Contract
EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO XXXXXX XXXXXX, DO EGRÉGIO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, RELATOR DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE (ADI) Nº 5901.
CONECTAS DIREITOS HUMANOS, associação sem fins lucrativos qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, inscrita no CNPJ/MF sob o nº. 04.706.954/0001-75, com sede na Xxxxxxx Xxxxxxxx, 000, 00x xxxxx, Xxx Xxxxx – XX, Xxxxxx, no presente ato representada por sua diretora executiva e representante nos termos de seu Estatuto Social (Docs. 01, 02 e 03) e com o apoio técnico de:
XXXXXX X. LOWENSTEIN INTERNATIONAL HUMAN RIGHTS CLINIC (Clínica
Internacional de Direitos Humanos Xxxxxx X. Lowenstein – adiante, “Clínica Lowenstein” ou somente “Clínica”), vinculada à YALE LAW SCHOOL (Escola de Direito de Yale), com sede em Xxxx Xxxxxx, 000, Xxx Xxxxx, Xxxxxxxxxxx, 00000, EUA, no presente ato representada por XXXXXX XXXXXXXXXXX;
XXXXX XXXXXXXXX, advogada de direitos humanos especializada em litígios internacionais, residente à West 00 Xxxxxx, 000, Xxx Xxxx, XX 00000, EUA; e
XXXXXX X. XXXXXX, Professor Adjunto da New York University Law School (Faculdade de Direito da Universidade de Nova York) e pesquisador sênior da Escola de Direito de Yale, residente à Xxxx Xxxxxx, 000, Xxx Xxxxx, Xxxxxxxxxxx, 00000, XXX;
vêm, por seus e suas advogados/as abaixo subscritos/as, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, com lastro no artigo 138 do Código de Processo Civil, requerer habilitação na qualidade de:
AMICUS CURIAE
nos autos desta Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5901, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pelas razões de fato e de direito a seguir aduzidas.
I) DO OBJETO DA AÇÃO.
1. Em breve síntese, a presente Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em fevereiro de 2018, objetiva a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 13.491, de 13 de outubro de 2017, que alterou o artigo 9º, inciso II, §§ 1º e 2º do Código Penal Militar brasileiro, correspondentes à competência de julgamento dos crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis.
2. A partir de tal mudança, sustenta o autor (i) prejuízo à autoridade do Tribunal do Júri,
(ii) rompimento das regras de julgamento penal imparcial, (iii) mácula ao princípio da igualdade perante a lei, (iv) relativização do devido processo legal e (v) desrespeito às normas internacionais de direitos humanos.
3. A Advocacia-Geral da União asseverou pela improcedência do pedido, alegando inexistir desvirtuamento do sistema constitucional de competências. Argumentou que, conforme dispõe o artigo 124 da Constituição Federal, “compete à Justiça Militar processar e julgar os crimes militares definidos em lei, portanto, uma vez definido em lei os crimes militares, a competência é da Justiça Militar” (fls. 27, peça 17131/2018). Adicionou que “o mérito do projeto que resultou na Lei nº 13.491/17 foi examinado pela Subchefia de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil da Presidência da República” (fls. 28, peça 17131/2018).
4. Por derradeiro, a Procuradoria Geral da República apresentou parecer pelo conhecimento da ação e pela procedência dos pedidos, com intuito de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei nº 13.491/2017. Afirmou que a alteração legislativa questionada contraria diversos preceitos constitucionais, além de violar os tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.
5. Figuram como amici curiae admitidos pelo Exmo. Ministro relator no presente feito o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), o Ministério Público Militar, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPE/RJ) e a Associação de Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS). Ainda pendente a apreciação do pedido de habilitação, também como amicus curiae, do Instituto de Direitos Humanos da Associação Internacional da Advocacia (IBAHRI).
II) DA POSSIBILIDADE DE INTERVENÇÃO COMO AMICUS CURIAE.
6. De acordo com os Artigos 7, §2, da lei 9868/99, e Artigo 138 do Código de Processo Civil, a Conectas e a Lowestein Clinic da Universidade de Yale, com a contribuição dos experts Xxxxx Xxxxxxxxx e Xxxxxx Xxxxxx, apresenta essa contribuição de amicus curiae nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade em epígrafe.
7. O instituto do amicus curiae surge na legislação pátria pelas leis nº 9.868/99 e 9.882/99, que dispõem sobre o trâmite das Ações Diretas de Inconstitucionalidade e das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental, respectivamente. Seguindo essa linha, a intervenção de terceiros encontra-se positivada no art. 138 do Código de Processo Civil1, reconhecendo-se a importância das contribuições que a sociedade civil pode trazer ao Poder Judiciário nos temas de grande repercussão, auxiliando a Corte com novos argumentos e informações.
8. Nos termos da previsão legal e da construção jurisprudencial, depreende-se que a manifestação de organizações da sociedade civil na qualidade de amicus curiae em ações de controle concentrado de constitucionalidade está condicionada à comprovação de dois fatores: (i) da relevância da matéria discutida, no sentido de seu impacto sociopolítico; e (ii) da representatividade do postulante e sua legitimidade material.
9. Como se demonstrará a seguir, no presente caso, verifica-se a presença de ambos os requisitos para admissão da peticionária na qualidade de amicus curiae.
1 BRASIL. Código de Processo Civil, art. 138: “O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação”.
II.A) Da Legitimidade da Peticionária e dos Experts Colaboradores.
10. A CONECTAS DIREITOS HUMANOS é uma associação civil sem fins lucrativos e sem fins econômicos, fundada em setembro de 2001, com a finalidade de fortalecer e promover o respeito aos direitos humanos no Brasil e no hemisfério Sul; dedicando-se, para tanto, à educação em direitos humanos, à advocacia estratégica e à promoção do diálogo entre sociedade civil, universidades e agências internacionais envolvidas na defesa destes direitos.
11. Com relação aos fins institucionais da associação, vale transcrever o inciso VI do artigo 3º e o parágrafo 1º, item “d” do mesmo artigo de seu Estatuto, in verbis:
Artigo 3º - A ASSOCIAÇÃO será regida nos termos da Lei 9.790/99 e terá por finalidade promover, apoiar, monitorar e avaliar projetos em direitos humanos em nível nacional e internacional, em especial:
(...)
VI – promoção e defesa dos direitos humanos em âmbito judicial.
Parágrafo 1º - A ASSOCIAÇÃO pode, para consecução de seus objetivos institucionais, utilizar todos os meios permitidos na lei, especialmente para: (...)
g) Promover ações judiciais visando à efetivação dos direitos humanos.
12. Na esfera internacional, a entidade possui status consultivo junto ao CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (desde 2006) e status observador junto à COMISSÃO AFRICANA DE DIREITOS HUMANOS E DOS POVOS (desde 2009), além de uma atuação costumeira no SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS e junto aos procedimentos especiais do CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS. Nacionalmente, integra e participa ativamente de conselhos da sociedade civil que monitoram a aplicação de políticas públicas de direitos humanos, como o CONSELHO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS e o COMITÊ NACIONAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA.
13. A CONECTAS tem por missão a efetivação dos direitos humanos e o combate a desigualdades com a finalidade de construir uma sociedade justa, livre e democrática. No exercício dos seus fins institucionais, a entidade desenvolve diversas ações ligadas à proteção dos direitos humanos,
incluindo o enfrentamento à violência institucional, a defesa dos direitos e do desenvolvimento socioambientais e o fortalecimento do espaço democrático, no Brasil e no mundo.
14. Dentre as causas nas quais a peticionária atua perante esta Egrégia Corte podem ser citadas, em temas de segurança pública e justiça criminal: a ADPF 635, que discute os índices de violência e letalidade policial no Estado do Rio de Janeiro, de relatoria do Min. Xxxxx Xxxxxx; a ADI 5032, que trata da competência da Justiça Militar para julgar processos relacionados ao exercício de atividades militares atípicas, de relatoria do Min. Xxxxx Xxxxxxx; a ADI 3112, que fala sobre o Estatuto do Desarmamento, de relatoria do Min. Xxxxx Xxxxxx; a ADPF 442, que cuida da Descriminalização do Aborto, de relatoria da Xxx. Xxxx Xxxxx; a ADI 5708, sobre a Descriminalização da Cannabis para uso medicinal, de relatoria da Min. Xxxx Xxxxx; o RE 635.659 sobre a Descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal, de relatoria do Min. Xxxxxx Xxxxxx; e a PSV 125, que discute a proporcionalidade da hediondez do tipo previsto no §4º do art. 33 da Lei nº 11.343/06.
15. A CONECTAS ainda conta, para a manifestação na presente ação, com o apoio técnico da CLÍNICA DE DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS XXXXXX X. XXXXXXXXXX, curso da YALE LAW SCHOOL, de XXXXX XXXXXXXXX e XXXXXX X. FIDELL, experts internacionais no tema abordado na presente ação.
16. A CLÍNICA LOWENSTEIN oferece experiência, em primeira mão, na defesa de direitos humanos, sob a supervisão de advogados/as internacionais de direitos humanos. Realiza projetos de litígio e pesquisa em nome de organizações de direitos humanos e vítimas individuais de violações de direitos humanos, já tendo elaborado petições e outros documentos à Corte Interamericana de Direitos Humanos, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, à Corte e à Comissão Africanas de Direitos Humanos e dos Povos, ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos e a diversos organismos das Nações Unidas, além de tribunais nacionais, incluindo tribunais dentro dos EUA e de outros países das Américas.
