Parecer
A inarbitrabilidade objetiva do
conflito entre Petrobras e a ANP
A inarbitrabilidade objetiva do conflito entre Petrobras e a ANP acerca da interpretação do conceito legal de campo de petróleo (art. 6º, XIV, da Lei Federal nº 9.478/1997) e da fixação dos limites do Campo de exploração de Jubarte — ES. Presença de direitos indisponíveis. Questão afeta à soberania e interesses estratégicos do Estado brasileiro que refoge aos limites do contrato. Direitos federativos de terceiros não signatários da cláusula compromissória. Inevitabilidade do controle jurisdicional. Ineficácia prática da arbitragem ante a extensão subjetiva do litígio. Competência primária do Poder Judiciário brasileiro. Autoridade interpretativa e regulatória privativas da ANP quanto ao conceito de campo de petróleo e a determinação dos seus limites. Imperfeição do modelo contratual de concessões e necessidade de uma interpretação pragmática dos poderes das partes no contrato. Inexistência de autonomia contratual da concessionária para a fixação daqueles limites. Restrições à liberdade empresarial no exercício de atividades econômicas submetidas ao regime de monopólio estatal. Limites à garantia do equilíbrio financeiro em contratos de concessão de natureza aleatória.
I. A consulta
1. Em 22 de abril de 2014, teve início, perante a Câmara de Comércio Internacional (CCI), procedimento de arbitragem requerido por Petróleo Brasileiro S.A. — Petrobras em face da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis — ANP.
2. A Petrobras se insurge contra a Resolução de Diretoria (RD) nº 69, de 5 de fevereiro de 2014, da ANP, que determinou (i) a unificação das áreas produtivas de exploração de petróleo do bloco BC-60, denominadas de Baleia Anã, Baleia Azul, Baleia Franca, Cachalote, Caxareu, Jubarte e Pirambu, designando-as como um único campo — Campo de Jubarte — e, ainda, (ii) que a referida empresa concessionária apresentasse, no prazo de 180 dias, um plano de desenvolvimento do campo unificado, sob pena de extinção do contrato de concessão.
3. Impugnando a arbitragem instaurada, que considera incabível na hipótese, a ANP propôs, perante a Justiça Federal da 2a Região, ação anula- tória do procedimento arbitral (processo nº 0006800-84.2014.4.02.5101). Em primeira instância, a ação foi julgada improcedente e, neste momento, pendem de julgamento, na 8a Turma Especializada do TRF da 2a Região, recursos de apelação interpostos pela ANP, pelo MPF, pelo estado do Espírito Santo e pela Petrobras (este sobre ponto específico relacionado à condenação do Estado do Espírito Santo em multa revertida a favor da ANP).
4. Foi requerida, ainda, posteriormente, em fevereiro de 2015, pelo estado do Espírito Santo — na qualidade de terceiro interessado —, perante o TRF-2, medida cautelar pretendendo a suspensão do procedimento arbitral até que julgadas as apelações interpostas na ação anulatória (processo nº 0001194- 18.2015.4.02.0000). Nesta demanda, o provimento liminar foi deferido pela relatora e confirmado pelo colegiado suspendendo-se, com isso, a tramitação da arbitragem, sob o fundamento de que questão idêntica relacionada a campo de petróleo diverso já foi decidida contrariamente à sentença de primeiro grau pela mesma Turma.
5. Acerca desta controvérsia, brevissimamente relatada acima, objeto tanto da arbitragem, como também submetida à apreciação do Poder Judiciário brasileiro, a ANP nos apresentou a seguinte consulta assim formulada:
CONSIDERANDO QUE a lei do Petróleo define “Campo de Petróleo” como “área produtora de petróleo ou gás natural, a partir de um reservatório contínuo ou de mais de um reservatório, a profundidades variáveis, abrangendo instalações e equipamentos destinados à produção” (Lei nº 9.478/1997, art. 6º, XIV);
QUE essa mesma lei, no artigo 26, estabelece o direito de o concessionário produzir petróleo em caso de êxito, na exploração, mas submete este direito à obrigação de aprovação pela ANP dos planos e projetos de desenvolvimento e produção;
QUE o contrato de concessão firmado entre as partes, em sua cláusula
1.1, faz referência ao conceito legal, sem alterá-lo ou detalhá-lo;
QUE na cláusula 29.4, este contrato estabelece a possibilidade de arbi- tragem de “toda e qualquer disputa ou controvérsia decorrente deste contrato ou com ele relacionada”;
PERGUNTA-SE:
(1) Nesse contexto, um litígio acerca da legalidade da decisão da ANP, agência reguladora do setor de Petróleo e Gás Natural, que determinou a exploração, como um só campo, de dada área exploratória, envolve direitos indisponíveis do Estado brasileiro? Em caso positivo, tal circunstância tornaria tal questão inarbitrável sob a perspectiva do direito nacional? O Poder Judiciário brasileiro está autorizado a exa- minar previamente a competência do juízo arbitral sobre a arbitrabi- lidade deste litígio?
(2) Ainda considerando o contexto acima, a quem cabe definir, em caso de discordância, o traçado de um campo de petróleo dentro dos limites da lei: a agência reguladora ou o concessionário? Existe liberdade empresarial do concessionário para, de acordo com seus interesses comerciais, determinar o traçado e a divisão de uma área de exploração em diversos campos, desde que não infrinja diretamente qualquer dispositivo legal, regulatório ou contratual expresso? A aprovação do Plano de Desenvolvimento apresentado pelo concessionário pela ANP é um ato vinculado à lei e ao contrato ou um ato discricionário? Para a aprovação do plano de desenvolvimento, pode o órgão regulador levar em consideração elementos políticos, sociais e estratégicos relacionados à política pública para o setor? A decisão da ANP que determina a reunião de reservatórios em um só campo é capaz de afetar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão?
6. Considerando os dois blocos de questionamentos apresentados, opta-
mos, assim, por igualmente dividir a exposição que se segue em duas partes.
7. Na primeira, (II) será examinada a questão da arbitrabilidade objetiva do litígio entre a Petrobras e a ANP acerca do conteúdo da Resolução de Diretoria (RD) nº 69, de 5 de fevereiro de 2014, com especial destaque para admissibilidade de um controle judicial prévio desta arbitrabilidade, e do afastamento, pelas peculiaridades apontadas, do princípio da competência- competência. E, na segunda, basicamente, (III) o tema da autoridade inter- pretativa e regulatória privativas da ANP para, à luz da legislação vigente e do contrato, definir os limites dos campos exploratórios de petróleo.
II. A inarbitrabilidade objetiva do conflito
II.1 Os limites impostos à arbitragem pela ordem jurídica nacional
8. O termo arbitrabilidade no Direito é dotado de um sentido razoavel- mente preciso: significa a possibilidade, à luz da legislação nacional, de sub- missão de um dado conflito à arbitragem, ou seja, a permissão conferida pela ordem jurídica de que a controvérsia seja resolvida perante um juízo arbitral.1
9. Neste contexto, a arbitrabilidade de um litígio pode ser examinada sob dois ângulos: um subjetivo e o outro objetivo. A arbitrabilidade subjetiva refere-se às pessoas que estão autorizadas a participar de um procedimento arbitral, ao passo que a arbitrabilidade objetiva está ligada aos tipos de litígios que podem ser levados à apreciação de um árbitro.
10. Ora, à luz do estágio atual do direito brasileiro, a arbitrabilidade subjetiva do conflito acha-se fora de questão. Embora tenha havido no passado relevantes discussões sobre a possibilidade de se prever a arbitragem como método para resolução de litígios derivados de contratos envolvendo entes da Administração Pública, hoje, aparentemente, esse debate se mostra ultrapassado, sobretudo diante de disposições legais expressas, como as dos arts. 23-A da Lei nº 8.987/952 e 43, X, da Lei nº 9.478/97.3
11. Portanto, no presente estudo, não se cuidará da possibilidade da
celebração, em tese, de convenções de arbitragem entre a ANP e a Petrobras.
12. O exame que se buscará efetivar ao longo da exposição que se segue diz respeito à arbitrabilidade objetiva da controvérsia em exame. Em outras palavras, quer se apurar se o conflito em concreto submetido à arbitragem perante a Câmara de Comércio Internacional pela Petrobras pode alcançar solução por meio deste instrumento alternativo de solução de controvérsias.
13. Com esse escopo em mente, é preciso ter em conta, em primeiro lugar, que a arbitrabilidade objetiva de um litígio só pode ser analisada à luz de cada ordenamento jurídico. Não há uma regra universal sobre o tema apta a reger
1 XXXXX, Xxxxxxxx. Defining ‘arbitrability’. New York Law Journal, 15 jun. 2009: “[…] the question to be asked is, “Under the law of the place of arbitration or State where award enforcement is being sought, are the specific claims capable of settlement by arbitration or must they be resolved in a national court?”.
2 Art. 23-A. O contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996.
3 Art. 43. O contrato de concessão deverá refletir fielmente as condições do edital e da proposta vencedora e terá como cláusulas essenciais: […] X — as regras sobre solução de controvérsias, relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem internacional;
a questão em todo lugar. As peculiaridades de cada sistema normativo é que apontarão as opções legislativas relacionadas à maior ou menor restrição do âmbito de litígios sujeitos à arbitragem.
14. Apenas a título de ilustração, a Convenção de Nova Iorque de 1958, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 4.311, de 23 de julho de 2002, impõe, como condição para o reconhecimento de uma sentença arbitral estran- geira, a necessidade de que o ordenamento jurídico do país em que se pretende vê-la cumprida autorize o uso da arbitragem para dirimir a controvérsia.4
15. A arbitrabilidade objetiva de um litígio, portanto, acha-se dependente das condições e limites de cada ordenamento jurídico nacional. Característica que se mostra ainda mais clara nas arbitragens envolvendo entes públicos, submetidos integralmente às leis do país a cuja Administração Pública pertencem.
16. Nesse sentido, as eloquentes palavras do argentino Xxxxx Xxxxxxxxxx que, discorrendo sobre o procedimento de arbitragens de investimentos estrangeiros — muitas vezes também usado para dirimir litígios na indústria de óleo e gás —, chamou atenção para o risco de desestatização do interesse público na realização destas arbitragens. Defende, por isso, a absoluta primazia das regras de competência e materiais postas no ordenamento jurídico nacional:
Neste breve artigo, quero defender duas ideias normativas: a primeira é a de que a arbitragem de investimentos não deve hoje ser considerada parte do direito administrativo global; a segunda é que os tribunais arbitrais de investimentos devem ser deferentes ao direito público doméstico adotando em relação a este, sob certas condições, uma regra especial de reconhecimento do sistema normativo no lugar de considerar o direito público doméstico como categoria suspeita tanto para afirmar a sua jurisdição, como para resolver o mérito da recla- mação.5 (grifos nossos)
4 Art. II. 1. Cada Estado signatário deverá reconhecer o acordo escrito pelo qual as partes se compro- metem a submeter à arbitragem todas as divergências que tenham surgido ou que possam vir a surgir entre si no que diz respeito a um relacionamento jurídico definido, seja ele contratual ou não, com relação a uma matéria passível de solução mediante arbitragem.
5 XXXXXXXXXXX, Xxxxx X. Los tratados bilaterales de inversión (TBIs) y el convenio Ciadi: ¿La evaporación del derecho administrativo doméstico? In: XXXXXXXXX, Xxxxxxxx [et. al.]. El nuevo derecho administrativo global en América Latina. Buenos Aires: Rap, 2009. p. 203/220, no original: “En este breve artículo quiero defender dos ideas normativas: La primera es que el arbitraje de inversión no debería ser considerado hoy como parte del derecho administrativo global; la segunda es que los tribunales arbitrales de inversión deben ser deferentes con el derecho público doméstico, bajo ciertas condiciones, adoptando para ello una especial regla de reconocimiento del sistema normativo en lugar de considerar al derecho público doméstico como categoría sospechosa tanto para afirmar su jurisdicción como para resolver el mérito del reclamo”.
17. Ora, em tal contexto, as limitações legais ao procedimento arbitral são normas de ordem pública, que reduzem o espaço de manifestação da autonomia privada. São previsões inderrogáveis pela vontade dos con- tratantes, de forma que, havendo uma vedação legal à arbitragem, de nada valerá uma cláusula expressa no negócio jurídico permitindo o seu manejo para pacificar a disputa.
18. Não se nega que as partes, na convenção de arbitragem, possam deli- mitar o exato âmbito em que este método poderá ser empregado. Os envol- vidos estão autorizados a pactuar o uso do procedimento arbitral apenas para determinados assuntos, deixando o restante para ser solucionado perante o Poder Judiciário.
19. Por outro lado, ainda que a cláusula arbitral esteja redigida de forma abrangente, sem especificar o alcance em que pode ser invocada, não há dúvidas de que deverá ter suas arestas aparadas em conformidade com as restrições legais à arbitragem. É dizer: o âmbito de incidência do procedimento arbitral não é extraído apenas da vontade das partes manifestada na cláusula contratual que o prevê, mas também – e principalmente – da ordem jurídica nacional.
20. Nesse sentido, confira-se o que dizem Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx
e Xxxxxxx X. Park, respectivamente:
Não obstante as vontades das partes, a arbitragem tem, em algumas ocasiões, sido limitada por razões de política pública ou por questões não arbitráveis, i.e., quando a arbitragem é proibida com relação a assuntos sensíveis, tais como direito da concorrência, regulação de seguros ou violações a direitos civis.6
No mesmo trabalho, ainda, o autor aponta a existência de decisões do Centro Internacional de Resolução de Disputas sobre Investimentos (Icsid), criado justamente pela Convenção de Washington para a Solução de Conflitos sobre Investimentos entre Estados e Cidadãos de Outros Estados, de 1965, que reconhecem como limite à sua atuação a existência de matérias afetas às autoridades públicas nacionais e à regulação por estas produzida: “Obviamente que no es el único tribunal en haber sostenido este principio. Antes, el Comité de Anulación de Vivendi
S.A. v. La República Argentina, había sostenido que las disputas contractuales (o regulatorias) no estaban dentro del alcance de la jurisdicción de los tribunales arbitrales internacionales de inversión. Contrariamente, los reclamos basados en un TBI, sí. estaban bajo la competencia de ese tipo de tribunal. El Comité de Anulación fue aún más lejos y sostuvo que la disputa bajo el tratado es la que estaba regulada por el derecho internacional,mientras que la disputa bajo el contrato estaba regulada por el derecho administrativo deTucumán”.
6 VALDES, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Principle of kompetenz-kompetenz in international comercial arbitration. Revista de Arbitragem e Mediação, a. 4, v. 15, p. 142, out./dez. 2007. (Tradução livre do seguinte trecho: “Notwithstanding the parties’ desires, arbitration has, on occasions, been limited by public
Uma tentativa de autorizar um árbitro a decidir um conflito específico pode não ser admissível porque o Estado assumiu o monopólio da implementação do Direito em áreas nas quais os árbitros (como raposas vigiando um galinheiro) oferecem um risco excessivamente grande de agirem errado. Política pública pode ser invocada como uma proibição genérica à arbitragem quanto a certas categorias de disputas, assim como para proteger a integridade do processo arbitral em casos de parcialidade dos árbitros ou falta de devido processo.7
21. É exatamente porque a arbitrabilidade objetiva de um litígio se submete às restrições do direito nacional e porque, com frequência, em precedentes já havidos na experiência internacional, ela tem sido afastada quando em causa a implementação de políticas públicas, que a submissão desta questão ao Poder Judiciário pela ANP não configura violação à segurança jurídica. A inserção de uma cláusula compromissória no ajuste não poderia ter sido capaz de incutir na Petrobras a legítima expectativa de ver o litígio resolvido pelo juízo arbitral em todo e qualquer caso, ciente a empresa de precedentes do TCU e de arbitragens em âmbito internacional na matéria em que tal arbitrabilidade foi recusada (como se verá mais adiante no item II.2).8 Inexiste afronta ao princípio constitucional quando se leva em conta que as normas restritivas da via arbitral também se valem de conceitos abertos e polissêmicos, sujeitos ao preenchimento pela via da interpretação.
22. Particularmente no ordenamento jurídico brasileiro, há um categórico limite legal ao cabimento do procedimento arbitral: a necessidade de a dis- puta versar sobre direito patrimonial disponível (art. 1º da Lei nº 9.307/96). Em termos de arbitrabilidade objetiva, no Brasil, portanto, a vontade das partes é modulada pela imposição legal de que a matéria arbitral envolva tão somente
policy reasons or by non arbitrable matters, i.e., when the arbitration is forbidden with respect to sensitive subject matters, such as competition law, security regulations or civil rights violations”.)
7 XXXX, Xxxxxxx X. The arbitrability dicta in First Options v. Kaplan: what sort of kompetenz-
kompetenz has crossed the Atlantic?, Revista de Arbitragem e Mediação, a. 3, v. 11, out./dez. 2006,
p. 151. (No original: “An attempt to empower an arbitrator to hear a particular dispute might be impermissible because the state has taken a monopoly on implementation of the law in areas where arbitrators (much like foxes guarding a chicken coop) presente too great risk of getting it wrong. Public policy may be invoked as a catch-all prohibition on the arbitration of certain categories of disputes, as well as to protect the integrity of the arbitral process in matters such as arbitrators bias or lack of due process”).
8 Sobre as dificuldades enfrentadas em diversos precedentes de arbitragem no âmbito da indústria do petróleo na América Latina, v. XXXXXX, Xxxxxx; XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. Arbitration of International Oil, Gas, and Energy Disputes in Latin America. Northwestern Journal of International Law & Business,
v. 27. Bus. 591 (2006-2007). Disponível em: <xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xxxxxxxxxxxx.xxx>.
direitos que estejam sob o poder de disposição das partes. A seguir, esse
conceito será aprofundado e aplicado ao caso em análise.
II.1.1 A indisponibilidade do direito controvertido pelas partes
(a) Questão afeta à soberania do Estado brasileiro que refoge aos limites do contrato
23. O art. 1º da Lei Federal nº 9.307/96, ao delimitar a arbitrabilidade objetiva de litígios a direitos patrimoniais disponíveis, impõe, a contrario sensu, uma vedação legal clara à arbitragem nas demandas que envolvam direitos indisponíveis. Neste ponto, portanto, para responder-se à primeira indagação formulada pela ANP — “a interpretação a respeito do conceito legal de campo de petróleo, realizada pela agência reguladora, alcança direito indisponível titularizado pelo ente público?” — é necessário aprofundar o exame do conceito de indisponibilidade do direito.
24. A princípio, ressalva-se: ainda que utilizada de maneira indiscriminada pela doutrina e jurisprudência, a expressão direito indisponível não encontra um sentido unívoco. Tratando-se, contudo, de conceito jurídico indeterminado, apresenta uma zona de certeza positiva, ou seja, um núcleo conceitual cujo conteúdo é razoavelmente inconteste.
25. Assim, o sentido mais evidente de direito indisponível é o de que se trata de direito não transacionável, impossível de ser renunciado, cedido ou alienado. Direito indisponível, nesta acepção, é aquele que se situa fora da esfera da autonomia da vontade das partes.
26. A existência de autonomia de vontade da Administração Pública, porém, é frequentemente rejeitada no âmbito do direito administrativo,9 que se pauta, sobretudo, pela vinculação da Administração Pública à legalidade. Portanto, do ângulo objetivo, a admissão de arbitragem sobre matéria que
9 XXXXX X XXXXX, Almiro do. Princípios da Legalidade da Administração Pública e da Segurança Jurídica no Estado de Direito Contemporâneo. Revista de Direito Público, v. 84, p. 53, 1988: “É, todavia, incontroverso, que o princípio da autonomia da vontade não existe para a Administração Pública”. Xxxx XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxxx x. A liberdade de contratar para a administração pública: a autonomia da vontade no contrato administrativo. Revista de Direito Administrativo, v. 26, p. 1930, 2012. Disponível na internet: <xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx>: “A vontade da Administração é tão somente a que a lei lhe concede, quer se trate de administração pública sob o regime de direito público, de direito privado ou de direito privado administrativo”.
diga respeito a exercício de competência pública só poderia ser cogitada em bases muito estritas.10
27. Além disso, a Administração Pública, ainda que adote a via contra- tual, está sempre subordinada ao atendimento de um dado interesse público. E, nesse contexto, a qualificação de um interesse público como indisponível pode decorrer simplesmente do relevante valor social do seu objeto.11
28. No direito brasileiro, o Tribunal de Contas da União (TCU) vem se ocupando, ao longo do tempo, de fixar os contornos da arbitrabilidade dos litígios envolvendo contratos administrativos e da caracterização dos direitos qualificados como indisponíveis para tal fim.
29. Em 1993 (acórdão nº 286), a postura da Corte era ainda bastante restri- tiva, rejeitando a admissibilidade da arbitragem em contratos administrativos “por falta de expressa autorização legal e por contrariedade a princípios básicos de direito público (princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, princípio da vinculação ao instrumento convocatório da licitação e à respectiva proposta vencedora, entre outros)”.
