RETENTION OF TITLE CLAUSE ON THE CONTRACT OF PURCHASE AND SALE: REFLECTIONS FOR YOUR UNDERSTANDING AT THE BRAZILIAN AND
CLÁUSULA DE RESERVA DE DOMÍNIO/PROPRIEDADE NO CONTRATO DE COMPRA E VENDA: REFLEXÕES PARA SUA COMPREENSÃO NO DIREITO BRASILEIRO E PORTUGUÊS
RETENTION OF TITLE CLAUSE ON THE CONTRACT OF PURCHASE AND SALE: REFLECTIONS FOR YOUR UNDERSTANDING AT THE BRAZILIAN AND
PORTUGUESE LAW
Xxxxxxxxx xx Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx*
RESUMO
O presente trabalho tem por escopo apresentar algumas reflexões para a compreensão da cláusula de reserva de propriedade no âmbito do contrato de compra e venda. Justifica-se, pela importância prática do tema, visto que esta cláusula acessória tem uma utilização muito frequente no comércio jurídico, nomeadamente na compra e venda a crédito. Não se intentou esgotar o conteúdo, mas abordar alguns pontos imprescindíveis para a compreensão do instituto. Embora com terminologias diferentes no Brasil e em Portugal, o espírito da norma é mesmo. Consiste em uma cláusula que deve expressamente estabelecer a transmissão da propriedade do objeto da compra e venda somente com a realização do pagamento do preço combinado. Pode-se dizer que é uma convenção de garantia do preço na compra e venda.
PALAVRAS-CHAVES: Cláusula de reserva de propriedade; Contratos; Contrato de compra e venda; direito comparado.
ABSTRACT
This paper has the purpose to present some reflections for the understanding of the retention of title clause on the sale and purchase agreement. This is justified by the practical importance of the topic, because this accessory clause has a very frequent use in legal transactions, including the sale and purchase on credit. It was not the goal to exhaust the topic, but discussing some essential points for understanding the institute. Although with different terminologies in Brazil and Portugal, the spirit of the rule is the same. Consists on a clause that should expressly establish the transfer of ownership of the object of purchase and sale only with the completion of the payment of agreed price. It's possible to say that is a guarantee agreement of purchase and sale price.
KEYWORDS: Retention of title clause; Contracts; Contract of purchase and sale; Comparative law.
* Mestranda em Ciências Jurídico-Históricas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora do Centro Universitário de Xxxx Xxxxxx - UNIPÊ. Currículo lattes: <xxxx://xxxxxx.xxxx.xx/0000000000000000>. E-mail: xxxxxxxxx@xxxxx.xxx.xx
1 INTRODUÇÃO
Dentro de um processo de globalização e de interdependência humana, e em um mundo que perdeu fronteiras econômicas, políticas e jurídicas, é mister que se façam estudos comparados, e, ante esta proposta, debruçar-se-á sobre cláusula de “reserva de domínio/propriedade”, ainda pouco discutida no Brasil, mas nem por isso de menor importância ao direito.
Embora com terminologias diferentes em Brasil e Portugal, tem a mesma essência e o mesmo espírito, como se verá adiante. A finalidade desta cláusula contratual especial, quer no Direito brasileiro, quer no Direito português, é a segurança para o vendedor do recebimento integral do preço. No Código Civil brasileiro atribuiu-se a denominação “reserva de domínio” e no Código Português “reserva de propriedade”1. O Código Civil brasileiro no art. 521, estabelece que “na venda de coisa móvel, pode o vendedor reservar para si a propriedade, até que o preço esteja integralmente pago”, seguindo de um estatuto distribuído por mais sete artigos. A princípio percebe-se que o objeto na reserva de domínio, somente pode ser coisa móvel. O dispositivo se mostra objetivo quanto ao pagamento do preço, devendo ser em dinheiro.
A reserva de propriedade em Portugal está prevista no art. 409º do Código Civil, estabelecida não só para os contratos de compra e venda, mas para qualquer contrato de alienação2 de coisas móveis e imóveis. Dispõe ainda que, para o alienante é lícito reservar para si a propriedade da coisa até o cumprimento total da obrigação ou a realização de qualquer outro evento, in verbis:
ARTIGO 409º
1. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
2. Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros.
Pela leitura do dispositivo, pode-se extrair a conclusão de que a reserva de propriedade é admitida em termos latos: podendo ser convencionada em contratos que tenham
1 O Código Civil brasileiro usa a expressão “reserva de domínio”, que no entender de Xxxxxxx Xxxxx XXXXXXXXXXX, 2005, p. 66, pode-se dizer que trata-se de sinônimos, pois nenhum contraste especial decorre desta diferença terminológica.
2 De acordo com o art. 939º do Código Civil Português, as normas da compra e venda são aplicáveis aos outros contratos onerosos pelos quais se alienam bens ou se estabeleçam encargos sobre eles, com as respectivas ressalvas.
por objeto coisas imóveis, móveis sujeitos a registro ou móveis não sujeitos a registro. Pode ser aposta em quaisquer contratos de alienação (doação, dação em pagamento, permuta), contudo, é geralmente estabelecida nos contratos de compra e venda3 e pode o evento ser outro que não o pagamento do preço.
É de vislumbrar neste estudo, os pontos que nos ordenamentos estudados se aproximam e se afastam. É de suma importância esta análise para o Direito comparado principalmente se tratando de uma cláusula do contrato de compra e venda, considerado um contrato paradigmático pela sua importância econômica e jurídica. Assume relevância também no conhecimento e aperfeiçoamento do direito nacional, porquanto se torna um guia no esclarecimento do direito alienígena.
