Contratos Administrativos Inválidos:
Contratos Administrativos Inválidos:
A Remuneração e o Processo de Ajuste de Contas
Aniello dos Reis Parziale
Advogado, membro da Consultoria NDJ
Xxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx
Advogado, Mestre em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos
1. Introdução
Um dos problemas de solução pouco difundi- da no âmbito da Administração Pública é a remu- neração por inadimplemento habitual causado pela insegurança do administrador público diante de um contrato administrativo inválido. Embora a gestão pública esteja evoluindo dia após dia, há situações que ainda geram a paralisia dos gesto- res quando se deparam com tais vícios no contra- to administrativo que acabam levando o contrata- do a buscar por respostas jurisdicionais distantes, tendo em vista a omissão da Administração Públi- ca no regular pagamento do objeto prestado.
Isso gera inúmeros dissabores para estes credores e para a própria Administração Pública. Mais, ainda: cria-se uma quebra de confiança e, conseqüentemente, dificuldades nas aquisições pelos órgãos públicos, que são vistos como maus pagadores e inadimplentes contumazes. Por ou- tro lado, o não-pagamento de obrigações ofende o dever de lealdade, a boa-fé, a justiça e outros valores correlatos. A relação entre a Administra- ção Pública e os potenciais interessados em ven- der àquela fica comprometida. Como resultado, os preços ofertados acabam tornando-se mais elevados, pois o risco do inadimplemento é embu- tido nas propostas dos licitantes. O número de interessados em contratar com a Administração Pública não é tão grande quanto poderia ser. Ou- trossim, em alguns Municípios menores há, ain- da, a questão da vindita política, que agrava as dificuldades mencionadas.
Outros administradores pretendem, ainda, extrair alguma vantagem na procrastinação dos pagamentos, como se essa atitude fosse gerar algum benefício aos cofres públicos. Alice Maria Gonzalez Borges1 afirma que, “(...) em frontal vio- lação a tão valiosos princípios, freqüentemente entendem Administrações mal orientadas, ou orientadas por princípios válidos para as empre- sas privadas, na filosofia da busca de resultados ora dominante no país por força da globalização, que é bom, é salutar, é válido, tirar o máximo de vantagens nas relações jurídicas com os adminis- trados, embora até violando-se o anteriormente pactuado com os mesmos. Consectária dessa concepção equivocada e antiética, é a postura dos órgãos jurídicos administrativos, no sentido de utilizarem todos os meios processuais a seu alcance, esgotarem toda a pletora de recursos ainda previstos em nossas leis, para escusarem- se ao cumprimento de obrigações que de ante- mão sabem ser perfeitamente legítimas”.
Não há mais espaço para o despreparo na Administração Pública. Os contratados não po- dem ser prejudicados em razão de preceitos ma- liciosamente invocados. Mesmo os ajustes inváli- dos, mas de boa-fé em ambas as direções (do administrado para o administrador e do adminis- trador para o administrado), devem ser satisfeitos.
A prestação ofertada à Administração Pública precisa ser justamente remunerada por meio da devida contraprestação, com vista ao equilíbrio de forças da circulação econômica de bens ou
1.”Valores a serem considerados no controle jurisdicional da Administração Pública: segurança jurídica – Boa-fé – Conceitos indeterminados – Interesse público”, em Temas do Direito Público Atual – Estudos e Pareceres, Belo Horizon- te, Fórum, 2004, p. 253.
serviços, não sendo possível admitir o enriqueci- mento sem causa, pois interesse público não há no inadimplemento. Não há argumento que possa prevalecer diante da prestação devidamente cum- prida, salvo se por má-fé, como se verá adiante.
Há, também, administradores públicos que se deparam com uma espécie de herança provoca- da pelos antecessores que, em muitos casos, não quitaram os compromissos assumidos com intuitos vários. Essa transferência da responsabi- lidade de um pagamento que deveria ter sido feito ao seu tempo provoca dúvidas e titubeações para o adimplemento, causando uma série de desconfortos e insegurança em relação à própria Administração Pública, que passa a ser compreen- dida, conforme já dito, como má pagadora habi- tual.
Reste claro que o expediente sob análise não tem o condão de criar um novo direito ou permitir a continuidade da execução de um ajuste ilegal. Não se trata de abordagem relacionada ao institu- to da convalidação. A análise do processo admi- nistrativo e os respectivos fundamentos para o pagamento visam apenas ao reconhecimento de uma prestação ofertada pelo contratado, cuja contraprestação não foi devidamente saldada. Busca-se, com o expediente objeto deste traba- lho, a apreciação do ajuste de contas entre a Administração e o particular, em que se pagará o devido, sob pena de locupletamento ilícito, encerrando-se, ali, aquela situação irregular.
Não objetiva este estudo, repita-se, estabele- cer um caminho para que contratações inválidas sejam devidamente saneadas no âmbito admi- nistrativo, consolidando, em grande estilo, a impu- nidade.
Como bem asseverou Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxx, apud Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx,2 “o ‘ter- mo de ajuste de contas’ não pode ser utilizado como tábua de salvação para todos os males, devendo ser reservado apenas às hipóteses em que o bem foi oferecido em situação de urgência”.
Pelo contrário, este artigo tem como fito, além de demonstrar uma forma de pagamento para os contratos inválidos, claramente esposar que a inobservância das normas relacionadas à execu-
ção da despesa pública, conseqüentemente, de- sencadeará um processo administrativo discipli- nar, levando o servidor público que agiu de manei- ra irregular a ser devidamente responsabilizado, na forma da lei.
Ante tais conseqüências, observar-se-á que o adequado é movimentar a máquina administra- tiva a fim de instaurar a competente licitação, mesmo que o peso da burocracia desestimule a sua prática, instaurando-se os competentes pro- cessos administrativos, observando-se, ademais, os contornos legais durante a execução do ajuste, a fim de que as despesas se revistam de legalida- de, sendo o último caso promover o ajuste de contas para o adimplemento de obrigações em aberto em razão de irregularidades procedimen- tais e contratuais.
Dessa forma, essas linhas têm o escopo de auxiliar os gestores públicos nessa árdua tarefa de recompor o equilíbrio entre contratantes e con- tratados, prestadores e tomadores, evitando-se, com isso, uma situação de ilicitude e injustiça.
Por fim, como contrato inválido considerar- se-ão os ajustes sem a observância das formali- dades legais, seja no aspecto formal, seja no aspecto material.
2. Reconhecimento de dívida proveniente de uma contratação inválida
Durante a gestão administrativa, em que a Administração Pública se relaciona com particu- lares, buscando o fornecimento de bens ou a prestação de serviços necessários a fim de per- seguir seus objetivos institucionais, podem ocor- rer situações em que a realização de uma despe- sa não receba o suporte de um contrato adminis- trativo, ou do instrumento equivalente, na forma do art. 62 da Lei federal nº 8.666/93, válido.
Podem ser ilustradas diversas situações que têm a possibilidade de invalidar o ajuste, como, por exemplo, a aquisição de um bem ou contra- tação de um serviço sem a competente licitação, ou celebração de contrato ou instrumento equi- valente; realização de serviços extraordinários aos regularmente contratados ou de acréscimos quantitativos que superem os limites fixados no
§ 1º do art. 65 da Lei nº 8.666/93, dentre outros.
2. Direito Administrativo Contratual, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004, p. 391.
Ademais, pode, por conta de uma situação de emergência, ser necessário obter uma pres- tação que deve ocorrer imediatamente, não po- dendo o interesse público aguardar deliberações ou processamento de expedientes burocráticos. Para ilustrar essa assertiva, pode ocorrer de uma máquina (retroescavadeira ou trator, por exem- plo) ser imprescindível em um fim de semana ou feriado para liberar um trecho de via pública to- mada por terra rolada encosta abaixo. Em outro exemplo, não pode a movimentação paquidérmi- ca da máquina administrativa obstar a remoção de um paciente em estado grave para um hospital de uma outra localidade, sendo necessária a con- tratação imediata de um veículo adequado ao transporte.
Nesses casos, não há como realizar a despe- sa de forma ordinária, pois a situação é extraordi- nária. Não há como colher orçamentos, verificar a regularidade do contratado perante o fisco; enfim, não há como serem adotadas as medidas habituais de contratação sem causar prejuízo ao interesse público. Contrata-se e pronto. Atendida a situação excepcional, apura-se a despesa por meio do pro- cesso de reconhecimento de dívida.
Ademais, em caso de mudança de gestão ad- ministrativa, podem os novos administradores pú- blicos ser surpreendidos por antigos contratos inadimplidos, até então desconhecidos, exigindo a contraprestação da Administração Pública. Os neófitos administradores públicos não podem vi- rar as costas para tais hipóteses, simplesmente imputando a responsabilidade aos antigos ges- tores, sugerindo que os particulares se socor- ram do Poder Judiciário. Por conseguinte, deve a Administração apurar a veracidade das alega- ções, identificando a execução das despesas e realizando os competentes pagamentos, confor- me se verá adiante.