30. Posteriormente, no acórdão n. 188/1995, o TCU passou a admitir a arbitragem, desde que observados os princípios da legalidade e da indis- ponibilidade do interesse público. Assim, afirmou-se ser “inaceitável a sua aplicação [da arbitragem] a pessoas de Direito Público, que não podem, de acordo com o princípio da indisponibilidade do interesse público, alienar os direitos que lhe cabem. Apenas aos particulares é dado o privilégio de fazer tudo aquilo que não é proibido por lei”.
31. Já nos anos 2000, à luz da legislação posterior, voltando a analisar o tema nos acórdãos n. 584/2003 e n. 537/2006, a Corte de Contas federal reafir- mou a aplicabilidade da cláusula compromissória em contratos envolvendo a prestação de serviço público, mas desde que a disputa não versasse sobre direitos indisponíveis. No âmbito do Acórdão n. 584/2003, decidiu que “não se pode falar em direito disponível quando se trata de fornecimento de energia elétrica, com o objetivo de atender boa parte da população brasileira que estava sofrendo os efeitos do racionamento de energia. E conforme já mencionei, os serviços de energia elétrica são serviços públicos exclusivos do Estado”.
32. Em decisão mais recente, no exame de um contrato de concessão,
manutenção e expansão da rodovia BR-101/ES/BA, o acórdão n. 2573/2012
10 A definição da questão examinada neste estudo como sendo uma questão regulatória objeto de com- petência própria da agência reguladora será mais bem examinada no item III, adiante.
11 XXXXXXXX, Xxxxxxxxx. Introdução ao estudo do direito. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1978. p. 169.
determinou à Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT que não adotasse a arbitragem para a solução de conflitos relacionados ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Neste caso, o TCU, ao que parece, pre- tendeu diferenciar a equação econômico-financeira do contrato (que não poderia se submeter à arbitragem) das consequências econômicas das cláu- sulas regulamentares. Confira-se trecho da fundamentação da decisão:
153. Pode-se concluir que a jurisprudência tem buscado resguardar o interesse público, indisponível por natureza. No caso específico de contratos de concessão de serviços públicos, as questões econômico- financeiras são de interesse público e, por conseguinte, são indisponíveis a juízo arbitral em litígios administrativos.
154. Finalmente, a título de exemplo, é oportuno mencionar que o Contrato de Concessão do Aeroporto Internacional de São Gonçalo do Amarante (Asga), no Rio Grande do Norte, delimita as situações que ensejará a resolução por meio de arbitragem como sendo as relativas às “indenizações eventualmente devidas quando da extinção do presente contrato, inclusive quanto aos bens revertidos”.
155. Portanto, é indelegável e irrenunciável a resolução das divergên cias decorrentes do contrato de concessão de serviço público quanto aos aspectos econômicofinanceiros.
156. Com fulcro no que dispõe o art. 1º da Lei 9.307/1996 e em que pese ser possível a aplicação da arbitragem, tão somente aos aspectos regulamentares do contrato de concessão, tem-se por devido determinar à ANTT, haja vista o que dispõe o art. 24, inciso VII, da Lei 10.233/2001, que preveja expressamente, no Contrato de Concessão decorrente do Edital 001/2011 BR 101/ES/BA, a inaplicabilidade da Arbitragem para resolução de divergências relativas às questões econômico-financeiras do contrato de concessão. [grifos nossos]
33. Da leitura do excerto, percebe-se que o acórdão é explícito em diferenciar as cláusulas com efeitos econômicos disponíveis daquelas que, muito embora tenham reflexos patrimoniais, constituem disposições não transa- cionáveis e, por isso, não se sujeitam à arbitragem. Assim, a cláusula contratual que encerra o equilíbrio econômico-financeiro da concessão, embora possua cunho patrimonial, é insuscetível de ser arbitrável, por tratar de direito que não comporta disponibilidade pela Administração contratante.
34. A análise dos julgados mencionados permite concluir que, a despeito de admitir em tese a arbitrabilidade de contratos administrativos, o TCU adota uma interpretação restritiva quanto ao âmbito de disponibilidade de direitos que possam ser objeto da cláusula compromissória nestes contratos.
35. Tratando especificamente da admissibilidade da arbitragem nos contratos de concessão de petróleo à luz do direito brasileiro, Xxxxxxx xx Xxxxx Xxxxx fixa assim os contornos da disponibilidade de direitos para tal fim:
A disponibilidade ou não de um direito está intrinsecamente rela- cionada ao seu valor social. [...] Infere-se, portanto, que os direitos que consubstanciam interesse público são indisponíveis, o que é designado, em direito administrativo, “princípio da indisponibilidade de interesses públicos”. Diante disso, na hipótese em análise, deduz se que os termos e condições do contrato de concessão que tratarem de interesse público não podem ser sujeitos à arbitragem, ao passo que matérias de direito privado são plenamente arbitráveis.12 [grifos nossos]
36. Posta a questão assim em termos gerais, resta ver se, na hipótese concreta em exame, as questões referentes à interpretação do conceito legal de campo de petróleo (art. 6º, XIV, da Lei n. 9.478/97) e à fixação de seus limites situam-se, ou não, na esfera de disponibilidade das partes de tal forma que seu enfrentamento possa ser submetido a juízo arbitral.
37. O art. 20, V e IX, da Constituição Federal, estabelece serem bens da União os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva e os recursos minerais. Na mesma linha, o art. 177, I, da Constituição
12 Os limites da arbitragem nos contratos de concessão de exploração e produção de petróleo e gás natural, Revista de Arbitragem e Mediação, v. 2, p. 100, maio/ago. 2004. À p. 101, ainda, embora se valendo de vetusta distinção no direito administrativo, criticada pelos que enxergam em toda ação administrativa a necessidade de atendimento a um fim público, o autor prossegue: “Atente- se que, na verdade, nem todo o ato praticado por ente estatal visa a um interesse público. Nesse sentido, a doutrina administrativista diferencia ‘atos de império’ de ‘atos de gestão’. Os atos de império (ius imperium) são praticados pela Administração com supremacia sobre as demais partes, para a consecução de interesse público superior. Nos atos de gestão (ius gestionis), por sua vez, o Estado não objetiva fim público e, por isso, encontra-se no mesmo patamar das outras partes. [...] Em vista do princípio da indisponibilidade do interesse público, os conflitos originados de atos de império não podem ser resolvidos por arbitragem. Por outro lado, os litígios derivados de atos de gestão praticados por entes públicos, especialmente aqueles em que o Estado explora atividades econômicas típicas da iniciativa privada, são, a princípio, arbitráveis, por não se referirem a interesse público primário”.
Federal, indica ser monopólio da União a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos. A exploração de petróleo é, portanto, atividade econômica subtraída da livre-iniciativa pelo legislador constituinte, sujeita ao regime de monopólio público justamente em função do seu estratégico interesse público para o Estado brasileiro.13
38. Petróleo e gás natural não constituem apenas commodities de pro- priedade da União, mas bens públicos de importância estratégica para a economia nacional e das unidades federadas, algumas das quais têm eco- nomia fortemente vinculada ao setor.14 O valor social das atividades de exploração e produção de petróleo para o desenvolvimento econômico do país é inquestionável. Grande parte dos países que têm reservas de petróleo e gás considera a exploração e produção destes bens uma questão de Estado, fortemente vinculada ao exercício da soberania nacional.
39. Dessa forma, ainda que, em abstrato, o art. 43, X, da Lei 9.478/97, admita a previsão de arbitragem nos contratos de concessão de petróleo e gás no direito brasileiro, o alcance desta arbitragem, à luz do direito brasileiro, será bastante restrito, limitado a questões exclusivamente contratuais e que, ainda assim, não toquem ao atingimento dos fins públicos pretendidos pelo legislador.15
40. Deste modo, não há como ser endereçado à arbitragem um litígio que demande, no primeiro momento, a eleição da interpretação correta de um dis- positivo de lei nacional e, subsequentemente, como decorrência do primeiro, dos limites em concreto de um campo de exploração de petróleo, acerca dos quais o contrato nem sequer dispõe (v., a propósito, o item III, adiante).
41. Na verdade, não parece difícil perceber que o conflito suscitado pela Petrobras está longe de envolver tão somente a escolha de um modelo de negócios pelo concessionário ou a liberdade comercial da parte privada de ma- ximizar os seus lucros dentre espaços contratuais que lhe sejam franqueados.
13 NASCIMENTO, Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxx do; BEZERRA, Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx; FRANÇA, Xxxxxxxx xx Xxxxx. Participações governamentais nos contratos de concessão de exploração e produção de petróleo e gás natural. Revista Brasileira do Direito do Petróleo, Gás e Energia, n. 2, p. 113, set. 2006.
14 ARAGÃO. Xxxxxxxxx Xxxxxx. Princípios de direito regulatório do petróleo. In: XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xx (Org.). Estudos e pareceres: direito do petróleo e gás. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000.
p. 321: “É em razão da consecução destes objetivos que constatamos que o petróleo e combustíveis não são apenas commodities, são também bens públicos nacionais estratégicos, cujas jazidas são constitucionalmente monopolizadas pela União, possuindo enorme importância para o meio ambiente, para os consumidores e para a economia como um todo”.
15 Tal vedação é reconhecida também na literatura estrangeira. Cf.: XXXXXX, Szilvia. Limitations to arbitrability based on the interest os the State with a special focus on Hungary. Disponível em: xxxx://xxx. xxx.xxx.xx/0000/xxxxxx_xxxxxxx.xxx. Acesso em: 19.03.2015, p. 21: Hungary for instance excludes arbitration (both domestic and international) in respect of disputes related to national assets. (grifos nossos)
42. A conclusão quanto à inarbitrabilidade do controle de legalidade dos atos administrativos, em razão da indisponibilidade do direito, tem eco na literatura específica. Destaca-se a síntese procedida pelo português Xxxx Xxxx Xxxxxxxx:
Neste sentido, defendia Xxxxxxxx Xxxxxxx que [...] “mesmo que a convenção pretenda sujeitar ao tribunal arbitral a resolução de todas as questões suscitadas sobre a interpretação, execução e validade do contrato de concessão, deve entender-se que dessas questões estão excluídas as que se suscitem como consequência da prática de atos administrativos destacáveis, já que, para além do mais, a lei estabelece expressamente que o meio processual de impugnação deles é o recurso contencioso de anulação”.
Esta posição encontra eco entre diversos autores da doutrina estran- geira. Assim, em França, Xxxxxxxx afirma categoricamente que “o con- tencioso de legalidade escapa totalmente à arbitragem”. [...] Apenas o juiz estatal, e especialmente o juiz administrativo, tem competência nesta matéria [anulação de atos administrativos]. O árbitro, como juiz privado, não pode substituir-se-lhe. [...] No Direito espanhol, Xxxxxx Xxx sustenta que não é possível deixar ao julgamento dos árbitros a legalidade dos atos administrativos, quer por estar em jogo o exercício de direitos indisponíveis, quer por não ser admissível o controlo do exercício de poderes indisponíveis, que por não ser admissível o controlo pelos árbitros do exercício da função administrativa. [...] Em Itália, Caia, tendo em conta a corrente jurisprudencial já indicada, nos termos da qual não há lugar à arbitragem nas matérias da competência exclusiva dos tribunais administrativos, recusa a possibilidade de os tribunais arbitrais conhecerem da legalidade dos atos administrativos. Refere igualmente Domenichelli que, no campo da anulação dos atos administrativos (“annullamento del provvedimento”), o “juiz administrativo é sacerdote exclusivo”. Salientase ainda, na Alemanha, a posição de Xxxxxxxx, o qual destaca que a arbitragem assenta numa paridade entre as partes, pelo que a mesmo não pode incidir sobre litígios que envolvam a anulação de atos administrativos ou a condenação à prática de tais atos.16 [grifos nossos]
16 Os contratos administrativos e a arbitragem. Coimbra: Almedina, 2004. p. 200-201.
43. No caso, ainda que a disputa fosse restrita à determinação de critérios e ao cálculo das participações especiais definidas no art. 50 da Lei 9.478/9717 e no art. 21 do Decreto Federal n. 2.705/9818 — o que representa versão reducionista da amplitude do conflito19 —, nem assim a arbitragem seria admissível. Estas verbas não ostentam caráter contratual, mas decorrem de lei e constituem importante instrumento de apropriação pela sociedade de parcela dos lucros havidos com a exploração de bens do patrimônio público.
44. Nesse sentido, a abalizada doutrina da Profa. Xxxxxxx Xxxxxx xx Xx Xxxxxxx, respeitada especialista acerca do tema no direito brasileiro:
As jazidas de petróleo são bens públicos da União, por expressa dis- posição constitucional. No entanto, com a concessão, todo o produto obtido como resultado desta atividade passa a integrar o patrimônio do concessionário. A compensação obtida pelo Estado, pela exploração deste recurso natural não renovável, é realizada através das parti- cipações governamentais.
[...]
Como as jazidas de petróleo são bens públicos da União e as participações governamentais decorrem de sua exploração, é entendimento corrente de que representam forma originária de receita pública, o que afasta a sua classificação como tributo.
Também não seria cabível afirmar que são meras disposições con tratuais. Apesar de presentes no contrato, não há liberdade quanto a estas cláusulas, que são na verdade resultado de imposições legais.20 [grifos nossos]
17 Lei 9.487/97:
Art. 50. O edital e o contrato estabelecerão que, nos casos de grande volume de produção, ou de grande rentabilidade, haverá o pagamento de uma participação especial, a ser regula- mentada em decreto do Presidente da República.
§1º A participação especial será aplicada sobre a receita bruta da produção, deduzidos os royalties, os investimentos na exploração, os custos operacionais, a depreciação e os tributos previstos na legislação em vigor.
18 Art. 21. A participação especial prevista no inciso III do art. 45 da Lei nº 9.478, de 1997, constitui compensação financeira extraordinária devida pelos concessionários de exploração e produção de petróleo ou gás natural, nos casos de grande volume de produção ou de grande rentabilidade, conforme os critérios definidos neste Decreto, e será paga, com relação a cada campo de uma dada área de concessão, a partir do trimestre em que ocorrer a data de início da respectiva produção.
19 A controvérsia, como será mais bem examinado no item III.1, infra, tem contornos significativamente mais amplos porque envolve a fixação da correta interpretação do conceito legal de campo de petróleo e da competência para a fixação dos limites destes campos.
20 Direito do Petróleo: as joint ventures na indústria do petróleo. 2. ed. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 378-380.
45. A mesma orientação encontra eco nas lições de Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx, que se alinha entre os mais renomados administrativistas brasileiros:
Toda a questão do cabimento da arbitragem na órbita interna se reduz, assim, à definição do campo contratual em que a Administração negocia e estatui como qualquer particular excluídas, portanto, quaisquer cláusulas em que seja prevista a satisfação de um interesse finalístico da sociedade, cometido ao Estado, este sim indisponível.21 [grifos nossos]
46. Portanto, à luz do exposto, para que a matéria pudesse ser arbitrável:
(i) deveria situar-se em zona do contrato que a Administração tivesse estatuído, como qualquer particular, em condição de paridade de armas com o concessionário e, ainda, (ii) dissesse respeito à cláusula irrelevante para a satisfação do interesse finalístico da sociedade. Não sendo assim, o direito em causa se apresenta como indisponível e, portanto, não pode ser submetido à arbitragem.
47. Conclusão parelha pode ser deduzida das lições de Xxxx Xxxxxxx
Xxxxxx, em obra de referência sobre o direito do petróleo no Brasil:
Assim, a promoção da regulação, a elaboração de editais, a promoção de licitações, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo — atividades fim da Agência Nacional do Petróleo, conforme estabelecido no art. 8º (caput e inciso IV) da Lei do Petróleo e para as quais esse órgão regulador foi previsto no art. 177, §2º, III, da CF/88 — constituem interesses públicos indis poníveis por excelência. Configura-se, assim, um conflito entre as regras da Lei da Arbitragem, contidas nos artigos 1º e 25 — que limitam a utilização da via arbitral aos litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis e o art. 43, X, da Lei do Petróleo.22 [grifos nossos]
21 XXXXXXX XXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxxxx. Arbitragem nos contratos administrativos, Revista de Direito
Administrativo, v. 209, p. 88, jul./set. 1997.
22 XXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. Direito do petróleo: a regulamentação das atividades de exploração e produção
de petróleo e gás natural no Brasil, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 88-89.
48. Logo, como (i) o litígio submetido à arbitragem pela Petrobras não é primariamente contratual, dado que se refere à competência regulatória da agência na interpretação de norma legal (v. item III, infra) e (ii) impacta o atingimento de interesses e fins públicos relevantes, apenas instrumentalizados pelo contrato e, dessa forma, indisponíveis pela ANP (signatária do ajuste), aponta-se aqui no sentido da inarbitrabilidade objetiva do conflito instaurado.
(B) Presença de interesses federativos de estados e municípios não signatários da cláusula compromissória
49. Afora a constatação de que a matéria suscitada no requerimento de arbitragem situa-se fora da esfera de autonomia das partes contratantes, outra razão milita ainda no sentido da indisponibilidade dos interesses em conflito no caso em exame.
50. Como se disse acima, qualquer decisão quanto à interpretação dos critérios de fixação e dos limites de um campo de petróleo à luz do direito brasileiro terá impacto direto sobre o critério de apuração de verbas de natureza constitucional, como são as participações especiais, devidas pelo concessionário quando for atingido determinado volume de petróleo produzido por um campo.
51. O art. 21 do Decreto federal 2.705/98, que, por seu turno, regulamenta os art. 45, III, e 50, da Lei 9.478/97, é expresso no sentido de que as participações especiais são devidas quando houver grande volume de produção ou grande rentabilidade, tendo como referência para essa apuração a produção de cada campo de petróleo devidamente identificado.
52. Ocorre que, além da União, outros entes federativos são igualmente destinatários de tais verbas, os Estados e Municípios produtores. Esses, po- rém, não são partes no contrato e nem acordaram a cláusula compromissória nele aposta. E, como serão diretamente afetados pelo conteúdo da decisão que vier a ser proferida no juízo arbitral, esta constatação serve também para afastar a viabilidade de que uma contenda com tal amplitude possa ser submetida à arbitragem.
53. A arbitragem em caso tal será inútil como meio alternativo de reso- lução de controvérsia — posto que, não alcançando os terceiros, estes estarão livres para submetê-la ao Poder Judiciário — e ineficiente porque gerará dispêndio de recursos públicos com os altos custos da arbitragem e dos recursos humanos e administrativos ocupados do conflito.
54. Quanto ao alcance da arbitragem de contratos administrativos em relação a terceiros, confira-se, mais uma vez, o que leciona o autor português Xxxx Xxxx Xxxxxxxx:
Assim, perante a eficácia inter partes da cláusula compromissória constante do contrato administrativo, a qual não pode afetar aqueles que não participaram da sua celebração, os terceiros cuja esfera jurídica tivesse sido lesada pela execução do contrato administrativo, poderiam recorrer aos tribunais administrativos estaduais, indepen dentemente do facto de as partes terem sujeitado os litígios decor rentes do contrato à arbitragem.23 [grifos nossos]
55. Não se diga, para desqualificar o interesse dos entes federativos brasileiros produtores de petróleo sobre a questão litigiosa, que se trataria apenas de interesse lateral e subordinado ao contrato, puramente arrecada- tório e, portanto, supostamente secundário.24 E, logo, que os terceiros haverão necessariamente de se conformar ao que vier a ser decidido na relação entre a ANP e a Petrobras.
56. Tal visão não encontra eco na legislação brasileira, nem na natureza, nem na interpretação que se dá às participações governamentais fundadas na regra do art. 20, §1º, da Constituição Federal.
57. A ratio da norma que garante aos Estados e Municípios produtores a compensação pela exploração do petróleo indica que as participações go- vernamentais — que incluem bônus de assinatura, royalties, participações especiais e pagamento pela ocupação ou retenção de área — não servem sim- plesmente como contraprestação pela transferência da propriedade do bem público para o concessionário, mas sim para compensar os danos, sejam eles sociais ou ambientais, decorrentes da exploração petrolífera.
58. Ressalte-se que a compensação prevista no art. 20, §1º, da Constituição Federal, não se destina a ressarcir o ente público pela perda da propriedade sobre o bem público. Vale dizer, não serve apenas para remunerar o titular do
23 XXXXXXXX, Xxxx Xxxx. Os contratos administrativos e a arbitragem. Portugal: Xxxxxxxx, 0000. p. 265-266.
24 Na verdade, está mesmo a merecer uma revisão, à luz da literatura mais moderna, a compreensão, reproduzida com frequência no direito brasileiro, da distinção entre interesse público primário e interesse público secundário como sendo, o primeiro, o interesse coletivo que deve ser satisfeito e, o segundo, como o interesse individual do Estado-Administração e que, portanto, não seria um verdadeiro interesse público, nem precisaria ser atendido (v., nesse sentido, dentre outros, XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 54-55). Retornaremos mais adiante a esse tema, v. item III.3, infra.
recurso mineral pela sua transferência para um proprietário privado. Se assim o fosse, as participações governamentais seriam destinadas unicamente à União, ente federativo ao qual a Constituição Federal destinou a propriedade do petróleo encontrado no subsolo e na plataforma continental.
