O CONTRATO DE TRABALHO DO ATLETA PROFISSIONAL E SUAS IMPLICAÇÕES EM OUTROS RAMOS DO DIREITO(+)
O CONTRATO DE TRABALHO DO ATLETA PROFISSIONAL E SUAS IMPLICAÇÕES EM OUTROS RAMOS DO DIREITO(+)
Xxxx xx Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx(*)
I – Introdução. Na antiguidade, os jogos olímpicos significavam não só um festival para as competições atléticas, realizadas de quatro em quatro anos, de julho a setembro. Eram uma trégua sagrada durante a qual se suspendiam as hostilidades e guerras entre todas as cidades-estados que compunham o mundo helênico, para que todos pudessem praticar ou aplaudir os esportes e a competição sadia entre corpos e mentes. As Olimpíadas eram um desejo de paz, de afirmação dos valores civis sobre os militares. Os competidores não disputavam prêmios ou dinheiro, mas apenas a glória de serem cantados pelos poetas como modelo de cidadão e de herói. Eram um desejo explícito de viver vida sadia, não balizada pelo desejo de possuir e de enriquecer.
Daquelas Olimpíadas aos dias presentes, a prática esportiva continua a ser um fator de aproximação dos povos. Se perdeu em romantismo, ganhou em expressão econômica. Incalculáveis cifras são movimentadas pela indústria que gravita em torno do desporto propriamente dito, bem assim dos espetáculos que se realizam em todas as suas variadas modalidades.
O Direito não se alheou a um fato social de tamanha transcendência.
II – Escorço histórico. No Brasil, que dizem ser “a terra do samba e do futebol”, o disciplinamento do desporto surge, em 1944, durante a ditadura de Xxxxxxx Xxxxxx, por meio do Decreto nº 3.199, de 14 de abril, logo após a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho.
Esse diploma veio a ser revogado pela Lei nº 6.251, de 6 de outubro de 1975, durante o regime militar. Nada obstante, sem modificações de essência.
(+) Conferência de encerramento do Seminário “Il Diritto del Lavoro Sportivo: Comparazione tra Ordinamento Italiano e Brasiliano”, em 03.05.2001, em Roma, Itália, organizado pela Università di Roma “Tor Vergata”.
(*) Advogado no Rio de Janeiro. Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho. Professor de Direito do Trabalho em Curso de Pós-Graduação lato sensu na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Foi Secretário Nacional do Trabalho do Ministério do Trabalho e da Previdência Social, Presidente da Comissão de Modernização da Legislação do Trabalho e primeiro Coordenador Nacional do Subgrupo nº 11 do MERCOSUL (Relações de Trabalho, Emprego e Seguridade Social).
A regulamentação mais técnica e orgânica do trabalho do atleta profissional surgiu apenas em 2 de setembro de 1976, com a Lei nº 6.354, em anteprojeto elaborado pelo emérito jurista Xxxxxxxx xx Xxxxxx Xxxxx.
Embora endereçada à generalidade dos atletas profissionais, esta Lei se centrou, na realidade, no jogador de futebol. Isso se explica pelo fato de, àquela altura, os demais esportes não terem alcançado, no Brasil, popularidade sequer comparável à do futebol, disparadamente “a preferência nacional” – apesar de seu perceptível declínio técnico nos dias de hoje.
A regulamentação dos desportos, com o espectro compreensivo de suas várias modalidades, adveio com a Lei nº 8.672, de 6 de julho de 1993. Seu grande protagonista foi Xxxx, esse notável jogador de futebol, que pôs sua genialidade a serviço do Flamengo e, nos últimos anos de atividade, deslumbrou os tifozi italianos. Na qualidade de Secretário Nacional de Desportos, Zico fomentou o debate nacional, nos meios esportivos, e logrou enfeixar num mesmo texto legal a disciplina dos desportos em geral.
Coube a Pelé, maior jogador de futebol de todos os tempos, ostentando a qualidade de Ministro Extraordinário dos Esportes, propor mudanças na “Lei Zico”, apesar de preservá-la em sua maior parte. A “Lei Pelé” (Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998) vigora até os dias de hoje, com algumas modificações, sendo a mais recente introduzida pela Medida Provisória nº 2.141, de 23 de março de 2001.
Feito esse escorço histórico, uma constatação se impõe: a legislação desportiva sempre considerou regida por contrato de trabalho a relação jurídica entre o atleta profissional e a respectiva associação desportiva. Os atletas profissionais são sujeitos do Direito do Trabalho, submetidos à tutela especial, dada a peculiaridade do trabalho, e à competência jurisdicional da Justiça do Trabalho.
III – Delimitação do tema. Coube-nos um desafio, mais que um tema. Recebemos a árida, porém instigante, incumbência de estabelecer enlaces entre o contrato de trabalho do desportista, em curso de execução, e os demais ramos do Direito. Não se trata, pois, de aferir a autonomia científica do Direito Desportivo. Trata-se, isto sim, de examinar, pelas características imanentes à atividade, as interferências de outras disciplinas jurídicas sobre o contrato de trabalho do desportista. Esse é o tema de nossa exposição.
A necessidade de circunscrever matéria tão vasta e pouco versada leva-nos a enfocar tais correlacionamentos à luz do Direito Brasileiro. E, ainda assim, a algumas interseções, as mais expressivas.
As brilhantes exposições que nos precederam, com precisas abordagens sobre institutos peculiares ao contrato de trabalho do desportista, em muito auxiliam nossa missão.
Passemos ao exame dos principais pontos de contato entre o pacto trabalhista, em plena operatividade, e os demais ramos do Direito.
