ORIGEM DA SOCIEDADE CIVIL E CONTRATO SOCIAL: HOBBES CONTRA ROUSSEAU1
ORIGEM DA SOCIEDADE CIVIL E CONTRATO SOCIAL: HOBBES CONTRA XXXXXXXX0
Xxxxxx xx Xxxx Xxxxx 2
Universidade Estadual de Campinas
Resumo
A filosofia política de Xxxxxxxx se faz a partir da crítica e da substituição do ‘princípio do benefício próprio’ de Xxxxxx, segundo o qual os homens, por natureza e necessidade, buscam sempre e em todas as suas ações realizar o seu próprio bem, sendo todo o resto desejado no interesse desse fim. Ao recusar que a natureza dos homens seja - de imediato - guiada exclusivamente pelo auto-interesse, a intenção de Xxxxxxxx é estabelecer a origem do Estado pelo contrato social e justificar a necessidade da soberania popular, que se torna condição necessária para a coexistência de indivíduos que compartilham uma vontade geral, visto que somente com base nesse interesse comum é que a sociedade civil deve ser governada. Nosso objetivo é mostrar que, para que se concretize o seu projeto, Xxxxxxxx deverá não apenas recusar o ‘princípio do benefício próprio’ de Xxxxxx, mas também a noção de que os homens são capazes de renunciar sua liberdade tendo em vista as vantagens de um contrato social entre os homens. Segundo Xxxxxxxx, para que o contrato seja legítimo, cada homem deve doar-se a todos, e não a um único homem tal como escrevera Xxxxxx, visto que uma sociedade segura só pode ser governada pela vontade geral.
Palavras-chave
Xxxxxx; Xxxxxxxx; Natureza Humana; Liberdade; Contrato Social; Sociedade Civil.
Abstract
The political philosophy of Xxxxxxxx is made from the review and replacement of the principle of own benefit written by Xxxxxx, according to which men, by nature and necessity, seek always and in all their actions carry their own good, and all the rest desired in the interest of this order. By refusing the nature of men is - immediately - guided solely by self-interest, Xxxxxxxx established the origin of the state by the social contract and apologized the necessity of popular sovereignty, which becomes a necessary condition for the coexistence of individuals who share a general will. Our goal is to show that Xxxxxxxx should not only reject the principle of own benefit written by Xxxxxx, but also the notion that all men are able to give up the freedom in view of the advantages of a social contract among men. For the contract is legitimate, each man should give himself to all, not a single man, because a safe society can only be governed by the general will.
Keywords
Xxxxxx; Xxxxxxxx; Human Nature; Freedom; Social Contract; Civil Society.
Xxxx-Xxxxxxx Xxxxxxxx inaugura seu Discurso sobre a Origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens desafiando os estatutos hobbesianos e buscando desmentir a natureza humana tal qual foi descrita como princípio do benefício próprio. Xxxxxxxx propõe-se a contribuir banindo
1 Texto apresentado no IV Encontro de Pesquisa da Graduação em Filosofia da UFSCar: Estética, em xxxxxxxx xx 0000, xx xxxxxx xx Xxx Xxxxxx.
2 E-mail: xxxxxx.xxxxxxxxx@xxxxx.xxx
Em curso, São Carlos, vol. 1, suplemento, 2014, pp. 107-121
da filosofia política o preceito hobbesiano e estabelecendo as bases da nova teoria política.
Não é apenas contra Xxxxxx que ele se volta, mas também contra grande parte da tradição política – incluindo os pensadores Xxxxxxx e Xxxxxxxxxxx. A crítica de Xxxxxxxx incide sobre o alicerce da filosofia política hobbesiana: a afirmação de que o homem busca sempre sua própria conservação e, para isso, é capaz de matar e eliminar qualquer indivíduo que se coloque como obstáculo em seu caminho. O seu alvo é a teoria de que os homens - na ausência de algum poder coercitivo capaz de manter a todos em respeito – convivem numa guerra generalizada de todos contra todos. Vejamos isso mais de perto.