Desta sorte, para uma melhor compreensão far-se-á uma sistematização dos pontos mais importantes que se encontram nos dois ordenamentos, com algumas interpretações doutrinárias de autores nacionais e estrangeiros e o comportamento jurisprudencial.
Metodologicamente, optou-se por iniciar com uma breve abordagem da origem e evolução da cláusula de reserva de propriedade, seguida da caracterização e regime geral da compra e venda com reserva de propriedade, e finalizando-se com suas repercussões jurídicas.
2 CLÁUSULA DE RESERVA DE PROPRIEDADE
Ensina o doutrinador brasileiro Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx (2004, p. 238) que a venda com reserva de domínio é uma “modalidade especial de venda de coisa móvel, em que o vendedor tem a própria coisa vendida como garantia do recebimento do preço. Só a posse é transferida ao adquirente. A propriedade permanece com o alienante e só passa àquele após o recebimento integral do preço”. Na interpretação de Xxxxx Xxxxxx Xxxxx (2007, p. 214), ela informa que “o vendedor reserva para si a sua propriedade e a posse indireta até o momento em que se realize o pagamento integral do preço”. E acrescenta que a tradição “não transfere a propriedade, mas tão-somente a posse direta e precária da coisa ao comprador”.
De acordo com a Diretiva 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho4 em
3 Neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23.10.2008, de Xxxxxxxx xx Xxxxx: “A lei caracteriza o contrato de compra e venda como sendo aquele pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço, e do qual resultam os efeitos essenciais, por um lado, os consubstanciados nessa transmissão, e, por outro, as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço (artigos 874º e 879º do Código Civil). É um contrato com eficácia real, porque a transferência do direito real sobre a coisa é um seu efeito directo, mas, neste ponto, comporta excepções, por exemplo o caso da reserva de propriedade pelo alienante até que o comprador cumpra total ou parcialmente a obrigação de pagamento do preço (artigos 408º, nº 1, e 409º, nº 1, do Código Civil)”.
4 A Diretiva 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de junho de 2000, prescreve medidas de
seu art. 2º, nº 3 é “o acordo contratual, segundo o qual o vendedor continua a ser proprietário do bem em questão até o preço ter sido pago integralmente”.
Consiste numa cláusula que deve expressamente estabelecer a transmissão da propriedade do objeto da compra e venda somente com a realização do pagamento do preço combinado. Pode-se dizer que é uma convenção de garantia do preço na compra e venda. A propriedade não é transmitida ao comprador em virtude da tradição, mas se mantém em poder do vendedor como garantia da realização plena da obrigação do comprador (XXXXXXX XXXXX, 0000, p. 296 e 298; XXXXXXXX, 2003, p. 36 e 27). Deste modo, a cláusula de reserva de propriedade apresenta-se com a função de garantir o crédito do vendedor pelo preço de compra, nascida da convenção entre as partes (LIMA PINHEIRO, 1988, p. 23).
A cláusula de reserva de propriedade (pactum reservati dominii) se apresenta normalmente nas alienações de coisas móveis e a sua função econômica é a de garantir o crédito do vendedor, caso o comprador não pague o preço ou parte dele (VAZ SERRA, 1958,
p. 356 e 357). Pelo lado econômico e social ela se apresenta vantajosa, visto que diminui os riscos para os vendedores com as vendas a prestações ou com espera de preço estimulando, dessa forma, as vendas (GALVÃO TELLES, 1959, p. 137).
O fim pretendido pelas partes com o ajuste da cláusula de reserva de propriedade é garantir a satisfação do crédito do vendedor ao preço. O perfil socioeconômico da reserva de propriedade5 (pactum reservati dominii), prevista nos artigos supracitados, trata-se de uma cláusula contratual acordada geralmente nos contratos de compra e venda a prestações, em que a propriedade da coisa não se transfere para o comprador enquanto não houver o cumprimento total ou parcial da obrigação. O vendedor continua proprietário da coisa até o pagamento integral do preço.
luta contra os atrasos de pagamentos nas transações comerciais. Os atrasos no cumprimento das obrigações e os prazos excessivos acordados pelas grandes empresas que, nas transações comerciais tem um poder econômico privilegiado, impõem as pequenas e médias empresas seu domínio, causando um desequilíbrio que se verifica nas relações comerciais dos Estados-membros, haja vista que elas são essenciais para o funcionamento das respectivas economias. Essa Diretiva foi criada com o objetivo de conciliar o regime jurídico da mora do devedor e o procedimento de cobrança de dívidas, bem como incluir a cláusula de reserva de propriedade nos Estados-membros da Comunidade Europeia. Vide XXX XXXXXXXX XXXXX, 2005, p. 9 e ss.; XXXXXX, 2009; DIAS, 2007, p. 448; XXXXXXX XXXXX, 0000, p. 296, onde o autor esclarece que em virtude da cláusula de reserva de propriedade ter consagração expressa no direito português, não conste do decreto-lei nº 32/2003, de 17 de fevereiro, que transpôs a Diretiva 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho.
5 Há outros dispositivos que tratam da reserva de propriedade, dentre eles, podemos citar: o art. 934º do Código Civil Português fazendo referência à venda a prestações, vedando ao alienante a resolução do contrato se a falta de pagamento se der por causa de uma só prestação que não exceda a oitava parte de preço; o art. 304º, nº3 que discorre sobre os efeitos da prescrição, no sentido de que, apesar de prescrito o crédito do preço, pode o vendedor “exigir a restituição da coisa, quando o preço não seja pago”. Verifica-se, portanto, que o vendedor pode recuperar a coisa vendida com reserva de propriedade. Todavia não pode exigir judicialmente o cumprimento do contrato.