17. A referida CLÍNICA sustenta compromisso de longa data com a proteção do direito de acesso à justiça, inclusive no tocante ao julgamento justo e ao devido processo legal, e tem um interesse significativo na resolução deste caso. Agradece, também, o trabalho de Xxxxxx Xxxx, Xxxx Xxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxx na preparação deste documento.
18. Por sua vez, a colaboradora XXXXX XXXXXXXXX, ex-Yale World Fellow (membro do Programa da Universidade de Yale para indivíduos extraordinários, que fazem a diferença no mundo), é advogada de direitos humanos com mais de 25 anos de experiência no avanço da prevenção e responsabilização da tortura, bem como em sua reparação. É especializada em litígios em organismos
instituídos por tratados das Nações Unidas e coautora do Toolkit for Drafting Complaints to the UN Human Rights Committee and UN Committee Against Torture (Kit de Ferramentas para a Elaboração de Queixas ao Comitê de Direitos Humanos da ONU e ao Comitê contra a Tortura da ONU). Ela também é coautora – com Xxxxxxx Xxxxxx e Xxx-Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx – do Guia de Reparações para Violações de Direitos Humanos: Decisões Judiciais Internacionais e Nacionais (em espanhol), publicado em 2019 pela Universidade CIDE e pelo Tribunal Administrativo Federal do México, e do livro Who Polices the Police?: The Role of Independent Agencies in Criminal Investigations of State Agents (Quem Policia a Polícia?: O Papel das Agências Independentes nas Investigações Criminais dos Agentes Estatais, 2021), em parceria com Xxx Xxxxx. Ela é formada em direito pela Academia de Educação Quirguiz-Russa.
19. O colaborador XXXXXX X. XXXXXX é Professor Adjunto da New York University Law School (Faculdade de Direito da Universidade de Nova York) e pesquisador sênior da Escola de Direito de Yale. Foi professor de justiça militar nessas duas instituições, e também na Harvard Law School e na American University’s Washington College of Law (Escola de Direito Washington da American University). Foi Conselheiro Jurídico da Guarda Costeira dos Estados Unidos e tem atuado tanto como promotor como advogado de defesa em tribunais militares. Dentre os livros que escreveu, podemos citar: Military Justice: A Very Short Introduction (Justiça Militar: Xxx Xxxxx Introdução, Oxford University Press, 2016) e Military Justice: Cases and Materials (Justiça Militar: Casos e Materiais, Carolina Academic Press, 3a ed., 2020) (coautor). O Professor XXXXXX X. XXXXXX ainda foi presidente do Instituto Nacional de Justiça militar e presidente do Comitê de Justiça militar da Sociedade Internacional para o Direito Militar e Direito de Guerra e participou de consultas especializadas sobre justiça militar convocadas pelo Gabinete do Alto Comissário das Nações Unidas Para os Direitos Humanos2.
20. Tendo em vista a atuação explicitada e por se tratar de um litígio de interesse público, fica evidente a possibilidade jurídica da manifestação da peticionária como amicus curiae na presente Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5901, contando com o aporte técnico dos experts internacionais acima identificados, o que desde já se requer.
2 A participação como amicus curiae de uma Clínica ou de um Acadêmico afiliado à Yale Law School não reflete nenhuma visão institucional da Yale Law School ou da Yale University.
II.B) Da Relevância da Xxxxxxx e Sua Repercussão Social.
21. A Lei nº 13.491, de outubro de 2017, altera o Código Penal Militar e prevê que mortes intencionais de civis perpetradas por militares federais serão julgadas por tribunais militares. Por conseguinte, a polícia civil já não tem o poder de conduzir investigações sobre oficiais militares federais que matam civis no curso de operações de paz e ações de garantia da lei e da ordem, entre outras atividades subsidiárias. A investigação e o julgamento desses crimes, que foram anteriormente conduzidos pelas autoridades civis em tribunais civis, são agora deixados a cargo dos militares.
22. A implementação dessa lei está em conflito com os princípios básicos da justiça e com as obrigações do Brasil à luz do direito internacional. Dois casos em particular mostram, explicitamente, esse conflito: o caso paradigmático do tiroteio seguido das mortes do músico Xxxxxx Xxxx e do catador de materiais recicláveis Xxxxxxx Xxxxxx, em que dez soldados presentes no momento em que o exército incendiou o carro de Xxxx, erroneamente identificado3, foram detidos, mas posteriormente libertados pelo Superior Tribunal Militar4; e o caso da Chacina do Salgueiro, em que as investigações conduzidas pelos militares foram criticadas por ignorar provas que ligam os militares ao homicídio de oito pessoas durante uma operação conjunta de forças policiais e militares5.
23. A denúncia feita pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro relativamente ao caso da Chacina do Salgueiro, em São Gonçalo, ocorrido em contexto de operação de garantia da lei e da ordem e cuja ineficiência das investigações promovidas no âmbito da Justiça Militar é amplamente noticiada:
[...] no dia 11 de novembro de 2017, atiradores abriam fogo contra ao menos 11 pessoas no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Oito pessoas morreram e uma ficou gravemente ferida naquele dia de operação conjunta entre a Polícia Civil e o Exército, que já atuava sob um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) desde julho. Quase que imediatamente vieram à tona relatos de testemunhas e sobreviventes que indicavam um possível envolvimento de forças especiais do Exército nas mortes. Todos coincidiram em dizer que os tiros haviam partido da mata, onde homens com capacetes pretos e armas com mira a laser se escondiam. Dois inquéritos foram então abertos, um pelo Ministério Público do Estado
3 Exclusivo: a desastrosa Operação do Exército que levou à morte de Xxxxxx Xxxx. Disponível em: xxxxx://xxxxxxxx.xxx/0000/00/xxxxxxxxx-x-xxxxxxxxxx-xxxxxxxx-xx-xxxxxxxx-xxx-xxxxx-x-xxxxx-xx-xxxxxx-xxxx/. Acesso em 25 de junho de 2021.
4 CIDH. Situação dos Direitos Humanos no Brasil (12 de fevereiro, 2021) OEA/Ser.L/V/II Doc. 9 [339-40]. xxxx://xxx.xxx.xxx/xx/xxxx/xxxxxxxxxx/xxxx/Xxxxxx0000-xx.xxx . Acesso em 25 de junho de 2021.
5 Chacina em São Gonçalo: documentos revelam que investigadores ignoram provas que ligam assassinatos a militares. Disponível em: xxxxx://xxxxxx.xxxxx.xxx/xxxxx/xxx/xxxxxxx-xx-xxx-xxxxxxx-xxxxxxxxxx-xxxxxxx-xxx-xxxxxxxxxxxxxx-xxxxxxxxx-xxxxxx- que-ligam-assassinatos-militares-24889542. Acesso em 25 de junho de 2021.
do Rio e outro pelo Militar, para apurar o ocorrido. E os dois acabaram arquivados.
24. O caso do Xxxxxxxxx ilustra os problemas causados pela ausência de jurisdição total sobre determinados fatos, desde o princípio, por autoridade independente para coleta de evidências, determinação de medidas cautelares e julgamento67.
25. Em 2018, a Agência Pública8 documentou que havia suspeita de ligação do exército em ao menos 32 mortes desde 2010, mas muitas sequer constavam nos registros dos comandos do Exército ou do Ministério Público Militar. Quando um militar não assume imediatamente a autoria do disparo, a investigação diversas vezes fica parada, pela incapacidade de a polícia judicial civil sequer ouvir os envolvidos nos fatos.
26. Nesse sentido, pelas razões de fato e de direito a seguir expostas, demonstrar-se-á ser imprescindível, para a consolidação do Estado Democrático de Direito no Brasil, a invalidação de leis e atos normativos infraconstitucionais como o impugnado na presente ação, que garantam foros especiais e privilegiados para membros das Forças Armadas ao praticarem crimes dolosos contra a vida de civis.
6 Extra, Forças Armadas mudam versão sobre operação com sete mortes em São Gonçalo, 2021. Disponível em xxxxx://xxxxx.xxxxx.xxx/xxxxx-xx-xxxxxxx/xxxxxx-xxxxxxx-xxxxx-xxxxxx-xxxxx-xxxxxxxx-xxx-xxxx-xxxxxx-xx-xxx- goncalo-22065586.html. Acesso em 25 de junho de 2021.
7 O Globo, Investigação que envolve militares do Exército não anda no Estado do Rio, 2018. Disponível em xxxxx://xxxxxx.xxxxx.xxx/xxx/xxxxxxxxxxxx-xxx-xxxxxxx-xxxxxxxxx-xx-xxxxxxxx-xxx-xxxx-xx-xxxxxx-xx-xxx-00000000
Acesso em 25 de junho de 2021.
8 A Pública, Exército é acusado de matar inocentes em operações de segurança pública. 2018. Disponível em xxxxx://xxxxxxxx.xxx/0000/00/xxxxxxxx-x-xxxxxxx-xx-xxxxx-xxxxxxxxx-xx-xxxxxxxxx-xx-xxxxxxxxx-xxxxxxx/#Xxxx0. Acesso em 25 de junho de 2021.
III) ARGUMENTO: HOMICÍDIOS DE CIVIS POR MILITARES DEVEM SER JULGADOS POR CORTES CIVIS CONVENCIONAIS.