3. Adimplemento dos contratos inválidos: obrigação supracontratual
Um dos direitos do contratado consiste em “receber o preço nos termos e condições aven-
çadas”, conforme preceitua Xxxxxxxx Xxxxxxxxx.3 De acordo com Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxx,4 é dever dos contratantes executar o contrato “fielmente, segundo suas cláusulas e normas pertinentes, exercendo cada parte os seus direitos e cumprin- do suas obrigações”.
Contudo, ainda que o contrato não esteja re- vestido das formalidades legais, não pode a Ad- ministração Pública tomar para si mais do que lhe é devido. Não é certo e não é justo. O equilí- brio entre as relações jurídicas exige a proximida- de dos direitos e dos deveres, de modo que qual- quer descompasso dessa equivalência se mostra contrária à justiça. Aristóteles5 afirmava que “o homem virtuoso tende a tomar menos que a sua parte justa”. John Rawls6 bem escreve sobre essa assertiva: “O sentido mais específico que Aristó- teles atribui à justiça, e do qual provêm as formu- lações mais conhecidas, é o de abster-se da pleo- nexia, isto é, abster-se de tirar alguma vantagem em benefício próprio, tomando o que pertence a outrem, sua propriedade, suas recompensas etc., ou de negar a alguém o pagamento de uma dívi- da, a demonstração do devido respeito, e assim por diante”.
As medidas justas representam a equivalên- cia de ônus e de bônus, que deve ser a tônica dos contratos. Isto mantém a coesão social e jurídica, sem que existam aproveitamentos inde- vidos. Em outras palavras, todos vivem e sobrevi- vem em harmonia diante das possibilidades de obtenção de vantagens mútuas. Daí sobrevêm o enriquecimento e o engrandecimento coletivos, pois o cumprimento das avenças tranqüiliza a coletividade e evita sobressaltos decorrentes da falta de observância dos pactos firmados.
O não-pagamento de uma obrigação constitui, assim, desequilíbrio entre as partes, pois aquele que provocou o inadimplemento obtém uma vanta- gem não prevista e, por conseguinte, indevida e incompatível com o sistema de deveres e direitos imposto pelas relações sociais e jurídicas.
Ainda que o interesse público, por pressupos- ta supremacia, deva sobrepor-se ao interesse
3. Direito Administrativo, 14ª ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 705.
4. Licitação e Contrato Administrativo, 14ª ed., 2ª tir., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 230.
5. Ética a Nicômaco, tradução de Xxxxxx Xxxxxxxx, São Paulo, Xxxxxx Xxxxxx, 2005, p. 122.
6. Uma Teoria da Justiça, tradução de Xxxxxxx Xxxxxx, 3ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 2008, p. 12.
particular, não é esse o caso. Aquele interesse público tem vínculo, também, com o adimple- mento, pois a recusa do pagamento da contra- prestação ajustada e cumprida não representa a vontade coletiva. Qualquer alegado pseudointe- resse público não pode receber chancela de es- pécie alguma.
O adimplemento do contrato é medida que transcende o ajuste entre as partes, pois interes- sa não somente àquelas, mas à coletividade. A garantia de cumprimento serve de esteio à tran- qüilidade social e estabilização das relações jurí- dicas. O pagamento dos contratos é o que move os futuros ajustes, pois todos sabem que, uma vez cumpridos os objetos, estes receberão as devidas retribuições. Há uma confiança presumi- da de adimplemento que serve de quietação so- cial; logo, este está em posição de “supracontra- tualidade”, pois ocupa um patamar acima de ou- tras cláusulas contratuais.
4. O princípio da boa-fé e a imprescindibi- lidade de adimplemento dos contratos admi- nistrativos
4.1. A boa-fé da Administração Pública como contratante
A necessidade do pagamento das despesas realizadas pela Administração, como determina o parágrafo único do art. 59 da Lei nº 8.666/93, reflete a necessária observância pela Administra- ção Pública em agir com boa-fé quando se rela- ciona com terceiros (particulares ou outros entes ou órgãos da Administração Pública).
Mas onde buscar vetores de apreciação e de fundamentação do pagamento de valores devi- dos em razão de contratos administrativos inváli- dos? Na ausência de dispositivo legal expresso, cabe ao intérprete fazer uso dos princípios gerais de direito e de regras previstas em outros ramos do direito. Aliás, o art. 54 da Lei nº 8.666/93 dis- põe:
“Art. 54. Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláu- sulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princí-
pios da teoria geral dos contratos e as dispo- sições de direito privado”.
Na ausência de comando na Lei nº 8.666/93, caberá ao intérprete buscar as fontes do Direito Privado para suprir essa carência, sem prejuízo dos princípios gerais do direito.
Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Junior7 assevera que, “No contrato administrativo, o fato do regime ser de direito público exclui qualquer outro; apenas em caráter supletivo (omisso o direito administra- tivo positivo) será possível recorrer-se, na inter- pretação e na execução de suas cláusulas, ao direito privado; ainda assim, as normas deste que se venham a demonstrar aplicáveis terão de ser examinadas à luz dos princípios gerais que, em sede constitucional, tutelam toda a atividade da Administração Pública (entre outros, os do art. 37, caput, da CF/88)”.
Ora, é cediço que o direito configura um con- junto de disposições que regula a vida em socie- dade, e as regras se intercomunicam quando ne- cessário. É inadmissível que haja falta de solu- ções jurisdicionais ou administrativas em razão das omissões de um determinado sub-ramo. De- ve o intérprete buscar as alternativas em outras diretrizes, que, por sua vez, devem ser irradiadas sobre os demais ramos do direito.
Para isso existe, além dos princípios, confor- me já mencionado, a possibilidade de uso do Direito Privado como fonte subsidiária do Direito Público, se necessário for e com a devida cautela. Hely Lopes Meirelles8 adverte que “o vezo de se apreciar institutos de Direito Público à luz do Direi- to Privado merece ser combatido, para que não se confine a Administração no estreito campo dos negócios civis e comerciais, onde só entram em conta os interesses particulares, nem sem- pre conciliáveis com as necessidades coletivas que o Poder Público deve tutelar e prover”.
De qualquer forma, não se pode admitir que o não-pagamento pela Administração Pública fi- que sem solução administrativa em razão da falta de disposição legal. A Administração Pública tem o dever de resolver as omissões ou prescrições legislativas que digam respeito ao descumpri-
7. Comentários à Lei de Licitações e Contratações da Administração Pública, 8ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2009, p. 617.
8. Licitação ..., cit., p. 216.
mento do contrato administrativo e que vedem o pagamento de valores decorrentes de contrato inválido, ainda que seja necessário escorar-se em elementos contidos no Direito Privado ou em princípios gerais do direito, o que, aliás, recomen- da-se.
Enzo Roppo9 leciona que “À fenomenologia da objectivação do contrato – entendida, aqui, como relevância crescente dos comportamentos tomados no seu significado econômico-social ob- jectivo, mais do que expressões como <declara- ção de vontades> – é, ainda, reconduzível, bem vistas as coisas, também uma fatispecie como a do contrato de trabalho nulo (retro, cap. III, 4.4). Aí existe uma declaração de vontade, por qual- quer razão viciada, e, por isso, inválida (nula ou anulável): e todavia, se a relação econômica subjacente e as respectivas transferências de ri- queza foram efectivamente realizadas, são dis- ciplinadas pelo direito, como se a declaração fos- se válida e regularmente produtora dos seus efei- tos. Também aqui, portanto, o elemento decisivo para o tratamento jurídico da relação, não é a presença de uma declaração de vontade (váli- da), mas, antes, o cumprimento efectivo de uma operação econômica. Não é por acaso que se fala, a este respeito, de relações contratuais de facto.
O elemento comum a todas estas hipóteses, embora em muitos aspectos assaz diversas entre si, encontra-se no facto de a relação contratual nascer e produzir os seus efeitos, não já sobre a base de declarações de vontade válidas (as quais, em linha de princípio, seriam necessárias para que existisse um contrato), mas sim com ba- se no contacto social que se estabelece entre as partes dessa mesma relação. Por contacto so- cial entende-se, aqui, o complexo de circunstân- cias e de comportamentos – valorados de modo socialmente típico – através dos quais se reali- zam, de facto, operações econômicas e transfe- rências de riqueza entre os sujeitos, embora fal- tando, aparentemente, uma formalização comple- ta de troca num contrato, entendido como encon-
tro entre uma declaração de vontade com valor de proposta e uma declaração de vontade confor- me, com o valor de aceitação: (...) E, por força desse contacto social, a relação económica entre os sujeitos interessados é reconhecida e tutelada pelo direito, que a trata como relação jurídica e, mais precisamente, como relação contratual (vis- to que lhe considera aplicável grande parte das regras que disciplinam as relações nascidas do contrato)”.