De acordo com Xxxxxx, os homens não divergem entre si no que diz respeito às faculdades do corpo e do espírito, isto é, embora seja possível existir algumas diferenças de um indivíduo para o outro, os homens são iguais o bastante para que nenhum possa triunfar totalmente sobre outro, de modo que um indivíduo pode ser mais forte, ao passo que outro pode ser mais astuto. Diante disso, diz Xxxxxx:
Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Portanto, se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes seu deleite) esforçam-se por destruir ou subjugar um ao outro. E disto se segue, que, quando um invasor nada mais tem a recear do que o poder de um único outro homem, se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para desapossá-lo e privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho, mas também de sua vida e de sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos outros. (XXXXXX, 1999, p. 108)
Com efeito, para alcançar sua própria conservação, o homem é capaz de matar e eliminar todos aqueles que são tidos como adversários e que, de algum modo, se mostram como obstáculo, para alcançar determinado fim. Todavia, por serem iguais, os homens são incapazes de garantir a própria segurança em estado de natureza. Isso ocorre porque nesse meio ele pode agredir, mas
também ser agredido, matar e também ser morto, fazendo com que sua vida fique em constante perigo. Segue-se daí que em estado de natureza os homens são capazes de agir como bem entendem e contra quem julgam ser mais oportuno, pois nesse estágio não há poder algum capaz de impor regras e ditar leis. Agindo conforme suas próprias vontades - desejando o que é bom e fugindo do que é mau - eles se encontram naquela condição de guerra generalizada de todos contra todos, cuja segurança não tem aí lugar.
Sendo assim, o ataque por antecipação torna-se a maneira mais razoável de se proteger diante de tal situação de guerra, visto que a insegurança e o medo da morte violenta são generalizados. A competição entre os homens para alcançar suas vontades, a desconfiança mútua, e a glória visando a reputação são as três principais causas de discórdia. Para ilustrá-la, tomemos como exemplo as palavras de Xxxxxx:
Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruir-se uns aos outros. E poderá portanto talvez desejar, não confiando nesta inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela experiência. Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado; que quando vai dormir fecha suas portas; que mesmo quando está em casa tranca seus cofres; e isto mesmo sabendo que existem leis e funcionários públicos armados, prontos a vingar qualquer injúria que lhe possa ser feita. Que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar armado; de seus concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus filhos e servidores, quando tranca seus cofres? Não significa isso acusar tanto a humanidade com seus atos como eu faço com minhas palavras? (XXXXXX, 1999, pp. 109-110)
Desse modo, os homens convivem numa insegurança geral em estado de natureza, visto que na ausência de um poder coercitivo capaz de manter a todos em respeito, os homens são guiados pelo princípio do benefício próprio, buscando sempre o que é bom para si e agindo conforme seus próprios desejos. Isso significa que nesse estado de guerra, nada é justo ou injusto, uma vez que não há poder comum nem leis capazes de ditar o que é bom ou
mau para todos 3 . Mais ainda, em estado de natureza não existe sequer a propriedade, pois todos têm direito a tudo, inclusive aos corpos uns dos outros e, nessa perspectiva, não têm direito a nada, visto que “só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo.” (XXXXXX, 1999, p. 110). Dito de outro modo, na condição de guerra generalizada, não há espaço para a justiça, porque cada homem julga apenas o que é bom para si mesmo; e não há também lugar para a propriedade, dado que um homem só tem autoridade sobre algo enquanto for capaz de conservá-lo pela força.
Diante de tal miserável condição,
a experiência da guerra no estado de natureza faz com que todos “os homens facilmente reconheçam que é um mal permanecer neste estado e, consequentemente, que a paz é uma coisa boa”. O medo da morte violenta e a esperança de uma vida melhor ativam o trabalho da razão, que aponta a paz como meio para a conservação de si. O acordo não se dá porque a razão aponta um fim a todos os homens que o seguem naturalmente, mas porque todos reconhecem, pela experiência dos prejuízos que a guerra ocasiona, que permanecer nesse estado é um mal e sair dele é um bem. O que unifica os homens não é um fim posto pela razão, mas o desejo de perpetuar-se. (FRATESCHI, 2008, p. 146)
Apesar de viver nesta condição de guerra, é da natureza do homem desejar o bem para si mesmo, sobretudo a conservação da própria vida. Entretanto, o estado de natureza, como já foi exposto, é um estado de guerra onde os homens estão em constante perigo. Tal situação provoca entre eles um medo latente da morte violenta e, por todos os motivos já expostos, essa condição é adversa à conservação do homem. Com efeito, se o homem pretende a preservação de sua vida, não pode permanecer em estado natural, já que sem leis civis a paz é impossível.
