CONTRATO DE LOCAÇÃO X CONTRATO DE SUPERFÍCIE
CONTRATO DE LOCAÇÃO X CONTRATO DE SUPERFÍCIE
O Estatuto da Cidade (Lei federal nº 10.257/2001) e o Código Civil de 2002 trouxeram importante inovação no cenário do direito imobiliário, o primeiro no tocante ao solo urbano e o segundo em relação aos outros tipos de terrenos: o direito de superfície1. Trata-se de uma nova categoria de direito real que surge em substituição à enfiteuse – cuja constituição passa agora a ser expressamente proibida2.
Talvez essa inovação tenha passado desapercebida pela grande maioria da população, mas com certeza trata-se de um instrumento novo que, se corretamente utilizado, pode trazer importantes mudanças no relacionamento entre os proprietários de terrenos urbanos ou rurais, e aqueles que deles pretendem se utilizar.
Até hoje, esta relação entre proprietários e usuários de terrenos se dá primordialmente através de dois tipos de contratos, o contrato de locação urbana ou arrendamento rural. Porém, muitas vezes os proprietários não se sentem incentivados a alugar ou arrendar seus terrenos em razão dos prejuízos que temem sofrer caso os inquilinos ou arrendatários faltem com os pagamentos dos aluguéis e encargos contratuais. A lentidão da Justiça, tanto para despejar o inquilino ou arrendatário inadimplente como para cobrar os aluguéis ou encargos atrasados, certamente se apresenta como um desestímulo para os proprietários colocarem seus bens em mãos de terceiros, mesmo que em uma locação ou arrendamento aparentemente proveitosos. Isso porque a ação de despejo (assim como as demais ações judiciais) não tem a rapidez e a eficiência que se espera. A efetiva desocupação de um imóvel locado ou arrendado pode demorar mais de um ano, e o recebimento do crédito (se o inquilino ou os fiadores tiverem patrimônio suficiente para satisfazer o débito) mais de quatro anos. Assim, considerando que um inquilino ou arrendatário pode permanecer no imóvel durante a ação de despejo, aumentando mais ainda o débito de aluguéis ou encargos, pode-se estimar que o proprietário venha a amargar um prejuízo de mais de doze aluguéis – os quais irá receber, se as condições patrimoniais do inquilino ou fiadores permitirem, talvez mais de quatro anos mais tarde.
A característica do contrato de superfície é algo diferente e pode trazer maior rapidez na recuperação dos terrenos e glebas, no caso de inadimplência ou de término do prazo contratual. Trata-se de um contrato através do qual o proprietário concede a um terceiro – que se chama superficiário – o direito de usar o solo (no caso das locações urbanas, também o sub-solo e o espaço aéreo), por tempo determinado ou indeterminado (no caso das locações rurais apenas por tempo determinado), que fica autorizado a nele construir ou plantar.
1 ESTATUTO DA CIDADE (Lei nº 10.257/01), Artigos 21 a 24, e CÓDIGO CIVIL, Artigos 1.369 a 1.377
2 CÓDIGO CIVIL, Art. 2.038
Esse contrato pode ser gratuito ou oneroso, e nesse último caso a retribuição pode ser paga de uma só vez ou em parcelas. Nada impede que as partes combinem sejam essas parcelas mensais, e que sejam atualizadas por um índice de correção monetária.
Até esse ponto, é um contrato na prática muito parecido com o de locação ou de arrendamento, podendo-se inclusive adicionar a figura do fiador das obrigações pecuniárias do superficiário.
A diferença se mostra no momento da extinção do contrato de superfície (por encerramento do prazo ou por descumprimento das obrigações do superficiário), pois nesse caso o proprietário se vê munido de uma ação possessória para recuperar o terreno cedido3, enquanto que no caso de locação ou arrendamento o locador conta apenas com a ação de despejo (de rito especial, no caso das locações urbanas, e de rito sumário no caso dos arrendamentos rurais). A ação possessória, por sua vez, confere ao juiz a possibilidade de atender liminarmente o pedido do proprietário, ou seja, logo após o ajuizamento da ação e antes da resposta da parte contrária, o que não ocorre com a ação de despejo (a tutela antecipada, neste caso, seria inadmissível porque a reversibilidade da liminar, que é um dos requisitos para tanto, seria, na prática, de difícil efetivação). Isso pode significar uma agilidade muito grande na recuperação do terreno e, portanto, um risco menor de prejuízos para o proprietário.