3 ORIGEM E EVOLUÇÃO
A cláusula de reserva de propriedade é uma figura relativamente recente no direito português. No antigo Direito Romano ela não era conhecida (XXXXXXX XXXXXXXX, 1996,
p. 320). O pactum reservati dominii surgiu no Direito Comum. Hoje o pacto de reserva de propriedade se reveste de grande importância, sendo considerado uma das garantias mais eficazes e correntes no tráfego jurídico.
A consagração jurídico-positiva da cláusula de reserva de propriedade deu-se com o Código Civil de 1966 (DIAS, 2007, p. 417). Contudo, sua inserção no contrato de compra e venda, vinha sendo admitida pela doutrina ainda na vigência do Código de Seabra, ao abrigo da parte final do art. 715º, que admitia a estipulação convencional de cláusula contrária à regra da eficácia real do contrato de compra e venda (PERALTA, 1990, p. 39). O legislador do Código Civil de 1966, com base no Anteprojeto de Inocêncio Xxxxxx Xxxxxx acolhe-a expressamente, para quem às “exigências sociais e econômicas têm de se curvar o Direito, uma vez que não se opõe nenhum obstáculo insuperável de técnica jurídica, nem há interesses legítimos que possam perigar falhos de proteção adequada”.
Não obstante a inserção do instituto da reserva de propriedade no Código Civil de 1966, sua regulamentação mostrou-se incompleta porque não contemplou todos os efeitos da figura jurídica. Contudo, a partir de uma análise comparada, a insuficiência do regime legal não se traduz apenas no ordenamento jurídico português (DIAS, 2007, p. 417). Na Europa, o regime legal italiano e o espanhol são os que se apresentam de forma mais completa (PERISSINOTO, 2005, p. 67).
No direito brasileiro, o Código Civil anterior não regulava a cláusula de reserva de domínio, o instituto era tratado em algumas leis esparsas, dentre elas o Decreto-lei nº 869/38, art. 3º, nº IV (depois a Lei 1521/51, art. 2º, X); o Decreto-lei 1027/39; a Lei de Registros Públicos (PERISSINOTO, 2005, p. 66). A partir do Código vigente podemos encontrar a figura jurídica expressamente regulada nos artigos 521º a 528º e igualmente no Código de Processo Civil, nos artigos 1.070 e 1.071 e em seus parágrafos.
4 REGIME DA VENDA COM RESERVA DE PROPRIEDADE
Com o desenvolvimento comercial, sobretudo das vendas de bens mobiliários
(PERISSINOTO, 2005, p. 66)6, o vendedor, por razões de segurança, quer permanecer proprietário da coisa enquanto o preço ajustado não estiver inteiramente pago. É em tal contexto que se fala em cláusula de reserva de domínio/propriedade, que deve ser estipulava por ocasião da celebração do contrato de compra e venda. Em Portugal, essa cláusula pode ser convencionada em relação a quaisquer bens móveis e imóveis, contudo devem ser coisas especificadas e não consumíveis (LEITÃO, 2010, p. 57; VENTURA, 1983, p. 606).
No direito brasileiro é apenas admitida aos bens móveis, conforme dispõe o art. 521 do Código Civil, “na venda de coisa móvel, pode o vendedor reservar para si a propriedade, até que o preço seja integralmente pago”. A propósito, observa Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx (2004, p. 239) que, “malgrado o campo de incidência da venda com reserva de domínio seja o de bens móveis infungíveis, inexiste qualquer norma que proíba a sua aplicação à venda de imóveis”. Corrobora tal entendimento Xxxxx Xxxxxxx (1960, p. 263) quando afirma que, “não é a reservatio dominii, por sua natureza jurídica, inaplicável aos imóveis. Ficou visto mesmo que, historicamente, a sua prática passou pelo estádio imobiliário”.
Quanto a especificação do bem, no Brasil, refere expressamente o art. 523: “Não pode ser objeto de venda com reserva de domínio a coisa insuscetível de caracterização perfeita, para estremá-la de outras congêneres. Na dúvida, decide-se a favor do terceiro adquirente de boa-fé”.
A convenção da reserva de propriedade presume-se um contrato principal, dependendo o seu formalismo do exigido para o negócio (XXXX XXXXXXXX, 1988, p. 42). A opinião da doutrina portuguesa é que ela não pode ser aposta após a celebração do contrato. Deve ser convencionada no mesmo momento, porque se a propriedade se transfere por mero efeito do contrato7, sua posterior inserção não faz qualquer sentido (LEITÃO, 2010, p. 56).
No direito brasileiro se exige expressamente que a cláusula de reserva de propriedade seja realizada por escrito, conforme dispõe o art. 522. “A cláusula de reserva de domínio será
6 Na doutrina brasileira a ideia de propriedade é comumente relacionada a coisas corpóreas e incorpóreas, e a expressão domínio quando trata-se somente de coisas corpóreas.
7 O Código Civil português vigente confere à compra e venda eficácia real e não simplesmente obrigacional. Nos termos do art. 879º da lei portuguesa, “A compra e venda tem como efeitos essenciais: a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; b) A obrigação de entregar a coisa; c) A obrigação de pagar o preço”. O próprio contrato transfere a propriedade da coisa vendida para o comprador. Em Portugal, a produção de efeitos meramente obrigacionais vigorou até o Código Civil de Seabra, de 1867, quando o legislador português foi influenciado pelo Código Civil Francês (de Napoleão). Em virtude da cláusula de reserva, o efeito real consistente na transmissão da propriedade não se verifica até o pagamento do preço, já os outros dois efeitos são imediatos. Diferentemente do que ocorre com a compra e venda consagrada no Código Civil Português vigente, o Código Civil Brasileiro atribui ao contrato de compra e venda uma eficácia meramente obrigacional, Cfr. art. 481: “Pelo contrato de compra e venda um dos contraentes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, pagar-lhe certo preço em dinheiro”. No caso da propriedade imóvel, art. 1.245: “Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis”. Quanto as coisas móveis, art. 1.267: “A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição”.
estipulada por escrito e depende de registro no domicílio do comprador para valer contra terceiros”.