27. A contribuição da peticionária e dos experts subscritores pretende oferecer a este Egrégio Supremo Tribunal Federal retrospectiva sobre a evolução dos padrões internacionais quanto à imparcialidade da justiça, sobretudo quando se trata de violações de direitos humanos. Para tanto, colecionam reiterados posicionamentos de órgãos internacionais de direitos humanos pela impossibilidade de qualquer interpretação legal que transfira a investigação de crimes contra a vida, cometidos por militares contra pessoas civis, a Tribunais compostos por militares, devendo ser declarada inconstitucional.
28. A Lei nº 13.491/2017 viola as obrigações internacionais e regionais do Brasil em matéria de direitos humanos, ao permitir que juízes e órgãos de investigação não isolados da hierarquia militar processem e julguem violações de direitos humanos cometidas por militares federais, crimes que estão fora do âmbito da competência militar. O direito de acesso a recursos judiciais – que inclui o direito a um julgamento justo perante um tribunal independente e imparcial e a obrigação processual interligada de investigar os acontecimentos que resultaram em violações – é fundamental para o direito internacional dos direitos humanos. Os organismos de direitos humanos constataram que os tribunais e órgãos de investigação militares não têm a independência e a imparcialidade necessárias para garantir o direito a um julgamento justo e, desse modo, impedem o acesso à justiça e facilitam a impunidade em caso de violações dos direitos humanos.
29. Os organismos de direitos humanos constataram que violações de direitos humanos, incluindo especificamente mortes intencionais, tortura e desaparecimento forçado, entre outros abusos, estão fora da competência dos tribunais militares. As normas internacionais e regionais em matéria de direitos humanos determinam que a jurisdição militar, se existir, deve ser exercida apenas sobre infrações estritamente militares, cometidas por membros ativos das forças armadas. As violações de direitos humanos, especialmente as relacionadas com a integridade corporal dos civis, estão inerentemente fora do âmbito das "tarefas características das forças armadas", pelo que devem ser tratadas apenas por tribunais civis comuns.
30. Os princípios subjacentes a essas normas determinam que a jurisdição dos tribunais militares deve limitar-se a disciplinar os membros militares por infrações estritamente relacionadas com sua condição militar. Caso contrário, os tribunais militares minariam o Estado de Direito, as competências dos tribunais comuns e a independência do poder judiciário. À luz da obrigação constitucional do Brasil
de cumprir a lei internacional e regional de direitos humanos, a Lei nº 13.491/2017 deve ser considerada inconstitucional.
III.A) O Sistema de Justiça Militar Brasileiro Não é Independente ou Imparcial, pois os Juízes Não Estão Isolados da Hierarquia Militar, o que Contribui para a Impunidade das Violações de Direitos.
31. Tratados internacionais e regionais de direitos humanos garantem o direito de acesso à justiça, que inclui os direitos a um julgamento justo, a uma investigação efetiva e a compensações efetivas para violações de direitos humanos. O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP)9, a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH)10, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes11 e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura12, todos ratificados pelo Brasil13, garantem esse direito. Como garantem também outros instrumentos internacionais importantes em matéria de direitos humanos, incluindo a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (Carta de Banjul)141516.
32. O direito de acesso à justiça exige que os tribunais, incluindo os tribunais militares17, sejam independentes e imparciais18. O Artigo 8(1) da CADH, por exemplo, estabelece que: “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”19.
9 Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), Artigos 2(3) e 14.
10 Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), Artigos 1(1), 8 e 25(1).
11 Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, Artigos 12 e 14.
12 Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, Artigo 8.
13 Base de dados dos Tratados das Nações Unidas. Status de ratificação para o Brasil. Disponível em inglês em < xxxxx://xxxxxxxxxx.xxxxx.xxx/_xxxxxxx/00/XxxxxxXxxxXxxxxxxx/Xxxxxx.xxxx?XxxxxxxXXx00&XxxxxXX> Acesso em 25 de junho de 2021. CIDH. B- 32: Convenção Americana de Direitos Humanos. Disponível em
<xxxxx://xxx.xxxx.xxx.xxx/xxxxxxx/xxxxxxxxx/x.xxxxxxxxx_xxxxxxxxx.xxx> Acesso em 25 de junho de 2021.
14 Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (Declaração Americana), Artigo XVIII.
15 Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), Artigo 6º.
16 Carta Africana (de Banjul) dos Direitos Humanos e dos Povos, Artigo 7.
17 PIDCP, Artigo 14. Comitê de Direitos Humanos (CDH). Comentário Geral No. 32: Artigo 14: Direito à Igualdade perante os tribunais de justiça e a um julgamento justo (comentário Geral nº 32) (23 de agosto de 2007) Doc da ONU CCPR/C/GC/32 [22]. CADHP: Resolução sobre o direito a um julgamento justo e à Assistência Jurídica em África (2001). [L(b)].
18 XXXXXX X. XXXXXX ET AL., MILITARY JUSTICE: CASES AND MATERIALS 515 (3a ed. 2020) ("os países
democráticos tomam como certo que as pessoas que desempenham funções judiciais serão independentes e imparciais....
[I]ndependência jurídica é um dos fatores-chave que contribui para (ou, se comprometido, diminui) a confiança pública na administração da justiça”).
19 CADH, Artigo 8o (1).
33. Da mesma forma, o Artigo 14(1) do PIDCP estabelece, em parte, que: “Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias por um Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil"20. O Artigo 6º (1) da CEDH e o Artigo 7º(1) da Carta de Banjul garantem igualmente o direito a um tribunal independente e imparcial21.
34. Independência e imparcialidade são conceitos relacionados, mas distintos22. Para que um tribunal seja considerado independente, deve cumprir diversos fatores. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Comissão Interamericana) agrupou os fatores considerados em sua própria jurisprudência e na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte Interamericana) em dimensões institucionais e funcionais:
No âmbito da dimensão institucional, um dos principais fatores a considerar é o grau de independência que tem o poder judiciário, enquanto sistema, no que diz respeito aos poderes do governo, para que existam garantias suficientes para proteger a instituição judicial contra abusos ou restrições excessivas por parte de outros poderes ou de instituições do Estado. Ao abordar este aspecto da independência, o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas salientou, por exemplo, que qualquer situação em que as funções e competências do judiciário e do executivo não são claramente distinguíveis, ou em que este último possa controlar ou dirigir o primeiro, é considerada incompatível com a noção de um tribunal independente.
No âmbito da dimensão funcional ou do exercício individual das funções judiciais, é necessário examinar se os operadores da justiça têm garantias de independência que lhes permitam exercer livremente as suas funções no seio das instituições de justiça, nos casos em que devem decidir, processar ou defender. Esta dimensão envolve mais do que apenas os procedimentos e qualificações para a nomeação de juízes. Implica igualmente a garantia da continuidade no cargo até a idade obrigatória de aposentadoria ou ao término do seu mandato, caso exista, bem como condições que regem promoções, transferências e suspensão e cessação de suas funções e a independência efetiva do judiciário em relação à interferência política dos poderes executivo e legislativo23.
20 PIDCP, Artigo 14o (1).
21 CEDH, Artigo 6o (1) ("Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela."); Carta de Banjul, Artigo 7(1) ("o direito de ser julgado em um prazo razoável por um tribunal imparcial").
22 Corte IDH. Apitz Barbera e outros vs. Venezuela ("Corte Primeira do Contencioso Administrativo"). Exceção preliminar, méritos, reparações e custas. Sentença de 5 de agosto de 2008. Série C No. 182 [55].
23 CIDH. Garantias da independência dos operadores de justiça: Fortalecimento do acesso à justiça e do Estado de direito nas Américas (garantias para a independência dos operadores de justiça) (2013) OEA/ser.L/V/II, Doc. 44 [26-27].
35. O Comitê de Direitos Humanos (CDH)24, o organismo internacional criado pelo PIDCP para interpretar as suas disposições e acompanhar sua implementação, e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH)25 interpretaram a independência da mesma forma.
36. Para que um tribunal seja considerado imparcial, deve ser e parecer isento. A Corte Interamericana explicou que "a imparcialidade exige que o juiz, atuando em um litígio específico, aborde os fatos do caso subjetivamente, livre de qualquer preconceito, e também ofereça garantias objetivas suficientes para excluir qualquer dúvida que as partes ou a comunidade possam ter sobre sua falta de imparcialidade"26. Da mesma forma, a CDH exigiu que:
[E]m primeiro lugar, os juízes não podem permitir que seu juízo seja influenciado por ideias pessoais pré-concebidas ou preconceitos, nem guardar ideias pré- concebidas sobre um determinado caso que lhes seja apresentado, nem agir de maneira que promovam de forma imprópria os interesses de uma das partes em detrimento da outra. Em segundo lugar, o tribunal tem também de parecer imparcial, perante um observador razoável27.
37. O TEDH, de maneira similar, descreveu o seu teste de imparcialidade da seguinte forma: "[P]rimeiramente, o tribunal deve estar subjetivamente livre de preconceitos ou predisposições pessoais. Em segundo lugar, deve também ser imparcial do ponto de vista objetivo, ou seja, deve oferecer garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima a este respeito”28.
III.A.1) Investigadores militares brasileiros não são competentes para investigar violações de direitos humanos.
38. A garantia internacional de direitos humanos a um julgamento independente e imparcial consubstancia a obrigação geral de investigar, com eficácia, as alegações de violações de direitos humanos.