IV – Direito Constitucional. A primeira implicação do contrato de trabalho do atleta é com o Direito Constitucional, não só pelos direitos sociais elencados nos seus arts. 6º a 11. A Constituição Brasileira de 1988, que é do tipo regulamentarista, trata do desporto em várias passagens:
- quando assegura plena liberdade de associação para fins lícitos (art.
5°, XVII);
- quando garante proteção à reprodução da imagem e voz humanas nas atividades desportivas (art. 5°, XXVIII, alínea a);
- quando prevê a competência concorrente da União, dos Estados e dos Municípios para legislar sobre atividades desportivas (art. 24, IX);
- e, sobretudo, quando estabelece, no art. 217 e seus incisos, que é dever do Estado fomentar as práticas desportivas formais e não formais, como direito individual, assegurando:
a) respeito à organização e funcionamento autônomo das entidades desportivas;
b) destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para o desporto de alto rendimento;
c) tratamento diferenciado entre o desporto profissional e o não profissional;
d) proteção e incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.
Todas estas regras constitucionais têm maior ou menor incidência sobre o contrato de trabalho do atleta profissional e iluminam o intérprete na solução das controvérsias que, em sua execução venham a surgir.
A Constituição Federal institui, em âmbito administrativo, a Justiça Desportiva e estabelece que
“O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei” (art 217, § 1°).
e que
“A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final” (art 217, § 2°).
Questão complexa é definir se estes dispositivos constitucionais pospõem, incondicionalmente, o acesso do desportista à Justiça do Trabalho para dirimir suas divergências, significando o ingresso na Justiça Desportiva na verdade uma condição específica da ação trabalhista.
Está expresso na própria Carta Política que a Justiça do Trabalho, órgão integrante do Poder Judiciário, é competente para
“conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores....” (art 114, da CF),
assim como garantido está o acesso do interessado ao Judiciário para apreciação de não apenas de lesão consumada, mas também de ameaça a direito seu (art. 5º, XXXV), direito oponível a seu empregador e, de conseguinte, introjetado materialmente no âmbito competencial da Justiça do Trabalho.
A interpretação sistemática desses dispositivos resolve a aparente antinomia que deles resulta. A Justiça Desportiva cuida das questões inerentes às regras de competição esportiva, como tal considerada, sem transcender para as repercussões de ordem trabalhista, penal, civil ou de qualquer outra natureza eventualmente resultantes da mesmo fato jurídico.
A postulação judicial do desportista para cobrar de seu empregador a satisfação de salários ou prêmios em atraso ou o adimplemento de qualquer cláusula contratual nada tem que ver com disciplina ou condições esportivas. O crédito ou a obrigação trabalhistas são res inter partes, situando-se a contenda, por óbvio, na competência da Justiça do Trabalho.
A disciplina ou condições esportivas concernem, a nosso ver, à prática do desporto, às condutas que em jogo o atleta, nessa qualidade, tem de seguir e o dever de cumprir os compromissos que a competição impõe à associação desportiva que emprega o atleta. Esse é o âmbito de competência material da Justiça Desportiva.
A expulsão de um jogador da contenda pelo árbitro do jogo, por infringência às regras da competição, não é matéria a ser julgada pela Justiça do Trabalho. O fato gerador é a disciplina esportiva. Já uma suspensão que o clube aplique a seu atleta, por sucessivos atrasos aos treinamentos, refoge à competência da Justiça Desportiva por não versar sobre prática do desporto em competição.
Uma pena aplicada ao atleta por desobediência às regras do jogo ou do campeonato, seja de suspensão temporária, seja de multa pecuniária, não se confunde com ato de indisciplina ou insubordinação praticada diretamente contra seu empregador, que pode ser apenada até com igual suspensão contratual. A primeira, relativa à disciplina na competição, é competência da Justiça Desportiva; a segunda, imanente ao poder disciplinar do empregador por inadimplementos no interior da relação capital/trabalho, se situa na jurisdição da Justiça do Trabalho.
Portanto, em tema de competência a linha divisória é tênue, mas existe, mesmo em hipóteses limítrofes, como a de suspensão do atleta. Tanto o âmbito de atuação da Justiça Desportiva está circunscrita à prática do desporto stricto sensu, às regras do jogo e da competição que a norma infra-constitucional ocupa-se de preservar a eficácia da decisão por ela proferida no campo estritamente desportivo, já que possível a instauração da lide perante o Poder Judiciário. Diz a Lei 9.615/98:
“O recurso ao Poder Judiciário não prejudicará os efeitos desportivos validamente produzidos em conseqüência da decisão proferida por Tribunais de Justiça Desportiva” (Lei 9.615/98, art. 52, § 2°).
Quer isto dizer que a ação proposta no Judiciário para rever o mérito da decisão da Justiça Desportiva não tem efeito suspensivo, nem torna essa decisão nula ou inválida. Por isto mesmo que a decisão administrativa continua a executar-
se e a surtir seus efeitos no campo esportivo. A sentença judicial, quando contrária ao julgado administrativo, há de resolver-se em perdas e danos, como regra, face à impossibilidade o retorno ao status quo ante.
E o que ocorre quando a falta praticada pelo atleta tiver a tipificação de crime, no Direito Penal, se a Justiça Desportiva só tem competência para examinar a infração sob o ponto de vista administrativo, ou disciplinar? As ofensas físicas, como as vias de fato e as lesões corporais, e as ofensas morais, como a calúnia, a injúria e a difamação são apreciadas e punidas com penas administrativas, porque a repressão dos crimes, mesmo nos casos em que a iniciativa da ação seja privada, é
- como sabemos - matéria reservada à jurisdição estatal.
