OS REFLEXOS DAS DECISÕES DA JUSTIÇA DESPORTIVA NO CONTRATO DE TRABALHO DO ATLETA PROFISSIONAL
OS REFLEXOS DAS DECISÕES DA JUSTIÇA DESPORTIVA NO CONTRATO DE TRABALHO DO ATLETA PROFISSIONAL
Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx0
INTRODUÇÃO
A celebração de um contrato de trabalho cria obrigações recíprocas entre empregado e empregador. Dentre outros, são deveres do empregador: pagar corretamente a remuneração pactuada; e garantir ao empregado que a prestação do serviço seja feita de acordo com as normas de higiene e segurança do trabalho. Em contrapartida, ao empregado caberá obedecer às orientações patronais; e agir com diligência e fidelidade ao longo do pacto laboral.
No desporto profissional, não é diferente. Além dos deveres gerais já citados, atleta e entidade de prática desportiva assumem, cada qual, obrigações particulares dentro do vínculo formado, inerentes à prática de alto-rendimento2.
Do ponto de vista do trabalhador, o rol (não taxativo) de obrigações deixa claro que nesse contrato especial o elemento da subordinação estará mais presente, ultrapassando os limites da competição ou mesmo do local de trabalho. Além disso, os deveres gerais de obediência, de diligência e de fidelidade assumirão contornos mais rígidos, buscando preservar não só os interesses do
1 Licenciada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-Graduada em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Pós-Graduada em Direito Desportivo e Negócios do Esporte pelo Centro de Direito Internacional.
2 Nesse contexto, é dever do empregador proporcionar ao atleta as condições para a participação nas competições, nos treinos e em outras atividades; submetê-lo a exames médicos e clínicos necessários à pratica desportiva; contratar seguro de acidentes do trabalho; registrar o contrato de trabalho na entidade de administração nacional da modalidade desportiva; e pagar em dia os salários e demais acréscimos ajustados2. Do empregado, exige-se a participação em jogos, treinos, estágios e outras sessões preparatórias de competição; a preservação das condições físicas; a submissão aos exames médicos e aos tratamentos clínicos necessários à prática desportiva; e o exercício da atividade desportiva profissional de acordo com as regras da respectiva modalidade e com as normas que regem a disciplina e a ética desportivas
empregador mas, principalmente, da competição, a justificar a legislação específica que o regulamenta3.
Por essa razão, conforme esclarece Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx0, “a natureza jurídica da atividade do atleta profissional é de dualidade normativa, vale dizer, ao mesmo tempo ele está vinculado tanto às regras disciplinadores da entidade desportiva empregadora, como as das entidades ligadas ao desporto, emanando daí dupla relação – laboral e desportiva”.
Ou seja, na prática do esporte profissional o empregado estará sujeito às ordens do seu empregador, decorrentes do contrato de trabalho, e às regras da competição, editadas pela entidade responsável pela administração da modalidade. O desrespeito aos deveres assumidos em quaisquer das esferas, laboral ou desportiva, ensejará a atuação do respectivo poder disciplinar.
Pretendemos nesse capítulo diferenciar o poder disciplinar desportivo do poder disciplinar laboral, e demonstrar que muito embora se tratem de punições diversas, essas podem estar intimamente relacionadas, de modo que eventual penalidade imposta ao atleta pela regra da competição pode refletir no seu contrato de trabalho, observados certos limites na atuação do poder sancionador do empregador.
1. O PODER DISCIPLINAR LABORAL E O PODER DISCIPLINAR DESPORTIVO
3 Nas palavras de Xxxx Xxxx Xxxxx em “Aspectos gerais do trabalho desportivo em Portugal. XXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx xx (Coord.). Direito do Trabalho e Desporto” – São Paulo: Xxxxxxxx Xxxxx, 0000: “O contrato de trabalho desportivo é um contrato especial de trabalho, acima de tudo, pela necessidade de na sua disciplina jurídica se coordenar o aspecto laboral com o aspecto desportivo, pela necessidade de compatibilizar ambas as suas facetas. Trata-se, então, de articular a tradicional proteção do trabalhador/desportista com a adequada tutela do desporto/competição desportiva, visto que, para o ordenamento jurídico estadual, esses são dois valores de extrema importância, cuja conciliação se mostra indispensável”.