24 CDH. Comentário Geral No. 32. [19].
25 Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). Findlay vs. Reino Unido. Sentença de 25 de fevereiro de 1997. Processo no 22107/93 [73]. TEDH. Incal vs. Turquia. Sentença de 9 de junho de 1998. Processo no 41/1997/825/1031 [65]. TEDH. Ciraklar vs. Turquia. Sentença de 28 de outubro de 1998. Processo no 70/1997/854/1061 [38]. TEDH. Sahiner vs. Turquia. Sentença de 25 de setembro de 2001. Processo no 29279/95 [35]. TEDH. Findlay vs. Reino Unido. Sentença de 16 de dezembro de 2003. Processo no 44843/99 [104]. TEDH. Xxxxxx vs. Reino Unido. Sentença de 24 de outubro de 2006. Processo no 40426/98 [41]. TEDH. Morris vs. Reino Unido. Sentença de 26 de fevereiro de 2002. Processo no 38784/97 [58].
26 Corte IDH. Apitz Barbera vs. Venezuela. Exceção preliminar, méritos, reparações e custas. Sentença de 5 de agosto de 2008. [56].
27 CIDH. Comentário Geral No 32. [21], xxxx://xxxxxx.xxx/xx-xxxxxxx/xxxxxxx/0000/00/Xxxxxxxxxxx-xx-XX- instruments-and-general-comments-2009-PDHJTimor-Leste-portugues.pdf.
28 TEDH. Findlay vs. Reino Unido. [73]. TEDH. Incal vs. Turquia. [65]. TEDH. Ciraklar vs. Turquia. [38]. TEDH. Sahiner vs. Turquia. [36]. TEDH. Cooper vs. Reino Unido. [104]. TEDH. Xxxxxx vs. Reino Unido. [41]. TEDH. Morris vs. Reino Unido.
O Comitê de Direitos Humanos da ONU considerou que uma falha de um Estado Parte em investigar alegações de violações pode equivaler a uma violação separada do Artigo 2(3) do PIDCP29. A obrigação de investigar violações de direitos humanos, estabelecer a verdade e, assim, responsabilizar os perpetradores, é essencial para fornecer compensação eficaz e é um aspecto fundamental do dever dos Estados de garantir os direitos humanos30.
39. A Corte Interamericana estabeleceu, no caso Massacre de Pueblo Bello vs. Colômbia, que em casos de graves violações de direitos humanos, os Estados têm "a obrigação de iniciar, ex officio e imediatamente, uma investigação genuína, imparcial e efetiva, que não seja conduzida como uma mera formalidade predestinada a ser ineficaz"31. No caso Massacre de La Rochela vs. Colômbia, a Corte constatou que o Estado havia violado a Convenção Americana de Direitos Humanos, entre outras falhas, não investigando adequadamente as alegadas violações de direitos humanos. A Corte salientou que esse tipo de falha fomenta a impunidade:
A Corte estabeleceu tal violação, inter alia, devido à falta da devida diligência na condução da investigação, às ameaças aos juízes, testemunhas e familiares, aos obstáculos e barreiras interpostos à investigação, bem como aos atrasos injustificados no processo, que em conjunto levaram à impunidade parcial neste caso.
A Corte reitera que o Estado é obrigado a combater essa situação recorrendo a todos os meios disponíveis, uma vez que a impunidade favorece a repetição crônica das violações de direitos humanos e torna as vítimas e seus familiares, que têm o direito de conhecer a verdade relativa aos acontecimentos, completamente indefesos. O reconhecimento e o exercício do direito de conhecer a verdade em uma situação específica constituem um meio de reparação. Portanto, no caso em questão, o direito de conhecer a verdade dá origem às expectativas das vítimas, que o Estado deve satisfazer32.
40. A Corte Interamericana considerou que os tribunais militares não têm jurisdição para investigar supostos autores de violações de direitos humanos. No caso Xxxxxxx Xxxxxxx vs. México, a Corte declarou que "tendo em conta a natureza do crime e os direitos legais violados, o sistema de justiça militar não é a jurisdição competente para investigar e, se for o caso, processar e punir os autores de violações de direitos humanos. A acusação dos responsáveis deve sempre ser atribuída ao sistema de justiça civil comum"
29 Comitê de Direitos Humanos da ONU, Comentário Geral No 31. A natureza da obrigação jurídica geral imposta aos Estados Partes no Pacto, 26 de maio de 2004, CCPR/C/21/Rev.1/Add.13.
30 Comissão Internacional de Juristas. Military jurisdiction and international law: Vol. 1. (2004) [33-39].
31 Corte IDH. Massacre de Pueblo Bello vs. Colômbia. Méritos, reparações e custas. Sentença de 31 de janeiro de 2006. Série C No. 140 [143].
32 Corte IDH. Caso do Massacre de La Rochela vs. Colômbia. Méritos, reparações e custas. Sentença de 11 de maio de 2007. [287- 289].
(grifo do autor)33. A Corte constatou, ainda, no caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, que a independência e imparcialidade dos órgãos responsáveis pelas investigações exigem que esses órgãos não tenham qualquer relação institucional ou hierárquica com as partes nas alegações34.
41. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos afirmou, igualmente, que a obrigação processual de conduzir uma investigação independente exige que não haja uma ligação hierárquica ou institucional entre os responsáveis pelos inquéritos e os supostos autores. No caso Al-Skeini e outros vs. Reino Unido, o Tribunal explicou:
Para que uma investigação sobre supostos homicídios ilegais cometidos por agentes do Estado seja eficaz, é necessário que as pessoas responsáveis pela investigação e sua condução sejam independentes das pessoas implicadas. Isto significa não somente uma ausência de vínculo hierárquico ou institucional, mas também uma independência concreta. A exigência de prontidão e de expedição razoável está implícita neste contexto. Embora possam existir obstáculos ou dificuldades que impeçam o progresso de uma investigação em determinada situação, uma resposta imediata das autoridades na investigação de uso de força letal pode, em geral, ser considerada essencial para manter a confiança pública na sua adesão ao Estado de Direito e para evitar qualquer aparência de conluio ou tolerância a atos ilícitos. Pelas mesmas razões, deve haver suficiente teor de escrutínio público da investigação ou de seus resultados para garantir a responsabilização na prática, bem como na teoria35.
42. A Corte Interamericana tem, reiteradamente, afirmado as obrigações dos Estados de investigar, de forma genuína e imparcial, as denúncias de violações de direitos humanos. A Corte explicou que as obrigações dos estados em matéria de direitos humanos exigem que as investigações sobre supostos autores de violações de direitos humanos sejam realizadas por um organismo independente e imparcial, sem qualquer relação institucional ou hierárquica com as partes envolvidas nas alegações. A jurisprudência do TEDH salienta igualmente as obrigações dos Estados, nos termos do direito internacional, de garantirem investigações eficazes e independentes conduzidas por autoridades sem quaisquer ligações hierárquicas ou institucionais aos supostos autores sob investigação. Investigadores militares brasileiros, portanto, não são competentes para investigar violações de direitos humanos cometidas por militares brasileiros.
33 Corte IDH. Xxxxxxx Xxxxxxx vs. México. Sentença de 23 de novembro de 2009 [273].
34 Corte IDH. Favela Nova Brasília vs. Brasil. Exceção preliminar, méritos, reparações e custas. Sentença de 16 de fevereiro de 2017. Série C No. 333 [185, 187].
35 Al-Skeini e Outros vs. Reino Unido, Processo nº 55721/07, Conselho da Europa: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, 7 de julho de 2011. [167].
III.A.2) Uma vez que os juízes geralmente são membros ativos das forças armadas, os tribunais militares brasileiros não são imparciais.
43. Organismos internacionais e regionais têm questionado a imparcialidade dos tribunais militares, já que os tribunais são compostos por militares da ativa, mesmo nos casos em que esses tribunais também incluam juízes civis. No caso Xxxxxx vs. Brasil, a Comissão Interamericana observou que quando “os juízes do sistema judiciário militar, em geral, são membros do Exército em serviço ativo” como é o caso no Brasil, isso “os põe em uma posição de julgar os seus próprios companheiros de armas, tornando ilusório o requisito de imparcialidade, uma vez que os membros do Exército frequentemente sentem-se obrigados a proteger aqueles que combatem ao seu lado em um contexto difícil e perigoso"36. O TEDH e a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos determinaram que a independência e imparcialidade dos tribunais militares continua a ser questionável mesmo quando são parcialmente compostos por juízes civis37.
44. Uma vez que os juízes dos tribunais militares brasileiros geralmente são membros ativos das forças armadas, os tribunais militares brasileiros não são imparciais. Os tribunais militares inferiores, chamados de Conselhos de Justiça Militar, são compostos por quatro membros militares da ativa e um juiz civil38. Quanto ao Superior Tribunal Militar, a Constituição Federal de 1988 exige que a maioria dos juízes sejam militares da ativa:
O Superior Tribunal Militar compor-se-á de quinze Ministros vitalícios, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal, sendo três dentre oficiais-generais da Marinha, quatro dentre oficiais-generais do Exército, três dentre oficiais-generais da Aeronáutica, todos da ativa e do posto mais elevado da carreira, e cinco dentre civis39.
45. Atualmente, o Superior Tribunal Militar é composto por quatro Generais-do- Exército (ou Gen. Ex.), três Almirantes-de-Esquadra (ou Alte-Esq.), três Tenentes-Brigadeiros-do-ar (ou Ten. Brig. Ar) e cinco juízes civis40.
