2º CICLO DE ESTUDOS EM DIREITO
Faculdade de Direito
2º CICLO DE ESTUDOS EM DIREITO
Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx
A Oponibilidade do Direito de Retenção e a Protecção de Terceiros:
No âmbito do Contrato-Promessa e do Contrato de Subempreitada
1
Julho, 2013
Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx
A Oponibilidade do Direito de Retenção e a Protecção de Terceiros:
No âmbito do Contrato-Promessa e do Contrato de Subempreitada
UNIVERSIDADE DE COIMBRA FACULDADE DE DIREITO
2º CICLO DE ESTUDOS EM DIREITO
A Oponibilidade do Direito de Retenção e a Protecção de Terceiros:
No âmbito do Contrato-Promessa e do Contrato de Subempreitada
Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx
Dissertação apresentada no âmbito do
2.º Ciclo de Estudos em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas Menção em Direito Civil
Realizada sob a orientação da Prof. Doutora XXXXXX XXXXXXXXXX XXXXX XX XXXXX XXXXXX
Coimbra
Aos meus Pais,
Ao Xxxxx, Xxxx muito – tudo que lhes devo.
…le droit de rétention gèle la chose et gêne tout le monde.
Xxxxxxx Xxxxx et Xxxxxx Xxxxx
Índice
Abreviaturas e Siglas 8
O IUS RETENTIONIS ENQUANTO GARANTIA ESPECIAL E REAL DAS
1. Considerações Preliminares 16
3. A Fisionomia do Ius Retentionis na Óptica do Legislador Português e de Experiências Juscomparatísticas 22
3.1.Conteúdo e Condições de Exercício Segundo a Lei Civil Portuguesa de 1966 22
3.2. Experiências Juscomparatísticas 31
4. Uma Dupla Função Aliada a um Amplo Campo de Irradiação; A Eficácia Erga Omnes 40
4.1. A Faculdade de Incomodar Versus a Garantia com Preferência no Pagamento 41
4.2. Extractos de Realidade Expressivos da Natureza do Direito 44
4.3. Em Especial, a Eficácia Erga Omnes e a Posição Jurídica do Terceiro Interveniente na Relação Creditícia 47
A OPONIBILIDADE DO Ius Retentionis A TERCEIRO PROPRIETÁRIO DA COISA RETIDA OU TITULAR DE OUTRO DIREITO REAL DE GOZO SOBRE ELA 50
2. A Retenção Exercida pelo Subempreiteiro e a Posição de Terceiro – Dono da Obra 51
2.1. O Problema da Existência e Natureza Jurídica dos Direitos do Subempreiteiro Contra o Dono da Obra 51
2.2. O Nosso Critério de Resolução 66
3. O Terceiro Adquirente da Coisa ou do Direito Objecto Mediato de um Contrato-Promessa com Eficácia Meramente Obrigacional 71
3.1. A al.f. do n.º 1, do art.755.º: Perspectiva Evolutiva e Elementos Constitutivos da Garantia Real do Accipiens da res 71
3.2. O Ius Retentionis do Promitente-Comprador Versus o Direito de Propriedade de Terceiro 78
3.3. A Protecção Pré-tabular do Accipiens: uma Proposta Preventiva do Incumprimento do Tradens 82
A OPONIBILIDADE DO Ius Retentionis A TERCEIRO CREDOR NÃO RETENTOR E TITULAR DE UM DIREITO REAL DE GARANTIA 99
1. Considerações Gerais 99
2. O Direito de Retenção no Processo Executivo 101
2.1. A Ratio da Preferência (Quase-Absoluta) no Pagamento do Crédito do Retentor 101
2.2. A Retentio do Promitente-Adquirente Versus A Hipoteca Anteriormente Registada 104
2.2.1. A Problemática Conjugação entre a al.f. do n.º 1 do art.755.º e o n.º 2 do art.759.º 104
2.2.2. Propostas Doutrinais com vista à Superação das Fragilidades Legais
.................................................................................................................... 108
2.2.3. O DL n.º 125/90, de 16 de Abril: O início de uma Viragem Legislativa? 113
2.2.4. A nossa Apreciação: Um Balanço na Tutela de Interesses Contrapostos 118
2.2.4.1. O Atendimento Prioritário dos Interesses do Promitente Fiel 118
2.2.4.2. A Tutela Jurídico-Processual do Credor Hipotecário 129
Apreciação Final 144
Índice Bibliográfico 149
Jurisprudência Citada 160
Abreviaturas e Siglas
A. – Autor(a) Aa. – Autores
AAFDL – Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa ABGB – Allgemeines Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil Austríaco)
A.C. – Antes de Cristo ac(s). – acórdão(s) actual. – actualizada al(s). – alínea(s)
AR – Assembleia da República art(s). – artigo(s)
ATC – Acórdãos do Tribunal Constitucional aum. – aumentada
BFD – Boletim da Faculdade de Direito
BGB – Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil Alemão) BMJ – Boletim do Ministério da Justiça
BOE – Boletín Oficial del Estado BP – Banco de Portugal
BRN – Boletim dos Registos e Notariado
BW – Nieuw Nederlands Burgerlijk Wetboek (Código Civil Holandês)
C. – Chambre Cap. – Capítulo CC – Código Civil
CCCat – Código Civil da Catalunha CCf – Código Civil francês
CCit – Código Civil italiano
CCom – Código Comercial Português CCP – Código dos Contratos Públicos CDPriv. – Cadernos de Direito Privado CE – Conseil D’ Etat
CIMT – Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis CIRE – Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas
CJ – Colectânea de Jurisprudência
CJ/STJ – Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça compil. – compilação
CPC – Código de Processo Civil
CRBM – Código de Registo de Bens Móveis CRP – Constituição da República Portuguesa CRPred – Código do Registo Predial
CTDGRN – Conselho Técnico da Direcção Geral dos Registos e do Notariado CVM – Código de Valores Mobiliários
D.C. – Depois de Cristo
DJ – Direito e Justiça, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa
DL – Decreto(s)-Lei(s)
ED – Enciclopedia del Diritto ed. – edição
Enc. Dalloz – Enciclopédie Dalloz
EOA – Estatuto da Ordem dos Advogados ex. – exemplo
F.D.U.C – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra FTC – Fundo(s) de Titularização de Créditos
HBG – Hypothekenbankgesetz (Lei de Banco Hipotecário) Id. – Idem
Il Foro It. – Il Foro Italiano imp. – impressão
IMT – Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis JCP – La Xxxxxxx Xxxxxxxxx – Édition Générale
JORF – Journal Officiel de la République Française KWG – Kreditwesengesetz (Lei Bancária Alemã)
Liv. – Livro n.º – número
Noviss. Dig. It. – Novissimo Digesto Italiano obs. – observações
OH – Obrigações Hipotecárias
OICVM – Organismos de Investimento Colectivo em Valores Mobiliários PE – Parlamento Europeu
Proc. – Processo
RC – Tribunal da Relação de Coimbra
RDES – Revista de Direito e de Estudos Sociais RDPriv – Revista de Derecho Privado
RE – Tribunal da Relação de Évora reimp. – reimpressão
rev. – revista
RG – Tribunal da Relação de Guimarães
RGICSF – Regime Geral de Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras Riv. Crit. Dir. Priv. – Rivista Critica del Diritto Privato
RJEOP – Regime Jurídico de Empreitadas de Obras Públicas
RJ/UP – Revista Jurídica da Universidade Portucalense Infante D. Henrique RL – Tribunal da Relação de Lisboa
RLJ – Revista de Legislação e Jurisprudência ROA – Revista da Ordem dos Advogados RP – Tribunal da Relação do Porto
RTDciv. – Revue Trimestrielle de Droit Civil Séc. – Século
STC – Sociedade(s) de titularização de créditos STJ – Supremo Tribunal de Justiça
T. – Tomo tb. – também
TC – Tribunal Constitucional Tít. – Título
UE – União Europeia
V. – Vide
v.g. – verbi gratia vol. – volume
Introdução
O ius retentionis é um direito real de garantia, previsto nos arts.754.º e ss do CC1. Inserido na Secção VII, do Xxx.XX, do Tít.I, do Liv.II, o instituto que nos propomos abordar consiste numa garantia especial do cumprimento das obrigações que, por isso, acresce à garantia comum dos credores de um mesmo devedor: o seu património. Tipificado e regulamentado pela lei civil, o direito sob a nossa apreciação cumpre o princípio do numerus clausus dos direitos reais. Anotamos, portanto, que o nosso estudo versa, em termos gerais, sobre os princípios e regras relativas ao cumprimento das obrigações e às garantias reais da prestação creditícia.
O art.754.º define genericamente o direito de retenção como o poder de um sujeito prorrogar a detenção da coisa obrigada a restituir a outro sujeito, devedor de um crédito resultante de despesas feitas por causa da coisa ou de um dano por ela causado. O art.755.º prevê casos especiais de atribuição da garantia, fora do âmbito geral traçado pela primeira norma.
Numa perspectiva intersubjectiva, casos haverá em que o titular de um direito de retenção, pelo seu poder de bloquear as utilidades da coisa, verá a sua situação confrontada com a posição jurídica de uma pessoa estranha ao facto gerador da garantia, e que, por ser titular de um direito real de gozo ou de garantia sobre a coisa retida, perturba o livre exercício da retentio. Ora, não estando perante um simples direito obrigacional, coloca-se um problema de conflito de direitos reais cujos critérios resolutivos, classicamente apontados, nem sempre respondem cabalmente às várias interrogações que surgem consoante a facti species sob análise.
Com efeito, a prioridade temporal ou registal, e a preferência na graduação dos direitos de garantia nem sempre nos permitem alcançar uma solução justa e equilibrada
– equitativa – no que diz respeito a específicas situações de conflitos de direitos reais. É precisamente neste quadro que se move a nossa investigação: a colisão entre o direito de retenção e outros direitos reais de gozo e de garantia de terceiros.
Como sabemos, os direitos reais gozam de uma oponibilidade erga omnes – para todos. A oponibilidade define-se, genericamente, como uma qualidade do direito
1 Durante a nossa exposição, salvo indicação em contrário, as normas jurídicas enunciadas sem referência a um diploma legislativo consideram-se parte integrante do nosso CC actual, aprovado pelo DL n.º47 344, de 25/11/1966 e que entrou em vigor no dia 01/06/1967.
que o seu titular pode contrapor às pretensões de outrem2. Com esta definição, facilmente depreendemos que não encontraremos a solução às várias colisões de direitos reais com a afirmação tout court da eficácia absoluta dos direitos reais. Isto é, cremos que é necessário observar os termos da oponibilidade do ius retentionis, que assume determinadas variantes de acordo com o confronto de direitos em causa e com a posição assumida por cada indivíduo na relação jurídica em apreço. Importa revisitarmos algumas manifestações da eficácia do direito de retenção para solucionar determinadas espécies de conflitos de direitos reais.
Assim, desenhamos os contornos da nossa temática como um estudo em torno dos termos da oponibilidade do direito de retenção a duas classes de terceiros: o terceiro titular de um direito de gozo e o terceiro titular de uma garantia real, ambos incidentes sobre a coisa retida.
Para a exposição dos problemas emergentes da intervenção das duas classes de terceiros, apoiamos a nossa investigação em dois tipos contratuais: o contrato de subempreitada, necessariamente implicativo de um estudo sobre o contrato de empreitada, e o contrato-promessa com efeitos meramente obrigacionais, desde que tenha havido traditio rei.
Na subempreitada, a vexata quaestio consiste em saber se o subempreiteiro goza efectivamente de um direito real de retenção contra o empreiteiro, oponível ao originário dono da obra. Porque não existe um direito especial de retenção a favor daquele sujeito, deveremos entender que o art.754.º exige como pressuposto da constituição da garantia, a titularidade da coisa objecto de retenção? Se a resposta não estiver expressis verbis na lei, como resolver o conflito entre o direito de propriedade do dono da obra, estranho à dívida gerada ao abrigo do contrato de subempreitada, e o direito de retenção exercido pelo subempreiteiro contra o empreiteiro e negativamente repercutido na esfera do titular da coisa em construção ou já construída?
No contrato-promessa, os problemas surgem sob duas perspectivas: no âmbito do processo executivo e fora dele. Neste último caso, questiona-se a oponibilidade do direito de retenção do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de um direito real, que obteve a traditio da coisa objecto mediato do contrato preliminar, perante o posterior adquirente da mesma res ou de outro direito real de gozo sobre ela.
2 V. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, vol.III, Sistema J, 1ª ed., 1996, p.1003.
Mais uma vez, o terceiro adquirente é estranho à dívida gerada, neste caso, pelo incumprimento do contrato-promessa. Em que medida deverá ceder a propriedade para salvaguardar a posição do retentor defraudado na sua expectativa de aquisição? Esta situação é tanto mais gravosa quando nos deparamos com a falta de registo do direito de retenção e a traditio rei como condição de exercício da garantia, à luz do art.755.º, n.º1/f.
No processo executivo, apesar de a lei estatuir a preferência absoluta da retentio sobre uma coisa imóvel, mesmo perante uma hipoteca anteriormente constituída, presenciamos um aceso debate académico a propósito da justeza da solução quando o direito de retenção é exercido por um promitente-comprador. Como justificar a preferência no pagamento de um retentor de um imóvel ou fracção dele, cuja garantia foi criada à margem das regras de registo predial, perante um credor hipotecário que registou a sua garantia em momento anterior ao surgimento daquela?
São estas as principais questões, e outras tantas com elas conexas, a respeito das quais nos propomos reflectir, procurando, para cada uma delas, uma resposta de Direito harmonizadora dos interesses em conflito.
A fim de atingirmos a finalidade traçada, optamos por guiar o nosso iter reflexivo em três passos. O primeiro encaminhar-nos-á para uma caracterização genérica do ius retentionis, enquanto garantia especial e real das obrigações. Neste âmbito, observaremos a evolução histórica do instituto, os seus contornos à luz da lei civil portuguesa e segundo experiências jurídicas estrangeiras para, seguidamente, nos debruçarmos sobre a sua função de garantia, ou melhor, sobre a realidade do direito e, em especial, sobre o significado e implicações da sua eficácia erga omnes.
No segundo passo, discutiremos os problemas relativos à eficácia do instituto perante o terceiro proprietário da coisa retida ou titular de outro direito real de gozo sobre ela. Nesta óptica, desenvolveremos o conflito de direitos reais emerge de duas facti species. A primeira implicará uma análise da natureza jurídica da retenção exercida pelo subempreiteiro perante o dono da obra. A segunda envolverá uma reflexão a propósito da posição jurídica do promitente-adquirente, accipiens da coisa pela traditio rei, quando confrontado com um terceiro adquirente de um direito de gozo sobre a mesma res e, por isso, conflituante com a expectativa de aquisição do direito prometido transmitir ou constituir sobre ela.
Ultimaremos a nossa investigação com um terceiro passo versando sobre o estudo da garantia integrada no processo executivo3, mais precisamente, sobre os termos de oponibilidade do direito de retenção a terceiro credor, não retentor, do proprietário da coisa retida, e titular de um direito real de garantia sobre ela. Esta problemática será desenvolvida no quadro do direito de retenção do promitente-adquirente da coisa objecto de contrato-promessa com efeitos meramente obrigacionais, acompanhado da traditio rei, quando confrontado com uma garantia hipotecária anteriormente registada, com o mesmo objecto.
3 Contra o executado in bonis.
PARTE PRIMEIRA
O IUS RETENTIONIS ENQUANTO GARANTIA ESPECIAL E REAL DAS
Obrigações
1. Considerações Preliminares
A discussão em torno da oponibilidade do direito de retenção exige uma sua prévia caracterização enquanto garantia especial e real do cumprimento das obrigações. Porque uma específica reflexão acerca de problemas jurídicos carece, indubitavelmente, de uma prévia e genérica abordagem do universo onde se inserem, julgamos de evidente importância um estudo da teoria geral do ius retentionis para, num momento posterior, construir um pensamento consciente e informado a propósito de situações específicas que evidenciaremos.
Nesta óptica, interrogamo-nos; quais as raízes históricas deste direito? Qual o seu conteúdo e em que lugares o poderemos encontrar, segundo o Direito vigente entre nós e, em termos jus comparatísticos? Quais as implicações e qual o significado daquele seu conteúdo para as relações jurídicas contratuais e extracontratuais?
São estas e outras tantas questões a respeito das quais nos propomos reflectir seguidamente.
2. Excursus Histórico
Vejamos qual a evolução histórica do instituto, os primeiros casos em que surgiu a necessidade da sua atribuição e as primeiras fontes jurídicas a acolherem-no.
A génese da retentio ou faculdade de retinere surge no Direito Romano4, mais concretamente no processo per formulas 5/6.
4 Esta é a opinião maioritariamente defendida, v. por todos, SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito de Retenção Elementos históricos e jurídico-comparatísticos: Algumas Questões Problemáticas, Porto, Edições Ecopy, 2011, p.22 a 27. Xxxxxxx entende de modo diverso que, o ius retentionis consiste numa pignoratio privada autorizada por lei. Terá sido o Direito Bárbaro a enraizar o direito objecto do nosso estudo através daquela figura, que consistia na possibilidade de um credor conservar em penhor
Segundo a doutrina maioritária7, a retentio surge com o objectivo de o possuidor de boa fé obter o reembolso pelas despesas que realizou e que se revelaram necessárias à conservação8 da coisa, no âmbito de uma acção de reivindicação intentada pelo seu proprietário que, privado da sua posse, pretende reavê-la. O meio processual utilizado era a exceptio doli, entendendo-se por dolo qualquer situação em que o demandante de uma causa pretendesse, com fundamento no direito estrito, um resultado injusto de acordo com o caso judicando9.
No processo extraordinário, a retentio ganha relevo próprio e autónomo como meio de defesa, continuando, todavia, com aquela denominação10.
Ao longo das várias épocas constitutivas do Direito Romano, observamos uma presença crescente do ius retentionis, não como forma pura de autotutela, mas sim, enquanto meio juridicamente autorizado e controlado pelo juiz de (auto) protecção perante danos ou despesas que, sem o mesmo não seriam reparados ou reembolsadas, criando iniquidade nas relações jurídicas11. Todavia, não assistimos a qualquer elaboração de uma sua teoria geral ou de um sistema orgânico que regulasse os seus princípios e orientasse o julgador12.
Após um declínio de grande parte dos institutos romanísticos, provocado na sequência da crise do Corpus Iuris Justinianeu e ao qual a faculdade de retinere não foi imune, observamos alguns sinais da sua revivescência no Direito Feudal. O direito de retenção assume especial relevo no âmbito das relações entre o senhor e o vassalo, permitindo-se a retenção do feudo por parte dos herdeiros do vassalo falecido mas sem
xxxx do seu devedor para, após a sua alienação, obter a satisfação do seu crédito, v. CHIRONI apud
XXXXX, XXXXXXX XXXX XX XXXXX XXX, «Direito de Retenção», Separata do BMJ, n.º 65, Lisboa, 1957,
p.48 a 52.
5 V. XXXXXXX, XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX, Do Direito de Retenção na Legislação Portuguesa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1911, p.24.
6 Em termos processuais, o Direito romano evoluiu segundo três sistemas; o processo legis actiones ou acções da lei (754 até metade do séc.II A.C.), o processo per formulas ou formulário (séc.II A.C. até séc.III D.C.) e o processo cognitio extra ordinem ou extraordinário (séc.III D.C. até 529-534), v. XXXXXXX-XXXX, XXXXXXXX, Cours de Droit Xxxxxx: Les actions, Napoli, Jovene Editore, 1980, p.3, 5 e 91.
7 V. por todos, XXXXXXX, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.25.
8 Diferentemente, Xxxxx entende que a facti species mais remota da ritenzione romana encontra-se no domínio dos danos, v. XXXXX, XXXX, «Profilo Evolutivo della Ritenzione Romana», Revista di Diritto Civile, Anno III, Parte Prima, 1957, p.747 e 748.
9 Fala-se tb. de exceptio doli generalis, v. XXXXXXX-XXXX, XXXXXXXX, Cours…, cit., p.46 e 59.
10A designação de ius retentionis em substituição de faculdade de retinere, foi surgindo progressivamente na Idade Média, v. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.33.
11 Id., p.31 e 32.
12 V. XXXXXXX, XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX, Do Direito…, cit., p.25 e 27.
filhos varões, até indemnização a cargo do senhor, pelas melhorias e acessões nele efectuadas13.
Na idade moderna, o ius retentionis ganha robustez graças às normas locais e, mais precisamente, à legislação estatutária italiana14, falando-se, inclusive, de um direito de preferência ou de uma posição de privilégio do retentor, perante os demais credores daquele devedor15.
No período da Codificação, porque a lei é considerada fonte principal de Direito, importa avaliarmos as técnicas normativas de positivação do direito de retenção.
Neste âmbito, evidenciam-se dois modelos: o modelo francês e, o modelo argentino e germânico16. Segundo o primeiro e no CCf de 1804, a lei dita em normas jurídicas dispersas quais os casos em que o direito de retenção existe. Inversamente, de acordo com o segundo, e seguindo os códigos civis argentino17 e alemão18/19, o direito de retenção goza de uma disciplina normativa própria e autónoma das restantes matérias reguladas pelos diplomas20.
É no contexto deste segundo modelo que detectamos uma sistematização orgânica mais rigorosa e unitária, o que demonstra o nascimento de uma verdadeira teoria jurídica do direito de retenção21, um conjunto de princípios reguladores do instituto e orientadores das relações jurídicas e do julgador.
Entre nós, o Código Civil aprovado por Carta de Lei de 1867 adoptou a técnica legislativa ditada pelo modelo francês. Existia um conjunto de disposições normativas que atribuíam um direito de retenção, de modo disperso e a propósito das várias matérias que regulassem22/23/24.
13 Ibidem.
14 Id., p.28 e 29.
15 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.37.
16 Id., p.39 e 43.
17 Recordamos que foi promulgado em 1869 e que se encontra em vigor desde 1871.
18 O BGB alemão foi promulgado em 1896 e vigora desde 1900.
19 Este modelo foi igualmente seguido pelos códigos civis suíço (dos arts.895.º a 898.º do seu Código Civil de 1907 ainda vigente) e japonês, v. XXXXXXX, XXXXX XXXXXX XX XXXXX XXXXXX XX, «Existência no Direito Português do Direito de Retenção como Instituto de Carácter Geral», ROA, Ano 10, 1950, p.372.
20 O CC de argentino dispõe de um Tít. dedicado ao direito de retenção, dos arts.3939.º a 2946.º.
21 Id., p.30 e 31.
22 Nas Ordenações Filipinas (Liv. IV, Tít. LXV, §1 e Tít. XCV, §1) existia um ius retentionis de coisa emprestada, alugada ou arrendada, para o reembolso de despesas necessárias e úteis nela feitas ou ainda, a favor do cônjuge sobrevivo, de bens da Corôa do Reino ou do morgado ou de emprazamento, para a satisfação de créditos relativos a benfeitorias e a que tivesse direito, v. XXXXXXX, XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX, Do Direito…, cit., p.120.
O direito de retenção era atribuído ao possuidor de boa fé, pelas despesas necessárias e úteis, sob condição de, neste último caso, as benfeitorias que daí resultassem não puderem ser levantadas sem detrimento da coisa25.
Mais adiante, a lei concedia a faculdade de retinere ao credor pignoratício26, pressionando o devedor daquele credor a cumprir a sua obrigação de indemnização por despesas necessárias à conservação da coisa objecto de penhor e efectuadas por este.
A retentio era igualmente atribuída ao cônjuge sobrevivo, perante benfeitorias ou comunicação de preço, continuando na posse e administração dos bens do casal, mesmo que finda a partilha27.
O art.1407.º estatuía que o empreiteiro de uma obra mobiliária podia reter a obra objecto do contrato de empreitada até ao seu completo pagamento. Além disso, art.882.º, n.º 3 e §3, previa um privilégio mobiliário especial para o crédito do preço ou custo de reparação de quaisquer móveis ou máquinas, enquanto não saíssem das mãos do credor – retentor28.
O art.1574.º consistia numa manifestação do ius retentionis a favor do vendedor, pelo preço ainda não pago a cargo do comprador29.