4 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. “Atleta: Definição, Classificação e Deveres”. In: Direito do Trabalho Desportivo. Os aspectos Jurídicos da Xxx Xxxx frente ás Alterações da Lei nº 12.395/11. Org. XXXXXXXX, Xxxxxxxxx; XXXXX, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxx de; BASTOS, Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx. Ed. Ltr, 2013. p. 149
A Lei 9.615/98 diferencia, no seu artigo 28, parágrafo 2º5, as figuras do vínculo empregatício e do vínculo desportivo.
O vínculo empregatício é o enlace pelo qual o atleta se obriga pessoalmente a prestar serviços ao clube empregador de forma onerosa, não-eventual e subordinada, tendo como objeto a prática desportiva profissional. Quanto ao vínculo desportivo, é acessório ao primeiro, e surge com o registro do contrato de trabalho celebrado entre atleta e clube na entidade administradora responsável pela respectiva modalidade. Desse vínculo, o desportivo, surge a chamada “condição de jogo”, que permite ao jogador contratado atuar em partidas e competições oficiais pelo novo empregador.
Em resumo, a celebração e o registo desse contrato especial de trabalho resultam em dois enlaces, cada qual regulamentado por suas próprias regras, e acompanhado de uma espécie diferente de poder disciplinar.
O poder disciplinar decorrente do contrato de trabalho do atleta - exercido pelo empregador ou seus prepostos - observará as disposições da Lei 9.615/98 e, nos termos do seu artigo 28, parágrafo 4º, as normas gerais da legislação trabalhista, no que forem compatíveis com a legislação especial6.
À luz do artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho, é empregador aquele que, assumindo os riscos da atividade econômica, contrata, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços. Esse poder de direção manifesta-se pela organização, pela disciplina, pela regulamentação e pelo controle da prestação de serviços executada em seu benefício. Isso significa que, havendo o descumprimento de uma das obrigações assumidas pelo empregado no curso do
5 Art. 28, parágrafo 2º - “o vínculo desportivo do atleta com a entidade contratante tem natureza acessória ao respectivo vínculo empregatício, dissolvendo-se, para todos os efeitos legais, com o término da vigência do contrato de trabalho”.
6 Art. 28. § 4º - Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei (...)
contrato de trabalho, poderá o empregador sanciona-lo, dentro das hipóteses e dos limites facultados em lei7.
Quanto ao regime disciplinar desportivo, está previsto na Constituição da República de 1988, segundo a qual as ações relativas à disciplina e às competições desportivas serão submetidas à jurisdição da Justiça Desportiva, regulada em lei8. O exercício da autonomia tratada no artigo 217, I, da CR/88, deu origem a um Código Brasileiro de Justiça Desportiva9 (cuja redação atual foi dada pela Resolução CNE nº 29 de 2009). Com base nas normas desse código, o descumprimento das regras da modalidade ou a prática de atos hostis, incompatíveis com o espírito esportivo, ensejará ao atleta penalidades compatíveis com a infração disciplinar cometida.
7 Nas lições de Xxxx Xxxx Xxxxx em Vinculação versus liberdade [o processo de constituição e extinção da relação laboral do praticante desportivo], Coimbra Editoria, 2002. p.233: “O art. 175./5 da Lei 28/98 consagra expressamente dois dos princípios basilares do direitos disciplinar: o da proporcionalidade, nos termos do qual a sanção disciplinar deve ser proporcionada à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor, e do non bis in idem, segundo o qual não se pode aplicar mais de uma pena pela mesma infracção. Mas é obvio, no que a este ultimo princípio diz respeito, que a mesma conduta pode violar várias normas de natureza diferente, pode, em particular, violar normas jurídico-desportivas e normas jurídico-laborais, dando origem a uma duplicidade de sanções que em nada ofende o non bis in idem”.
