CONSTITUCIONALIDADE E EFICÁCIA DA POLÍTICA DE COTAS NO CONTRATO DE TRABALHO
CONSTITUCIONALIDADE E EFICÁCIA DA POLÍTICA DE COTAS NO CONTRATO DE TRABALHO
Xxxxx Xxxx Xxxxx Xxxxxx†
1) A ADOÇÃO DA POLÍTICA DE COTAS FERE O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA?
ssa indagação vem sendo objeto de intensos de- bates judiciais e doutrinários. Mostra-se, pois, relevante para o debate acadêmico. No presente artigo defende-se o argumento que a política de cotas não fere o princípio constitucional da iso-
nomia utilizando-se do ordenamento jurídico brasileiro e anali- sando-se a experiência norte-americana sobre o tema.
O princípio da isonomia contém em seu enunciado não só a possibilidade, mas também a necessidade de tratamento dis- tinto de pessoas com características distintas.1
Conforme ensina XXXXX XXXXXXX, o princípio jurídi-
† Promotor de Justiça. Mestre em Direito e Estado pela Unb. Doutor em Direito pela UFPE. Pós-doutor na Universidade de Boston (EUA). Professor do IDP em Brasília- DF.
1 A crença de que as sociedades deveriam aspirar a tratar seus membros de maneira mais igualitária, no sentido tanto formal quanto material, ocupa uma posição central no pensamento desenvolvido no século XX. Nos séculos XVIII e XIX o ideal mani- festou-se na exigência de direitos iguais diante da lei e direitos iguais de participação política. No século XX esses tipos de igualdade já eram dados como certos (na teoria, ainda que nem sempre na prática) em todas as sociedades avançadas, e a atenção concentrou-se numa nova exigência: a igualdade social. Por igualdade social entende-se a idéia de que as pessoas devem ser tratadas como iguais em todas as esferas institucionais que afetam suas oportunidades de vida: na educação,no traba- lho, nas oportunidades de consumo, no acesso aos serviços sociais, nas relações domésticas e assim por diante. Mas, que significa ser tratado com igualdade? Falan- do de maneira ampla, houve duas respostas a essa pergunta altamente controvertida, que podemos rotular, respectivamente, de igualdade de oportunidades e igualdade de resultados (Outhwaite, Bottomore, 1996, p.372-373).
Ano 2 (2013), nº 12, 13651-13659 / xxxx://xxx.xxx-xxxx.xxx/ ISSN: 2182-7567
co da igualdade deixou de ser apenas um sustentáculo do Esta- do de Direito para ser um dos pilares do Estado Social (Mene- zes, 2001, p.20-26).
Uma das questões críticas em qualquer sociedade é o cri- tério de alocação de bens e serviços à população em geral no que se refere ao emprego e à educação. Nesse aspecto, há ou- tros critérios ao lado do mérito que podem influenciar o pro- cesso de alocação de vagas em Universidades e em Empresas.
A ação afirmativa (affirmative action) ou política de co- tas constitui-se em uma política pública que adota a raça, a etnia, o gênero como critério de seleção dando preferência a um candidato em relação a outro para determinada vaga. A razão da utilização desse instrumento vincula-se exatamente há aspectos históricos de desigualdade entre diferentes cidadãos em razão de sua raça, etnia ou gênero.2
A desigualdade social é marca registrada da sociedade brasileira, desde os seus primórdios. A sociedade brasileira é heterogênea de diferentes modos. COMPARATO destaca que a persistência das profundas desigualdades sociais, entre os brasileiros, estaria associada ao desenvolvimento e reprodução de um caldo de cultura peculiar aos povos ibéricos, denominado por ele de “individualismo anárquico”. A característica principal desse individualismo anárquico seria o culto à pessoa em detrimento do grupo ou conjunto, impedindo formas de coesão social e de apreciação coletiva, em especial, de leis e normas jurídicas que pudessem orientar o conjunto da sociedade, verbis:
No fundo de cada brasileiro, de cada ibérico, se quiserem – isso herdamos dos nossos colonizadores –, existe esta convicção, de que nós somos “um”, indiscutivelmente
2 A posição judicial favorável há adoção das ações afirmativas foi dada na Suprema Corte Americana pelo Ministro Xxxxxxxx no caso Regents of University of California
v. Bakke (438 U.S 265 (1978)). Nessa decisão, Xxxxxxxx destacou que a existência histórica de um tratamento racial desigual entre os brancos e os negros ensejava a necessidade de levar em conta a raça na alocação das posições de influência e pres- tígio na sociedade americana.