A ênfase deve ser conferida à relação instituí- da, e não propriamente à formalidade contratual, apesar do disposto no art. 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93. Entretanto, o contrato social e econômico realizado precisa ser solucionado sob a luz da boa-fé e da lealdade. Embora instru- mentalmente inválida, a relação é juridicamente relevante, à vista da transferência de esforço pes- soal realizado.
Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx,10 discorrendo sobre os deveres jurídicos anexos da boa-fé objetiva, explicam que “(...) leal- dade nada mais é do que fidelidade aos compro- missos assumidos, com respeito aos princípios e regras que norteiam a honra e a probidade”. Aliás, para esses autores,11 “Tais deveres – é im- portante registrar – são impostos tanto ao sujeito ativo quanto ao sujeito passivo da relação jurídica obrigacional, pois referem-se, em verdade, à exa- ta satisfação dos interesses envolvidos na obriga- ção assumida, por força da boa-fé contratual”.
Celso Antônio Bandeira de Mello12 questio- na, explicando em seguida: “O que é agir de boa- fé?
É agir sem malícia, sem intenção de fraudar a outrem. É atuar na suposição de que a conduta tomada é correta, é permitida ou devida nas cir- cunstâncias em que ocorre. É, então, o oposto da atuação de má-fé, a qual se caracteriza como o comportamento consciente e deliberado pro- duzido com o intento de captar uma vantagem indevida ou de causar a alguém um detrimento, um gravame, um prejuízo, injustos”.
9. O Contrato, tradução de Xxx Xxxxxxx e X. Januário C. Xxxxx, Xxxxxxx, Almedina, 2009, pp. 303/304.
10. Novo Curso de Direito Civil, Contratos: Teoria Geral, vol. IV, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 107.
11. Idem, p. 103.
12. BLC – Boletim de Licitações e Contratos, São Paulo, Editora NDJ, abr. 1998, p. 196.
A seu turno, Xxxxxxxx Xxxxx Espírito Santo13 explica, sobre o princípio da boa-fé, que “A obser- vância deste princípio implica relação de confian- ça entre a Administração e o administrado, na qual devem estar presentes os valores de hones- tidade e lealdade. Dessa forma, a Administração deverá considerar, quer seja na invalidação de atos administrativos que produzam direitos, quer seja na anulação de contratos administrativos, a intenção do administrado que agiu estritamente de boa-fé. Nestes casos, o administrado que com- provar a prestação de serviços deverá ser indeni- zado, sob pena de enriquecimento ilícito da Admi- nistração”.
Aliás, o inadimplemento oriundo de alega- ções relacionadas à invalidade do contrato é, con- forme o STJ,14 um “comportamento vedado pelo ordenamento jurídico por conta do prestígio da boa-fé objetiva (orientadora também da Adminis- tração Pública)”.
Uadi Lammêgo Bulos15 considerou a veda- ção ao enriquecimento sem causa e a boa-fé para exarar parecer favorável ao pagamento de indenização decorrente de obras realizadas por empresa em favor da Prefeitura do Município de São Paulo, que firmaram termo de cooperação para a execução de obras com o fornecimento de materiais, ainda que inexistindo licitação: “É indubitável a indenização a que a Vega Sopave faz jus no que concerne à incidência do vetor da razoabilidade – sobreprincípio que atrai o pórtico geral de direito segundo o qual ‘a boa-fé se presu- me, a má-fé se prova’, bem como o princípio que veda o enriquecimento sem causa”.
Na ótica de Xxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxx- xxx,16 “Na actual sociedade de risco cresce a ne- cessidade de actos provisórios e actos precários a fim de a administração poder reagir à alteração
das situações fáticas e reorientar a prossecução do interesse público segundo os novos conheci- mentos técnicos e científicos. Isto tem de articu- lar-se com salvaguarda de outros princípios cons- titucionais, entre os quais se conta a proteção da confiança, a segurança jurídica, a boa-fé dos ad- ministrados e os direitos fundamentais”. A segu- rança jurídica, a boa-fé e, também, a confiança são valores intrínsecos das relações jurídicas, es- tando a Administração Pública a eles vinculada.
Nesse sentido é a lição de Xxxxx Xxxxx Xxx- xxxxx Xxxxxx:17 “(...) a efetiva realização dos pos- tulados do Estado Democrático de Direito é in- separável do mínimo direito do cidadão a ser go- vernado por uma Administração Pública honesta, sim, mas sobretudo leal, segura e confiável”.
Veja-se que a presunção de legitimidade (prin- cípio) das condutas da Administração Pública gera a confiança (princípio) do contratado, que, muni- do de boa-fé (princípio), contrata com aquela.
Ora, não pagar pelo objeto prestado é locu- pletar sem causa, é enriquecer ilicitamente. Cel- so Antônio Bandeira de Mello18 leciona que o “Enriquecimento sem causa é o incremento do patrimônio de alguém em detrimento do patrimô- nio de outrem, sem que, para supeditar tal evento, exista uma causa juridicamente idônea. É perfei- tamente assente que sua proscrição constitui-se em um princípio geral do direito”. O mesmo au- tor19 ainda afirma que, “Em obras gerais atinentes a este ramo jurídico, é comum a anotação de que o enriquecimento sem causa é inadmissível e que, em favor do empobrecido, cabe ação para indenizar-se. Sem embargo, muitas vezes – como ocorreu na Itália – torna-se por estribo regra ex- traída do direito civil”.
O STJ20 vem reconhecendo “o direito do ter- ceiro de boa-fé à indenização como decorrência
13. Curso Prático de Direito Administrativo, coordenação de Xxxxxx Xxxxx Xxxxxx Xxxxx, 2ª ed., Belo Horizonte, Del Rey, 2004, p. 37.
14. REsp. nº 859.722–RS.
15. BLC – Boletim de Licitações e Contratos, São Paulo, Editora NDJ, jan. 2004, p. 24.
16. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Coimbra, Almedina, 2003, p. 266. 17.”O princípio da boa-fé nas contratações administrativas”, em Temas do Direito ..., cit., p. 192.
18. BLC – Boletim de Licitações ..., cit., p. 193.
19. Idem, ibidem.
20. REsp. nº 928.315–MA.
da presunção de legalidade e legitimidade dos atos administrativos, gerando a confiabilidade em contratar com a entidade estatal”.
Cabe, pois, aos gestores públicos administrar com boa-fé e lealdade, bens estes que devem ser irradiados por todo o direito, posto que uni- versais. Esses valores têm espaço tanto no Di- reito Privado como no Direito Público, revestin- do-se de um caráter multidisciplinar, à vista do forte caráter axiológico a eles imanente. Xxxxxx, como negar a necessidade de boa-fé e, conse- qüentemente, de lealdade, dentre outras, no cum- primento dos contratos administrativos?
4.2. A boa-fé do particular exigida pelo pará- grafo único do art. 59 da Lei federal nº 8.666/93
Por outro lado, para que o pagamento da prestação realizada ocorra, na forma do parágra- fo único do art. 59 da Lei federal nº 8.666/93, deverá ser apurada a boa-fé do particular que contratou com a Administração Pública.
Nesse sentido, se o fato que ensejar a invali- dade do ajuste for imputado ao particular, ou seja, se no caso concreto o ato que transgrediu a lega- lidade da contratação teve a participação do con- tratado, o pagamento será descabido.
Ilustrando essa assertiva, Marcos Juruena Villela Souto21 assevera que “Se o contratado exe- cutou o contrato (ou prorrogou a sua execução já sem base contratual) de boa fé, para assegurar a continuidade do serviço público, nem mesmo o art. 42 da LRF, pode ensejar o não pagamento da despesa pelo sucessor”.
Esse foi o entendimento exarado pelo TRF da 1ª Região:
“Administrativo. Anulação de licitação. Di- reito à indenização do licitante de boa-fé. 1.Ten- do a agravante providenciado a compra, a montagem e a adaptação das ambulâncias relativas ao Lote nº 4 do Pregão nº 90/2003, do Ministério da Saúde, do qual foi vencedo- ra, e tendo sido reconhecida pela Adminis- tração a sua boa-fé, não é jurídico que, ago- ra, por ter sido anulada a licitação, não tenha
direito à indenização do valor comprovada- mente gasto com os veículos cuja entrega lhe fora solicitada antes da invalidação do certame (art. 59 da Lei nº 8.666/93). 2. Dá-se parcial provimento ao agravo de instrumento” (Processo: AgI nº 2004.01.00.040730-0–DF,
agravo de instrumento, rel. Desembargadora federal Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, ór- gão julgador: 6ª T., publ. em 22.5.06, DJ, p. 166).