Pelo mesmo motivo, no caso de infrações penais, há inteira independência entre a esfera administrativa e a judicial, não impondo a lei que as ações penais tenham como requisito prévio o esgotamento da instância administrativa.
Outro ponto de conexão do contrato do atleta com o Direito Constitucional é o que diz respeito à liberdade de exercício profissional. Até recentemente vigorava, nos usos e costumes do esporte brasileiro, sobretudo no futebol, a pratica do chamado passe. O passe era o direito da entidade empregadora do atleta de vender a força de trabalho do desportista, à revelia deste. Entendia-se que, mesmo depois de extinta a relação contratual, pelo advento do termo, vigorava, residualmente, o vínculo desportista, do atleta com a entidade que o contratara, e, em razão desse vínculo desportista, o atleta poderia ser cedido ou negociado para outra entidade desportiva, na verdade negociado ou “vendido” a sua revelia.
Como sustentamos em livro, o “passe” é um “mecanismo de atrelamento do jogador à agremiação esportiva que em muito supera a força dos laços contratuais que os ligam. Aproxima-se de um título de propriedade, superficializando a raiz contratual que sustém o negócio jurídico. Esmaecido o contrato como o elo de ligação das partes, o atleta é equiparado a um bem do clube e, como tal, só pode ser cedido para atuar em outra entidade desportiva, provisória ou definitivamente, se esta pagar à empregadora, detentora do “título” (passe), dada importância. É uma operação de compra e venda ou de aluguel, conforme o animus, realizada entre pessoas jurídicas, tendo por objeto um ativo: o jogador de futebol”1.
E concluímos que o passe “é flagrantemente inconstitucional, pois viola o direito fundamental de ir e vir, a dignidade da pessoa humana, assim como a
1 In Instituições de Direito do Trabalho, vol 2., 19ª ed., 2000, Edições LTr, São Paulo, pág. 1032/1033.
liberdade de exercício da profissão (...). No Brasil, essa discussão foi postergada mercê do expediente de se agraciar o atleta coisificado com uma participação de, no mínimo, 15% do montante do passe, devidos e pagos pelo empregador cedente. Dessa forma, deslocou-se o eixo da perquirição científica para se aprofundar questionamentos sobre a natureza jurídica dessa prestação”2
Esta prática lesiva à liberdade do cidadão e à liberdade de profissão foi expressamente revogada em 1998:
“O vínculo desportivo do atleta com a entidade contratante tem natureza acessória ao respectivo vínculo empregatício, dissolvendo-se, para todos os efeitos legais, com o término da vigência do contrato de trabalho” (Lei 9.615/98, art 28, § 2°).
Este dispositivo entrou em vigor em 26 de março de 2001 (art. 93 da mesma Lei). A partir dessa data, a cessão do atleta para outra entidade desportiva só será possível durante a vigência do contrato de trabalho e com a expressa concordância do profissional desportista. Vale dizer: negócio jurídico bilateral, escoimado da eiva de inconstitucionalidade que maculava o passe.3
Uma terceira implicação constitucional é com a proteção da imagem. A Constituição Brasileira assegura proteção à reprodução da imagem e voz humanas nas atividades desportivas (art. 5°, XXVIII, letra a). O bem jurídico protegido é o direito individual do cidadão atleta de não ter sua imagem propagada pelo rádio e a TV, a sua revelia.
Não se trata de uma proteção à intimidade porque as competições desportivas se desenvolvem sob as vistas do grande público. Trata-se antes de uma proteção patrimonial. A garantia ao atleta de participar dos resultados da venda das transmissões das partidas. É o chamado “direito de arena”. A “Lei Pelé” estabelece que pertence às entidades de prática desportiva
“o direito de negociar, autorizar e proibir a fixação, a transmissão ou retransmissão de imagem de espetáculo ou eventos desportivos de que participem” (Lei 9.615/98, art. 42)
2 Idem, ibidem, pág. 1033.
3 As entidades desportivas tiveram força suficiente junto ao Poder Legislativo para fazer aprovar a Lei 9.981, de 14 de julho de 2000, que deu nova redação ao art. 93 da Lei 9.615/98, para estabelecer que “o disposto no art. 28, § 2°... somente produzirá efeitos jurídicos a partir de 26 de março de 2001, respeitados os direitos adquiridos decorrentes dos contratos de trabalho e vínculos desportivos de atletas profissionais pactuados com base na legislação anterior”. Todo problema está em que, se a prática não era legal, e feria o Direito Constitucional, não há que falar em “direito adquirido”.
Portanto, a legitimação para autorizar a veiculação da imagem é do empregador, porque se trata de uma competição na qual a equipe participa. Mas, em contrapartida, a entidade desportiva fica obrigada a pagar a seu atleta importância nunca inferior a 20% da renda decorrente da comercialização de sua imagem na competição.
Uma quarta relação é com o direito de ir e vir. Pelo contrato-tipo imposto pelo Estado, o atleta profissional assume perante o empregador a seguinte obrigação:
“Não se ausentar do País sem autorização escrita da empregadora, para o que, pelo presente, o empregado autoriza à empregadora comunicar às autoridades competentes a vigência desta cláusula, para o efeito de não lhe ser concedido passaporte ou salvo conduto, sem que exiba a aludida autorização...”
(Contrato Padrão, cláusula quarta, item 8 – Modelo aprovado pela Portaria 106, de 14 de outub/98).