59. Na verdade, o pagamento de participações governamentais tem como finalidade compensar também Estados e Municípios, onde se encontram as jazidas de petróleo, pelos efeitos nocivos que a indústria de óleo e gás acarreta nas regiões exploradas.25
60. A implantação e o desenvolvimento dessas atividades provocam consideráveis alterações na organização do espaço regional das localidades produtoras, tendo em vista que as indústrias petrolíferas demandam uma rede de infraestrutura, sobretudo de serviços públicos e de mão de obra qualificada. Daí a lógica da compensação ao atendimento de uma demanda extraordinária por serviços públicos.
61. O fator ambiental, de outro turno, associa-se à indenização pelos impactos ao meio ambiente causados pelas atividades de exploração do petróleo e produção de derivados. Não se trata apenas das indenizações judi- cialmente determinadas, em razão de dano causado, mas sim de compensar os prejuízos ambientais, tais como a degradação do solo e do ambiente marí- timo, a emissão de gases e o comprometimento de outras atividades (pes- queira, por exemplo). A este escopo de manutenção e conservação do meio ambiente equilibrado também se alia o princípio da justiça intergeracional: os investimentos ambientais servem para a preservação de direito difuso dos
25 Este é o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança nº 24.312-1/DF e reafirmado no julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 453.025-1/DF. Confira-se a ementa do acórdão proferido no MS 24.312-1/DF (Tribunal Pleno, Rel. Min. Xxxxx Xxxxxx, julgamento em 19.02.2003, DJ 19.12.2003): MANDADO DE SEGURANÇA. ATO CONCRETO. CABIMENTO. EXPLORAÇÃO DE PETRÓLEO, XISTO BETUMINOSO E GÁS NATURAL. PARTICIPAÇÃO, EM SEU RESULTADO, DOS ESTADOS, DISTRITO FEDERAL E MUNICÍPIOS. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 20, §1º. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO PARA A FISCALIZAÇÃO DA APLICAÇÃO DOS RECURSOS ORIUNDOS DESTA EXPLORAÇÃO NO TERRITÓRIO FLUMINENSE. 1 — Não tendo sido atacada lei em tese, mas ato concreto do Tribunal de Contas da União que autoriza a realização de auditorias nos municípios e Estado do Rio de Janeiro, não tem aplicação a Súmula 266 do STF. 2 — Embora os recursos naturais da plataforma continental e os recursos minerais sejam bens da União (CF, art. 20, V e IX), a participação ou compensação aos Estados, Distrito Federal e Municípios no resultado da exploração de petróleo, xisto betuminoso e gás natural são receitas originárias destes últimos entes federativos (CF, art. 20, §1º). 3 — É inaplicável, ao caso, o disposto no art. 71, VI da Carta Magna que se refere, especificamente, ao repasse efetuado pela União — mediante convênio, acordo ou ajuste — de recursos originariamente federais. 4 — Entendimento original da Relatora, em sentido contrário, abandonado para participar das razões prevalecentes. 5 — Segurança concedida e, ainda, declarada a inconstitucionalidade dos arts. 1º, inc. XI e 198, inc. III, ambos do Regimento Interno do Tribunal de Contas da União, além do art. 25, parte final, do Decreto nº 1, de 11 de janeiro de 1991. [grifos nossos]
cidadãos de hoje, assim como das gerações futuras, conforme se extrai da própria Constituição Federal.
62. Por fim, o esgotamento das reservas petrolíferas pode provocar um esvaziamento econômico dessas localidades. Dessa forma, o pagamento das participações governamentais emerge como mecanismo capaz de propiciar a reconversão produtiva dos entes afetados na fase pós-petróleo, a fim de minimizar sua dependência econômica em relação a esta indústria.
63. Em síntese, as consequências advindas da exploração do petróleo podem atingir distintos fatores relevantes para a vida social dos entes fe- derados produtores de petróleo. A instalação dos componentes da indústria tem significativo impacto ambiental, afora os prejuízos à flora e à fauna, quando da ocorrência de acidentes potencialmente poluidores. Além disso, a grande concentração de massa trabalhadora nas localidades produtivas demanda maior investimento em serviços públicos. No mais, a economia regional acaba por não ser diversificada, podendo tornar-se dependente da exploração de um recurso finito.
64. Fabrício do Rosário Valle Xxxxxx Xxxxx, em estudo sobre o tema, bem
define a finalidade das participações governamentais:
As participações governamentais na indústria do petróleo, como espécie do gênero compensações financeiras, são receitas originárias de cada ente público beneficiado constitucionalmente por esta verba, cuja valoração deve levar em conta a expressão econômica do recurso mineral explorado, os impactos na infraestrutura estatal que a indústria impõe e critérios ambientais à luz do princípio do poluidor-pagador, expressamente previsto no §3º do artigo 225 da Constituição.26
65. Dessa forma, além de constituírem ingressos públicos de titularidade originária dos entes federativos produtores, as participações governamentais têm finalidade relevante para o equilíbrio federativo. De um lado, permitem que os Estados e Municípios produtores façam investimentos em preservação do meio ambiente e consolidem uma infraestrutura de serviços à população local, situações não vivenciadas pelas unidades federativas não produtoras. Do outro, tais verbas objetivam retribuir os mesmos entes produtores pela
26 As participações governamentais na indústria do petróleo sob a perspectiva do estado-membro: importância econômica, natureza jurídica e possibilidade de fiscalização direta. Revista de Direito GV, a. 5, v. 2, n. 10, p. 535-536, jul./dez. 2009.
incapacidade ou inviabilidade de atraírem novas indústrias, direcionadas
então a diversas unidades da federação.27
66. Pela importância social e ambiental que possuem as participações governamentais, parece bastante claro que o direito envolvido na disputa não é meramente arrecadatório e nem deve ser reduzido a um interesse de ordem puramente financeira, como se o interesse financeiro fosse menor diante das extensas responsabilidades dos entes federados com suas populações.28 Ainda que tais verbas sejam receitas decorrentes da exploração de um bem público, a sua distribuição entre entes federativos visa ao desenvolvimento econômico- social das unidades e, em última instância, do próprio país. Assim, diminuir o papel que as participações governamentais desempenham no cenário nacional é ignorar a relevância que a matéria apresenta para a soberania e equilíbrio do Estado brasileiro.
67. Neste ponto, é interessante notar que, segundo a literatura, as parti- cipações governamentais não possuem caráter tributário, em especial pela ausência de compulsoriedade e por serem devidas pela exploração de um bem público — e não pela manifestação de riqueza. Configuram, portanto, entrada financeira decorrente de uma contraprestação pela fruição econômica de um recurso de origem pública. A sua natureza jurídica, portanto, é de receita pública originária.
68. Assim, cada ente federativo produtor de petróleo é beneficiado com receitas originárias decorrentes das participações governamentais. Vale dizer: essas verbas são de titularidade da União, dos Estados e dos Municípios produtores, não havendo repasse dos recursos do ente federal para os demais. Como não se trata de transferência voluntária, o ente federativo titular recebe, de forma originária, o montante de compensações financeiras, de acordo com as regras de partilha desses valores.
27 Vale conferir trecho do voto do Ministro Sepúlveda Pertence no Recurso Extraordinário n. 228.800/ DF (Primeira Turma, Rel. Min. Xxxxxxxxx Xxxxxxxx, julgamento em 25.09.2001, DJ 16.11.2001): A compensação se vincula, a meu ver, não à exploração em si, mas aos problemas que gera. Com efeito, a exploração de recursos minerais e de potenciais de energia elétrica é atividade potencialmente geradora de um sem-número de problemas para os entes públicos [...]. Problemas ambientais [...], sociais e econômicos, advindos do crescimento da população e da demanda por serviços públicos. Além disso, a concessão da lavra e a implantação de uma represa inviabilizam o desenvolvimento de atividades produtivas na superfície, privando Estados e Municípios das vantagens delas decorrentes. Pois bem. Dos recursos despendidos com esses e outros efeitos da exploração é que devem ser compensadas as pessoas referidas no dispositivo.
28 LEITE, Fabrício do Rosário Valle Dantas. As participações governamentais na indústria do petróleo sob a perspectiva do estado-membro: importância econômica, natureza jurídica e possibilidade de fiscalização direta. Revista de Direito GV, a. 5, v. 2, n. 10, jul./dez. 2009. p. 529: [A] importância [das participações governamentais] ultrapassa a barreira arrecadatória, por se tratar de compensação financeira pela exploração de recursos finitos e de uma indústria com sérios resíduos ambientais.
69. Logo, sendo titulares originários das verbas de ressarcimento, os entes federativos por certo que detêm um interesse direto e autônomo — não meramente secundário ou subordinado — no resultado da contenda que se pretender ver arbitrada.
70. A supressão ou diminuição dos valores recolhidos aos membros da federação pode afetar a sua autonomia financeira, um dos pilares do princípio federativo. No contexto atual, a organização econômico-financeira destes entes políticos depende da percepção de royalties e participações espe- ciais, principalmente porque a indústria do petróleo, que absorve capacidade instalada e mão de obra, acaba por afastar investimentos em outras atividades econômicas.29 A independência administrativa necessária ao equilíbrio federa- tivo passa, assim, pela exigência de que os membros da federação gozem de lastro econômico para fazer frente às competências que a Constituição lhes atribui.30
71. Por isso, se a contenda envolve eventual violação do pacto federativo, porque seu resultado tem potencial para afetar a autonomia financeira dos entes federativos, não é possível submetê-la a um tribunal de natureza privada. Os entes federativos são titulares de direito próprio e com fundamento específico tanto na Constituição como na lei (e não no contrato). Seus interesses não são secundários, nem subordinados. Por isso, a arbitrabilidade deste conflito entre a ANP e a Petrobras, nessas condições, além de não ser cabível por tudo o que já se disse, será ineficaz.
II.2 A admissibilidade do controle jurisdicional prévio sobre a arbitrabilidade do conflito
29 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. Federalismo, isonomia e segurança jurídica: inconstitucionalidade das alterações na distribuição de royalties do petróleo. Disponível em: <xxx.xx.xxx.xx/xxx/xxx>. Acesso em: 24 mar. 2015. p. 28/29: “Em segundo lugar, a medida comprometeria gravemente a autonomia financeira dos Estados produtores, que ficaria subordinada a uma decisão política da União. Como é natural, tais Estados organizam suas finanças levando em conta a receita dos royalties. [...].”
30 XXXXXXXX XXXXX, Xxxx Xxxxxx. Pacto federativo: aspectos atuais. Revista da Emerj, x. 0, x. 00,
x. 000, 0000: A autonomia conferida aos entes federativos, entretanto, tem que comportar lastro financeiro que lhes permita atuar nas áreas demarcadas pela Constituição. Assim, é necessário que a lei fundamental contemple sistema tributário por meio do qual se permita que tais entidades aufiram renda própria, fator necessário, como sabido, para garantir a relativa independência de que gozam no regime. Poderá haver, é claro, a previsão de repasses de recursos provindos de outra esfera federativa, mas esses repasses não podem ser de tal dimensão que submeta a entidade destinatária à total dependência da pessoa repassadora. Repasses são (ou, pelo menos, devem ser) fontes auxiliares de recursos, mas a fonte primária deve ser realmente aquela que se origine dos tributos de sua competência.
72. Considerando-se que toda a argumentação desenvolvida até aqui convergiu para a conclusão de que as questões suscitadas pela Petrobras perante a CCI são inarbitráveis à luz do direito brasileiro, parece oportuno examinar importante questão daí decorrente. A quem pertence a competência primária para o exercício do juízo de admissibilidade quanto à arbitragem, aos árbitros ou ao juiz?
73. A resposta depende da correta delimitação do conteúdo e alcance do conhecido princípio da competência-competência (ou kompetenz-kompetenz, como é denominado no direito alemão).
74. Trata-se de postulado que carece de acepção unívoca na literatura específica. Existem concepções dos mais diversos matizes. É necessário, portanto, olhar para cada ordem jurídica para identificar quais aspectos foram adotados pelo legislador e quais, afastados ou, ao menos, flexibilizados.
75. De modo didático, a literatura específica indica que o princípio da
competência-competência pode apresentar dois efeitos: o positivo e o negativo.
76. O efeito positivo do princípio da competência-competência opera no sentido do reconhecimento da competência dos árbitros para decidirem questões afetas à sua própria competência sem a necessidade de prévia oitiva do Poder Judiciário. É dizer: caso uma das partes questione a possibilidade de deter- minado litígio ser resolvido pela via arbitral, os árbitros estão autorizados a se pronunciar sobre essa matéria, de modo que, se entenderem não haver óbice ao foro privado, podem prosseguir com o exame de mérito e proferir decisão. Assim, não é preciso haver um provimento jurisdicional reconhecendo a sua competência para, somente então, estarem aptos a analisar o cerne da controvérsia.31
77. O efeito positivo é o de maior aderência entre os diferentes países, não sendo objeto de relevantes controvérsias. A mesma afirmação, porém, não po- de ser feita em relação ao chamado efeito negativo do princípio.
78. O efeito negativo do princípio da competência-competência estabelece, para além da competência de decidir sobre a própria competência, uma prioridade cronológica do juízo arbitral para a resolução de questões relativas à compe- tência para julgar um litígio. Produz, portanto, um impedimento temporá- rio à atuação do Poder Judiciário, que somente poderá se pronunciar sobre a competência dos árbitros após a apreciação realizada por eles mesmos.32
31 VALDES, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Principle of kompetenz-kompetenz in international comercial arbitration. Revista de Arbitragem e Mediação, a. 4, v. 15, p. 179, out./dez. 2007.
32 KAWHARU, Amokura. Arbitral jurisdiction. New Zealand University Law Review, n. 23, p. 243: “The negative effect, more controversially, takes the competence-competence principle a step further than its
79. Este aspecto negativo gera inúmeras discussões na literatura e na jurisprudência dos Tribunais estrangeiros, e já vem merecendo críticas tam- bém no Brasil.33 Ao contrário do efeito positivo, o efeito negativo não é um conteúdo universalmente aceito do princípio da competência-competência. Ao contrário: há ordenamentos jurídicos que o aplicam de maneira quase irrestrita — como ocorre na França — e outros que o rejeitam por completo — como é o caso norte-americano.
80. De fato, na França, os órgãos jurisdicionais raramente retiram do juízo arbitral a primeira palavra sobre a arbitrabilidade do conflito. Somente se manifestam sobre esse tema em momento prévio à instalação da corte arbitral e, ainda assim, se a convenção de arbitragem for flagrantemente nula ou inaplicável. Porém, é necessário ressaltar que, diferentemente do que ocorre com o direito brasileiro, há previsão expressa no Código de Processo Civil francês nesse sentido (art. 1455).34
81. No entanto, outras legislações disciplinam de forma absolutamente
diversa o princípio da competência-competência.
82. Na Alemanha, por exemplo, o interessado pode, antes da constituição da corte arbitral — vale dizer, antes de o último árbitro ser nomeado —, ingressar com ação judicial para se determinar o cabimento ou não da arbi- tragem. Esta possibilidade está prevista expressamente na Seção 1032 do Código de Processo Civil alemão (o Zivilprozessordnung — ZPO).35 O exame
positive effect by establishing a presumption of chronological priority for the tribunal with respect to resolving jurisdiction questions. It has a negative or restraining effect on the court, whose role is generally deferred to subsequent review of the tribunal’s decision” (Tradução livre: “O efeito negativo, de modo mais controverso, coloca o princípio da competência-competência um passo à frente do efeito positivo, estabelecendo uma presunção de prioridade cronológica para o tribunal [arbitral] com respeito à resolução de questões de competência. Ele possui um efeito negativo ou restritivo sobre o órgão jurisdicional, cujo papel é geralmente diferido para um controle subsequente à decisão do tribunal [arbitral]”).
33 LONGO, Xxxxxxxx Xxxxxx. Mitigação do princípio da kompetenz-kompetenz — art. 8º, parágrafo único e art. 20 da Lei 9.307/1996. Revista de Arbitragem e Mediação, a. 9, n. 35, p. 360-380, out./dez. 2012; XXXX, Xxxxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx Xxxx. Da relativização do princípio da kompetenz- kompetenz. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. XVIII, p. 205-220, 2006.
34 Code de Procédure Civile, article 1455. “Si la convention d’arbitrage est manifestement nulle ou manifestement inapplicable, le juge d’appui déclare n’y avoir lieu à designation”. (Tradução livre: “Se a convenção de arbitragem é manifestamente nula ou inaplicável, o juiz de apoio declara que não será realizada a nomeação [dos árbitros]”.)
35 XXXXX, Xxxxxx; XXXXX, Xxxxx. Ten years of Uncitral Model Law in Germany. World Arbitration & Mediation Review, v. 1, n. 3, p. 454-455, 2007: “Pursuant to Section 1032(2) of the ZPO, a party may, prior to the constitution of the tribunal — i.e., until the last arbitrator has been appointed — apply to the courts to determine the admissibility or non-admissibility of the arbitration proceedings”. (Tradução livre: “Nos termos da Seção 1032(2) do CPC, a parte pode, previamente à constituição do tribunal — i.e., até o último árbitro ter sido nomeado —, recorrer ao Poder Judiciário para determinar a admissibilidade ou não admissibilidade do procedimento arbitral”). No mesmo sentido, BREKOULAKIS, Stavros.
pelo Poder Judiciário deve ser amplo, não se limitando à análise superficial, acerca da existência, validade, eficácia ou abrangência da cláusula arbitral.36
83. A exigência de que a medida judicial seja perpetrada antes da instituição do juízo arbitral está ligada à demonstração de boa-fé pela parte recalcitrante, presumindo-se que, ao desafiar a competência dos árbitros antes mesmo da nomeação deles, não atua com o fito de retardar o procedimento arbitral, mas porque realmente acredita na inadmissibilidade da arbitragem.
84. Nos Estados Unidos, por seu turno, os órgãos jurisdicionais podem realizar um controle pleno sobre a competência dos árbitros, independen- temente de a arbitragem já ter sido instaurada ou não. As Seções 3 e 4 da Lei federal de Arbitragem (Federal Arbitration Act) não estabelecem uma presunção de que o Poder Judiciário deve aguardar uma decisão arbitral para, só então, se pronunciar sobre a competência do Tribunal Arbitral para decidir determinado litígio. Ou seja: o efeito negativo do princípio da competência- competência é afastado no modelo norte-americano.37
85. É oportuno notar que o princípio da competência-competência é um artifício jurídico, pois o ordenamento assume como verdadeiro algo que, na realidade, não é. Na medida em que se põe em xeque a existência ou a validade da convenção de arbitragem, decorreria logicamente daí que o árbitro não detém competência alguma, seja para definir os limites da sua própria competência, seja para solucionar o conflito.
86. Contudo, existem motivos para o estabelecimento dessa ficção: o efeito positivo do princípio da competência-competência protege a livre manifestação de vontade das partes no sentido de submeter seus litígios a um foro privado de solução de controvérsias,38 ao passo que o seu efeito negativo,
The negative effect of compétence-compétence: the verdict has to be negative. Legal Studies Research Paper n. 22/2009, Queen Mary University of London, School of Law.
36 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. A competência da competência e a autonomia do Tribunal Arbitral.
Revista de Arbitragem e Mediação, a. 11, v. 40, p. 153-154, jan./mar. 2014.
37 XXXX, Xxxxxxx X. Arbitral jurisdiction in the United States: who decides what? International Arbitration Law Review, issue 1, p. 41, 2008: “The Federal Arbitration Act creates no statutory presumption that courts should await the award before pronouncing themselves on an arbitrator’s authority to hear a dispute. At any stage in the arbitral process, courts can decide whether a particular matter has been (or can be) submitted to arbitration, usually in the context of a motion to compel arbitration or to stay litigation”. (Tradução livre: A Lei Federal de Arbitragem não cria uma presunção legal de que os tribunais devem aguardar a decisão arbitral antes de se pronunciarem sobre a autoridade do árbitro para decidir um conflito. Em qualquer estágio do processo arbitral, os tribunais podem decidir se uma questão específica foi (ou pode ser) submetida à arbitragem, normalmente no contexto de uma petição para obrigar a arbitragem ou para suspender o processo judicial”.)
38 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxxx. El principio compétence-compétence revisitado. Revista de Arbitragem e Mediação, a. 4, v. 13, p. 101-102, abr./jun. 2007.
além de reforçar o anterior, funcionaria como uma barreira contra medidas
judiciais exclusivamente protelatórias do procedimento arbitral.