A experiência de guerra generalizada, por conseguinte, leva o homem a desejar sair desse estado de insegurança e buscar os caminhos da paz, visto
3 Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é consequência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não pode aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. (XXXXXX, 1999, p. 110)
que a ausência da guerra é a melhor garantia para a conservação da vida. Consequentemente, todo homem deve esforçar-se pela paz e renunciar4 o seu direito a todas as coisas, pois enquanto cada homem tiver o direito de fazer tudo quanto queira, tal estado de guerra jamais se extinguirá.
Assim sendo, para que a paz seja concretizada, é necessária uma transferência mútua de direitos, isto é, um contrato entre os homens que estabeleça restrições e imponha limites aos desejos desenfreados pelas paixões, visto que, se cada um continuar guiado por seus próprios interesses, não haverá lugar para a paz. Destarte, o contrato é uma atitude voluntária, cuja intenção é sair do estado de guerra de todos os homens contra todos os homens. E todo ato voluntário visa somente o benefício próprio.5
Segundo Xxxxxx, é apenas a partir do pacto que as palavras “justo” e “injusto” passam a ter lugar, visto que somente quando se tem um poder comum capaz de manter a todos em respeito é que podemos ter leis e regras. Tal poder deve ser vivível e suficientemente grande para fazer com que os homens cumpram seus deveres, sob a pena e o medo de receberem um castigo muito superior ao benefício de quebrarem o pacto por algum motivo particular.
Retomando o argumento, durante o pacto – solução encontrada para sair da condição de guerra – os homens devem, em um ato voluntário, renunciar seu direito a todas as coisas e transferi-lo para outrem, na esperança de que este conserve a defesa e proteção coletiva. Para isso, aquele que recebe tais direitos deve, consequentemente, receber um poder suficientemente grande para garantir que todos os homens cumpram o pacto celebrado. Esse poder é o que chamamos de Estado.
O Estado, por conseguinte, é o único poder capaz de introduzir a noção de justiça, dado que onde não há um poder coercitivo capaz de manter a todos em respeito não há leis e, portanto, não há justiça. Mais ainda, somente o Estado é capaz de garantir a propriedade, pois
4 Quando alguém transfere seu direito ou a ele renuncia, fá-lo em consideração a outro direito que reciprocamente lhe foi transferido, ou a qualquer outro homem que daí espera. Pois é um ato voluntário, e o objetivo de todos os atos voluntários é algum bem para si mesmo. (XXXXXX, 1999, p. 115)
5 Leviatã, p. 115.
onde não foi estabelecido um poder coercitivo, isto é, onde não há Estado, não há propriedade, pois todos os homens têm direito a todas as coisas. Portanto, onde não há Estado nada pode ser injusto. De modo que a natureza da justiça consiste no cumprimento dos pactos validos, mas a validade dos pactos só começa com a instituição de um poder civil suficiente para obrigar os homens a cumpri-los, e é também só aí que começa a haver propriedade. (XXXXXX, 1999, p. 121)
Note-se que essa passagem explicita o fato de que a noção de propriedade é resultado apenas de uma convenção feita artificialmente entre os homens. Desse modo, a fim de garantir a paz e a propriedade, cada homem abre mão da própria liberdade que tem sobre todas as coisas no momento do pacto. Diante disso, diz Xxxxxx:
Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens: Xxxx e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. (XXXXXX, 1999, p. 144)
Para Xxxxxx, a figura que se torna portadora do poder concedido pelo pacto chama-se soberano e pode ser representada por uma monarquia, oligarquia ou democracia. A mais adequada delas, porém, é a monarquia. Isso porque na democracia ou na oligarquia – regimes em que há mais de uma pessoa no comando - as ações dos indivíduos podem estar sendo guiadas segundo o juízo individual de cada um. Divergindo em opinião sobre o bem e o mal6, só se atrapalham uns aos outros, em vez de se ajudarem, o que torna visível o estado de guerra de todos contra todos.