A título de ilustração, foi editado, nesse dia- pasão, o Enunciado nº 08 – PGE/RJ, com o se- guinte teor: “Os serviços prestados pelo particular de boa-fé sem cobertura contratual válida deve- rão ser indenizados (art. 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93). O Termo de Ajuste de Contas é o instrumento hábil para promover a indenização dos serviços executados (Lei estadual nº 287/ 79, art. 90, § 2º, I, c/c Dec. estadual nº 3.149/80, art. 67, II), impondo-se ao administrador público o dever de apurar a responsabilidade dos agentes que deram causa à situação de nulidade” (ref. Pareceres nos 04/94-ASA, 07/96-MJVS, 03/97- MGL, 55/97-JAF, 40/98-MJVS, 53/98-JETB, 01/ 99-JLFOL, 01/99-SNM, 24/99-WD, 29/99-JAV, 07/
00-WD, 08/00-WD, 05/01-JLFOL, 12/01-FAG, 13/
01-PHSC, 40/98-MJVS). Publicado no DO de 30.3.04, p. 9.
A boa-fé do particular é, pois, imprescindível, sob pena de impossibilidade de realização do pagamento. O contratado não pode ter sido obse- quioso para a construção da situação de ilegalida- de. De acordo com Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx,22 “a boa- fé de terceiro caracteriza-se quando não concor- reu, por sua conduta, para a concretização do vício ou quando não teve conhecimento (nem tinha condições de conhecer) sua existência”. Nesse sentido, inclusive, também já se manifes- tou o STJ:23
“O dever da Administração Pública em indenizar o contratado só se verifica na hipó- tese em que este não tenha concorrido para os prejuízos provocados. O princípio da proi- bição do enriquecimento ilícito tem suas raí- zes na equidade e na moralidade, não poden- do ser invocado por quem celebrou contrato
21. Ob. cit., p. 394.
22. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 13ª ed., São Paulo, Dialética, 2009. 23. REsp. nº 579.541–SP.
com a Administração violando o princípio da moralidade, agindo com comprovada má-fé”.
Entretanto, deve haver atenção em relação à extensão do conceito de má-fé para afastar a indenização em contrato inválido. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo24 considerou que houve má-fé do contratado em ajuste verbal para a recuperação de créditos tributários, pois se pre- sumiu que aquele tinha ciência da “obrigatorie- dade de licitação prévia à contratação assim co- mo do dever de observar da forma escrita para a celebração de contrato”, isto com fundamento no objeto social da empresa.
Todavia, Marçal Justen Filho25 admite que: “a tutela por via do enriquecimento sem causa pode, inclusive, conviver com um elemento subjetivo de natureza culposa”. O mesmo autor26 explica que “eventual defeito ético na conduta do par- ticular não pode ser invocado para cristalização de situação ainda mais reprovável, consistente em o Estado expropriar seus bens”. Trata-se de um entendimento arrojado, mas que possui per- tinência lógica com os demais princípios do di- reito. Contudo, ainda que o particular de má-fé não possa ser expropriado em seus bens, não poderá escapar da responsabilização por sua conduta lesiva. De alguma forma este deverá ser apenado, ainda que por outras vias, como a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92).
4.3. A confiança do contratado na conduta emanada da Administração Pública
No processo de contratação, o particular ajus- ta com a Administração Pública, tendo como pre- missa que todos os atos foram praticados dentro da normalidade jurídica, ou seja, foram observados todos os ditames legais necessários à consecu- ção da avença.
Xxxxx, Xxxxxxxx Xxxxx,27 em leitura do Habeas Corpus nº 71.408-1–RJ, prescreve que “é razoá- vel presumir que as pessoas dizem a verdade e
agem de boa-fé, em vez de mentir ou agir de má- fé. Na aplicação do Direito deve-se presumir o que normalmente acontece, e não o contrário”.
A seu turno, Rafael Valim28 leciona:
“Sabe-se que o Estado, tanto quanto os administrados, deve ser probo, veraz, leal, responsável. Não na forma de uma virtude moral do agente público, senão que por força de desígnios constitucionais imperativos, co- mo nos dá mostra, por exemplo, o art. 37, caput, nunca assaz citado: ‘Art. 37. A Admi- nistração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distri- to Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, mo- ralidade, publicidade e eficiência (...)’.
Portanto, se somarmos estes princípios
– que presidem o exercício de todas as fun- ções públicas – à presunção de legitimidade dos atos estatais, resulta que o administrado é invariavelmente levado a supor que os atos estatais estão em conformidade com a or- dem jurídica e que as expectativas geradas pelo Estado são seguras e dignas de crédito. Donde, neste contexto, não só o adminis- trado pode como deve confiar na ação do Estado”.
Aliás, para fundamentar essa análise, Celso Antônio Bandeira de Mello29 explica que: “Com efeito, se o ato administrativo era inválido, isto significa que a Administração ao praticá-lo feriu a ordem jurídica. Assim, ao invalidar o ato, es- tará, ipso facto, proclamando que fora autora de uma violação da ordem jurídica. Seria iníquo que o agente violador do Direito, confessando-se tal, se livrasse de quaisquer ônus que decorreriam do ato e lançasse sobre as costas alheias todas as conseqüências patrimoniais gravosas que daí decorreriam, locupletando-se, ainda, à custa de quem, não tendo concorrido para o vício, haja procedido de boa-fé. Acresce que, notoriamente,
24. Ap. nº 994.09.244464-0.
25. Ob. cit., p. 722.
26. Idem, p. 723.
27. Teoria dos Princípios – Da Definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos, 11ª ed., São Paulo, Malheiros, 2010, p. 155.
28. O Princípio da Segurança Jurídica no Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 2010, p. 111.
29. Curso de Direito Administrativo, 26ª ed., São Paulo, Malheiros, 2009, p. 474.
os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade. Donde, quem atuou arrimado ne- les, salvo se estava de má-fé (vício que se pode provar, mas não pressupor liminarmente), tem o direito de esperar que tais atos se revistam de um mínimo de seriedade. Este mínimo consiste em não serem causas potenciais de fraude ao patrimônio de quem neles confiou – como, de resto, teria de confiar”.
André Luiz Freire30 preleciona que “o dever jurídico de controlar a legalidade na formação do contrato administrativo é apenas da Administra- ção. Não é outra a razão pela qual existem mo- mentos durante o procedimento pré-contratual em que há apreciação pelos órgãos de controle, culminando com a homologação da licitação e com a ratificação do processo de contratação direta pela autoridade competente. Vale lembrar ainda que o princípio da presunção de validade afasta esse dever por parte do administrado, ten- do em vista que há a confiança legítima desse na correção dos atos estatais. Em verdade, há apenas o direito subjetivo do particular em realizar esse controle, e não um dever jurídico”.
Ora, de fato, compete à Administração Públi- ca zelar pela boa formação dos atos e contratos administrativos. A perfeição na realização das suas obrigações não é tarefa do contratado. Por essa razão, existe uma expectativa de validade dos contratos administrativos, não havendo moti- vo para desconfiar da desídia do agente público. Existe, pois, um sentimento de que tudo transcor- rerá perfeitamente na formação e na execução do contrato.
Presumem-se, portanto, a legitimidade e a legalidade na prática dos seus atos. Trata-se da confiança que o contratado deposita na conduta do administrador público, de modo que existe uma expectativa de atendimento à legalidade que pre- cede o contrato e acompanha a sua execução. Tem-se, dessa forma, a crença de que os agentes públicos agiram de boa-fé, com cautela, obser- vando as normas afetas à matéria. O particular não está obrigado a desconfiar de tudo e de to-
dos, como se vivêssemos em um Estado onde as relações são pautadas pela desonestidade ou pela falta de eficiência. Xxxxxx, a presunção de legitimidade, a confiança, a lealdade; enfim, todos esses valores de caráter positivo suportam as relações humanas. Os valores negativos são ex- ceções repugnadas e contrárias ao que se tem por hábito.
Xxxxx, em análise da tutela da confiança, Ale- xandre Schreiber31 afirma que, “ao impor sobre todos um dever de não se comportar de forma lesiva aos interesses e expectativas legítimas despertadas no outro, a tutela da confiança reve- la-se, em um plano axiológico-normativo, não apenas como principal integrante do conteúdo da boa-fé objetiva, mas também como forte ex- pressão de solidariedade social, e importante ins- trumento de reação ao voluntarismo e ao liberalis- mo ainda amalgamados ao direito privado como um todo”. Essa compreensão deve ser estendida, também, aos demais ramos do direito, posto que a exteriorização de um comportamento da Admi- nistração Pública deve vincular, na medida do possível, os atos do administrador público. Essa vinculação do comportamento inicial garante se- gurança jurídica e certa tranqüilidade aos admi- nistrados, que não serão tolhidos em mudanças de decisões abruptas e prejudiciais ao direito. Segurança jurídica esta que é, conforme o STJ,32 princípio basilar na salvaguarda da pacificidade e estabilidade das relações jurídicas, por isso que não é despiciendo que a segurança jurídica seja a base fundamental do Estado de Direito, elevada ao altiplano axiológico.