87. Por isso, reconhecendo-se a utilidade do princípio da competência- competência para a efetividade da arbitragem como método alternativo de solução de conflitos, não se pretende aqui refutar por completo a sua vigência no direito brasileiro, nem sequer a de seu efeito negativo.
88. Porém, ainda assim, é preciso definir seus reais contornos à luz da legislação nacional, com a mitigação da ideia de que deve ser dada, em todo e qualquer caso, uma preferência cronológica ao árbitro em detrimento do Poder Judiciário para decidir sobre questões atinentes à arbitrabilidade do litígio. Especialmente quando estiverem em causa arbitragens envolvendo entes da Administração Pública e interesse públicos.
89. Nesse sentido, cabe uma investigação sobre as normas aplicáveis à
matéria no Brasil.
90. A literatura jurídica, de modo geral, assevera que o princípio da competência-competência, no ordenamento jurídico brasileiro, está previsto expressamente nos arts. 8º, parágrafo único, e 20 da Lei nº 9.307/96, que dispõem o seguinte:
Capítulo II
Da Convenção de Arbitragem e seus Efeitos
[...]
Art. 8º, parágrafo único. Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláu- sula compromissória.
[...[
Capítulo IV
Do Procedimento Arbitral
[...[
Art. 20. A parte que pretender arguir questões relativas à competência, suspeição ou impedimento do árbitro ou dos árbitros, bem como nuli- dade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem.
§1º Acolhida a arguição de suspeição ou impedimento, será o árbitro
substituído nos termos do art. 16 desta Lei, reconhecida a incompetência
do árbitro ou do tribunal arbitral, bem como a nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, serão as partes remetidas ao órgão do Poder Judiciário competente para julgar a causa.
§2º Não sendo acolhida a arguição, terá normal prosseguimento a arbitragem, sem prejuízo de vir a ser examinada a decisão pelo órgão do Poder Judiciário competente, quando da eventual propositura da demanda de que trata o art. 33 desta Lei.
91. No entanto, se parece certo que a dicção legal contempla o efeito positivo do princípio da competência-competência — dado que confere ao árbitro o poder de apreciar a sua própria competência (art. 20, caput, da Lei nº 9.307/96) —, não é inequívoco, apesar de muitos tentarem fazer crer o contrário, que o legislador tenha consagrado no Direito brasileiro o seu efeito negativo, sobretudo nos moldes franceses.
92. Em momento algum, a lei atribui exclusiva ou primeiramente aos árbitros a competência para decidirem se determinada questão pode ser submetida ou não à arbitragem. Estabelece apenas um limite temporal à parte que deseja arguir este tipo de matéria, impondo que o faça na primeira oportunidade que tiver para se manifestar, após a instituição do procedimento arbitral.
93. Nesse sentido, confira-se o que diz Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx:
Nós não vemos claramente que o Brasil siga de modo estrito o modelo Francês quanto ao princípio da Kompetenz-Kompetenz. A Lei de Arbitragem Brasileira não coloca — como o sistema Francês faz — um claro obstáculo à intervenção dos juízes até que a decisão arbitral final seja proferida, ressalvada a hipótese em que o Acordo de Arbitragem é nulo ou ineficaz.39
94. A expressão “após a instituição da arbitragem”, contida no caput do art. 20 da Lei nº 9.307/96, não tem como ser invocada para respaldar o efeito negativo do princípio da competência-competência. E isto por três razões:
39 VALDES, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Principle of kompetenz-kompetenz in international comercial arbitration. Revista de Arbitragem e Mediação, a. 4, v. 15, p. 174, out./dez. 2007. (Tradução livre do seguinte trecho: “We do not see clearly that Brazil follows strictly the French model on the Kompetenz- Kompetenz principle. The Brazilian Arbitration Law does not point out — as the French system does — a clear bar for the courts to intervene until the final award is rendered, unless the Arbitration Agreement is null or void”.)
(i) em primeiro lugar, esse dispositivo está inserido no capítulo IV, intitulado “Do Procedimento Arbitral”, de modo que está a disciplinar a arguição da incompetência do árbitro em sede de arbitragem, e não perante o Poder Judiciário; (ii) em segundo, conferir atribuição ao árbitro para examinar a sua própria competência não significa necessariamente excluí-la dos órgãos jurisdicionais; e (iii) em terceiro lugar, a interpretação sistemática dessa nor- ma com o art. 19 da lei, que prevê o momento no qual se considera instituída a arbitragem, revela que a sua finalidade é impedir a arguição dessa matéria antes da aceitação da nomeação por todos os árbitros.40
95. Este último ponto merece uma digressão. Note-se que a lei brasileira só permite às partes a arguição da incompetência dos árbitros no bojo do próprio procedimento arbitral depois de todos eles terem aceitado a sua nomeação. Até porque antes da aceitação da nomeação pelos árbitros, como dispõe o art. 19 da Lei nº 9.307/96, sequer a arbitragem foi ainda instalada. Significa dizer que, antes disso, discussões relativas ao cabimento da arbitragem ficariam inteiramente suspensas, aguardando-se a instalação do juízo arbitral.
96. Ora, ao menos enquanto os árbitros ainda não foram nomeados, não há arbitragem instalada e, por isso, ainda não é possível arguir a sua incom- petência na via arbitral, faria sentido impedir que a parte interessada susci- tasse essa matéria perante o Poder Judiciário?
97. A lei brasileira é silente quanto a esse aspecto. E, mesmo o Código de Processo Civil francês, que adota o efeito negativo do princípio da competência-competência em sua versão mais intensa, autoriza explicita- mente a análise judicial nessa fase, ainda que de maneira superficial ou prima facie (apenas se a cláusula arbitral for manifestamente nula ou inaplicável).
98. Será, então, que, diante da omissão do legislador pátrio, deve-se obstar a apreciação da questão da competência pelo Judiciário mesmo se for levada em momento anterior à nomeação dos árbitros? Registrou-se linhas acima que, em países como a Alemanha, esta é justamente a ocasião na qual se mostra possível submeter o assunto à cognição exauriente de um órgão jurisdicional, por ser sinal de boa-fé.
99. No ponto, é relevante sublinhar que a ANP propôs a ação de nº 0006800-84.2014.4.02.5101, perante a 0x Xxxx Xxxxxxx da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, visando a impedir a instalação da arbitragem, antes de qualquer dos árbitros ter aceitado a sua nomeação no procedimento arbitral.
40 Lei nº 9.307/96, art. 19. Considera-se instituída a arbitragem quando aceita a nomeação pelo árbitro,
se for único, ou por todos, se forem vários.
Com efeito, a Petrobras requereu a instauração da arbitragem em 22 de abril de 2014. A ANP foi intimada desse ato em 5 de maio e, em 22 de maio de 2014, a agência ajuizou a demanda, sendo certo que a aceitação da nomeação pelo terceiro e último árbitro se deu apenas em 26 de agosto de 2014, isto é, mais de três meses depois.
100. A cronologia dos fatos revela a boa-fé da ANP ao ingressar com a ação judicial e pretender, desde o início, evitar que todo o procedimento arbi- tral se desenrole à míngua de permissão legal.
101. Sendo assim, mesmo diante da posição mais restritiva — que somente admite a manifestação do Poder Judiciário sobre a arbitrabilidade do conflito se for provocado em ocasião prévia à instalação do juízo arbitral —, no caso em exame tal julgamento se mostra possível dado que o Judiciário brasileiro foi provocado pela ANP antes da nomeação dos árbitros.
102. Toda essa problematização se presta a demonstrar a grande inexa- tidão da referência doutrinária quanto à prioridade decisória absoluta do árbitro acerca de sua própria competência. Não se pode, assim, importar acriti- camente para o ordenamento brasileiro um modelo de compétence-compétence
— aqui, propositalmente em francês — sem atentar para as particularidades da legislação nacional, sobretudo em se considerando a existência de variações significativas ao redor do mundo.
103. Visto isso, propõe-se, a seguir, uma interpretação do princípio da competência-competência compatível com a ordem jurídica pátria e com os seus próprios fins, já mencionados acima: respeitar a vontade manifestada por pessoas capazes no sentido de que o litígio seja solucionado pela arbitragem e evitar a obstrução do procedimento arbitral pela má-fé de uma das partes.
104. Como dito, não é possível extrair da legislação nacional o princípio de que os árbitros gozam sempre de prioridade cronológica quanto à análise de sua própria competência. Diante disso, a aplicação de tal norma ao direito brasileiro, ainda que pudesse se justificar, não se pode dar de forma irrestrita. Devem ser também levadas em conta disposições legais que retiram das partes a autonomia para convencionar a arbitragem e, por conseguinte, afastam dos árbitros o poder de decidir sobre determinadas matérias. Explica-se.
105. Nas hipóteses de vedação legal à submissão de certos assuntos à arbitragem, os interessados estão impedidos de pactuar a cláusula com- promissória ou o compromisso arbitral. Trata-se de limitação imposta por lei à liberdade das partes para adotarem esse método alternativo de solução de controvérsias, pois, dado o interesse subjacente a algumas questões, enten- deu o legislador que deveriam ser alijadas da esfera privada e apreciadas
exclusivamente por um poder estatal. Nesse caso, ainda que os pactuantes tenham aposto ao contrato uma cláusula convencionando a arbitragem, este acordo de vontades será nulo. Da mesma forma, se o árbitro se imiscuir nesses temas e proferir sentença, esta será inválida.
106. Nesse contexto, se uma das partes envolvidas sustenta que a matéria sobre a qual versa o litígio não pode ser submetida à arbitragem por existir um óbice legal e esta alegação se mostra plausível (ou seja, os argumentos que enquadram a questão na vedação legislativa são factíveis e aceitáveis, ainda que, após, não sejam tidos como procedentes), o Poder Judiciário não deve se eximir de analisar em primeira mão a competência do árbitro para pacificar o conflito.
107. Neste caso, não estará em jogo o (des)respeito à vontade original- mente manifestada pelas partes no sentido de se submeterem à arbitragem. Sendo plausível que a lei não admita a resolução daquele litígio pela via arbitral, é também provável que os envolvidos sequer pudessem abarcá-lo pela convenção de arbitragem.41
108. Em segundo lugar, esta é uma questão eminentemente jurídica, ligada à interpretação da norma legal, não havendo nenhuma especial razão atrelada à expertise dos árbitros para conferir-lhes o poder de decidir antes do juiz.
109. Nessa linha, confira-se o que diz Xxxxxx X. Bermann:
Entretanto, o termo arbitrabilidade deve ser empregado em um sen- tido mais estrito, limitado a uma questão específica: o legislador, ao estabelecer ou reconhecer uma determinada causa de pedir, autorizou a sua resolução por um tribunal arbitral, ou o legislador reservou a sua resolução a juízes de direito? [...] Arbitrabilidade, em sentido estrito, relaciona-se mais diretamente à cláusula arbitral do que ao contrato principal. Nessa medida, de acordo com a doutrina da separação, ela deve ser decidida por um juiz, se provocado a fazêlo antes que a arbitragem tenha começado. Mas a real razão pela qual os juízes
41 Esta situação difere daquela em que, a priori, a matéria poderia legalmente ser decidida por um poder não estatal, porém as partes optaram por restringir contratualmente a abrangência da convenção de arbitragem, retirando determinadas questões da sua esfera de apreciação. Os contratantes podem considerar, por exemplo, que assuntos sem conteúdo técnico complexo devem ser dirigidos ao Poder Judiciário, não se justificando a via arbitral. Aqui, a discussão gira em torno da manifestação de vontade original das partes, fazendo algum sentido se falar do efeito negativo do princípio da competência-competência para resguardá-la.
estão preparados para decidir primeiramente sobre a arbitrabilidade repousa em outro lugar. A questão de se uma disputa é passível de ser submetida à arbitragem, como uma questão de direito, é ordinária e puramente jurídica — nos Estados Unidos, essencialmente, uma questão de intenção real ou provável dos congressistas — para a qual um tribunal arbitral não pode reclamar uma autoridade ou expertise específica.42 [grifos nossos]
110. Em terceiro lugar, a suspeita de uma atuação com intuito meramente procrastinatório se esvai ante a plausibilidade da tese de que a lei proíbe a apreciação do conflito pelo juízo arbitral. Com efeito, o objetivo protelatório se faria presente justamente na hipótese inversa, na qual a parte, sabendo-se tratar de hipótese de vedação legal à arbitragem, a ela se submete para, somente ao final, arguir a sua nulidade.
111. A interpretação do princípio da competência-competência deve levar em conta a existência de uma tensão permanente entre, de um lado, a preservação e a efetividade da arbitragem como método de solução de controvérsias e, de outro, reclamações legítimas por decisões judiciais que pacifiquem, de imediato e em definitivo, o litígio (inafastabilidade do controle jurisdicional). Como enfatiza Xxxx X. Xxxxxxx XXX, “not all parties resisting arbitration are obstructionists”.43
112. O confronto desses argumentos com o caso concreto objeto deste parecer só confirma as premissas lançadas. Existe um conjunto de razões jurídicas e práticas que devem conduzir à conclusão de que cabe ao Poder Judiciário decidir a questão relativa à arbitrabilidade do conflito antes mesmo dos árbitros.
113. Vejam-se, primeiramente, os fundamentos jurídicos.
42 No original: “However, the term arbitrability may be used in a much narrower sense, confined to one specific question: did the legislature, in establishing or recognizing a particular cause of action, authorize its adjudication by an arbitral tribunal, or did the legislature reserve its adjudication to courts of law? […] Arbitrability, in the narrow sense, pertains more closely to the arbitration clause than to the main contract. To that extent, it falls under the separability doctrine for a court to decide, if asked to do so before arbitration has begun. But the real reason why courts are prepared to address arbitrability initially lies elsewhere. The question of whether a dispute is capable of being arbitrated, as a mater of law, is ordinarily a purely legal one —in the United States, essentially one of actual or probable congressional intent— as to which an arbitral tribunal can claim no particular authority or expertise” (XXXXXXX, Xxxxxx X. The “gateway” problem in international commercial arbitration. The Yale Journal of International Law, v. 37, p. 11 e 29, 2012).
43 BARCELÓ III, Xxxx X. Who decides the arbitrators’ jurisdiction? Separability and competence- competence in transnational perspective. Vanderbilt Journal of Transnational Law, v. 36, p. 1119, 2003 (Tradução livre: “nem todas as partes que resistem à arbitragem são obstrucionistas”).
114. Na hipótese, a ANP alega que a fixação dos limites de um campo de petróleo envolve direito indisponível, por ser ínsito à atividade regulatória da agência e ligado à sua competência de fiscalização do exercício, pelo concessionário privado, de atividade exploratória de um bem público.
115. Como se sabe, o art. 1º da Lei nº 9.307/96 subtrai explicitamente do âmbito da arbitragem as disputas que envolvam direitos indisponíveis. Está em jogo aqui, portanto, a existência ou não de um limite legal expresso à via arbitral. Sob esta circunstância, não é relevante fazer valer a vontade originalmente manifestada pelas partes, porque nem mesmo se sabe se elas poderiam firmar cláusula compromissória abrangendo este tema.
116. Além disso, há que se reconhecer, pragmaticamente, que a limitação legislativa à arbitragem seria demasiadamente frágil se fosse deixado ao alvedrio dos próprios árbitros a definição do que constitui direito indisponível, principalmente levando-se em conta a possibilidade de que os árbitros sintam- se naturalmente inclinados a maximizar a própria competência.44 45
117. Por outro lado, em se reconhecendo que há argumentos consistentes pela indisponibilidade do direito, não há que se falar em violação ao princípio do pacta sunt servanda, dado que a cláusula compromissória aposta ao contrato de concessão sequer pode abranger a questão objeto do litígio entre as partes. Com efeito, só se descumpre aquilo que efetivamente foi pactuado.
118. Assim, a exegese mais consentânea com a ordem jurídica brasileira é a de que, em havendo dúvida razoável acerca da disponibilidade do direito, a questão deve ser solucionada pelo magistrado anteriormente a qualquer decisão arbitral.
119. Ultrapassado este ponto, aponta-se, então, a principal razão de ordem prática que autoriza a apreciação judicial da arbitrabilidade previamente à comissão de arbitragem.
120. No caso, seria leviano argumentar que a ANP ajuizou ação com o intuito único de procrastinar o procedimento arbitral. Suas manifestações,
44 Rejeitando o excesso de panglossiano otimismo quanto à efetiva rule of law nas arbitragens internacionais dos contratos da indústria do petróleo, Xxxx Xxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx e Xxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxx (Coord.) apontam que “[o]s Estados queixam-se de bias de muitos tribunais arbitrais, os investidores queixam-se de abusos e de dificuldades de execução de sentenças transitadas em julgado”. XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxx de; XXXXXX, Xxx xx Xxxxxxxxxx (Coord.). Direito do petróleo. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2013. p. 430, grifos nossos.
45 A Teoria das Escolhas Públicas (Public Choice Theory) vê o indivíduo como um maximizador de suas próprias utilidades: o homo economicus, um ser racional e autointeressado, dotado de capacidades intelectuais que lhe permitem buscar as melhores soluções para os seus interesses. Nesse sentido, cf. XXXXXXXX, Xxxxx X. Politics without romance: a sketch of positive public choice theory and its normative implications. In: XXXXXXXX, Xxxxx X.; XXXXXXXXX, Xxxxxx X. The theory of public choice. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1984. v. II.
tanto no processo judicial como no arbitral, evidenciam a tentativa de evitar o desperdício de recursos e de tempo. Havendo possibilidade concreta de que a matéria tratada seja considerada um direito indisponível pelo Poder Judiciário, a insistência em se cumprir todas as etapas de um foro não estatal mostra-se contraproducente: ambas as partes incorreriam em vultosos gastos para obter uma sentença arbitral nula.
121. Uma vez que razões de ordem prática conduzem à legitimação do efeito negativo brando do princípio da competência-competência (como, e.g., evitar medidas de obstrução da arbitragem), fatores dessa mesma índole também devem ser aptos a afastar a prioridade do árbitro sobre o magistrado para decidir sobre a arbitrabilidade do conflito. Nesse passo, preocupações com o dispêndio inútil de dinheiro e tempo não podem ser ignoradas, sobretudo quando se lida com recursos públicos.
122. Este fato é destacado por Xxxxxxx X. Xxxx, ao se referir justamente ao modelo norte-americano:
Ao contrário, o direito norte-americano sobre arbitragem tradicio- nalmente conferiu às partes o direito de arguir uma questão de com- petência arbitral a qualquer tempo, antes ou depois da decisão. [...] Esta abordagem significa que uma parte que nunca concordou com a arbitragem não precisará despender tempo e dinheiro em um proce dimento que carece de uma base de autoridade. Além disso, qualquer das partes pode requerer esclarecimento acerca da abrangência do poder do árbitro antes que somas substanciais sejam gastas desne- cessariamente.46 [grifos nossos]
123. No mesmo sentido, Xxxxxxx Xxxxxxx Caramelo pondera o seguinte:
A principal vantagem do efeito negativo da competência da com- petência é a de impedir que uma parte possa, de má-fé, com a mera apresentação de uma impugnação perante um tribunal estadual,
46 XXXX, Xxxxxxx X. Arbitral jurisdiction in the United States: who decides what? International Arbitration Law Review, issue 1, p. 38-39, 2008. (Tradução livre do seguinte trecho: “By contrast, American arbitration law traditionally has given parties a right to raise a matter of arbitral authority at any time, whether before or after the award. [...] This approach means that a party who never agreed to arbitrate will not need to waste time and money in a proceeding that lacks an authoritative foundation. Moreover, either side can request clarification about the scope of the arbitrator’s power before substantial sums are spent needlessly”.)
obstruir o bom andamento de uma arbitragem baseada em convenção de arbitragem aparentemente válida. Os adversários dessa solução salientam, contudo, que ela pode criar mais dificuldades para a arbi- tragem do que aquelas que resolve. Obrigar a parte que não se consi dere vinculada pela convenção de arbitragem a esperar pela pronúncia da sentença arbitral pode implicar um enorme custo financeiro e humano. E, caso a sentença arbitral lhe seja desfavorável, obrigar essa parte a impugnála perante os tribunais estaduais, com base na inexistência ou invalidade da convenção da arbitragem, agravará ainda mais essa injustiça, tendo em conta que, mesmo que tal parte saia vencedora, não terá qualquer possibilidade de ser reembolsada pelos custos suportados com a arbitragem, que podem ser muito volumosos. Daí que quem assim opina não só advogue a consagração da competência da competência com mero efeito positivo, mas defenda também a possibilidade para a parte que conteste a existência, validade ou obrigatoriedade da convenção de arbitragem, de propor uma ação declarativa com essa finalidade, perante o tribunal estadual competente.47 [grifos nossos]
124. De igual modo, a Divisão Civil do Tribunal de Apelação da Inglaterra e do País de Gales, ao julgar o caso Barclays Bank Plc v. Nylon Capital LLP, não se furtou a fazer ponderações de ordem prática para estatuir que, diante das circunstâncias de cada conflito, o Poder Judiciário deve verificar se é conveniente e oportuno tomar para si a análise primeira da competência ou deixar ao expert fazê-lo.