Em suma, a melhor maneira de manter a paz é reduzir todas as vontades numa só para que esta possa decidir sobre o que é bom e mau para todos. Ora,
6 O bem e mal são nomes que significam nossos apetites e aversões, os quais são diferentes conforme os diferentes temperamentos, costumes e doutrinas dos homens. E homens diversos não divergem apenas, em seu julgamento, quanto às sensações do que é agradável ou desagradável ao gosto, ao olfato, ao ouvido, ao tato e à vista, divergem também quanto ao que é conforme ou desagradável à razão, nas ações da vida cotidiana. Mais, o mesmo homem, em momentos diferentes, diverge de si mesmo, às vezes louvando, isto é, chamando bom, àquilo mesmo que outras vezes despreza e a que chama mau. Daqui procedem disputas, controvérsias, e finalmente a guerra. (XXXXXX, p. 132)
visto que os homens sempre divergem entre si sobre o que é bom e mau, é muito mais prudente confiar todos os desejos a uma única pessoa. Portanto, os súditos - todos aqueles que celebraram o pacto - devem total obediência ao soberano, pois somente assim a paz será mantida.
Até aqui levei em consideração somente a teoria política hobbesiana, que se faz pela construção do princípio do benefício próprio. Xxxxxxx, então, como Xxxxxxxx irá negar as bases sob as quais Xxxxxx se apoia, a saber, a natureza humana e, a partir daí, construirá uma nova teoria política. O filósofo iluminista pretende desmentir a teoria hobbesiana e, para isso, propõe-se a contribuir apresentando um estado de natureza muito diferente do qual foi descrito por Xxxxxx.
Para Xxxxxxxx, o homem selvagem é livre, completamente amparado pela natureza, e suas necessidades são facilmente satisfeitas. Ademais, os únicos bens que conhece no universo são
a alimentação, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme, a dor e a fome. Digo a dor e não a morte, pois jamais o animal saberá o que é morrer, sendo o conhecimento da morte e de seus terrores uma das primeiras aquisições feitas pelo homem ao distanciar-se da condição animal. (XXXXXXXX, 1999, p. 66)
Observa-se, nesta perspectiva, que o medo da morte não é natural, mas algo adquirido em sociedade, ou seja, distante da condição animal. Enquanto para Xxxxxx o medo da morte violenta era algo visivelmente presente no estado de natureza, Xxxxxxxx afirma que o homem selvagem não teme outra coisa senão a dor e a fome. Isso porque para o filósofo genebrino, não há expectativa de futuro7 para o homem selvagem. Este tem exclusivamente a preocupação com o momento presente e nada espera de acontecimentos posteriores, pois, como veremos mais adiante, esse tipo de preocupação com o futuro só se instala com a inauguração da propriedade privada.
Desse modo, uma vez que não há expectativa de futuro em estado de natureza, não há, consequentemente, motivo algum para que o homem ataque por antecipação ou desconfie de seu semelhante, tal como afirmara Xxxxxx.
7 Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, p. 67.
Diante disso, dirá Xxxxxxxx que o erro de Xxxxxx foi ter transportado para o estado de natureza ideias que havia adquirido em sociedade.
Os filósofos que examinaram os fundamentos da sociedade sentiram todos a necessidade de voltar atrás até o estado de natureza, mas nenhum deles chegou até lá. Uns não hesitaram em supor, no homem, nesse estado, a noção de justo e do injusto, sem preocupar-se com mostrar que ele deveria ter essa noção, nem que ela lhe fosse útil. Outros, falaram do direito natural, que cada um tem, de conservar o que lhe pertence, sem explicar o que entendiam por pertencer. Outros dando inicialmente ao mais forte autoridade sobre o mais fraco, logo fizeram nascer o Governo, sem se lembrarem do tempo que deveria decorrer antes que pudesse existir os homens o sentido das palavras autoridade e governo. Enfim, todos, falando incessantemente de necessidade, avidez, opressão, desejo e orgulho, transportaram para o estado de natureza ideias que tinham adquirido em sociedade; falavam do homem selvagem e descreviam o homem civil. (XXXXXXXX, 1999, p. 52)
O estado de natureza, por conseguinte, deve ser tratado de outra forma, de modo que a confusão entre homem selvagem e homem civil seja evitada. A estratégia 8 para descrever o estado de natureza humana, utilizada por Xxxxxxxx, será por meio de conjeturas, raciocínios hipotéticos e condicionais. Dito de outro modo, para chegar-se à natureza humana pura e desmentir tudo aquilo descrito pela tradição, Xxxxxxxx irá explicar o caminho histórico pelo qual percorreu o homem até a inauguração da propriedade privada, que segundo ele foi a fonte da corrupção de toda a natureza humana.