4.4. A exigência da lealdade e da vedação ao comportamento contraditório na execução dos contratos administrativos
O comportamento contraditório da Adminis- tração Pública ao contratar e, posteriormente, negar o pagamento pela prestação realizada por particular por causa de invalidade do contrato administrativo deve ser repudiado, também, em razão do venire contra factum proprium, que con-
30. Manutenção e Retirada dos Contratos Administrativos Inválidos, São Paulo, Malheiros, 2008, pp. 158/159.
31. A Proibição de Comportamento Contraditório, 2ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2007, p. 95. 32. REsp. nº 658.130–SP.
siste na vedação ao comportamento incoerente do contratante. Alexandre Schreiber33 assevera que a “vocação constitucional do nemo potest venire contra factuam proprium impõe, aliás, sua aplicação aos outros ramos do direito, como o direito societário, o direito internacional público, e assim por diante”. Desse modo entendemos, pois à Administração Pública incumbe agir com coerência, conforme os sinais emitidos quando dos primeiros acordes do ajuste que se amoldava.
Não foi outro o entendimento do STJ:34 “Sabe-se que o princípio da boa-fé deve
ser atendido também pela Administração Pú-
blica, e até com mais razão por ela, e o seu comportamento nas relações com os cida- dãos pode ser controlado pela teoria dos atos próprios, que não lhe permite voltar sobre os próprios passos depois de estabelecer rela- ções em cuja seriedade os cidadãos confia- ram”.
Uma vez que a Administração Pública sinali- zou a contratação e, por conseqüência, o adim- plemento, não cabe a ela negar a pretensão mani- festada e desfazer a cláusula de pagamento se o objeto foi devidamente cumprido, ainda que invá- lido o ajuste. A conduta adotada não pode ser negada e tratada como se nada houvesse. É pre- ciso exigir a linearidade da conduta administrativa como forma de proteção da coletividade, e não só do contratado. O adimplemento não interessa apenas a este, mas ao universo de futuros contra- tados, que precisam ter a tranqüilidade de saber que serão devidamente recompensados pelas prestações atendidas em favor da Administração Pública.
Em outras palavras, a Administração Pública não pode agir de forma contraditória e, por conse- qüência, lesiva ao contratado que cumpriu a sua parte na avença. Têm-se o dever de lealdade à parte e a proibição de um comportamento juridi- camente ambíguo.
5. O dever de pagamento e o fundamento para a sua realização
De acordo com o art. 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93, “A nulidade não exonera a Admi- nistração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regular- mente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa”.
Marçal Justen Filho35 assevera que “Sempre que o Estado fizer mau uso de seus poderes, impondo danos injustos a terceiros, estará confi- gurada uma infração ao Direito. O agente estatal tem o dever de diligência exacerbado, na acepção de que a ele incumbe exercitar com o máximo de cautela e com integral perfeição todas as compe- tências recebidas do ordenamento jurídico”. E, ainda, o mesmo autor36 ensina que “o Estado não pode apropriar-se de um bem privado, a não ser mediante desapropriação, com o pagamento do justo preço”.
Na lição de Xxxxx Xxxx Xxxxxx,37 “O dever da Administração de indenizar o ex-contratado pode ter fundamento em duas normas distintas, confor- me seja o caso concreto: (a) o princípio da res- ponsabilidade objetiva da Administração em ra- zão de seus atos; e (b) o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa”.
Vê-se, portanto, que é vedado à Administra- ção Pública tomar para si o que não lhe é devido. Se o contrato foi devidamente atendido pelo con- tratado, deverá ser entregue a este a contrapres- tação equivalente, ainda que inválido o ajuste.
Como exemplo, a Advocacia Geral da União
– AGU editou a Orientação Normativa nº 4, de 1º.4.09, com o seguinte teor: “A despesa sem cobertura contratual deverá ser objeto de reco- nhecimento da obrigação de indenizar nos ter- mos do art. 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666/ 93, sem prejuízo da apuração da responsabilida- de de quem lhe der causa”.
33. Ob. cit., p. 218.
34. REsp. nº 141.879–SP.
35. Ob. cit., p. 716.
36. Idem, ibidem. 37. Ob. cit., p. 156.
Tal orientação determina à Administração Pú- blica federal, quando verificar que um contrato se encontra inválido, ante a flagrante falta de co- bertura contratual válida, por óbvio, que imple- mente o pagamento, a título de indenização, nos termos do art. 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93, o que será apurado por meio de proces- so de ajuste de contas ou justificação de despe- sas, sem prejuízo da apuração da responsabilida- de de quem lhe der causa.
O Tribunal de Justiça do Estado de Pernam- buco comunga desse entendimento, conforme o Enunciado Administrativo CJ/TJPE nº 22, de 12.9.08: “Os serviços prestados pelo particular de boa-fé, sem cobertura contratual válida, deve- rão ser indenizados, sob pena de enriquecimento sem causa. O Termo de Ajuste de Contas (Termo de Quitação) é o instrumento hábil para promover a indenização dos serviços executados, impondo- se ao administrador público o dever de apurar a responsabilidade dos agentes que deram causa à situação de nulidade (Lei federal nº 8.666, de 21.6.1993, art. 59, parágrafo único)”.
Assim, uma despesa realizada sem o devido lastro contratual, como, por exemplo, a realização de serviços extraordinários não constantes do escopo inicial do ajuste, acréscimo de quantitati- vos superiores aos competentes limites, contra- tação verbal, gastos superiores ao valor contrata- do, deverá ser devidamente paga ao particular por meio de processo de ajustes de contas ou justificação de despesas.38
6. A composição do pagamento
Superada a convicção pela imprescindibili- dade do dever de retribuição do contratado, ainda que em decorrência de contrato inválido, resta a abordagem de um tema polêmico: de que forma
será composto o pagamento ao contratado? Ha- verá apenas a devolução dos custos? Haverá o pagamento da mão-de-obra eventualmente em- pregada? E o lucro? Embora não seja objeto do presente trabalho, serão tracejadas breves linhas acerca do assunto.
Em sendo reconhecida a dívida pela Adminis- tração Pública, faz-se necessário que se materia- lize tal expediente, o qual se dará pelo devido pagamento, a título de indenização, necessitando que o particular receba o montante calculado e forneça a competente quitação.
Acerca dos limites da indenização, observe- se que a doutrina não é uníssona em relação à possibilidade de o particular ser ressarcido inte- gralmente pela execução do objeto, recebendo, nesse caso, além do custo despendido, a remu- neração do capital investido, ou seja, o lucro. En- tendendo que a indenização do particular deve ser composta do efetivo ganho, ou seja, o lucro, com certos limites, assevera Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx,39 in verbis:
“Polêmico, no entanto, é o valor da indeni- zação. Entendemos que deve ela levar em conta o efetivo ganho da Administração e o prejuízo do particular, que inclui, pois, a sua margem de lucro. Tal não é a conclusão ado- tada pelo Estado do Rio de Janeiro, que, cal- cado no pronunciamento do Procurador do Estado Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx, entende que só devem ser ressarcidos os custos do contratado, que caracterizam o seu empobre- cimento imputável à Administração. Não ad- mite, pois, a inclusão de qualquer margem de lucro na indenização, que não seria um desfalque ou perda material.
Data venia, ousamos discordar por en- tender que a ninguém é dado causar prejuízo
38. Acerca de tal processo, manifesta-se Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx, in verbis: “No que respeita ao reconhecimento de dívida, instrumentalizado pelo termo de ajuste de contas, para regularizar os contratos não formalizados e autorizar o pagamento de despesas sem prévio empenho, ampara-se no que dispõem o art. 37 da Lei federal nº 4.320/64, de 17.03.64, que institui normas gerais de direito financeiro para a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, e o art. 67, II do Decreto estadual nº 3.149 de 28.04.80, que regulamenta o Código de Administração Financeira e Contabilidade Pública do Estado do Rio de Janeiro.
Comentando-os, o Tribunal de Contas desse Estado já fez ver que o ‘Termo de Ajuste de Contas’ é o instrumento legal de que dispõe a administração para apurar dívidas contraídas sem a devida cobertura contratual, no intuito de exarar o ato do seu reconhecimento, autorizar a emissão de empenho, a liquidação e o pagamento da despesa originária de exercício já encerrado ou no próprio. Esta a forma usual da administração para corrigir falhas dessa natureza (Ac. De 09.12.93, Rel. Conselheiro Xxxxxxxx Xxxx’Anna)” (ob. cit., p. 685).
39. Ob. cit., p. 392.
a outrem; no caso, negar o lucro ao colabora- dor da Administração, que pacientemente prestou seus esforços em situação de emer- gência (e só nestas admite-se o termo de ajuste), é impor-lhe trabalhar de graça, violan- do o princípio da livre iniciativa”.
Assim, também entende Xxxxxx Xxxxx Xxxxxx Xxxxx:40
“O artigo em pauta suscita o acautela- mento, sobretudo em face do princípio da estabilidade dos contratos. Concordo plena- mente com o Professor Xxxxxx Xxxxx: o pará- grafo do art. 59 será inconstitucional se res- tringir o direito do contratado à ampla indeni- zação”.