A cláusula, tal como posta no contrato padrão, é nula. Inominável violência impor ao atleta a renúncia a um direito irrenunciável e fundamental do cidadão, que é o direito de ir e vir. Dispositivo desse jaez, redigido por autoridades administrativas e imposto a entidades de direito privado, não tem eficácia para invalidar cláusula pétrea da Constituição que assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a “livre locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens” (art. 5°, XV) !
Finalmente, uma quinta relação, esta com o direito de ampla defesa, nos procedimentos administrativos. A Lei 9.615/98 diz que os órgãos da Justiça Desportiva são competentes para processar e julgar, em duplo grau de jurisdição,
“as questões de descumprimento de normas relativas à disciplina e às competições desportivas, sempre assegurados a ampla defesa e o contraditório” (art. 52). É, a repetição da regra constitucional de que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (Constituição, art. 5°, inciso LV).
I I – D I R E I T O C I V I L
Historicamente, o Direito do Trabalho é um desdobramento do Direito Civil. Em razão disso, o contrato de trabalho tem de ter uma ligação ampla e profunda
com o Direito Civil. É também no Direito Comum que se encontram as noções fundamentais necessárias à aplicação do Direito Desportivo, o que produz entre eles mútua interação.
São freqüentes no contrato de trabalho as situações que envolvem conceitos do Direito comum: requisitos do ato jurídico, caso fortuito e força maior, abuso de direito, fraude à lei, nulidade, prescrição, exceção de inadimplemento, obrigação principal e obrigação acessória, obrigação a termo e obrigação sob condição, para referir apenas alguns institutos presentes no dia a dia da execução contratual.
Um exemplo dessa inter-conexão: a Lei nº 9.615/98 sanciona a entidade de prática desportiva que atrasar o pagamento dos salários do atleta, no todo ou em parte.
Se a mora exceder a três meses, dá-se ope legis a rescisão do contrato de trabalho do atleta, ficando este livre para celebrar novo contrato com qualquer outra agremiação da mesma modalidade desportiva, e exigir a multa rescisória e os haveres (art. 31).
Quando a mora não atinge tal duração e, portanto, gravidade, prevê a lei o exercício do jus resistentiae pelo atleta, que pode, legitimamente, se recusar de participar de qualquer competição pela sua entidade desportiva empregadora (art. 32).
Ambas as previsões nutrem-se de fundamento no Direito Comum. Nele se encontram os princípios contratuais relativos ao pagamento: a prestação tem de ser a convencionada, abranger toda a dívida, e ter cumprimento no lugar e na forma convencionados, sob pena de inadimplemento. Sendo que o inadimplemento, por sua vez, dá ao credor o direito de considerar rescindido o contrato e exigir perdas e danos (Cód Civil, art. 1056). De igual modo, nos contratos sinalagmáticos não é lícito ao contratante exigir a execução das obrigações da outra parte quando não executou as suas. Trata-se da exceptio non adimpleti contractus (Cód. Civil, art. 1.092).
Mas ao relacionar o Direito Desportivo com o Direito Comum na execução do contrato de trabalho, o que ressalta em primeiro plano é que toda a teoria do geral dos contratos, vigente no Direito Comum, foi profundamente subvertida nas normas legais que regulamentam o esporte.
Em tempos passados, o esporte no Brasil e, sobretudo o futebol, era uma atividade de puro lazer e, por isto mesmo, confinada a pessoas com poder aquisitivo, para o lazer organizado em clubes. Hoje, o esporte é uma atividade de massa, um empreendimento comercial globalizado, que transforma aficionados em uma imensidão de consumidores, graças ao marketing que se faz em torno dos ídolos dos diversos esportes. O contrato de trabalho do atleta propicia, assim, o surgimento de um feixe de contratos autônomos, mas dependentes do êxito da carreira desportista do atleta.
O fato inegável é que o esporte movimenta cifras impressionantes e até inclui motivações políticas, como ocorreu quando países comunistas disputavam campeonatos no exterior. E mesmo no caso dos países ditos democráticos o esporte de massa é capaz de mexer profundamente com as paixões e o imaginário popular, tendo suas inegáveis implicações políticas.
Seja como for, o fato é que, hoje, de um lado, há o interesse inegável do Estado de exercer certo dirigismo nas atividades do esporte de rendimento, em face dos enormes interesses envolvidos. E, de outro lado, há a necessidade de proteger o atleta, sobretudo os muitos que não alcançam o estrelado da fama, contra determinadas atitudes patronais, que o Direito deve repelir.
Assim, o princípio da autonomia da vontade individual está extraordinariamente limitado, no Direito Desportista. E disso dá exemplo a “Lei Pelé” (Lei 9.615/98) quando afirma:
“Atletas e entidades de prática desportiva são livres para organizar a atividade profissional [do desportista] qualquer que seja sua modalidade, respeitados os termos desta Lei” (art. 36).