Diferente de Xxxxxx, que considerava certo o estado de guerra sempre que não havia um poder coercitivo capaz de manter a todos em respeito, Xxxxxxxx dirá, por meio de conjeturas, que não há nenhum motivo para guerra em estado de natureza porque os desejos do homem selvagem são poucos e fáceis de serem atendidos.
Vejo-o fartando-se sob um carvalho, refrigerando-se no primeiro riacho, encontrando seu leito ao pé da mesma árvore
8 Por importante que seja, para bem julgar o estado natural do homem, considerá-lo desde sua origem e examiná-lo, por assim dizer, no primeiro embrião da espécie, não seguirei sua organização através de seus desenvolvimentos sucessivos; não me deterei procurando no sistema animal o que poderia ter sido inicialmente para ter-se tornado o que é. (XXXXXXXX, 1999, p. 57)
que lhe forneceu o repasto e, assim, satisfazendo a todas as suas necessidades. (XXXXXXXX, 1999, p. 58)
Uma vez que as necessidades do homem selvagem, a saber, a fome, uma fêmea e um repouso, são todas satisfeitas pela natureza, segue-se daí que os homens não precisam da companhia uns dos outros para sobreviver. Portanto, a guerra e a sociabilidade não estão inscritas na natureza humana original9, mas são adquiridas a partir do momento em que a natureza humana é corrompida com a inauguração da propriedade privada.
Com efeito, a propriedade surge quando um homem, cercando um terreno lembrou-se de dizer que isto lhe pertencia e encontrou pessoas suficientemente simples para aceitá-lo. Raciocinando de modo hipotético e conjetural, Xxxxxxxx afirma que a partir do momento em que um indivíduo tomou para si determinado pedaço de terra teve início aquilo que chamamos de propriedade privada.
Eis aí o começo do processo de corrupção da natureza humana, que devido à sua perfectibilidade10 é capaz de melhorar, mas também de piorar as faculdades humanas. A perfectibilidade, desse modo, aliada ao tempo e à experiência vivida pelo homem selvagem, é responsável pelas modificações que acontecem em seus hábitos e costumes. Isso porque, ao longo do tempo, surgem dificuldades - a altura das árvores que impede o selvagem de alcançar frutos, a concorrência com outros animais, a ferocidade daqueles que lhe ameaçavam a própria vida - e o homem se impõe a aprender a vencê-las.