Xxxxx, Marçal Justen Filho41 bem escreve so- bre o tema:
“É inconstitucional a restrição imposta no parágrafo único do art. 59. A Administração tem o dever de indenizar o contratado não apenas ‘pelo que este houver executado até a data em ela for declarada’. O particular tem direito de ser indenizado amplamente pelas perdas e danos sofridos. Indenizar apenas o que ele tiver executado significaria restringir o ressarcimento apenas de uma parte dos danos emergentes, o que conflita com o art. 37, § 6º da CF/88.
O Estado terá de indenizar o particular por todos os danos e pelo lucro que a ele adviria se o contrato fosse válido e fosse inte- gralmente executado”.
A seu turno, André Luiz Freire42 entende que “no que se refere aos danos emergentes o valor da indenização corresponde não só aos custos que o particular teve até o momento da declara- ção da invalidade do contrato, mas também ao seu lucro.
Entretanto, frise-se que a indenização pode abarcar, além dos danos emergentes, os lucros cessantes”.
Arrematando o tema, preleciona Xxxxxxxx Xxxxxx:43
“Frise-se que esse parágrafo único refe- re-se ao dever de indenizar; não ao dever de remunerar. Assim sendo, o contratado terá o direito ao pagamento de importância corres- pondente apenas ao custo do que executou excluída a parcela remuneratória, visando evitar o enriquecimento sem causa do Poder Público. Por outro lado, se ficar demonstrada a culpa exclusiva da Administração, o contra- tado fará jus ao pagamento do preço integral (custo mais remuneração) do que houver sido executado”.
Em sentido contrário ao pagamento do lucro, manifesta-se Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Junior:44
“Frise-se que o parágrafo xxxxx a ‘dever de indenizar’ e, não, a dever de remunerar. Entende-se por indenizar o pagamento tão só do custo do que foi executado pelo contra- tado, excluída a parcela remuneratória que compõe o preço avençado. A satisfação do custo da prestação afasta o enriquecimento ilícito da Administração; a exclusão do valor remuneratório acompanha o caráter de san- ção inerente à nulidade.
Ordinariamente, haverá presunção de concorrência de culpas na geração do vício apenado com nulidade, já que, em matéria de contrato, o encontro de vontades inclui o de- ver, para ambas as partes, de examinar as cláusulas e condições do que estão a contra- tar, sendo, em princípio, inescusável para am- bas a presença do vício.
Excepcionalmente, demonstrada a culpa exclusiva da Administração Pública, o contra- tado terá o direito ao pagamento do preço integral (custo mais remuneração) do que houver executado”.
40. Eficácia nas Licitações Públicas & Contratos, 10ª ed., Belo Horizonte, Del Rey, 2005, p. 476. 41. Ob. cit., p. 724.
42. Ob. cit., p. 158.
43. Direito Administrativo e Controle, Belo Horizonte, Fórum, 2006, p. 116. 44. Ob. cit., pp. 676/677.
Nessa toada é a opinião de Xxxxxxxxx xxx Xxxxxx Aragão:45
“Entendemos, no entanto, que a Adminis- tração Pública deve ao prestador de serviços apenas os danos emergentes, ou seja, o pre- ço de custo, com os acréscimos legais, ex- cluídos eventuais lucros cessantes, lucros es- ses que auferiria em situação de normalidade jurídica, isto é, se a obrigação da Administra- ção Pública em efetuar os pagamentos ad- viesse de contrato, e não do enriquecimento sem causa”.
Há um terceiro posicionamento, manifesta- do por Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx,46 no sentido de que o pagamento deve ser arbitrado pela Administra- ção, não restando cristalino se o pagamento da indenização efetivamente será composto do lu- cro:
“Na hipótese de anulação, ao contrário, ainda que o art. 59 determine que a Adminis- tração somente deva ressarcir prejuízos sofri- dos pelo contratado se o vício que resultou na declaração de nulidade não lhe pode ser imputado, a Administração não estará, é evi- dente, desonerada da obrigação de indenizar pelo que tenha sido efetivamente executado. Essa indenização, no entanto, será obtida de acordo com valores arbitrados pela Adminis- tração e não necessariamente deverão ser respeitados os valores constantes no contra- to, haja vista não se puder esperar efeito váli- do de contrato nulo”.
Nesse sentido, conforme estabelece a Lei do Estado do Maranhão nº 8.959, de 8.5.09, no parágrafo único do art. 82, que cria o procedimen- to para o pagamento de despesa não precedida de licitação ou sem regular cobertura contratual, o valor a ser pago a título de indenização “cor- responderá apenas ao custo do objeto executado, mediante cálculos aferidos pela Administração”. De conseguinte, parece-nos que estaria afasta- do aqui o pagamento do lucro do particular.
Nessa toada, a responsabilidade objetiva do Estado, prevista no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, indica que o art. 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93 deve a ele estar compatibilizado. Os atos praticados pelos agentes públicos em
desacordo com a lei e que causarem danos a terceiros, in casu, contratantes, devem ser repa- rados de forma integral, sob pena de subversão dos mais comezinhos princípios de direito.
De nada vale o dispositivo legal infraconsti- tucional supramencionado limitar o pagamento apenas aos custos efetivos despendidos na exe- cução do objeto pelo contratado, não sendo re- compensada a contraprestação relacionada ao lucro do particular. O princípio da responsabilida- de objetiva do Estado determina a reparação inte- gral dos prejuízos sofridos. Assim, não poderia a Administração agir de outra forma, sob pena de flagrante iniqüidade.
7. O processo administrativo de ajuste de contas ou de justificação de despesas
Inicialmente, deve ser esclarecido que o pa- gamento da contraprestação ao contratado deve ser feito por meio de um processo administrati- vo, que pode receber qualquer denominação. Há quem ostente a expressão “processo administra- tivo de justificação de despesa”, ou simplesmen- te “justificação de despesa”, ou “processo admi- nistrativo de ajuste de contas”, ou “termo de ajus- te de contas” ou “ajuste de contas”. O que não está afastada é a necessidade de instauração de um processo administrativo próprio, por respeito ao princípio do devido processo legal, insculpido no art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988.
Para a realização do pagamento de obriga- ções não adimplidas, é preciso que algumas eta- pas sejam observadas de forma ordenada, com a devida instrumentalização, permitindo que os órgãos de controle e a própria Administração Pú- blica tenham a possibilidade de fiscalização e acompanhamento dos atos praticados. Esse con- junto de atos concatenados no tempo e no espa- ço é compreendido como processo administrati- vo, pois reunirá todos os elementos necessários à prova do ocorrido, bem como à justificação do pagamento.
Diogenes Gasparini47 assevera que o proces- so administrativo “(...) é o conjunto de medidas jurídicas e materiais praticadas com certa ordem e cronologia, necessárias ao registro dos atos da Administração Pública, ao controle do comporta-
45. Informativo de Licitações e Contratos nº 102, Curitiba, Zênite, 2002, p. 654.
46. Curso de Licitações e Contratos Administrativos, Belo Horizonte, Fórum, 2007, p. 560. 47. Ob. cit., p. 1003.
mento dos administrados e de seus servidores, a compatibilizar, no exercício do poder de polícia, os interesses público e privado, a punir seus ser- vidores e terceiros, a resolver controvérsias xxxx- xxxxxxxxxxx e a outorgar direitos a terceiros”. Por sua vez, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx de Mello48 ensina que o processo administrativo “(...) é uma suces- são itinerária e encadeada de atos administrati- vos que tendem, todos, a um resultado final e conclusivo”.
Difere do procedimento, que para Hely Lopes Meirelles49 “(...) é o modo de realização do pro- cesso, ou seja, é o rito processual”.
É isso que deve ser buscado: uma seqüência de atos ordenados de forma racionalizada, previa- mente instituída, com vista à organização e, por conseqüência, à fiscalização e ao controle.
Para que o processo administrativo seja reali- zado, é necessária a observância de alguns prin- cípios, dentre os quais a publicidade, a ampla defesa e o contraditório, a legalidade, a motiva- ção etc.
Alerte-se, contudo, que o princípio da indis- ponibilidade dos bens públicos recomenda caute- la nas decisões administrativas que versam so- bre o pagamento de ajustes inadimplidos. Dioge- nes Gasparini50 esclarece que “(...) não se acham, segundo esse princípio, os bens, direitos, interes- ses e serviços públicos à livre disposição dos órgãos públicos, a quem apenas cabe curá-los, ou do agente público, mero gestor da coisa públi- ca. Aqueles e este não são seus senhores ou seus donos, cabendo-lhes por isso tão-só o dever de guardá-los e aprimorá-los para a finalidade a que estão vinculados. O detentor dessa disponibi- lidade é o Estado. Por essa razão há necessidade de lei para alienar bens, para outorgar concessão de serviço público, para transigir, para renunciar, para confessar, para relevar a prescrição (RDA, 107/278) e para tantas outras atividades a cargo dos órgãos e agentes da Administração Pública. (...) Em razão desse princípio o Supremo Tribunal Federal já assentou que o poder de transigir ou renunciar não se configura se a lei não o prevê (RDA, 128/178). (...) Aos agentes públicos, por
força desse princípio, é vedada a renúncia, parcial ou total de poderes ou competências, salvo auto- rização legal ”.