125. A Corte asseverou que, havendo uma disputa real — e não meramente hipotética — entre as partes acerca da arbitrabilidade da controvérsia e não sendo definitiva a decisão do expert quanto à sua competência, importaria desperdício de tempo e de dinheiro impedir o Judiciário de apreciar essa questão em primeiro lugar.48
126. Sendo assim, na hipótese sob consulta, o Judiciário tem o poder-
-dever de decidir em primeira mão acerca da competência dos árbitros para
47 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. A competência da competência e a autonomia do Tribunal Arbitral.
Revista de Arbitragem e Mediação, a. 11, v. 40, p. 158-159, jan./mar. 2014.
48 Barclays Bank Plc v. Nylon Capital LLP [2011] EWCA Civ 826. Ressalve-se apenas que, neste caso, a cláusula contratual não determinava a via arbitral para resolução de conflitos, mas a designação de um perito, um expert. Apesar disso, o próprio voto faz referência à arbitragem, de modo que idênticas conclusões parecem lhe ser aplicáveis.
julgarem a causa, tendo em vista que (i) o efeito negativo do princípio da competência-competência não é universalmente aceito; (ii) o direito brasileiro não estabelece textualmente uma prioridade cronológica do juízo arbitral em relação a órgãos jurisdicionais; (iii) a ANP propôs medida judicial questionando a arbitrabilidade do litígio antes mesmo da nomeação dos árbitros; (iv) está em jogo uma vedação legal à arbitragem, já que há argumentos substanciais no sentido de que o litígio incorre sobre direitos indisponíveis; e (v) a recusa do Poder Judiciário em apreciar a questão significará um provável dispêndio de tempo e de vultosos recursos públicos.
III. A competência regulatória da ANP para a delimitação dos campos de petróleo
Ainda que o conteúdo da Resolução de Diretoria nº 69, de 5 de fevereiro de 2014, da ANP, constituísse matéria arbitrável — o que, como se expôs acima, acredita-se não ser compatível nem com o ordenamento jurídico brasileiro, nem com a natureza da própria questão posta —, seu exame evidencia que a decisão do colegiado foi tomada no exercício de competência regulatória privativa da agência, situando-se fora da esfera de autonomia contratual e empresarial da concessionária.
127. É sobre isso que se passa a discorrer a seguir.
III.1 A autoridade interpretativa das agências reguladoras na definięão dos limites de sua competência
128. O cerne da controvérsia, de fato, envolve discussão quanto à com- petência da agência reguladora para a delimitação dos campos exploratórios de petróleo.
129. Diz a Petrobras que, nos termos do contrato de concessão, o conceito legal de campo de petróleo não autorizaria a ANP a rechaçar a delimitação do polígono indicada pela concessionária na declaração de comercialidade da área de desenvolvimento, considerado o respectivo planejamento econômico- financeiro. Para a empresa, é a declaração de comerciabilidade que faz surgir o campo de petróleo e a agência só pode divergir dos limites propostos pelo concessionário quando o plano de desenvolvimento (PD) não atender a determinados requisitos técnicos.
130. Alega, mais, que o conceito legal de campo apenas permitiria a reunião num mesmo campo de reservatórios contínuos ou, havendo mais de um reservatório, quando estes estiverem sob o mesmo prisma vertical de profundidade indeterminada (porque a lei não usaria palavras inúteis). Assim, segundo afirma, se os reservatórios forem descontínuos e lateralmente separados, sem comunicação hidráulica, não poderiam ser tidos como um único campo, contrariamente ao que teria decidido a ANP na Resolução de Diretoria nº 69/2014.49 E, mesmo que se admitisse a reunião, num só campo, de reservatórios não sobrepostos, a escolha de unificação seria de atribuição exclusiva do concessionário, e não da ANP (segundo o parágrafo 9.2.1 do con- trato de concessão). A decisão de unificação teria sido delegada pelo contrato ao concessionário, portanto.
131. Argumenta, ainda, que o simples uso de instalações e equipamentos comuns não seria suficiente para a delimitação de vários reservatórios em um só campo, porque a própria ANP admite o compartilhamento de infraestrutura por campos distintos. Logo, o conceito de campo não poderia ser constituído a partir de sua própria instalação, o que afrontaria o aspecto operacional e econômico do compartilhamento. O desenvolvimento integrado de campos, assim, não constituiria embasamento técnico nem legal para fundamentar a reunião dos reservatórios do Parque das Baleias em um único campo.
132. E, por fim, que o fundamento para a decisão da ANP não teria sido técnico, nem jurídico, mas de ordem financeira para a obtenção de maiores receitas por meio das participações especiais.50
133. Por seu turno, a ANP fundamenta a decisão que determinou a reunião, no campo de Jubarte, das áreas produtivas do Bloco BC-60 no enten- dimento de que a definição dos limites de um campo de petróleo constitui ato administrativo que lhe é próprio, inserido nos limites da sua competência regulatória decorrente de lei.
134. Afirma, em sentido oposto ao da Petrobras, que só existe um campo de petróleo após a aprovação do respectivo plano de desenvolvimento pela agência.
135. Alega que a definição legal de campo de petróleo (art. 6º da Lei 9.478/97) não teria o mesmo cunho geológico adotado, por exemplo, para os conceitos de jazida e de reservatório. A norma em questão, portanto,
49 Xxx, rememore-se, se ordenou a reunião dos reservatórios do Parque das Baleias em um único campo
de exploração, o Campo de Jubarte, o que é o objeto de impugnação pela Petrobras.
50 V. item II.1.2, b, acima.
não impõe a necessidade de comunicação hidráulica entre os reservatórios, nem que estes estejam verticalmente sobrepostos. Por isso, mesmo que os reservatórios estejam separados, mas havendo proximidade física, similitude geológica, localização em um mesmo bloco exploratório e abranjam um conjunto de sistemas de produção (equipamentos e instalações) comuns, já seria possível a anexação dos reservatórios em um único campo. E, segundo a ANP, a própria Petrobras já teria se valido deste entendimento para formular requerimentos de anexação de reservatórios em casos precedentes quando isto conveio a seus interesses econômicos.
136. No caso, avança ainda a ANP para sustentar que, no campo de Jubarte, conforme documentos produzidos pela própria concessionária, estaria inse- rida parte de sete dos onze reservatórios e que o reservatório MCB/COQ perpassaria seis das sete áreas produtoras. Por isso, os reservatórios trans- passariam os ring fences e seria impossível amoldá-los em um desenho com- partimentado.
137. Dessa forma, havendo ganhos de escala gerados para a concessio- nária em função da alta rentabilidade do campo de Jubarte, uma vez concebido este como um projeto exploratório único e integrado, deve ser reconhecido o direito de apropriação pelo Estado brasileiro de parte destes ganhos extraor- dinários por meio das denominadas participações especiais. Trata-se da hipó- tese clássica da relação entre o conceito de campo e a incidência das referidas verbas.
138. Este breve sumário dos argumentos de fundo que opõem Petrobras e ANP no debate acerca da definição dos limites do(s) campo(s) de exploração na área do bloco de concessão BC-60 demonstra, de forma razoavelmente clara, que as partes contendem acerca (i) da interpretação do conceito legal — do art. 6º da Lei 9.478/98 — de campo de petróleo no direito brasileiro e (ii) da competência da agência reguladora para fazer a delimitação destes campos.
139. Em que pesem as especificidades da matéria afeta à indústria do petróleo, tal tipo de discussão, porém, está longe de ser inédita em matéria regulatória. Ousaria dizer até que a maior parte dos litígios nesta área apre- senta exatamente os mesmos panos de fundo: divergências entre regulador e regulado sobre a interpretação das normas que regem a atividade regulada e, em especial, sobre os limites da competência do primeiro para intervir nas atividades desenvolvidas pelo segundo.
(a) A interpretação sistemática da lei e do contrato favorece a autoridade da ANP
140. O primeiro passo para uma solução parece evidente: é investigar se a lei e, secundariamente, o contrato são capazes de fornecer respostas diretas aos questionamentos formulados.
141. Quanto ao conceito de campo de petróleo, o art. 6º, XIV, da Lei 9.478/98,
contém a seguinte definição:
XIV — Campo de Petróleo ou de Gás Natural: área produtora de pe- tróleo ou gás natural, a partir de um reservatório contínuo ou de mais de um reservatório, a profundidades variáveis, abrangendo instalações e equipamentos destinados à produção;
142. O contrato de concessão, por sua vez, em algumas cláusulas faz uso do termo campo de petróleo, mas não cuida de sua definição, mesmo porque a lei já o fizera. A disposição que se situa o mais próximo disto está no parágrafo 9.2.3, segundo a qual a “área de cada Campo a que se refere o parágrafo 9.2.2 estará circunscrita por uma única linha traçada segundo um reticulado de 9,375” (nove segundos e trezentos e setenta e cinco milésimos) de latitude por 9,375” (nove segundos e trezentos e setenta e cinco milésimos) de longitude”.
143. Já quanto à competência da ANP para fixar os limites dos campos, a Lei nº 9.478/97 outorga à agência as competências gerais de promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis (art. 8º, caput). Dispõe, ainda, ao disciplinar o contrato de concessão de exploração e produção de petróleo, que o contrato deverá conter a obrigação do concessionário de submeter à ANP o plano de desenvolvimento de campo declarado comercial, contendo o cronograma e a estimativa de investimento (art. 44, IV). Na seção que disciplina as normas para as atividades de produção já em curso quando da promulgação da lei, há dispositivo que determinou que a Petrobras submetesse à ANP seu programa de exploração, desenvolvimento e produção, com informações e dados que propiciem: I — o conhecimento das atividades de produção em cada campo, cuja demarcação poderá incluir uma área de segurança técnica.
144. O contrato de concessão cuida de dispor (parágrafo 8.2) que a fase de produção de cada campo começará na data da entrega, pelo concessionário à ANP, da declaração de comercialidade a ele aplicável, nos termos da cláusula sétima.
145. Acerca da declaração de comerciabilidade, a cláusula sétima diz que o concessionário juntará à sua notificação um relatório detalhado com os resultados da avaliação, bem como todos os dados e informações técnicas pertinentes, que justifiquem a proposta da área a ser retida para a descoberta.
146. E, mais adiante, cumprindo a disposição legal acima mencionada, o item 9.1. fixa um prazo de 180 dias, a contar da entrega da declaração de comerciabilidade, para que o concessionário apresente o plano de desenvol- vimento que, dentre outros aspectos, deverá conter a área que o concessionário propõe reservar como área de desenvolvimento, delimitada de acordo com o disposto no parágrafo. Dispõe o item 9.3., na sequência, que a ANP terá até 60 (sessenta) dias, contados do recebimento do plano de desenvolvimento, para aprová-lo ou solicitar ao Concessionário quaisquer modificações que julgar cabíveis. E, adiante, 9.4., que o concessionário poderá submeter even- tuais modificações no plano de desenvolvimento à ANP, acompanhadas de exposição de motivos.
147. O conjunto de disposições acima referido mostra-se capaz de dire- cionar favoravelmente ao posicionamento defendido pela ANP. O conces- sionário não delimita o campo de exploração, ele apresenta uma proposta de delimitação à ANP, que pode ou não com ela concordar. Seria, de fato, contraditório que o legislador e o contrato determinassem a submissão da declaração de comerciabilidade e do plano de desenvolvimento das áreas exploratórias à ANP se esta estivesse compelida a concordar com a proposta ex- ploratória submetida pelo concessionário.
148. O tratamento normativo e contratual da matéria, portanto, favorece o argumento de que a delimitação do campo é matéria que se insere na esfera da competência regulatória da ANP, hipótese que será mais bem desenvolvida no item III.2, infra.
(b) A deferência à interpretação da agência reguladora quanto aos limites de sua competência
149. Por ora, é oportuno ressaltar que, conquanto nem a legislação, nem o contrato possam ser considerados particularmente enfáticos acerca dos temas em exame (interpretação do conceito de campo e competência para sua delimitação), a orientação mais frequente aponta no sentido da adoção de uma postura de deferência em relação à decisão/interpretação dada pela agência reguladora.
Tal orientação vem contando com os amplos favores da literatura jurídica e
dos tribunais, quando em causa o tipo de controvérsia aqui examinada.
150. O modelo de agências reguladoras adotado no Brasil na segunda metade da década de noventa do século XX, como é de amplo conhecimento, foi fortemente inspirado no modelo norte-americano de agências com direção colegiada, dotadas de razoável autonomia em relação ao poder central e expertise técnica na área regulada.
151. Por isso, nada mais natural do que buscar o auxílio da antiga e vasta experiência norte-americana em lidar com controvérsias entre regulados e reguladores.
152. Em sede de judicial review — i.e., do controle judicial das decisões das agências reguladoras —, o principal precedente da Suprema Corte norte- americana a guiar todo o direito daquele país no tema é o caso Chevron (Chevron U.S.A., Inc. vs. Natural Resources Defense Council, Inc., 467 US 837 (1984)).
153. No julgamento de Chevron, em que se controverteu a respeito de ato normativo editado pela agência de proteção ambiental norte-americana (EPA), que alterava a interpretação de dispositivo legal dada por administração anterior, a Suprema Corte dos EUA fixou os seguintes parâmetros para o controle dos atos das agências reguladoras:
(i) em primeiro lugar, deve ser verificado se a matéria foi disciplinada pelo Congresso de forma clara e inequívoca. Nesta circunstância, tanto a agência, como a Corte revisora só têm a cumprir a vontade inequívoca do Congresso.
(ii) Se, porém, a lei for silente ou ambígua, deve a Corte verificar se a agência deu uma solução razoável para a questão, caso em que a decisão da agência deve prevalecer.51
154. A partir de Chevron, que incorpora uma clara postura de deferência pelo órgão revisor, a decisão de uma agência reguladora somente deve ser desconstituída quando houver desobediência à vontade inequívoca do legislador ou por irrazoabilidade manifesta.52 Se não há violação à vontade inequívoca do legislador, nem a interpretação que for dada pela agência for
51 Cf. XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx; XXXX-XXXXXXXX, Xxxxx. Judicial review of executive policymaking in advanced democracies: beyond rights review (April 3, 2014). Administrative Law Review, v. 66, 2014; Yale Law School, Public Law Research Paper No. 499; Yale Law & Economics Research Paper No. 497. Available at SSRN: <xxxx://xxxx.xxx/xxxxxxxxx0000000>.
52 Acerca do tema, cf. XXXXXX, Xxxxxxx et al. Administrative law and regulatory policy: problems, text and cases. 5. ed. New York: Aspen Publishers, 2002. p. 284 e ss.
claramente irrazoável, há que se ser deferente à interpretação da lei que for
feita pelo regulador.
155. Mais recentemente, porém, outra decisão da Suprema Corte norte-
-americana aprofundou a postura de deferência abraçada por aquela corte
quando em causa a revisão de decisões proferidas por entes reguladores.
156. Em Arlington et al. vs. FCC (133 S. Ct. 1863 (2013) ns. 11-1545 e 11-1547),
julgado em maio de 2013, a Suprema Corte, no voto condutor de Xxxxxxx Xxxxxx, decidiu que, diante de uma ambiguidade da lei acerca do alcance da autoridade de agência reguladora, deve prevalecer a interpretação da própria agência acerca dos limites da sua competência.53
157. Noutras palavras, havendo dúvidas sobre a autoridade outorgada pela lei à agência, a interpretação primária acerca desta competência deve ser dada pela própria agência (e não pelo Judiciário ou outra instância revisora externa). A agência tem primazia para a interpretação da lei ainda quando esteja em causa a fixação dos limites de sua própria competência. Eis alguns trechos do julgado, que espelham bem o entendimento firmado:
Julgado: As Cortes devem aplicar a sistemática do “Caso Chevron” para a interpretação de uma agência reguladora acerca de uma ambiguidade da lei a respeito do alcance da autoridade que lhe foi atribuída pela lei (por exemplo, sua competência). Págs. 4-17.
(a) Segundo o “Caso Chevron”, uma Corte revisora deve primeiramente perguntar se o Congresso falou direta e precisamente sobre a ques- tão em discussão; se sim, a Corte deve conferir efeito à intenção expressa e inequívoca do Congresso. 467 U.S., às fls. 842-843. No entanto, se ‘a lei é silente ou ambígua’, a Corte deve dar deferência à construção do estatuto dada pela agência, na medida em que seja permitido.
(b) [...]
53 Em Arlington, a controvérsia girou em torno de uma norma (declaratory ruling) editada pela agência reguladora de telecomunicações norte-americana (FCC) fixando, para as administrações estaduais e locais, um prazo de 90 dias para que fossem processados os requerimentos de instalação de novas antenas em torres de telecomunicação já existentes, e de 150 dias para processar todos os outros requerimentos de instalação de antenas para os serviços de telecomunicação sem fio. A agência assim fez interpretando disposição da Lei federal de comunicações norte-americana (Federal Communications Act) que atribui aos governos estadual e local competência para, em um prazo razoável, apreciar requerimentos de instalação de antenas e outras estruturas para telecomunicação sem fio. As cidades de Arlington e San Antonio, no Texas, autoras da demanda, entendiam que a norma da FCC excedia do seu poder de regulamentar e interpretar a regra federal na matéria.
(c) Esta Corte tem consistentemente garantido a deferência de Chevron para as construções das agências quanto ao alcance da sua própria jurisdição [...] e mesmo em casos nos quais preocupações acerca de autoampliação das agências estiveram no seu apogeu — i.e., quando uma construção expansiva por parte da agência sobre a extensão do seu próprio poder poderia ter promovido uma mudança fundamental no esquema regulatório, veja FDA v. Xxxxx & Willianson Tobacco Corp., 529 U.S. 120, 132, pp.10-14.
(d) [...]
(e) [...] Uma atribuição genérica de autoridade normativa valida regras para todas as matérias que a agência é encarregada de adminis trar. Isso basta para decidir esse caso, em que as precondições para a deferência administrativa, definidas em Chevron, estão satisfeitas, porque o Congresso, sem qualquer margem para ambiguidade, revestiu inequivocamente a FCC com autoridade genérica para gerir a Lei de Comunicações, através de regulamentação e adjudicação, e a interpretação da agência em questão foi proclamada no exercício desta autoridade.54
158. Acerca do caso Arlington, confiram-se as seguintes passagens colhidas dos comentários da Harvard Law Review sobre a decisão (127 Harv. L. Rev. 338):55
Na última sessão, no caso City of Arlington vs. FCC, a Corte respondeu a uma das mais proeminentes dessas questões, sustentando que o “Caso Chevron” dá suporte para o pedido, formulado por uma agência, de deferência na interpretação da sua própria jurisdição.
[...] “a questão que uma Corte enfrenta quando confrontada com a interpretação de uma agência sobre uma lei que ela mesma administra é sempre, simplesmente, se a agência permaneceu dentro dos limites de sua autoridade estatutária.” Justice Xxxxxx repousou seu argumento em dois patamares: pragmatismo e precedente.
54 Disponível em: <xxx.xxxxxxxxxxxx.xxx/xxxxxxxx/00xxx/00-0000_0x0x.xxx>.
55 Disponível em: <xxxx://xxxxxxxxxxxxxxxx.xxx/xx-xxxxxxx/xxxxxxx/xxxx/xxx000_xxxx_xx_xxxxxxxxx_ v_FCC>.
Voltando-se para os inúmeros casos que resultaram numa postura de deferência quanto a interpretações de agências reivindicando uma jurisdição expansiva (ou restritiva), Justice Xxxxxx concluiu que “os re- gistros estão lotados de aplicações de Chevron”, no sentido de as agên- cias interpretarem o alcance de suas próprias jurisdições.
[...] que “para existir deferência administrativa na aplicação da lei, na forma de Chevron, a agência precisa ter recebido autoridade do Congresso para definir o particular objeto na forma especificamente adotada.”
Justice Xxxxxx, no entanto, estava certo quando disse que não tinha ainda de ser um caso “no qual a outorga geral de regulamentação ou a autoridade judicante seja considerada insuficiente para apoiar a doutrina da deferência administrativa para um exercício desta autoridade dentro do campo substantivo da agência”.
Alguns estudiosos argumentaram que, mesmo que as questões possam ser distintas, as agências deveriam, ainda assim, receber deferência, porque tais interpretações de lei refletem em julgamentos políticos. [grifos nossos]
159. No direito brasileiro, embora ainda sem a mesma abundância de ca- sos, há julgados espelhando uma postura de deferência em relação às deci- sões das agências reguladoras nas matérias que lhes cabe disciplinar. Tome-se como exemplo o julgamento, pelo STJ, do REsp. nº 806.304, de relatoria do Ministro Xxxx Xxx (DJ 17/12/2008). Tratava-se originariamente de ação civil pública em que o Ministério Público Federal se insurgia contra ato normati- vo editado pela Anatel fixando em noventa dias o prazo de validade para a fruição, pelo usuário, dos créditos da telefonia móvel pré-paga. A sentença de improcedência foi confirmada em segunda instância, o que desafiou a inter- posição do recurso especial.
