TERCEIRIZAÇÃO E O ÔNUS DA PROVA NA RESPONSABILIZAÇÃO DO ENTE PÚBLICO: ALÉM DO DIREITO, UMA QUESTÃO SOCIAL
TERCEIRIZAÇÃO E O ÔNUS DA PROVA NA RESPONSABILIZAÇÃO DO ENTE PÚBLICO: ALÉM DO DIREITO, UMA QUESTÃO SOCIAL
Ricardo Calcini1
Xxxxxx Xxxxxxx Camara2
RESUMO
Inobstante a ausência de vínculo com o trabalhador terceirizado, o Poder Público não está isento de fiscalizar o cumprimento de obrigações pela intermediária contratada. Conquanto a sua responsabilização não possa ser automática, por desdobramento da tese firmada no RE 760.931/DF (Tema 246), do Supremo Tribunal Federal, o debate se concentra agora no ônus da prova da conduta culposa na falha desta fiscalização: está a encargo do empregado ou do ente tomador de serviços? A resposta está pendente pelo julgamento do RE 1.298.647/SP (Tema 1.118/STF). O estudo visa compreender as implicações dessa dicotomia entre o dever de zelo dos direitos sociotrabalhistas pelo Estado, sobretudo na escolha e fiscalização da
interposta contratada, e, em contrapartida, concorrer com a violação desses mesmos direitos ao pretender sobrepor xxx xxxx ao trabalhador. Conclui-se que, mormente no contrato de terceirização, o trabalhador dificilmente possua a capacidade de provar a inexistência de fato (prova diabólica), de modo que imputar a ele tal ônus, ao revés do Princípio da Aptidão da Prova, possivelmente resultará em maior precarização do trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: Terceirização. Administração Pública. Ônus da Prova. Tema Repetitivo 1.118/STF
INTRODUÇÃO
1 Mestre em Direito do Trabalho pela PUC/SP.
Professor de Direito do Trabalho da FMU e Visitante em Cursos de Pós-Graduação (ESA, IEPREV, Católica de SC, PUC/PR, PUC/RS, Ibmec/RJ, FDV e USP/RP).
Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Autor de livros e de artigos jurídicos. E-mail contato@ xxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx
2 Pós-Graduanda em Direito do Trabalho e Previden- ciário pela PUC/MG. Graduada em Direito pela Uni- versidade Católica de Santos. Advogada e Consultora. E-mail: xxxxxxxxxxxxx@xxxxx.xxx
Com a globalização do capitalismo, a terceirização passou a ser um fenômeno mundial já em meados do século XX. O descarte da atividade-meio e a ascensão do padrão toyotista3, ligado ao aumento da capacidade produtiva pela demanda sem a necessidade de novas contratações, contribuíram para que as empresas fossem mais competitivas no mercado internacional, objetivando maior lucro pelo menor custo (SIQUEIRA, 2021).
3 Modelo de produção pautado na economia japone-
sa
Visando suprir as oscilações de demanda do mercado, as contratações passaram a ocorrer de maneira mais flexível, por contratos de trabalho temporário ou por meio de empresas intermediárias de mão de obra - isto é, pela terceirização (SIQUEIRA, 2021).
No Brasil, a legislação sobre o assunto vem se desenvolvendo desde os anos 1960 e, no âmbito da Administração Pública, está de sobremaneira regulamentada na Lei de Licitações (atual Lei 14.133/21) e na Súmula 331, V, do Tribunal Superior do Trabalho.
Com a crescente terceirização do setor público, não é difícil se deparar com manchetes jornalísticas apontando irregularidades graves na contratação ou mesmo na execução dos contratos de serviços terceirizados, com destaque maior aos escândalos de fraude e de corrupção nos contratos de saúde, pelas pseudo-organizações sociais (OSs).
A procuradora do trabalho, Dra. Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx, elucida que, muito embora o Estado consiga aumentar a sua capacidade de eficiência na prestação de atividades essenciais através da descentralização dos serviços, a “terceirização tem sido o meio utilizado para o enriquecimento ilícito”, o que tem onerado demasiadamente o Estado, pois “ou há superfaturamento de preços; ou empresas ´somem´, deixando os seus empregados sem o pagamento de verbas salariais e rescisórias” (MOUSINHO, 2022), o que, sem dúvidas, tem relação direta com a precarização do trabalho e aumento da litigiosidade.