Por tal razão, deverá o ajuste de contas ser conduzido sob a égide das normas de regência do processo administrativo do órgão público. Mos- tra-se importante, portanto, a fixação de um con- junto de regras prévio e impessoal, devidamente autorizado pelo veículo normativo adequado. Es- sa medida é destinada justamente a disciplinar a harmonia dos atos praticados que visem ao ajus- te de contas.
Para que o pagamento ocorra, não é neces- sária lei autorizando a Administração Pública a promover o ajuste de contas. Se é possível à Administração Pública contratar sem lei, pois se trata de ato de gestão, também é possível reali- zar, sem lei, termo de ajuste de contas para o pagamento de contratos viciados. Todavia, repita- se, o pagamento da indenização não convalida os vícios do contrato, devendo a Administração Pública apurar a responsabilidade pela nulidade.
8. O processo de ajuste de contas ou de justificação de despesa
Como asseverou Xxxxxxxxx xxx Xxxxxx Xxx- xxx,51 o “termo de ajuste de contas, instrumento adequado para a solução extrajudicial de pendên- cias pecuniárias entre a Administração Pública e administrados, é o meio hábil para se efetuar o ressarcimento delimitado no item anterior”.
Esclareça-se que o processo de ajuste de contas assemelha-se, na verdade, à regular liqui- dação de uma despesa, como estabelece o art. 63 da Lei federal nº 4.320/64, já que em ambos os expedientes a Administração deve apurar a origem e o objeto do que se deve pagar, a impor- tância exata a pagar e a quem se deve pagar a importância, para extinguir a obrigação.
Para uniformizar a realização do expediente em destaque, o que facilitaria o seu processa- mento no âmbito administrativo, bem como o exercício dos atos de controle, seria adequado que se editasse ou se insirisse nas competentes leis que regulam o procedimento administrativo
48. Ob. cit., p. 480.
49. Direito Administrativo Brasileiro, 29ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 65.
50. Ob. cit., p. 18. 51. Ob. cit., p. 658.
capítulo versando a respeito da disciplina sobre a realização de ajuste de contas, a exemplo da Lei do Estado do Maranhão nº 8.959, de 8.5.09.
Para melhor compreensão do processamen- to do expediente administrativo que pretende este artigo explanar, dividimos o processo administra- tivo em fases, como didaticamente faz a doutri- na, a fim de melhor prelecionar as peculiaridades observadas em cada etapa.
8.1. Fase propulsiva ou deflagratória
O processo administrativo deverá ser devida- mente instaurado pela autoridade competente, por meio de ato administrativo, como, por exem- plo, uma portaria, cujo objeto será a apuração da despesa realizada sem observar os ditames le- gais, devendo ser narrados os fatos ocorridos a fim de apurar a entrega do objeto e os direitos do contratado.
Poderá o processo ser instaurado por meio de requerimento do particular interessado, deven- do constar, como salienta Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx,52 “quem pede, contra quem pede, e o que pede, circunstância sempre presente em qual- quer pedido”.
O processamento do referido expediente de- verá ser conduzido por um agente público compe- tente, o que deverá ser devidamente investido, ou, ainda, por meio de comissão, sendo aponta- dos seus membros por meio do ato administrativo que o instaurou.
Esclareça-se que o processo deverá ser devi- damente autuado, conforme a praxe da boa or- dem administrativa, o que possibilitará a sua devi- da identificação e controle futuros.
8.2. Fase instrutória
Após a devida instauração, o processo admi- nistrativo deverá ser instruído com a documenta- ção hábil a demonstrar inequivocamente a situa- ção fática ocorrida, ou seja, a execução de um ob-
jeto sem a observância dos ditames normativos. Isso porque a resolução administrativa desse li- tígio depende da efetiva comprovação da execu- ção do objeto contratado.
Por conseguinte, em que pese eventual ine- xistência de regras específicas acerca da condu- ção da instrução em processo administrativo que objetive processar litígios dessa natureza, se exis- tentes provas documentais, estas deverão ser acostadas no referido processo. Como exemplo, podem ser apresentadas conversações e tratati- vas fixadas por meio de cartas, notificações, e- mails, faxes, mensagens eletrônicas em geral, além da ordem de início à execução ou do rece- bimento do objeto, bem como notas fiscais ou recibos, emitidos à época. Como salienta Dioge- nes Gasparini, “Qualquer prova ou informação, desde que admitida pelo Direito, pode ser produ- zida ou determinada a sua produção”.53
O Tribunal de Justiça do Estado de São Pau- lo54 reconheceu o direito do contratado que apre- sentou a “prova do adimplemento contratual”, tor- nando-se um “Dever da Administração de remu- nerar a contratada pelos serviços prestados, sob pena de enriquecimento ilícito”.55
Se inexistir a referida documentação, ante o princípio do informalismo e da fé pública que deve ser observada no processo administrativo, de- verão ser ouvidos os agentes públicos que pre- senciaram os eventos que não podem ser mate- rialmente comprovados.
Deverão ser apontados, ainda, os servidores responsáveis, inclusive, ser for o caso, notificados para prestar esclarecimentos, bem como devem ser arrolados outros conhecedores dos fatos, a fim de esclarecerem e confirmarem o aventado no referido expediente. Também deverá o res- ponsável pela não-observância do regime regu- lar de despesa ser convocado para apresentar as suas razões, visando explicar-se por desres- peitar, em tese, o necessário legal, prestigiando
52. Curso de Processo Administrativo, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2005, p. 95. 53. Ob. cit., p. 1010.
54. ApCv nº 990.10.233544-5.
55. As partes convencionaram o aumento do objeto da contratação, sendo acrescidos serviços em ruas que não estavam inicialmente contempladas no acordo originário. A Prefeitura Municipal de Xxxx Xxxxx deixou de pagar a mão-de- obra e os materiais extras usados nessas áreas, mas foi compelida a fazê-lo, ainda que tendo utilizado o argumento de contratação irregular.
a garantia constitucional da ampla defesa e do contraditório, consignados no inc. LV do art. 5º da Constituição Federal.
O motivo pelo qual a Administração avençou irregularmente a execução do dado objeto preci- sará56 ser devidamente manifestado no compe- tente processo administrativo.
Poderá a Administração fazer uso de prova pericial a fim de examinar, vistoriar ou avaliar a execução da prestação realizada com o intuito de obter a verdade quando visivelmente não for possível aferir a execução da despesa reclamada, como, por exemplo, a execução de metragem cúbica de concreto superior àquela constante dos projetos. Também poderá utilizar-se da inspeção administrativa, na qual a competente autoridade poderá designar-se ao local para verificar a real execução do dado objeto.
Em relação à monta cobrada da Administra- ção pelo particular, é necessário que tal seja com- patível com os valores de mercado, devendo, para tanto, ser acostada pesquisa mercadológica com preços praticados na ocasião do processamento do expediente administrativo, e não aqueles da época da execução do objeto, devendo o setor técnico competente manifestar-se acerca da coe- rência dos valores apresentados pelo particular.
Nesse sentido também asseverou Xxxxxxxxx xxx Xxxxxx Aragão:57 “A Administração deverá ressarcir os preços de custos vigentes à época do pagamento, não levando em conta os da épo- ca da prestação dos serviços, razão pela qual sequer se há de falar em correção monetária dos valores a serem ressarcidos”.
Parece-nos imprescindível, ainda, a manifes- tação da assessoria jurídica acerca do ocorrido, a fim de verificar a legalidade do expediente prati- cado.
Xxxxxxx, ainda, ser juntados os devidos pare- ceres emanados pelas áreas técnicas envolvidas
no objeto executado, a fim de subsidiar a tomada da decisão da autoridade competente.
Assim, em tal fase, diante dos elementos acostados nos autos do processo administrativo, e uma vez comprovada a situação alegada, deve- rá ser convolada a individualização da monta a ser paga ao particular, bem como deverão ser apontados os responsáveis, encerrando-se tal fase, avançando para a fase do relatório, em que está prestes a prolação da competente decisão.
8.3. Fase decisória
Nessa fase do processo, a autoridade prola- tará decisão, devidamente motivada, a qual teve estribo nos elementos constantes do processo administrativo, reconhecendo, se for o caso, a dí- vida discriminada no documento competente (re- cibo ou nota fiscal) a favor do particular, discrimi- nado o valor, devendo o ato administrativo ser devidamente assinado pela autoridade.
Esclareça-se que, deliberando a Administra- ção pelo pagamento da parcela devida, convém que tal seja instrumentalizado por meio de um termo de ajuste de contas, devendo ser assinado pela autoridade competente e pelo representante legal do particular, em caso de pessoa jurídica, ou pelo próprio interessado, em caso de pessoa natural.