160. No caso, o Tribunal reconheceu ser “da exclusiva competência das agências reguladoras estabelecerem as estruturas tarifárias que melhor se ajustem aos serviços de telefonia oferecidos pelas empresas concessionárias”. Sendo assim, afirmou: “o Judiciário sob pena de criar embaraços que podem comprometer a qualidade dos serviços e, até mesmo, inviabilizar a sua prestação, não deve intervir para alterar as regras fixadas pelos órgãos competentes, salvo em controle de constitucionalidade”. E, mais adiante, prosseguiu: “a ausência de nulificação específica do ato da Agência afasta a intervenção do Poder Judiciário no segmento, sob pena de invasão na seara administrativa e violação da cláusula de harmonia entre os poderes”.
161. Dessa forma, retornando-se agora às questões em exame neste tópico, pode-se concluir, com forte amparo em Chevron, Arlington e na literatura jurídica específica, que, mesmo diante de abertura normativa e contratual e havendo conflito a respeito, é a autoridade interpretativa da ANP que deve prevalecer tanto acerca do conteúdo do conceito de campo de petróleo fixado na Lei 9.478/97, como da fixação dos limites deste campo.
162. O legislador e o próprio texto constitucional (art.177, §2º) conferiram expressamente à ANP o poder geral de regular a matéria (produção e exploração de petróleo). A lei estabeleceu um conceito de campo de petróleo para o qual as partes, ANP e Petrobras, pretendem interpretações diversas. Nesse contexto, considerando-se que a interpretação dada pela ANP se acha claramente dentro de uma margem de razoabilidade, a ela deve ser prestada deferência. De igual modo, mesmo que a norma não seja inteiramente explí- cita na determinação da competência para a fixação dos limites dos campos de petróleo, a ANP, em decorrência do seu poder regulatório geral, tem auto- ridade para interpretar e determinar os limites da sua própria competência e dessa forma reclamar para si tal competência. Dito de forma mais objetiva, a autoridade interpretativa nas questões pertence à ANP.
163. Ainda uma última nota antes de se avançar para o tópico seguinte.
164. Os temas da controvérsia em exame — ao contrário do que as partes referem várias vezes nas peças da arbitragem e dos processos judiciais — não demandam que se investigue se se está diante de exercício de competência discricionária ou vinculada pela agência.
165. Na verdade, ambas as partes, Petrobras (nas peças que instruem o procedimento de arbitragem) e ANP (no Parecer jurídico 67/2014/PF-ANP/ PGF/AGU, parágrafo 73) recusam mesmo expressamente que a decisão quanto à delimitação dos limites de um campo de petróleo ostente natureza discricionária.
166. O problema aqui, como acima demonstrado, diz muito mais com a interpretação da lei e do contrato e com a definição de quem, dentro de parâmetros de razoabilidade, tem efetivamente autoridade para tal interpretação.56 Como se viu, tal autoridade, no caso, deve ser reconhecida à ANP.
56 Voltaremos ao tema no item III.2., d, infra.
III.2 A natureza regulatória da decisão da ANP: a adoęão do modelo contratual não exclui a autoridade regulatória da agência
167. Um importante ponto de dissenso entre as partes, Petrobras e ANP, diz respeito às posições que ambas ostentam nas relações jurídicas entre elas estabelecidas.
168. A linha de argumentação desenvolvida pela Petrobras aponta para o vínculo contratual como determinante da relação. Trata-se de uma relação entre partes contratantes restrita aos termos do contrato. A resolução da controvérsia deve, portanto, considerar os poderes, direitos e deveres das partes, tendo como parâmetro o contrato de concessão firmado. Fora dos limites do contrato, haveria um campo de autonomia empresarial da concessionária, que poderia tomar decisões na exploração do petróleo considerando seus melhores interesses econômicos. Por isso, a Resolução de Diretoria (RD) nº 69, de 5 de fevereiro de 2014, da ANP, representaria uma violação do contrato.
169. A ANP, em direção distinta, sustenta que a decisão foi tomada no exercício do seu poder de polícia, externo ao contrato. Segundo a ANP, a disputa não envolve matéria contratual, mas de natureza regulatória.
170. Embora esta discussão já tenha sido de algum modo antecipada no item II.1.2., a, supra, quando se destacou a natureza regulatória do litígio para afastar a sua arbitrabilidade objetiva, parece adequado retornar ao ponto com o oferecimento de novos elementos capazes de reforçar o argumento de que os poderes da ANP nesse caso extrapolam os limites do contrato. E, nesse contexto, a agência tem inclusive autoridade para considerar, nas suas decisões, elementos da política regulatória que está encarregada de implementar.
(a) O exercício de poderes regulatórios externos ao contrato pela ANP
171. No quesito, existe farta literatura jurídica reconhecendo que a adoção do modelo contratual de delegação não faz desaparecer o exercício de autoridade pública em relação à atividade delegada,57 uma das características
57 Nesse sentido, cf. XXXXXXXXXXX, Xxxxx X. Los tratados bilaterales de inversión (TBIs) y el convenio Ciadi: ¿La evaporación del derecho administrativo doméstico? Cit.: “Esto significa que, aún hoy y
mais típicas do direito administrativo.58 A adoção do modelo de regulação por contrato não exclui a possibilidade de exercício pela agência de poderes regulatórios externos ao contrato. A coexistência dos dois modelos é uma realidade frequente nas estruturas regulatórias das atividades concedidas.
172. Nesse sentido, a lição do professor português Xxxxx Xxxxxxxxx:
Como a doutrina tem observado, o contrato regulatório (do tipo con- cessório) e a regulação por contrato não têm de excluir a regulação por agência, havendo até quem entenda que se trata de uma falsa dicotomia. Sem ir tão longe nestas considerações, porquanto qualquer um dos modelos de regulação pode excluir o outro, tem de se reconhecer que a regulação por contrato — enquanto estratégia regulatória e não apenas enquanto técnica regulatória — pode conviver com a regulação por agência.59
173. A persistência de poderes regulatórios externos ao contrato mostra- se particularmente relevante na modelagem das concessões de infraestrutura, aí incluídas as de produção e exploração de óleo e gás. É que a longa duração e a incompletude típicas destes contratos fazem surgir a necessidade de serem complementados por regulação estatal. Em especial, as incertezas que envolvem um contrato de exploração e produção de petróleo contribuem para justificar o exercício de um poder regulatório externo à avença. E, no direito brasileiro, a opção do legislador foi investir a ANP nestes poderes regulatórios.60
con todas sus limitaciones, la Administración goza de uma autoridad propia o delegada en términos muy amplios por las asambleas populares para contribuir a la buena gobernanza de nuestras comunidades políticas. Esta autoridad propia —o delegada en términos amplios— consiste en poder actuar sin esperar el acuerdo del afectado, aún cuando el afectado tenga (y deba tener) los derechos de participación y transparencia más radicales para intervenir antes y, durante el proceso de toma de decisión administrativa y luego desafiar la acción”.
58 A ponto de alguma literatura recusar a existência da figura do Direito Administrativo Global justamente pela carência do elemento autoridade, tido como essencial à caracterização deste ramo do direito. XXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxxx. The global administrative order through a German lens: perception and influence of legal structures of global governance in Germany. Disponível em:
<xxx.xxxxxxxxxxxxxxxx.xxx>. Sobre o tema, ainda, v. XXXXXXXX, Xxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx. Direito administrativo global: uma nova ótica para a regulação financeira e de investimentos. In: XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xx (Org.). Direito internacional dos investimentos. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 801-20.
59 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Reflexões sobre o estado regulador e o estado contratante. 1. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2013. Cf., no mesmo sentido, XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. A mutabilidade e incompletude na regulação por contrato e a função integrativa das Agências. Revista de Contratos Públicos — RCP, Belo Horizonte, a. 3, n. 5, p. 59-83, mar./ago. 2014.
60 Cf. XXXXX, Xxx. The relationship between regulation and contracts in infrastructure industries. Department of Economics Discussion Paper Series CCRP Working Paper No. 14 Department of Economics, Xxxx Xxxxxxxxxx, Xxxxxxxxxxx Xxxxxx, Xxxxxx XX0X 0XX, XX.
174. Como aponta Xxxx X. Xxxxx-Xxxxxx “[d]evido a essas limitações, a regulação discricionária pode ser a melhor solução quando as circunstâncias são complexas demais ou instáveis para minutar um contrato completo”.61
175. Discorrendo especificamente sobre as concessões e autorizações na indústria do petróleo brasileira e o poder normativo da ANP, Xxxxxxxxx Xxxxxx de Aragão reconhece expressamente essa realidade:
Ao longo da execução do contrato, também se impõe a atuação regu- latória do Poder Público, integrando e interpretando Xxxxxxxxx con- tratuais e, se for o caso, adequandoas à dinâmica da realidade socioeconômica de acordo com a política pública adotada para o setor pela Lei do Petróleo e pelo Conselho Nacional de Política Energética. [...]
Uma vez celebrada concessão, a Agência permanece com o poder de emitir normas genéricas e abstratas a respeito das atividades de exploração e produção de petróleo. Em regra estas normas deverão se desenvolver apenas no espaço de normatização/integração deixado pelos próprios contratos de concessão através de lacunas, de remissões à regulamentação da ANP ou da utilização de conceitos jurídicos indeterminados (ex.: as boas práticas da indústria do petróleo), que podem ser densificados pela Agência sempre na senda da persecução da política pública traçada para o setor pela Lei e pelo Conselho Nacional de Política Energética.62 [grifos nossos]
176. Note-se que a abertura contratual e o exercício de poderes regu- latórios pelo ente regulador no âmbito da indústria do petróleo não são peculiaridades do regime brasileiro.
177. Ao discorrer sobre o modelo britânico de delegação de exploração de petróleo, Xxxx Xxxxxx reconhece que, a despeito da aparência contratual da outorga do direito de exploração, há na essência uma natureza regulatória em
61 XXXXX-XXXXXX, Xxxx X. Regulating infrastructure: monopoly, contracts, and discretion. Cambridge: Harvard University Press, 2003. p. 36. No original: “Given these limitations, discretionary regulation may be the best solution where the circumstances are too complex or unstable to draft a complete contract”.
62 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. As concessões e autorizações petrolíferas e o poder normativo da ANP. In: XXXXXXX XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx (Coord.). Direito de concessões. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. IX, E. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 42 e 58, 2002.
que subsiste forte controle do Estado sobre a atividade. A passagem é longa, mas se aproxima em boa medida do direito brasileiro sobre o tema.
Quanto à forma da licença, as cláusulas-padrão que a ela devem ser incorporadas são muito semelhantes ao modo com que o poder de regular está configurado. Em seu conteúdo, as licenças modernas (em oposição àquelas concedidas antes de 1934) são acordos que preveem a participação substancial do Estado, bem como seu controle, no em preendimento de petróleo. Os amplos poderes do Ministro, forne- cidos nas cláusulas-modelo, e o fato de se encontrarem previstos na regulação, por insistência do Parlamento, contaminam claramente a licença com um quê de regulatório. A licença confere ao licenciado o direito de adquirir quaisquer hidrocarbonetos encontrados, mas não muito mais quando se fala em direitos. Por outro lado, as obrigações que impõe são draconianas, regulamentando questões como métodos de trabalho, poluição e treinamento.
O consenso popular entre os escritores neste tópico é o de que a licença de produção de petróleo é um contrato entre o Ministro e o licenciado que possui um ar regulatório. Sustenta-se que o elemento de regulação da licença é mais do que apenas um “sabor”. Pelo contrário, ele ressoa até o âmago da relação entre a concessionária e o governo. Embora permaneça contratual na forma, a ação do governo em termos de alterações unilaterais feitas aos termos da licença gera uma dúvida se as licenças ainda mantêm qualquer caráter contratual. A declaração de um eminente escritor de que a licença de produção é, em resumo, a “utilização pelo governo de termos e procedimentos contratuais como instrumento de regulação do comportamento do sujeito” é mais adequada.
É útil julgar e rotular a licença de produção de petróleo, mas impossível ordenadamente compartimentá-la. Sem dúvida, a licença é contratual na forma. No entanto, há outro lado da licença que é evidentemente regulatório. Em resposta à pergunta “qual é o caráter legal da licença de produção?”, sustentase que este caráter é, de fato, regulação com aparência de contrato. Seja a licença rotulada como contrato ou regulação, o Estado ainda mantém o máximo controle sobre ela e pode exercer seus poderes executivos para contornar as limitações à alteração unilateral do contrato. Basta um olhar mais aprofundado,
para além dos rótulos como “contrato” ou “regulação”, para que se possa verdadeiramente apreciar a natureza da licença. [...] O objetivo do governo é garantir a possibilidade de efetivar o desenvolvimento da indústria petrolífera de forma satisfatória, enquanto também promove o interesse nacional. A licença não é o objetivo em si mesmo, mas um meio de alcançá-lo. Isto é o que está a ser buscado, e não o veículo através da qual é alcançado.63 [grifos nossos]
(b) A imperfeição do modelo contratual de concessões e seus problemas
178. Além da necessidade de forte controle estatal em função do caráter estratégico da indústria do petróleo, não se pode perder de vista que a inter- venção regulatória externa ao contrato também decorre da imperfeição do modelo contratual de concessões para servir de veículo à realização dos interesses públicos subjacentes na atividade.
63 ANENIH, Omon. The UK Petroleum Production Licence — is it a contract or regulation and does it matter? In: The Centre for Energy, Petroleum and Mineral Law and Policy Gateway homepage: CAR (CEPMLP Annual Review): CAR Volume 6. Disponível na internet em: <xxx.xxxxxx.xx.xx/xxxxxx/ gateway/files.php?file=car6_Omon_527107032.pdf>. No original: “As to the form of the licence, the standard clauses, which are to be incorporated into the licence, are strikingly similar to the way statutory powers are framed. In substance, modern licences (as opposed to those granted pre-1934) are agreements, which provide for substantial state participation in, and control over, the petroleum venture. The extensive powers of the minister provided in the model clauses, and the fact that they are laid down by regulations at the insistence of Parliament clearly taints the licence with a regulatory flavour. The licence confers on the licensee, the right to take any hydrocarbons found, and not much else in the nature of rights. The obligations it imposes on the other hand are draconian, regulating such matters as working methods, pollution and training.
The popular consensus of writers on this topic is that the petroleum production licence is a contract between the minister and the licensee that has to it a regulatory flavour. It is submitted that the regulatory element of the licence is more than merely a ‘flavour’. On the contrary, it resonates to the very core of the relationship between the licensee and the government. Although it remains contractual in form, government action in terms of the unilateral alterations made to licence terms makes one doubt whether licences retained any contractual character at all. The statement of one eminent writer that the production licence is in summary, the ‘use by the government of contractual terms and procedures as an instrument of regulation of the behavior of the subject’ is more agreeable.
It is useful to try and label the petroleum production licence, but impossible to neatly compartmentalize it. Without doubt, the licence is contractual in form. Nonetheless, there is another side to the licence that is evidently regulatory. In answer to the question “What is the legal character of the production licence?” it is submitted that it is in fact a regulation masquerading as a contract. Whether the licence is tagged as a contract or regulation, the state still maintains maximum control and can exercise its executive powers to get around the limitations to unilateral amendments of the agreement. It is only by looking deeper beyond the labels such as ‘contract’ or ‘regulation’ that one may truly appreciate the nature of the licence. […] The aim of the government is to ensure the possibility of carrying out petroleum development in a satisfactory manner while at the same time promoting national interest. The licence is not the aim itself, but a means of achieving it. This is what is to be focused on, and not the vehicle by which it is attained”.
179. Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx formulou crítica contundente à incapacidade dos contratos de concessão para “transformar agentes privados em persecutores do interesse público”.64 Segundo o autor, as concessões não conseguem ordenar o bom cumprimento dos fins públicos porque a natureza contratual da relação traz ínsita a necessidade de arbitramento de interesses de ordinário conflitantes.65 A controvérsia de que ora se está a cuidar serve de boa prova do acerto do argumento.
180. Pela eloquência, vale a transcrição de um trecho da obra do autor:
No sistema de Direito Administrativo atual, duas são as formas de re- gulação — a concessão do serviço público e o exercício do poder de polícia.
[O] regime de concessão de serviço público parte de uma imperfei- ção de fundo quase insolúvel. Assenta suas bases na crença de que é possível transformar agentes privados em persecutores do interesse público. Sendo inviável o Estado realizar todas as atividades econômicas, ele passa a delegá-las aos particulares, acreditando que pode controlá-
-los através de um regime de Direito Público. Base fundamental para que esse regime funcione é a possibilidade de previsão dos fins da atividade econômica pelo Estado. É necessário, portanto, teorizar o conhecimento econômico, prevendo, com precisão, o fim das atividades dos particulares.
As razões para o fracasso desse sistema são óbvias. Xxxxx exemplificar com um problema de forma e um de fundo. Quanto à forma, é saliente a incapacidade do sistema contratual, nuclear para as concessões, de bem ordenar o cumprimento de fins públicos. Mesmo dirigidos, tais contratos terão sempre como fim o arbitramento de interesses conflitantes entre as partes, ao menos se entendidos como sinalagmáticos ou de escambo. Têm por base princípios típicos desse tipo de relação, como o equi líbrio econômico contratual, que, recorrentemente, é usado em tema de concessões para justificar o descumprimento de fins públicos.
64 XXXXXXX XXXXX, Xxxxxxx. Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 57.
65 Embora Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx se refira às concessões de serviço público, o argumento é extensível às concessões de exploração e produção de petróleo, cujo regime muito se assemelha às primeiras, a despeito da ausência de caráter prestacional. Referindo à aproximação dos regimes de monopólio do petróleo e de prestação de serviço público pela via da concessão, cf. MENDONÇA Xxxx Xxxxxxx xxx Xxxxxx. Direito constitucional econômico. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 294.
Esse problema formal é, na verdade, manifestação de um problema de fundo mais grave. Trata-se do difícil ou desajustado encaixe do sistema de concessões em uma filosofia regulatória. Imaginado como remédio para as relações do Estado com o particular, da impossibilidade constitucional de tornar vinculante o planejamento para o setor privado, o sistema contratual fracassa, exatamente porque pouco apto a captar a pluralidade de interesses envolvidos pelo ambiente regulado”66 [grifos nossos]
181. O esquema contratual de concessões como instrumentos de governo, de fato, se aparta das relações contratuais ordinárias porque os interesses que as partes pretendem realizar têm naturezas muito distintas. Não se trata apenas de satisfazer os interesses econômicos contrapostos das partes, mas de via- bilizar a promoção do bem comum, dos vários interesses que a Administra- ção está encarregada de satisfazer. Além disso, o poder que a Administração Pública tem de determinar previamente o conteúdo do ajuste retira do con- trato o caráter de instrumento de convergência das partes. O contrato deixa de representar uma relação construída por ambas as partes com o intento de acomodar seus interesses recíprocos. A aplicação de paradigmas tradicionais da modelagem contratual, nestes casos, fica seriamente comprometida. A au- sência de vínculo de confiança inicial entre as partes enseja o estabelecimento de um tom adversarial que contamina a relação.
182. Na direção do texto, o aclamado trabalho de Xxxx Xxxxxxx, expres- sando rara percepção das dificuldades típicas dos contratos públicos, em especial dos contratos tidos como regulatórios:67
A presença do regime regulatório muda, entretanto, o significado desses contratos. A atomização que é característica das relações ordi- nárias contratuais é substituída por uma perspectiva coletiva nas con- dições das relações entre o fornecedor e o consumidor. Como resultado, o sistema legal, em sua observação sobre essas relações contratuais, começa a ficar inseguro se os contratos de direito privado fornecem o mecanismo adequado de regulação.
[...]
66 XXXXXXX XXXXX, Xxxxxxx. Regulação e Desenvolvimento, op. cit., p. 57-58.
67 XXXXXXX, Xxxx. Regulating contracts. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 304-20.
O problema apresentado aqui pode ser descrito como uma especial variante de concorrência de normas de costume contratual. Em vez de preservar o requisito da confiança na relação negocial a longo prazo, a orientação normativa primária do governo continua a ser sua res- ponsabilidade política de garantir a prestação de serviços satisfatórios para o público. O domínio dessa orientação normativa sistematicamente mina a tentativa de limitar a orientação normativa para o acordo (bom financeiramente) e para o contrato (os esforços empreendidos nos documentos contratuais). Em outras palavras, o quadro contratual de referência pensa em formas de prestação de serviço público que criem deveres e obrigações fixas, ao passo que em um último recurso o governo tem que sempre dar prioridade para o quadro normativo de conformidade com suas responsabilidades políticas e compromissos. O uso de contratos como um instrumento do governo tenta reverter essas prioridades para o bem da eficiência e da transparência, mas ao fazêlo a prática cria consideráveis tensões que se revelam nos impedimentos estruturais para aquisição de cooperação e qualidade nos contratos.68 [grifos nossos]
183. O mesmo tipo de crítica pode ser percebido no texto de Xxxxxxxx Xxxxxx, ao reconhecer que há dificuldades — limites e reservas — na adoção da modelagem contratual nos domínios da regulação, naquilo que, resultando já da lei, seria mais eficientemente adjudicado através das formas unilaterais e soberanas da hetero disciplina”.69
68 XXXXXXX, Xxxx. Regulating contracts, op. cit., p. 307 e 319: “The presence of the regulatory regime changes, however, the meaning of these contracts. The atomization which is characteristic of ordinary contractual relations is replaced by a collective perspective on the terms of the relations between provider and costumer. As a result, the legal system in its observation of these contractual relations becomes unsure whether the private law of contract provides the appropriate regulatory scheme.