8 Art. 217 - É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados: I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento; (...) Parágrafo 1º - O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei
9 Art. 1º - A organização, o funcionamento, as atribuições da Justiça Desportiva brasileira e o processo desportivo, bem como a previsão de infrações disciplinares desportivas e de suas respectivas sanções, no que se referem ao desporto de pratica formal, regulam-se por lei e por este Código. Parágrafo 1º - Submetem-se a este Código, em todo o território nacional: I – as entidades nacionais e regionais de administração do desporto; II – as ligas nacionais e regionais; III
– as entidades de prática desportiva, filiadas ou não às entidades de administração mencionadas nos incisos anteriores; IV – os atletas, profissionais e não-profissionais; V – os árbitros, assistentes e demais membros de equipe de arbitragem; VI – as pessoas naturais que exerçam quaisquer empregos, cargos ou funções, diretivos ou não, diretamente relacionados a alguma modalidade esportiva, em entidades mencionadas neste parágrafo, como, entre outros, dirigentes, administradores, treinadores, médicos ou membros de comissão técnica; VII – todas as demais entidades compreendidas pelo Sistema Nacional do Desporto que não tenham sido mencionadas nos incisos anteriores, bem como as pessoas naturais e jurídicas que lhes forem direta ou indiretamente vinculadas, filiadas, controladas ou coligadas”
Ao tratar, no mesmo dispositivo legal, das sanções aplicáveis pelos poderes disciplinares laboral e desportivo, o artigo 48 da Xxx Xxxx demonstra que existem pontos de interseção entre ambos10. Ao empregador, compete advertir verbalmente, censurar ou suspender, independente de prévio processo administrativo; enquanto a suspensão de partidas, a desfiliação ou a desvinculação serão penalidades de aplicação exclusiva da Justiça Desportiva, sendo imprescindível a instauração de processo administrativo no qual sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa.
Isso significa que um mesmo ato praticado pelo atleta poderá ensejar punições nas duas esferas (desportiva e laboral), sem que isso configure uma dupla penalização, ou o chamado “bis in iden”11.
2. AS OBRIGAÇÕES DO ATLETA NO CONTRATO ESPECIAL DE TRABALHO DESPORTIVO. VIOLAÇÃO DAS REGRAS DA MODALIDADE E DA ÉTICA DESPORTIVA.
No contrato de trabalho desportivo, a subordinação do empregado assume contornos particularmente mais rígidos, inerentes à prática do esporte de alto rendimento12. O descumprimento das obrigações assumidas nessa relação
10 Art. 48. Com o objetivo de manter a ordem desportiva, o respeito aos atos emanados de seus poderes internos, poderão ser aplicadas, pelas entidades de administração do desporto e de prática desportiva, as seguintes sanções: I - advertência; II - censura escrita; III - multa; IV - suspensão; V - desfiliação ou desvinculação.
11 Como ressalta Xxxx Xxxx Xxxxx em: “Vinculação versus liberdade [o processo de constituição e extinção da relação laboral do praticante desportivo]”, Coimbra Editoria, 2002. p.245: “Cumpre, em todo caso, frisar: a esfera desportiva e a esfera laboral não são duas esferas estanques, totalmente isoladas uma da outra, mas são duas esferas, não uma só; elas têm, é certo, pontos de intersecção, de intercomunicação, mas isso não autoriza a equiparar, mecanicamente, a falta disciplinar desportiva à falta disciplinar laboral”.