Em linhas gerais, tal termo terá a qualificação das partes, devendo existir as seguintes cláusu- las: da descrição do objeto executado e suas características, do fundamento legal, do processo administrativo de origem, do reconhecimento da dívida, do valor do pagamento, da quitação plena, sem ressalvas, do foro para futuros questiona- mentos, do crédito pelo qual correrão as despe- sas.
O resumo da referida decisão deverá ser alvo de publicação na imprensa oficial competente a fim de dar eficácia à deliberação, devendo ser enviado aos competentes órgãos de controle, ca- so exista a devida determinação na legislação local.
56. TCU, Acórdão nº 2.222/2006 – Primeira Câmara: “2.1. ao utilizarem a modalidade de contratação prevista no art. 24, e incisos, para a contratação de prestação de serviços de duração continuada ou o pagamento previsto no art. 59 da Lei nº 8.666/93, justifiquem, nos autos do respectivo processo, de forma detalhada, com a conseqüente apuração de responsabilidades, se for o caso, os motivos que ensejaram a contratação direta e/ou o pagamento sem cobertura contratual”.
57. Ob. cit., p. 657.
9. Necessidade de apuração da responsa- bilidade de quem deu causa ao inadimple- mento
Na medida em que o inadimplemento de con- trato pode gerar mais ônus ao Poder Público, faz- se imprescindível a apuração dos fatos por meio de procedimento próprio e autônomo, visando à responsabilização do agente que deu causa aos eventuais prejuízos causados ao erário, ou mes- mo para apurar a eventual infração às normas disciplinares, se for o caso. O Poder Público não pode arcar com a eventual carga pecuniária im- posta pelo inadimplemento irregular, devendo a culpa ser apurada para a responsabilização do servidor omisso ou desidioso.
A Administração Pública tem o dever de apu- rar a ocorrência, na lição de Diogenes Gaspari- ni,58 com fundamento na “manutenção normal, re- gular, da função administrativa, o resguardo do prestígio que essa atividade tem para com os administrados, seus benefícios últimos, a reedu- cação dos servidores, salvo quando se tratar de pena expulsiva, e a exemplarização”.
Não se pode deixar de investigar o não-paga- mento de valores decorrentes de um ajuste inváli- do. Se a eficiência e a legalidade foram descum- pridas, o foram por alguém, ficando a Administra- ção Pública maculada pela desconfiança e por outros julgamentos subjetivos negativos, que com- prometem a crença na atuação estatal, o que pode prejudicar, inclusive, a obtenção de propostas mais vantajosas em certames competitivos ou não jun- to à iniciativa privada. Essa conduta pode reper- cutir, também, nos preços, pois a falta de confian- ça na Administração Pública pode gerar um custo a mais para o objeto pretendido, com vista à garan- tia de um eventual inadimplemento.
Sobre o tema, discorre Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx,59 em comentário ao parágrafo único do art. 59 do Estatuto federal Licitatório:
“A parte final do parágrafo único impõe à Administração o dever de apurar a responsa- bilidade quanto à acusação do vício fatal. Pro- mover responsabilidades, para usar-se o ver-
bo da lei, significa atuar em três esferas: res- ponsabilidade administrativa (de que poderá resultar a aplicação de penalidades a servi- dores); responsabilidade penal (mediante re- messa de peças ao Ministério Público, para que este, caso convença-se de que há indí- cios do crime, deflagre a ação penal cabí- vel); e a responsabilidade civil (ajuizamento de ação cabível para postular a reparação de danos acaso sofridos pela Administra- ção)”.
De qualquer forma, cabe ao gestor público e aos servidores públicos agir em conformidade aos princípios gerais do direito, à Constituição Fe- deral, às leis e aos regulamentos, não lhes sendo dado agir em desacordo com os valores univer- salizados, relativos ao bom cumprimento dos con- tratos.
A leniência do Poder Público em relação aos servidores públicos que descumpriram com suas funções habituais deve ser evitada, pois foi provo- cado não só prejuízo pecuniário, mas, também, dano à imagem daquele, posto que o rótulo de mau pagador será, por óbvio, a conseqüência des- se inadimplemento, o que, decerto, terá repercus- sões nos negócios envolvendo a Administração Pública.
10. Necessidade da sustação da execu- ção do objeto que ocorreu irregularmente
Esclareça-se que a adoção do expediente acima estudado necessariamente interromperá a execução de objeto que ocorreu sem o manto de um contrato válido.
Todavia, o interesse público protegido pela prestação irregular pode ficar descoberto até a finalização da licitação que visará regularmente contratá-lo, prejudicando, assim, a Administração na persecução dos seus objetivos institucionais.
Assim, ante os princípios da indisponibilida- de e supremacia do interesse público, admitir- se-ia uma contratação emergencial provisória, a fim de que a dita prestação contratual se revista de legalidade até a assinatura do competente contrato precedido de regular licitação.
58. Ob. cit., p. 1029.
59. Ob. cit., pp. 677/678.
11. Conclusão
Como verificado, a Administração que contra- tou um particular, que agia de boa-fé no ajusta- mento, sob a égide de um contrato administrativo inválido, poderá realizar o competente pagamen- to dos valores devidos, por meio de um processo administrativo denominado ajuste de contas, con- forme os contornos esposados.
Assim, realizando a contraprestação devida, afasta-se o enriquecimento ilícito da contratante, garante-se o equilíbrio jurídico e social, e a segu- rança jurídica das contratações envolvendo a Ad- ministração Pública e particulares.
Vê-se, portanto, que por meio do expediente supramencionado o Poder Público resolve admi- nistrativamente os problemas decorrentes do ina- dimplemento lastreado em contrato inválido, evi- tando-se a busca pelo Poder Judiciário da solu- ção de conflitos que podem facilmente ser resol- vidos naquele âmbito.
Por conseguinte, a Administração Pública preserva o erário, desafoga o Poder Judiciário e tranqüiliza os fornecedores, pois resolve, de pla- no, situações de inadimplemento envolvendo tais ajustes.
É certo que é mais seguro para o administra- dor público socorrer-se de argumentos baseados na falta de legalidade da medida por temor de responsabilizações futuras. Empurra-se o proble- ma para o Poder Judiciário, que provavelmente autorizará o reequilíbrio e livrará o agente público
jo à mácula que eivou a legalidade da contratação, tampouco convalida os atos contaminados.
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recur- so Especial nº 141.879–SP, recorrente: Xxxxx Xxxx
F. de Assumpção e outros, recorrido: Município de Limeira, rel. Ministra Xxxxxx Xxxxxx, DJ de 22.6.1998.
de eventual responsabilização por pagamento in- . Superior Tribunal de Justiça. Recurso
devido. Entretanto, este trabalho mostra que há alternativa para o pagamento da justa prestação entregue pelos contratados, ainda que decorren- tes de ajustes inválidos. Basta que esse procedi- mento seja racionalizado em âmbito administrati- vo e disciplinado pelos meios legais. O ajuste de contas facilita a composição do Poder Público com os contratados prejudicados e atende aos
Especial nº 579.541–SP, recorrente: Xxxxxxxx Xxxxxx e outro, recorrido: Néfi Tales, rel. Ministro Xxxx Xxxxxxx, DJ de 19.4.04.
. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 658.130–SP, recorrente: Estado de São Paulo, recorrido: Elotec Construções Ltda., rel. Ministro Xxxx Xxx, DJ de 28.9.06.
princípios da boa-fé, da confiança e da segurança . Superior Tribunal de Justiça. Recurso
jurídica; enfim, promove a pacificação de conflitos que, na maioria das vezes, prejudica a própria Administração Pública.
Por fim, a realização do expediente em relevo
Especial nº 928.315–MA, recorrente: Estado do Maranhão, recorrido: VCR Produções e Publici- dades Ltda., rel. Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx, DJ de 29.6.07.
não afasta a necessidade da instauração do com- . Superior Tribunal de Justiça. Recurso
xxxxxxx processo administrativo visando à res- ponsabilização do servidor público que deu ense-
Especial nº 859.722–RS, recorrente: AES Sul Dis- tribuidora Gaúcha de Energia S.A., recorrido: Mu-
nicípio de Novo Hamburgo, rel. Ministro Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, DJ de 17.11.09.
. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 2.222/2006 – Primeira Câmara, rel. Ministro Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx.
. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação nº 994.09.244464-0, recorrente: Finbank Consultoria e Assessoria Empresarial Ltda., recorrida: Prefeitura Municipal de Cotia, rel. Desembargadora Xxxxxxx Xxxxxxxxx.
. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 990.10.233544-5, re- corrente: Construtora Simoso Ltda., recorrido: Juízo ex officio, rel. Desembargador Leme de Campos.
. Tribunal Regional Federal da 1ª Re- gião. Agravo de Instrumento nº 0000.00.00.00 0730-0–DF, rel. Desembargadora federal Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, DJ de 22.5.06.
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