É importante salientar que a extinção automática do direito de superfície se dá, de acordo com o Estatuto da Cidade, pelo término do prazo contratual ou pelo descumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo superficiário4. Assim, em tese não é necessário nesses casos requerer ao Judiciário a rescisão do contrato, podendo o proprietário desde logo pedir a sua reintegração na posse, liminarmente, bastando provar já na petição inicial, por documentos, a causa da extinção do direito de superfície (descumprimento das obrigações do superficiário ou término do contrato).5
Porém, essa extinção automática não está prevista também no Código Civil, o que recomenda que, nos contratos de superfície de áreas rurais, as partes insiram uma cláusula resolutiva expressa – que consiste em um pacto entre as partes no sentido de ficar o contrato automaticamente extinto no caso de descumprimento das obrigações do
3 Como afirma Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxxx (“Direito Civil – Direitos Reais”, Ed. Xxxxx, São Paulo, 2003, p. 397), “a presença do superficiário ou de seus prepostos ou familiares no imóvel, após extinta a concessão, caracteriza posse injusta, que autoriza a reintegração de posse”.
4 ESTATUTO DA CIDADE, Artigo 23
5 Nas ações de reintegração de posse referentes a contratos de leasing (arrendamento mercantil), a jurisprudência majoritária já firmou entendimento no sentido de ser admissível a concessão de liminar, bastando para tanto que o contrato contenha a cláusula resolutória expressa, ou que haja notificação com efeito resolutório e que arrendador prove a falta de pagamento da prestação a cargo do arrendatário. A doutrina também se inclina nesse sentido, como mostra, por exemplo, Xxxxxxx Xxxxxxxx, em “Leasing”, Ed. RT, São Paulo, 2000, p. 199. Assim, pode-se concluir que o mesmo raciocínio jurídico prevaleceria no caso de contrato de superfície, quando extinto pelo término de seu prazo ou pelo descumprimento de obrigação do superficiário.
superficiário ou de término do prazo, independentemente de prévia notificação6. É também recomendável que se insira no contrato um mecanismo que permita provar documentalmente ao Juiz o eventual descumprimento das obrigações do superficiário, para que não restem dúvidas quanto ao motivo da extinção e para que este possa ter segurança em conceder liminarmente a reintegração na posse pedida pelo proprietário.
Há ainda outras diferenças que também devem ser levadas em conta no momento da opção por uma ou outra categoria contratual:
- no contrato de superfície, há a transferência para o superficiário do chamado “domínio útil” do terreno (restando ao proprietário o “domínio direto”), o que gera a incidência do imposto de transferência de bens imóveis (ITBI) se a transferência for onerosa, ou do imposto de transmissão “causa mortis” e sobre doações (ITCMD) se a transferência for gratuita, calculados sempre sobre o valor do negócio.
- o contrato de superfície há de obrigatoriamente ser realizado através de escritura pública e registrado no registro de imóveis competente. De outro lado, a sua extinção deve ser averbada à margem da matrícula do imóvel. Ambas as operações envolvem custos.
- no contrato de superfície, não existe o direito à renovação compulsória – que existe no caso das locações urbanas para fins não residenciais contratadas por escrito com prazo igual ou superior a cinco anos, e também no caso do arrendamento rural, caso o proprietário não notifique o arrendatário, com seis meses de antecedência ao término do prazo contratual, das melhores propostas que tenha recebido.
- o contrato de superfície pode ser transferido a terceiros, obedecidos os termos do contrato, enquanto que o contrato de locação urbana e o de arrendamento rural são intransmissíveis sem a expressa anuência do locador.