Registre-se que em Portugal, na pendência da cláusula de reserva de propriedade, aquilo que o comprador pode dispor é tão só a expectativa de que é titular, que se limita a uma expectativa futura de um direito real e não de qualquer direito de propriedade. Ao comprador não está vedada a possibilidade de alienar a posição jurídica de que é titular. Por isso, vem sendo admitida a penhora da expectativa por parte dos credores do comprador. O Código de Processo Civil português estabelece expressamente a possibilidade da penhora no seu art. 860º-A (CAMPOS, 2009, p. 133; XXXX, 2007, p. 435 e 436)8.
Tal como em Portugal, a doutrina brasileira (RIZZARDO, 2006, p. 386) entende que o comprador tem apenas um mero direito de expectativa. E que esse direito de expectativa “pode ser objeto de penhora, arresto, sequestro, ou qualquer outra medida constritiva”. Mas, afirma que “se o vendedor-credor ainda tiver prestações a receber, o remédio jurídico para a defesa é encontrado nos embargos de terceiro, que podem ser deferidos, tão-somente quanto as prestações restantes, permitindo-se que se efetue o leilão do bem”.
Destaca-se que tal como é digno de proteção o vendedor que é titular da coisa reservada, também o é o comprador que tem a expectativa de adquiri-la. Sendo certo que, da mesma forma que a cláusula de reserva de propriedade é oponível por parte do vendedor a terceiros adquirentes ou credores do comprador, também o comprador deve poder opor o seu direito e esta posição ser tutelada face aos terceiros adquirentes ou credores do vendedor (CAMPOS, 2009, p. 148).
A vigência da cláusula de reserva de propriedade a favor do vendedor denota que o mesmo não pode, durante esse período, alienar o direito de propriedade plena sobre a coisa, porque a sua titularidade resume-se à reserva de domínio que conservou, por ocasião da conclusão do negócio, com a finalidade de garantia (CAMPOS, 2009, p. 133). Embora possa nomear à penhora, conforme entendimento do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, de 12/05/20059:
É perfeitamente admissível, é válido, é legitimo, é legal, que o detentor da reserva de propriedade possa nomear à penhora o bem sobre que incide
8 Cfr. Código de Processo Civil Português. ART. 860.º-A. (PENHORA DE DIREITOS OU EXPECTATIVAS DE AQUISIÇÃO): 1. À penhora de direitos ou expectativas de aquisição de bens determinados pelo executado aplica-se, com as adaptações necessárias, o preceituado nos artigos antecedentes acerca da penhora de créditos. 2. Quando o objecto a adquirir for uma coisa que esteja na posse ou detenção do executado, cumprir- se-á ainda o previsto nos artigos referentes à penhora de imóves ou de móveis, conforme o caso. 3. Consumada a aquisição, a penhora passa a incidir sobre o próprio bem transmitido.
9 Cfr. Processo nº 05B993 - Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx.
tal reserva, sendo certo que nesse caso estará a renunciar ao seu "domínio" sobre o bem, tanto mais que nos casos em que o detentor da reserva de propriedade opta pelo pagamento da quantia em dívida – em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre a qual a mesma incide - deixa de poder fazer operar a reserva de propriedade constituída, deixa de poder reivindicar para si o bem...
No direito brasileiro, Xxxxxxx Xxxxxxxx (2006, p. 386) entende que não há nenhum impedimento em o vendedor ceder o seu direito a terceiros, desde que notifique o comprador dessa cessão.
4 NATUREZA JURÍDICA DA VENDA COM RESERVA DE DOMÍNIO/PROPRIEDADE
A natureza jurídica da compra e venda com reserva de domínio/propriedade tem sido motivo de controvérsias entre os doutrinadores. Menezes Leitão (2010, p. 227) elenca seis teorias principais: teoria da condição suspensiva; teoria da condição resolutiva; teoria da venda obrigacional; teoria da dupla propriedade; teoria da venda com eficácia translativa imediata, associada à atribuição do vendedor de uma posição jurídica, que lhe garante, com eficácia real, a recuperação do bem em caso de não pagamento do preço; e teoria da venda com eficácia translativa diferida ao momento do pagamento do preço. A opção desta ou daquela teoria tem reflexos diretos na concepção acerca das posições jurídicas do comprador e do vendedor.
4.1 TEORIA DA CONDIÇÃO SUSPENSIVA
Em Portugal, a doutrina majoritária tem defendido que a venda com reserva de propriedade é uma alienação feita sob condição suspensiva: os efeitos do negócio se produzem integralmente, ficando apenas em suspenso o efeito translativo. Ou seja, o vendedor continua proprietário na pendência da condição, sendo o comprador apenas titular de uma mera expectativa de aquisição futura de uma coisa.
A teoria da condição suspensiva corresponde à posição clássica sobre a venda com reserva da propriedade. Esta posição também é sustentada na Alemanha, na Itália e no Brasil. Representa também a posição tradicional da doutrina portuguesa por doutrinadores como Xxxxxx Xxxxxx, Xxxxxxx Xxxxxx, Xxxxxxx Xxxxx, dentre outros. A maior crítica a essa teoria é que como o pagamento do preço é um elemento essencial do contrato de compra e venda, não
pode ser também condição (XXXXXX, 2010, p. 62). Mas para Xxxxxx Xxxxxx (1959, p. 138) essa crítica não é relevante, e este autor afirma que:
Nenhum princípio e nenhum interesse se opõe à admissão deste arranjo contratual. Nem se diga que o preço, elemento essencial da venda, não pode ser ao mesmo tempo seu elemento acidental, mera condição suspensiva. Porque o elemento essencial é a estipulação da dívida do preço, que não pode faltar; o elemento acidental, o pagamento dessa dívida, facto futuro e incerto, estranho à substância da convenção.