um diferente dos demais, e que, portanto, não pode ser comparado e, se não pode ser comparado, não há como pensar em igualar” (Comparato, 1998, p. 49)
COMPARATO destaca dois tipos principais de geração de desigualdades sociais no Brasil: o primeiro: a desigualdade entre ricos e pobres, considerado para ele o mais importante; o segundo: a desigualdade entre brancos e negros (Comparato, 1998, p. 54). Assim, o segundo tipo de geração de desigualda- des sociais no Brasil enseja um tratamento legislativo específi- co que passa pelo programa de cotas no Contrato de Trabalho.
A legislação deve ser feita para tratar de forma adequada essas diferenças. O Legislador e o Juiz são convocados a esta- belecer distinções entre pessoas e grupos de forma adequada. De acordo com XXXXX XXXXXXXX DE XXXXX há necessi- dade de uma correlação lógica entre o fator de discrímen e a desequiparação procedida:
Exemplificando para aclarar: suponha-se hipotética lei que permitisse aos funcionários gordos afastamento remune- rado para assistir a congresso religioso e o vedasse aos ma- gros. No caricatural exemplo aventado, a gordura ou esbeltez é o elemento tomado como critério distintivo. Em exame per- functório parecerá que o vício de tal lei, perante a igualdade constitucional, reside no elemento fático (compleição corpo- ral) adotado como critério. Contudo, este não é, em si mesmo, fato insuscetível de ser tomado como fato deflagrador de efei- tos jurídicos específicos. O que tornaria inadmissível a hipo- tética lei seria a ausência de correlação entre o elemento de discrímen e os efeitos jurídicos atribuídos a ela. Não faz sen- tido algum facultar aos obeso faltarem ao serviço para con- gresso religioso porque entre uma coisa e outra não há qual- quer nexo plausível. Todavia, em outra relação, seria tolerável considerar a tipologia física como elemento discriminatório. Assim, os que excedem certo peso em relação à altura não podem exercer, no serviço militar, funções que reclamem pre- sença imponente.
(…)
Em síntese: a lei não pode conceder tratamento especí- fico, vantajoso ou desvantajoso, em atenção a traços e cir- cunstâncias peculizadoras de uma categoria de indivíduos se
não houver adequação racional entre o elemento diferencial e o regime dispensado aos que se inserem na categoria diferen- çada. (Xxxxx xx Xxxxx, 1995, p.38-39)
No caso da política de cotas, há uma correlação lógica entre o favorecimento de determinada raça, etnia ou gênero e a busca de reparação de um tratamento discriminatório pretérito (justiça reparatória distributiva) ou a busca de uma sociedade com maior diversidade.
Conforme assinala XXXXXX XXXXXXX (1977) o uso da raça na política de cotas no ingresso em universidades não viola direitos de outras pessoas. Ademais, assinala de forma genérica que a leitura da Constituição Americana impede não só a discriminação subjetiva, mas também a discriminação es- trutural (padrões socioeconômicos díspares entre as pessoas decorrentes de preconceitos) (DWORKIN (1996, 1985)).
2) A ADOÇÃO DA POLÍTICA DE COTAS PODE TER O EFEITO REVERSO DE GERAR MAIS DISCRIMINA- ÇÃO?
No âmbito das políticas públicas indaga-se : a adoção da política de cotas seria a melhor solução para a discriminação racial? Aqui se defende que a resposta depende da forma de implementação, se a política for implementada corretamente não haverá o efeito reverso de gerar mais discriminação.