O transportador por água ou por terra, o mandatário civil e o gestor de negócios dispunham da faculdade de retinere a(s) coisa(s) conduzida(s) ou adquirida(s) por aqueles retentores, apesar de estarem obrigados a entrega-las, conforme as regras legais respeitantes à execução contratual de cada um deles30. Acrescia à retenção do transportador um privilégio mobiliário especial pelos mesmos créditos31.
O depositário gozava de igual faculdade, exercida sobre as coisas depositadas e por causa de despesas necessárias à sua conservação, realizadas no cumprimento da sua obrigação principal de guardar e conservar a mesma, objecto do contrato de depósito. O
23 Neste ponto (2, I), as normas jurídicas enunciadas sem referência a um diploma legislativo consideram- se parte integrante do Código de Seabra.
24 Xxxxxxxx XXXXXXX, XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX, Do Direito…, cit., p.3 a 11 e XXXXXXX, XXXXX XXXXXX XX XXXXX XXXXXX XX, «Existência…, cit., p.382 a 389.
25 Arts.498.º, 499.º e 500.º.
26 Arts.860.º e 861.º
27 Art.1122.º
28 V. XXXXX, XXXXXXX XXXX XX XXXXX XXX, «Privilégios», BMJ, n.º 64,1957, p.192.
29 V. XXXXXXX, XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX, Do Direito…, cit., p.41 e XXXXXXX, XXXXX XXXXXX XX
LEMOS GARCIA DA, «Existência…, cit., p.386.
30 Arts.1349.º, 1726.º, 1413.º e 1414.º
31 Art.882.º, n.º 1
ius retentionis era exercido contra o depositante, apesar de o retentor estar vinculado à restituição da coisa depositada32.
Em termos gerais, também o locatário era titular subjectivo de um direito de retenção. Em termos especiais, o arrendatário dispunha da faculdade de diferir a entrega do prédio como meio de coerção do senhorio ao pagamento de benfeitorias expressamente consentidas ou realizadas devido à necessidade de reparos, por lei a cargo do senhorio que permaneceu omisso e já anteriormente requeridas pelo arrendatário33. O locatário de coisa móvel dispunha de um direito de retenção em termos similares, com as devidas adaptações34.
Por último, estatuiu-se a faculdade de retinere a favor do usufrutuário ou dos seus herdeiros, após a extinção do direito e devido a desembolsos de que deviam ser pagos, pelo proprietário de raiz35.
A retentio era legalmente negada ao comodatário, apesar de o comodante estar obrigado a indemniza-lo de todas as despesas necessárias e extraordinárias realizadas com a coisa gratuitamente emprestada36.
O albergueiro também não gozava de direito de retenção pelo crédito da hospedagem mas o art.882.º, n.º 2 e §2 concedia-lhe um privilégio especial mobiliário sobre as alfaias que o devedor tivesse na pousada, à condição de as mesmas persistirem no lugar.
Em termos doutrinais, notamos um aceso debate centrado em saber se devia considerar-se o direito de retenção com aplicação restrita aos casos referidos na letra da lei37 ou se, a contrario sensu, o direito existia sempre que, no caso sub judice, se verificassem os seus elementos constitutivos retirados das disposições legais que versavam sobre ele38.
32 Art.1450.º e § único.
33 Arts.1611.º e 1614.º do CC e os arts.17.º e 25.º do Decreto n.º 5411 de 17/04/1919, v. XXXXXXX, XXXXX XXXXXX XX XXXXX XXXXXX XX, «Existência…, cit., p.387 e 388.
34 Art.1634.º
35 Art.2251.º
36 Art.1521.º
37 V. MOREIRA, GUILHERME ALVES, Instituições do Direito Civil Português, vol.II, 2ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1925, p.118, XXXXXXX, XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX, Do Direito…, cit., p.117 a 121 e XXXXXXX, XXXXXX X. DOMINGUES de, Teoria Geral das Obrigações, 3ª ed., Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p.330.
38 V. XXXXXXXXX, XXXX XX XXXXX, Tratado de Direito Civil, vol.IV, Coimbra, Coimbra Editora, 1931, p.522, mas com opinião inversa em Tratado de Direito Civil, vol.V, Coimbra, Coimbra Editora, 1932, p.678 e FONSECA, XXXXX XXXXXX XX XXXXX XXXXXX DA, «Existência no Direito Português…, cit., p.380 e 381. V. tb. o ac. do STJ de 31/01/56, BMJ, n.º 53, 1956.
Xxxxxxxxxxx que, a par do direito de retenção, a lei civil concedia um privilégio creditório imobiliário que modificava por completo a posição do retentor – possuidor de boa fé ou arrendatário.
Seguindo Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx, anotamos que a generosidade da lei civil neste duplo reforço da garantia de pagamento do credor foi factor de disparidade de regimes jurídicos39.
O art.887.º, n.º 2, permitia que sobre os imóveis de devedor do retentor pesasse um crédito privilegiado, desde que unicamente respeitante a despesas de conservação efectuadas nos últimos três anos. Esta garantia era quantitativamente limitada à quinta parte do valor do prédio visado40. Portanto, o possuidor gozava sempre de um crédito privilegiado, embora limitado sobre o imóvel no qual tivesse efectuado despesas de conservação, independentemente da sua boa ou má fé. Contudo, o direito de retenção revelava-se exclusivamente concedido ao possuidor de boa fé e abrangia a totalidade das despesas a reembolsar.
Quanto ao arrendatário, o mesmo gozava da faculdade de não largar o prédio arrendado, enquanto não tivesse sido indemnizado da totalidade das despesas supra referidas mas, já só lhe era reconhecido um privilégio creditório sobre a mesma coisa, no que diz respeito a um quinto do seu valor e pelos créditos resultantes de despesas realizadas exclusivamente nos últimos três anos.
Como apoio nesta diferenciação legal, a nossa doutrina entendia maioritariamente que, o direito de retenção consistia numa preferência especial indirecta, fora do concurso de credores, ao passo que o privilégio especial imobiliário representava uma autêntica preferência especial directa41.
Neste ponto, muitos foram os textos doutrinais que exprimiram dúvidas acerca da natureza jurídica da retentio. Os Aa. costumavam utilizar o regime jurídico da dupla atribuição direito de retenção – privilégio especial imobiliário para fundamentar a qualificação da retentio como um direito obrigacional, inoponível a terceiros da relação contratual existente entre aquele credor e devedor42.
39 V. XXXXX, XXXXXX XXXXXXX DE, O Direito de Retenção como Garantia Imobiliária das Obrigações, 2ª ed., Porto, Elcla, D.L. 2001, p.19 a 21.
40 O art.1014.º acrescia que, na hipótese da totalidade dos créditos respeitantes ao n.º 2 do art.887.º ultrapassarem um quinto do valor do prédio onerado por estes privilégios, haveria quanto a esta quinta parte, rateio por todos e na devida proporção. Quanto ao resto em dívida, passavam a credores comuns.
41 V. XXXXXXX, XXXXXXXXX XXXXX, Instituições…, vol.II, cit., p.503 e XXXXX, XXXXXX XXXXXXX DE, O Direito…, cit., p.2.
42 V. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade das Garantias Reais: A Hipoteca Voluntária face ao Direito de Retenção e ao Direito de Arrendamento, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p.83.
3. A Fisionomia do Ius Retentionis na Óptica do Legislador Português e de Experiências Juscomparatísticas
3.1.Conteúdo e Condições de Exercício Segundo a Lei Civil Portuguesa de 1966
O CC português de 1966, actualmente vigente, alterou significativamente o rumo do Direito Civil anterior. Composto por cinco Livros, é no seu Liv. II, referente ao Direito das Obrigações, que localizamos toda uma secção, dos arts.754.º a 761.º43, dedicada ao direito de retenção. Existe, portanto, um corpus unitário de normas jurídicas que versam sobre o seu conteúdo, efeitos, modo de exercício e extinção. Aplaudiu-se o avanço legislativo que permitiu encerrar os debates doutrinais acerca da natureza jurídica e do âmbito de aplicação do instituto.
Enraizada na palavra retentio, -onis, a retenção significa, etimologicamente, demorar, reservar algo que não é seu mas que está em seu poder material, com um determinado objectivo44.
Transposto para a lei civil, o art.754.º apresenta o direito de retenção como um poder jurídico de conservar uma coisa que não é sua, enquanto não vir o seu crédito satisfeito por um sujeito simultaneamente credor da obrigação de restituição da mesma res, pelo facto de aquele crédito se dever a despesas ou danos causados por ela.
Com um passar de olhos pela norma, conseguimos precisar que este momento do nosso estudo se dedica aos efeitos da relação jurídica existente entre um credor de uma prestação pecuniária – retentor e um seu devedor – simultaneamente credor da entrega da coisa.
À luz do art.754.º, a literatura jurídica aponta para três pressupostos da existência do instituto, que consistem na detenção lícita e de boa fé de uma coisa jurídica – detenção – por um titular passivo da obrigação de restitui-la a outrem, que é simultaneamente titular activo de um crédito contra o mesmo sujeito daquela relação – reciprocidade de créditos – sendo que este último crédito deve assumir uma conexão
43 Doravante, os preceitos legais referidos neste ponto integram o CC Português de 1966, salvo menção em contrário.
44 V. XXXXX, XXXXXXX XX XXXXXX, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, vol.IX, 10ªed, Lisboa, Editorial Confluência, 1956, p.534.
funcional, directa e material com a res detida, por emergir de despesas ou danos por ela causados ao recusante – conexão material ou objectiva45.
Vejamos cada elemento de per si.
No tocante à detenção, sublinha-se a essencialidade deste pressuposto, pois para reter é necessário deter, sendo que a retenção consiste em prorrogar ao abrigo de um título novo – a garantia – uma detenção inicialmente obtida à luz de um título diferente e segundo o qual ela deveria cessar. Nas palavras de A. Xxxxxxxx Xxxxxxx, a detenção origina e assegura a vida do direito de retenção46. Pela detenção, priva-se o credor do poder de facto que poderia exercer sobre a coisa, pela retenção pressiona-se aquele a satisfazer a razão creditícia deste, legitimando-se um pouvoir de fait createur de droit47.
É conditio sine qua non a mera detenção ou posse precária48, um corpus aliado ao animus detinendi49. Como sabemos, entre nós é maioritariamente defendida uma concepção subjectivista de posse50, pelo que a mesma implica o exercício de poderes de facto sobre uma coisa – um corpus, em termos de um direito real – um animus possidendi. Seguindo de perto Xxxxxxx xx Xxxxxxxx, o elemento empírico não exige um indubitável poder de uso e fruição da res, mas apenas a sua colocação à disponibilidade material do sujeito. Deste corpus, deve poder inferir-se uma vontade de ter a coisa, a título de uma margem maior ou menor de disponibilidade jurídico-real51. É o que acontece na situação do retentor. Isto é, apesar de ser condição necessária e suficiente a detenção da coisa para surgir um direito de retenção, consideramos que o retentor é possuidor, no sentido em que exerce poderes de facto sobre a coisa retida em termos de um direito real de retenção, pelo que se verifica uma disponibilidade empírica da coisa aliada a um animus retinendi.
As als.a e .b, do art.756.º delimitam negativamente os termos em que a detenção deve ser exercida. Inferimos que a detenção deve ser obtida por meios lícitos a não ser que a ilicitude seja desconhecida do sujeito no momento da aquisição, além de que este
45 V. XXXXX, X. X. XX XXXXXXX, Direito das Obrigações, 12ª ed., Coimbra, Almedina, 2011, p.974, COSTA, SALVADOR DA, O Concurso de Credores: Sobre as Várias Espécies de Concurso de Credores e de Garantias Creditícias, 4ª ed., Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p.184 e CASTANHEIRA, SÉRGIO NUNO COIMBRA, «Direito de Retenção do Promitente-Adquirente, o Beneficiário da Promessa de Transmissão de um Direito Real de Habitação Periódica», Garantias das Obrigações: Publicação dos Trabalhos do Mestrado, Coimbra, Almedina, 2007, p.499.
46 V. XXXXXXX, XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX, Do Direito…, cit., p.6 a 8 e p.161.
47 V. XXXXX, XXXXXXXX, Le Droit de Rétention: Unité ou Pluralité, Paris, Economica, 2005, p.33. 48 V. XXXXX, XXXXX, «Do Direito de retenção (arcaico, mas eficaz…)», CDPriv., n.º 11, 2005, p.10. 49 Art.1253.º/a
50 Art.1251.º
00 X. XXXXXXXX, XXXXXXX DE, «Introdução à Posse», RLJ, n.º 3780, Ano 122, 1989, p.68 e 69 e n.º 3781, Ano 122, 1989, p.105 a 107.
estado psicológico do detentor deve persistir no momento da realização das despesas que originam o crédito garantido.
Revela-se um dever de o detentor estar de boa fé em sentido subjectivo, ou seja, na convicção íntima de agir em conformidade com o Direito, desconhecendo o carácter ilícito da sua aquisição, ou posteriormente, ignorando lesar o seu credor pela realização de despesas52/53/54.
A communis opinio defende a exigência legal de uma detenção material ou real de uma coisa, o que leva a certas conclusões acerca da própria res. A coisa jurídica55/56 deve ser presente57, corpórea móvel ou imóvel58, por regra infungível59/60 e penhorável61.
No que diz respeito ao elemento da reciprocidade de créditos, tal significa que na relação jurídica inter partes devem existir dois credores e dois devedores. O detentor é devedor da obrigação de entrega de uma coisa certa mas é simultaneamente credor de uma obrigação de pagamento de quantia certa – prestação em dinheiro por despesas ou danos causados pela res. O devedor dessa obrigação pecuniária deve ser o credor da obrigação de entrega da coisa, a cargo do detentor.
52 V. XXXX, XXXXX XX x XXXXXX, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol.I., 4ª ed., Coimbra, Coimbra editora, p.779 e XXXXXX, XXXX XXXXXX XXXXX XX XXXXXXX, Direitos Reais, 2ª ed., Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p.470. V. tb. o ac. da RP de 16/05/07, relatado por Xxxxx Xxxxxxx in xxx.xxxx.xx.
53 Valora-se a boa fé num sentido subjectivo e não objectivo, como parâmetro de conduta contratual, v. ALARCÃO, RUI, Direito das Obrigações, Luanda, Ler e Xxxxxxxx, 1999, p.63 e 75 e ss e XXXXX, XXXXXX XXXXXXX XX XXXX, Teoria Geral do Direito Civil, por XXXXXXXX, XXXXXXX XXXXX x XXXXX, XXXXX XXXX, 4ªed, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p.97 e 125.
54 Exclui-se o furto ou roubo e não vale a locução mala fides superveniens non nocet.
55 Art.202.º, n.º1. É coisa jurídica, a que, tendo existência autónoma, é susceptível de apropriação exclusiva e é apta à satisfação de interesses e necessidades humanas, v. XXXXX, X. SANTOS, Direitos Reais, 4ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p.125 e 126.
56 Excluímos o direito de retenção sobre outros direitos, v. por todos, XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX e XXXXX, XXXXX XXXXXX DA, Garantias de Cumprimento, 5ª ed., Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p.227.
57 E não futura, art.211.º, v. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.102.
58 Arts.204.º e 205.º
59 Art.207.º
60 Apesar de a doutrina maioritária se manifestar neste sentido, a questão não é líquida. Sobre o assunto,
v. XXXXX, XXXXX, «Do Direito…, cit., p.10 e 11 e XXXXXXX, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.182, nota 255.
61 Art.756.º/c. Os arts.822.º e 823.º do CPC ditam uma lista de coisas absoluta e relativamente impenhoráveis, sendo que o critério da impenhorabilidade não se confunde com a classificação de coisas dentro e fora do comércio (art.202.º, n.º2) nem com o maior ou menor valor económico que possam ter nesse comércio, v. XXXXXX, XXXX XXXXXX XXXXX XX XXXXXXX, Direitos Reais, cit., p.59 e 469 e SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.183. A propósito das normas citadas do CPC, a nossa investigação tem por referência o DL n.º 44129, de 28/12/1961, com as últimas alterações da Lei n.º 29/2013, de 19/04. A lei n.º 41/2013, de 26/06, revoga aquele DL e aprova um novo CPC, que entrará em vigor no dia 01/09/13. Faremos, em lugar próprio, uma breve menção aos arts. do novo CPC (assumindo a designação de CPC/13), quando divergentes, do ponto de vista sistemático e/ou material, do CPC vigente até àquela data. Neste caso, serão os arts.736.º e 737.º do CPC/13 a mencionar os bens relativa e absolutamente impenhoráveis.
Não obstante a reciprocidade, os créditos são independentes, não existe direito de retenção por força de uma qualquer sinalagmaticidade genética e funcional entre eles, ou seja, nenhum é causa jurídica do outro62.
A doutrina aponta para a regra geral da certeza, exigibilidade e liquidez do crédito do detentor. Ou seja, é condição de exercício do ius retentionis, o vencimento do crédito garantido pela interpelação do credor – detentor ao seu devedor, caso estejamos perante obrigações puras63, ou pelo decurso do prazo na hipótese de obrigações a prazo64. Excluímos desde já, a possibilidade de retenção para garantir uma obrigação natural ou uma obrigação sujeita a termo ou condição suspensiva ainda não verificadas65.
Contudo, de acordo com o art.757.º, admite-se o direito de retenção para garantir um crédito mesmo antes do seu vencimento, desde que estejam verificadas as circunstâncias que impliquem a perda do benefício do prazo, podendo, inclusive, ser ilíquido66,ou seja, assumir um quantum ainda não determinado.
No tocante à inexigibilidade, a lei civil permite o exercício do direito de retenção para garantir o cumprimento de uma obrigação a prazo, apesar de o mesmo ainda não ter decorrido mas cujo vencimento possa ser antecipado por caducidade do prazo, quando o devedor ser torne insolvente, quando diminuem as garantias do crédito ou quando não forem prestadas as devidas67. Aliás, não é necessária a verificação efectiva da perda do benefício do prazo, bastando que se observem aquelas circunstâncias68.
Deste modo, alguns textos argumentam que a exigibilidade e a liquidez não representam critérios constitutivos do direito de retenção, mas tão-somente requisitos para a sua invocabilidade69.
62 V. XXXXXXX, XXXXXX X. XXXXXXXXX DE, Teoria…, cit., p.331.
63 Arts.777.º e 805.º, n.º 1 e v. XXXXXX, XXXXXXX, Das Obrigações em Geral, vol.II. 7ª ed., Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000-0000, cit., p.42.
64 Art.805.º, n.º 2/a e v. XXXX, XXXXX XX x XXXXXX, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol.I., cit., p.780 e XXXXXX, XXXX XXXXXX XXXXX XX XXXXXXX, Direitos Reais, cit., p.469.
65 V. XXXXX, XXXXX, «Do Direito…, cit., p.12.
66 V. o xx.xx STJ de 27/09/12, relatado por Xxxxxxxx Xxxxx in xxx.xxxx.xx .
67 Art.780, n.º 1. e v. XXXXXX, XXXX XXXXXX XXXXX XX XXXXXXX, Direitos Reais, cit., p.470.
68 O n.º 2, do art.780.º permite ao credor optar pelo reforço ou substituição de garantias se estas forem diminuídas. V. XXXX, XXXXX DE e XXXXXX, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol.I, cit., p.780.
69 V. XXXXXXX, XXXX XXXXX DE, «A Transmissão do Direito à Indemnização por Benfeitorias e a Caducidade do Direito de Retenção pelo facto da Venda Executiva», Themis, n.º 13, Ano VII, 2006, p.25. Questiona-se qual o momento da constituição do direito de retenção. O A. entende que nasce aquando da realização da despesa. O ponto não é líquido mas manifestamos a nossa preferência pelo pensamento de Xxxxxxx Xxxxxxxx, que argumenta no sentido de que o direito existe enquanto direito virtual desde o momento da entrega da coisa ao detentor, e torna-se efectivo a partir da mora no cumprimento do devedor, v. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.107.
Porque não basta a detenção de uma res e a existência de dois créditos e dois débitos recíprocos, importa debruçarmo-nos sobre um elemento verdadeiramente determinante: a conexão ou laço que interliga o crédito a garantir à coisa objecto de detenção, atribuindo unidade e razão de ser à garantia.
Note-se que a exigência de uma conexão delimita o campo de irradiação normativa da retenção. Este direito não pode conceder um poder ilimitado sobre os bens do devedor mas apenas sobre alguns que, devido à especial ligação existente com o crédito, é lícito reter como meio de pressão e garantia do seu pagamento70.
À luz do art.754.º, vimos a necessidade de uma conexão material e directa, entre o crédito e a coisa. Agora, o art.755.º menciona casos especiais cujo laço de ligação é puramente jurídico ou subjectivo. Assim, diz-se que a lei civil utiliza um duplo critério de conexão causal, partindo sempre da origem do crédito do detentor71. Vejamos cada um de per si.
A conexão material ou objectiva representa o critério genérico de admissibilidade do direito de retenção, pois é no art.754.º que encontramos a regra de princípio acerca dos pressupostos de existência do instituto.
Nas palavras de Xxxxxx Xxxxxxx e X. Xxxxx Xxxxxxx, é conditio sine qua non que o crédito do detentor tenha sido originado pela coisa, tenha sido causado por ela – debitum cum re junctum72.
A este propósito e, realçando a relação entre o débito e a coisa, a doutrina argumenta que tudo se procede como se a própria coisa fosse devedora, o crédito surge da coisa e por isso deve pesar sobre ela de modo a ressarcir o dano ou despesa que provocou. Tudo se passa como se estivéssemos perante uma obrigação propter rem73, o crédito segue e persegue a coisa até à sua completa satisfação74.
A que tipo de despesas e danos se refere a lei? No que diz respeito às despesas, Xxxxxxx Xxxxxxxx sublinha que, seguindo a letra do art.754.º, não é necessário que as despesas tenham contribuído para a conservação da res ou para aumentar o seu valor. Ou seja, não é legalmente exigida a verificação de benfeitorias necessárias ou úteis75.
70 V. XXXXX, XXXXX, «Do Direito…, cit., p.12.
71 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.187.
72 V. XXXXXXX, XXXXXX e XXXXXXX, XXXXXXX XX XXXXX, «Direito de Retenção», CJ, Ano 13, 1988, p.17.
73 Na obrigação real, o devedor é determinado em função da titularidade de um direito real. É esta situação activa que provoca a sua situação passiva de vinculação a uma obrigação ob rem, v. XXXXX, X. SANTOS, Direitos Reais, cit., p.85.
74 V. XXXXX, XXXXX, «Do Direito…, cit., p.13.
75 Art.216, n.º 1 e 2. V. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.92.
A A. acrescenta que estamos perante um direito real que atribui preferência ao retentor no pagamento do seu crédito para evitar o locupletamento injusto dos demais credores do devedor do retentor. Assumindo esta teleologia, a retenção fica desprovida de qualquer sentido na hipótese de despesas que não se concretizem num benefício objectivo na coisa, pois desaparece a ratio da preferência do retentor no concurso de credores. Nesta linha, a A. propõe uma interpretação restritiva da regra geral, de modo que só se entenda atribuído um direito de retenção a favor de quem realizou despesas que tenham permitido a sua conservação e não deterioração ou através das quais a res tenha aumentado de valor76.
Concordamos com a interpretação do art.754.º apresentada pela A., embora discordamos de que o fundamento da preferência seja sempre o de evitar o locupletamento injusto dos demais credores do titular da res77.
No tocante aos danos, entende-se que podem ser causados pela ou com a coisa, sendo que podem ser materiais ou pessoais, inclusive sobre animais de outrem78. Segundo Xxx Xxxxx, deste modo evita-se que o credor da coisa a faça desaparecer, e assim, deixe de indemnizar o lesante por falta de bens. O A. transpõe esta ideia para o art.1.º, n.º 2/b da proposta de articulado do seu anteprojecto, assumindo uma particularidade no n.º 3, do art.7.º. A preferência no pagamento do crédito daí emergente79 não prejudica, nesta hipótese, os créditos anteriores. Esta solução deve-se ao facto de, neste caso, a preferência assumir, em seu entender, traços vingativos80.