De acordo com essa teoria, a reserva de propriedade deveria ser qualificada como uma condição suspensiva, na medida em que a transmissão da propriedade ficaria subordinada a um fato futuro e incerto, o pagamento do preço, o que permitiria ver a posição jurídica do comprador como a de adquirente condicional. Nesse caso, o risco do perecimento da coisa durante esse período correria por conta do vendedor, ainda que a coisa já tivesse sido entregue ao comprador, conforme o art. 796º, nº3 (LEITÃO, 2010, p. 62).
Esta teoria, no entanto, não é totalmente pacífica, pois existem algumas vozes discordantes como Xxxx Xxxxxxxx (1988, p. 93 e ss.), Peralta (1990, p. 135) e Menezes Leitão (2010). Para este, não é tecnicamente um evento condicional o cumprimento da obrigação de pagamento do preço, porque ele constitui um dos elementos essenciais do negócio. E além do mais, para ele essa obrigação de pagamento de preço é constituída logo no momento da celebração do contrato, uma vez que o vendedor pode proceder à sua cobrança no caso de incumprimento, o que demonstra não haver qualquer suspensão dos seus efeitos. Sustenta ainda que a aquisição da propriedade pelo comprador se verifica no momento do pagamento do preço, e não retroage à data da conclusão do negócio, o contrário de que imporia o art. 276° (LEITÃO, 2010, p. 62 e 63).
Perante essa natureza jurídica, o comprador é o adquirente condicional e o vendedor é o proprietário do bem.
Segundo Xxxx Xxxxxxxx (1988, p. 115), “a condição suspensiva subordina a transferência do direito de propriedade, não obsta porém a transmissão da posse, que se opera com a tradição da coisa”. Para este autor, o comprador “detém o conjunto de poderes de gozo e disposição que correspondem ao direito de propriedade”, enquanto “a propriedade reservada do alienante consiste apenas na titularidade “abstrata” do direito de propriedade”.
A luz desse entendimento, por força da cláusula de reserva, a propriedade só se transfere no momento em que o comprador cumprir a obrigação fundamental de pagamento do preço.
4.2 TEORIA DA CONDIÇÃO RESOLUTIVA
Essa teoria encontra defensores em Itália, Alemanha e Brasil. Há quem considere que a cláusula de reserva de propriedade se trata de uma condição resolutiva, caso em que o comprador se torna o proprietário da coisa logo no momento da celebração do contrato, ficando essa propriedade resolutivamente condicionada ao pagamento integral do preço ou à verificação de um qualquer outro evento.
Em Portugal ela chegou a ser defendida por Xxxxx Xxxxxxxxx (apud XXXX XXXXXXXX, 1988, p. 97), ainda na vigência do Código de Seabra. Esse autor considerava haver um equívoco na denominação “reserva de propriedade” e sustentava que nos casos em que a coisa é entregue antes do pagamento integral do preço, tratar-se-ia de uma condição resolutiva.
Segundo esta teoria, a propriedade é desde logo transmitida ao comprador, mas a partir do momento em que se realizasse o incumprimento do pagamento do preço, sobreviria os efeitos do negócio, com eficácia retroativa, sendo a propriedade recuperada pelo vendedor (LEITÃO, 2010, p. 63).
A crítica a essa teoria, em Portugal, é no sentido de que essa solução contradiz a disposição do art. 409º, nº 1, que refere expressamente que o alienante reserva para si a propriedade até ao pagamento do preço.
Para essa teoria o comprador é o proprietário da coisa e o vendedor é titular de uma garantia. Assim, “o vendedor estava reduzido a um credor pignoratício ou hipotecário. Era titular de um direito real de garantia” (PERISSINOTO, 2005, p. 71).
4.3 TEORIA DA VENDA OBRIGACIONAL
A teoria da venda obrigacional encontra defensores em Itália. Em Portugal não foram encontrados seguidores, em virtude da natureza real do contrato de compra e venda no direito português (PERALTA, 1990, p. 12). Fundamentam-se os defensores dessa teoria na ideia de que, na compra e venda com reserva de propriedade, os efeitos reais não se verificariam por causa do mútuo consenso contratual, mas dependeria de um ato posterior (CAMPOS, 2009, p. 270).
Para Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx (2010, p. 273), a compreensão da venda obrigatória se mostra insuficiente para explicar os poderes de que o comprador desfruta no
período de pendência. O diferimento do efeito translativo determina que, no período intermédio, o vendedor seja titular de um direito de propriedade limitado pelo concorrente direito do comprador. Todavia, o adquirente é titular de um direito de gozo oponível ao alienante e a terceiros, direito esse que não se explicaria com a concepção da venda com reserva de propriedade como venda obrigatória. E o efeito translativo não depende do cumprimento de uma obrigação a cargo do vendedor, mas do comportamento do comprador que, ao pagar o preço, manifesta-se automaticamente.
De acordo com essa teoria, haveria então a obrigação para o vendedor de fazer o comprador adquirir o bem após o pagamento do preço. No entanto, segundo a crítica, a aquisição da propriedade pelo comprador se verifica logo que ele cumpre a obrigação de pagar o preço (LEITÃO, 2010, p. 64).