12 Nos termos do artigo 35 da Xxx Xxxx, são deveres específicos do atleta profissional: I - participar dos jogos, treinos, estágios e outras sessões preparatórias de competições com a aplicação e dedicação correspondentes às suas condições psicofísicas e técnicas; II - preservar as condições físicas que lhes permitam participar das competições desportivas, submetendo-se aos exames médicos e tratamentos clínicos necessários à prática desportiva; III - exercitar a atividade
permite que o empregador, no exercício do seu poder disciplinar, venha a aplicar sanções com o objetivo de visar, quando possível, o restabelecimento do fiel cumprimento do contrato.
O inciso III do artigo 35 da Lei 9.615/98 (Xxx Xxxx)13 insere no rol de obrigações da relação de trabalho do atleta profissional o respeito às normas que regem a disciplina e a ética desportivas, demonstrando que o legislador, assim como já tivemos a oportunidade de pontuar, vê entre a relação laboral e a relação desportiva a existência de um ponto de contato, ainda que se tratem de esferas distintas.
Com base no referido dispositivo, a inobservância das regras da modalidade sujeita a punição na esfera desportiva pode configurar também o descumprimento de um dever assumido na execução da prestação do serviço, dando justa causa ao exercício do poder disciplinar do empregador na aplicação de sanções ao empregado.
Cite-se, como exemplo, um atleta punido desportivamente por agredir outro jogador em partida oficial. A depender da gravidade do ato, a ação praticada pode, além de violar as regras da prática da modalidade (e ser punida pela Justiça Desportiva), configurar ofensa contratual punível com advertência, suspensão ou, em última instância, com a resolução do contrato de trabalho por justa causa pelo empregador, uma vez enquadrada em uma das hipóteses do artigo 482 da CLT14.
desportiva profissional de acordo com as regras da respectiva modalidade desportiva e as normas que regem a disciplina e a ética desportivas.
13 Art. 35, III, da Lei 9.615/98 - É dever do atleta profissional exercitar a atividade desportiva profissional de acordo com as regras da respectiva modalidade desportiva e as normas que regem a disciplina e a ética desportivas.
14 Art. 482 - Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: a) ato de improbidade; b) incontinência de conduta ou mau procedimento; c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço; d) condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena; e) desídia no desempenho das respectivas funções; f) embriaguez habitual ou em serviço; g) violação de segredo da empresa; h) ato de indisciplina ou de insubordinação; i) abandono de emprego; j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas
Além das regras da competição, é também obrigação do atleta participante de qualquer modalidade respeitar a chamada “ética desportiva”, nos termos da segunda parte do artigo 35, III da Lei Pelé. Essa constitui, nas palavras de Xxxx Xxxx Xxxxx00, um princípio inspirador de toda a atividade desportiva e, como tal, consideravelmente difícil de ser apurada com rigor. Difícil porque a própria competição exige do atleta uma certa “agressividade” no exercício de suas funções durante a disputa, sob pena de ser considerado pouco combativo ou mesmo descomprometido com o alcance da vitória ou do resultado.
É obrigação do atleta profissional, por força do art. 35 da Lei 9.615/98 e do dever de diligência previsto na legislação geral do trabalho, não só prestar o serviço desportivo em favor do empregador, mas fazê-lo com a dedicação necessária para alcançar o desempenho máximo. Por essa razão, pode ser que em alguns momentos o afinco resulte em faltas que violem certas regras da competição, não por deslealdade (e, portanto, não por violação da ética desportiva), mas como consequência inevitável da própria disputa. Por isso, é preciso ponderar que determinadas faltas, ainda que mais duras, devem ter a sua punição restrita à esfera desportiva, sob pena de levar-se para o contrato de trabalho ocorrências naturais (e até esperadas) do jogo.
Feitas essas considerações, entendemos que a defesa da ética desportiva não tem como objetivo principal evitar que faltas naturais ao esporte sejam cometidas no decorrer de uma partida, por exemplo, mas visa principalmente prevenir e punir manifestações verdadeiramente antidesportivas como: a violência
físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem; k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem; l) prática constante de jogos de azar.