Quanto à conexão jurídica, o crédito do retentor emerge de uma relação obrigacional pré-existente entre o detentor e o seu devedor.
Sob influência alemã, o anteprojecto de Vaz Serra incluía este laço de ligação no art.1º, n.º2/c da proposta de articulado, como regra geral ao lado da conexão material81.
76 V. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.93 e 94. No mesmo sentido, v. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.190. Na jurisprudência, v. o ac. da RP, de 9/03/00, CJ, Ano 25, T.II., 2000, p.195.
77 V. infra 2.2.4.1, III.
78 Quanto aos três elementos da regra geral, v. os acs. do STJ de 18/12/70 (Anotação de Vaz Serra), RLJ, Ano 104, n.º 3460, 1972 e de 23/09/04, CJ/STJ, Ano 12, T.III, 2004, p.28 e da RL, de 16/11/99, XX, Ano 24, T.V, 1999, p.91.
79 Art.7.º, n.º 1 do articulado.
80 V. XXXXX, XXXXXXX XXXX XX XXXXX XXX, «Direito de Retenção», cit., p.57, 149 e 158.
81 Art.1.º, n.º 2/a e /b do articulado.
Todavia estabelecia a falta de ius distrahendi82, ou seja, perante tal conexão, o direito de retenção seria meramente obrigacional e não real de garantia83.
A proposta do A. foi transposta para o anteprojecto do CC em 196084, seguiu posteriormente para a sua primeira revisão ministerial, em 196285, mas não vingou e, na segunda revisão ministerial do CC86, o anteprojecto daí emergente retirou a al. correspondente a esta modalidade de conexão87.
À luz do Direito civil vigente, a doutrina entende estarmos perante casos excepcionais, insusceptíveis de aplicação analógica88/89.
Assim, gozam ainda do direito de retenção o transportador90, o albergueiro91, o mandatário civil92, o gestor de negócios93, o depositário94 e o comodatário95 pelos seus créditos decorrentes da actividade exercida em execução contratual e sobre as coisas respectivamente transportadas, trazidas para a pousada ou acessórios dela, adquiridas durante o mandato, depositadas ou emprestadas96.
A al.f, do n.º 1 do art.755.º, incide no âmbito de um contrato-promessa de transmissão ou constituição de direitos reais, onde se procedeu à traditio da coisa objecto imediato do contrato prometido, e pretende-se a satisfação do crédito relativo ao incumprimento daquele, segundo o art.442.º.
Importa salientar que o art.755.º, n.º 1 não afasta a possível aplicação da norma geral, verificando-se uma conexão material entre o débito do detentor e a coisa retida97.
82 Ou o poder de vender a coisa penhorada e fazer seu o valor obtido, na proporção do que for estritamente necessário para a satisfação do crédito garantido.
83 Art.7.º, n.º 1, a contrario sensu e v. XXXXX, XXXXXXX XXXX XX XXXXX XXX, «Direito de Retenção», cit.,
p.108.
84 Art.390.º, n.º 2/c, BMJ, n.º 99, 1960, p.228.
85 Art.749.º/c, BMJ, n.º 119, 1962, p.184.
86 Anos 1964-1966
87 V. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.91.
88 Art.11.º e v. XXXX, XXXXX XX x XXXXXX, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol.I., p.775.
89 O art.755.º é semelhante ao art.2.º da proposta de articulado de Xxx Xxxxx.
90 É sempre um transporte de coisas e não de pessoas, por via terrestre, aérea ou marítima. Havendo uma pluralidade de contratos, mas em que todos os transportadores se tenham obrigado em comum, o art.755.º, n.º 2 presume iure et de iure, que o direito de retenção é atribuído ao último, em nome próprio e em nome dos outros.
91 V. o Decreto Regulamentar n.º 36/97, de 25/09.
92 Arts.1157.º e ss 93 Arts.464.º e ss 94 Arts.1185.º e ss 95 Arts.1129.º e ss
96 Sobre o art.755.º, v. XXXXX, XXXXXXXX XX, O Concurso de Credores, cit., p.187 a 190.
97 A palavra ainda do art.755.º, n.º 1, reforça esta afirmação, v. XXXX, XXXXX DE e XXXXXX, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol.I., cit., p.776 e SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.194.
Anotamos a novidade do direito de retenção do promitente-comprador e do comodatário, além do abandono pelos privilégios mobiliários especiais atribuídos ao transportador, albergueiro e mandatário à luz do Direito civil anterior.
Ainda no CC, o art.1323.º, n.º 4, estatui a retentio a favor do achador de animal ou coisa móvel perdida, sobre este ou esta, para garantir o cumprimento do seu crédito a indemnização das despesas e dos prejuízos por eles causados, além do prémio, a cargo do seu proprietário98.
Fora do CC, o art.96.º, n.º 3 da EOA99 concede ao advogado o poder de prolongar a detenção dos documentos, valores e objectos dos respectivos clientes, após ter cessado a relação de mandato forense, para garantir o reembolso de despesas efectuadas e o pagamento dos honorários, salvo se tais coisas forem necessárias para efeitos de prova do direito do cliente ou se a retenção causar um prejuízo irreversível.
Neste caso, a doutrina acentua a falta de força da garantia devido às próprias coisas objecto de retenção100.
Na relação directa entre o detentor e o seu devedor – credor da coisa, existem um conjunto de direitos e deveres, aos quais se aplica o regime supletivo do penhor, com as devidas adaptações (arts.758.º e 759.º, n.º 3).
Laconicamente e seguindo de perto A. Xxxxxxxx Xxxxxxx000, todos os direitos do detentor se podem extrair de um único; o poder de licitamente recusar e prorrogar a detenção de uma coisa, obrigado a restituir, até integral pagamento do seu crédito contra o mesmo sujeito. De igual modo, todos os seus deveres jurídicos podem retirar-se de um só; a vinculação à entrega da coisa e seus acessórios, após a satisfação completa do seu crédito e despesas de conservação da res102.
O direito de retenção é acessório do crédito que garante. As vicissitudes verificadas no direito de crédito repercutem-se na retentio.
Por esta característica se deduz a transmissibilidade103 da garantia aquando de uma transmissão do crédito104 mas já não sem ela105.
98 Art.1323.º, n.º 3
99 Lei n.º 15/2005, de 26/01.
100 V. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.98.
101 À luz do Direito civil anterior, v. XXXXXXX, XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX, Do Direito…, cit., p.71 e 90.
102 Para mais desenvolvimentos, ibidem.
103 Activamente, inter vivos ou mortis causa.
104 Arts.577.º e ss
O direito de retenção é indivisível106. Segundo Belchior Sapuile, tal significa que pode ser retida e executada a totalidade da coisa ou partes que a constituam, para garantir uma parte ou a integralidade do crédito, para além de que, o direito de retenção subsiste sem alterações até satisfação total do crédito107.
Segundo o art.761.º, o direito de retenção extingue-se pelas mesmas causas de cessação do direito de hipoteca108 e ainda pela entrega da coisa. Assim, pode extinguir- se pela extinção da obrigação que garantiu, por prescrição, por perda total da coisa retida ou por renúncia do retentor109. No tocante a esta última causa, avulta uma discussão doutrinal e jurisprudencial acerca do problema de saber se a renúncia involuntária à detenção, sem intenção abdicativa, por coacção moral ou física, ou ainda, pela penhora da coisa em sede de processo executivo, provoca a cessação do direito de retenção, ou se deveremos considerar como renúncia, no sentido do art.730.º/d, unicamente a renúncia voluntária, inclusive tácita110.
O direito de retenção cessa ainda, quando a outra parte prestar caução suficiente111.
A doutrina e jurisprudência acrescentam uma última causa de extinção que não consta do art.730.º mas que consiste numa causa geral de extinção das obrigações: a confusão112.
105 Art.760.º, diversamente do art.676.º.
106 Note-se que a lei não utiliza um critério de delimitação quantitativa da retentio. Sobre o problema do abuso de direito de retenção, v. XXXXX, XXXXX, «Do Direito…, cit., p.21 e os acs. da RL (com decisões opostas) de 15/12/11, CJ, Ano 36, T.V, 2011, p.135 e de 26/01/12, relatado por Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxxx in xxx.xxxx.xx.
107 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.231 a 234. V. tb. XXXXXXX, XXXXXX E
XXXXXXX, XXXXXXX XX XXXXX, «Direito de Retenção», cit., p.22, que sublinha a manutenção do direito de retenção do empreiteiro pela totalidade do crédito, sobre o prédio destinado à venda em propriedade horizontal, apesar da venda e ocupação de algumas das fracções.
108 Art.730.º
109 Art.730.º/a a /d
110 Neste sentido, entendemos que se pronuncia a melhor doutrina, v. XXXXX, XXXXX, «Do Direito…, cit., p.24, XXXX, XXXXX DE e XXXXXX, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol.I., cit., p.784 e na jurisprudência, os acs. do STJ de 27/11/08, CJ/STJ, Ano 16, T.III, 2008, p.154, de 26/06/01, XX/STJ, Ano 9, T.II, 2001,
p.136 e da RL de 04/02/10, relatado por Xxxxxxx Xxxxxxxxx in xxx.xxxx.xx . Na defesa de que qualquer modalidade de renúncia implica a extinção do direito, v. ASCENSÃO, XXXX XX XXXXXXXX, Direito Civil: Reais, Coimbra, Coimbra Editora, Reimp. da 5ª ed., 2012, p.550.
111 Art.756.º/d.V. XXXXXX, XXXX XXXXXX XXXXX XX XXXXXXX, Direitos Reais, cit., p.472. V. tb. o ac. da RP, de 12/10/09, CJ, Ano 34, T.IV, 2009.
112 Art.868.º. V. o ac. do STJ, de 25/03/99, CJ/STJ, Ano 7, T.II, 1999, p.42.
3.2. Experiências Juscomparatísticas
Consoante as épocas e os costumes de cada lugar, o direito de retenção foi desde a sua génese, apresentado de múltiplas formas.
Entre nós, o legislador civil de 1966 optou por seguir a técnica normativa de positivação de um direito geral de retenção, acrescentando alguns casos especiais. De um ponto de vista juscomparatístico, quais as experiências jurídicas seguidoras do actual modelo português? Quais as tendências das actuais e demais legislações civis?
A nossa investigação centra-se numa breve aproximação a cinco experiências jurídicas estrangeiras incluídas nos sistemas jurídicos da Civil Law: as experiências espanhola, italiana, alemã, francesa e da Comunidade autónoma da Catalunha113/114.
No sistema jurídico espanhol, o CC actual115 estatui pontualmente acerca do
derecho de retención.
O mesmo é expressis verbis atribuído ao possuidor de boa fé, por despesas extraordinárias ou úteis116 e ao usufrutuário, por despesas também extraordinárias, por ele realizadas mas a cargo do proprietário117/118/119.
Seguidamente, os arts.1600.º, 1730.º e 1780.º apresentam a locução retener en prenda, respectivamente a favor de um prestador de obra em coisa móvel pelo preço da obra realizada120, do mandatário pelas despesas necessárias executadas por ele mas legalmente a cargo do mandante e pelos prejuízos causados no cumprimento do
113 Esta escolha foi pessoal mas também ditada por um critério técnico. Importa demonstrar como cada técnica normativa se desenvolve nos vários ordenamentos jurídicos da Europa continental.
114 As traduções da literatura e normas estrangeiras que se seguem são maioritariamente da nossa responsabilidade mas encontram igualmente a sua fundamentação nos textos jurídicos referidos em cada momento.
115 O diploma legal foi aprovado pelo Decreto Real de 24/07/1889 e vigora desde o dia 16/08 do mesmo ano. Os preceitos legais referidos aquando da exposição desta matéria, sem menção do diploma a que pertencem, integram este código.
116 Art.453.º.
117 Arts.502.º, §3 e 522.º.
118 O art.1747.º priva o comodatário de um direito de retenção.
119 Fora do Código, o art.5.º, n.º 3 da Lei n.º 40/2002, de 14/11,referente ao contrato de estacionamento de veículos, prevê um direito de retenção do veículo, a favor do titular do estacionamento, para garantir o crédito relativo ao seu pagamento.
120 V. Sentencia do Tribunal Supremo de 24/06/41 apud XXXXXX, X. XXXXX, «El Derecho de «Retener en Prenda» del Articulo 1.600 del Código Civil y su Problemática Respecto de los Vehículos de Motor», RDPriv, T.L, 1966, p.1077.
contrato121, e do depositário, igualmente pelas despesas de conservação e pelos danos causados na execução contratual122.
Porque os preceitos legais unem conceitos próprios do derecho de retención e da prenda, emerge o problema de saber se os mesmos atribuem um verdadeiro direito de retenção123 ou se representam um penhor tácito ou ex lege124.
Enquanto fonte de Direito, a doutrina desvendou os elementos essenciais do direito de retenção e traços diferenciadores de figuras afins125. Contudo, persistem dúvidas a propósito da sua natureza jurídica e do seu âmbito de aplicação.
Seguindo Viñas Mey126, o derecho de retener afasta-se do penhor e da hipoteca por várias razões mas destacamos uma, particularmente importante: a ausência de ius distrahendi. Na lei civil, o direito de retenção é considerado como a mera faculdade sem direito a receber pelo valor obtido na venda, a correspectiva satisfação do retentor127.
Ainda na óptica do A.128, o derecho de retención é composto por três elementos; a detenção de uma coisa corpóreo e fungível, a existência de um crédito certo, vencido e exigível do devedor desta mesma coisa e a verificação de uma conexão entre este crédito e aquela coisa.
À luz das normas legais analisadas, o crédito do retentor emerge tanto de despesas como de danos e a conexão exigida poderá ter carácter material ou jurídico129.
No que diz respeito à coisa, observamos uma discussão doutrinal acerca da sua titularidade. Ao passo que alguns autores argumentam no sentido de que, é conditio sine qua non a coisa ser propriedade do credor da sua entrega, outros apontam para a desnecessidade deste critério130.
121 Arts.1728.º, 1729.º e 1730.º. A mesma faculdade é concedida ao gestor de negócios, caso o dono do mesmo ratifique a sua gestão, art.1892.º.
122 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.67. O A. realça que idêntico tratamento é extensivo ao albergueiro.
123 V. XXXXXXXX apud XXXXXX, X. XXXXX, «El Derecho…, cit., p.1075 e 1076. Neste sentido, parece-nos tender CAPITÁN, XXX XXXXX, «El Derecho de Retención: su Situación Legislativa en el Sistema Español de Garantias. Especial Referencia a su Constitución y Eventual Oposición Judicial», Garantías Reales Mobiliarias en Europa, Madrid; Barcelona, Xxxxxxx Xxxx, Ediciones Jurídicas y Sociales, 2006, p.533.
000 X. XXXXXXX X XXXXXXX, XXXX PEÑA E XXXXX XXXXX apud XXXXXX, X. XXXXX, «El Derecho…, cit.,
p.1075.
125 V. XXXXXX, X. XXXXX, «El Derecho…, cit., p.1077.
126 V. XXX, X. VIÑAS, «El Derecho de Retención», RDPriv, T. IX, 1922, p.105.
127 Id., p.103 e 113.
128 Id., p.110.
129 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.67.
130 V. XXXXXX, X. XXXXX, «El Derecho de…, cit., p.1077.
O ordenamento jurídico italiano também adoptou a técnica de positivação do direito de retenção em disposições legais dispersas pelo Codice Civile131.
No instituto da colação, o art.748.º, §4 estatui o direito de retenção a favor do donatário de um imóvel, para assegurar o reembolso das despesas e melhoramentos efectuados por ele.
Na exposição da enfiteuse132, o art.975.º, §2 permite ao enfiteuta reter o fundo até ao efectivo reembolso das melhorias nele realizadas. Acrescenta-se a necessidade de o enfiteuta fornecer em juízo, uma prova genérica do respectivo crédito.
Nos arts.1006.º e 1011.º, a lei concede ao usufrutuário a faculdade de reter a res usufruída mas obrigada a restituir no final do usufruto, para reforçar o crédito relativo a despesas de reparações que decidiu efectuar, ou a antecipações de pagamento de impostos e outros encargos, a cargo do proprietário de raíz.
O art.1152.º permite ao possuidor de boa fé reter a coisa reivindicada pelo seu proprietário. Tal como no art.975.º, é imposta a prova genérica em juízo do crédito do possuidor de boa fé numa acção de reivindicação.
A doutrina e jurisprudência italianas consideram o art.1152.º um paradigma do diritto di ritenzione, isto porque nele estão contidos todos os pressupostos da faculdade de ritenere133.
Nesta linha, evidenciam-se três elementos essenciais para o exercício do direito de retenção do possuidor de boa fé: a posse134, dois créditos recíprocos e uma conexão entre o crédito do possuidor e a coisa objecto de posse135.
Tal como na lei civil espanhola, existe uma zona cinzenta constituída por alguns preceitos em que avulta a discussão acerca da presença ou ausência do instituto.
Tal sucede, por ex., nos privilégios especiais possessórios, quando o art.2756.º,
§3 concede a faculdade de ritenere a coisa móvel objecto de privilégio para garantir os créditos e despesas de melhoramento e conservação da mesma, e quando o art.2761.º,
§4 atribui ao transportador, ao mandatário e ao depositário, o poder de continuar na detenção das coisas móveis respectivamente transportadas, adquiridas na execução do
131 O diploma data de 1942. Os preceitos legais referidos na exposição desta matéria, sem menção do diploma a que pertencem, integram o CCit.
132 Entre nós, esta figura desapareceu.
133 Id., p.177.
134 V. a sentenza de 26/04/83, n.º 2867, da Corte di Cassazione, apud Codice Civile Annotato con la Giurisprudenza, a cura di Xxxxxxx Xxxxxxxxxx, Xxxxxx Xxxx, 00x ed., Napoli, Xxxxxxxxx-Xxxxxx, 2009, p.1101.
135 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.79 e D’Xxxxxx, Xxxxxx, «Ritenzione (Diritto di)», Noviss. Dig. It., vol.XVI, 3ª ed., 1957, p.177.
mandato ou depositadas, enquanto não for pago o crédito privilegiado tocante às despesas de transporte, à execução do mandato ou do depósito.
As dúvidas instalam-se porque a lei cria uma íntima relação entre a situação da retenção e do privilégio, sendo necessária a prévia detenção da coisa, que pode seguir para venda, sabendo que no art.2741.º, enunciativo das causas legítimas de preferência no pagamento do crédito, é omisso o direito de retenção136.
Nesta medida, alguma doutrina entende que existem dois géneros de retenção: a ritenzione semplice e a ritenzione privilegiata137. A primeira representa o direito de retenção tal como o temos observado até então, a segunda manifesta-se naqueles dois artigos relativos aos privilégios especiais possessórios, como um caso especial em que a retenção é necessária para dar força ao privilégio138. A contrario sensu, outros autores apontam para a urgência na distinção entre o direito de retenção e os privilégios, perfeitamente autónomos139.
Anotamos que o sistema jurídico italiano recorre muitas vezes às potencialidades do ius retentionis para colmatar possíveis falhas das causas legítimas de preferência, embora não lhe reconheça a força que lhe é própria entre nós; o ius distrahendi e a sua oponibilidade erga omnes140/141.
Em termos genéricos142, é conditio sine qua non do diritto di ritenzione, a presença de um credor da restituição de uma coisa e de um seu devedor que é simultaneamente credor de despesas causadas por ela. O crédito garantido deve ser certo, actual e exigível e a coisa deve ser infungível e susceptível de posse. Xxxxxx X’xxxxxx considera ainda indispensável, o credor da coisa ser seu proprietário143.
Diferentemente dos ordenamentos jurídicos que fomos analisando, no Direito Alemão e mais precisamente, no Bürgerliches Gesetzbuch144, o legislador civil utilizou
136 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.85.
137 V. XXXXX, XXXXXX, «Ritenzione (dir. priv.)», ED, vol.XL, Guioffrè Editore, 1989, p.1382.
138 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.86.
139 Neste sentido, v. X’XXXXXX, XXXXXX, «Ritenzione (Diritto di)», cit., p.173.
140 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.71.
141 O art.2235.º proíbe o direito de retenção a favor do profissional liberal, a não ser pelo estrito período necessário para a tutela do direito, de acordo com as leis profissionais. Sobre o assunto, v. XXXXXXXX, XXXXXXXX, «Professioni intellettuali», ED, vol.XXXVI, Varese, Giuffrè Editore, 1987, p.1080.
142 V. X’XXXXXX, XXXXXX, «Ritenzione (Diritto di)», cit., p.174 e ss e SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO
LOYA E, Do Direito…, cit., p.71e 80.
143 Id., p.175.
144 Ou BGB de 1900. Os preceitos referidos na exposição desta matéria, sem menção do diploma a que pertencem, integram este código.
a técnica de positivação de uma norma geral que estatui acerca dos pressupostos e elementos caracterizadores do Zurückbehaltungrecht145.
Assim, encontramos os §§273 e 274 do diploma em apreço que regulam o conteúdo e os efeitos jurídico do direito de retenção.
Para além destes, existem outras disposições dispersas pelos vários Livros do BGB, igualmente referentes ao ius retentionis.
A lei concede o direito de retenção ao arrendatário (§556b) pelos créditos relativos a rendas pagas em excesso ou obtidos nos termos dos §§536a e 539, quando a renda se torne exigível.
Seguidamente, o direito de retenção é atribuído ao achador de uma coisa perdida, contra o seu proprietário, para reforçar o crédito derivado das despesas necessárias de conservação da res ou realizadas no objectivo de encontrar o seu titular, ou ainda correspondente ao prémio pelo achamento exigido pelo achador ao proprietário (§§971 e 972).
O §972 estatui por remissão aos §§1000 a 1002, que concedem o ius retentionis
ao possuidor.
Relativamente a este, a retentio reforça o crédito correspondente às despesas realizadas com a coisa, desde que a posse não tenha sido adquirida mediante um acto ilícito, intencionalmente praticado. Segundo o §1001, é necessário recorrer à via judicial através da propositura de uma acção de dívida contra o proprietário, e que este aprove as despesas ou readquira a coisa. Ou seja, se o possuidor restituir a coisa ao seu proprietário sem previamente propor a acção contra ele para o pagamento do crédito, ou sem ter obtido a aprovação daquelas despesas relativamente às quais o crédito foi constituído, ele extingue-se no prazo de um ou seis meses, consoante esteja em questão uma coisa móvel ou imóvel (§1002, n.º 1)146.
Proposta a acção, o possuidor pode convidar o proprietário a aprovar as despesas num determinado prazo e executar a coisa, caso tenha sido ultrapassado o prazo fixado sem resposta do proprietário (§1003, n.º 1) ou após o decurso do segundo prazo estabelecido após o trânsito em julgado da confirmação do quantum das despesas, que foi atempadamente contestado pelo proprietário de acordo com o primeiro prazo (§1003, n.º 2)147.
145 Direito de retenção.
146 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit, p.130.
147 Ibidem
O §2022 permite ao possuidor de bens da herança reter a coisa obrigada a conferir, para reforçar as garantias de cumprimento do seu crédito, relativo a despesas e encargos da res em causa148.
Acerca dos §§273 e 274149, a lei civil alemã reconhece duas hipóteses de direito de retenção. A primeira, estatuída no n.º 1 do §273, basta-se com uma conexão jurídica entre o crédito e a coisa, a segunda, estabelecida no seu n.º 2, exige uma conexão objectiva entre ambos.
O direito pode ser convencionalmente afastado150 ou extinto mediante a prestação de uma garantia que não seja a fiança. Aliás, nunca poderá ser titulado por quem obteve a detenção ou posse por acto ilícito (§273, n.º 2 e §1000).
Apontamos para o silêncio da lei relativamente à titularidade da coisa pelo credor da sua restituição, para efeitos de atribuição do direito em causa151.
Por último, realçamos o §274, indicativo de que também no Direito Alemão, o direito de retenção está desprovido de ius ditrahendi, pois apenas no âmbito de uma acção judicial intentada pelo credor da coisa é que o devedor poderá excepcionar152 o seu cumprimento invocando o direito de retenção. O exercício deste direito consiste numa condenação ao cumprimento simultâneo dos dois créditos recíprocos.