4.4 TEORIA DA DUPLA PROPRIEDADE
Segundo esta teoria, defendida em Itália, após a celebração do contrato e até o pagamento do preço, ambas as partes devem se considerar proprietárias: o comprador é proprietário sob reserva do pagamento do preço e o vendedor é titular de uma propriedade reduzida em garantia do pagamento do preço.
A venda com reserva de propriedade se constitui como um exemplo de surgimento de novos tipos de propriedade especial. O comprador adquiriria já um tipo peculiar de propriedade que, embora lhe permitisse o exercício do gozo da coisa, teria um conteúdo mais reduzido do que a propriedade tradicional, na medida em que poderia perder o seu direito no caso de falta de pagamento do preço, e a sua propriedade pereceria em relação aos seus credores perante o exercício do direito do vendedor (LEITÃO, 2010, p. 64).
A crítica contra esta teoria se funda na propriedade ser um direito exclusivo. Xxxxxxxx-se assim impossível a coexistência de dois direitos de propriedade sobre a mesma coisa, de acordo com o art. 1305º do Código Civil português.
4.5 TEORIA DA VENDA COM EFICÁCIA TRANSLATIVA IMEDIATA, ASSOCIADA À ATRIBUIÇÃO DO VENDEDOR DE UMA POSIÇÃO JURÍDICA, QUE LHE GARANTE, COM EFICÁCIA REAL, A RECUPERAÇÃO DO BEM EM CASO DE NÃO PAGAMENTO DO PREÇO
Essa teoria foi defendida em Itália e na Alemanha. De acordo com este
entendimento, na venda com reserva de propriedade, o comprador embora não tenha pago a totalidade do preço, já é titular do direito de propriedade e ao vendedor corresponde o direito real de garantia. Segundo Xxxxxxx Xxxxxx (2010, p. 65), a venda com reserva de propriedade se destina apenas a conferir ao vendedor uma situação jurídica real que lhe permite recobrar a propriedade em caso de não pagamento do preço. O autor explica ainda que, “na venda com reserva de propriedade, apesar de onerada com o direito real de garantia, a propriedade se transmitiria de imediato para o comprador importando o pagamento do preço, não a aquisição da propriedade e sim a extinção dessa garantia real”.
A maior crítica a esse pensamento, é que se aproxima mais do penhor, devendo por isto ser incluída nos direitos reais de garantia.
4.6 TEORIA DA VENDA COM EFICÁCIA TRANSLATIVA DIFERIDA AO MOMENTO DO PAGAMENTO DO PREÇO, COM A ATRIBUIÇÃO MEDIO TEMPORE AO COMPRADOR DE UMA POSIÇÃO JURÍDICA DIVERSA DA PROPRIEDADE.
Esta teoria se configura como majoritária, e é defendida em Alemanha e Itália. Com fundamento nesta teoria, tanto o vendedor como o comprador são titulares de situações jurídicas reais. O comprador obtém, logo com a celebração do contrato, uma posição jurídica específica, distinta da propriedade, qualificada como uma expectativa real de aquisição. O vendedor, naturalmente, conserva a propriedade sobre o bem, ainda que esta passe a ser onerada pela posição jurídica do comprador (LEITÃO, 2010, p. 66).
Em Portugal, esta teoria é seguida por Xxx Xxxxx Xxxxxxx (1990, p. 165-167) que entende a compra e venda com reserva de propriedade como um tipo especial de compra e venda. Defende que o comprador é titular de uma expectativa jurídica de natureza real e, dentro da categoria de direito real, deve ser classificado como um direito real de aquisição. A autora acrescenta ainda “tratar-se de um real de aquisição cujo conteúdo é integrado pela posse do bem”, sem representar nenhuma anormalidade, apesar desse tipo de direito real não originar posse. Também constata que “com a qualificação da expectativa do comprador como direito real não é contrariado o princípio do numerus clausus, expressamente consagrado no art. 1306º, nº1 do Código Civil”.
Menezes Leitão (2010, p. 66), analisando a questão, faz algumas considerações e entende ser a melhor posição a teoria da atribuição ao comprador de uma expectativa real de aquisição. Esclarece que o vendedor conserva a propriedade sobre o bem, ainda que limitada pela posição do comprador. A manutenção da propriedade no vendedor tem por fim a função
de garantia do pagamento do preço, possibilitando ao vendedor, no caso de incumprimento pelo comprador, resolver o contrato e exigir a restituição da coisa.
No que se refere ao comprador, até ao pagamento do preço, como ele ainda não é proprietário (porque a cláusula de reserva de propriedade garante a manutenção da propriedade no vendedor), também não se pode afirmar que a sua posição seja apenas de caráter obrigacional, dado que com a realização do negócio é conferido ao comprador uma expectativa jurídica de aquisição do bem, naturalmente oponível a terceiros.
Trata-se de uma expectativa real de aquisição. Sendo assim, é certo que o contrato confere ao comprador, em um mesmo ato, um direito de gozo inerente à coisa e que é oponível erga omnes, e ainda uma posição jurídica de natureza real. Esta expectativa real atribui ao comprador o poder de usar e fruir da coisa, sendo apenas vedada a sua disposição, por ser incompatível com a função de garantia a favor do vendedor manifestada pelo instituto da reserva de propriedade (LEITÃO, 2010, p. 67).
Embora exista uma diversidade de posições assumidas pela doutrina na qualificação jurídica da cláusula de reserva da propriedade, não se impediu o entendimento de reconhecer ao comprador um direito de expectativa com eficácia real.