Assim, se for dotada de cuidados na sua implementação e se for utilizada concomitante com outras políticas públicas não gera mais discriminação. Há limites para a atividade legislativa de promoção da inclusão de minorias. Racismo, machismo e outras formas de discriminação não podem ser eliminadas só por meio de leis.
Por outro lado, a adoção da política de cotas pode ser um mecanismo válido de diminuição do abismo existente entre o mundo do dever-ser e o mundo do ser.
A política de quotas, entretanto tem suas desvantagens.
No âmbito americano, foi usada a expressão reverse discrimi- nation para destacar que a ação afirmativa pode muitas vezes ensejar a discriminação da maioria pela minoria (discriminação invertida), desse modo exacerbando aquilo que queria evitar (discriminação). Assim, usa-se em contraponto a expressão color blind para incentivar políticas sociais contrárias às que usam as cotas raciais.
A resposta, pois será depende da forma como essa políti- ca é implementada e da coexistência de outras políticas públi- cas correlacionadas em resgatar a igualdade material.
A JURISPRUDÊNCIA AMERICANA E AS AÇÕES AFIR- MATIVAS: EXEMPLO PARA A IMPLEMENTAÇÃO ADEQUADA DA POLÍTICA DE COTAS
XXXXXX XXXXXX XXXX XXXXXX (1981, p. 37)
afirmava que: “Morality can not be legislated, but behavior can be regulated. Judicial decrees and laws may not change the heart, but they can restrain the heartless”. Esse foi o espí- rito da affirmative action americana que poderia ser adaptado, mutatis mutandi, à realidade brasileira tendo em vista a expe- riência americana na matéria.
A política pública americana de cotas idealiza que uma empresa privada, especialmente aquelas que prestam serviços para o Governo Federal, deve ter a preocupação em diminuir as diferenças sociais. Assim, a empresa ideal deve adotar uma política de cotas de emprego, de modo que a estrutura de sua força de trabalho reflita a estrutura racial existente no local aonde o serviço é prestado. A empresa também deveria apre- sentar um plano de metas para prevenir as desigualdades exis- tentes com relação aos salários, promoções e benefícios em- pregatícios sob a ótica das minorias raciais, étnicas ou de gêne- ro. Assim, a empresa deveria contratar e promover empregados oriundos de minorias sociais, bem como evitar a demissão de
empregados pertencentes às minorias.
Para concretização desse objetivo, foi criado pelo Con- gresso Americano uma legislação inclusiva e antidiscriminató- ria: O Estatuto dos Direitos Civis de 1964 (Civil Rights Act of 1964). Esse diploma legislativo é o principal instrumento de combate à discriminação. Divide-se em inúmeros títulos, cada um deles dedicado a uma forma específica de discriminação. Assim, trata da discriminação no emprego, no acesso à educação, à moradia, dentre outras normas que visam imple- mentar a liberdade religiosa e a proteção do deficiente físico.
XXXX XXXXX XXXXXX, em livro que se concentra na implementação da política pública de cotas americanas no âm- bito do movimento do Civil Rights (1960-1972), destaca que o Presidente Xxxxxx Xxxxxxx exigia que todas as empresas con- tratadas pelo Governo Federal deveriam empreeender ação afirmativa para que a igualdade não fosse somente uma teoria mas sim um fato social.3
O Título VII deste Estatuto lida com a discriminação no emprego em razão de raça, sexo e outros critérios que enumera. Essa norma junto com a cláusula constitucional americana de isonomia (equal protection clause) constituem o arcabouço jurídico sob o qual foram construídas inúmeras decisões da Suprema Corte que buscam ponderar a política de cotas com a proteção de outros valores constitucionais. Essas decisões po- dem ser agrupadas e delas sintetizados paradigmas de boa apli- cação da política de cotas no Contrato de Trabalho.