Tanto isso é verdade que, em 2021, os termos “terceirização / ente público” se encontraram em 4º lugar no ranking dos assuntos mais debatidos no TST, com mais de 28 mil novos casos para julgamento (TST, 2021), daí demonstrando possível culpa concorrente da Administração Pública no inadimplemento das obrigações pelas intermediárias contratadas, quer seja por culpa in vigilando4, quer como por culpa in
eligendo5.
Por certa omissão da Constituição Federal de 1988, fato é que o TST não dispensou o ente público da responsabilidade no adimplemento das obrigações trabalhistas e previdenciárias eventualmente descumpridas pelas fornecedoras da mão de obra. Ainda em 1993, o órgão editou a Súmula 331, que passou por revisões e hoje se encontra vigente, mesmo que parcialmente desatualizada em relação à reforma trabalhista (atividade-fim).
A Administração Pública, em defesa, fundamentava que o mero inadimplemento das obrigações trabalhistas pelas terceirizadas não transfere automaticamente a responsabilização dos encargos ao tomador, sendo declarada a constitucionalidade do artigo 71, § 1º, da Lei 8.666/93, pelo Supremo Tribunal Federal, em 2017 (Ação Direta de Constitucionalidade 16).
Pelo conflito na aplicação da orientação da ADC nº 16 e da Súmula 331 do TST, o STF se pronunciou fixando tese de que a responsabilização do ente público somente ocorrerá quando demonstrada a omissão ou negligência na fiscalização das obrigações pela empresa fornecedora interposta, lógica esta mantida pelo julgamento do RE 760.931/ DF, com repercussão geral reconhecida (Tema 246) (SAIKO, 2019).
Diante do descompasso entre o entendimento sumular e o texto da lei, a matéria foi novamente discutida pelo STF no Recurso Extraordinário 760.931, que em repercussão geral (Tema 246) fixou a tese de que “o inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário” (BRASIL, 2017).
Se, antes, a Administração Pública estava obrigada a demonstrar que tinha exercido a fiscalização da contratante, a sua
4 falta de diligência na fiscalização da interposta / em- presa contratada.
5 falta de cautela na escolha da prestadora de servi- ços contratada
responsabilização passou a depender, pela tese fixada, de prova inequívoca da sua omissão, aqui incorrendo na ambiguidade da autoria da prova: seria do cidadão trabalhador? Ou caberia ao Poder Público pela sua superioridade na obtenção?
A nova redação da Lei 14.133/21 dispõe sobre a responsabilidade do Poder Público nos encargos trabalhistas quando comprovada a falha na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais (art. 121, caput, § 2º). Ainda assim, subsiste o debate acerca do ônus da fiscalização ineficiente (XXXXXXX; PAIM, 2022).
A controvérsia aguarda posicionamento final pelo STF, no RE 1.298.647, pendente de julgamento, onde se discute a legitimidade do ônus de provar a ausência de culpa na fiscalização
ASPECTOSGERAISDATERCEIRIZAÇÃO NO BRASIL
Como a terceirização não tinha um regramento específico no Brasil, as primeiras legislações sobre o tema são datadas do fim dos anos 1960. O marco legal se deu durante o governo militar, através do Decreto- Lei 200/67, que operou uma reforma administrativa do Estado, descentralizando as atividades da Administração Pública por meio de contratos ou concessões (art. 10, “c” e § 7º) (DRUCK; SENA; XXXXX; XXXXXX, 2018).
Na década de 1970, a terceirização foi indiretamente inserida pela Lei 6.019/74, prevendo a possibilidade de contratação da mão de obra temporária por meio de empresa interposta. Já pela Lei 7.102/83, a terceirização foi expressamente autorizada, embora restringida aos profissionais
“A terceirização é uma relação triangular ou trilateral, e o ônus probatório deve considerar a possibilidade de prova de cada parte, à luz da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova e do princípio da sua aptidão (...)”
das obrigações trabalhistas pela empresa contratada, para fins de responsabilização da Administração (Tema 1.118) (BRASIL, 2020a).
Há, portanto, um conflito entre os deveres contratuais do ente público, enquanto tomador de serviços, e a sua pretensão em sobrepor tal encargo ao trabalhador, imputando à parte hipossuficiente todo o ônus (não só probatório) em aceitação das mazelas trabalhistas cometidas por suas interpostas.
A terceirização é uma relação triangular ou trilateral, e o ônus probatório deve considerar a possibilidade de prova de cada parte, à luz da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova e do princípio da sua aptidão, sem incidir no que a doutrina moderna vem chamando de “prova diabólica”.
de vigilância do setor bancário, sendo posteriormente ampliada tal autorização para a segurança de pessoas físicas pela Lei 8.863/94 (SIQUEIRA, 2021).