5 A QUESTÃO DO RISCO
Risco é o perigo a que está sujeita a coisa, de perecer ou deteriorar-se, por caso fortuito ou força maior. No Brasil, a transferência do risco vem elencada na lei e comumente no contrato de compra e venda. O vendedor assumirá o risco da coisa até o momento da tradição, porque até então o domínio é seu, e, como a coisa perece para o seu dono - res perit domino - enquanto não se integra no patrimônio do comprador, sofre o alienante o seu perecimento ou a sua danificação (PEREIRA, 2003, p. 125). O Código Civil brasileiro dispõe no seu art. 492 que: “até o momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do vendedor, e os do preço por conta do comprador”.
No direito brasileiro vigora a regra de que “pelos riscos da coisa responde o comprador, a partir de quando lhe foi entregue”. Assim entende o direito brasileiro, art. 524: “a transferência de propriedade ao comprador dá-se no momento em que o preço esteja integralmente pago. Todavia, pelos riscos da coisa responde o comprador, a partir de quando lhe foi entregue”. Compreende-se “como tradição e, portanto, deslocamento do risco para o comprador, o fato de a coisa ter sido posta à disposição deste” (XXXXXXX, 2003, p. 125).
No direito português prevalecem os princípios norteadores da questão da
transferência do risco nos contratos de alienação que estão estabelecidos no artigo 796º.
A propósito de demonstrar a relevância do tema, faz-se mister trazer o pensamento jurisprudencial10, na forma de um Acórdão da Relação do Porto que trata do risco no contrato de compra e venda (perda e deterioração da coisa), com cláusula de reserva de propriedade, in verbis:
I - No contrato de compra e venda de mercadorias o risco de perecimento ou deterioração da coisa vendida toca tanto ao comprador quanto ao vendedor.
II - Verificado o perecimento ou deterioração da coisa vendida o comprador perde a possibilidade de utilizar a coisa e a possibilidade de, no futuro, ainda que a pague integralmente, adquirir a sua propriedade plena.
III - Verificado o perecimento ou deterioração da coisa vendida o vendedor não é directamente prejudicado com o desaparecimento da coisa, mas deixa de gozar da garantia de pagamento do preço ainda em débito, ainda que mantendo o direito ao recebimento do preço integral.
IV - Tal significa que o risco de perda ou deterioração da coisa é suportado por vendedor e comprador, ainda que com valorações diferentes.
V - A cláusula de reserva de propriedade funciona como condição suspensiva quanto á transferência da propriedade do bem vendido sendo, na maioria dos casos ajustada com um mero efeito de garantia, principalmente quando acordada nos contratos de compra e venda de bens móveis, com espera de preço.
VI - Sempre que tenha havido entrega da coisa ao comprador deve entender-se que o risco de perda ou deterioração da coisa se transferiu para o comprador.
Com base no referido Xxxxxxx, pode-se afirmar que, não obstante a inclusão no contrato de compra e venda da cláusula de reserva de propriedade, sendo a coisa entregue ao comprador, que passou a deter os poderes de uso e fruição, é entendimento praticamente unânime na doutrina e jurisprudência que o risco de perecimento ou deterioração da coisa corre por conta do comprador como se o direito de propriedade já tivesse sido transferido.
Para além da doutrina já citada, convém referir Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx (2003, p. 41), que entende que a “cláusula de reserva de propriedade, por aplicação do artigo 796° CC, poderia levar a concluir que, não obstante ter havido tradição da coisa, o risco não se transfere para o adquirente enquanto perdurar o efeito suspensivo. (...) Porém, a reserva de propriedade, na maioria das situações, é ajustada com um mero efeito de garantia (...)”.
Para Xxxxxxx Xxxxxx (2010, p. 60) a solução de ser o vendedor a suportar o risco após a entrega da coisa é “claramente inaceitável, uma vez que, a partir da entrega, o comprador fica já integralmente investido nos poderes de uso e fruição da coisa, servindo a manutenção da propriedade no vendedor apenas para assegurar a recuperação do bem, em caso de não pagamento do preço”. Acrescenta que “devendo o risco correr por conta de quem beneficia do direito, parece claro que a partir da entrega é por conta do comprador que o risco
10Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de Xxxxxx Xxxxx, de 29/04/2013. Legislação Nacional: art. 796º do Código Civil Português. Disponível em: www. xxxx.xx, acesso: 13/07/13.
deve correr, não ficando este exonerado do pagamento do preço em caso de perda ou deterioração fortuita da coisa”.
Toda essa controvérsia em Portugal se pauta em posicionamentos divergentes na doutrina e jurisprudência em torno da regra de que a coisa perece para o dono, ou melhor, o risco se transfere para o adquirente quando este se torna proprietário. Isto porque a maioria da doutrina vê a venda com reserva de propriedade como um negócio jurídico condicionado suspensivamente, por aplicação do art. 796º, nº 3 (PERISSINOTO, 2005, p. 103). A interpretação do dispositivo leva a admitir que o risco corre por conta do alienante na pendência da condição suspensiva e a cláusula de reserva de propriedade funciona como uma condição suspensiva quanto a transferência da propriedade. No entanto, ela “é ajustada com um mero efeito de garantia” (XXXXXXXX, 2003, p. 41).
Verificando-se a perda ou deterioração da coisa por dano culposamente causado por um terceiro, não pode o vendedor reclamar a totalidade da indenização.
Na relação em que tanto o vendedor como o comprador são titulares de situações jurídicas reais, o risco deve ser distribuído de acordo com o proveito que cada um retira da sua situação. No caso do vendedor que conserva a propriedade com função de garantia, responde pelo risco em função da perda dessa garantia. Enquanto o comprador que usufruía das vantagens da coisa, é ele que deve suportar o risco pela sua perda ou deterioração (LEITÃO, 2010, p. 68).