[…]
The underlying problem here may be described as a special variant on the competing norms of rational contrac- tual behavior. Instead of the preservation of the requisite trust in the long-term business relation, the primary normative orientation of government remains its political responsibility to ensure the provision of satisfactory services to the public. The dominance of this normative orientation systematically undermines the attempt to restrict the normative orientation to the deal (value for money) and the contract (the precise undertakings of the contractual documents). In other words, the contractual frame of reference thinks about the provision of a public service in ways which create fixed entitlements and obligations, whereas in the last resort the govern- ment must always give priority to the normative framework of conformity to its political responsibilities and commitments. The use of contracts as an instrument of government tries to reverse these priorities for the sake of efficiency and transparency, but in so doing the practice creates considerable tensions which become revealed in the structural impediments to the achievement of co-operation and quality through contracts”.
69 XXXXXX, Xxxxxxxx. Teoria económica do contrato. Coimbra: Almedina, 2007. p. 445. Confira-se a parte
maior do trecho: “Começamos o capítulo referindo que, das diversas formas que pode assumir a regulação,
(c) A necessidade de leitura pragmática dos poderes das partes no contrato de concessão de exploração e produção de petróleo
184. As críticas expostas provenientes da literatura jurídica específica advogam, na verdade, em favor de uma leitura pragmática da relação contra- tual entre a agência reguladora e o concessionário de exploração e produção de petróleo.70
185. Mostra-se útil ao presente exame, de fato, enxergar para além do argumento jurídico habitual e assumir uma postura de maior pragmatismo para compreender a realidade do ajuste em exame.71 Ouso dizer que a inter- pretação dos poderes alocados às partes no contrato não será correta se prescindir desta perspectiva.
186. Com esse propósito em mente, é de se indagar: qual efetivamente a chance de haver convergência entre a ANP e a concessionária acerca dos limites dos campos de exploração de petróleo, quando o resultado a ser alcançado, conforme se alarguem ou reduzam tais limites, serão justamente menores/maiores encargos financeiros para o último e maiores/menores ingressos para o Estado-concedente?
187. Nessa realidade, os interesses das partes se mostrarão sempre incon- ciliáveis. O objetivo empresarial permanente do concessionário será au- mentar as receitas da atividade exploratória. Buscará, portanto, a prevalência
muitas delas envolvem a contratação, o que significa geralmente uma mescla de instrumentos de direito público e de direito privado que procuram agilizar a função reguladora do Estado [...] Mas essa explosiva expansão do contratualismo nos domínios da regulação tem limites e suscita algumas reservas, em especial quando aparentemente se trata de submeter a um arranjo contratual aquilo que, resultando já da lei, seria mais eficientemente adjudicado através das formas unilaterais e soberanas da hetero disciplina”.
70 Essa é, por sinal, conforme leciona Xxxx Xxxxxxx xxx Xxxxxx Xxxxxxxx, a postura que se deve assumir de forma geral, como método de investigação e interpretação, no direito administrativo contemporâneo, “uma imbricação radical de abordagens disciplinares, acoplado a um propósito pragmático- construtivo”. A verdadeira mudança de paradigmas do direito administrativo brasileiro: do estilo tradicional ao novo estilo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 265, p. 179-198, jan./abr. 2014.
71 É o que se colhe da alentada obra de Xxxxxxxx Xxxxxx, já citada, em que o autor desenvolve uma extensa teoria do contrato a partir de premissas extraídas da análise econômica do direito e do pragmatismo, criticando os dogmatismos tradicionais e a rigidez teórica da doutrina. Teoria econômica do contrato, op. cit., p. 36-37: “A rematarmos esta introdução, sublinhemos aquele que é porventura o mais valioso contributo prestado pelo pendor pragmático da análise econômica à Teoria do Contrato: a advertência de que não pode nem deve sacralizar-se o contrato, que não é propriamente uma ‘forma platônica’ a que tudo deva acomodar-se, devendo reconhecer-se antes que, sendo um mero instrumento facilitador de interesses, está, e deve continuar a estar, sujeito a retificações na sua forma e nos resultados a que conduz, em nome da justiça e da eficiência (não necessariamente nesta ordem) [...] Muitos dos problemas que surgem associados à prática dos contratos e à respectiva disciplina jurídica, das suas assinaláveis ‘Tendências de Procrusto’”.
de interpretações que favoreçam a esse desiderato. O ente regulador, ao contrário, atuará em sentido oposto, e, quando possível, adotará orientação capaz de potencializar os ingressos e benefícios que a atividade puder trazer para o Estado (razão última para a delegação da atividade).
188. Logo, nesses casos, quando as posições das partes não puderem convergir, é necessário atribuir poder decisório a uma delas, cuja interpretação, dentro dos quadros normativos existentes, prevalecerá. Do contrário, os litígios sucessivos e ininterruptos, enquanto durarem os contratos, serão a tônica da relação contratual. Os custos de transação, nesta situação, se mostrarão intoleráveis. Simplesmente, ninguém pode imaginar que a situação de conflito permanente entre interesses inconciliáveis seja o objetivo perseguido com a adoção do modelo contratual de concessão para as atividades de exploração e produção de petróleo.
189. A possibilidade de uma interpretação economicamente racional e pragmaticamente adequada dos contratos na indústria do petróleo é admitida por Xxxx Xxxxxxx xxx Xxxxxx Xxxxxxxx. Diante da extensão dos significados possíveis permitidos pelo texto normativo, a aplicação do princípio do prag- matismo e do raciocínio consequencialista deve, segundo o autor, priorizar as consequências mais eficientes da opção regulatória, não apenas econômicas, mas sociais, políticas e estratégicas.72
190. No caso, portanto, a compreensão adequada da realidade do con- trato, a par de todas as razões já expostas, sinaliza igualmente no sentido de que, no direito brasileiro, é privativa da ANP a competência para interpretar o conceito legal de campo de petróleo e de definir, em concreto, os seus limites.
191. A agência é o ente expressamente encarregado por lei de promover a regulação do setor e os interesses sociais e estratégicos existentes em relação às atividades de produção e exploração de petróleo.
192. Se tal poder, como reclama a Petrobras, fosse atribuído ao conces- sionário — no momento em que desenvolve e apresenta o plano de desen- volvimento do campo —, seria imenso o risco de desabrigo, sem tutela adequada, dos objetivos sociais, políticos e estratégicos definidos pelo legis- lador (por exemplo, os próprios objetivos perseguidos quando da previsão das participações especiais). Seria escassa, para não dizer quase nula, a
72 MENDONÇA, Xxxx Xxxxxxx xxx Xxxxxx. O pragmatismo jurídico e a revisão dos prazos dos contratos de concessão petrolífera: limites e possibilidades do argumento pragmático. Revista Brasileira de Direito do Petróleo, Gás e Energia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Direito, v. 3, p. 130 e ss., set. 2006.
probabilidade de que as decisões empresariais do concessionário cuidassem de promover tais desideratos públicos.
(d) A legitimidade da promoção de interesses públicos diversos pela ANP
193. O exposto no item anterior nos leva, por fim, à necessidade de se examinar se é lícito e legítimo que a ANP, na interpretação do conceito legal de campo de petróleo e, em seguida, na fixação do traçado destes campos (após a apresentação do PD pelo concessionário), se valha também de elementos políticos, sociais e estratégicos, como antes referiu, para guiar a sua decisão.
194. Uma vez que o conceito legal de campo de petróleo apresenta con- tornos com algum grau de imprecisão e que o contrato não oferece maior detalhamento a esse respeito, surge a necessidade de se fixar uma interpretação correta para a norma.
195. Já se disse que interpretação não é sinônimo de discricionariedade. A interpretação importa num espaço decisório mais restrito, limitado às pos- sibilidades semânticas do texto, ao passo que a discricionariedade representa uma escolha entre alternativas diversas, todas conformes ao direito.73
196. Embora distintas, a interpretação e a discricionariedade se aproxi- mam quando a norma comportar mais de uma interpretação, igualmente razoável e amparada pelos limites semânticos do texto.74 Nesses casos, e sem extrapolar do sentido semântico das palavras empregadas pelo legislador ou no contrato, o intérprete está autorizado a escolher a intepretação que conduzir à maior realização possível dos interesses que lhe compete promover.
197. No caso, recorde-se, há um dissenso entre a Petrobras e a ANP acerca da interpretação do conceito de campo de petróleo dado pela Lei 9.478/97. A Petrobras interpreta a expressão profundidades variáveis como indicativa de que os reservatórios distintos devem se situar no mesmo prisma vertical, ao passo que, para a ANP, tal locução admite também a reunião de reservatórios distintos em perspectiva horizontal, desde que haja proximidade física, simi- litude geológica, localização em um mesmo bloco exploratório e abranjam um
73 XXXXXXXXX, Xxxxxxx. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 230.
74 Sobre os desafios da interpretação jurídica diante das dificuldades da linguagem, v. a obra clássica de XXXXXX, Genaro. Notas sobre derecho e lenguaje. 4. ed. corr. e aum., reimp. Buenos Aires: Xxxxxxx- Xxxxxx, 0000.
conjunto de sistemas de produção (equipamentos e instalações) comuns. Tudo a indicar uma sinergia produtiva para o concessionário, que é justamente a hipótese que, segundo o legislador, dá ensejo ao pagamento das participações especiais, aumentando a apropriação pública dos resultados da exploração.75
198. E é justamente neste ponto que surge a questão: a ANP, no exercício do que acima se disse ser a sua autoridade interpretativa, pode, legitimamente, preferir a interpretação da lei que favoreça o equilíbrio federativo e a natureza estratégica da atividade que é encarregada de regular?
199. A resposta deve ser afirmativa.
200. Já se demonstrou que a atividade regulatória da ANP não se exaure nos limites do contrato. Mesmo com a adoção do modelo contratual de concessão, a agência mantém poderes externos ao contrato para implementar a política do setor e zelar pelo cumprimento dos fins e comandos postos pelo legislador. Mas ainda que assim não se entendesse e situando-se igualmente dentro do contrato, na interpretação de seus contornos, a ANP pode interpretar as disposições contratuais em consonância com aqueles fins.
201. Por isso, considerado o quadro apresentado, sob qualquer ângulo de que se olhe, parece lícito e perfeitamente legítimo à agência optar por inter- pretação que privilegie a realização máxima destes fins.
202. A possibilidade da instrumentalização da produção de petróleo para a realização de finalidades públicas diversas é bem percebida na excelente obra sobre direito do petróleo coordenada pelos professores portugueses Xxxx Xxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx e Xxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxx:
Em poucas indústrias se apresenta tão visível a instrumentalização da produção para a concretização de objetivos geopolíticos, pretensões sociais e de desenvolvimento econômico. Todos esses fatores incen- tivam uma forte intervenção estatal que, em grande medida, se impõe necessariamente aos investidores privados.76 [grifos nossos]
75 Note-se que, ao contrário do que pretende a Petrobras, não parecer haver nenhuma evidência na regra do art. 6º, XIV, da Lei 9.478/97, de que o legislador tenha adotado um conceito geológico de campo de petróleo. A regra, aparentemente, caminha quando menos no sentido de uma conjugação de critérios, ao prever o requisito de instalações e equipamentos comuns. Dá-se a entender que o objetivo é de fato acolher a noção de sinergia produtiva que permita uma apropriação pública maior dos resultados decorrentes de produtividade extraordinária. De qualquer forma, conforme se expôs no texto, acreditamos que essa questão integra a esfera de autoridade interpretativa da agência no tema, observado o limite da razoabilidade.
76 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxx de; XXXXXX, Xxx xx Xxxxxxxxxx (Coord.). Direito do petróleo. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2013. p. 429.
203. Em linha de convergência com o raciocínio exposto até aqui, mostra- se possível ainda rechaçar o argumento de que a decisão contida da Resolução de Diretoria nº 69/2014, da ANP, veicularia interesses meramente arrecadatórios e, portanto, secundários, menores quando em cotejo com os autênticos inte- resses públicos primários da regulação do setor: o fortalecimento da indústria do petróleo e segurança dos seus investidores.
204. Ora, conforme já mencionado anteriormente de passagem no item II.1.1., b (v. nota 23), a distinção entre interesses públicos primários e secundários, que enxerga nos primeiros os autênticos interesses coletivos, enquanto os segundos seriam interesses particulares do Estado-administração, insuscetíveis de proteção, não encontra eco na literatura jurídica contemporânea.
205. A despeito da popularidade desta distinção ainda hoje no Brasil, é fato que a literatura jurídica italiana na atualidade confere sentido diverso — e mais moderno, vale dizer — àquela classificação.
206. Segundo Xxxxxxxx Xxxxxxx, professor de direito administrativo da Universidade de Milão, o interesse público primário é aquele para cuja satis- fação a norma atribui poder à Administração, ao passo que interesses públicos secundários são todos os demais interesses públicos que, embora relevantes na hipótese concreta, não fundamentam diretamente a atribuição de poder pela norma. Segundo o autor, o sentido de interesse púbico primário é sempre relativo. Não há uma escala objetiva de valores a partir da qual se possa indicar esse ou aquele interesse público como detentor de um prestígio que lhe seja intrínseco. E, dessa forma, a decisão pública deve se valer do processo de ponderação entre todos os interesses, primários e secundários, para chegar ao resultado adequado. Como destaca autor italiano:
Se todo o interesse público viesse isolado dos outros, se para cada situação estivesse em jogo apenas um interesse público, a escolha dis- cricionária seria exaurida na aplicação do princípio da maximização daquele interesse. [...] Mas, a realidade resulta bem diversa: em cada circunstância concreta é normal que estejam presentes e tenham relevo outros interesses públicos, qualificáveis como secundários (primário, de fato, é apenas o interesse típico que é preordenado nos poderes atribuídos).
E assim a discricionariedade se traduz em uma escolha guiada pela ponderação do interesse público primário com os outros interesses relevantes na hipótese, isto é, segundo uma célebre formulação,
na ponderação dos muitos interesses secundários em relação a um interesse primário.77 [grifos nossos]
207. Sendo assim, qualquer argumento no sentido de que, em cada ação pública, existiria um interesse primário, superior, que deve ser neces- sariamente realizado em detrimento de outros interesses, qualificáveis como secundários, carece de amparo no estágio de desenvolvimento atual do direito administrativo.
208. No processo decisório público — mesmo que se trate de inter- pretação e não de discricionariedade —, no espaço de conformação deixado pelo legislador, a Administração não apenas pode, como deve, considerar os múltiplos interesses públicos que está encarregada de satisfazer. O processo de ponderação, de identificação, seleção e escolha dos interesses públicos, deve sopesar não apenas os interesses primários, como também os secundários, para ter como resultado a melhor decisão pública.78
209. Portanto, voltando à situação concreta examinada, não é correto afirmar que, na decisão que determinou a unificação de áreas exploratórias
77 XXXXXXX, Xxxxxxx. L´atto amministrativo. In: Diritto amministrativo. ob. col., 2. ed. Bolonha: Il Mulino, 1998. p. 1398-1400. Confira-se um excerto maior da obra do autor: “Ogni potere di cui l’Amministrazione medesima dispone è infatti atribuito per il raggiungimento di um interesse pubblico specifico: in altre parole, non esiste um solo unitario potere volto alla cura dell’interesse pubblico genericamente inteso, sibene existe uma molteplicità di poteri. ciascuno preordinato al soddisfacimento di uno specifico pubblico interesse, e solo di quello, che ne rappresenta dunque il fine esclusivo (il mantenimento dell’ordine pubblico, la difesa dell’ambiente, la conservazione di beni storico-artistici, la difesa delle condizioni igienico- sanitarie dela collettività, ecc.).
Ebbene, tale fine, di cui l’Amministrazione agente risulta attributaria, rappresenta l’interesse pubblico primario che ne orienta la scelta, nel senso che la discrezionalità deve essere esercitata avendo come punto di riferimento l’interesse pubblico specifico per il cui soddisfacimento l’ordinamento conferisce quel particolare potere.
Si badi bene: interesse pubblico primario in senso relativo (cioè com riferimento allo specifico potere), non in senso absoluto alla stregua di una obiettiva scala di valori; non si deve dunque guardare al maggiore o minore pregio intrinseco dell’intersse, sibbene al suo collegamento con il potere.
[...]
Se ciascun interesse pubblico vivesse isolato da tutti gli altri, se per ogni vicenda venisse in gioco um solo interesse pubblico, la scelta discrezionale si esaurirebbe alla stregua del principio dela massimizzazione di quell’interesse, l’Amministrazione dunque, tra le opzioni che si presentano, tutte astrattamente conformi al modelo normativo, dovrebbe in quel caso dare la preferenza a quella che soddisfa nella misura maggiore l’interesse pubblico specifico di cui è attributaria quando esercita una data potestà.
Ma la realtà risulta bem diversa: in ogni vicenda concreta è normale che si presentino ed abbiano rilievo altri interessi pubblici, qualificabili secondari (primário è infatti solo l’interesse tipico cui è preordinato il potere in attribuzione).
Ecco allora che la discrezionalità si traduce in uma scelta guidata dalla ponderazione dell’interesse primario com xxx xxxxx xxxxxxxxx xxxxxxxxx xxxxx xxxxxxx, xxxxxx, secondo uma celebre formulazione ), nella ‘ponderazione di più interessi secondari in ordine ad un interesse primário’”.
78 Sobre a aplicação da técnica da ponderação de interesses como método de decisão administrativa,
v. XXXXXXXX, Xxxxxxxx. Transformações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 204 e ss.
do bloco BC-60 no campo único de Xxxxxxx, a ANP estaria impedida de sopesar outros interesses relevantes, como o equilíbrio federativo e a política pública do setor. Nem mesmo, como visto, estaria impedida de adotar, dentre interpretações igualmente possíveis, uma decisão que favorecesse o aumento da arrecadação das participações especiais, considerado este também como um interesse público a ser sopesado, em igualdade de condições, com os demais.
210. Assim, a distinção entre interesses públicos primários e secundários não serve, no caso, para desqualificar a decisão da ANP como veiculadora de interesses que seriam supostamente ilegítimos, porque secundários, no âmbito do contrato de concessão. Qualquer conclusão neste sentido não encontra guarida na compreensão mais moderna do direito administrativo acerca da matéria.
III.3. Restrięões à liberdade empresarial no exercício de atividades econômicas submetidas ao regime de monopólio estatal
211. Dentre os argumentos deduzidos pela Petrobras contra a decisão da ANP que determinou a unificação dos reservatórios do Parque das Baleias no campo de Jubarte, está a alegação de que, na concessão, existiria uma esfera de autonomia empresarial própria ao concessionário. Na falta de vedação legal ou contratual, ante o caráter econômico da atividade, haveria livre-iniciativa do concessionário para fixar os perímetros dos campos exploratórios conforme as suas conveniências empresariais.
212. Ao longo deste opinamento, já foram feitas asserções capazes de infirmar a validade deste argumento: (i) havendo divergência de interpretação quanto a sentido de conceito legal, deve prevalecer a autoridade interpretativa da agência; (ii) a interpretação sistemática de dispositivos legais e cláusulas contratuais aponta em favor da competência regulatória da ANP para determinar os perímetros dos campos de exploração; e (iii) a interpretação pragmática do contrato de concessão de exploração e produção do petróleo deve conduzir a igual reconhecimento de poder à agência, sob o risco de ficarem sem tutela interesses públicos veiculados na lei do petróleo.
213. Não obstante, não parece despiciendo avançar aqui ainda sobre o interessante debate em torno dos limites da autonomia empresarial no exercício de atividades econômicas sujeitas a regime de monopólio estatal.