Até a entrada da Lei 13.467/2017, somente as atividades-meios podiam ser terceirizadas, restrição alterada pela reforma trabalhista com a introdução do art. 4ª-A da Lei 6.019/74, que passou a possibilitar a terceirização da atividade principal (atividade- fim), matéria confirmada pelo STF no julgamento da Arguição de Descumprimento do Preceito Fundamental 324/DF, resultando no Tema 725 da repercussão geral (TORRES, 2020).
Ademais, foi admitida a terceirização em quaisquer atividades do ente público federal pelo Decreto 9.507/2018, que também passou a dispor previsões sobre a gestão e a fiscalização da execução dos
possibilita a contratação de obras e serviços mediante processo de licitação pública, incidindo os regramentos específicos da Lei de Licitações (DI PIETRO, 2020). Xxxxx, quanto à responsabilidade do ente público, a CF/88, em seu art. 37, § 6º, prevê que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão por danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros”, nos casos de dolo ou culpa.
contratos (art. 10), imputando ao Poder Público um conjunto de ações que, entre outas questões, tenham por objetivo “verificar a regularidade das obrigações previdenciárias, fiscais e trabalhistas”, prestando o “apoio à instrução processual e ao encaminhamento da documentação pertinente (...) com vistas a assegurar o cumprimento das cláusulas do contrato” (SAKO, 2019).
Xxxxxxxxx Xxxxxxx e Xxxxxxxx Xxxx entendem que a nova Lei de Licitações (Lei 14.133/21) recepcionou, de certa forma, as previsões do Decreto de 2018, “com vistas a nacionalizar orientações em torno das contratações executadas de forma indireta” (FORTINI; PAIM, 2022).
A terceirização no Brasil é uma realidade desde a década de 1950 e, embora parcialmente regulamentada nos anos seguintes, nenhum dispositivo sobre o tema foi expressamente abordado na Carta da República de 1988, apesar de sua viabilidade decorrer dos princípios administrativos da eficiência e continuidade (art. 37, caput) (BRASIL, 1988).
A despeito disso, a terceirização
encontra amparo no art. 37, XXI, da CF/88, pois
No âmbito trabalhista, o tema é regulamentado também pela Súmula 331, do TST, ainda vigente. Quanto ao ente público, o regramento sumular dispõe a responsabilidade subsidiária quando evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666/93, “especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora” (V) (BRASIL, 1993).
A Lei 8.666/93 foi sucedida recentemente pela Lei 14.133/21, seguindo a mesma orientação de que a responsabilidade pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais cabe ao contratado (art. 121). Contudo, acresceu à redação o
§ 2º, prescrevendo que “a Administração responderá solidariamente pelos encargos previdenciários e subsidiariamente pelos encargos trabalhistas se comprovada falha na fiscalização do cumprimento das obrigações do contratado”, incorporando, de certa forma, a orientação da ADC nº 16 e a reformulação da Súmula 331 (FORTINI; PAIM, 2022).
Apesar do julgamento do RE 760.931/ DF, com repercussão geral reconhecida (Tema 246), remanesce a questão: de quem é o ônus da prova da (in)eficiência da fiscalização?
ÔNUS DA PROVA: DO DIREITO AO IMPACTO SOCIAL DA DISCUSSÃO
O julgamento do RE 760.931/DF, com repercussão geral em 2017, expressamente ressalvou a possibilidade de imputação da culpa in vigilando ou in eligendo ao Poder Público quando comprovada a deficiência
na fiscalização da observância das normas trabalhistas pela empresa intermediária (Tema 246). Ou seja, não está o ente público isento das obrigações trabalhistas contratuais.
Contudo, subsistiu o entendimento de que a postura de exigir do ente público a prova da fiscalização eficiente, quando já presumida ou por não evidenciada qualquer conduta culposa comprovada pelo trabalhador no processo, esteja progressivamente impactando a esfera jurídica e econômica do patrimônio de todos, em prejuízo ao erário.
Ao julgar o Tema 246, a Suprema Corte, nesse particular, não fixou tese sobre o ônus da prova na fiscalização das obrigações trabalhistas ou mesmo da má escolha da empresa interposta, resultando tal insegurança jurídica na condução da controvérsia constitucional suscitada pelo Estado de São Paulo no RE 1.298.647/SP.