Esse dispositivo deixa entrever que o contrato do atleta profissional não absorve o princípio da liberdade de contratação pelas partes, pois é erigido sobre o intervencionismo básico estatal. Neste sentido, define que:
a) Só poderão participar de competição entre profissionais os atletas em formação com idade superior a dezesseis anos (Lei 9.615/98, art 36, § 2°);
b) Ao completar dezoito anos de idade, o atleta em formação deverá ser obrigatoriamente profissionalizado, sob pena de voltar à condição de amador, ficando impedido de participar de competições entre profissionais (Lei 9.615/98, art 36, § 3°);
c) O contrato deverá conter obrigatoriamente cláusula penal para as hipóteses de descumprimento, rompimento ou rescisão unilateral (art. 28, caput), cujo valor será livremente convencionado mas não poderá exceder a cem vezes o valor da remuneração anual pactuada (art. 28, § 3°). A ausência dessa cláusula penal torna nulo o contrato e impede seu registro na entidade compete,4 enquanto que, no Direito Comum, a estipulação de cláusula penal fica ao arbítrio das partes (Cód Civil, art. 916);
d) É obrigação do atleta firmar seu primeiro contrato de trabalho com a entidade de prática desportiva que investiu na sua formação: a entidade de prática formadora do atleta terá o direito de assinar com este o primeiro contrato de profissional, cujo prazo não poderá ser superior a cinco anos
(art. 29, ex vi da Medida Provisória 2.141, de 23.03.01);
e) Além disto, a mesma entidade detentora deste primeiro contrato, terá direito de preferência, em igualdade de condições, para a primeira renovação desse contrato, sendo-lhe facultada a cessão desse direito a terceiros, mediante remuneração ou não (art. 36, § 4°);
f) É repelido o princípio da continuidade dos contratos, inerente ao Direito do Trabalho: “o contrato de trabalho do atleta profissional terá prazo determinado, com vigência nunca inferior a três meses” (art. 30) 5;
g) O atraso no pagamento dos salários, aí incluídas as férias, o décimo terceiro salário, as gratificações, os prêmios e demais verbas contratuais, não dá ao atleta a faculdade de retirar-se do contrato, mas impõe coercitivamente a rescisão do contrato, cabendo ao atleta o direito de exigir a multa rescisória e os haveres trabalhistas (art. 31).
Seguem-se muitas outras regras limitadoras do direito de contratar. E, ao final, quando seria de supor que a lei teria esgotado o elenco de medidas restritivas à livre contratação, contata-se que se está diante de algo mais rígido que um contrato regrado: O contrato de trabalho tanto do atleta profissional como do atleta semiprofissional obedecerão a modelo padrão, constante da regulamentação desta Lei.
4 Dardeau de Xxxxxxxx, Comentários à Lei sobre Desportos, ed. Destaque, Rio, 2000, pág. 94
5 Posteriormente, pela Medida Provisória n° 2.011/00 alterou-se a regra para: “nunca inferior a três meses, nem superior a seis anos”. Finalmente, pela Lei 9.981, de 14 de julho/2000, nova alteração: “nunca inferior a três meses nem superior a cinco anos”.
O contrato padrão aprovado pelo Estado, para as duas hipóteses, é detalhado e minucioso. Não deixa sequer às partes o direito de incluir cláusulas adicionais ou complementares, de seu mútuo interesse. É o texto padrão, ou nada. Temos, assim, que os contratos de trabalho dos atletas não são apenas contratos regrados mas - muito mais que isto – são contratos padronizados pelo Estado. São contratos de adesão, ditados pelo Estado e impostos por este à vontade das partes.
Não questionamos aqui a necessidade ou conveniência de que assim seja, para o bem do esporte. Estamos apenas registrando a implicação dessa gênese contratual no âmbito do Direito Comum. Mas não deixa de ser difícil harmonizar esta interferência minuciosa com a garantia constitucional de que o Estado não se imiscui na organização e funcionamento autônomos das entidades desportivas (Constituição, art. 217, I) e estimula outros direitos sociais que visem a melhoria da condição social do empregado (Constituição, art. 7º, caput).
Outra implicação do contrato do atleta com o Direito Civil ou, mais precisamente, com o Direito do Consumidor é que a Lei brasileira dos desportos dispõe que
“O espectador pagante, por qualquer meio, de espetáculo ou evento desportivo equipara-se, para todos os efeitos legais, ao consumidor, nos termos do art. 2° da Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990”. (Lei 9.615/98, art 42, § 3º).
Significa dizer que:
a) o espectador que pagar ingresso a uma partida, se esta for postergada ou cancelada, ou se por qualquer modo o evento não se realizar nas condições anunciadas, por fato imputável ao fornecedor do serviço, o espectador ou consumidor tem o direito de exigir a restituição imediata da quantia paga, sem prejuízo de eventuais perdas e danos (Lei 8.078/90, art. 18, II);
b) tem direito igualmente a indenização por eventuais danos que vier a sofrer, no decorrer do espetáculo, por defeitos do sistema de segurança, ou decorrentes de atos de violência das torcidas (Lei 8.078/90, art. 17).
Parece-nos também que iguais direitos a restituição e a eventuais perdas e danos tem o consumidor que paga para ver a transmissão da partida pelas emissoras de TV que adotem o sistema pay per view, se estas não cumprem o prometido porque o dia, ou hora da partida foram alterados, ou cancelado o próprio espetáculo. Porque terão vendido um produto que não tiveram condição de entregar ao consumidor. Todavia, esta hipótese se tornou mais remota, em face da Lei nº 9.981, de 14 de julho de 2000, que acrescentou o art. 84-A à Lei nº 9.615/98, para determinar que “Todos os jogos das seleções brasileiras de futebol, em competições oficiais, deverão ser exibidos, pelo menos, em uma rede nacional de televisão aberta, com retransmissão ao vivo, inclusive para as cidades brasileiras nas quais os mesmos estejam sendo realizados”. Com isto, os serviços de pay per view se tornam de ocorrência muito mais rara.
Um último registro, neste capítulo: a extinção do passe, isto é, do instrumento que transformava o atleta profissional em um ativo de propriedade da entidade de prática desportiva.