36 CIDH, Relatório nº 71/15, caso 12.879, mérito, Xxxxxxxx Xxxxxx e outros vs. Brasil. 28 de outubro de 2015 [176]. (citando CIDH, Relatório nº 2/06, caso 12.130, mérito, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxx vs. México. 28 de fevereiro de 2006. [83-84].)
37 TEDH. Incal vs. Turquia. [66]. TEDH. Ciraklar vs. Turquia. [37]. TEDH. Gerger vs. Turquia. Sentença de 8 de julho de 1999. Processo no 24919/94 [12]. TEDH. Karatas vs. Turquia. Sentença de 8 de julho de 1999. Processo no 23168/94 [12]. TEDH. Sahiner vs. Turquia. [38]. CADHP: Projeto de Direitos constitucionais (com respeito a Lekwot e outros) vs. Nigéria (1999). [14]. CADHP: Escritório de advocacia de Xxxxx Xxxxxxxx vs. Sudão (2003). [63].
38 Código de Organização Judiciária e Processo Militar. Decreto no 14.450. (30 de outubro de 1920). [14-15].
39 Constituição Federal do Brasil (1988), Artigo 123.
40 Superior Tribunal Militar. Composição da Corte. Disponível em < xxxxx://xxx.xxx.xxx.xx/x-xxx-xxx/xxxxxxxxxx- corte-2> (visitado pela última vez em 30 de março de 2021).
46. A presença de militares na ativa em tribunais militares brasileiros já gerou resultados que levaram a Comissão Interamericana a duvidar da imparcialidade das decisões proferidas, como no mencionado caso de Xxxxxxx Xxxx xxx Xxxxxx:
[E]m 7 de abril de 2019, (...) o veículo em que se encontrava o músico Xxxxxx Xxxx xxx Xxxxxx, um homem afrodescendente, acompanhado de amigos e familiares, foi alvejado por 83 tiros disparados por um destacamento do Exército em Guadalupe, zona norte do Rio de Janeiro. Além de Xxxxxx, também vieram a falecer, na ação, o catador de materiais recicláveis Xxxxxxx Xxxxxx, atingido quando tentava ajudar os ocupantes do veículo.
Na ocasião, o Exército emitiu nota alegando que os militares se depararam com um “assalto em andamento” e teriam reagido a tiros disparados por criminosos a bordo do veículo. Perícias, testemunhas e mesmo vídeos gravados por moradores evidenciaram que se tratava de uma família que se dirigia a um chá de bebê. Mais tarde, o Exército afirmou que sua primeira nota fora emitida com base em “informações iniciais transmitidas pela patrulha” e que houve “confusão” em relação a outro veículo, esse sim envolvido em ocorrência criminosa. Inicialmente, dez militares presentes na ação foram presos. Porém, em 23 de maio de 2019, o Superior Tribunal Militar (STM) concedeu liberdade a esses agentes. Para além do uso completamente desproporcional da força que vitimou Xxxxxx e Xxxxxxx, do viés de raça e classe que possivelmente guiaram a operação, e das aparentes tentativas do Exército de forjar uma justificativa para o curso de ação adotado. O caso reitera as dúvidas sobre a capacidade da justiça militar de apreciar, com isenção, a conduta de pares suscitadas pela Comissão”41.
47. Este caso é um exemplo dos esforços dos militares na ativa do Supremo Tribunal Militar para assegurar a impunidade de outros colegas militares. Isto demonstra por que esses tribunais não devem ter jurisdição sobre violações de direitos humanos. Esta jurisdição amplifica as já “devastadoras” consequências da violência institucional, fomentando tanto uma cultura de “impunidade pelas violações de direitos humanos cometidas por agentes do estado” e um “ambiente de desconfiança nas instituições do Estado” com uma concomitante “falta de segurança”42. Como concluiu a Comissão Interamericana: “[A] jurisdição militar (...) apresenta sérios problemas para que a administração da justiça seja imparcial e independente”43.
41 CIDH. Situação dos direitos humanos no Brasil (12 de fevereiro de 2021) OEA/Ser.L/V/II Doc. 9 [339-40], xxxx://xxx.xxx.xxx/xx/xxxx/xxxxxxxxxx/xxxx/Xxxxxx0000-xx.xxx . Acesso em 25 de junho de 2021.
42 Id. [324].
43 Id. [337].
III.B) O Sistema Judicial Militar Brasileiro Não Tem Jurisdição sobre as Mortes Intencionais de Civis por Militares, Porque os Tribunais Militares Têm Jurisdição Limitada e Excepcional que Não Inclui o Julgamento de Violações de Direitos Humanos.
48. O controle democrático sobre as forças militares limita a jurisdição militar ao “princípio da especialidade”, relegando à justiça castrense apenas a proteção de bens jurídicos exclusivamente militares. Tal regra está bem consolidada na interpretação constitucional deste Egrégio Supremo Tribunal Federal:
A caracterização do crime militar em decorrência da aplicação do critério ratione personae previsto no art. 9º, II, “a”, do CPM deve ser compreendida à luz da principal diferença entre o crime comum e o crime militar impróprio: bem jurídico a ser tutelado. Nesse juízo, portanto, torna-se elemento indispensável para configuração do tipo penal especial (e, portanto, instaurar a competência da Justiça Militar da União) a demonstração de ofensa a bens jurídicos de que sejam titulares as Forças Armadas. Daí a convergência de entendimento, na jurisprudência do STF, de que o delito cometido fora do ambiente castrense ou cujo resultado não atinja as instituições militares será julgado pela Justiça comum [HC 117.254, rel. min. Xxxxx Xxxxxxxx, x. 30-9-2014, 2ª T, DJE de 15-10-2014, grifos nossos].
49. Em outras palavras, não pode a lei simplesmente tornar todos os crimes militares, pois expande desproporcionalmente o ditame constitucional. A peticionária e os experts colaboradores tecem sua contribuição pela inconstitucionalidade da expansão absoluta da Justiça Militar pois entendem que, por mais que a mesma incorpore regras gerais do devido processo legal, ela não pode ter o controle exclusivo sobre a investigação de graves violações de direitos humanos, como será mais bem elucidado a seguir.
III.B.1) As normas internacionais e regionais em matéria de direitos humanos limitam o âmbito da jurisdição militar a crimes de natureza puramente militar cometidos por militares.
50. Os organismos internacionais e regionais de direitos humanos sempre afirmaram que a jurisdição militar deve ser limitada e excepcional, exercida apenas em relação a delitos estritamente militares cometidos por militares na ativa.
51. As normas internacionais mais importantes em matéria de jurisdição militar estão no
documento de 2006 que contém os Princípios que Regem a Administração da Justiça Através de Tribunais Militares (Princípios de Decaux), resultado de anos de investigação e consulta entre especialistas internacionais, juristas, militares e organizações não governamentais sobre os requisitos que o direito internacional impõe à justiça militar. Tais Princípios foram considerados impositivos por organismos como o Comitê de Direitos Humanos e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos44.
52. Os Princípios de Xxxxxx afirmam que a jurisdição dos tribunais militares deve ser excepcional e limitada. O Princípio 8 declara: "A jurisdição dos órgãos judiciais militares deve ser limitada a infrações cometidas na esfera estritamente militar, por militares. Os órgãos judiciais militares podem julgar pessoas com equiparação militar por infrações estritamente relacionadas ao exercício de sua função equiparada"45. Embora os princípios não definam o que constitui uma infração estritamente militar, essa definição indica que a jurisdição militar deve "aplicar-se apenas aos requisitos do serviço militar"46.
53. Os Princípios de Xxxxxx afirmam que a jurisdição dos tribunais militares deve ser excepcional e limitada. O Princípio 8 declara: "A jurisdição dos órgãos judiciais militares deve ser limitada a infrações cometidas na esfera estritamente militar, por militares. Os órgãos judiciais militares podem julgar pessoas com equiparação militar por infrações estritamente relacionadas ao exercício de sua função equiparada"47. Embora os princípios não definam o que constitui uma infração estritamente militar, essa definição indica que a jurisdição militar deve "aplicar-se apenas aos requisitos do serviço militar"48.
54. Os Princípios de Xxxxxx afirmam que a jurisdição dos tribunais militares deve ser excepcional e limitada. O Princípio 8 declara: "A jurisdição dos órgãos judiciais militares deve ser limitada a infrações cometidas na esfera estritamente militar, por militares. Os órgãos judiciais militares podem julgar pessoas com equiparação militar por infrações estritamente relacionadas ao exercício de sua função equiparada"49. Embora os princípios não definam o que constitui uma infração estritamente militar, essa definição indica que a jurisdição militar deve "aplicar-se apenas aos requisitos do serviço militar"50.
44 Ver Comitê de Direitos Humanos da ONU. Kholodova vs. Federação Russa (2012) UN Doc. CCPR/106/D/1548/2007; XXXX, Xxxxx vs.Turquia, Sentença de 4 de maio de 2006, Processo nº 47533/99; e XXXX Xxxxxx vs. Romênia, Sentença de 21 de setembro de 2006, Processo nº 59892/00.
45 ONU Comitê de Direitos Humanos, Relatório do Relator Especial do Subcomitê sobre a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos, Xxxxxxxx Xxxxxx, Princípios que Regem a Administração da Justiça Através de Tribunais Militares (Princípios de Decaux) , ONU Doc E/CN.4/2006/58 (13 de janeiro de 2006), Princípio 8.