O ente público fundamentou que as “instâncias ordinárias não individualizam, concretamente, uma única conduta de agente da Administração passível de ser tida como culposa” (BRASIL, 2020a, p. 5), discutindo, à luz dos artigos 5º, II, 37, XXI e § 6º, e 97 da CF/88, o ônus da prova acerca de eventual conduta culposa na fiscalização das obrigações trabalhistas pela empresa contratada, para fins de definição da responsabilidade subsidiária do Poder Público, tendo reconhecido o STF a existência de repercussão geral da matéria (Tema 1.118) (BRASIL, 2022).
Mas, afinal, de quem seria o ônus da
prova?
A matéria, embora não tenha tese fixada no Tema 246, foi amplamente debatida pelos votos dos ilustres ministros, compreendendo parte deles por manter pelo ente público o ônus de comprovar a fiscalização efetiva do contrato.
A Ministra Xxxx Xxxxx, relatora do julgamento do RE 760.931/DF, dispôs que a condenação do Estado poderia ocorrer por presunção (responsabilidade subjetiva)
e que, por ser o ente público detentor dos meios probatórios, caberia “demonstrar o cumprimento do dever legal, a inexistência de negligência, imperícia ou imprudência e, mais especificamente, (...) ´que não teve culpa [...], que não desatendeu às prescrições existentes`” (BRASIL, 2017, p. 92-96).
O Ministro Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, ao final do seu voto, expôs caber à Administração a comprovação de fiscalização do contrato, expondo, ainda, competir “à Administração Pública o ônus de provar que houve fiscalização. Portanto, não é o empregado que tem que fazer a prova negativa de que não houve” (BRASIL, 2017, p. 217-218).
O Ministro Xxxx Xxx, por sua vez, explicou que o Poder Público tem a capacidade de fiscalizar desde a confecção do contrato, e que, embora necessária a prova do fato constitutivo quando do ajuizamento da ação pelo trabalhador, caberá à defesa demonstrar os fatos impeditivos, extintivos ou modificativos do direito, fundamentando, assim, que “então, a Administração vai ter que chegar e dizer: `Claro, olha aqui, eu fiscalizei e tenho esses boletins`. E tudo isso vai se passar lá embaixo, porque aqui nós não vamos mais examinar provas” (BRASIL, 2017, p. 224-349).
O Ministro Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx, seguindo o voto da relatora, foi ainda mais enfático quanto ao ônus probatório do Poder Público. Ao repudiar os argumentos da Administração Pública, o ministro elucidou sobre a verdadeira responsabilidade envolvida nos contratos de terceirização para dizer claramente quanto ao ônus da prova a encargo do ente público, compondo do estudo trecho transcrito do acórdão:
(...)
Penso que a responsabilidade da Administração pela fiscalização é muito mais ampla, mas muito mais ampla mesmo. Isso decorre a começar do próprio preâmbulo da Carta Magna. A Carta Magna, seu preâmbulo, como todos sabem, não tem uma força
cogente, necessariamente, mas tem o valor exegético interpretativo extremamente consistente e forte. E, no preâmbulo da nossa Constituição Federal, lê-se logo, em primeiro lugar, que os constituintes instituíram o Estado democrático para, dentre outros valores, assegurar o quê? O exercício dos direitos sociais, que estão definidos basicamente nos artigos 7º e 8º da Constituição Federal.
(...)
(...) mas entendo que Sua Excelência traz uma contribuição muito importante, que já estava ínsita no voto da Xxxxxxxx Xxxx Xxxxx, que é a inversão do ônus da prova. Sua Excelência diz, e isto é consentâneo não só com o que ocorre na Justiça do Trabalho, mas também no Direito do Consumidor, aí compete
Como se vê, o ônus da prova foi objeto de pronunciamento, ainda que pelo sistema do “obter dictum”, pelos ministros do STF, que, em sua maioria, fundamentaram a capacidade probatória do Poder Público que, na essência, é representativa da relação contratual estabelecida entre o tomador de serviço e a empresa fornecedora da mão de obra, com a operacionalização de todas as informações ocorrendo exclusivamente entre ambas.
Seguindo essa premissa, embora os recursos trabalhistas atinentes à matéria estejam sobrestados pelo Tema 1.118, a Subseção I Especializada em Dissídios Individuais do TST, em composição plena, no E-RR-925-07.2016.5.05.0281, de relatoria do Exmo. Ministro Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx Xxxxxxx, com julgamento ocorrido em 12/12/2019, já tinha conferido entendimento pelo ônus da prova do ente público, conforme voto condutor:
“Não importa se a mensagem é verdadeira: o importante é que ela atinja a maior quantidade de pessoas, gerando desconfiança, questionamentos, descrédito às mídias tradicionais, com a finalidade de atingir objetivos pouco republicanos, e por vezes criminosos”.