15 Segundo o doutrinador em “Vinculação versus liberdade [o processo de constituição e extinção da relação laboral do praticante desportivo]”, Coimbra Editoria, 2002. p.245: “Estamos, com efeito, perante uma noção de contornos algo difusos, que faz um apelo a uma ideia de fair play, de igualdade e lealdade na competição, de limpeza de processos, de verdade no resultado desportivo
– quando não mesmo um espírito de cavalheirismo. Trata-se, em suma, de um conjunto de valores morais existentes – ou que é suposto existirem – na prática desportiva, de um conjunto de regras que lhe devem presidir”.
excessiva; a corrupção; a dopagem e a discriminação. Em razão da sua gravidade, essas ações ensejam penalidades mais duras, podendo na esfera desportiva variar entre a suspensão por partidas ou prazo determinado e o banimento da prática profissional do esporte; enquanto no contrato de trabalho vir a ensejar o despedimento do atleta por justa causa.
3. INFRAÇÃO ÀS REGRAS ANTIDOPING
A supervalorização da imagem do desportista profissional, assim como a busca pelo desempenho sobre-humano, são fatores que favorecem à utilização de substâncias ilegais para a melhora da performance esportiva. Nos planos nacional e internacional, o combate ao doping é feito tanto por meio de políticas públicas, quanto pela edição de leis antidopagem, e se justifica na medida que a melhoria não autorizada da performance fere os bens-jurídicos protegidos do desporto, dentre eles: a ética; a saúde; a excelência no desempenho; o trabalho em equipe; e o respeito às regras.
O Código Mundial Antidoping, cuja última alteração encontra-se vigente desde janeiro de 201516, estabelece uma série de punições tanto ao fraudador da competição - dopado voluntariamente - quanto ao que incide no doping involuntário, sem, entretanto, trata-los com o mesmo rigor. A legislação confere ao fraudador uma pena extremamente rígida. Já ao atleta que incide no doping involuntário, serão oportunizados mecanismos para atenuar a sansão eventualmente recebida. Tal diferenciação se justifica uma vez que a própria Agência Mundial Antidoping reconhece a dificuldade enfrentada pelas confederações filiadas para manter os atletas atualizados sobre o que seriam as infrações antidoping, o que torna os casos de dopagem involuntária recorrentes nos Tribunais Desportivos. Por isso, não se pretende punir o atleta que incorre em
16 xxxx://xxx.xxxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxXxxxxxxXxxxxxxxxxx0000XXX.xxx
erro com o mesmo rigor que o atleta fraudador, que deseja voluntariamente obter a melhora ilícita.
Da mesma forma, também no contrato de trabalho os efeitos da dopagem sofrerão gradações, a depender principalmente do grau de culpa do empregado na violação da regra desportiva. Como ocorre com as demais infrações desportivas, a infração da regra antidoping, por si só, não gera efeitos automáticos no contrato de trabalho do atleta. As sanções de advertência, de suspensão e mesmo a rescisão por justa causa somente serão impostas ao atleta caso o empregador, no exercício do seu poder disciplinar, entenda que houve o descumprimento das obrigações laborais assumidas pelo empregado, considerados os deveres de obediência e de diligência em consonância com o artigo 35, III da Lei 9.615/98.
É bem verdade que a dopagem é mais grave do que a generalidade das violações à regra desportiva uma vez que vai de encontro com o que essência ética do esporte visa proteger. Por essa razão, a infração por doping de exclusiva responsabilidade do atleta, reconhecida em decisão definitiva da justiça desportiva, dá ao empregador o direito de exercer o seu poder disciplinar para, a depender da gravidade do ato praticado, suspender o contrato de trabalho do empregado (observado o limite de 30 dias previsto pelo artigo 474 da CLT), ou mesmo rescindir o vínculo por justa causa, com base no artigo 482 da CLT.