46 Id. [29].
47 ONU Comitê de Direitos Humanos, Relatório do Relator Especial do Subcomitê sobre a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos, Xxxxxxxx Xxxxxx, Princípios que Regem a Administração da Justiça Através de Tribunais Militares (Princípios de Decaux) , ONU Doc E/CN.4/2006/58 (13 de janeiro de 2006), Princípio 8.
48 Id. [29].
49 ONU Comitê de Direitos Humanos, Relatório do Relator Especial do Subcomitê sobre a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos, Xxxxxxxx Xxxxxx, Princípios que Regem a Administração da Justiça Através de Tribunais Militares (Princípios de Decaux) , ONU Doc E/CN.4/2006/58 (13 de janeiro de 2006), Princípio 8.
50 Id. [29].
55. Em 2018, com o incentivo e a participação do Relator Especial da ONU sobre a independência de juízes e advogados, especialistas jurídicos se reuniram na Escola de Direito de Yale nos Estados Unidos para revisitar e atualizar os Princípios de Decaux. A emenda realizada nos Princípios Decaux, conhecida como "The Yale Draft", reafirmou a autoridade limitada dos tribunais militares. O Princípio 3, relativo à "autoridade funcional dos tribunais militares", prevê que, nos casos em que os estados disponham de tribunais civis e militares, "o tribunal civil tem jurisdição primária sobre todas as infrações criminais cometidas por indivíduos sujeitos à jurisdição militar", com uma pequena exceção para casos diretamente e substancialmente relacionados à "manutenção da disciplina militar"51.
56. Ainda conforme o “The Yale Draft”, foi mais bem delimitado o escopo dos delitos que podem estar sujeitos à jurisdição militar. O Princípio 3 afirma que o "objetivo" dos tribunais militares é "contribuir para a manutenção da disciplina militar no Estado de Direito através de uma administração imparcial da justiça". As infrações penais só devem ser julgadas por tribunais militares se esses crimes tiverem uma "ligação direta e substancial com esse objetivo": por exemplo, quando o "delito é cometido por um membro das forças armadas contra outro membro das forças armadas, ou quando se alega que o delito foi cometido dentro de um estabelecimento de defesa ou em relação a uma propriedade militar"52. As infrações ordinárias cometidas por militares devem ser de competência dos tribunais comuns53.
57. O Comitê de Direitos Humanos da ONU concluiu reiteradamente que a jurisdição militar que se expande para além do julgamento de delitos puramente militares viola o direito de acesso à justiça protegido pelo PIDCP. No caso Kholodova vs. Federação Russa, o Comitê de Direitos Humanos afirmou que as jurisdições penais militares deveriam ter um âmbito restritivo e excepcional. O Comitê de Direitos Humanos determinou que o julgamento de oficiais militares perante um tribunal militar pelo assassinato de um jornalista era inadequado, uma vez que o crime "evidentemente e incontestavelmente” não fazia parte dos seus "deveres oficiais"54. No caso Xxxxxxxxx, o Comitê ainda especificou que a citação da lei do Estado, por si só, não era explicação suficiente "para a razão pela qual a justiça militar era a jurisdição adequada para julgar o oficial militar acusado desse grave crime"55. O Comitê citou os Princípios de Decaux na argumentação.
51 Workshop de Princípios de Decaux: The Yale Draft (Yale Draft) (junho de 2018) Princípio 3, disponível somente em inglês em < xxxxx://xxx.xxxxx-xxxxxxx-xxxx.xxx/xxxxx/0000/00/Xxx-Xxxx-Xxxxx.xxx>. Acesso em 25 de junho de 2021.
52 Id.
53 Ver também Princípio 29 do conjunto atualizado de princípios para a Proteção e Promoção dos Direitos Humanos através da Ação para Combater a Impunidade, de 2005, que também reitera que a jurisdição militar "deve limitar-se exclusivamente a infrações militares especificamente cometidas por militares." E/CN.4/2005/102/ADD.1 (8 de fevereiro de 2005).
54 Comitê de Direitos Humanos da ONU. Kholodova vs. Federação Russa (2012). [10,5].
55 Id.
58. Do mesmo modo, em várias Observações Finais do Comitê de Direitos Humanos, nas respostas do Comitê aos relatórios periódicos que cada Estado Parte deve fazer sobre sua implementação do PIDCP, o Comitê convidou os estados a alterarem as suas leis de jurisdição militar, a fim de restringir o julgamento de militares àqueles acusados de crimes de natureza exclusivamente militar. Por exemplo, nas Observações Finais para o Chile, em 1999, o Comitê recomendou que o país "restringisse a jurisdição dos tribunais militares apenas a julgamentos de militares acusados de crimes de natureza exclusivamente militar", e concluiu que a ampla jurisdição dos tribunais militares contribuía "para a impunidade gozada por tais militares, ao invés de para a punição por violações graves de direitos humanos"56.
59. Tanto “The Yale Draft” quanto o PIDCP apresentam preocupações de que a justiça militar contribui para a impunidade das violações militares dos direitos humanos, o que determina que, onde existem tribunais militares, eles devem julgar apenas casos que tenham uma conexão direta e substancial com delitos de natureza estritamente militar.
60. A Corte Interamericana também reiterou que o âmbito da justiça penal militar deve ser restritivo e que a existência de tribunais militares com jurisdição sobre atos militares por oficiais militares na ativa não pode justificar a jurisdição militar sobre crimes não militares, que devem ser tratados como crimes comuns contra civis. No caso Xxxxxx vs. Peru, a Corte declarou:
Em um Estado Democrático de Direito, a jurisdição militar penal terá um alcance restritivo e excepcional e levará à proteção de interesses jurídicos especiais, relacionados às funções atribuídas por lei às forças militares. Consequentemente, os civis devem ser excluídos do âmbito da jurisdição militar e apenas os militares serão julgados por crimes ou delitos que, por sua própria natureza, atentem contra interesses legalmente protegidos de ordem militar.
Neste caso, os militares encarregados de subjugar os motins que ocorreram na prisão de El Frontón recorreram ao uso desproporcional da força, o que ultrapassou os limites das suas funções, causando assim um elevado número de mortes entre as pessoas encarceradas. Assim, as ações que levaram a esta situação não podem ser consideradas infrações militares, e sim crimes comuns, portanto a investigação e a punição devem ser levadas à justiça civil, para além do fato de que as partes supostamente ativas terem sido militares ou não57.
56 Comitê de Direitos Humanos da ONU. Observações Finais: Chile (30 de março de 1999) ONU Doc. CCPR/C/79/Add.104[9]; ver também Comitê de Direitos Humanos da ONU. Observações Finais: Guatemala (27 de agosto de 2001) ONU Doc. CCPR/CO/72/GTM [20]. ("O Estado Parte deve alterar a lei para limitar a jurisdição dos tribunais militares").
57 XXXX, Xxxxxx Xxxxxx vs. Peru. [117-118].
61. No caso Xxxxxxx Xxxxxxx vs. México, a Corte Interamericana reforçou seu ponto de vista de que "somente soldados na ativa serão julgados dentro da jurisdição militar por crimes ou delitos que, baseados em sua própria natureza, ameacem os direitos jurídicos da própria ordem militar"58. A Corte esclareceu ainda que o simples fato de um crime ser perpetrado por um membro das forças armadas na ativa não confere um caráter militar aos crimes de tal xxxxxxx00. Os crimes abrangidos pela jurisdição militar devem estar "relacionados com as funções próprias às forças militares"60. A Corte declarou, ainda:
[S]e os atos criminosos cometidos por uma pessoa que goza da classificação de soldado na ativa não afetam os direitos jurídicos da esfera militar, os tribunais civis devem sempre ser responsáveis pelo julgamento dessa pessoa. Nesse sentido, em relação a situações que violam os direitos humanos de civis, a jurisdição militar não pode operar sobre elas sob nenhuma circunstância (grifo do autor)61.
62. A Corte reafirmou essa opinião no caso Herzog et al. vs. Brasil, no qual reiterou que a jurisdição militar deve ser excepcional e exercida apenas sobre delitos estritamente militares, cometidos por membros ativos das forças armadas. Salientou, ainda, que nem a adesão da pessoa acusada às forças armadas, nem o fato de um crime ocorrer em instalações militares, transforma a infração numa infração de natureza militar. Veja-se:
Esta [Corte] recorda sua jurisprudência constante relativa aos limites da competência da jurisdição militar para conhecer fatos que constituem violações de direitos humanos, no sentido de que, num Estado democrático de direito, a jurisdição penal militar terá um alcance restritivo e excepcional e será destinada à proteção de interesses jurídicos especiais, vinculados às funções próprias das forças armadas. Por isso, a Corte salientou que através do foro militar só devem ser julgados militares da ativa pela prática de crimes ou faltas que, por sua própria natureza, atentem contra bens jurídicos próprios da ordem castrense. O fato de que os sujeitos envolvidos pertençam às forças armadas ou que os acontecimentos tenham ocorrido dentro de um estabelecimento militar não significa per se que a justiça castrense deva intervir. Isso porque, considerando a natureza do crime e o bem jurídico lesado, a jurisdição penal militar não é o foro competente para investigar e, se for o caso, julgar e punir os autores de violações de direitos humanos, devendo a ação contra os responsáveis competir sempre à justiça ordinária ou comum62.