No Direito Francês, a Reforma das Sûretés de Março de 2006, criadora de um Liv. IV novo do Code de Xxxxxxxx, quebrou com a tradição seguida pelo mesmo até então. Vimos supra que o modelo francês se caracterizava pela técnica de positivação pontual do direito. Actualmente, foi codificada no art.2286.º do seu CC153, uma norma de referência do droit de rétention154/155.
Todavia, para além desta norma de princípio, a doutrina156 e jurisprudência apontam para várias hipóteses de direito de retenção contidas no Código.
148 Id., p.131.
149 Id., p.126 e ss.
150 Id., p.136.
151 Id., p. 132.
152 Ibidem
153 O CCf data de 1804. Actualmente é composto por cinco Livros e o Liv. IV – Das garantias, foi criado pela Ordonnance 2006-346, de 23/03/06.
154 V. XXXXXX, XXXXXXXX, «La Réforme du Droit des Sûretés Un Livre IV Nouveau du Code Civil», JCP, n.º 13, 2006, p.598.
155 Os preceitos referidos na exposição desta matéria, sem indicação do diploma a que pertencem, integram o CCf.
156 V. XXXXXX, XXXXXXXX e XXXXXXXXXX, XXXXXXXX, Droit Civil Les Sûretés La Publicité Foncière, 6ª ed, Xxxxx, Xxxxxx, 0000, p.526.
Entre outras normas, o art.570.º reconhece o direito de retenção ao especificador que usou materiais de um terceiro para criar uma coisa de outra espécie, quando este a reivindique, de modo a obter o reembolso do seu trabalho. O art.1612.º permite ao vendedor guardar a coisa objecto da venda, até ao pagamento do seu preço pelo comprador. Por sua vez, o art.1673.º possibilita ao comprador o poder de prorrogar a detenção da coisa, apesar de o vendedor exercer o seu direito de resgate, até ao cumprimento integral da correspectiva obrigação de reembolso do preço da coisa, das despesas e reparações efectuadas pelo comprador157.
Quanto à caracterização do instituto, da norma geral (art.2286.º) extraem-se três elementos: a detenção, o crédito causador da retenção e a conexão entre este e aquela158. Note-se o silêncio da lei civil a propósito da (des) necessidade de o credor da restituição da coisa ser o seu proprietário.
Relativamente à detenção, exige-se classicamente a detenção da coisa, sendo que, a sua perda voluntária implica uma renúncia ao direito de retenção159. A res deve ser corpórea, embora se tenha assistido a uma flexibilização deste requisito160. Por regra, as coisas materiais devem estar no comércio jurídico161, apesar de não importar o seu valor económico ou a sua utilidade intelectual ou material. Exige-se, igualmente, a boa fé do retentor, uma detenção lícita e regular162. É necessária e suficiente a mera detenção163.
Quanto ao crédito a garantir, deve ser certo, exigível e líquido. Observamos contudo, a maleabilidade dos dois últimos requisitos164.
O art.2286.º apresenta três tipos de lien de connexité: jurídica ou intelectual (n.º2), material ou objectiva (n.º3) e convencional (n.º1) 165/166.
157 Inversamente, o art.1885.º exclui o direito de retenção a favor do comodatário.
158 V. XXXXXX, XXXXXXXX e XXXXXXXXXX, XXXXXXXX, Droit…, cit., p.529.
159 Art.2286.º, in fine
160 V. XXXXX, XXXXXXXX, Le Droit…, cit., p.78 e 79 e XXXXXX, XXXXXXXX x XXXXXXXXXX, XXXXXXXX, Droit…, cit., p.530. Aliás, o art.102.º da Lei n.º 96-597, de 02/07/96, estende o direito de retenção a créditos e instrumentos financeiros.
161 Ficam fora do objecto do direito, por ex., o corpo humano, v. XXXXXX, XXXXXXXXX, «Le Droit de Rétention en Droit Positif», RTDciv. Année 1981, p.549, SEUBE, XXXX-XXXXXXXX, Droit des Sûretés, 6ª ed., Paris, Dalloz, 2012, p.233 e XXXXXX, XXXXXXXX e XXXXXXXXXX, XXXXXXXX, Droit…, cit., p.531. Modernamente a doutrina aponta para o direito de retenção sobre coisas fora do comércio, desde que não contrário à ordem pública e indispensáveis ao devedor do crédito a garantir, v. XXXXXXX, XXXXXXXXX, Xxxxxxx et Garanties du Crédit, 8ª ed., Paris, Lextenso éditions, 2011, p.539 e MAROTTE, XXXXXX,
«Quelques Précisions quant aux Biens susceptibles de Rétentions», Recueil Dalloz 2000, n.º 16, p.365.
162 V. XXXXXXXX, XXXXXX e XXXXXXX-XXXXXX, XXXXXXX «Propriété et Droits Réels», RTDciv., n.º 2, 85e Année, 1986, p.377, XXXXX, XXXX-XXXXXXXX, Droit…, cit., p.234 e XXXXXX, XXXXXXXX x XXXXXXXXXX,
XXXXXXXX, Droit…, cit., p.532 e 533.
163 V. XXXXXX, XXXXXXXX e XXXXXXXXXX, XXXXXXXX, Droit…, cit., p.530.
164 Id., p.534 e 535.
Também o Direito civil francês priva o direito de retenção do poder de seguir a coisa e de satisfazer o seu crédito mediante a sua venda com preferência no concurso de credores. O retentor não carece da via judicial para exercer o direito mas perde-o a partir da penhora da coisa num processo executivo da sua iniciativa, onde assume a posição jurídica de credor comum167.
O droit de rétention é indivisível, acessório e transmissível168. Extingue-se quando se verificar a extinção do poder de bloqueio da coisa169.
As dúvidas acerca da sua natureza jurídica não foram afastadas pela Reforma das Sûretés. A própria localização sistemática do art.2286.º perturba a tentativa de qualificação do instituto. Assim, continua presente a problemática qualificação de direito real sui generis, porque desprovido de droit de poursuite e de préférence170.
Por último, importa retardarmo-nos sobre o Direito das coisas da Comunidade Autónoma da Catalunha, organicamente sistematizado na Ley n.º 5/2006, de 10/05, referente ao Liv.V – Direitos reais, do CCCat171/172.
A legislação autónoma da Catalunha afasta-se do legislador estatal espanhol e aproxima-se da opção legislativa portuguesa de 1966. Localizado nos arts.569-3.º a 569- 11.º, na secção relativa às garantias possessórias173, o ius retentionis é um verdadeiro direito real de garantia, ao lado do penhor, da hipoteca e da anticrese174.
A definição do instituto estatuída no art.569-3.º, permite-nos induzir três elementos essenciais: a posse de boa fé de uma coisa a non domino, a presença de dois créditos e a interligação entre o crédito do retentor e a coisa móvel175 ou imóvel176.
165 Inclui o credor pignoratício, num penhor com desapossamento e o credor beneficiário da antichrèse ou
gage immobilier – penhor imobiliário.
166 Também, o n.º 4 do preceito estatui o direito de retenção para o credor pignoratício, num penhor sem desapossamento.
167 V. Xxxxx, Xxxxxxx e XXXXX, XXXXXX, Xxx Xxxxxxx Xx Xxxxxxxxx Xxxxxxxx, Xxxxx, Xxxxxxxxx, 0000, p.178 e SEUBE, XXXX-XXXXXXXX, Droit…, cit., p.237.
168 V. XXXXX, XXXXXXXX, Le Droit…, cit., p.255.
169 Id., p.244 a 251 e 264 a 266.
170 V. XXXXX, XXXX-XXXXXXXX, Droit…, cit., p.237 e ss.
171 Esta Lei data de 22/06/06. A Primeira Lei do CCCat (Lei n.º 29/2002, de 30/12) referente ao Liv. I, foi publicada no dia 6/02/2003.
172 Os preceitos referidos na exposição desta matéria, sem menção do diploma a que pertencem, integram o CCCat.
173 Liv.V, Xxx.XX – Direitos reais limitados e Cap.IX – Direitos reais de garantia.
174 Arts.569-1.º e 569-2.º, n.º 1/b.
175 A mesma pode ser de pouco valor, art.569-10.º, n.º 1.
176 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.155.
O art.569-4.º prevê a conexão jurídica (al.c), a conexão material (als.a e .b) mas também um direito de retenção emergente de uma obrigação de pagamento de juros ou qualquer outra que a lei expressamente reforça com aquela garantia (als.d e .e).
Outra especificidade reside no art.569-6.º, n.º 1 e 2. É reconhecida a oponibilidade erga omnes do direito e precisa-se o dever de cuidado e diligência na conservação da coisa cargo do retentor.
A constituição do direito assume trâmites que diferem consoante a natureza da
res retida.
Num primeiro momento, o retentor pretende coagir o seu devedor ao cumprimento do crédito. Para tal, é elemento constitutivo da garantia177, a notificação notarial do devedor, do proprietário da coisa se for outra pessoa e dos eventuais titulares de outros direito reais sobre ela, se proceder a decisão de retener, a liquidação praticada e a determinação do valor das obrigações em dívida, segundo o art.569-4.º 178.
Para as coisas móveis de pouco valor e segundo o art.569-10.º, n.º 2, basta uma notificação por fax, por carta com aviso de recepção ou por qualquer outro meio que possa confirmar de modo suficiente a sua recepção.
No tocante a coisas imóveis, aplicam-se as normas jurídicas da legislação hipotecária179 e, no que respeita a coisas móveis sujeitas a registo, aplica-se o art.569- 7.º, n.º 5 que remete para o art.569-8.º, n.º 3/b e /c.
Assim, o direito de retenção está sempre sujeito a registo quando incide sobre coisas imóveis ou móveis sujeitas a registo. Para as coisas móveis sujeitas a registo, o retentor deve dirigir-se ao notário para iniciar o procedimento e lavrar em escritura pública, a constituição da garantia ou, se proceder, a resolução judicial correspondente. Seguidamente, o notário deve solicitar ao Registo da Propriedade, o certificado de domínio e dos direitos inscritos que pesam sobre a res.
Após a notificação notarial, os notificados podem opor-se judicialmente, no prazo de dois meses a contar dessa data180. Ultrapassado este tempo, o retentor pode
177 V. CAPITÁN, XXX XXXXX, «El Derecho de Retención…, cit., p.536.
178 V. art.569-5.º, n.º 1.
179 V. o art.2.º, n.º 2 da Ley Hipotecaria Española de 1946, onde podemos considerar a inscrição do acto de constituição do direito de retenção sobre um imóvel. Para além desta legislação, aplica-se o art.569-5, n.º 3 e 4 do CCCat, quando o imóvel for una vivenda familiar. Depois da notificação, o retentor pode requerer ao seu devedor, a outorga da escritura de reconhecimento do direito de retenção para efeitos de inscrição no Registo da Propriedade, v. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.159.
180 Art.569-5.º, n.º 1, in fine.
num segundo momento, realizar o valor da coisa retida, sendo que neste âmbito, o regime jurídico é mais uma vez diferenciado, consoante a natureza da coisa.
Se ela for móvel e de pouco valor, decorrido um mês após a notificação sem resposta de qualquer notificado, o retentor pode dispor livremente da coisa, tendo o proprietário direito ao remanescente do crédito devido e das despesas de conservação e alienação, caso aquela seja vendida181.
Nas restantes hipóteses, para a coisa móvel ou imóvel, os arts.569-7.º e 569-8.º permitem a venda directa por eles ou por um terceiro. Na falta de acordo, terá lugar a subasta pública notarial. Caso não haja ofertas na primeira, far-se-á uma segunda e, se o insucesso perdurar, pode o retentor fazer sua a coisa, outorgando uma carta de pagamento do crédito e assumindo os gastos do procedimento.
Estamos perante uma verdadeira garantia real directa182 do cumprimento das obrigações e não, tal como o realça Xxx Capitán183 acerca do direito espanhol estatal, face a uma mera excepção processual do devedor.
De todas as experiências jurídicas percorridas, notamos que nem sempre o legislador opta pelas mesmas formas de tutela do crédito e que o nosso Direito Civil desprende-se das demais experiências jurídicas euro-continentais. Vejamos qual a força que, entre nós, é reconhecida ao ius retentionis perante terceiros, enquanto autêntico direito real de garantia.
4.Uma Dupla Função Aliada a um Amplo Campo de Irradiação; A Eficácia Erga Omnes
Após uma aproximação ao conteúdo do direito de retenção na relação creditícia entre o retentor e o seu devedor, e após uma breve abordagem de algumas experiências jurídicas estrangeiras, urge concentrarmo-nos de novo no nosso Direito e alargar o horizonte para uma reflexão a propósito dos efeitos jurídicos do direito de retenção em relação a terceiros.
181 Art.569-10º, n.º 3 e 4
182 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.158.
183 V. CAPITÁN, XXX XXXXX, «El Derecho de Retención…, cit., p.532.
4.1. A Faculdade de Incomodar Versus a Garantia com Preferência no Pagamento
Pelos arts.604.º, n.º 2, 758.º e 759.º do CC184, reconhecemos que, entre nós, o instituto atribui ao seu sujeito activo uma autêntica garantia real do cumprimento do seu crédito. Constitui portanto, uma causa legítima de preferência.
Assim, a doutrina e a jurisprudência referem-se a uma dupla função do instituto: a função compulsória ou de coerção e a função de garantia.
Neste âmbito, merece particular atenção a reflexão desenvolvida por J. Xxxxxx xx Xxxxx. O A. aponta para o direito de retenção como um meio de coerção defensiva, ao lado da exceptio de non adimpleti contractus, pois o retentor goza do poder defensivo de compelir o seu devedor a cumprir a obrigação. Esta pressão psicológica licitamente exercida revela ser uma forma extremamente eficaz de ver satisfeito o crédito quando o património do devedor for capaz de responder pela dívida e o valor económico da res detida for bastante mais elevado do que o crédito devido ou ainda, quando a mesma for de extrema importância para o devedor, em termos profissionais ou pessoais185.
Por isso, alguns autores qualificam o direito de retenção como uma faculdade defensiva de incomodar, um meio arcaico mas forte e eficaz de cumprimento da obrigação186.
O ius retentionis aproxima-se de um instituto vizinho: a exceptio de non adimpleti contractus. Porém, as figuras não são confundíveis, desde logo pelo seu fundamento. Ao passo que a exceptio surge como forma própria de cumprimento simultâneo das obrigações nos contratos bilaterais e, por isso, é representativa de um sinalagma funcional187, o direito de retenção em nada se funda num nexo de correspectividade existente entre os dois créditos, mas sim e apenas, numa sua reciprocidade188.
J. Xxxxxx xx Xxxxx acrescenta que, o direito de retenção constitui um ultimum subsidium da exceptio, na medida em que o credor só recorre àquele quando já realizou
184 Doravante e no restante iter da nossa investigação, os preceitos legais referidos sem indicação do diploma legal, integram o nosso CC actual, salvo menção em contrário.
185 V. XXXXX, XXXX XXXXXX DA, Cumprimento e Sanção pecuniária Compulsória, Reimp. da 4ª ed., Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p.339, 345.
186 V. XXXXX, XXXXX, «Do Direito…, cit., p.4 e 5.
187 Art.428.º, n.º 1
188 V. XXXXX, XXXX XXXXXX DA, Cumprimento…, cit., p.348 a 350.
a sua prestação, tendo inviabilizado a possibilidade de recorrer a esta para ver satisfeito o seu crédito.
Cumulativamente à faculdade de incomodar, o nosso Direito civil atribui ao ius retentionis uma função de garantia contra a impotência económica do devedor, primeiramente vertida no art.604.º, n.º 2, de seguida localizada nos arts.758.º e 759.º 189. A própria inserção sistemática do instituto no Cap. respeitante às garantias especiais das obrigações, confirma a doutrina que realça a crescente preocupação do nosso legislador pela consagração e intensificação desta função, de modo a considerar o direito de retenção como uma supergarantia190, sobrepondo-se à percepção de um mero pouvoir de blocage191.
O que significa o direito de retenção garantir especialmente o cumprimento do crédito do retentor? Em caso de não cumprimento voluntário da obrigação, o Direito assegura a satisfação da razão creditícia, tão completa quanto possível, concedendo a qualquer credor de um devedor, a faculdade de realização coactiva da prestação.
Referimo-nos à acção creditória, concretizada numa acção cível declarativa de condenação à prestação devida e numa acção executiva192. A execução forçada alarga-se à totalidade dos bens do devedor, por isso se fala em garantia comum dos credores que consiste no património do devedor193. A este património concorrem todos os seus credores em posição paritária194, salvo verificação na titularidade de um deles, de uma causa legítima de preferência, na qual se inclui o direito de retenção195.
Nesta linha, o instituto sob apreciação garante especialmente o crédito no sentido de reforçar a garantia comum de todos os credores, de modo a que o seu titular possa escapar ao tratamento paritário que é subjacente àquela. Fá-lo de um modo qualitativo porque incide sobre uma coisa certa e determinada196, permitindo que o credor goze de preferência no pagamento do seu crédito perante os demais credores do
189 Id., p.346.
190 V. XXXXX, XXXXX, «Do Direito…, cit., p.12.
191V. XXXXX, XXXXXXXX, Le Droit…, cit., p.204.
192 Art.817.º e arts.2.º, n.º 2, 4.º, n.º 3 e 45.º e ss do CPC (arts.2.º, 10.º e 703.º e ss do CPC/13).
193 V. XXXXXX, XXXXXXX, Das Obrigações em Geral, vol.I, 10ª ed., Coimbra, Almedina, 2000, p.129 a 131 e 158.
194 Arts.601.º e 604.º, n.º 1
195 Art.604.º, n.º 2
196 Se admitirmos que a coisa possa ser de terceiro não devedor (o que veremos infra), o reforço é também ele quantitativo.
mesmo devedor197. Qualifica-se o direito de retenção como uma garantia real e não pessoal198/199.
Do seu regime jurídico, podemos determinar qual será a ordem de pagamento para efeitos de graduação de créditos numa acção executiva, onde haja concurso de credores.
Quando a retenção for exercida sobre uma coisa móvel, o seu titular goza dos direitos e está sujeito aos deveres, nos mesmos termos que o credor pignoratício200. Assim, o retentor tem direito a realizar o seu crédito com o valor da coisa retida, preferindo sobre os demais credores201. Todavia, preferem sobre ele e são primeiramente graduados, os créditos garantidos por privilégios imobiliários202 e outros privilégios especiais anteriormente adquiridos203.
Quando a retenção for exercida sobre um imóvel, o seu titular goza da faculdade de execução da coisa e de satisfação do seu crédito, com preferência sobre os demais credores do mesmo devedor, nos mesmo termos que o credor hipotecário204. Além de que, o seu crédito é graduado acima de uma hipoteca, mesmo que anteriormente registada205. Logo, na hierarquia de credores é primeiramente graduado o titular de um privilégio imobiliário especial, ou o beneficiário de um privilégio mobiliário especial anteriormente constituído, após o qual encontramos o retentor e só depois o sujeito activo de uma hipoteca, mesmo que registada em momento anterior ao exercício da retentio206.
197 V. o ac. da RP de 06/04/06, relatado por Xxxx Xxxxxx in xxx.xxxx.xx e o ac. da RG de 23/10/02, relatado por Xxxxxxx Xxxxxxxxx in xxx.xxxx.xx.
198 O reforço destas garantias é, inversamente, quantitativo. Visa-se acrescentar mais património para a satisfação de um débito, sem preferência quanto ao seu pagamento. É o caso da fiança (arts.627º e ss) e da garantia autónoma.
199 Recordamos que as garantias reais estão sujeitas ao princípio do numerus clausus (art.1306.º). Além do direito de retenção, a lei tipifica como tal a consignação de rendimentos (arts.656.º e ss), o penhor (arts.666.º e ss), a hipoteca (arts.686.º e ss) e os privilégios creditórios especiais (arts.733.º e ss).
200 Art.758.º
201 Arts.666.º e 675.º
202 Que são sempre especiais, arts.735.º, n.º 3 e 751.º
203 Vale para estes unicamente a regra prior in tempore potior in iure, devido à ausência de registo, art.750.º.
204 Art.759.º, n.º 1
205 Art.759.º, n.º 2
206 V. o ac. do STJ de 26/06/01, cit., p.137, o ac. da RG, de 20/11/12, relatado por Xxxxxxx Xxxxxx in
xxx.xxxx.xx e o ac. da RC, de 07/02/06, relatado por Xxxxx Xxxx in www.dgsi-pt.
4.2. Extractos de Realidade Expressivos da Natureza do Direito
O direito de retenção escapa à localização sistemática da categoria dos Direitos das Coisas, enquanto ramo do Direito objectivo, privado comum e patrimonial, no Liv.III do CC. Olhando para a classificação tripartida dos direitos reais, aquele Liv. dispõe acerca da posse e de direitos reais de gozo207, deixando os direitos reais de garantia208 e de aquisição209 dispersos pelos restantes Liv. do Código210.
Como direito subjectivo, a realidade de um direito define-se essencialmente pelo facto de incidir sobre uma coisa certa e determinada – ius in re. Xxxxx, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx argumenta que os direitos reais envolvem um poder imediato sobre uma coisa corpórea à qual fica inerente, permitindo ao seu titular um aproveitamento jurídico, e por vezes também material, da mesma211. Esta caracterização genérica dos direitos reais recorda-nos o desenvolvimento efectuado em torno de um elemento caracterizador do direito de retenção; a detenção de uma res e o especial lien de conexité entre esta e o crédito, aliás intensamente associado ao princípio de que os direitos reais incidem sobre uma coisa actual, certa e determinada, ou seja, ao princípio da especialidade ou individualização212.
Optamos pelo desenvolvimento de três características do direito real de retenção: a inerência, a sequela e a preferência213.
No tocante à inerência, notamos uma ligação particularmente intensa entre o direito e a coisa retida, de modo que não possa haver separação entre eles, sob pena de extinção do direito e nascimento de um novo cujo objecto passa a ser outra res214.
A sequela ou droit de suite significa que o direito segue e persegue a coisa, independentemente da sua transmissão posterior a outro sujeito. Ora, no direito de retenção, o direito de seguimento manifesta-se pelo poder de vender a coisa e fazer seu o seu produto, independentemente de posteriores transmissões da mesma a terceiros215.
207 Embora não todos, v. o direito de habitação periódica regulamentado pelo DL n.º 275/93, de 05/08.
208 No Liv.II – Direito das obrigações.
209 Por ex., para alguma doutrina, o contrato-promessa ou pacto de preferência, ambos com eficácia real, também do Liv. II.
210 V. XXXXX, X. SANTOS, Direitos Reais, cit., p.16.
211 V. XXXXXX, XXXX XXXXXX XXXXX XX XXXXXXX, Direitos Reais, cit., p.45.
212 V. XXXXX, X. SANTOS, Direitos Reais, cit., p.28.
213 V. XXXXXX, XXXX XXXXXX XXXXX XX XXXXXXX, Direitos Reais, cit., p.473.
214 Id., p.48.
215 Id., p.49. V. tb. o ac. da RP de 09/11/10, XX, Ano 35, T.V, 2010, p.190 e o ac. da RE de 02/07/09, relatado por Xxxxxx Xxxxxxx in xxx.xxxx.xx.
A exigência legal de penhorabilidade da coisa objecto de retenção e o facto de o retentor gozar dos meios de defesa da posse – embora não seja uma verdadeira ubi rem meam, ibi vindico por não estar em causa o reconhecimento e reivindicação da propriedade – indiciam este traço de realidade.
O direito de preferência faculta ao retentor uma satisfação prioritária do seu crédito no concurso de credores, perante direitos de crédito ou direitos reais posteriormente constituídos ou registados216. Aliás, vimos supra qual seria a graduação do direito de retenção, num concurso de credores com outros direitos reais de garantia sobre a mesma coisa, consoante o objecto seja uma coisa móvel ou imóvel.