Ressalte-se que, como bem pontua Xxxxxxx Xxxx00, demonstrada a responsabilidade do empregador pelo doping do empregado, seja de uma forma direta, seja de uma forma indireta18, é assegurado ao atleta o direito de rescindir
17 XXXX, Xxxxxxx. Doping do atleta profissional e os seus reflexos no contrato especial de trabalho desportivo. XXXX XXXXX, Xxxxxx; XX XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx de; XXXXX XXXX, Xxxxxxxx XXXXX de; XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx (coord.). Direito do Trabalho Desportivo – Homenagem ao professor Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx – Atualizado com a Lei que alterou a Xxx Xxxx – Lei nº 12.395 de 16 de março de 2011. São Paulo: Quartier Latin, 2012. p. 47.
18 Por exemplo, pela desídia do médico que deixa de orientar o atleta corretamente ou de apresentar previamente o formulário de Isenção de Uso Terapêutico (IUT) quando necessário, e dá causa ao resultado analítico adverso.
indiretamente o vínculo laboral por violação das obrigações patronais no contrato especial (artigo 34 da Lei 9.615/98), com base no artigo 483 da CLT.
4. CONSEQUÊNCIAS DA SUSPENSÃO DESPORTIVA E DO BANIMENTO DA MODALIDADE NO CONTRATO DE TRABALHO
O artigo 50 da Lei nº 9.615/98 traz algumas penalidades aplicáveis pela Justiça Desportiva em caso de infração disciplinar19. Nos termos da Lei, o atleta poderá ser sancionado com a suspensão por uma ou mais partidas; por prazo determinado e; em casos mais sensíveis (como a dopagem, por exemplo), com o banimento do esporte.
A suspensão desportiva não se confunde com a suspensão prevista no artigo
474 da Consolidação das Leis do Trabalho20, sendo essa última uma sanção aplicável pelo empregador ao seu empregado em caso de falta cometida na prestação do serviço. A suspensão imposta pela Justiça Desportiva decorre da relação entre o atleta e a entidade de administração do desporto, e tem como objetivo punir a infração às regras da modalidade impedindo a atuação do profissional em um ou mais jogos de determinada competição (ou competições) ou por determinado período.
A suspensão desportiva só refletirá no contrato de trabalho do atleta caso a ação praticada pelo empregado configure também uma violação aos seus deveres laborais. No caso de haver a suspensão do contrato de trabalho por vontade do empregador no exercício do seu poder disciplinar, essa deverá observar o limite
19 Art. 50 da Lei 9.615/98 – A organização, o funcionamento e as atribuições da Justiça Desportiva, limitadas ao processo e julgamento das infrações disciplinares e às competições desportivas, serão definidos no Códigos de Justiça Desportiva, facultando-se às ligas constituir seus próprios órgãos judicantes desportivos, com atuação restrita às suas competições. Parágrafo 1º - As transgressões relativas à disciplina e às competições desportivas sujeitam o infrator a: I – advertência; II – eliminação; III – exclusão de campeonato ou torneio; IV – indenização; V – interdição de praça de desportos; VI – multa; VII – perda do mando do campo; VIII – perda de pontos; XI – perda de renda; X – suspensão por partida; XI – suspensão por prazo.
20 Art. 474 da CLT - A suspensão do empregado por mais de 30 (trinta) dias consecutivos importa na rescisão injusta do contrato de trabalho.
de 30 dias disposto no artigo 474 da CLT. Durante esse período, se manterão intactos os vínculos desportivo e laboral, e o empregador estará desobrigado de efetuar o pagamento salarial enquanto perdurar a suspensão do contrato.
Na hipótese de não haver a sanção laboral, o contrato continuará fluindo normalmente e as verbas salariais não sofrerão prejuízo, salvo aquelas que decorram diretamente da exibição da partida da qual o atleta estará impedido de participar, como o Direito de Arena.