Surge, então, a invenção da pesca, da caça, da vestimenta e do fogo, todos eles inventados com a finalidade de melhor sobreviverem às dificuldades impostas pela natureza, pois embora esta forneça todas as satisfações do
9 Quaisquer que sejam tais origens, vê-se, pelo menos, o pouco cuidado que teve a natureza ao reunir os homens por meio de necessidades mútuas e ao facilitar-lhes o uso da palavra, como preparou mal sua sociabilidade e como pôs pouco de si mesma em tudo que fizeram para estabelecer os seus laços. Com efeito, é impossível imaginar por que, nesse estado primitivo, um homem sentiria mais necessidade de um outro homem do que um macaco ou um lobo de seu semelhante; ou ainda – uma vez supondo-se essa necessidade –, qual o motivo que poderia levar o outro a atendê-lo, ou finalmente, neste último caso, como poderiam estabelecer condições entre si. (XXXXXXXX, 1999, p. 74)
10 É a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo. (XXXXXXXX, 1999, p. 65)
homem, ela também funciona como seletora, em que apenas os mais fortes sobrevivem.11
Ora, diante de tal situação, o homem selvagem passa a aumentar a sua superioridade sobre os demais animais e, ao mesmo tempo, começa a caminhar para os grilhões da sociedade civil, que ainda não havia se instaurado. Com o tempo, os homens passam a unir-se em bandos e associações livres, que duravam apenas enquanto a necessidade ordenava. Consequentemente, surge daí os primeiros compromissos mútuos entre os homens e o aparecimento da família começa a ter lugar. Mais ainda, surge a divisão do trabalho entre homens e mulheres que, até então, nada havia de diferente. Ademais, os homens passam a construir suas próprias cabanas ao invés de se abrigarem nas cavernas ou qualquer lugar que antes era oferecido pela natureza. Diante disso diz Xxxxxxxx:
Tudo começa a mudar de aspecto. Até então errando nos bosques, os homens, ao adquirirem situação mais fixa, aproximam-se lentamente e por fim formam, em cada região, uma nação particular, una de costumes e caracteres, não por que regulamentos e leis, mas sim, pelo mesmo gênero de vida e de alimentos e pela influência comum do clima. Uma vizinhança permanente não pode deixar de, afinal, engendrar algumas ligações entre as famílias. Jovens de sexo diferente habitam cabanas vizinhas; o comércio passageiro, exigido pela natureza, logo induz a outro, não menos agradável e mais permanente, pela frequentação mútua. Acostumam-se a considerar os vários objetos e a fazer comparações; insensivelmente, adquirem-se ideias de beleza, que produzem sentimentos de preferência. À força de se verem, não podem mais deixar de novamente se verem. Insinua-se na alma um sentimento terno e doce, e, à menor oposição, nasce um furor impetuoso; com o amor surge o ciúme, a discórdia, triunfa e a mais doce das paixões recebe sacrifícios de sangue humano. (XXXXXXXX, 1999, pp. 91-92)
O homem selvagem passa por um processo de domesticação à medida que os laços com os outros homens se apertam. Isso porque ao habituarem-se a reunir-se, surge como entretimento a arte da dança e o canto, fazendo com que cada um comece a olhar o outro com o desejo de imitá-lo naquilo que este
11 A natureza faz com que eles precisamente como a lei de Esparta com os filhos dos cidadãos; torna fortes e robustos aqueles que são bem constituídos e leva todos os outros a perecerem. (XXXXXXXX, 1999, p. 58)
faz de melhor. Dito de outro modo, as pessoas passam a ver seu semelhante como um exemplo a ser seguido, dando início à estima pública entre os homens. Segue-se daí o primeiro passo para a desigualdade entre os homens, pois tem-se aquele que dança melhor, que canta melhor, o mais belo, o mais robusto etc. Isso gera as mazelas da vaidade, do desprezo, da vergonha e da inveja. Por fim, uns começam a ser mais valorizados do que outros e, consequentemente, a vingança ganha seu lugar, fazendo com que os homens se tornem sanguinários e cruéis.
Além disso, o homem descobre as indústrias da metalurgia e da agricultura, ambas cruciais para o desenvolvimento da sociedade civil, já que
da cultura de terras resultou necessariamente a sua partilha e, da propriedade, uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça, pois, para dar a cada um o que é seu, é preciso que cada um possua alguma coisa; além disso, começando os homens a alongar seus vistas até o futuro e tendo todos a noção de possuírem algum bem passível de perda, nenhum deixou de temer a represália dos danos que poderia causar a outrem (XXXXXXXX, 1999, pp. 95-97)
Note-se que essa passagem explicita que a noção de perfectibilidade, associada ao tempo, fez com o que o homem desenvolvesse a preocupação com o futuro que, como vimos, era indiferente no estado de natureza. Assim, o homem passa a se preocupar com seus próprios interesses e visa proteger aquilo que lhe pertence.
Na medida em que os talentos humanos são diferentes uns dos outros, alguns homens passam a produzir mais e outros menos, aumentando a desigualdade entre todos. Enquanto poucos têm muito, a maioria não tem nada. Surgem então, os roubos e violência, fazendo com que a insegurança generalizada seja a principal característica desse estágio.