Por isso, a relação jurídica entre as partes, centrada no passe do jogador, fundamentava o direito da entidade de prática desportiva vender o atleta – um bem
– para outra entidade, à revelia deste. A Lei nº 9.615/98, com tardança, extinguiu essa situação espúria, que, de fato, escravizava os atletas, mesmo depois de vencido o prazo do contrato. Representou importante inovação desta lei estabelecer que:
a) o vínculo desportivo do atleta com a entidade contratante têm natureza ancilar do contrato de trabalho. Dessa forma, cessando o vínculo de emprego, cessa, por nexo de causalidade, o vínculo desportivo (art. 28, § 2º). É a aplicação do art. 59 do Código Civil, segundo o qual: “... a coisa acessória segue a principal”;
b) a cessão ou transferência do atleta, implicando novação contratual, dependerá sempre da formal e expressa anuência do profissional e só se dará enquanto vigente o contrato de trabalho (não depois que o contrato se exaurir);
c) vencido o prazo contratual com a entidade desportista, o atleta é livre para contratar seus serviços com qualquer outra entidade (art. 38); e,
d) isenta a cessão de taxa a ser cobrada pela entidade de administração.
Vale dizer, a transferência do atleta entre agremiações é válida. Mas, agora, com a substanciação contratual do vínculo, a cessão depende da manifestação de vontade do atleta, que pode exigir participação na vantagem financeira que o clube cedente vier a obter para ceder o desportista a outra entidade.
Além disso, foi extinto o chamado vínculo desportista residual, que até então mantinha o atleta vinculado à entidade desportista, mesmo depois de esgotado o prazo de seu contrato de trabalho, impedindo-o de contratar com outra entidade, enquanto não obtivesse o atestado liberatório do ex-empregador.
Sob o fundamento de que “os clubes formadores investem nos atletas, concedendo-lhes, entre outros benefícios, educação, alimentação, assistência médica e odontológica, transporte, ajuda de custo, material desportivo e pagamento de corpo técnico administrativo, daí a imperiosidade de garantir-se o retorno econômico dos gastos de formação e promoção”6, a recentíssima Medida Provisória n° 2.141, de 23.03.01, manteve, em parte, aquelas regras jurídicas, ao classificar os atletas em duas categorias: os de primeiro contrato e os de contratos posteriores.
Quanto os atletas de contratos posteriores ao primeiro, valem as regras já anteriormente referidas, nas letras a a e, supra.
Para os atletas semiprofissionais, que celebrarem seu primeiro contrato profissional, a recentíssima alteração legislativa:
a) preservou o direito da entidade de prática desportiva de assinar com o atleta o seu primeiro contrato, a partir dos 16 anos de idade, como forma de compensá-la dos investimentos feitos durante sua fase de formação. Mas, adicionalmente, aumentou de dois para cinco anos o prazo desse contrato. O atleta de primeiro contrato fica obrigado, assim, por um contrato cujo prazo é mais que dobrado em relação ao previsto originalmente, na Lei 9.615/98;
b) acrescentou que somente essas entidades formadoras, ao venderem o passe do atleta, poderão exigir indenização compensatória do novo empregador, mesmo depois de vencido o prazo contratual máximo de cinco anos. Sendo que essa compensação ou indenização não poderá exceder a duzentas vezes a remuneração anual do atleta, nem poderá acumular-se com a cláusula penal;
6 São as palavras textuais contidas na Exposição de Motivos do Ministro de Estado do Esporte e Turismo, que acompanhou o projeto da referida Medida Provisória.
c) manteve o chamado vínculo residual ou desportivo, após vencido o prazo contratual, mas limitou-o ao prazo de seis meses, e obrigou a entidade de prática desportiva a continuar a pagar os salários do atleta, durante esse prazo, sendo que essa despesa, chamada de promoção, será também cobrada como indenização compensatória da nova entidade contratante do atleta.
Como a matéria é polêmica, os interesses são poderosos e a facilidade de baixar Medidas Provisórias é grande – resta-nos aguardar que novas surpresas virão sobre a matéria. O fato é que a limitação imposta ao atleta de primeiro contrato reacende a controvérsia sobre a constitucionalidade do “passe”, ainda que de forma mitigada. Os valores em jogo são os mesmos. A redução do tempo de transgressão das garantias constitucionais não valida a nova modalidade de atrelamento do atleta à entidade de prática de desporto.
I I I – DIREITO TRIBUTÁRIO
Segundo a doutrina assente no Direito Tributário e entendimento também pacífico na Justiça do Trabalho, estão sujeitas à incidência do imposto de renda as importâncias recebidas em decorrência do contrato de trabalho, com caráter remuneratório, e isentas de tributação as parcelas tipicamente indenizatórias.
Dentro desta linha, podemos dizer que:
I - são remuneratórias, no contrato de trabalho do atleta profissional, e, por isso, sujeitas à tributação: a importância contratada como salário mensal, bem como férias, abono de férias, décimo terceiro salário, as gratificações, os prêmios e demais verbas inclusas no contrato de trabalho (Lei 9.615/98, art. 31 e § 1°), entendendo-se estas últimas como: as luvas (cláusula 3 do contrato padrão); os prêmios ou “bicho” (cláusula 3 do contrato padrão); a importância correspondente a 20%, como mínimo, dos direitos de arena, ou seja, o direito de receber pelo menos 20% do preço da venda dos direitos da transmissão da partida pelas estações de rádio e TV por parte das entidades de prática desportiva (clausula 3 do contrato padrão).
II – Não tem natureza remuneratória, mas indenizatória, e, assim, é isenta de tributação: a multa rescisória (prevista na Lei 9.615/98, art.