Na condição resolutiva, o risco corre por conta do comprador, conforme estabelece o art. 796º, nº 3. Alguns doutrinadores entendem que os riscos devem correr a partir da entrega, pelo comprador, independente da natureza jurídica que se dê a venda com reserva de propriedade.
Para Xxx Xxxxx Xxxxxxx (1990, p. 139), “em qualquer caso, na compra e venda com reserva de propriedade em que tenha havido entrega da coisa o risco já passou para o comprador”. E ainda acrescenta a referida autora que:
Por um lado, após a entrega ‘compreende-se que o risco seja suportado pelo comprador, que, tendo a coisa à sua dispo, pode tomar as precauções destinadas a evitar a perda ou deterioração dela ou a obter um substitutivo (por exemplo, segurando-a)’, como afirma Xxx Xxxxx(...) e, do ponto de vista econômico, é o comprador que detém o domínio da coisa (apresentando sua justificação para idêntica regra do leasing – artigo 25º do Dec. 171/79 -, veja-se Xxxxx Xxxxxx (...). Por outro lado, se a coisa não foi entregue ao comprador por razões que só a ele beneficiam (termo a seu favor) e não se configurando um caso de incumprimento do vendedor, não seria razoável que fosse este a suportar o risco
Xxxx Xxxxxxxx (1988, p. 46), resumindo o que entende como a melhor doutrina,
orienta que, “é a tradição da coisa e não a transferência do título, que determina a passagem do risco”.
6 CAUSAS DE EXTINÇÃO DA CLÁUSULA DE RESERVA DE PROPRIEDADE
Como todo negócio jurídico, o contrato cumpre o seu ciclo natural. Nasce do consentimento, sofre as variações que se sucedem, e termina. Frequentemente, cessa com a prestação. A solutio é o seu fim natural, com a liberação do devedor e satisfação do credor (PEREIRA, 2003, p. 98).
Segundo Xxxxxx Xxxxxxxx (2005, p. 21), “a causa natural da cessação de um contrato advém do cumprimento das respectivas obrigações, ou seja, por via da extinção das prestações das partes, que se encontram realizadas (art. 762º, nº 1, do CC), ou em razão de uma causa de extinção das obrigações além do cumprimento”.
Entretanto, os contratos podem se extinguir por outras causas, dentre elas, a renúncia, a revogação, a denúncia, a resolução e a caducidade. Quanto à cláusula de reserva de propriedade, além da extinção pelo cumprimento das obrigações dos contraentes, neste aspecto, a obrigação de pagamento do preço por parte do comprador, pode cessar por outras formas, como por revogação do pacto por acordo ou renúncia à cláusula, sem que extinga a relação contratual que lhe deu origem (CAMPOS, 2009, p. 184).
De modo frequente a extinção se opera automaticamente, com o pagamento do preço ou com a verificação do evento mencionado no art. 409º, da lei portuguesa, não necessitando de qualquer ato posterior. Tratando-se de coisas imóveis ou móveis sujeitas a registro, deve-se proceder ao cancelamento da respectiva inscrição para que a extinção da cláusula tenha eficácia registral. Este requisito tem apenas a função de publicidade (CAMPOS, 2009, p. 185).
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da análise do exposto, pode-se concluir que, de forma geral, a cláusula de reserva de propriedade é largamente utilizada no contrato de compra e venda, independentemente da natureza jurídica que lhe seja atribuída.
A razão de ser da cláusula de reserva de propriedade é evidente, face à desproteção que poderia resultar ao alienante em razão da transferência da propriedade sem cumprimento integral do contrato pelo adquirente, por exemplo, sem pagamento do preço. A norma lhe
permite reservar a propriedade só se efetivando definitivamente a transferência com o cumprimento integral das obrigações do adquirente. A reserva asseguraria, nomeadamente, a proteção do vendedor no confronto com outros credores do comprador.
O Código Civil português, no art. 409º, nº 1, determina a possibilidade do vendedor reservar para si a propriedade da coisa, até que o comprador cumpra a sua obrigação, configurando uma exceção ao princípio geral, segundo o qual, a propriedade da coisa vendida se transfere por mero efeito do contrato, conforme dispõe o art. 879º, alínea “a”, da lei portuguesa. Por força da cláusula de reserva de propriedade, a propriedade da coisa vendida só se transfere no momento em que o adquirente cumpra a obrigação de pagamento do preço, realizando essa cláusula uma função de garantia. A cláusula de reserva de propriedade, e a correspondente condição suspensiva, incidem tão-somente sobre o efeito real do contrato de compra e venda, consolidado na transferência da propriedade da coisa.
Quanto aos direitos português e brasileiro, pode-se concluir que há semelhanças no que se refere a natureza jurídica da compra e venda com reserva de propriedade como sendo um negócio feito sob condição suspensiva, na qualificação da posição jurídica do vendedor e do comprador. Contudo, boa parte da doutrina portuguesa entende que a melhor posição é a que considera o comprador como titular de uma expectativa real de aquisição.
A diferença fica por conta do objeto, que no direito brasileiro só admite coisa móvel infungível e em Portugal aceita bens móveis e imóveis. Quanto à passagem do risco, no Brasil é pacífico, decorre da lei, nomeadamente o art. 524 do Código Civil brasileiro, “a transferência de propriedade ao comprador dá-se no momento em que o preço esteja integralmente pago. Todavia, pelos riscos da coisa responde o comprador, a partir de quando lhe foi entregue”. E, em Portugal, há divergência na doutrina.
A presente reflexão trouxe os principais aspectos relacionados ao instituto. Contudo, com o amadurecimento da questão, acredita-se que em breve o legislador português construirá um regime jurídico para a reserva de propriedade, tutelando de maneira mais completa os interesses envolvidos.
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