Sendo assim, o rico tem a constante preocupação em manter suas riquezas intactas e, para isso, propõe empregar as próprias forças daqueles que o atacavam, a saber, os pobres, fazendo de seus adversários seus defensores.
“Unamo-nos”, disse-lhes, “para defender os fracos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse daquilo que lhe pertence; instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos sejam obrigados a conformar-se, que não
xxxxx exceção para ninguém e que, submetendo igualmente seus deveres mútuos o poderoso e o fraco, reparem de certo modo os caprichos da fortuna. Em uma palavra, em lugar de voltar nossas forças contra nós mesmos, reunamo-nos num poder supremo que nos governe segundo sábias leis, que protejam e defendam todos os membros da associação, expulsem os inimigos comuns e nos mantenham em concórdia eterna”. (XXXXXXXX, 1999, p. 100)
A sociedade civil, por conseguinte, tem seu início com o objetivo de proteger a riqueza e o patrimônio dos ricos, e, ao encontrar pessoas fáceis de seduzir, inaugurou-se os grilhões que aprisionam os homens. Desse modo, o estado de natura em que o homem era livre e independente, converte-se na domesticação do homem12. Xxxxxxx que pensavam estar buscando uma melhor condição de conservação foram enganadas pelos ricos, com o pretexto de que todos caminhariam para a concórdia eterna.
O governo nascente, todavia, parece incapaz de atender aos desejos de todos aqueles que, ingenuamente, aceitaram crendo assegurar sua liberdade. Xxx Xxxxxxxx:
O Governo nascente não teve uma forma constante e regular. A falta de filosofia e de experiência só deixava perceber os inconvenientes presentes, e só se pensava em remediar os outros na medida em que se apresentavam. Malgrado todos os trabalhos dos mais sábios legisladores, o estado político permaneceu sempre imperfeito, porque era quase obra do acaso e porque, apenas iniciado, o tempo, descobrindo os defeitos e surgindo os remédios, nunca pôde corrigir os vícios de constituição. (XXXXXXXX, 1999, p. 102)
Desse modo, poderíamos então pensar: que forma de governo seria legítima o suficiente para garantir a segurança de todos? Existe alguma forma de governo capaz de manter a vontade de todos os homens, já que estes foram
12 Sei que incessantemente nos repetem que nada teria sido tão miserável quanto o homem nesse estado, e se é verdade, como receio tê-lo provado, que só depois de muitos séculos poderia sentir ele o desejo e a oportunidade de sair dessa condição, tal acusação fora de fazer- se à natureza e não àquele assim constituído por ela. Mas, se compreendo bem o termo miserável, é ele uma palavra sem sentido algum ou que só significa uma provação dolorosa e sofrimento do corpo e da alma. Ora, desejaria que me explicassem qual poderia ser o gênero da miséria de um ser cujo coração está em paz e o corpo com saúde. Pergunto qual das duas – a vida civil ou a natural – é a mais suscetível de tornar-se insuportável àqueles que a fruem. (XXXXXXXX, 1999, p. 74)
corrompidos ao longo do tempo? Ora, se tanto para Xxxxxx quanto para Xxxxxxxx o homem se tornou cruel e sanguinário, não seria mais prudente atribuir e concluir, com Xxxxxx, um contrato no qual cada homem deve abrir mão de sua liberdade e transferi-la às mãos de um único senhor chamado soberano?
Ao inaugurar o Contrato Social, Xxxxxxxx propõe-se a responder cada uma das perguntas anteriores, visto que tem o objetivo de apresentar um poder que seja legitimado pelo contrato entre os homens. Mais ainda, Xxxxxxxx pretende negar a tese de que a melhor opção de governo é a soberania absoluta concentrada nas mãos de um único governante, tal qual foi descrita por Xxxxxx.