Recordamos que mais traços de realidade do direito de retenção presenciam na caracterização geral do instituto. A sua acessoriedade, a sua transmissibilidade a terceiros e a sua indivisibilidade são indícios próprios deste tipo de garantias, lembrando os princípios da transmissibilidade217 e da totalidade218, enquanto princípios estruturantes dos direitos reais219.
Importa sublinhar a ausência da necessidade de registo do facto constitutivo do direito de retenção, apesar de poder incidir sobre uma coisa imóvel ou móvel sujeita a ele220.
Por isso, alguns Aa. qualificam o instituto como uma garantia quase oculta221.Vejamos a ratio desta afirmação.
Entre nós vigoram os princípios da causalidade e da consensualidade, de acordo com os quais é necessária e suficiente uma justa causa para a constituição, transmissão e extinção de um direito real, formando-se desta forma um sistema rigorosamente do título. Basta o acto jurídico pelo qual se estabelece a vontade de transmitir ou constituir o direito real para se produzirem os efeitos correspondentes222. O princípio da
216 A doutrina menciona os arts.604.º, 407.º e 408.º como manifestações da preferência que, apesar de não ser exclusiva dos direitos reais, é caracterizadora dos mesmos, v. XXXXX, X. XXXXXX, Direitos Reais, cit., p.22, nota 37 e XXXXXX, XXXX XXXXXX XXXXX XX XXXXXXX, Direitos Reais, cit., p.50, 53 e 55.
217 Inter vivos ou mortis causa.
218 Deve considerar-se objecto do direito a totalidade da coisa, inclusive partes componentes e integrantes.
219 V. XXXXX, X. SANTOS, Direitos Reais, cit., p.28 e 32.
220 V. XXXX, XXXXX XX x XXXXXX, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol.I., cit., p.774.
221 V. XXXXX, XXXXX, «Do Direito…, cit., p.12.
222 É portanto suficiente um título – negócio jurídico ou decisão judicial, sem a necessidade de um modo (registo ou entrega da coisa objecto do direito), v. os arts.408.º, n.º 1, 879.º/a, 954.º/a e 1317.º/a e v. CARVALHO, ORLANDO DE, Direito das Coisas, Coimbra, Colecção Perspectiva Jurídica/ Universidade, 1977, p.270.
publicidade dos direitos reais torna-se imprescindível para compensar a insegurança e incerteza potencialmente gerada no tráfico jurídico por este sistema.
São tradicionalmente apontadas três formas de publicidade: o formalismo negocial, o registo predial e a posse. O registo é referido como uma publicidade provocada ou racionalizada e dá a conhecer ao público em geral os direitos reais sobre imóveis e móveis sujeitos a ele223.
A posse permite uma publicidade espontânea e assegura aos terceiros não intervenientes naquela situação jurídica a confiança necessária nos factos correspondentes ao direito relativo a coisas móveis não sujeitas a registo224/225.
Por regra, o registo assume efeitos meramente consolidativos, permitindo dar publicidade ao facto gerador de efeitos reais, válido e eficaz inter partes segundo as regras de Direito civil e alargando a produção dos seus efeitos perante terceiros226. Assim, porque o direito de retenção não está sujeito a registo227, é consensualmente aceite a produção dos seus efeitos jurídicos em relação a terceiros, independentemente daquele228.
A doutrina maioritária argumenta no sentido de que a publicidade do direito de retenção está sempre assegurada pela detenção material da res, realçando a publicidade de facto derivada dos actos materiais e objectivos correspondentes à detenção – retenção, facilmente (pelo menos potencialmente) reconhecíveis aos olhos do público em geral. Aliás, visto estarmos perante uma garantia ex lege, estará sempre assegurada a sua visibilidade pela própria lei, verificando-se semelhante situação nos privilégios creditórios especiais229.
A contrario sensu, Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx manifesta a insuficiência de publicidade do instituto, ilustrando com o direito de retenção exercido sobre um terreno, um pinhal ou uma propriedade agrícola a ser cultivada por alguém, alertando para a
223 Arts.1.º e 104.º do CRPred vigente, aprovado pelo DL n.º 224/84, de 06/07 e republicado pelo DL n.º533/99, de 11/12. V. tb. art.1.º, n.º1 do CRBM vigente e aprovado pelo DL n.º 277/95, de 25/10.
000 X. XXXXXXXX, XXXXXXX DE, «Terceiros para Efeitos de Registo», BFD, vol.LXX, 1994, p.98, XXXXX,
A. XXXXXX, Direitos Reais, cit., p.44 e XXXXXXX, XXX XXXXX XXXXXXX DA, «Publicidade Espontânea e Publicidade Provocada de Direitos Reais sobre Imóveis», CDPriv., n.º 20, 2007, p.14.
225 Tanto o possuidor como o titular registal gozam de uma presunção iuris tantum de titularidade do direito correspondente ao registo ou aos poderes de facto exercidos, art.1268.º, n.º 1 do CC, art.7.º do CRPred e art.2.º do CRBM.
226 Arts.1.º, 4.º, n.º 1 e 5.º do CRPred e v. XXXXXXX, XXX XXXXX XXXXXXX DA, «Publicidade…, cit., p.14.
227 O art.2.º, n.º 1 do CRPred não sujeita a garantia a regist.
228 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.242.
229 Neste sentido, entre outros, XXXXX, M. J. XX XXXXXXX, Direito das Obrigações, cit., p.981 e X. Lourenço Soares apud MADALENO, XXXXXXX, A Vulnerabilidade…, cit., p.104.
potencial má fé do proprietário – neste caso devedor do retentor, que pode ocultar uma retenção através da aparência de um comodato ou arrendamento230.
4.3. Em Especial, a Eficácia Erga Omnes e a Posição Jurídica do Terceiro Interveniente na Relação Creditícia
Reconhecer o ius retentionis como um autêntico direito real de garantia implica afirmar a sua eficácia absoluta ou erga omnes231. A nota verdadeiramente diferenciadora dos direitos reais e de crédito consiste, por regra232, na eficácia em relação a terceiros dos primeiros e na eficácia relativa ou meramente inter partes dos segundos233.
Os textos jurídicos afirmam tradicionalmente que os direitos reais são iura excludendi omnes alios, ou seja, o seu exercício exclusivo por uma pessoa impõe a todos os restantes membros de uma comunidade jurídica um dever de o respeitar234.
Recordamos que existem três teorias acerca da natureza jurídica do direito real. A teoria clássica fundamenta o direito numa ligação exclusiva entre a coisa e o sujeito. Ex adverso, a teoria personalista assenta na intersubjectividade como elemento fundamental do Direito, por isso, o direito real consiste numa relação entre um sujeito e os restantes indivíduos da comunidade jurídica, mais precisamente, consiste num poder de excluir as outras pessoas de ingerências incompatíveis com o direito sobre ela.
A teoria ecléctica ou mista procurou conciliar as duas teorias contrapostas, considerando dois lados do direito: um interno e outro externo. O lado interno é referente ao poder directo e imediato sobre a coisa, o lado externo diz respeito à relação intersubjectiva entre o titular do direito e os restantes sujeitos obrigados a respeitá-lo235.
Nesta linha, Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxx Xxxxx define o direito real como um poder de exigir de todas as outras pessoas uma atitude de respeito pelo exercício de determinados poderes sobre a coisa, sendo que este lado externo deixa um espaço […]
230 V. XXXXX, XXXXXX XXXXXXX DE, O Direito…, cit., p.26.
231 V. o ac. da RP de 13/09/07, relatado por Xxxxxx xx Xxxxx in xxx.xxxx.xx.
232 Para os seguidores da teoria da eficácia externa das obrigações, esta bipartição não assenta no critério da oponibilidade, pois ambos gozam de uma eficácia geral, v. XXXXXXXX, X. MENEZES, Direitos Reais, Lisboa, Lex, Reimp. de 1979, 1993, p.309.
233 V. XXXXXX, XXXX XXXXXX XXXXX XX XXXXXXX, Direitos Reais, cit., p.14.
234 V. XXXXX, XXXXXX XXXXXXX XX XXXX, Direitos Reais, Compil. XXXXXXX, XXXXXX x XXXXX, XXXXXX,
Coimbra, Almedina, 2010, p.44.
235 Existem Aa. que acentuam ora a face externa, ora a face interna, como predominante. Sobre as três teorias, v. XXXXX, X. XXXXXX, Direitos Reais, cit., p.47 a 53.
preenchido por considerações do tipo de poderes que se está legitimado para exercer sobre a coisa.236
Seguindo esta teoria, o lado externo do direito real implica afirmar a atribuição do poder de exercer o direito perante todos os outros, obrigados a respeitar esse exercício237. Isto é, o terceiro, “estranho” ao poder exercido sobre a coisa está vinculado a um dever genérico de abstenção de qualquer actividade potencialmente lesiva do exercício do direito real – uma obrigação passiva universal ou dever geral de respeito – que em caso de violação origina uma situação jurídica específica, ou melhor, um dever jurídico de indemnização a cargo desse terceiro, agora titular de um correspectivo direito relativo – de crédito238. Da eficácia absoluta dos direitos reais, decorre naturalmente a característica da sequela e da prevalência239.
O CC de 1966 é quase transparente acerca da intenção legislativa em estatuir um direito real de retenção. Dizemos quase devido ao particular entendimento de Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx.
O A. expressa que o CC actual veio reafirmar a natureza pessoal do instituto, pois o seu art.754.º exprime tão só um direito obrigacional de retenção. Nesta linha, o retentor só pode excepcionar o cumprimento da sua obrigação de entrega da coisa, contra o devedor, revelando uma função compulsória e de garantia particular ou pessoal240.
Não partilhamos a opinião do A.. Tivemos a oportunidade de realçar supra, o quanto a teoria geral do ius retentionis, consagrada no actual CC, é fortemente marcada pela realidade do instituto. Não nos parece sustentável a sua qualificação como direito relativo mas com preferência no pagamento, inclusive contra uma hipoteca anteriormente registada.
À luz dos arts.754.º e ss do CC, o direito de retenção consiste num poder absoluto oponível a terceiros da relação creditícia241. A que terceiros nos referimos?
236 Id., p.38.
237 V. XXXXX, XXXXXX XXXXXXX XX XXXX, Direitos Reais, cit., p.44.
238 V. ASCENSÃO, XXXX XX XXXXXXXX, Direito Civil: Reais, cit., p.612.
239 V. XXXXX, X. SANTOS, Direitos Reais, cit., p.18.
240 V. XXXXX, XXXXXX XXXXXXX DE, O Direito…, cit., p.31 e ss.
241 Recordamos que, melhor do que o nosso Direito, o CCCat estatui expressis verbis a oponibilidade erga omnes do derecho de retención. Tal clarividência não consta do CC espanhol, italiano, francês e alemão. Contudo, existe uma acentuada discussão doutrinal em torno do tema, v. no Direito italiano, D’XXXXXX, XXXXXX, «Ritenzione (Diritto di)», cit., p.173, v. no Direito francês, SAVATIER, R.,
«Rétention», Nouveau Dictionnaire Pratique de Droit, T.II, Paris, Dalloz, 1933, p.379 e 380.
Xxxxxxx Xxxxxxxx ilustra a oponibilidade erga omnes com várias modalidades de terceiros: o que adquiriu a coisa, o que a reivindica ou os credores deste ou daquele242.
Nesta óptica, julgamos poder classificar os terceiros de forma bipartida. Entendemos ser terceiro aquele que, não sendo devedor do retentor, é titular de outro direito real, seja ele um direito de propriedade ou outro direito real de gozo ou um direito real de garantia, conflituante com o exercício do ius retentionis.
Numa primeira nota, é terceiro o posterior adquirente da coisa retida243, o seu reivindicante, ou o sujeito activo de outro direito real de gozo colidente com o direito de retenção. Numa segunda nota, é terceiro qualquer credor beneficiário de uma garantia real sobre a res retida pelo retentor, porque titulares de um direito conflituante com o exercício e preferência atribuída pelo ius retentionis244.
Se o exercício de um direito real de terceiro sobre uma coisa retida se torna potencialmente incompatível com o simultâneo exercício do direito de retenção sobre a mesma, de que modo e segundo que critérios se resolve o conflito de direitos reais? A resposta é manifestamente insatisfatória se nos ficarmos pelo simples reconhecimento da oponibilidade erga omnes. Importa reflectir sobre os termos e variantes dessa mesma oponibilidade.
Xxxxx Xxxxx alerta para o crescente nascimento de uma super-garantia, factor de perturbação no jogo de outras garantias245. Propomo-nos estudar quais as específicas hipóteses em que este jogo se verifica, em que medida esta perturbação é realmente provocada e quais as melhores soluções de Direito, numa tentativa de equilibrar os conflitos de interesses subjacentes.
242 V. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.101.
243 V. o ac. do STJ de 25/02/86 (Anotação de Xxxxxxx Xxxxxx), RLJ, n.º 3812, Ano 124, 1992, p.339 a 343.
244 V. XXXXX, XXXXXXX XXXX XX XXXXX XXX, «Direito de Retenção», cit., p.131 e PACHECO, XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX, Do Direito…, cit., p.36
245 V. XXXXX, XXXXX, «Do Direito…, cit., p.12.
PARTE SEGUNDA
A OPONIBILIDADE DO IUS RETENTIONIS A TERCEIRO PROPRIETÁRIO DA
Coisa Retida ou Titular de Outro Direito Real de Gozo Sobre Ela
1. Introdução ao Problema
Propomo-nos estudar a potencial colisão entre o direito de retenção e o direito de propriedade ou outro direito real de gozo. Para tal, devem presenciar o nosso iter reflexivo duas premissas.
Num primeiro momento, importa reter que, enquanto garantia do cumprimento das obrigações, o direito de retenção pode incidir sobre um bem de terceiro não devedor, tal como sucede obrigatoriamente na fiança ou na garantia autónoma e, facultativamente, na hipoteca ou no penhor246. Num segundo momento, recordamos que o direito de propriedade é tendencialmente absoluto, sujeito portanto às limitações que a própria lei impõe, em nome da tutela de outros interesses juridicamente relevantes e para a salvaguarda do conteúdo de direitos com ele conflituantes247.
Porque o Direito existe para a resolução de conflitos de interesses originados numa comunidade jurídica, escolhemos duas factie species onde o conflito de direitos reais acima exposto é particularmente patente. Assim, discutiremos a nossa problemática à luz de duas situações jurídicas: a do subempreiteiro perante o dono da obra e, a do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de um direito real, que obteve a traditio da coisa objecto mediato do contrato preliminar com eficácia meramente obrigacional, perante o posterior adquirente da mesma res ou de outro direito real de gozo sobre ela.
Sublinhamos a principal diferença entre as duas situações. Na primeira, a titularidade do direito de propriedade ou de outro direito real do terceiro – dono da obra antecede a qualidade de subempreiteiro, logo, verifica-se num momento cronologicamente anterior ao possível direito de retenção deste. Notamos estar em
246 V. art.821.º, n.º 2 do CPC (art.735.º, n.º 2 do CPC/13).
247 Art.1305.º, in fine.
presença de uma situação tripartida mas linear onde são celebrados dois contratos sucessivos no tempo; uma empreitada e uma subempreitada.
Na segunda, o terceiro adquire a coisa posteriormente à celebração do contrato- promessa. Estamos perante uma situação tripartida mas triangular onde o mesmo sujeito celebra com contraentes distintos um contrato-promessa e um contrato de transmissão de um direito real impeditivo do cumprimento daquele.
2. A Retenção Exercida pelo Subempreiteiro e a Posição de Terceiro – Dono da Obra
2.1. O Problema da Existência e Natureza Jurídica dos Direitos do Subempreiteiro Contra o Dono da Obra
Na óptica de uma análise da posição jurídica do subempreiteiro perante o dono da obra, urge aclarar o sentido do problema subjacente. Perante uma situação de incumprimento da obrigação de pagamento do preço da obra pelo empreiteiro, parcial ou totalmente realizada pelo subempreiteiro, poderá ser reconhecido o exercício legítimo do direito de retenção por este sobre aquela obra? Numa tentativa de dar resposta a esta interrogação, confrontamo-nos com o seguinte obstáculo: se reconhecermos um direito de retenção do subempreiteiro contra o empreiteiro, a sua eficácia, naturalmente absoluta, legitima a sua oponibilidade a um específico terceiro: o originário dono da obra que contratou unicamente com o empreiteiro.
Assim, depreendemos que reconhecer um autêntico direito de retenção ao subempreiteiro colide com princípios jurídicos fundamentais do Direito das Obrigações mas também com o direito real mais amplo, o direito de propriedade, classicamente referido como ius utendi, fruendi et abutendi248. Vejamos.
É conditio sine qua non de uma subempreitada, a prévia celebração de um contrato de empreitada249. A lei define o mesmo como um contrato com duas manifestações de vontade que prosseguem uma finalidade jurídica comum mas de
248 Arts.1302.º e ss
249 Arts.1207.º a 1230.º
conteúdos opostos. Uma vincula-se à realização de uma obra – o empreiteiro e a outra – dono da obra250 obriga-se a uma prestação pecuniária, previamente acordada entre ambos251.
A obrigação principal do empreiteiro é unanimemente qualificada como uma obrigação de resultado, pelo que a sua vinculação contratual reside na obtenção daquele fim acordado252.
O empreiteiro goza de liberdade na escolha da forma e dos meios adequados para a execução dessa obrigação253, podendo celebrar contratos de trabalho ou, de um modo genérico, recorrer a auxiliares254. É precisamente neste âmbito que é lícito ao empreiteiro celebrar contratos de subempreitadas com terceiros.
O art.1213.º, n.º 1, define a subempreitada como um negócio jurídico bilateral em que uma das partes – o subempreiteiro, vincula-se perante a outra – o empreiteiro, à realização de parte ou da totalidade da obra a que este está obrigado, perante o originário dono da obra. Acrescentamos à noção legal, a vinculação do empreiteiro à realização de uma obrigação pecuniária (pagamento do preço) a favor do subempreiteiro como contrapartida do serviço por ele prestado.
Através da noção legal de subempreitada, facilmente compreendemos estar perante um tipo de subcontrato, entendido como um contrato subordinado ou derivado a outro, neste caso ao contrato de empreitada, em termos de existência, vida e destino255. Por isso, a doutrina considera a empreitada como o contrato de base, principal ou de primeira mão, e a subempreitada como o contrato derivado, subordinado ou de segunda mão256.
Existem dois contratos de empreitadas distintos e autónomos mas que prosseguem a mesma finalidade económica: a realização do interesse patrimonial do originário dono da obra257. Aplica-se à subempreitada a disciplina legal da empreitada sendo que, ao abrigo deste subcontrato, o empreiteiro assume a posição de dono da obra
250 Relativamente à legitimidade do comitente, a doutrina considera que, além do titular de um pleno direito de propriedade e, dentro dos limites da lei, o locador, o locatário, o proprietário de raíz, o usufrutuário ou o comproprietário, têm legitimidade para serem partes de um contrato de empreitada, v. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, Contrato de Empreitada, Coimbra, Almedina, 1994, p.72.
251 Art.1207.º A empreitada é uma modalidade de contrato de prestação de serviços, arts.1154.º e 1155.º.
252 Arts.1207.º e 1208.º e id., p.74 e 88.
253 Id., p.83.
254 V. XXXXXXXXX, X. XXXXXXXX, «Da Subempreitada», DJ, vol.XII, T.I, 1998, p.79.
255 V. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, O Subcontrato, Reimp. da ed. de 0000, Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000,
p.20 e 36 e MESSINEO, XXXXXXXXX, «Contratto derivato – Sub-contrato», ED, vol.X, Varese: Giuffrè Editore, 1962, p.80.
256 V. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, O Subcontrato, cit., p.20 e 36.
257 Id., p.37.
e o subempreiteiro adquire a qualidade de empreiteiro do empreiteiro258/259. A subempreitada representa uma aquisição derivada e constitutiva, pois o empreiteiro concede ao subempreiteiro a faculdade de uso da sua posição contratual num segundo contrato e que deriva do primeiro260.
P. Xxxxxx Xxxxxxxx demonstra que os dois contratos estão funcionalmente ligados e conexos, pois o nascimento da subempreitada depende dos direitos do empreiteiro advindos da empreitada, além de que os direitos e obrigações do subempreiteiro são fortemente marcados pelo conteúdo contratual da empreitada, sem prejuízo de as partes poderem estipular cláusulas diversas261.
Em ambos os lugares contratuais, existem dois co-contratantes. Na empreitada são partes o empreiteiro e o dono da obra, na subempreitada são contraentes o mesmo empreiteiro e o subempreiteiro. Ou seja, apesar de o art.1213.º, n.º 1 permitir que a subempreitada tenha por objecto a totalidade da obra igualmente objecto da empreitada, o empreiteiro não fica desonerado e continua adstrito à sua prestação principal perante o dono da obra. Estamos perante uma sobreposição de vínculos contratuais, subsistindo o primeiramente constituído entre o dono da obra e o empreiteiro262.
Porque os direitos e obrigações originados por ambos os contratos são inter partes, regem-se pelos princípios do Direito das Obrigações, principalmente pelo princípio da relatividade dos contratos263. Aliás, a própria noção de obrigação em sentido técnico264 implica que o credor seja o único titular activo do direito correspectivo daquela obrigação265. Só ao devedor pode ser exigida pelo credor a prestação debitória266 e só o credor tem o direito à prestação pelo devedor267.
É manifesto o carácter relativo das relações empreiteiro – dono da obra e empreiteiro – subempreiteiro, unicamente vinculativas destas pessoas, contrariamente ao carácter absoluto dos direitos reais, logo do direito de retenção.
258 V. XXXXXXXXX, X. XXXXXXXX, «Da Subempreitada», cit., p.90.
259 Contudo, identificaremos sempre as partes de cada contrato como dono da obra, empreiteiro e subempreiteiro.
260 V. XXXXX, XXXXXX XXXXXXX XX XXXX, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p.363.
261 V. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, O Subcontrato, cit., p.37 e 197.
262 V. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, Direito das Obrigações: Parte Especial: Contratos, Reimp. 2ª ed., Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p.405.
263 Art.406.º, n.º 2.
264 Art.397.º
265 Por regra, a prestação realizada a terceiro não extingue a obrigação, art.770.º.
266 Não obstante poder ser prestada por terceiro, art.767.º.
267 V. XXXXXX, XXXXXXX, Das Obrigações em Geral, vol.I, cit., p.73 a 75.
Por tudo isto, o subempreiteiro é terceiro ao contrato de empreitada e o dono da obra é também ele terceiro à subempreitada. Falta um vínculo directo e imediato que relacione o dono da obra ao subempreiteiro268.
Ora, se apesar da conexão entre os dois contratos, não existe qualquer ligação directa entre quem é parte de um deles mas é terceiro do outro, ou seja, entre o dono da obra e o subempreiteiro, como construir uma justificação de Direito para o exercício de um direito de retenção do último, pelo incumprimento do pagamento do preço a cargo do empreiteiro, e sobre uma coisa – obra de um terceiro que é estranho ao crédito garantido? Deveremos considerar como conditio sine qua non do exercício de um direito de retenção, o devedor do retentor ser proprietário da coisa retida?
Cumpre, em primeiro lugar, encontrar a fundamentação legal para a atribuição do direito de retenção para, em segundo lugar, resolver o conflito de exercícios de direitos reais, originado entre o direito de retenção do subempreiteiro e o direito de propriedade ou outro direito real de gozo do originário dono da obra.
Tentemos, portanto, enquadrar a facti species do subempreiteiro na norma do art.754.º ou do art.755.º, para afirmarmos a concessão ou negação do direito real a favor do sujeito de Direito.
Desde já, recordamos que a garantia incide sobre uma coisa corpórea, material e alheia ao retentor. Concomitantemente, ficam excluídas da nossa análise as subempreitadas de obras incorpóreas269, além de obras móveis em que os materiais sejam fornecidos no todo, ou na sua maior parte, pelo próprio subempreiteiro270.
