
43 Idem. Ibidem, p. 296.
44 XXXXXXX, Xxxxxx. O Cidadão Virtual. In: Cadernos Adenauer IV (2003), nº 6. Mundo Virtual. Rio de Janeiro: Fundação Xxxxxx Xxxxxxxx, abril 2004, p. 18.
45 XXXXXXXXXX, Xxxxxxx X. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 287
46 XXXXXXXXX, X. Contratos e Internet - Contornos de uma breve análise. In: Comércio Eletrônico. Organizadores: Xxxxxxx Xxxxx xx Xxxxx Xx., Xxx Xxxxxxxx. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 198.
Observa-se que essa forma de contratar traz consigo novas noções (de espaço e de tempo), pois, “no universo de software da viagem à velocidade da luz, o espaço não impõe mais limites à ação e seus efeitos, e conta pouco, ou nem conta” 47. Isto é, os grilhões dos territórios físicos foram quebrados com o advento da internet. O lugar de celebração de um contrato passa a ser a rede mundial de computadores: o ciberespaço. Xxxxxx Xxxx define ciberespaço como sendo “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores” 48. Assim, a exteriorização de vontades das partes49 (proposta e aceitação, art. 427 e ss. do C.C. de 2002) no denominado contrato eletrônico, deparou-se com um obstáculo característico do ciberespaço: ter-se certeza de com quem se está, de fato, contratando. Igualmente, a noção de contratos entre pessoas presentes (art. 428, I do Código Civil de 2002) e pessoas ausentes (art. 428, II, III, IV, art. 434 do mesmo código) tornou-se obscura nos contratos eletrônicos, ora inexistindo no Novo Código Civil previsão específica quanto à contratação via internet.50
Nesse sentido, o Código Civil ainda se torna ambíguo por determinar que se reputará “celebrado o contrato no lugar em que foi proposto” (art. 435 do CC de 2002). Mas qual é o lugar da celebração do contrato eletrônico? O físico ou o virtual? Com o desenvolvimento tecnológico, os pactos deixam de ser celebrados estritamente em uma dimensão espacial limitada pela proximidade física. E, mesmo assim, fica difícil de determinar (com exatidão) um local físico de celebração do contrato, visto o pacto ocorrer virtualmente, impossibilitando a certeza da idoneidade das partes contratantes que se atribuem dada localização. Xxxxxxxxxx00, tentando sair do problema, defende que tal problemática depende da evolução tecnológica, devido à existência, na maioria dos casos
47 XXXXXX, Xxxxxxx. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Xxxxx Xxxxx, 2001, p. 136
48 XXXX, Xxxxxx. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 92.
49 No que tange especificamente ao comércio eletrônico, são de valia as palavras de Xxxxxxx, quando esta afirma que “a oferta de negócio, mesmo que por meio eletrônico, terá os mesmos efeitos da oferta contratual no comércio tradicional. Estes atos jurídicos prévios são negócios jurídicos unilaterais, como a oferta. O contrato eventualmente concluído entre fornecedor e consumidor por meio eletrônico é um negócio jurídico (art. 104 e ss do CCBr. 2002) bilateral”. MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor: um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 158.
50 Título V do Novo Código Civil (Dos Contratos em Geral).
51 XXXXXXXXXX, Xxxxxxx X. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 325.
conflitantes, de “locais predeterminados” pelo comportamento das partes que seria “ancorado no mundo real”.
Contudo, o ciberespaço pode ocultar uma realidade diversa da imaginada. Assim, existe, necessariamente uma relação de confiança sistêmica para que ocorra a celebração do pacto. Isso pressupõe que o indivíduo, ao celebrar um contrato, assume a possibilidade de que a outra parte (nesse caso, o ofertante, representado por um web site, ou mesmo outras partes, i.é., terceiros contratantes da página de internet) está com sua orientação vinculada à verdade.
Derradeiramente vale observar que a legislação de outros países prevê expressamente a possibilidade de contratação via internet, como se percebe, por exemplo, na legislação argentina, que caminha a passos largos quanto à temática em questão, possuindo, inclusive, uma lei que versa sobre a problemática da Assinatura Digital (Lei n. 25.506/2001) e já burilando projetos de lei quanto ao Comércio Eletrônico. Do mesmo modo, a Colômbia vem-se estruturando gradativamente para acompanhar os avanços da era digital, criando regulamentação (Lei n. 527 de 1999) para o Comércio Eletrônico52. Faz-se oportuno, igualmente, mencionar a Diretiva n. 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de oito de junho de 2000, referente a aspectos jurídicos dos serviços da sociedade da informação, notadamente o comércio eletrônico, bem como a Lei Modelo da United Commission on International Trade Law (UNCITRAL)53 sobre Comércio Eletrônico, de 1996.