214. Nas palavras de Xxxx Xxxxxxx Xxxx, os chamados monopólios públicos constituem modalidade de intervenção por absorção do Estado na economia. Nesse caso, o Estado “assume integralmente o controle dos meios de produção e/ou troca em determinado setor da atividade econômica em sentido estrito”.79
215. O mesmo autor, no voto condutor proferido, como Ministro da Corte Suprema, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.273- DF, assim qualificou os ditos monopólios legais:
Já no segundo caso [instituição de monopólio mediante Lei, monopólio legal], tem-se situação diversa: aí o Estado exerce uma opção política, em razão da qual o sistema jurídico atribui a determinado agente a faculdade do exercício, com exclusividade, de uma certa atividade econômica em sentido estrito. Estabelece-se artificialmente [ = pela Lei] um ambiente impermeável à livreiniciativa; a ausência de concorrência é total. Qualquer outro agente econômico que se disponha a explorar a atividade monopolizada estará impedido de fazê-lo — a lei não admite esta exploração.80 [grifos nossos]
216. Tratando da legitimação da decisão política do Estado que submete determinadas atividades econômicas ao regime de monopólio público legal, Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx aponta os valores políticos da autonomia pública e da soberania popular como seus fundamentos imediatos.
Em exercício da autonomia pública e da soberania popular, enten- deram [os cidadãos brasileiros, em deliberação democrática] que o estabelecimento de monopólios públicos sobre atividades estratégicas constitui um projeto político a ser implementado.81
217. Mesmo no âmbito do direito europeu — que persegue a maximi- zação dos ideais do livre mercado e da livre concorrência —, os monopólios estatais são tolerados como legítimos instrumentos de autoridade pública. A jurisprudência do Tribunal de Justiça europeu sequer aplica o teste de
79 GRAU, Xxxx Xxxxxxx. A ordem econômica na Constituição de 1988. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 148.
80 Voto-vista proferido no julgamento da ADI 3.273-9 em 16/03/2005. Disponível em: <xxx.xxx.xxx.xx>.
81 XXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx. A legitimação jurídico-moral da regulação estatal à luz de uma premissa liberal-republicada: autonomia privada, igualdade e autonomia pública. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 273.
proporcionalidade para aferir a legitimidade e a natureza do interesse público que os Estados pretendem promover por meio do monopólio. Adota-se apenas um argumento estrito de não discriminação, sem aprofundar no exame: se há interesse público declarado pelo Estado para a subtração da atividade do livre mercado, não há violação ao Tratado de Lisboa. A postura do direito europeu é, portanto, conciliadora com a existência destes monopólios e traça, na matéria, uma linha clara entre as esferas pública e privada quanto à aplicação das regras do livre mercado.82
218. Este brevíssimo apanhado da definição e dos fundamentos dos mo- nopólios legais presta-se aqui para a fixação de uma premissa: os monopólios estatais constituem um domínio em que se favorece o exercício da autonomia política e da autoridade pública em detrimento da autonomia privada.
219. A livre-iniciativa e a liberdade de empresa são expressões da auto- nomia privada em regra afastadas quando se trata do exercício de atividades econômicas sujeitas a regime de monopólio legal.83
220. Claro que a premissa posta merece temperamento quando o próprio Estado, a despeito do estabelecimento do monopólio, decide que a atividade pode ser explorada por agentes econômicos privados.
221. O exercício da atividade monopolizada pelo particular, assim, deve ser compatível com a perseguição e o alcance daquele que é o próprio móvel da sua atuação: a obtenção do resultado econômico.
222. Entretanto, a amplitude dos poderes conferidos ao agente econômico para persecução da sua agenda privada na execução da atividade econômica monopolizada vai depender diretamente do título jurídico habilitante.
223. Ora, como já destacado acima (item III.2, b), embora, na maioria das vezes, a transferência de execução ao agente privado se opere por um modelo contratual — com frequência, o de concessão —, haverá nesta transferência um forte elemento de adjudicação. Tanto que a literatura especializada não hesita em qualificar tais contratos como contratos sui generis ou contratos de Estado,84 em que subsiste razoável exposição dos investidores privados ao poder (legislativo e administrativo) estatal.
82 XXXXXX, Xxxx; XXXXXXX, Harm. State and market in European Union Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 132-3.
83 MENDONÇA, Xxxx Xxxxxxx xxx Xxxxxx. Direito constitucional econômico. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 293.
84 Neste sentido, expressamente, XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxx xx; XXXXXX, Xxx xx Xxxxxxxxxx (Xxxxx.). Direito do petróleo, op. cit., p. 148-149; XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Direito administrativo das concessões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 84-85.
224. Com isso não se quer dizer, em absoluto, que o concessionário não tem margem para decisões empresariais na execução do objeto do contrato. Apenas que, nos contratos de exploração e produção de petróleo, esta margem de atuação empresarial é restrita a domínios que não digam respeito à implementação de comandos e fins postos pelo legislador, nem à realização da política regulatória para o setor.
225. A livre-iniciativa, como dimensão da autonomia privada que é, tem um espaço muito restrito na relação entre a ANP e os concessionários de produção e exploração de petróleo. A leitura dos extensos comandos legais, contratuais e regulatórios, indica neste sentido. Aqui, é a autoridade pública que ocupa um espaço maior.
226. No caso, a apresentação, pelo concessionário, da declaração de comerciabilidade da área não sujeita, simultaneamente, o regulador à apro- vação do plano de desenvolvimento. Para o contrato, tanto como para a lei, são momentos distintos e, justamente, porque envolvem juízos e interesses dis- tintos a serem preservados. Como a fixação dos limites geográficos dos cam- pos de petróleo é decisão que afeta interesses e valores externos ao contrato, situa-se dentre aquelas matérias em que o caráter sui generis e de Estado do contrato se manifesta.
III.4 Limites à garantia do equilíbrio financeiro em contratos de concessão aleatórios
227. Em arremate a esta já longa exposição, parece útil investigar se o conteúdo da Resolução de Diretoria nº 69, de 5 de fevereiro de 2014, da ANP — que determinou a reunião dos reservatórios do Parque das Baleias no campo [único] de Jubarte — teve como consequência o rompimento da equação econômico-financeira do contrato de concessão, frustrando expectativas legítimas da concessionária. E, por esse motivo, representaria uma intervenção estatal indevida no contrato.
228. O exame da questão, todavia, pressupõe a correta identificação da natureza jurídica do contrato de concessão de produção e exploração de petróleo.
229. Tal contrato se insere na categoria dos chamados contratos de risco: um contrato de risco exploratório. Não há garantia para o concessionário de que as suas prospecções revelarão, na área do bloco concedido, a existência
de reservatórios suscetíveis de exploração. Enquadra-se na categoria jurí- dica de contratos aleatórios, conforme a literatura específica.
230. Veja-se, a propósito, a sempre escorreita opinião de Xxxxxxxxx Xxxxxx de Aragão:
O contrato de concessão petrolífera, espelhando característica inerente à organização da indústria do petróleo, constitui verdadeiro contrato aleatório, em que os riscos — inclusive o dos blocos onde se realizam atividades de vultosíssimos valores não levarem a qualquer descoberta, ou de levarem a descobertas que terminem por se mostrar inapropriadas à produção — correm integralmente por conta do concessionário. Esse elemento de aleatoriedade reforça as razões para que a administração o interprete de forma economicamente racional e consentânea com a sua natureza.85 [grifos nossos]
231. A mesma qualificação é feita por Xxxxxxxx Xxxx xx Xxxxxx Xxxxx e Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx:
A fonte primeira do contrato de concessão in casu é a Lei n. 9478/97 e o edital de licitações, lançado e acessível a todos os agentes de mercado a cada round promovido pela ANP e pode ser caracterizado como aleatório, pois não garante ao concessionário a existência de petróleo no bloco licitado; bilateral; remunerado (nos termos do tratado no tópico 2) e intuitu personae, embora exista a possibilidade de cessão de direitos e até mesmo cessão da concessão, desde que obedecidas as normas cabíveis.86
232. Os contratos aleatórios são conhecidos como contratos de sorte. A prestação de ao menos uma das partes não está assegurada, achando-se na dependência da realização de um evento incerto. Eis o que leciona a respeito o professor Xxxxxxx Xxxxxxxx:
85 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. Parecer: Direito de avaliação e eventual declaração de comercia-
lidade da descoberta realizada no BC-400. Revista de Direito Administrativo, vol. 249, 2012, p. 217.
86 XXXXXX XXXXX, Xxxxxxxx Xxxx de. A extinção de concessões de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, v. 27, ago./set./out., 2011. Disponível na internet: xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.
A designação de contratos aleatórios deriva do latim alea (sorte), que no caso consiste na expectativa de ocorrência de acontecimento incerto e casual. Com base na sua experiência de vida e na observação dos fatos, as pessoas calculam e contratam as probabilidades de alcançar determinadas vantagens futuras ou de evitar os efeitos de determinados fatos indesejáveis que possam ocorrer, assumindo, porém, o risco de que tais expectativas não se realizem e, por conseguinte, de vir a sofrer o prejuízo correspondente. Daí a observação de Xxxxxxxx Xxxxxx de que o contrato aleatório “nasce de esperanças e receios” (Xxxxxxxx Xxxxxx, Código Civil, p. 413).
[...]
Soma-se a isso a referência, na nova redação do art. 458, a “fatos futuros”, o que é um forte argumento no sentido de que se trata de uma categoria autônoma e ampla, na qual se subsumem não apenas os contratos descritos nesta Seção, mas também contratos típicos que a doutrina reconhece como aleatórios e ainda contratos atípicos, cuja estrutura e função apontem para (i) a absoluta incerteza quanto ao resultado final da contratação e (ii) a falta de equivalência entre as prestações. Em síntese, são aleatórios todos aqueles contratos em que as partes desde logo assumem o risco de realizar uma prestação desproporcional ao valor da contraprestação: “seu fim é expor as partes à mútua alternativa de ganho ou de perda, conforme um acontecimento incerto se verifique ou não” (M. I. Xxxxxxxx xx Xxxxxxxx, Xxxxxxxx, p. 404).87
233. Assim, no âmbito dos contratos de concessão de exploração e produção de petróleo, fica muito difícil apontar a existência de uma equação econômico-financeira merecedora de tutela, à luz da teoria da imprevisão, nos mesmos moldes daquelas presentes em contratos em que inexiste o signo da aleatoriedade. Tais contratos preveem, é claro, algum arranjo básico, mínimo, quanto às expectativas de ganhos financeiros das partes e a respectiva repartição. Esse arranjo deve ser preservado. Porém, como seus resultados são incertos — quer quanto à existência, quer quanto à quantidade do que pode vir a ser explorado —, não há como se pretender a preservação de um equilíbrio financeiro nem sequer existente a priori.
87 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Código civil interpretado. 2. ed. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 89-91.
234. Note-se, conforme destaca Xxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx, que, mesmo se não houver descobertas economicamente exploráveis na área da concessão, o concessionário já terá pagado os bônus de assinatura, os valores referentes à ocupação e retenção da área e todo o investimento na prospecção.88 Como cogitar de preservação de equilíbrio econômico-financeiro do contrato nesta situação?
235. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal já decidiu pela inexistência da garantia do equilíbrio econômico-financeiro em contratos de concessão aleatórios:
Administrativo. Contrato de prestação de serviços. Garantia de paga- mento mínimo a assegurar o equilíbrio econômico-financeiro do con- trato. Contrato aleatório. Risco natural do contrato. Não incidência do art. 65, §6º, da Lei Nº 8.666/93. Honorários art. 20, §4º, do CPC.
1 — Sendo aleatório o objeto do contrato administrativo, não há falar em desequilíbrio econômico financeiro, a ensejar a aplicação do art. 65, §6º, Lei nº 8.666/93, o qual pressupõe a comutatividade da avença.
[...]
3 — Recursos improvidos.89 [grifou-se]
236. Voltando à hipótese em concreto examinada neste parecer: terá a decisão da Diretoria da ANP que fixou os limites do campo de Jubarte alterado a equação econômico-financeira do contrato de concessão BC-60?
237. Segundo demonstrado, se a concessionária não sabia, de antemão, no momento em que o contrato foi pactuado, sequer se haveria descobertas
88 FREITAS, Xxxxxxx Xxxxx de. Apontamentos sobre a responsabilidade civil por danos ambientais em caso de transferência da concessão. Trabalho apresentado ao 2º Congresso brasileiro de P&D em Petróleo & Gás. Disponível em: <xxx.xxxxxxxxxx.xxx.xx/XXXxxxx/0/0000.xxx>: “Na vigência do contrato, o concessionário tem o direito exclusivo de realizar as atividades de exploração e produção na Área de Concessão. Ficam por sua conta e risco o aporte de todos os investimentos, devendo ele, de acordo com o contrato, ‘arcar com todos os gastos necessários, fornecer todos os equipamentos, máquinas, pessoal, serviços e tecnologia apropriados, e a assumir e responder integral e objetivamente pelas perdas e danos causados, direta ou indiretamente, pelas Operações e sua execução, independentemente da existência de culpa, tanto a terceiros quanto à ANP e à União...’ (ANP, 2002).
Trata-se, portanto, de contrato eminentemente aleatório, posto que a existência de petróleo na área a ser explorada não é garantida. Mesmo que não haja descobertas economicamente exploráveis, o concessionário já terá pagado o bônus de assinatura e valor referente à ocupação ou retenção da área explorada (art. 45 da Lei do petróleo), e feito todos os vultosos investimentos, inerentes a qualquer empreendimento da Indústria Petrolífera.”
89 AC 221568119988070001 XX 0000000-00.0000.000.0000, Des. Rel. Cruz Macedo, 4a Turma Cível, TJ/
DF, Julgamento: 19/8/2004, DJU, p. 86.
na área do bloco e nem a quantidade de óleo a ser encontrada, não poderia ter expectativa de determinado resultado ou de lucratividade específica. Além disso, como as participações especiais dependem do alcance de grande volume de produção ou de grande produtividade, avulta ainda mais o caráter da indeterminação do resultado que possa ser obtido.
238. Aquela equação econômico-financeira básica possível em um contrato de risco exploratório a que acima se aludiu não resta afetada pela decisão quanto aos limites do campo de Jubarte.
239. Nem é possível dizer, no contexto exposto, que pudesse haver uma expectativa legítima da concessionária a equilíbrio financeiro que não incluísse o pagamento de participações especiais sobre produção do citado campo. Uma expectativa é legítima — e, portanto, merecedora de tutela específica — quando o interessado tem razões concretas, devidamente materializadas, para acreditar na realização de determinado resultado. Exige-se uma situação de evidência que não se amolda ao tipo de contrato em análise.
IV. Conclusões
240. Examinadas todas as questões postas, podem ser assim sumaria- das as seguintes conclusões, que, acredito, respondem aos ques- tionamentos formulados na consulta:
(i) A presença de cláusula arbitral redigida de forma abrangente no contrato de concessão e exploração de petróleo do bloco BC- 60, sem especificar o seu alcance, não importa em que todas as controvérsias havidas entre a Petrobras e a ANP possam ser submetidas à arbitragem.
(ii) O cabimento do procedimento arbitral não depende apenas da vontade das partes manifestada no contrato, mas também — e principalmente — da ordem jurídica nacional.
(iii) No caso, o litígio submetido a juízo arbitral pela Petrobras envolve direito indisponível e, por isso, objetivamente inarbitrável.
(iv) A interpretação, pela ANP, do conceito legal de campo de petróleo situa-se na esfera de exercício de função regulatória, acerca da qual a agência não dispõe de liberdade para transacionar, ceder, renunciar ou alienar de qualquer maneira. Trata-se de questão sujeita à autoridade estatal, considerada a relevância estratégica da atividade para o Estado brasileiro.
(v) O emprego da arbitragem para dirimir litígios nos contratos de concessão e exploração de petróleo entre o ente regulador/ concedente e os concessionários, à luz do direito brasileiro, será naturalmente limitado a questões que possam ser configuradas como exclusivamente contratuais e que, ainda assim, não refiram diretamente ao atingimento dos fins públicos pretendidos pelo legislador.
(vi) A arbitrabilidade objetiva da controvérsia encontra igual obstá- culo na existência de interesses de terceiros, também indisponíveis. Afora a União, os demais entes federados produtores terão sua esfera de direitos atingida de forma direta pela sentença arbitral. O cálculo das participações especiais, de que são titulares originários os entes federados produtores, será afetado conforme fixados os limites dos campos exploratórios. Estes ingressos atendem a diversas finalidades públicas e asseguram autonomia financeira e equilíbrio federativo. É equivocado afirmar que se se cuida de interesses secundários.
(vii) Não sendo signatários da cláusula compromissória, os entes federados não estão sujeitos aos efeitos da decisão arbitral, podendo submeter a matéria ao Poder Judiciário. A instauração do juízo arbitral mostra-se, pois, ineficaz ao ângulo prático — porque não conseguirá cumprir o seu mister de resolução da con- trovérsia e pacificação do litígio —, além de ineficiente, porque gerará elevado dispêndio público com os custos da arbitragem.
(viii) O Poder Judiciário brasileiro pode e deve analisar antes do juízo arbitral instaurado perante a CCI a questão afeta à arbitrabilidade objetiva do litígio entre a Petrobras e a ANP. O efeito negativo do princípio da competência-competência não é adotado de forma clara no Brasil.
(ix) A apreciação da matéria pelo Poder Judiciário é admitida porque foi pela ANP antes mesmo da instalação da arbitragem, em mo- mento anterior à aceitação da nomeação por qualquer dos árbitros (art. 19 da Lei 9.307/96).
(x) Existindo chance real de a matéria ser considerada um direito indisponível pelo Poder Judiciário, a insistência em se cumprir todas as etapas de um foro privado de resolução de disputas seria contraproducente: ambas as partes despenderiam tempo e dinheiro — em grande medida, recursos públicos — para, ao final, obterem uma sentença arbitral nula.
(xi) Havendo abertura normativa e contratual, deve prevalecer a autoridade interpretativa da ANP tanto acerca do conceito legal de campo de petróleo, como da fixação dos respectivos limites. À intepretação dada pela agência, situada em clara margem de razoabilidade, deve ser dada a devida deferência.
(xii) Não se trata, porém, do exercício de discricionariedade, no sen- tido tradicional de decisão política entre indiferentes jurídicos. A interpretação da ANP deve situar-se dentro das possibilidades semânticas do texto normativo, mas pode considerar, nestes limites, critérios que permitam a maximização dos interesses públicos que está encarregada de realizar.
(xiii) De qualquer forma, a interpretação sistemática da Lei 9.487/97 e das disposições contratuais favorece o argumento da competência regulatória da ANP para fixar os limites dos campos exploratórios de petróleo.
(xiv) A ANP, nesse contexto, não está obrigada a aceitar o plano de desenvolvimento que lhe é submetido pela concessionária. Tem autoridade para aprová-lo ou não consoante sejam observadas as disposições legais e as diretrizes para o setor.
(xv) A adoção do modelo contratual de concessão não exclui a subsis- tência de poderes regulatórios da ANP externos ao contrato, que lhe foram investidos pelo regulador.
(xvi) A intervenção regulatória da agência encontra justificativa igual- mente na imperfeição do modelo contratual de concessão para veicular eficazmente a realização de interesses públicos.
(xvii) A leitura pragmática e consequencialista da relação contratual entre a ANP e os concessionários de produção e exploração, em que os interesses das partes mostram-se inconciliáveis, aponta no sentido do reconhecimento da competência da ANP para interpretar o conteúdo do conceito legal de campo de petróleo e fixar, em concreto, seus limites.
(xviii) A ANP, na sua autoridade interpretativa, pode legitimamente preferir, dentre as interpretações igualmente possíveis da norma, aquela que favoreça à realização dos interesses estratégicos, fede- rativos e socioeconômicos que está encarregada de implementar.
(xix) Assim, a distinção entre interesses públicos primários e secundá- rios não serve, no caso, para desqualificar a decisão da ANP como veiculadora de interesses que seriam supostamente ilegítimos,
porque secundários, no âmbito do contrato de concessão. Qualquer conclusão neste sentido não encontra guarida na compreensão atual do direito administrativo acerca da matéria, que aponta em favor da ponderação entre interesses primários e secundários para conduzir à correta decisão pública.
(xx) A ANP, portanto, não está impedida de adotar uma interpretação, dentre as possíveis, que favoreça o aumento da arrecadação das participações especiais, um dos interesses públicos eleitos pelo legislador na regulação do petróleo no Brasil.
(xxi) Tratando-se do exercício de atividade econômica submetida a regime de monopólio legal e objeto de contrato de Estado, sui generis, os concessionários ficam expostos ao poder estatal e possuem margem de autonomia empresarial reduzida.
(xxii) Os contratos de concessão e exploração de petróleo podem ser qualificados como contratos aleatórios. Nesses contratos, é muito difícil afirmar a existência de um equilíbrio financeiro merecedor de tutela, à luz da teoria da imprevisão, nos mesmos moldes das demais espécies de contrato.
(xxiii) A concessionária não é titular de uma expectativa legítima tute- lável pelo ordenamento jurídico ao não pagamento de partici- pações especiais conforme sejam os limites do campo de Jubarte fixados de uma forma ou outra.
Rio de Janeiro, 30 de março de 2015.
Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxx Professora de direito administrativo da Uerj
Doutora em direito do estado pela USP Mestre em direito público pela Uerj