Por assumirem especial relevância na realidade jurídica, centramos o objecto da nossa investigação nas subempreitadas de obras de construção, demolição, modificação, reparação ou simples conservação de uma coisa imóvel271 – nomeadamente prédios urbanos272 destinados ao regime da propriedade horizontal – mas também, embora com
268 V. XXXXXXXXX, X. XXXXXXXX, «Da Subempreitada», cit., p.81.
269 V. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.243.
270 Nesta hipótese, aplicando os arts.1212.º, n.º 1 e 1325.º, à subempreitada, o subempreiteiro é, ou torna- se, por acessão automática, titular dos materiais até aceitação da obra pelo empreiteiro, v. a propósito da empreitada, TELLES, XXXXXXXXX XXXXXX, «O Direito de Retenção no Contrato de Empreitada», O Direito, Anos 106-119, 1974/1987, p.21 e 22, nota 8.
271 O art.1212º, n.º 2, estatui a transmissão da propriedade dos materiais fornecidos pelo empreiteiro (logo também do subempreiteiro), à medida da sua incorporação no solo que pertença ao dono da obra, v.XXXXXXXXX, X. XXXXXXXX, «Da Subempreitada», cit., p.101.
272 V. XXXXXX, XXX XXXXX, Curso de Direitos Reais, 2ª ed., rev. e aum., S. Xxxx do Estoril, Principia, 2007, p.255.
menor ênfase, nas subempreitadas de obras móveis, e desde que os materiais sejam total ou maioritariamente fornecidos pelo dono da obra273.
Sabendo da intrínseca aproximação das situações jurídicas do empreiteiro e do subempreiteiro, consideramos indispensável uma prévia discussão em torno do direito de retenção do próprio empreiteiro contra o originário dono da obra, por falta de pagamento do preço convencionado no contrato de empreitada274 para, em caso de resposta afirmativa, procedermos ao desenvolvimento da situação do subempreiteiro, com as suas especificidades275.
Assim, e apesar de no debate académico ter logrado impor-se a tese afirmativa276, importa referir os argumentos positivos e negativos da atribuição do ius retentionis ao empreiteiro.
A doutrina e jurisprudência, manifestamente contra o seu reconhecimento, expõem dois principais argumentos: um formal e outro material. Primeiro, do art.755.º consta uma lista de retentores legais derivada de uma conexão jurídica, na qual não encontramos o empreiteiro277. Segundo, também não se aplica o art.754.º porque o crédito a garantir consiste num preço convencionalmente estipulado e não nos danos ou despesas causados pela res. Sobre o assunto, a doutrina citava um ac. da RL que, em
273 Se forem fornecidos pelo empreiteiro, ele continua a ser o seu proprietário até aceitação da obra pelo dono da mesma o que, naturalmente, só se verificará posteriormente ao correcto cumprimento da subempreitada. Assim, perante uma situação de inadimplemento do empreiteiro, a admitir o exercício do direito de retenção pelo subempreiteiro, não haverá conflito de direitos reais entre este e o originário dono da obra, pois o devedor do retentor continua a ser proprietário da coisa retida, v. XXXXXXXXX, X.XXXXXXXX, «Da Subempreitada», cit., p.101. Esta situação é excluído da nossa análise. Contudo, se o problema da tutela do crédito do subempreiteiro surgir após a aceitação da obra mobiliária sucessivamente pelo empreiteiro e dono da obra mas antes da sua entrega pelo subempreiteiro, considera- se objecto do nosso estudo, pois a titularidade da obra passou da sua esfera jurídica para a do empreiteiro e, seguidamente para o dono da obra.
274 Também nesta hipótese, só nos queremos referir à empreitada de coisa móvel ou imóvel, desde que os materiais sejam fornecidos pelo dono da obra, totalmente ou na sua maior parte, art.1212.º. Analogicamente ao referido supra, a propósito da subempreitada, se o problema da tutela do crédito do empreiteiro de obra mobiliária surgir após a sua aceitação pelo dono da obra mas antes da entrega, consideramos este caso compreendido no objecto da nossa investigação, pois a titularidade da obra passou para o seu dono.
275 V. XXXXXXXXX, X. XXXXXXXX, «Da Subempreitada», cit., p.100.
276 A nossa jurisprudência actual é consensual, v. os acs. do STJ de 10/05/11, relatado por Xxxxxxx Xxxxxxxx, de 03/06/08, relatado por Xxxxxxx xx Xxxxxxxxxxx, e de 05/05/05, relatado por Xxxxxxxx xx Xxxxxxx todos in xxx.xxxx.xx, da RL de 26/01/12 e de 15/12/11, ambos já citados, e de 06/05/00, CJ, Ano 25, T.II, 2000, da RP de 04/06/12, relatado por Xxxxxxx xx Xxxxxxxx in xxx.xxxx.xx e de 15/10/02, relatado por Xxxxxxxx Xxxxxxxxx in xxxx://xxxxxxxx-xxxxxxx.xxxx.xx/xxx/-00000000.
277 V. XXXX, XXXXX XX x XXXXXX, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol.II, 3ª ed., rev. e actual., Coimbra, Coimbra Editora, 1986, p.799.
05/06/84278, decidiu negar o direito de retenção de um empreiteiro com este preciso fundamento, contrariamente à jurisprudência firmada pelo STJ, no ac. de 19/11/71279.
Neste sentido, Pires de Lima e Xxxxxxx Xxxxxx citavam o anteprojecto de Xxx Xxxxx, na medida em que propunha a conexão subjectiva a par da conexão material, o que, como sabemos, não logrou impor-se no anteprojecto resultante da segunda revisão ministerial280.
Nos casos de empreitadas de construção de imóveis, acrescentava-se que, mesmo na hipótese de considerar aquele crédito como uma despesa, ela não era realizada por causa da coisa, mas sim para ela existir281.
Nas palavras de Xxxxx Xxxxx000, o que se pretende ressarcir não são despesas provocadas pela obra mas sim, o dano causado pela violação do contrato.
Como tutela do crédito do preço283, propunha-se um único meio de coerção defensiva do empreiteiro: a exceptio non adimpleti contractus284/285, ou ainda a estipulação de garantias adequadas do cumprimento pelo dono da obra286.
A favor do direito de retenção do empreiteiro, os textos doutrinais centraram-se essencialmente em duas nótulas: demonstrar que a sinalagmaticidade presente da empreitada não obsta ao reconhecimento de um direito de retenção ao abrigo do conceito genérico estatuído no art.754.º, e em comprovar a existência de despesas efectuadas por causa da res. Vejamos.
Nas palavras de I. Xxxxxx Xxxxxx, o sinalagma legitimante de uma excepção de não cumprimento não é mais do que um embaraço meramente aparente287. Mais concretamente, apesar de os dois institutos poderem emergir de uma mesma relação jurídica, a admissibilidade da exceptio não impede a aplicação da retentio.
278 V. CJ, Ano 9, T.III, 1984.
279 V. BMJ, n.º 211, 1971. Notamos a falta de coerência de julgados no STJ e na RL, uma vez que, posteriormente aos acs. acima citados, foram tomadas posições substancialmente distintas pelos mesmos,
v. no sentido da atribuição do direito de retenção ao empreiteiro, os acs. do STJ de 14/12/94, relatado por Xxxxxxx Xxxxxxxx in xxx.xxxx.xx, e também da RL de 12/10/87 (anotação de I. Xxxxxx Xxxxxx), O Direito, Ano 120, 1988, mas em decisão contrária, o ac. do STJ de 08/04/97, relatado por Xxxxxxxxx Xxxx in xxx.xxxx.xx.
280 V. XXXX, XXXXX XX x XXXXXX, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol.II, cit., p.799.
281 V. XXXXXX, XXXXXXX, Das Obrigações em Geral, vol. II., cit., p.580.
282 V. XXXXX, XXXXX, «Do Direito…, cit., p.18.
283 Ou de uma prestação dele, caso o contrato estipule o pagamento fraccionado do preço, afastando a norma supletiva do art.1211.º, n.º 2 e permitindo um financiamento da obra ao empreiteiro.
284 Doravante referida como exceptio.
285 V. XXXXXX, XXXXXXX, Das Obrigações em Geral, vol. II., cit., p.799.
286 V. XXXXX, XXXXX, «Do Direito…, cit., p.18.
287 V. XXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXX, «O Direito de Retenção…, cit., p.21.
A este propósito, recordamos o pensamento de J. Calvão da Siva que denomina o direito de retenção como ultimum subsidium que resta ao devedor288. Este ponto é justamente realçado por Xxxxxx Xxxxxxx e X. Xxxxx Xxxxxxx ao esclarecerem a diferença entre duas obrigações a cargo do empreiteiro; a obrigação de facere aquele resultado convencionado e a obrigação de o entregar ao dono da obra, após a sua aceitação289. Na primeira, e em caso de pagamento faseado do preço, perante o incumprimento de uma das prestações, o seu credor pode invocar a exceptio, pois ainda não cumpriu a sua obrigação principal de resultado correspectiva do preço. Na segunda, existem dois créditos independentes, um relativo à entrega da obra realizada e outro referente à prestação do preço290. Nesta situação, o credor do preço não pode invocar a exceptio pela razão de já ter cumprido de forma irreversível a sua obrigação principal e correspectiva do pagamento do preço. Resta-lhe tão-somente um direito de retenção, aliás o que está em causa não é a falta de contraprestação, mas sim, uma especial conexão entre o crédito do empreiteiro e a coisa a entregar291.
Em contraposição ao argumento material desenvolvido pela tese contrária, X.Xxxxxx xx Xxxxx define o conceito de obra como o produto final da incorporação, realizada pelo empreiteiro, de materiais, de trabalho e de serviços prestados por terceiros contratados pelo empreiteiro ou prestados pelo próprio292, sendo que a aquisição desses materiais, normalmente pelo empreiteiro293, a prestação dos seus serviços e de terceiros, implicam um gasto, uma despesa com a coisa e por causa dela.
No que diz respeito à crítica relativa à inexistência de res nas obras de construção, Xxxxxxx Xxxxxxxx manifesta que apesar de a coisa final, enquanto tal, ainda não existir aquando da realização das despesas, existem um conjunto de outras coisas que irão formar a coisa global. Por isso, pode afirmar-se que os gastos do empreiteiro são determinados e impulsionados pela res final294.
288 V. XXXXX, XXXX XXXXXX DA, Cumprimento…, cit., p.349.
289 V. XXXXXXX, XXXXXX x XXXXXXX, XXXXXXX XX XXXXX, «Direito de Retenção», cit., p.19.
290 Mais concretamente, a uma das prestações e provavelmente a última, em caso de pagamento faseado ou à sua totalidade, em caso de aplicação supletiva do art.1211.º, n.º 2.
291 V. XXXXXXX, XXXXXX x XXXXXXX, XXXXXXX XX XXXXX, «Direito de Retenção», cit., p.19.
292 V. XXXXX, XXXX XXXXXX DA, Cumprimento…, cit., p.342.
293 Art.1210.º, n.º 1
294 V. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.251.
Nesta linha, I. Xxxxxx Xxxxxx sublinha que, mesmo em caso de ainda não haver obra, nem começo da sua construção, podem ser efectuadas despesas por causa dela295. Neste caso, a retenção é exercida sobre o solo296.
Por último, os textos doutrinais afirmativos do direito de retenção do empreiteiro são particularmente marcados pela teleologia do instituto. É por uma razão de equidade, de justiça material, que devemos reconhecer a garantia, pelo art.754.º. Para tal, não pesa a sequência cronológica em que as despesas com ou por causa da coisa foram realizadas. O que impulsiona a protecção do crédito daquele sujeito é a relação de causa a efeito entre a coisa e a origem do crédito297.
I. Xxxxxx Xxxxxx sublinha que o valor criado pelo empreiteiro e incorporado na coisa pode, pelo regime da aquisição da propriedade, tornar-se da titularidade do dono da obra mas continua, economicamente, na esfera jurídica de quem o acrescentou298.
Por último, a literatura jurídica divide-se no que diz respeito à medida do crédito garantido pela retentio. Xxxxxx Xxxxxxx e X. Xxxxx Xxxxxxx expressam a falta de coincidência entre o montante da despesa e o lucro contratual gerado a favor do empreiteiro299. Ora, o direito de retenção não deve servir para garantir um lucro mas apenas para evitar o locupletamento à custa do retentor, que criou um valor incorporado na coisa300.
Os Aa. citados propõem uma aplicação do regime da garantia real, logo do tratamento preferencial no concurso de credores a favor do empreiteiro, relativamente ao valor dos custos e despesas por causa da obra, passando a credor comum, no tocante ao restante valor, correspondente ao lucro desejado301.
A contrario sensu, X. Xxxxxx xx Xxxxx sublinha que o art.754.º não estatui que o crédito do retentor deve obrigatoriamente implicar um crédito das despesas, mas sim um crédito resultante de despesas. Pelo que, por razões de impraticabilidade e, também, porque o lucro não deixa de ter a sua causa naquelas despesas, não se deve proceder à separação de valores302. O ius retentionis garante as despesas, ou seja, o material fornecido pelo empreiteiro, o custo económico dos serviços prestados por terceiros e
295 V. XXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXX, «O Direito de Retenção…, cit., p.25 e 26. V. tb. SAPUILE, BELCHIOR
DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.408.
296 V. o já acima referido ac. da RL de 12/10/87 (anotado pelo A.), cit., p.174.
297 V. XXXXXXX, XXXXXX x XXXXXXX, XXXXXXX XX XXXXX, «Direito de Retenção», cit., p.21.
298 V. XXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXX, «O Direito de Retenção…, cit., p.26.
299 V. XXXXXXX, XXXXXX x XXXXXXX, XXXXXXX XX XXXXX, «Direito de Retenção», cit., p.21.
300 V. XXXXX, XXXXX, «Do Direito…, cit., p.19.
301 V. XXXXXXX, XXXXXX x XXXXXXX, XXXXXXX XX XXXXX, «Direito de Retenção», cit., p.21.
302 V. XXXXX, XXXX XXXXXX DA, Cumprimento…, cit., p.343.
pelo próprio, além do lucro esperado por ele, compreendidos num único valor, o preço da obra.
À luz do Direito positivo, o art.25.º do DL n.º 201/98, de 10/07, atribui expressis verbis um direito de retenção a favor do construtor de navio sobre a coisa construída, para garantir os créditos emergentes da construção.
Também o art.328.º do CCP303 reconhece o direito de retenção genérico do co- contratante, perante o incumprimento do contraente público. O empreiteiro de uma obra pública304 goza do direito de retenção da obra, por incumprimento do seu dono – contraente público305, desde que daí não resulte um grave prejuízo para o interesse público subjacente a esta relação jurídica306.
Portanto, o próprio Direito positivo, inclusive no ramo publicista, apoia a tese afirmativa do direito de retenção do empreiteiro.
Por tudo isto e não obstante o mérito dos argumentos invocados pela tese primeiramente exposta, tendemos para o reconhecimento da garantia a favor do empreiteiro.
Num primeiro momento, não podemos deixar de contrapor a ideia de que preço não significa despesas. Nesta óptica, sublinhamos a contradição existente na anotação do CC e mais precisamente, do seu art.1211.º, realizada por Pires de Lima e Xxxxxxx Xxxxxx que, sem prejuízo da importância do pensamento desenvolvido, expõem a dicotomia preço/despesa mas, subsequentemente, no objectivo de fundamentar a exceptio, mencionam a necessidade de fundos provenientes do pagamento rateado do dono da obra para que o empreiteiro possa prosseguir as despesas na execução307. Nesta medida, porque razão reconhecer a existência de despesas, satisfeitas com prestações relativas ao preço num objectivo de justificar o recurso à exceptio mas já não o direito de retenção?
Num segundo momento, a nossa crítica vai ao encontro do argumento da sinalagmaticidade. Recordamos que os mesmos Aa. supra citados invocavam o anteprojecto de Vaz Serra para reforçar a ideia de que a comunhão na fonte não gera, via de regra, direito de retenção. Contudo, os textos de Xxx Xxxxx também indicavam
303 O diploma legal foi publicado pelo DL n.º 18/2008, de 29/01, cujo art.14.º, n.º1/d, revogou o RJEOP, constante do DL n.º 59/99, de 02/03.
304 Arts.343.º e ss
305 Art.3.º do diploma em apreço.
306 Art.327.º, n.º1, ex vi do art.328.º e v. XXXXX, XXXXX XXXXXXX DA, Código dos Contratos Públicos Comentado e Anotado, 3ª ed. rev. e actual., Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p.804.
307 V. XXXX, XXXXX DE e XXXXXX, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol.II, cit., p.799 e 800.
que o A. compreendia a facti species do empreiteiro numa conexão objectiva e não meramente intelectual. Aliás, referindo-se ao privilégio especial mobiliário a favor do empreiteiro de coisa móvel e para garantir o crédito do preço ou custo da sua reparação que beneficiava o património do devedor do seu reembolso, defendia a sua substituição por um penhor legal ou um verdadeiro direito de retenção, com ius distrahendi308.
Num terceiro momento e, numa perspectiva juscomparatística, é frequente encontrarmos uma especial tutela do crédito do preço do empreiteiro nas várias experiências jurídicas estrangeiras, supra desenvolvidas. Assim, na Alemanha é constituída uma hipoteca ou um penhor a favor do sujeito, consoante a empreitada seja mobiliária ou imobiliária309. Em Espanha, vimos ser atribuído o direito de retener en prenda a favor do empreiteiro, pelo preço da obra mobiliária310. Em Itália o empreiteiro goza de um privilégio sobre beni mobili, na medida em que o seu crédito resulta de despesas com a sua conservação ou valorização311/312. No Direito francês, o art.2374.º, n.º 4 do CCf prevê um privilégio imobiliário a favor do sujeito contratualmente vinculado para a edificação, reconstrução ou reparação de imóveis, canais e outras obras313.
Entre nós e nas palavras de Xxxxxx Xxxxxxx e X. Xxxxx Xxxxxxx, os contornos legais do direito de retenção tornam supérfluas quaisquer referências a outros mecanismos de concessão de preferência, dadas as virtualidades próprias do instituto, enquanto verdadeira garantia real das obrigações314.
Solucionamos o problema da tutela de crédito do empreiteiro através da verificação dos três pressupostos contidos no conceito genérico da garantia real. Com efeito, presenciamos a detenção de uma res, a reciprocidade mas independência entre o crédito do preço e o crédito da entrega da obra e, por último, confirmamos a realização de despesas por causa da coisa global, reflectidas no preço.
Seguimos o discurso argumentativo de J. Xxxxxx xx Xxxxx relativamente aos lucros esperados. Apesar de o ius retentionis não dever servir para garantir um
308 V. XXXXX, XXXXXXX XXXX XX XXXXX XXX, «Direito de Retenção», cit., p.41, «Empreitada», BMJ, n.º145, 1965, p.185 e «Privilégios», cit., p.192. Além disso, o A. descrimina o que entende por crédito resultante de despesas como as relativas à sua fabricação, conservação ou melhoramento, v. «Direito de Retenção», cit., p. 102.
309 §§647 e 648 do BGB
310 Art.1600.º do CC espanhol.
311 Art.2756.º do CCit.
312 V. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, Contrato de Empreitada, cit., p.84.
313 A tradução do artigo é também da nossa responsabilidade.
314 V. XXXXXXX, XXXXXX x XXXXXXX, XXXXXXX XX XXXXX, «Direito de Retenção», cit., p.20.
excedente, muitas vezes, as razões de impraticabilidade na destrinça entre o valor deste e daquele implicam uma inelutável extensão da garantia ao todo, correspondente ao preço global315.
Finalizamos a nossa argumentação, recordando a interpretação restritiva do art.754.º defendida por Xxxxxxx Xxxxxxxx, à qual aderimos316. A preparação e execução da obra envolvem um sacrifício patrimonial do empreiteiro que cria um valor, aumenta o existente ou permite uma sua não diminuição. Por tudo isto, reconhecemos o direito de retenção do empreiteiro, na obra mobiliária ou imobiliária de construção, modificação, demolição ou mera reparação.
Após uma resposta afirmativa acerca do direito de retenção do empreiteiro, cabe-nos voltar à situação do subempreiteiro.
Importa proceder à exposição sumária do conflito de direitos reais ínsito do reconhecimento do direito de retenção a favor do subempreiteiro e, seguidamente, debruçarmo-nos acerca dos critérios de resolução apontados por diferentes doutrinas.
As dúvidas originam-se no facto de estarmos perante uma cadeia negocial em que o dono da obra, situado num dos seus extremos e por regra proprietário317do terreno318 e/ou dos materiais fornecidos319, assume a posição jurídica de terceiro perante o subempreiteiro, situado num outro extremo da cadeia.
O conflito de exercícios de direitos exige três pressupostos que consistem, de um modo genérico, na presença de uma pluralidade de direitos, de titularidades distintas e na impossibilidade de exercício simultâneo e integral dos mesmos320. No tocante ao terceiro requisito, a doutrina divide-se quanto ao factor comum dos direitos causador de impossibilidade de exercício simultâneo: a identidade do objecto dos direitos, a identidade do bem ou a identidade de conteúdo dos direitos. Escolhemos o primeiro, como factor mais adequado na explicação do conflito de direitos in re321.
315 V. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.255, que tende, portanto, para o mesmo sentido.
316 V. supra, 3.1. I.
317 Propomos centrar o nosso estudo neste direito real pleno, sem encargos ou onerações, da titularidade do dono da obra. Inferimos que a situação é análoga e merece similar tratamento quando o mesmo é titular de direitos reais de gozo menores ou no caso de assumir a posição jurídica de locatário ou de comprador com reserva de propriedade. A única diferença reside na circunstância de o verus dominus, nestas hipóteses, ser um terceiro ao próprio contrato de empreitada.
318 Subempreitada imobiliária.
319 Subempreitada imobiliária e mobiliária.
320 V. SEQUEIRA, XXXX XXX DE, Dos Pressupostos da Colisão de Direitos no Direito Civil, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2004, p.15 e ss.
321 Id., 174 e 193.
In casu, presenciamos um direito de propriedade do dono da obra, e um (hipotético) direito de retenção do subempreiteiro, sendo que o exercício simultâneo de cada um torna-se impossível por incidir sobre uma mesma res, cuja estrutura é ela própria limitativa da extensão dos direitos322. Vejamos.
O conteúdo do direito de retenção consiste num pouvoir de blocage do aproveitamento das utilidades da coisa, para além de facultar ao seu titular o poder de satisfazer o seu crédito com a realização do valor da mesma.
No tocante ao direito de propriedade, é representativo do direito real mais amplo. Implica um direito quase absoluto de usar, fruir e dispor material ou juridicamente323 da coisa seu objecto, de modo pleno e exclusivo324. A. Menezes Cordeiro propõe uma definição do núcleo deste direito real máximo como a afectação jurídico-privada de uma coisa corpórea, em termos plenos e exclusivos, aos fins de pessoas individualmente consideradas325/326.
Pela noção doutrinal do direito, e pelo seu amplíssimo conteúdo legal, facilmente entendemos a sua natureza absoluta, em termos de propriedade ilimitada. Contudo, é comummente reconhecida a necessidade de limitações e restrições legais, ditadas por uma função económico-social327.
Da breve exposição do conteúdo dos direitos reais, facilmente se depreende a potencialidade ofensiva de cada um. Numa tentativa de resolução do patente conflito, formaram-se teses total ou parcialmente negativas da garantia a favor do subempreiteiro e teses afirmativas, embora diferenciadas quanto à sua fundamentação. Vejamos.
Apoiados na jurisprudência formada pelo STJ, no ac. de 28/05/81328, a tese totalmente contra a atribuição do direito fundamenta a sua tomada de posição na potencial conflitualidade gerada com princípios jurídicos do Direito das Obrigações e dos contratos em especial, nomeadamente com o princípio da eficácia inter partes da relação obrigacional e com o princípio da confiança. Por isso, não é admissível reconhecer a extensão do direito de retenção a uma situação criadora de um novo
322 Id., p.175.
323 Usar, no sentido de satisfazer, de forma imediata, necessidades com as utilidades da coisa. Fruir, na medida de haver um aproveitamento dos seus frutos e produtos para o mesmo fim. Dispor juridicamente, de modo a poder alienar ou onerar livremente a coisa.