à Administração o ônus de provar que houve a fiscalização. Com essas breves palavras, Senhor Presidente, acompanho a Relatora, nego provimento ao recurso extraordinário na parte em que nós conhecemos este recurso (BRASIL, 2017, p. 227-
228).
Sobre a matéria, o Ministro Xxxx Xxxxxxx também se posicionou compreendendo que “é muito difícil ao reclamante fazer a prova de que a fiscalização do agente público não se operou, e que essa prova é uma prova da qual cabe à Administração Pública se desincumbir (...), porque, muitas vezes, esse dado, o reclamante não tem” (BRASIL, 2017, p. 349-355).
(...)
Na hipótese, a Eg. Corte de origem responsabilizou subsidiariamente o tomador de serviços, por entender caracterizada a culpa in vigilando, decorrente da fiscalização deficiente no cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviços como empregadora.
Esse entendimento não implica afronta ao art. 97 da Constituição da República ou à Súmula Vinculante nº 10 do E. STF, nem desrespeito à decisão proferida na ADC nº 16, uma vez que não se trata de declaração de inconstitucionalidade do art.
71, § 1º, da Lei nº 8.666/1993, mas tão somente da definição concreta do alcance das normas inscritas no aludido diploma, de acordo com os próprios balizamentos estabelecidos pelo E. STF em controle abstrato de constitucionalidade.
Acrescente-se que compete ao ente público o ônus da prova, na medida em que a obrigação de fiscalizar a execução do contrato decorre da lei, mas especificamente dos arts. 58, III, e 67 da Lei nº 8.666/1993:
(...)
Não se pode exigir do trabalhador a prova de fato negativo ou que apresente documentos aos quais não tenha acesso, em atenção ao princípio da aptidão para a prova.
Esse foi o entendimento adotado pela C. SBDI-I, em composição plena, no E-RR-925-07.2016.5.05.0281, de
relatoria do Exmo. Ministro Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx Xxxxxxx, julgamento em 12/12/2019.
Ante o exposto, dou provimento aos Embargos para restabelecer o acórdão regional, que manteve a responsabilidade subsidiária do ente público (BRASIL, 2020b).
O dever de fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas pelo ente público decorre dos princípios basilares da Administração Pública, dentre eles o da legalidade e da moralidade administrativa, não podendo o ente público se valer da mão de obra do trabalhador sem prezar pela contraprestação devida, devendo, assim, cumprir não só pela observância da legislação trabalhista em atendimento máximo do art. 67, § 1º, da Lei8.666 e do art. 117, da Lei 14.133, mas se comportar com noção ética e de adequação social do meio buscado para atingir a sua finalidade pública.
O debate, porém, vai além das meras
questões de direito. O dever de fiscalização do Poder Público se presta, sobretudo, no controle civilizatório dessa modalidade de contratação, garantindo os direitos sociais fundamentais que são por vezes violados e, assim, protegendo o valor social do trabalho e da pessoa humana do trabalhador (arts.1º, III,IV,170, caput, e 193, CF).
Não se nega que a terceirização dos serviços públicos albergue inúmeras vantagens à sociedade, através da mão de obra especializada que conduz à melhoria da estrutura organizacional e na qualidade dos serviços públicos prestados, quiçá na melhor eficácia da gestão e economia de recursos humanos.
Contudo, a tendência moderna de meio de contratação pela Administração não pode – e nem deve – ser acompanhada da precarização laboral, enquanto seja, também, responsável pelo risco social ou risco resultante da atividade social. Por isso essa relação contratual triangular deve preservar o custo-benefício social, garantindo ao trabalhador o mínimo existencial em proibição do retrocesso social, inclusive porque impacta toda uma comunidade que se beneficia não só do serviço público propriamente dito, mas também dos desdobramentos econômicos e sociais (BRASIL, 2017, p. 71-129).
O trabalhador, em muitas situações da terceirização, já tem violado seu único meio de sobrevivência, que é a verba de ordem alimentar. Portanto, o inadimplemento já é um fato constitutivo do seu direito e provável indício de que tomador e prestador de serviços não cumpriram com seus deveres contratuais.