31 e § 3°). É o que se conclui não só da natureza da receita como das disposições legais brasileiras sobre imposto de renda, que excluí do cômputo do rendimento bruto “a indenização destinada a reparar danos patrimoniais em virtude de rescisão de contrato” (Lei n° 9.430/96, c/c Dec. 3000/99, art. 39, XVIII).
Entre uma e outra parcelas, situada numa espécie de zona gris, fica a importância percebida pela participação do atleta nos direitos de cessão. Parece que a resposta sobre se essa parcela é ou não tributável está em saber se a participação do atleta nos direitos da venda de seu passe é remuneratória ou indenizatória.
A matéria não está pacificada7. Propendemos a concluir que, para o atleta, não há dano ou indenização a ser paga, no caso de cessão. A cessão, depois da Lei 9.615/98, só adquire efetividade com a concordância do empregado. Logo, é de presumir-se que a cessão só ocorre quando não lhe for prejudicial, ou quando for também de seu interesse. Portanto, não há o dano ou perda a ser indenizada ao atleta. Trata-se, pois, de renda, de aumento patrimonial, e não de indenização, e, como tal, sujeita a tributação.
Estas noções se referem aos rendimentos do atleta, percebidos no Brasil. Mas, quando o atleta se ausenta, por convite ou por cessão temporária, para participar de competições no exterior, qual o regime tributário aplicável aos rendimentos percebidos de fonte no exterior ?
Trata-se de matéria sujeita ao que dispuserem as convenções bilaterais destinadas a evitar a bitributação. No geral, estas convenções adotam o princípio da tributação no país onde o rendimento é percebido e seguem o modelo de convenção elaborado pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O Brasil possui várias convenções internacionais com diversos países, inclusive a Itália8
No caso dos artistas e atletas, no dizer do grande tributarista Xxxxxxx Xxxxxx, são tributados
“no Estado em que as atividades forem exercidas – Estado da fonte – os rendimentos obtidos pelos profissionais de espetáculo, tais como artistas de teatro, de cinema, de rádio ou de televisão e músicos, bem como os dos atletas, pelo exercício nessa qualidade de suas atividades pessoais.
7 Cf. Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxx, O Atleta Profissional do Futebol em face da “Lei Pelé”, in Revista do TRT da 3ª Região, n° 60, jul/dezemb-99, pp 159-161.
8 Decreto Legislativo 77/79 e o Decreto nº 85.985/81 e Portarias 203/81 e 226/84.
Pouco importa que as pessoas em causa exerçam a profissão em termos dependentes ou de independência. ... tais pessoas não podem invocar insenção baseada no fato de não terem no Estado em que exercem a atividade, estabelecimento permanente ou de nele permanecerem menos de 183 dias...” 9
Às vezes surgem problemas mais complexos decorrente da qualificação do rendimento percebido. Assim, se o rendimento se refere a prêmios ou participações vinculados à realização da partida no exterior, não há dúvida de que a tributação envolverá todo o rendimento a este título recebido no exterior. Mas, no caso do salário mensal percebido da entidade de prática desportiva, o Estado onde a atividade foi exercida só poderá tributar a proporção do salário referente a cada exibição10
IV – DIREITO PENAL
Os pontos de eventual conexão do contrato de trabalho do profissional do esporte com o Direito Penal são também muitas e variadas. Praticamente, todos os atos ilícitos tipificados como crime, pelo Direito Penal, podem se configurar no âmbito das relações desportistas: lesão corporal, suborno, corrupção, concussão, prevaricação, falsidade documental, falso testemunho, obstrução da justiça desportiva, usurpação de função, denunciação caluniosa, etc. Basta correr os olhos no Código Brasileiro de Justiça Disciplinar Desportiva – CBJDD e no correspondente Código Brasileiro Disciplinar do Futebol - CBDF para logo observar essa correlação extensa e profunda entre Direito Desportivo e Direito Penal.
Mas, como visto, a competência da Justiça Desportiva é restrita aos casos de disciplina e competições desportivas, compreendidas nas diretivas dos órgãos de administração do esporte.
De igual forma, a Justiça do Trabalho é competente para dizer da repercussão da falta praticada sobre o contrato de trabalho, não a apreciando como uma conduta criminosa – carece-lhe competência – mas sob o prisma da justa causa autorizativa da ruptura do contrato pelo empregador.11
Assim, sempre que a falta cometida esteja também tipificada como crime, no Direito Penal, a competência da Justiça Desportiva esgota-se no exame da infração sob o prisma administrativo, ou disciplinar, punindo o atleta, se for o caso, apenas
9 Xxxxxxx Xxxxxx, Direito Tributário Internacional no Brasil, Forense, Rio de Janeiro, 3ª ed, 1994, pp 455-456
10 idem, ibidem
11 Art. 482 da Consolidação das Leis do Trabalho
com sanções de ordem administrativa: multas pecuniárias, suspensões por partida ou a termo etc. A repressão dos crimes, mesmo nos casos em que a iniciativa da ação seja privada, é matéria reservada ao Estado.
À Justiça do Trabalho compete apreciar o mesmo ato faltoso, porém sob o ângulo do exercício regular do poder disciplinar do empregador.
Portanto, as esferas administrativa e judicial têm inteira independência entre si. Não impõe a lei que as ações penais tenham por requisito prévio o esgotamento da instância administrativa, a exemplo do que faz nos casos puramente disciplinares ou de competição, circunscritas ao certame esportivo. De igual forma, o enquadramento do ato faltoso como crime, não implica necessariamente caracterização de justa causa pelo atleta empregado. Duas repercussões, no entanto, existem entre as esferas penal e trabalhista:
1ª - quando o juízo criminal concluir pela negativa de autoria ou pela caracterização de causa excludente da responsabilidade criminal, como é o caso da legítima defesa, própria ou de terceiros12. Nessas hipóteses, o ilícito trabalhista perde sustentação;
2ª - quando houver condenação criminal transitada em julgado, com pena de privativa de liberdade do autor. Nessa hipótese, a justa causa se configura não pela caracterização do crime em si, mas pela impossibilidade de o atleta executar suas obrigações contratuais.