324 Art.1305.º
325 V. XXXXXXXX, X. MENEZES, Direitos Reais, cit., p.630.
326 Segundo Xxxxxxx xx Xxxxxxxx, o direito de propriedade pode igualmente incidir sobre coisas incorpóreas, v. XXXXXXXX, XXXXXXX DE, Direito…, cit., p.190 a 202.
327 Art.1305.º, in fine, e v. ASCENSÃO, XXXX XX XXXXXXXX, Direitos Reais, Lisboa, Almedina, 1978, p.151 e JUSTO, A. SANTOS, Direitos Reais, cit., p.235 e 240.
328 V. BMJ, n.º 307, 1981.
devedor. Com efeito, se o proprietário pretende reaver a coisa e exercer sobre ela os poderes que o seu direito real lhe concede, deverá, na prática, satisfazer o crédito devido pelo empreiteiro ao subempreiteiro, seja voluntariamente, seja por via executiva329.
Sobre o assunto, Xxxxx Xxxxx apoia o seu pensamento numa doutrina e jurisprudência francesa que tomam uma posição diferente consoante o lien de connexité. Se a conexão entre o crédito e a coisa a restituir for objectiva, defende-se que o proprietário não é um verdadeiro terceiro porque o crédito emerge de despesas ou danos
causados pela coisa, logo, ele é o responsável último pelo cumprimento da dívida.
Se a conexão for meramente jurídica, por regra, a oponibilidade do direito de retenção considera-se relativa, não sendo invocável contra o proprietário – não devedor de uma qualquer pretensão material do titular do direito de retenção330. Contudo, esta afirmação sofre uma aproximação diferenciada de acordo com o momento da detenção e de aquisição da propriedade.
Se a detenção for obtida num momento anterior à aquisição da propriedade pelo terceiro, a oponibilidade é entendida como absoluta para evitar um esvaziamento da garantia por uma possível actuação fraudulenta do originário proprietário. No caso de a detenção se verificar em momento posterior à propriedade daquele, a oponibilidade é restringida ao universo contratual331.
Nesta linha, Xxxxx Xxxxx afirma ser mais adequado restringir a eficácia absoluta da garantia aos casos de conexão material. Nas hipóteses de mera conexão jurídica ou até de coexistência entre os dois tipos de connexité, incluindo, portanto, a facti species do subempreiteiro, a eficácia da retentio não pode agredir o direito de propriedade de terceiros alheios ao crédito devido332.
Acerca da tese parcialmente negativa, seguimos de perto L. Xxxxxxxx Xxxxxxxxx. Na opinião do A., por regra não existe acção directa333 do subempreiteiro contra o dono da obra, pelo que não se verifica um qualquer título para o direito de retenção daquele
329 V. COSTA, SALVADOR DA, O Concurso de Credores, 3ª ed., Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p.215 e LIMA, XXXXX XX x XXXXXX, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol.II, cit., p.803.
330 V. XXXXX, XXXXX, «Do Direito…, cit., p.15 e ss.
331 V. XXXXX, XXXXXXXX, Le Droit…, cit., p.284 e 287 e ss e XXXXXXXXXXX, XXXXXXXX, Droit des Sûretés, Paris, Ellipses, 2008, p.206 a 208. Inversamente e num comentário ao Arrêt do CE de 02/07/03 que decidiu segundo a doutrina supra desenvolvida, Xxxxxx Xxxxx tende para uma afirmação da oponibilidade erga omnes do direito, independentemente da titularidade da coisa e do tipo de conexão, v. XXXXX, XXXXXX, «Sûretés et Publicité Foncière», RTDciv., n.º 2, 2004, p.329 e 330.
332 V. XXXXX, XXXXX, «Do Direito…, cit., p.16.
333 V. XXXXXXXXX, X. XXXXXXXX, «Da Subempreitada», cit., p.95. No mesmo sentido, XXXX, XXXXX DE e XXXXXX, ANTUNES, Código Civil Anotado, vol.II, cit., p.805.
contra este334. No entanto, o A. realça que, apesar de não existir um vínculo directo entre aqueles dois sujeitos, o mesmo argumento não vale para as relações entre o empreiteiro e o subempreiteiro. Logo, sempre que o empreiteiro tivesse direito a reforçar o seu crédito emergente da empreitada com o ius retentionis, também o subempreiteiro deveria gozar dessa prerrogativa contra o empreiteiro. Porém, de modo a evitar a afectação do direito de propriedade do dono da obra, o A. restringe o direito de retenção do subempreiteiro à hipótese de a obra objecto da subempreitada assumir autonomia perante a obra geral objecto da empreitada335.
Um vez que o A. parte da premissa de falta de acção directa entre os dois extremos de uma cadeia negocial, gostaríamos de salientar, brevemente, qual o seu significado. Esta acção ou direito consiste numa forma jurídica de agir directamente contra o devedor do seu devedor imediato, ou melhor, contra o subdevedor ou devedor mediato336. Assim, ela representa uma concretização do brocado latino debitor debitoris mei, debitor meus est, atribuindo ao seu titular um direito em nome próprio, um direito de acção de cumprimento contra o terceiro subdevedor337/338/339.
O art.267.º do RJEOP, agora revogado, reconhecia a acção directa a favor do subempreiteiro nas subempreitadas de obras públicas340. Neste sentido e contrariamente ao pensamento de L. Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxx defendia a sua admissibilidade independentemente do ramo de Direito do subcontrato, pelo que nas subempreitadas de obras privadas justificava a solução pela equidade, pois o dono da obra é o beneficiário último do resultado inalcançável sem a prestação do subempreiteiro341. Igualmente a favor da acção directa do subempreiteiro e ex adverso ao pensamento de L. Carvalho
334 V. XXXXXXXXX, X. XXXXXXXX, «Da Subempreitada», cit., p.102.
335 Id., p.102.
336 V. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, O Subcontrato, cit., p.161. A figura não é confundível com a acção directa prevista no art.336.º.
337 Id.,p.162 e 163.
338 Não estamos perante uma solidariedade passiva (arts.512.º e ss). Aliás, não existe direito de regresso a favor do directamente demandado (diferentemente do art.524.º), id., p.163.
339 Em termos gerais, A. Xxxxxxx Xxxxxxxx afirma que a acção directa consiste numa manifestação da oponibilidade forte do direito de crédito, v. XXXXXXXX, X. MENEZES, Direito das Obrigações, vol.I., ed. da XXXXX, Xxxxxx, 0000, p.266.
340 Embora o art.267.º tenha por epígrafe Direito de Retenção, não estamos face a um direito real mas sim perante a faculdade de o dono da obra reter uma quantia da sua titularidade para satisfazer o subempreiteiro que exerceu a acção directa, v. XXXXXXXX, XXXX XXXX, O Contrato de Subempreitada de Obras Públicas, Coimbra, Almedina, 2002, p.61.
341 V. XXXXX, XXXXXXX, «Uma Questão Prática do Contrato de Subempreitada: a Acção Directa e suas Implicações», RJ/UP, n.º 11, 2003, p.24.
Xxxxxxxxx, manifesta-se Belchior Sapuile342, Xxxxxxx Xxxxx000 e P. Xxxxxx Xxxxxxxx000/345.
No que diz respeito às teses afirmativas do direito de retenção do subempreiteiro, podemos destrinçar duas espécies de fundamentação. Na primeira, justifica-se a titularidade da garantia pela teoria da eficácia externa das obrigações, propondo uma maior flexibilização das relações jurídicas envolvidas346.
Na segunda, o apoio para a afirmação do direito de retenção do subempreiteiro encontra-se na ratio do instituto. Assim, na perspectiva de Xxxxxxx Xxxxxxxx, o direito de retenção do subempreiteiro deve ser reconhecido nos mesmos termos que ao empreiteiro, ou seja, ao abrigo do art.754.º347. Como observamos supra, a obrigação principal do subempreiteiro é substancialmente influenciada pela própria obrigação principal do empreiteiro, estando os dois sujeitos vinculados em termos semelhantes, à realização de uma obra (parcial ou total) a favor do seu dono, obrigado ao pagamento de um preço, seu correspectivo. Por isso, as razões pelas quais se admite o direito de retenção do empreiteiro justificam a sua admissibilidade na titularidade do subempreiteiro.
A A. sublinha a irrelevância, para efeitos de nascimento da garantia, da pessoa de quem o credor – retentor obteve a detenção348.
Nesta óptica, P. Xxxxxx Xxxxxxxx entende que, de iure condito, a atribuição do direito de retenção apenas exige que o dono da obra a possua com base em qualquer título legítimo349. Ora o empreiteiro – dono da obra em relação ao subempreiteiro, possui a coisa com base num título legítimo: a empreitada.
342 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.416, nota 696.
000 X. XXXXX, XXXXXXX, Contratos, 18ª ed., Actualização de XXXXXX, XXXXXXXX XXXXXXXX, Rio de Janeiro, Editora Forense, 1999, p.145.
344 V. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, Direito das Obrigações…, cit., p.417. No mesmo sentido, à luz do Direito civil anterior, v. XXXXXXXXX, XXXX XX XXXXX, Tratado de Direito Civil, vol.VII, Coimbra, Coimbra Editora, 1933, p.650.
345 Note-se que a acção directa e a acção sub-rogatória não são figuras confundíveis. A acção sub- rogatória é correntemente designada como acção indirecta e consiste num meio de conservação da garantia comum do património do devedor. É de carácter geral (art.606.º do CC), inversamente à acção directa, de carácter excepcional, v. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, O Subcontrato, cit., p.168.
346V. XXXXX, XXXXXXX, «Uma Questão Prática…, cit., p.16. Os partidários da teoria da eficácia externa das obrigações consideram imposto aos restantes membros da comunidade jurídica, um dever de respeitar o direito creditício. Desta ideia depreende-se a possibilidade de o terceiro que lesou o crédito ser directamente chamado a responder perante o credor, v. XXXXX, X. X. XX XXXXXXX, Direito das Obrigações, cit., p.91 a 93. Uma vez que a communis opinio não adere a esta doutrina, optamos por não recorrer a mais desenvolvimentos.
347 V. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.257.
348 Id., p.259.
349 V. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, Direito das Obrigações…, cit., p.379.
O A. defende o exercício do direito de retenção aquando do exercício da acção directa do subempreiteiro contra o originário dono da obra. Também refere razões de ordem económico-social, no sentido de que, ao reconhecer um estreitamento das relações entre dois sujeitos situados nos extremos de uma cadeia negocial, alimenta-se uma maior confiança entre os vários sujeitos intervenientes, criam-se condições para o aumento das relações contratuais e evitam-se duplicações de pagamento. Por último, reflecte-se de forma mais adequada a realidade, uma vez que, o dono da obra e o subempreiteiro não se consideram, na praxis negocial, terceiros plenitus extranei350.
2.2. O Nosso Critério de Resolução
A nossa opinião manifesta-se no sentido de reconhecer o direito de retenção do subempreiteiro, nos mesmos termos que o admitimos para o empreiteiro. Nesta linha, aplaudimos o pensamento de Xxxxxxx Xxxxxxxx e de P. Xxxxxx Xxxxxxxx.
Defendemos um ius retentionis na titularidade do subempreiteiro contra o empreiteiro e oponível erga omnes, logo também perante o proprietário – originário dono da obra.
O art.335.º, n.º 1, estabelece o princípio da concordância prática a realizar, in casu, entre o direito de propriedade do dono da obra e o direito de retenção do subempreiteiro. Devemos tentar obter uma solução de compatibilização, em que cada direito cede na medida do estritamente necessário para que ambos produzam os seus efeitos. Por tudo isto, compete-nos apontar os elementos das doutrinas ex adverso que não nos convenceram, e desenhar uma solução de equilíbrio, pormenorizando a nossa tomada de posição.
Partimos da doutrina totalmente contra a atribuição do direito. O argumento determinante centra-se no facto de o dono da obra não ser devedor do subempreiteiro.
Importa reter que, no art.754.º, a lei estabelece a seguinte hipótese normativa: «o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor»351 «estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos
350 Id., p.379 e 418. De iure condendo, o A. contesta esta solução, afirmando os prejuízos que causa ao direito de propriedade e para os financiadores de aquisição de bens.
351 O itálico é nosso.
por ela causados», à qual atribui a consequência jurídica «goza do direito de retenção». Portanto, julgamos que a verificação da reciprocidade de créditos não deve ser realizada entre o proprietário da coisa a reter e o retentor, mas sim, tal como a lei dita, entre o devedor da entrega de uma coisa – o subempreiteiro, e o seu credor, simultaneamente devedor – o empreiteiro.
Por conseguinte, a doutrina totalmente contra o direito de retenção do subempreiteiro não nos convenceu, na medida em que a sua fundamentação colide, em nosso entender, com a própria lei. Apesar de a interpretação doutrinal não se dever cingir ao elemento gramatical da letra da lei, mas também abranger os elementos lógicos, o art.9.º, n.º 2 e 3 menciona a necessidade de um mínimo de concordância verbal, presumindo que o legislador soube exprimir o seu pensamento de modo adequado352. A lei não exige, explícita ou implicitamente, a titularidade da coisa por parte do devedor do retentor, ora onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir353.
Acrescentamos que, se a intenção legislativa fosse no sentido de negar o direito de retenção quando a titularidade da coisa não fosse do devedor do retentor, tê-lo-ia mencionado, expressis verbis, nos pressupostos do art.754.º354.
Também não podemos deixar de salientar a nossa divergência com o pensamento de Xxxxx Xxxxx. Sem prejuízo do mérito da reflexão desenvolvida, apontamos duas nótulas discordantes.
Numa primeira nótula, o argumento da falta de consentimento do titular dos bens objectos da garantia não vale como regra de princípio para a constituição válida de uma garantia real mas unicamente para a consignação de rendimentos voluntária355, o xxxxxx000 e a hipoteca voluntária357. Nas hipotecas legais358 e nos privilégios creditórios359, a garantia é ex lege, formando-se independentemente da vontade das partes ou até de uma decisão judicial360.
352 V. XXXXX, X. XXXXXX, Introdução ao Estudo do Direito, 6ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p.336.
353 Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus
354 Ou ainda, poderia ter procedido tal como na representação voluntária (art.267.º, n.º 2), negando no art.1213.º, a garantia real.
355 Arts.658.º, n.º 2 e ss
356 Arts.666.º e ss 357 Arts.712.º e ss 358 Art.704.º
359 Art.733.º
360 V. XXXXX, XXXXXX XXXXX, Dos Privilégios Creditórios: Regime Jurídico e sua Influência no Concurso de Credores, Coimbra, Almedina, 2004, p.31.
Numa segunda nótula, negar a garantia quando coexistem as duas conexões implica negar a eficácia do art.754.º pela aplicação do art.755.º.
No que diz respeito ao pensamento de L. Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, também não podemos deixar de manifestar a nossa discordância, sublinhando dois pontos. Primeiramente e apesar de valiosíssima, a argumentação do A. não nos convenceu na medida em que parte da premissa segundo a qual, o problema da existência e natureza dos direitos do subempreiteiro contra o dono da obra reconduz-se a saber se e em que medida um deles pode exercer contra o outro direitos emergentes do contrato de que são parte361. Ora, entendemos que a solução ao problema de saber se o subempreiteiro goza do direito de retenção encontra-se na lei, ou melhor, numa conexão objectiva entre o crédito do subempreiteiro e a obra, o que ultrapassa as relações negociais.
Em nossa opinião, o A. trata o direito de retenção como uma excepção invocável pelo credor contra o seu devedor que, por assumir repercussões negativas na esfera jurídica de um terceiro proprietário, só é reconhecido quando a obra objecto do subcontrato goza de autonomia em relação à obra geral do contrato-mãe362.
Cumpre, ainda, manifestar a inexactidão da afirmação de alguns Aa., segundo a qual a subempreitada seria, para o originário dono da obra, uma res inter alios acta, aliis nec nocere, nec prodesse potest363. O contrato-mãe e o contrato-filho assumem uma íntima aproximação, inegável pelo Direito e, por isso, justificativa de uma acção directa entre os dois extremos da cadeia subcontratual364.
Concretizamos assim a nossa tomada de posição, apoiando-nos na doutrina desenvolvida de iure condito por P. Xxxxxx Xxxxxxxx000, reconhecendo a possibilidade de o subempreiteiro demandar directamente o dono da obra para efectuar o pagamento do preço da subempreitada, para além do direito de reter a res por ele realizada, como meio defensivo mas também de garantia de satisfação do seu crédito. Consideramos substancialmente justo, o subempreiteiro poder exigir ao último beneficiário da mais- valia que ele criou366, o pagamento do preço representativo de uma reparação do
361 V. XXXXXXXXX, X. XXXXXXXX, «Da Subempreitada», cit., p.94.
362 Id., p.102.
363 V. Xxxxxxxx, Xxxxx Xxxxxx, O Subcontrato, cit., p.157.
364 Id., p.159.
365 V. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, Direito das Obrigações..., cit., p.417.
366 Por isso não verdadeiramente terceiro.
sacrifício por ele sofrido. Deste modo, também se evitam conluios entre o empreiteiro e o dono da obra, prejudiciais ao subempreiteiro367/368.
Seguindo P. Xxxxxx Xxxxxxxx000, salientamos dois pressupostos e limites da acção directa. Para o seu exercício, são necessários o vencimento e inadimplemento das prestações dos dois devedores, sendo que o credor – subempreiteiro não pode exigir um crédito de montante superior ao seu e ao do devedor imediato – empreiteiro, ou seja, ao do débito do subdevedor – dono da obra. Poderão ser opostas à acção directa, todas as excepções resultantes da relação subcontratual370.
Não esquecemos que, o direito de retenção depende exclusivamente dos pressupostos do art.754.º, pelo que poderá o subempreiteiro ser titular deste direito real de garantia mas não de uma acção directa. Salientamos o caso da subcontratação não autorizada ou não necessária – ineficaz em relação ao dono da obra371 ou ainda, a falta de um dos pressupostos da acção directa372.
Por tudo isto e atendendo ao conflito de exercício de direitos reais subjacente, consideramos ajustada a consagração legal de uma norma semelhante ao antigo art.267.º do RJEOP373, na lei civil, permitindo uma melhor regulamentação e reconhecimento positivo da estreita proximidade existentes entre os dois extremos da cadeia subcontratual.
No plano do Direito a constituir, seguidamente ao art.1213.º, propomos que se acrescente um artigo novo com a seguinte possível redacção:
367 V. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.258 e XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, O Subcontrato, cit., p.159, 162 e 176. O A. salienta os dois principais fundamentos da acção directa: uma ideia de equidade e a íntima conexão entre o contrato principal e o contrato subordinado.
368 O A. defende o carácter recíproco da acção directa. Sobre o assunto, v. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX,
Direito das Obrigações…, cit., p.417.
369 V. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, O Subcontrato, cit., p.164 e 165.
370 Aliás, o A. considera extinta a obrigação do subdevedor, apesar de realizada a terceiro, v. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, O Subcontrato, cit., p.165.
371 Importa referir que a subcontratação é livre quando necessária para a execução contratual da empreitada ou quando a prestação do empreiteiro seja fungível e, desde que o dono da obra não a proíba expressamente (art.264.º, n.º1, ex vi do art.1213.º, n.º2), v. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, Contrato de Empreitada, cit., p.122. Assim, a acção directa só vale quando a subcontratação seja necessária ou autorizada pelo dono da obra, pois só assim produzirá efeitos em relação a ele, v. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, O Subcontrato, cit., p.176. Inversamente, o direito de retenção é imune à sorte dos dois contratos.
372 Por ex., quando o dono da obra já pagou o preço ao empreiteiro ou quando o crédito do subempreiteiro é vincendo, por aplicação, in casu, do art.757.º.
373 Embora já não por razões de interesse público que ditam principalmente este artigo, mas sim, por razões de equidade.
Relações entre o dono da obra e subempreiteiro
1. O subempreiteiro pode reclamar junto do dono da obra, os pagamentos em atraso que sejam devidos pelo empreiteiro, podendo o dono da obra excepcionar as quantias do mesmo montante devidas ao empreiteiro e decorrentes do contrato de empreitada.
2. Não é legítimo ao subempreiteiro reclamar um montante superior ao devido pelo contrato de subempreitada e, ao contratualmente estabelecido a favor do empreiteiro, na empreitada.
3. O dono da obra pode opor-se ao pagamento do subempreiteiro, quando forem ultrapassados os limites referidos no n.º 2, e mediante a prova do pagamento realizado pelo empreiteiro ou qualquer outra causa extintiva ou impeditiva do direito do subempreiteiro, nos termos gerais.
4. A aplicação deste artigo não prejudica o direito de retenção verificado, nos termos gerais, a favor do empreiteiro e do subempreiteiro.
A nossa proposta visa principalmente duas situações.
De acordo com o artigo proposto, se o dono da obra não pagar o preço ao empreiteiro, o mesmo deverá cumprir a obrigação pecuniária directamente ao subempreiteiro, sob pena de um locupletamento injusto daquele à custa deste. Através de uma reclamação directa e de uma possível acção de cumprimento contra o dono da obra, que o direito de retenção não concede por não ser ele o devedor imediato do subempreiteiro, mais rapidamente será satisfeito o crédito garantido, podendo facilmente evitar-se a execução da coisa – obra.
Se o dono da obra cumpriu a sua obrigação principal, por ex., mediante o pagamento atempado das prestações constitutivas do preço da empreitada, mas o empreiteiro deixa de cumprir os seus compromissos perante o subempreiteiro, então a tutela do direito de propriedade do dono da obra, vivamente justificada, é alcançada pela faculdade que lhe é concedida de excepcionar licitamente os restantes pagamentos devidos ao empreiteiro, o que extingue a sua obrigação em relação a ele, e previne igualmente uma realização forçada do crédito com o valor da obra. Neste último caso, evita-se o locupletamento injusto do empreiteiro e tutela-se a propriedade do dono da obra, na medida do estritamente necessário para a realização dos dois direitos reais colidentes.
Evidentemente, a nossa solução não preclude a possibilidade de o dono da obra já ter pago todo o preço ou que as últimas prestações em dívida sejam consideravelmente inferiores ao montante do crédito reclamado, ficando amplamente sujeito aos efeitos negativos da garantia real. Contudo, recordamos que o nosso objectivo consiste em alcançar uma solução de equilíbrio, no conflito de exercícios de direitos reais. Ora, o dono da obra é sempre considerado o beneficiário último da prestação do subempreiteiro, devendo assumir o risco da constituição de um direito de retenção a favor de quem não contratou directamente com ele mas que criou uma mais- valia no seu património por causa dele, e implicativa de um prejuízo a ressarcir374/375.
3. O Terceiro Adquirente da Coisa ou do Direito Objecto Mediato de um Contrato-Promessa com Eficácia Meramente Obrigacional
3.1.A al.f. do n.º 1, do art.755.º: Perspectiva Evolutiva e Elementos Constitutivos da Garantia Real do Accipiens da res
A al.f. do art.755.º, n.º 1 surge em 1986, pelo DL n.º 379/86, de 11/11376, e estatui um caso especial de direito de retenção, ao lado das demais als. do artigo, vigentes desde 1966.
Porém, a tipificação ex novo da facti species envolvente remonta à data de 1980, pelo DL n.º 236/80, de 18/07377. O diploma regulamentou pela primeira vez o direito de
374 Se a obra ainda não finalizada for retida, não encontramos em bom rigor o benefício último do dono da obra. Neste caso é particularmente importante o dever de diligência do retentor – subempreiteiro que deve administrar a obra segundo o padrão do proprietário normalmente cuidadoso, sob pena de responsabilização pela deterioração ou inutilização do trabalho já realizado, art.671.º/a, ex vi dos arts.758.º e 759.º, n.º 3.
375Aliás, tendo conhecimento da liberdade de subcontratação, o comitente pode tentar minimizar os seus hipotéticos prejuízos no clausulado da empreitada, proibindo a subcontratação ou autorizando-a singularmente, através da indicação da identidade do subempreiteiro cuja violação gera responsabilidade contratual do empreiteiro, nos termos gerais (arts.798.º e ss, embora já não por culpa in elegendo), v.XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, Contrato de Empreitada, cit., p.123 e 124. Pensamos sobretudo para a prevenção de incumprimentos de subempreitadas de preço global e em evitar os contratos turn key (chave-na-mão) que apesar de vantajosos, concedem uma amplíssima liberdade ao empreiteiro de subcontratar, tendo como única obrigação entregar a obra imediatamente pronta a ser fruída pelo seu dono.