58 CIDH. Xxxxxxx Xxxxxxx vs. México. Op. Cit. [272].
59 Id. em 286 60 Id. em 272 61 Id. em 274
62 CIDH. Xxxxxx et al. vs. Brazil. Exceção preliminar, méritos, reparações e custas. Sentença de 15 de março de 2018. Série C No 353
[247] (citando o caso do Massacre de La Rochela vs. Colômbia. Méritos, reparações e custas. Sentença de 11 de maio de 2007. Série C No 163 [200] e o caso de Xxxxx Xxxxxxxxx et al. vs. Venezuela. Méritos, reparações e custas. Sentença de 22 de agosto de 2017. Série C No 338 [148]).
63. A Comissão Africana também articulou normas rigorosas que restringem a jurisdição de tribunais militares sobre civis e militares apenas a delitos militares e não civis63. No caso Xxxxxx Xxxxx'okonda Xxxx & Outros vs. República Democrática do Congo, a Comissão Africana concluiu que o "julgamento de civis e militares por um tribunal militar presidido por um oficial militar sobre questões de natureza civil constitui uma infração aos requisitos de uma justiça imparcial"64. Neste caso, os réus eram civis e soldados acusados de "roubo de tambores de gasolina", que o tribunal caracterizou como "infrações civis"65.
64. Em sua argumentação, a Comissão fez referência à sua Declaração de Dakar e às Recomendações sobre o Direito ao Julgamento Justo na África, que afirmam que "[o] objetivo dos tribunais militares é determinar as infrações de natureza puramente militar cometidas por militares"66. A Comissão verificou que a criação de um tribunal militar competente com jurisdição sobre atos civis perpetrados tanto por militares quanto por civis constitui, por conseguinte, uma violação do Artigo 7º da Carta de Banjul67.
III.B.2) Violações aos Direitos Humanos são Excluídas da Jurisdição Militar Porque, por Definição, Não São Crimes de Natureza Puramente Militar.
65. Conforme observam os Princípios de Decaux, a Corte Interamericana, a Comissão Interamericana, o Comitê de Direitos Humanos da ONU e os especialistas internacionais são "unânimes: os tribunais militares não têm competência para julgar militares responsáveis por graves violações de direitos humanos contra civis"68. Independentemente do status militar dos autores, uma violação de direitos humanos não é, por si só, "evidentemente e incontestavelmente" um crime estritamente militar; como afirmou o caso Xxxxxxxxx, para além de qualquer concepção de "obrigações oficiais"69. A Comissão Interamericana explicou essa distinção:
63 Em seus Princípios e Diretrizes sobre o Direito ao Julgamento Justo e Assistência Jurídica na África, a CADHP reitera que "[o] único objetivo dos tribunais militares é determinar as infrações de natureza puramente militar cometidas por militares." Princípios e Diretrizes sobre o Direito ao Julgamento Justo e Assistência Jurídica na África (2003), disponíveis somente em inglês em <xxxx://xxx.xxxxx.xxx/xxxxxxxxxxxxxxxx/xxxxxx?xxx00>. Acesso em 25 de junho de 2021.
64 CADHP. Xxxxxx Xxxxx'okonda Koso & Outros vs. República Democrática do Congo (2008). [87].
65 Id. [85].
66 Resolução sobre o Direito ao Julgamento Justo e Assistência Jurídica na África, CADHP/Res.41 (XXVI) 99. (15 de novembro de 1999), disponível somente em inglês em <xxxxx://xxx.xxxxx.xxx/xx_xxxxxxxx/xxxxxxxxxxx?xxx00>. Acesso em 25 de junho de 2021.
67Carta de Banjul, Artigo 7 ("todo indivíduo terá o direito de ter sua causa ouvida. Isto inclui … o direito de ser julgado dentro de um prazo razoável por um tribunal imparcial.").
68 Princípios de Decaux. [35].
69 Comitê de Direitos Humanos da ONU. Kholodova vs. Federação Russa (2012). [10.5]. Ver também Const. da Colômbia CT.
Sentença nº. SU. 1184/01 (2001).
Para que uma infração seja submetida à jurisdição dos tribunais penais militares, deve existir uma ligação de origem clara entre ela e uma atividade relacionada com o serviço... A ligação entre o ato criminoso e a atividade relacionada com o serviço é desfeita quando a infração é excepcionalmente grave, como no caso dos chamados crimes contra a humanidade. Nessas circunstâncias, o caso deve ser submetido aos tribunais regulares, dada a total contradição entre o delito e as missões constitucionais das forças armadas e da Polícia Nacional... O que a Corte indica é que existem formas de conduta puníveis que são tão flagrantemente contrárias à função constitucional das forças armadas e da Polícia Nacional que meramente cometê-las rompe qualquer nexo funcional entre o agente e o serviço70.
66. Os Princípios de Xxxxxx descrevem estas normas de direitos humanos no conciso e inequívoco Princípio 9: "Em todas as circunstâncias, a jurisdição dos tribunais militares deve ser deixada de lado em favor da jurisdição dos tribunais comuns para levar a cabo inquéritos sobre graves violações dos direitos humanos"71. Conforme “The Yale Draft”, de 2018, este princípio evidencia que a jurisdição dos tribunais comuns se estende ao processo e ao julgamento de todas as pessoas acusadas de graves violações dos direitos humanos72.
67. A Corte Interamericana enfatiza, reiterada e consistentemente, que a jurisdição militar nunca é “competente para investigar e, se for o caso, julgar e punir os autores de violações de direitos humanos”73. A Corte tem décadas de jurisprudência que reforçam a sua insistência no “alcance restritivo e excepcional” da jurisdição militar, em geral, e a sua proibição de envolvimento militar no exame das violações dos direitos humanos, em particular74. Para a Corte, este âmbito restritivo e excepcional é fundamental para as sociedades democráticas e para a preservação do Estado de Direito.
68. A Comissão Interamericana tem, reiteradamente, condenado extensões e exercícios de jurisdição militar no que tange a violações de direitos humanos. A Comissão afirmou repetidamente que os Estados têm a obrigação de assegurar que os militares que alegadamente cometeram violações dos direitos humanos sejam investigados e julgados por processos e tribunais comuns, e não por tribunais
70 Comissão Interamericana, Mora Rubiano vs. Colômbia, Caso 11.525, Relatório nº 45/99, OEA/ser.L/V/II.106, doc.6 rev. (1999) [4, FN1], citando a Sentença da Corte Constitucional da Colômbia C-358 de 5 de agosto de 1997.
71 Princípios de Decaux.
72 Yale Draft em 16.
73 CIDH. Herzog vs. Brazil. [247].
74 Ibid. Ver também o caso do Massacre de La Rochela vs. Colômbia. Méritos, reparações e custas. Sentença de 11 de maio de 2007. Série C nº 163, [200]; caso Xxxxx Xxxxxxxxx et al. vs. Venezuela. Méritos, reparações e custas. Sentença de 22 de agosto de 2017. Série C nº 338, [148]; caso Xxxxxxx Xxxxxxx vs. México. Exceção preliminar, méritos, reparações e custas. Sentença de 23 de novembro de 2009. Série C nº 209, [209]; caso Xxxxxxxxx Xxxxxx et al. vs. México. Exceção preliminar, méritos, reparações e custas. Sentença de 30 de agosto de 2010. Série C nº 215, [176]; caso Xxxxxxx Xxxxx et al. vs. México. Exceção preliminar, méritos, reparação e custas. Sentença de 31 de agosto de 2010. Série C nº 216, [160]; caso Xxxxx Xxxxxx vs. Colômbia. Méritos, reparações e custas. Sentença de 4 de julho de 2007. Série C nº. 165, [105]. Quisplaya Vilcapoma vs. Peru, Santa Barbara Campesino vs. Peru[245]; caso Quisplaya Vilcapoma vs. Peru 2015, [146].
militares75.
69. Em março de 2021, em relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, a Comissão reiterou suas preocupações sobre o uso da jurisdição militar no Brasil76. Enfatizou que o uso da jurisdição militar é particularmente inapropriado para a investigação, julgamento e punição de “autores de violações de direitos humanos”; de fato, ela “nunca [deveria ser usada] para investigar violações de direitos humanos”.77. As violações dos direitos humanos alegadamente cometidas por membros das forças armadas são abusos que ameaçam o tecido social, remediáveis apenas pelos tribunais civis78.
70. Vários órgãos e tratados sobre direitos humanos reiteraram a proibição do uso de jurisdição militar para perpetradores de violações de direitos humanos no contexto de crimes específicos, incluindo execuções extrajudiciais, tortura e desaparecimento forçado. A Comissão Interamericana, por exemplo, proíbe jurisdição militar em casos de execuções extrajudiciais79. E a jurisprudência da Comissão sobre a tortura enfatizou repetidamente que os supostos autores de tortura devem ser julgados perante tribunais civis comuns, e não tribunais militares80.
71. Esta determinação é ecoada em relatórios do Relator Especial sobre Tortura da ONU, tanto como norma geral quanto como preocupação específica para o Brasil81. Finalmente, a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, ratificada pelo Brasil, proíbe inequivocamente jurisdição militar sobre desaparecimentos forçados.82. Do mesmo modo, o Princípio 29
75 Comissão Interamericana, Relatório Anual 1992-1993, OEA/Ser.L/V/II.83 (12 de março de 1993); Comissão Interamericana, Relatório Anual 1993, OEA/Ser.L/V. 85 (11 de fevereiro de 1994); Comissão Interamericana, Relatório Anual 1997, OEA/Ser.L/V/II.98 (13 de abril de 1998); Comissão Interamericana, Relatório Anual 1998, OEA/Ser.L/V/II.102 (16 de abril de 1999); Comissão Interamericana, Terceiro Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos na Colômbia, OEA/Ser.L/V/II.102 (26 de fevereiro de 1999); Comissão Interamericana, Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Equador, OEA/Ser.L/V/II.96 (24 de abril de 1997); Comissão Interamericana, Segundo Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Peru, OEA/Ser.L/V/II/106 (2 de junho de 2000).