4.2 FENÔMENOS DECORRENTES DA CONTRATAÇÃO ELETRÔNICA
Existe, como se constatou, uma insuficiência por parte da dogmática contratual na regulamentação de formas de contratação virtuais. Contudo, tal insuficiência é explicada no
52 Ver XXXXXXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxx. Comércio Eletrônico – Recentes Avanços Jurídicos na Colômbia. In: Comércio Eletrônico. Organizadores: Xxxxxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxx, Xxx Xxxxxxxx. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 55 a 114.
momento em que se analisa a dogmática jurídica a partir de sua problemática relação com o tempo. Isso é elucidado nas palavras de Xxxxx, que se refere à dogmática como
[...] o pensamento estabelecido no passado que, de alguma maneira, tem a pretensão de controlar o futuro, já que apresenta respostas, antecipadamente, para situações que ainda não aconteceram, mas, se acontecerem, já há um sentido preestabelecido a partir da lei para identificar essas situações54.
A dogmática jurídica, por ser um pensamento estabelecido no passado, é uma forma de negação do tempo, que enfatiza a repetição. Portanto, sendo fundada no passado, é previsível que ela não se encontre inteiramente apta a regular as novas problemáticas que surgem incessantemente na sociedade atual, globalizada. Servirão de base, a partir de agora, notadamente Xxxxxxxxxx e Marques55, para a análise dos fenômenos presentes nas atuais configurações dos negócios jurídicos no comércio eletrônico.
Xxxxxxx, abordando a problemática do contrato eletrônico, fala em uma despersonalização da relação jurídica, uma vez que o comércio eletrônico é realizado “por intermédio de contrações a distância, por meios eletrônicos (e-mail etc.), por internet (online) ou por meios de telecomunicação de massa (telemarketing, televisão, televisão a cabo etc.)” 56. Assim, observa-se uma modificação considerável naquela noção básica de sujeitos de direito57.
Nas relações de consumo, a oferta ao público agora é feita virtualmente, pois, conforme esclarece Xxxxxx Xxxx, “l’offerta contenuta su um sito Internet aperto a qualsiasi utente, si pensi ai virtual mall, può certamente configurare un’offerta al pubblico” 58. Contudo, as pessoas são indeterminadas, permanecendo, por vezes, indeterminadas, já que
54 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx. O direito na forma de sociedade globalizada. In: Epistemologia Jurídica e Democracia. 2ª Ed. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2004, p. 195
55 Ver obras citadas dos respectivos autores.
56 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor: um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 64-65.
57 Idem. Ibidem, p. 63.
58 XXXX, Xxxxxx. La Conclusione di Contratti “online”. I Problemi Giuridici di Internet. Dall’E-Commerce all’E-Business, a cura di E. Tosi. 2ª Edizione aggiornata ed ampliata. Milano: Giuffrè Editore, 2001, p. 44.
a internet “despersonalizou” a relação jurídica, tornando os contratantes virtuais. Este é um dos maiores obstáculos, característico da era digital: comunicar sem se poder ter certeza de com quem, de fato, se está comunicando. Assim, conforme assevera Xxxxxxxxxx, “na contratação eletrônica, pode ser muito difícil constatar a presença do consentimento de alguém que opere um computador” 59. Portanto, na celebração de um contrato, é perfeitamente possível existir erro, dolo ou coação, mas, em contraparte, pode ser impossível se conseguir provar tais existências 60.
Diretamente ligado ao fenômeno acima descrito, encontra-se um segundo, denominado desmaterialização, isto é, o contrato, antes vinculado à figura de uma folha de papel escrita, agora é virtual. Destarte, surge uma inovadora noção de documento, que é o documento eletrônico. Assim, fica notório que “la intervención de las tecnologías electrónicas en la realidad irá desdibujando más y más los límites entre las condiciones materiales y las simulaciones inmateriales” 61. O documento é um pressuposto de existência do contrato, uma vez que, quando a lei estabelece a forma escrita, este não existirá sem essa forma; igualmente, é um pressuposto de eficácia, visto a possibilidade de constituir-se em meio de prova, já que, quando é exigida prova escrita, não é admissível apresentar outro meio de prova62. Observe-se a dimensão da problemática oriunda da celebração de contratos eletrônicos: uma vez ocorrida a manifestação de vontade para a formação do vínculo, se não se conseguir “materializar” o contrato, tornar-se-á difícil a solução de problemas, caso se necessite dele como meio comprobatório 63. Isso se deve ao fato de a Internet ser um meio de comunicação virtual, a distância. Conforme esclarece Tosi,
[...] per tecnica di comunicazione a distanza s’intende qualunque mezzo che senza la presenza física e simultanea del fornitore e del consumatore
59 XXXXXXXXXX, Xxxxxxx X. Comércio Eletrônico. Op. cit., p. 277
60 Idem. Ibidem, p. 277.
61 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Introducción. La Sociedad Multimedia. Barcelona: Editorial Gedisa, 1996, p. 14.