Inicialmente, observa-se que no âmbito do contrato de trabalho a aplicação das quotas ocorre de forma mais aceitável no âmbito da contratação e da promoção do que no da demis- são. Se quero aumentar o número de afro-brasileiros em uma empresa, não posso demitir os empregados já existentes que
3 “A year later, in a speech at Howard University, President Xxxxxx X. Xxxxxxx inaugurated the era’s second phase by declaring, “we seek not just … equality as a right and a theory but equality as a fact and as a result”. Given “the scars of centu- ries”. (XXXXXX, 1990, p.6).
não pertencerem a esse grupo social.4
Além disso, é aferido se a política de cotas tem caráter temporário ou permanente, bem como qual o peso dela para influenciar a decisão do empregador. O empregador tem uma margem de flexibilidade na aplicação das cotas? É a política de cotas uma opção de contratação ao lado de outros ou é ela a única opção do empregador?5
Ademais, busca-se saber se a inclusão deve ser vista co- mo um gol a ser atingido em um determinado prazo (plano de metas a serem atingidas) ou se é uma camisa de força imediata e inflexível.
Exemplificando, em United States v. Paradise6, a Su- prema Corte americana validou a política de contratação por cotas que determinava que o estado-membro do Alabama con- tratasse um policial rodoviário negro para cada policial rodovi- ário branco contratado até que 25% dos empregados fossem negros. Essa política surgiu a partir da constatação de que os negros vinham sendo excluídos até então da contratação pelo Departamento de Segurança Rodoviária daquele estado (o caráter reparatório da política tinha sido comprovado!). O Xx- xxxxxx Xxxxxxx destacou que havia clara discriminação pretérita que determinava essa política pública, bem como havia a exis- tência de empregados negros qualificados para o exercício da atividade de policial rodoviário.
Outro aspecto que deve ser destacado é que a política de quotas deve ser vista no contexto dos outros critérios de contra- tação. Em outras palavras, a qualificação do candidato à con- tratação não pode ficar em segundo plano em razão da adoção
4 O caso Wygant v. Jackson Board of Education (476 U.S. 267 (1986)) afirmou que a aplicação da política de cotas na demissão de empregados é de mais difícil acei- tação do que a sua utilização no contexto de contratação e promoção de emprega- dos..
5 Local 28 of the Sheet Metal Workers’International Ass’n v. EEOC (478 U.S. 421 (1986).
6 000 X.X. 000 (1987).
da política de cotas. Aqui, de forma semelhante, ao que aconte- ceu no caso de cotas universitárias americanas (Bakke case), o sistema de cotas deve ser visto como um elemento dentre ou- tros ponderáveis na contratação. Tal ocorreu no caso Xxxxxxx
v. Transportation Agency7, a política de cotas baseada no gêne- ro foi aprovada pelo fato de que apesar de 76% dos trabalhado- res da Agência serem mulheres, só 10% ocupavam posição de chefia e, também, segundo Xxxxxxx, como no caso Xxxxx,8 o critério de gênero não era o único fator utilizado para a pro- moção do candidato. Era um elemento ao lado de outros!
Em síntese, a política de cotas não deve ter um caráter permanente, devendo ser aplicada por um determinado período na contratação e promoção até que seja alcançada determinada proporção entre os empregados de diferentes grupos sociais. Deve ser evitada sua aplicação na demissão, é política de in- centivo e não de prejuízo as situações já existentes. Ela não deve ser o único requisito para a contratação, a qualificação profissional precede a aplicação da política de cotas, o elemen- to cotas não deve ser o único utilizado para a contratação ou promoção dos candidatos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COMPARATO, Xxxxx Xxxxxx. O princípio da igualdade e a escola. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n.104, p.47-57,
7 000 X.X. 000 (1987)
8 Regents of the University of California v. Bakke (438 U.S. 265 (1978). Nesse caso, a Suprema Corte Americana invalidou a adoção exclusiva do sistema de cotas para a admissão de estudantes em Universidades americanas, não obstante tenha destacado a constitucionalidade do sistema de implementação de cotas na educação de nível superior.
jul. 1998.
XXXXXXX, X. Freedom’s law: the moral reading of the amer- ican constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1996.
. As Matter of principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985.
. “Why Bakke has no case”. New York Review of Books,
vol. 24, November 10, 1977.
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de transformação social; a experiência dos EUA. Rio de Janei- ro; São Paulo: Xxxxxxx, 0000.
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