Existem também diferenças entre o contrato de superfície previsto no Estatuto da Cidade e aquele previsto no Código Civil. Ainda se discute na doutrina se o regime do contrato de superfície tratado no Estatuto da Cidade teria sido revogado, mas a melhor doutrina já pacificou o entendimento de que o Código Civil, apesar de ser uma lei posterior ao Estatuto da Cidade e de tratar do mesmo assunto, não o derrogou nesse ponto7. O contrato de superfície passa a ter duas facetas: uma, prevista no Estatuto da Cidade, que somente se aplica aos terrenos urbanos; e outra, tratada no Código Civil, que se aplica a todos os outros terrenos, ou seja, aos terrenos e glebas rurais (valendo também as normas do Código Civil, mesmo em relação aos contratos de superfície de solos urbanos, nos casos
6 CÓDIGO CIVIL, Artigos 474 e 475. A esse respeito, diz Xxx Xxxxxx xx Xxxxxx Xxxxxx (“Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor”, Ed Aide: Rio de Janeiro, 2003, p. 59) que “na ‘resolução extrajudicial’, o contrato se extingue independentemente de sentença judicial”.
7 Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx (“Estatuto da Cidade”, Editora RT, São Paulo: 2203, p. 167) afirma que “o Estatuto da Cidade, cuidando do direito de superfície, pode ser considerado norma especial, não afetada pela entrada em vigor do novo Código Civil, o qual, nesse ponto de vista, teria tratado da matéria a par das disposições existentes”.
em que o Estatuto da Cidade for omisso). As principais diferenças dessas duas formas de contrato de superfície são as seguintes:
- O Estatuto da Cidade prevê a possibilidade de contratos de superfície por prazo determinado ou indeterminado, enquanto que o Código Civil admite apenas a versão desse pacto por prazo determinado. Assim, o proprietário de um terreno urbano poderá conceder a terceiros o direito de superfície por prazo determinado ou indeterminado, enquanto que no caso de propriedade rural, a concessão desse direito só poderá ser feita por prazo determinado.
- Segundo o Estatuto da Cidade (aplicável a terrenos urbanos), o contrato de superfície abrange o solo, subsolo e o espaço aéreo relativo ao terreno, enquanto que de acordo com o Código Civil (aplicável aos demais terrenos), esse contrato não autoriza obras no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão
Como regra geral, tanto o contrato de superfície como o contrato de locação ou o de arrendamento são instrumentos viáveis para aqueles que não pretendem vender seus terrenos, mas que não querem ou não podem nele construir, plantar ou dar outra aplicação econômica. Porém, o contrato de superfície pode substituir, com algumas vantagens, alguns contratos de locação, principalmente aqueles que tenham por objeto terrenos para fins comerciais ou industriais, por prazo igual ou superior a cinco anos. Nesse caso, a opção pelo contrato de superfície afastaria a possibilidade da renovação compulsória ou automática do contrato – que é um direito assegurado aos locatários e arrendatário, nos casos previstos na lei, e que também gera inúmeros casos de graves prejuízos para os proprietários por conta da lentidão dos processos judiciários. Não se trataria de fraude contra direitos do ocupante do terreno, já que todas essas modalidades contratuais – locação, arrendamento e superfície – estão expressamente previstas na legislação, atribuindo assim aos contratantes o direito de optar por qualquer delas8. A liberdade contratual, que é garantida constitucionalmente9, conferiria inegável validade à opção, ainda que tivesse sido apresentada de forma condicionante ao negócio pelo proprietário. De resto, enquanto o Estado não proporcionar ao cidadão uma Justiça rápida e eficiente, é absolutamente legítimo e lícito a este último procurar, dentre as várias opções contratuais oferecidas na lei, aquela que lhe confere maior rapidez ou rapidez de ação no caso de descumprimento contratual.
XXXXXX XXXXXXXXXX
Mestre em Direito pela PUC/SP e advogado em Santo André
8 A liberdade contratual, conforme doutrina de Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx (“Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos”, Ed. Xxxxx, São Paulo, 2002, p. 24) consiste na “possibilidade de livre disposição de seus interesses pelas partes”, ou seja, na liberdade de “discutir o seu conteúdo”. Essa liberdade encontra limites, dentre os quais as normas de ordem pública. Porém, nesse caso a opção pelo contrato de superfície não poderia ser visto como fraude às normas imperativas da locação ou arrendamento (art. 45 da Lei de Locações e art. 92, § 7º, do Estatuto da Terra), tendo em vista que, havendo multiplicidade de tipos contratuais para a mesma finalidade prática, a escolha de um não pode ser visto como manobra fraudatória (art. 166, VI, do Código Civil), mas sim como uma legítima escolha dentro da liberdade contratual.
9 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, Artigo 170.