Queremos encerrar este capítulo e esta nossa exposição com o exame da questão do doping, como tal entendido “a substância, o agente ou o meio capaz de alterar o desempenho do atleta por ocasião de competição desportiva” (Portaria 531/85, do MEC, art. 1°).
A dopagem consiste em alguém ministrar ao atleta, ou ele usar ou ministrar a si próprio, substância, agente, ou meio capaz de alterar artificialmente seu desempenho na competição em que participar.
Ora, a finalidade do esporte é desenvolver uma mente sã num corpo são e toda competição desportiva visa a medir a arte com que cada desportista é capaz de
12 As alíneas “j” e “k” do art. 482 da CLT caracterizam como justa causa, praticada pelo empregado, o ato lesivo da honra e boa fama ou ofensas físicas praticadas contra superiores hierárquicos ou em serviço, contra qualquer pessoa, “salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem”
desempenhar o esporte em que se especializou. Não há verdadeira competição desportiva sem lealdade, sem jogo limpo.
A dopagem é o contrário de tudo isto: visa a alterar por estímulos artificiais e desleais essa capacidade, ou seja, visa a fraudar o resultado normal da competição, frustrando a expectativas dos competidores e do público.
Ademais, as substâncias usadas na dopagem têm sabidamente efeitos colaterais altamente prejudiciais à saúde dos atletas.
Por tudo isto, a dopagem submete-se a rígidos controles pelas entidades desportistas. Esse controle é feito mediante o exame de urina do atleta escolhido por sorteio ou indicação médica. E “nenhum atleta que tenha jogado a partida, no todo ou em parte, poderá ausentar-se do vestiário antes da comunicação do sorteio poderá retirar-se antes da comunicação do sorteio ou da indicação, sob pena de ser considerado dopado” (Portaria 531/85, art 8°, § 3°).
O atleta que comprovadamente tiver disputado partida sob o efeito de doping será punido com suspensão de 120 a 360 dias e eliminação, no caso de reincidência (Portaria 531/85, art 35, caput).
De igual modo, a entidade desportiva também será punida com pesadas multas e perda da renda da partida, em favor do adversário (Portaria 531/85, art 8°,
§§ 1° e 2°).
Pois bem, não obstante toda essa vigilância e todo este rigor punitivo, fato é que, pelos poderosos interesses econômicos envolvidos ou pela vaidade dos atletas, a praga da dopagem grassa.
Cogita-se, então, se – além das punições administrativas a que está sujeita – estaria a prática da dopagem tipificada como crime no ordenamento jurídico brasileiro.
Poder-se-ia tentar enquadrá-la como estelionato, que consiste em “obter,
para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”, com pena de reclusão de 1 a 5 anos. (CP, art. 171).
A dopagem reúne vários elementos: a obtenção da vantagem ilícita, o prejuízo alheio, a manutenção da outra parte em erro, mediante artifício ou fraude etc. Mas contra este enquadramento há o fato de que:
a) o estelionato, embora fundamente-se na obtenção de uma genérica vantagem ilícita (o que levaria a supor que estaria aí incluída qualquer vantagem, mesmo puramente intelectual ou honorífica, desde que ilícita), está classificado entre os crimes contra o patrimônio, e a dopagem pode não resultar em vantagem patrimonial, mas apenas no prazer ou vaidade da vitória;
b) no estelionato, é de rigor que a vitima seja determinada. Não há estelionato, no sentido técnico do Direito Penal, contra sujeito passivo indeterminado. Quando o dano é causado a sujeito passivo indeterminado, o crime é contra a economia popular (Lei 1.521/51, art 2°, IX), o que também não se aplica à dopagem, por outras razões.
Assim, a resposta tem sido negativa: “É óbvio que a fraude praticada no esporte não tira o caráter criminal do fato, todavia não pode ser ela tida como patrimonial, sob o nomen juris de estelionato” 13.
Impróprio também tentar enquadrar a dopagem como crime em face da Lei dos Tóxicos (Lei 6.368/76). Este regramento visa primordialmente à prevenção e repressão das drogas causadoras de dependência, e não ao dano material ou à saúde, que estas possam causar eventualmente a seus usuários e espectadores desportistas.
Em síntese, ainda não há em nosso ordenamento jurídico disposição legal em que se possa, com adequada técnica e inteira segurança, enquadrar a prática da dopagem. Mas, pela gravidade, está evidente que não bastam medidas de repressão disciplinar ou administrativa. Há que se cuidar da matéria de lege ferenda.
Essas são, a nosso ver, as principais inter-relações do contrato de trabalho do atleta profissional com os demais ramos do Direito.
Rio de Janeiro, 27 de abril de 2001. Xxxx xx Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx
13 Xxxxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx, Doping: Aspectos Penais, Rio de Janeiro, Lumen Juris, p 76. A autora afirma que a fraude “não tira o caráter criminal do fato”. Talvez uma simples impropriedade de expressão porque, em sua monografia, não tipificou o fato como crime. Não encontrou lei em que pudesse enquadrar o fato como crime. Portanto a dopagem é um fato moralmente inaceitável mas não pode ter caráter criminal. Juridicamente, não há crime sem lei anterior que o defina.