Como resposta à sanção desportiva recebida, além da suspensão do contrato de trabalho, o artigo 482 da CLT elenca as hipóteses que autorizam a rescisão do vínculo laboral por justa causa pelo empregador21, em razão da gravidade da falta praticada pelo empregado.
No caso do atleta profissional, essas hipóteses assumem contornos específicos que envolvem além dos deveres gerais de obediência, diligência e fidelidade, aqueles trazidos pelo artigo 35 da Lei 9.615/98, atraindo para o empregado uma subordinação mais acentuada em relação ao seu empregador22. Misturam-se: a vida profissional e a vida privada do atleta. Por isso, as hipóteses
21 Art. 482 da CLT - a) ato de improbidade; b) incontinência de conduta ou mau procedimento; c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço; d) condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena; e) desídia no desempenho das respectivas funções; f) embriaguez habitual ou em serviço; g) violação de segredo da empresa; h) ato de indisciplina ou de insubordinação; i) abandono de emprego; j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem; k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem; l) prática constante de jogos de azar.
22 Xxxx Xxxxxx Xxxxxxxxxx Xxxx em “Dano Praticado por Atleta Profissional”. In: Direito do Trabalho Desportivo. Os aspectos Jurídicos da Xxx Xxxx frente ás Alterações da Lei nº 12.395/11. Org. XXXXXXXX, Xxxxxxxxx; XXXXX, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxx de; BASTOS, Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx. Ed. Ltr, p. 189, 2013, chega a tratar chega a tratar a relação como uma relação de hipossubordinação entre o atleta e o clube empregador, na medida em que aquele se submete às estritas diretrizes deste, dentro e fora do campo, em jogos, treinos e sessões preparatórias, assumindo o compromisso de não apenas jogar, mas se dedicar ao máximo possível.
previstas principalmente nas alíneas “b”; “e”; “j” e “k” do artigo 482 da CLT23 poderão se verificar dentro e fora do campo ou mesmo dos limites físicos da sede da agremiação empregadora.
Quanto aos efeitos da dispensa motivada, enquanto a rescisão por justa causa de um contrato de trabalho comum dá ao empregador o direito de despedir o empregado sem conceder-lhe aviso prévio ou arcar com qualquer indenização a seu favor, na justa causa desportiva, por força da cláusula indenizatória prevista no artigo 28 da Lei 9.615/98, é imposto ao atleta o ônus de pagar ao clube empregador uma indenização pela ruptura antecipada do contrato, firmado por tempo determinado24.
Sobre esse ponto, existem dúvidas sobre o direito do clube empregador de cobrar do atleta a cláusula indenizatória25 quando o seu despedimento tem como justa causa uma suspensão desportiva ou o banimento da modalidade, uma vez que as hipóteses previstas no art. 28, I, “a” e “b”, da Lei 9.615/98 limitam a incidência da indenização aos casos de: a) transferência do atleta para outra entidade, nacional ou estrangeira, durante a vigência do contrato especial de
23 São elas: b) incontinência de conduta ou mau procedimento; e) desídia no desempenho das respectivas funções; ato de indisciplina ou de insubordinação; j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem; k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;
24 Como explica Xxxx Xxxx Xxxxx em “Vinculação versus liberdade [o processo de constituição e extinção da relação laboral do praticante desportivo]”, Coimbra Editoria, 2002. p.236: em sede de contrato de trabalho desportivo, o legislador vai, todavia, mais longe: não se trata de responsabilizar civilmente o praticante desportivo por danos causados pelo seu comportamento infracional, pelo próprio facto constitutivo da justa causa; trata-se de o responsabilizar pelos danos resultantes da frustração do contrato, isto é, pelos danos derivados da sua dissolução ante tempus, dissolução imputável ao praticante.