62 Idem. Ibidem, p. 128.
63 Interessante aludir que os tribunais já se deparam com casos que versam sobre estes tipos de problemas Como exemplo: TJRS. 12ª Câm. Cível. Apelação cível nº 70013028261, Rel. Des. Xxxxxx Xxxxx Xxxx Xxxxxxxx. J. 30/03/2006.
possa utilizzarsi per la conclusione del contratto. La posta elettronica è una tecnica di comunicazione a distanza64.
Ressalva-se, igualmente, que não só o contrato foi desmaterializado, mas anteriores a ele, a linguagem e o meio de contratar já o foram. Ou seja, devido a uma linguagem diferenciada, virtual, a possibilidade de erro aumenta ante a complexidade do meio utilizado. A possibilidade de existir erro torna-se cada vez mais provável devido a, basicamente, dois fatores, quais sejam: a) a crescente velocidade da sofisticação tecnológica da informática - tão rápida que impossibilita o indivíduo - e o Direito - de acompanhar tais avanços e b) a existência de uma multiplicidade de símbolos virtuais (ícones, janelas etc.) que nem sempre correspondem à leitura realizada pelo indivíduo, ocasionando o erro, isto é: eles podem ocultar uma realidade diversa, não correspondente às expectativas existentes na relação.
Nas relações de consumo, isso fica evidenciado, uma vez que, por detrás da aparente simplicidade de se comprar pela internet, existem ocultos conteúdos que podem induzir o consumidor ao erro. Quanto a isso, existe amparo no Código de Defesa do Consumidor (CDC), em seu art. 46, que dispõe: “Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance”.
Por derradeiro, a atemporalidade apresenta-se como uma forte característica da era digital. A noção de tempo real se apresenta modificada: existe agora uma idéia de tempo virtual. Fala-se de um tempo em que a comunicação se dá de forma instantânea. “‘Instantaneidade’ significa realização imediata, ‘no ato’ –, mas também exaustão e desaparecimento do interesse”, afirma Xxxxxx 65. A acentuação desta noção proporcionada por uma comunicação veloz, origina no usuário uma sensação de “tempo real”, que se
64 XXXX, Xxxxxx. La Conclusione di Contratti “online”. I Problemi Giuridici di Internet. Dall’E-Commerce all’E-Business, a cura di E. Tosi. 2ª Edizione aggiornata ed ampliata. Milano: Giuffrè Editore, 2001, p. 67.
65 XXXXXX, Xxxxxxx. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Xxxxx Xxxxx, 2001, p. 137
reflete diretamente na contratação virtual, impondo obstáculos à dogmática no tocante ao
tempo do contrato.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se, com base na análise ora realizada, que o Direito somente visto como sistema está apto a lidar com os fenômenos da contratação eletrônica. Observar como o Direito generaliza as expectativas nas três dimensões de sentido fornece argumentos que comprovam possibilidades de regulação para a problemática.
A estruturação de expectativas normativas (normas) apresenta-se como um grande desafio em uma sociedade complexa como a nossa. Isso se deve ao fato de que os mecanismos e as exigências de cada dimensão são muito singulares, podendo eles generalizar expectativas que sejam diferentes, incompatíveis. Ou então, eles podem bloquear-se, ou inclusive dificultar-se reciprocamente. Ressalva-se que é exatamente diante dessas incongruências que o Direito estabelece sua função social 66.
Assim, diferentemente do que se poderia supor, não seria uma mera produção normativa, destinada a regular esta problemática, a solução adequada. A chance de tais normas caírem em desuso seria muito grande. Isso devido a, basicamente, dois fatores: 1) a aceleração da tecnologia, que torna praticamente impossível prever se tais normas se adequarão ao caso concreto num futuro próximo e 2) a possibilidade de existirem ou se salientarem as incompatibilidades e incongruências naturais dos mecanismos de generalização. Ou seja, pensar o contrato eletrônico somente a partir de normas seria um dogmatismo que desrespeitaria a dinâmica interna e as crescentes possibilidades existentes nesta modalidade de contratação. O contrato eletrônico possui estruturas cambiantes que praticamente impossibilitam sua plena positivação. Fechá-lo em um conceito ou pensá-lo dogmaticamente seria desrespeitar sua complexidade.
66 XXXXXXX, Xxxxxx. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 110.
A partir da confiança, notadamente da confiança sistêmica, pode existir uma superação dos obstáculos impostos pela contratação virtual. Precisa-se confiar em mecanismos - neste caso, a verdade -, nos quais outros depositem igualmente sua confiança. Uma relação virtual está, mesmo que inconscientemente, fundada numa relação de confiança sistêmica.
A sociedade complexa está em constante evolução, provocando incertezas - contingências. Portanto, pode-se observá-la diferentemente a partir da idéia de confiança, como critério de antecipação do futuro ao construir alternativas para a tomada de decisões no campo do direito contratual.
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