76 Comissão Interamericana, Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil, OEA/Ser.L/V/II (12 de fev. 2021).
77 Ibid. [337]
78 Id. [247].
79 Comissão Interamericana , Massacre de "Los Uvos" vs. Colômbia, OEA/Ser.L/V/II.106 Doc. 3 (13 de abril de 2000) [60]; Comissão Interamericana, Massacre de "Caloto" vs. Colômbia, OEA/Ser.L/V/II.106Doc. 3 (13 de abril de 2000) [55]; Comissão Interamericana, Xxxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxxxx vs. Colômbia, OEA/ser.L/V/II.95 Doc. 7 (13 de abril de 1999) [37-40]; Comissão Interamericana, Xxxxxx Xxxxxx vs. Colômbia, OEA/ser.L/V/II.95 Doc. 7 (7 de abril de 1998); Comissão Interamericana, Feldman et al. vs. Colômbia, OEA/ser.L/V/II.91 Doc. 7 (13 de setembro de 1995) [D.2-4].
80 Comissão Interamericana, Fuentes Guerrero et al. vs. Colômbia, OEA/ser.L/V/II.95 Doc. 7 (13 de abril de 1999).
81 Ver Relator especial sobre Tortura Re: Brasil, A/HRC/31/57/Add.4; Relator Especial sobre Tortura Re: Geralmente,
A/56/156 (3 de julho de 2001) [39].
82 Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, Art. IX ("só podem ser julgados nas jurisdições competentes de direito civil em cada Estado, com exclusão de todas as outras jurisdições especiais, particularmente jurisdições militares"); ver também Comissão Interamericana, Xxxxxx Xxxxxxxxxx vs. Colômbia, OEA/Ser.L/V/II.106 Doc. 3 (24 de fevereiro de 2000). Da mesma forma, a Declaração da Assembleia Geral da ONU sobre a Proteção de Todas as Pessoas Contra os Desaparecimentos Forçados menciona que "os desaparecimentos forçados" só serão julgados pelos tribunais civis competentes de cada Estado, e não por qualquer outro tribunal especial, em particular pelos tribunais militares". Resolução 47/133 da Assembleia Geral (18 de dezembro de 1992), Art. 16 (ênfase do autor).
do Conjunto Atualizado de Princípios para a Proteção e Promoção dos Direitos Humanos de 2005, através da Ação Contra a Impunidade, proíbe o exercício de jurisdição militar sobre violações dos direitos humanos, que "será de competência dos tribunais nacionais comuns”83.
72. As normas internacionais e regionais em matéria de direitos humanos exigem explicitamente que os Estados restrinjam o seu exercício de jurisdição militar para que se aplique apenas a crimes militares cometidos por militares. As graves violações dos direitos humanos, incluindo mortes intencionais, não são, por definição, crimes de natureza puramente militar. Para cumprir suas obrigações do direito internacional e regional e, por sua vez, de acordo com a Constituição, e para garantir o respeito ao Estado de Direito, o Brasil deve confiar a investigação e a acusação de mortes intencionais de civis por oficiais militares a seus tribunais civis nacionais. O Brasil não pode autorizar a jurisdição militar sobre tais crimes.
83 2005 Conjunto Atualizado de Princípios para a Proteção e Promoção dos Direitos Humanos Através da Ação para Combater a Impunidade. Princípio 29.
IV) CONSIDERAÇÕES FINAIS.
73. Permitir a jurisdição militar sobre graves violações de direitos humanos, como a prática de mortes intencionais, viola as obrigações do Brasil contidas na lei internacional e regional dos direitos humanos e diverge da tendência de afastamento da jurisdição militar nos países democráticos84. A jurisdição militar que inclui a avaliação sobre violações de direitos humanos cometidas por militares em desfavor de civis desrespeita os princípios da lei internacional de direitos humanos e gera uma cultura de impunidade para violações dos direitos humanos, corrói o Estado de Direito e põe em risco a legitimidade dos regimes democráticos.
74. Os Estados que não limitam a jurisdição militar a crimes de natureza estritamente militar, frequentemente, toleram ou encobrem violações de direitos humanos cometidas por forças militares, não responsabilizando por abusos aqueles que se encontram nas forças armadas85. A falta de independência e imparcialidade inerentes aos tribunais militares alimenta a falta de diligência nas investigações e a falta do devido processo legal nos julgamentos86.
75. Os §§ 2º e 3º, do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 exigem que o Brasil proteja os direitos e garantias estabelecidos por tratados internacionais e estabeleça que os tratados de direitos humanos ratificados pelo Estado sejam "[...] equivalentes às emendas constitucionais”87. O Brasil é, portanto, obrigado a responder a crimes graves contra civis por meio de um sistema de justiça que mantenha os padrões internacionais de direitos humanos estabelecidos nesses tratados, incluindo o direito ao devido processo e o direito a tribunais independentes e imparciais. À luz do exposto, a peticionária e os experts subscritores, respeitosamente, pedem a esta Egrégia Corte para considerar que a Lei nº 13.491/2017 viola as obrigações do Brasil sob o direito internacional de direitos humanos e, portanto, é manifestamente inconstitucional.
00 Xxxxxx X. Fidell, A Worldwide Perspective on Change in Military Justice, in XXXXXX XXXXXX ET AL., MILITARY JUSTICE: CASES AND MATERIALS (JUSTIÇA MILITAR: CASOS E MATERIAIS), 870 (3a ed., 2020) (citando, por exemplo,
desenvolvimentos no Reino Unido, Canadá e África do Sul).
85 Comissão Interamericana, Relatório de 1997 sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil, OEA/Ser.L/V/II.97 Doc. 29 (29 de setembro de 1997); Comissão Interamericana, Relatório de 1985 sobre a Situação dos Direitos Humanos no Chile, OEA/Ser.L/V/II.66 Doc. 17 (9 de setembro de 1985); Comissão Interamericana, 2001 Terceiro Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Paraguai, OEA/Ser.L/V/II.110 Doc. 52 (9 de março de 2001); Comissão Interamericana, 2000 Segundo Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Peru, OEA/Ser.L/V/II.106 Doc. 59 (2 de junho de 2000).
86 Comissão Interamericana, 1993 Segundo Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos na Colômbia, OEA/Ser.L/V/II.84 Doc. 39 (14 de out. de 1993); Comissão Interamericana, 1985 Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Chile, OEA/Ser.L/V/II.66 Doc. 17. (9 de setembro de 1985); Comissão Interamericana, 1983 Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos na Guatemala, OEA/Ser.L/V/II.61 Doc. 47 (5 de out de 1983); Comissão Interamericana, Maclean vs. Suriname, OEA/Ser.L/V/II.76 Doc. 10 (27 de setembro de 1989).
87 Constituição Federal do Brasil (1988), §§ 2º e 3º, do artigo 5º.
V) PEDIDOS.
76. Pelo exposto, encontram-se preenchidos os requisitos legais para a admissão da peticionária Conectas Direitos Humanos como amicus curiae no presente feito; instrumento importante de democratização e pluralização do debate jurisdicional.
77. Diante da relevância da matéria, repercussão social da controvérsia e representatividade adequada, comprovada pela atuação histórica da entidade, bem como do inestimável aporte técnico oferecido pela colaboração da CLÍNICA DE DIREITOS HUMANOS INTERNACIONAIS XXXXXX X. XXXXXXXXXX, da YALE LAW SCHOOL, da advogada internacional de direitos humanos XXXXX XXXXXXXXX e do professor XXXXXX X. FIDELL, a peticionária CONECTAS vem, à presença de Vossa Excelência, requerer:
a) Que seja admitida no feito na qualidade de amicus curiae, nos termos dispostos pelo artigo 138 do Código de Processo Civil e pelo artigo 323, §3º do Regimento Interno deste Egrégio Supremo Tribunal Federal, franqueando-se o exercício das faculdades inerentes a essa função, em especial a apresentação de razões complementares, manifestações escritas e memoriais, assim como a participação em audiências sobre o tema abordado na demanda e a sustentação oral dos argumentos em Plenário;
b) Subsidiariamente, na remota hipótese de que Xxxxx Excelência não entenda cabível a condição de amicus curiae, seja recepcionada a presente peça como memoriais a serem juntados aos autos desta ADI nº 5901;
c) Que seja intimada, por meio de seus advogados e suas advogadas, de todos os atos do processo.
Termos em que, Pede deferimento.
De São Paulo/SP e New Haven/NY para Brasília/DF, em 26 de junho de 2021,
Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura.
XXXXXXX XX XXXXXXXX XXXXXXX
OAB/SP 252.259
OAB/DF 55.891
XXXXXXXX X. XXXXXXXXXX XX XXXXX
OAB/SP 388.267
RAISSA C. XXXXXXXXX XX XXXXX
OAB/SP 404.214
MASHA LISITSYNA
XXXXXXX XXXXXX XXX XXXXXX
XXXXX XXXXXXXXXXX
XXXXXX X. FIDELL