25 Art. 28 - A atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática desportiva, no qual deverá constar, obrigatoriamente: I - cláusula indenizatória desportiva, devida exclusivamente à entidade de prática desportiva à qual está vinculado o atleta, nas seguintes hipóteses: a) transferência do atleta para outra entidade, nacional ou estrangeira, durante a vigência do contrato especial de trabalho desportivo; ou b) por ocasião do retorno do atleta às atividades profissionais em outra entidade de prática desportiva, no prazo de até 30 (trinta) meses;
trabalho desportivo ou; b) por ocasião do retorno do atleta às atividades profissionais em outra entidade de prática desportiva, no prazo de até 30 (trinta) meses.
Para Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx00, em se tratando de suspensão desportiva que impeça o atleta de atuar por alguns meses, poderá o clube empregador rescindir o contrato por justa causa e cobrar a cláusula indenizatória, caso o atleta venha a celebrar contrato com outro clube, após o período de suspensão. Em caso de banimento, por sua vez, a impossibilidade de retorno do atleta à prática da modalidade tornaria inexigível o pagamento do valor indenizatório ao empregador.
5. CONCLUSÃO
O presente capítulo teve como objetivo explorar de que forma as sanções aplicadas aos atletas profissionais pela Justiça Desportiva podem repercutir também no contrato de trabalho desse empregado, demonstrando que muito embora dos vínculos laboral e desportivo decorram esferas punitivas diversas, essas podem atuar em conjunto no funcionamento da ordem desportiva.
A contratação de um atleta profissional, portanto, dá origem a dois vínculos diversos. O primeiro, laboral, entre o profissional e o clube empregador; o segundo, desportivo, entre o atleta e o clube e a entidade de administração do desporto responsável pela modalidade. Cada um desses enlaces possui as próprias regras, assim como as próprias sanções, aplicáveis ao seu descumprimento. Ocorre que, muito embora sejam poderes disciplinares distintos - o da entidade de administração do desporto e o do empregador - o bom funcionamento da ordem desportiva exige que estes operem em harmonia, razão pela qual existem diversos “pontos de toque” entre um e outro. Assim, um ato
26 XXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx. Limites do Poder Disciplinar e reflexos das decisões da Justiça Desportiva no CETD. XXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx xx (Coord.). Direito do Trabalho e Desporto – São Paulo: Quartier Latin, 2014. p. 62.
faltoso sujeito a penalidade na esfera desportiva pode ensejar também uma penalização na esfera laboral, uma vez violadas as obrigações pactuadas na contratação da prestação do serviço.
Sob esse prisma, foram expostas diversas hipóteses em que infrações desportivas podem provocar a manifestação do poder disciplinar do empregador na punição do empregado dentro do contrato de trabalho, ressaltando-se que, muito embora o clube tenha o direito de sancionar o atleta pelo descumprimento das suas obrigações laborais, o exercício do poder disciplinar deve observar limites pré-estabelecidos em lei, além de ponderação e bom senso, para que não se verifique o abuso patronal27.
6. BIBLIOGRAFIA
XXXXX, Xxxx Xxxx. Aspectos gerais do trabalho desportivo em Portugal. XXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx xx (Coord.). Direito do Trabalho e Desporto
– São Paulo: Xxxxxxxx Xxxxx, 0000.
XXXXX, Xxxx Xxxx. Vinculação versus liberdade [o processo de constituição e extinção da relação laboral do praticante desportivo], Coimbra Editoria, 2002.
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27 Como nos ensina Xxxxxx Xxxx Xxxxx em: “Novo ordenamento jurídico desportivo.” Fortaleza: XXX, 0000. P. 144: “Ressalte-se, entretanto, que as prerrogativas patronais não são irrestritas; podem ocorrer abusos no exercício desse poder de controle. Logo, se ele for exercido com desvio de finalidade, ou seja, sem o objetivo originário, que é o maior rendimento desportivo, a faculdade exercida pelo empregador poderá ser considerada ilegal”
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