É certo que seja fato constitutivo do direito do trabalhador demonstrar a ausência de fiscalização do contrato (art. 818, I, da CLT), mas o ônus da comprovação se faz na medida do possível e a contento, mormente por se tratar de fato negativo e de difícil comprovação pelo trabalhador.
Xxxxx Xxxxxx e Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx expõem que a evolução do direito
tem permitido a aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, onde o dever de provar é distribuído para aquele que tiver melhor condições para tal, afastando eventual situação em que seja excessivamente difícil ou impossível que a parte se desincumba do cargo probatório (TORRES; SANCHES, 2018).
Na hipótese de o ente público afirmar que fiscalizou as obrigações contratuais, ou seja, afirmando um fato positivo, recai sobre ele o ônus probatório de tal alegação, na medida em que é muito mais viável que consiga sua comprovação, ao revés do trabalhador que precisaria comprovar um fato negativo (não fiscalização efetiva e adequada).
Seguindo essa premissa, para fundamentar o ônus probatório da Administração, a ministra Xxxx Xxxxx evocou o Princípio da Aptidão para a prova, compreendendo ter o Poder Público melhor condição de realizá-la, até mesmo por aplicação do princípio da igualdade no processo, que exige de cada parte a prova do que realmente pode produzir (BRASIL, 2017, p. 122).
Pela perspectiva da teoria da culpa presumida, os princípios que orientam o ônus da prova acabam regendo a matéria, pois não se pode onerar o trabalhador hipossuficiente com a impossível missão de provar a inexistência do fato. Do contrário, incorreria no que se chama de “prova diabólica”, uma vez que o hipossuficiente não detém dos dados, informações e documentos supostamente existentes sobre o contrato.
Ainda que o olhar por detrás dessas reclamações ajuizadas tenha um viés primordialmente econômico para o ente público, no sentido de poder, sim, acarretar maior prejuízo e onerosidade às contas públicas, tal perspectiva, porém, não pode sobrepor o “peso” do Estado no trabalhador, em valia da sua superioridade para dificultar a prova, por justamente coadunar com a sistematização da precarização do trabalho e do valor social a ele agregado.
Entendimento contrário poderá lançar o trabalhador na triste realidade de trabalhar e nada receber por isso, ferindo os mais comezinhos direitos sociais e humanitários. Ainda assim, caberá ao Supremo Tribunal Federal valorar os impactos e desdobramentos do ônus da prova, em observância da oposição do dever-estado e o ônus-trabalhador atual.
CONCLUSÃO
Visando maior eficiência no serviço prestado e redução de custos, o Estado brasileiro tem descentralizado suas atividades através do setor privado nas últimas décadas.
Entrementes, este modelo paradoxal de enxugamento dos vínculos jurídicos concorre para que inúmeras irregularidades ocorram na contratação e gestão das empresas prestadoras de serviços e fornecedoras das mãos de obra, resultando muitas vezes em oneração ao Estado devido a fraudes e corrupção, e também na precarização do trabalho, com a institucionalização das mazelas trabalhistas por ineficiência da fiscalização do contratante.
Com a recorrente condenação subsidiária do ente público pela justiça trabalhista, o STF fixou tese impossibilitando a transferência automática das obrigações trabalhistas descumpridas pelas empresas contratadas. Porém, o Tema 246 não consignou tese acerca do ônus da prova da (in)eficiência de fiscalização do Poder Público, embora os ministros da Suprema Corte já tenham, pelo sistema do “obter dictum”, se pronunciado pela aptidão da prova da Administração nessa modalidade de contratação, matéria em debate no Tema 1.118.
Oportuno trazer à baila o entendimento do Ministro Xxxx Xxx quem, reconhecendo as perplexidades jurídicas por violações de inúmeros direitos sociotrabalhistas na terceirização, destacou que “o trabalhador trabalhou de graça. Nem a Administração tem culpa nem o contratado paga. E o trabalhador trabalhou e não recebeu nada” (BRASIL, 2017, p. 224-225).
O viés social do debate está acima dos interesses meramente econômicos da Administração. Visando justamente afastar essa dicotomia entre o dever de zelo do Estado e a sua intenção em sobrepor suas obrigações a ônus exclusivo do trabalhador, é que se espera que o STF, pelo julgamento do RE 1.298.647, reconheça a capacidade probatória do tomador de serviços, enquanto detentor dos meios de prova por sua superioridade na relação trilateral.
REFERÊNCIA
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Judicial Eletrônico: 12 set. 2017.
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