Para Xxxxxxxx, o contrato social deve encontrar uma forma de associação cuja prioridade seja a proteção e a defesa de cada um, de modo que “cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes”. (ROUSSEU, 1999, p. 70). Ou seja, o contrato é a solução encontrada pelos homens para recuperar a liberdade que tinham em estado de natureza, e que foi sendo perdida quando instaurada a propriedade privada. Qualquer contrato que rompa com a liberdade humana é inútil e ilegítimo, visto que renunciar a liberdade é
renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade, e até aos próprios deveres. Não há recompensa possível para quem tudo renuncia. Tal renúncia não se compadece com a natureza do homem, e destituir-se voluntariamente de toda e qualquer liberdade equivale a excluir a moralidade de suas ações. Enfim, é uma inútil e contraditória convenção a que, de um lado, estipula uma autoridade absoluta, e de outro, uma obediência sem limites. Não está que não se tem compromisso algum com aqueles de quem se tem o direito de tudo exigir? E essa condição única, sem equivalente, sem compensação, não levará à nulidade do ato? Pois que direito meu escravo está contra mim, desde que tudo que possui me pertence e desde que, sendo meu o seu direito, esse direito meu contra mim mesmo passa a constituir uma palavra sem nenhum sentido? (XXXXXXXX, 1999, p. 62)
O contrato hobbesiano, nesta perspectiva, não apresenta garantia de segurança alguma, pois a liberdade é um dom natural inalienável e intransferível. Para que uma convenção segura seja instituída é preciso abdicar
de sua individualidade, mas nunca da liberdade13. Ademais, Xxxxxxxx classifica o soberano de Xxxxxx como um indivíduo particular, em que seu interesse está sempre isolado dos demais. Segue-se daí que o soberano oriundo do contrato jamais poderá ser concentrado nas mãos de um único indivíduo, pois somente as suas vontades particulares serão realizadas. É preciso, pois, estabelecer um contrato em que cada um dando-se a todos não se dê a ninguém, isto é, cada um dando-se completamente, a condição é igual para todos.
Consequentemente, ao invés de uma pessoa particular, teremos um corpo social e coletivo capaz de guiar todos os homens a caminho da paz e da segurança generalizada. Isso porque o soberano deve total obediência ao povo que é composto de tantos membros quanto são os votos da assembleia. Tal ato de associação compreende, assim, um compromisso recíproco entre todos os homens e constitui uma vontade geral, ou seja, o que existe de comum nesses vários interesses. Caso não houvesse uma vontade geral, isto é, um ponto comum em que todos os interesses concordassem, nenhuma sociedade poderia ter lugar. Assim sendo, diz Xxxxxxxx:
A fim de que o pacto social não represente, pois, um formulário vão, compreende ele tacitamente este compromisso, o único que poderá dar força aos outros: aquele recusar obedecer à vontade geral a tanto será constrangido por todo um corpo, o que não significa senão que o forçarão a ser livre, pois é essa a condição que, entregando cada cidadão à pátria, o garante contra qualquer dependência pessoal. Essa condição constitui o artifício e o jogo de toda a máquina política, e é a única a legitimar os compromissos civis, os quais, sem isso, se tornariam absurdos, tirânicos e sujeitos aos maiores abusos. (XXXXXXXX, 1999, p. 75)
Portanto, ao entrar na sociedade civil o homem deve, por meio da perfectibilidade e de um contrato social legítimo, desenvolver suas demais faculdades, suas ideias, seus sentimentos e sua alma. Do contrário, nenhuma sociedade civil faria sentido e a humanidade caminharia para seus grilhões, vivendo de maneira escravizada e hostil.
13 Afirmar que o homem se dá gratuitamente constitui uma afirmação absurda e inconcebível; tal ato é ilegítimo e nulo, tão-só porque aquele que o pratica não se encontra no completo domínio de seus sentidos. Afirmar a mesma coisa de todo um povo, é supor um povo de loucos: a loucura não cria direitos. (XXXXXXXX, 1999, p. 62)
Referência bibliográfica:
XXXXXXXXX, Y. A. A física da política – Xxxxxx contra Xxxxxxxxxxx. São Paulo: Editora Unicamp, 2008.
XXXXXX, X. Leviatã ou Materia forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil (1651), Trad. Xxxx Xxxxx Xxxxxxxx e Xxxxx Xxxxx da Silava. São Paulo: Abril Cultural, 1999. (Os Pensadores)
XXXXXXXX, X. X. Do Contrato Social (1757) Trad. Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx. São Paulo: Abril Cultural, 1999. (Os Pensadores)
. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755) Trad. Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx. São Paulo: Abril Cultural, 1999. (Os Pensadores).