376 Doravante referido como DL 86.
377 Doravante referido como DL 80.
retenção do promitente-comprador, pelo crédito resultante do incumprimento do promitente-vendedor, caso tenha havido traditio rei da coisa objecto do contrato prometido, segundo o n.º 3, do art.442.º.
Desde 1986378, a nossa lei civil atribui mais amplamente, em lugar distinto do Direito de 1980, o direito de retenção ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de um direito real, ao qual foi entregue a coisa objecto do contrato prometido, a exercer sobre a mesma res, para garantir a satisfação do crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, de acordo com o art.442.º.
Circunscrevemos o estudo desta facti species ao conflito de exercícios de direitos reais que possa surgir entre o titular do direito de retenção – beneficiário da promessa e o titular de um direito de propriedade ou outro direito real de gozo transmitido ou constituído pelo promitente da transmissão ou constituição do direito real a favor do primeiro sujeito, accipiens da res, sobre a qual incidem os dois direitos colidentes.
Propomos uma abordagem prévia e sumária ao contrato-promessa, à sua evolução histórica na década de 80, do Séc.XX, procedendo, subsequentemente, à reconstituição dos contornos do especial ius retentionis em causa.
O contrato-promessa está regulado nos arts.410.º e ss, 442.º, n.º 2 e n.º 3379 e 830.º. De acordo com os preceitos referidos e, segundo a nossa melhor doutrina, o mesmo define-se pela convenção através da qual pelo menos um sujeito se vincula à celebração de um negócio jurídico no futuro. A obrigação de contratar pode respeitar a um único sujeito, é o caso da promessa unilateral380, e o negócio jurídico a celebrar pode ser unilateral ou bilateral.
Desta noção legal, inferimos uma autêntica natureza contratual ao contrato- promessa, essencialmente originário de uma381 obrigação de facere, uma vez que o promitente promete ao promissário a emissão futura de uma declaração de vontade correspondente a outro negócio jurídico, chamado negócio prometido ou definitivo. Este consiste no objecto imediato do contrato-promessa, que assume como objecto mediato o próprio objecto do negócio definitivo382.
378 A redacção do art.755.º, n.º1/f permanece inalterada.
379 V. para o seu âmbito de aplicação, XXXXX, XXXX XXXXXX XX, Sinal e Contrato-Promessa, 13ª ed. rev. e aum., Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p. 101.
380 Art.411.º
381 Ou mais, no caso de um contrato-promessa bilateral.
382 V. XXXXX, XXXX XXXXXX DA, Xxxxx…, cit., p.17 e 18.
J. Xxxxxx xx Xxxxx expressa o carácter preparatório e de segurança do contrato- promessa, uma vez que permite fixar o conteúdo negocial, aproveitando a vontade de celebrar o negócio, sem proceder à sua imediata conclusão por não ser oportuno para as partes. Aplicam-se ao contrato preliminar as regras do Direito relativo ao contrato definitivo, salvo as referentes à forma e outras que, pela sua razão de ser, não se devam estender àquele.
O contrato-promessa goza geralmente de eficácia meramente obrigacional383. Contudo, à luz do art.413.º, n.º 1384, a promessa de transmissão ou constituição de um direito real sobre uma coisa imóvel ou móvel sujeita a registo pode gozar de eficácia real, desde que as partes manifestem intenção correspondente por declaração expressa385 e inscrição no registo386.
A eficácia real significa a oponibilidade erga omnes daquele direito de crédito à celebração do contrato futuro, protegendo o promissário do poder de disposição da coisa pelo promitente mas também dos seus credores, no espaço de tempo decorrente entre a celebração do contrato preliminar e do contrato definitivo. Este efeito emana do próprio registo, pois o seu crédito fica tutelado de todos os direitos parcial ou totalmente incompatíveis com ele, emergentes de factos jurídicos com data de registo posterior387.
Frequentemente, na praxis negocial é convencionada a entrega de uma quantia pecuniária, a título de sinal388. Poderá revestir natureza confirmatória ou penitencial, consoante o fim visado pelas partes seja, respectivamente, o de confirmar para o exterior a realização daquele contrato-promessa ou o de facultar à contraparte a possibilidade de retractação perante o compromisso389. À luz do art.442.º, n.º 2, a doutrina390 deduz duas funções do sinal confirmatório: a de coerção ao cumprimento do contrato-promessa e a de determinação prévia da indemnização pelo dano do inadimplemento imputável à contraparte, evitando o seu cálculo nos termos gerais391.
383 Art.406.º, n.º 2.
384 E tb. da parte final do art.406.º, n.º 2.
385 Art.217.º
386 O art.413.º, n.º 2 estabelece uma especial exigência de forma.
387 Arts. 2.º, n.º1/f, 5.º e 6.º do CRPred e arts. 3.º, 4.º e 11.º, n.º 1/h, do CRBM e v. XXXXX, XXXX XXXXXX DA, Xxxxx…, cit., p.20 a 22. A doutrina divide-se quanto à qualificação do direito do promitente- comprador como creditório ou real de aquisição. Sobre o assunto, v. XXXXX, X. XXXXXX, Direitos Reais, cit., p.453 e ss e 459.
388 Nos contratos-promessa de compra e venda, o art.441.º presume o carácter de sinal para qualquer quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor.
389 V. XXXXX, XXXX XXXXXX DA, Xxxxx…, cit., p.41.
390 Id., p.158.
391 Arts.798.º e 562.º e ss.
O regime do contrato-promessa foi alvo do que a tradição jurídica portuguesa392 referiu como um novo regime anunciado pelo DL 80 e, um novíssimo regime, derrogatório daquele, pelo DL 86.
No que tange à occasio legis, o contexto histórico impulsionador da intervenção do Governo através do DL 80, era justamente o da reiterada verificação da situação jurídica sob a nossa análise. Ou seja, como consequência da desvalorização monetária sentida desde 1974, da acentuada inflação, da massificação negocial e da falta de oferta de arrendamento, o natural equilíbrio contratual pré-existente no contrato-promessa desvaneceu, abrindo mão a escandalosos abusos dos promitentes para determinarem unilateralmente a sorte do mesmo, com base em especulações.
Na praxis, os casos mais frequentes de desequilíbrio contratual detectavam-se nos contratos-promessa de compra e venda de edifício ou fracção autónoma dele construído, em construção ou a construir, para fins habitacionais. Do lado do promissário, comprovava-se a existência de um particular e da sua família, ao passo que do lado do promitente, presenciava-se geralmente uma sociedade imobiliária dedicada à construção civil. Rapidamente o promitente-vendedor deixava de cumprir o contrato- promessa para alienar a coisa (prometida vender naquele contrato), a um terceiro que comprava a preço bem mais elevado do que o estipulado com o promitente-comprador. Da resolução do contrato-promessa, o inadimplente tinha por sanção o pagamento do dobro do sinal393, quantia muito inferior ao que recebia do terceiro. O promitente- comprador ficava sem a possibilidade de recorrer à execução específica devido à falta de eficácia real do contrato preliminar, ficando frustrada a sua expectativa de aquisição, muitas vezes já acompanhada da tradição do imóvel e do pagamento do preço, envolvendo um “despejo” das famílias que o acompanhavam394.
Perante a nova conjectura económico-financeira, o DL 80 inovou em vários pontos. De modo sumário, na nossa investigação realçamos dois: o novo crédito indemnizatório e o novo direito de retenção. A partir de 1980, perante o incumprimento
392 V. CORDEIRO, A. XXXXXXX, «O Novíssimo Regime do Contrato-Promessa (Comentário às alterações introduzidas no Código Civil pelo Dec.-Lei 379/86, de 11 de Novembro)», CJ, Ano XII, T.II, 1987, p.7. 393 Art.442.º, n.º 2, na versão originária de 1966.
394 V. n.º 1 do preâmbulo do DL 80 e XXXXXX, X. DA XXXX XXXX, «Contrato-Promessa: algumas notas sobre as alterações do Código Civil constantes do Dec.-Lei n.º236/80, de 18 de Julho», RDES, Ano 27, 1980, p.21, CORDEIRO, A. XXXXXXX, «O Novo Regime do Contrato-Promessa (Comentário às alterações aparentemente introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho, ao Código Civil)», BMJ, n.º 306, 1981e do mesmo Autor, «Da Retenção do Promitente na Venda Executiva», ROA, Ano 57, 1997, p.547, XXXXXXXXX, X. XXXX, «À volta do Contrato-promessa», RDES, Ano 29, 1987, p.330, p.28, e XXXXX, X.XXXXXX DA, «Contrato-Promessa, Análise para reformulação do Decreto-Lei n.º236/80», BMJ, n.º 349, 1985, p.63 e 85 a 87.
imputável ao promitente, o promissário, tradens do sinal mas accipiens da coisa, vê o seu crédito indemnizatório reforçado por uma alternativa ao dobro do sinal, que consiste no valor da res ao tempo do incumprimento395. Independentemente dessa alternativa, para garantir o crédito pelo incumprimento e, tendo havido antecipada traditio rei, o promitente-comprador goza, nos termos gerais de um direito de retenção sobre ela.
Porque o DL 80 deu azo a inúmeros debates académico relativamente ao sentido e alcance interpretativo das novas normas, o Governo voltou a intervir através do DL 86, onde tentou colmatar as fragilidades do diploma antecedente. Sublinhamos essencialmente uma alteração ao cálculo do crédito ao valor da coisa396 e a nova localização sistemática do direito de retenção397/398. Assim, caso tenha havido traditio rei, o seu accipiens e simultaneamente tradens do sinal, pelo incumprimento imputável ao promitente, tem direito em alternativa ao dobro do sinal, ao valor da res entregue, objectivamente determinado aquando do inadimplemento, deduzido o preço convencionado e devendo ser-lhe restituído o sinal entregue399. Para garantir o crédito resultante do inadimplemento imputável à contraparte nos termos o art.442.º, o beneficiário fiel da promessa de transmissão ou constituição de um direito real que já tenha obtido a traditio da res objecto do contrato prometido, goza de um direito de retenção sobre ela400.
Dos dois diplomas acima expostos, inferimos uma ratio legis centrada na acentuada tutela do promissário fiel, que obteve a entrega da coisa. Apesar de, na situação típica do contrato-promessa de compra e venda, o promitente-comprador não ser titular de qualquer direito de propriedade sobre ela, a entrega acentuou as expectativas de aquisição401. Nas palavras de Xxxxxxx Xxxxxxxx, qualquer homem médio colocado na situação do promissário fiel cria uma justificada confiança de
395 Alterou-se o n.º 2 do art.442.º
396 Alterou-se o n.º 2, in fine, do art.442.º.
397 Alterou-se o n.º 3, do art.442.º e acrescentou-se uma nova al. ao art.755.º, n.º 1.
398 Sobre as alterações dos dois DL, v. XXXXXX, XXXXXXX, «Emendas ao Regime do Contrato-Promessa»,
RLJ, Ano 119, 1986-1987, n.º 3749, p.226 e ss, n.º 3750, p.257 e ss, n.º 3751, p.292 e ss, n.º 3753, p.353 e
ss e Ano 120, 1987-1988, n.º 3756, p.68 e ss.
399 Tb. referido como o crédito de actualização do dobro do sinal.
400 A alteração sistemática do direito de retenção constava da proposta de articulado de J. Xxxxxx xx Xxxxx, perante a solicitação por Xxxxxxxx do Ministro da Justiça, de aclarar o sentido do DL 80, v. XXXXX, XXXX XXXXXX DA, «Contrato-Promessa…, cit., p.89 e 112.
401 COSTA, M. J. XX XXXXXXX, Contrato- Promessa: uma síntese do regime actual, 5ª ed. rev. e actual., Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p.67.
aquisição futura da coisa, o que não pode ser pura e simplesmente frustrado e por isso, carece da tutela do Direito402.
Com a al.f., a lei atribui a um sujeito a garantia real de que não gozaria, ao abrigo de um genérico ius retentionis403. O crédito reforçado não tem o seu fundamento directamente na coisa retida, mas sim, no contrato-promessa violado e na necessidade de tutela da confiança do contraente não faltoso404.
Vejamos quais os elementos constitutivos do direito de retenção em causa.
Para o exercício do ius retentionis a favor do beneficiário da promessa, é conditio sine qua non a validade do contrato-promessa, a sua eficácia meramente obrigacional405 e a traditio do seu objecto mediato406. Sabemos que a tradição jurídica envolve necessariamente uma convenção entre as partes407 diferente do contrato- promessa, contudo a lei não pormenoriza o conceito. Por isso, a communis xxxxxx considera haver traditio quando se verifique a sua entrega simbólica ou material ao promitente fiel – accipiens408. J. Lebre de Freitas expressa que, devido à natureza gravosa do direito de retenção, o termo tradição deve ser interpretado de modo restrito, no sentido de que, em caso de mera entrega simbólica, deve seguir-se uma apreensão efectiva e material da coisa409.
É também imprescindível a comprovação de um incumprimento imputável ao
tradens da coisa e a existência de um crédito a favor do seu accipiens contra ele410.
Restam três requisitos cuja problematicidade gerou algum debate académico: a exigência de sinal, a natureza do incumprimento e o tipo de créditos a garantir.
No que diz respeito ao sinal, pela remissão da al.f. em questão para o art.442.º, alguns Aa. sustentam a sua imprescindibilidade411 e outros defendem a sua
402 V. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.148.
403 Neste sentido, afasta-se da facti species do subempreiteiro, onde reconhecemos a presença de uma autêntica conexão material.
404 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.208.
405 Pois no caso de eficácia real, a protecção do sujeito é garantida pela extensão erga omnes dos efeitos do seu crédito ao cumprimento do contrato.
406 V. XXXXXXX, XXXXX, «O direito de retenção e a situação do credor hipotecário», Revista da Banca, n.º26, 1993, p.93 e 94.
407 V. XXXXX, XXX X. X. XXXXXXXXX, O Contrato-Promessa e o seu Regime Jurídico, 2ª imp. da ed. de 0000, Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p.831.
408 V. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.151.
409 V. XXXXXXX, XXXX XXXXX DE, «Sobre a prevalência, no apenso de reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença», ROA, Ano 66, 2006, p.598 e 599.
410 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.210.
411 V. XXXXXX, XXXX XXXXXX XXXXX XX XXXXXXX, Direito das Obrigações, vol.I., 7ª ed., Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p.248.
desnecessidade412. Em nossa opinião, a remissão legal justifica-se unicamente em termos de determinação do crédito a garantir. Concordamos com a argumentação de Xxxxxxx Xxxxxxxx, no sentido de que o sinal nada acrescenta à ligação própria entre o retentor e a coisa, condição sine qua non de qualquer direito de retenção. O verdadeiro elemento indispensável e básico para a sua admissibilidade consiste na tradição da coisa413.
No tocante à natureza do incumprimento, alguns Aa. defendem o nascimento do direito de retenção mesmo perante a mora do devedor. Consequentemente, a retentio existe mesmo quando o promissário fiel opte pela execução específica, em alternativa ao crédito indemnizatório (art.442.º, n.º 2 e 3)414. Xxxxxxx Xxxxxxxx acrescenta que, mesmo na execução específica415 existe um crédito indemnizatório susceptível de retenção: o crédito moratório (art.804.º)416.
A contrario sensu, a doutrina e jurisprudência maioritária argumentam no sentido de o direito de retenção garantir unicamente o crédito resultante do incumprimento definitivo417, isto porque o art.442.º, n.º 2, apenas se considera aplicável na hipótese de resolução do contrato-promessa, quando já não seja útil ou viável recorrer à execução específica. Consequentemente, os seguidores desta ideia também não toleram o direito de retenção para garantir a execução específica, deduzindo que quando haja incumprimento definitivo, não é legalmente extensível a garantia real ao direito de cumprimento do contrato preliminar418.
A nossa convicção manifesta-se no sentido de reconhecer ao direito de retenção uma tutela exclusivamente compensatória e não moratória, nem do direito à execução específica, por dois motivos. Primeiro, no caso de mora do promitente faltoso e na execução específica, não existe a obrigação de restituir a coisa419. Segundo, no esquema
412 V. TELLES, XXXXXXXXX XXXXXX, Direito das Obrigações, 7ª ed., Reimp., Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p.155, PRATA, ANA M. C. XXXXXXXXX, O Contrato-Promessa…, cit., p.888 e XXXXXXXXXXX,
SÉRGIO NUNO COIMBRA, «Direito de Retenção…, cit., p.508.
413 V. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.168.
414 Id., p.166. No mesmo sentido, v. CORDEIRO, A. XXXXXXX, «O novo…, cit., p.41.
415 A execução específica consiste num direito de acção – direito potestativo, cujo exercício desencadeia uma sentença constitutiva, uma vez que o tribunal se sub-roga ao promitente faltoso, produzindo os efeitos da declaração negocial que não emitiu, v. XXXXX, XXXX XXXXXX DA, Xxxxx…, cit., p.163.
416 V. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.166.
417 Após interpelação admonitória ou perda do interesse objectivo do credor; art.808.º.
418 V. XXXXX, XXXX XXXXXX DA, Xxxxx…, cit., p.116 a 117 e 144, PRATA, ANA M. C. XXXXXXXXX, O Contrato-Promessa…, cit., p. 861, nota 1992. No mesmo sentido, v. XXXXXX, XXXXXXXXX XXXXXX, Direito…, cit., p.154 e 155, nota 1, que nos parece defender a garantia apenas do crédito pelo aumento do valor da coisa e já não pelo dobro do sinal.
419 Na jurisprudência, a RE julgou, no ac. de 22/01/04, não valer o direito de retenção para garantir a execução específica, com apoio neste argumento, v. CJ, Ano 29, T. I., 2004, p.243.
tradicional do direito de retenção, a reciprocidade de créditos implica que o credor da coisa seja devedor de uma quantia pecuniária a favor do retentor. Inversamente, na execução específica pretende-se garantir um direito de acção.
Concluímos que o ius retentionis a favor do beneficiário da promessa visa garantir a satisfação do quantum respondeatur, ou seja, do crédito indemnizatório emergente do incumprimento definitivo e imputável à outra parte420. Em caso de estipulação de sinal, esse crédito consistirá no dobro do sinal ou no valor actualizado da coisa nos termos do art.442.º, n.º2 ou ainda, no valor da indemnização contratualmente fixada (art.442.º, n.º 4). Na hipótese de ausência de sinal, o crédito indemnizatório será fixado nos termos gerais (arts.798.º e ss e 562.º e ss)421.
3.2.O Ius Retentionis do Promitente-Comprador Versus o Direito de Propriedade de Terceiro
Apesar de a lei não circunscrever o objecto imediato do contrato-promessa422, julgamos pertinente especializar o nosso estudo no contrato-promessa de compra e venda de coisa imóvel (prédio urbano ou fracção autónoma dele), construída ou em construção423, centrando a nossa investigação no conflito entre o direito de retenção do promitente-comprador e o direito de propriedade do terceiro sobre a mesma res424.
Dos elementos constitutivos do especial ius retentionis, importa sublinhar que está em causa um incumprimento definitivo do tradens da coisa. Ou seja, independentemente do debate académico acerca da natureza do incumprimento gerador
420 Decorrente dos efeitos ex tunc da resolução, v. arts.289.º, 432.º e 433.º.
000 X. XXXXX, XXXX XXXXXX XX, Xxxxx…, cit., p.192 a 193 e XXXXXXXXXXX, SÉRGIO NUNO COIMBRA,
«Direito de Retenção…, cit., p.508.
422 O direito de retenção é atribuído em qualquer contrato-promessa que tenha por objecto a transmissão ou constituição do direito real sobre uma coisa móvel ou imóvel, rústica ou urbana, para fins habitacionais mas também, comerciais, de indústria, ou liberais, v. XXXXX, XXXX XXXXXX DA, Xxxxx…, cit., p.192.
423 Mesmo no caso de a fracção autónoma integrar um prédio ainda não submetido ao regime de propriedade horizontal. A melhor doutrina aceita o direito de retenção neste caso sobre o imóvel inacabado, na proporção do valor da fracção objecto do contrato-promessa, v. XXXXX, XXXX XXXXXX DA, Xxxxx…, cit., p.193. Em sentido contrário, v. XXXXXXX, J. C. XXXXXXX, «Para a necessidade de uma melhor tutela dos promitentes-adquirentes de bens imóveis (máxime, com fim habitacional), CDPriv. n.º22, 2008, p.20.
424 Assumimos, por maioria de razão, a extensão das soluções que desenvolveremos infra, às hipóteses de o contrato preliminar ter por objecto e/ou de o terceiro ter adquirido um direito real menor, com as devidas adaptações, pois a incompatibilidade de exercício de direitos poderá ser meramente parcial.
da garantia, in casu existe sempre direito de retenção porque a coisa antecipadamente entregue ao accipiens foi alienada a um terceiro. Há uma impossibilidade de cumprimento do contrato-promessa imputável à contraparte425. Porque a impossibilidade culposa concede o direito de resolução do contrato pela parte fiel426, comprovamos a presença do crédito indemnizatório pré-determinado nos termos do art.442.º, n.º 2 ou 4, em caso de sinal ou a fixar nos termos gerais, segundo os arts.798.º e 562.º e ss e a obrigação de entregar o que foi prestado, incluindo a própria coisa.
Esta situação ocorre pelo facto de o promitente-vendedor poder dispor livremente da coisa, de forma válida e eficaz427. Ou seja, até à celebração do contrato definitivo, ele continua proprietário, logo com um ius disponendi, em termos de poder alienar ou onerar a coisa quando, in casu, tenha legitimidade para tal428. Assim, a venda a um terceiro da res prometida alienar naquele pacto, é válida e produz imediatamente efeitos jurídicos429. O direito real adquirido pelo terceiro tornar-se-á oponível erga omnes mediante o registo predial do facto aquisitivo430. Estamos perante uma aquisição derivada translativa431, onde vigora o princípio nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse haberet432.
Por isso especificamos a impossibilidade culposa de realização do contrato prometido como subjectiva, absoluta, superveniente e definitiva433, logo impeditiva dos efeitos de uma execução específica, na medida em que o contrato-promessa não goza, neste caso, de eficácia real434. Alienada ao terceiro, o promitente faltoso não pode transmitir ao promitente-adquirente uma coisa que já não é dele.
De forma a tutelar o crédito indemnizatório pela resolução do contrato- promessa, o nosso legislador atribui ao promitente fiel um direito de retenção que perturba o direito de propriedade adquirido pelo terceiro. A melhor doutrina435 e
425 V. CORDEIRO, A. XXXXXXX, «O Novo Regime…, cit., p.40.
426 V. arts.791.º e 801.º, n.º1
427 Nesta linha, v. XXXXXXXX, X. XXXXXXXX, Obrigações Reais e Xxxx Xxxxx, Reimp., Coimbra, Xxxxxxxx, 1997, p.79.
428 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.283.
429 A compra e venda é um contrato real quoad effectum (arts. 408.º, n.º 1, 879.º/a) como expressão do nosso sistema do título e do princípio da consensualidade (consensus parit proprietatem). Basta o mútuo consenso para a produção de efeitos reais, v. tb. os arts.954.º/a e 1317.º/a.
430 Arts.2.º, n.º1/a e 5.º do CRPred.
431 V. XXXXX, XXXXXX XXXXXXX XX XXXX, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p.362.
432 Não podem ser transmitidos mais direitos ou direitos de conteúdo mais amplo do que aqueles que se detém. As excepções ao princípio não estão aqui presentes, id., p.363 e ss.
433 V. XXXXX, XXXXXXXX XXXXXX, Direito das Obrigações, ed. policopiada, 1975/76, p.89 e ss.
434 V. XXXXX, XXXX XXXXXX DA, Xxxxx…, cit., p.161 e ss e, a contrario sensu, p.22.
435 V. XXXXXX, XXXXXXX, Anotação ao Ac. do STJ, de 25/02/86, RLJ, n.º 3812, Ano 124, 1992, p.351.
jurisprudência436 não questionam a sua oponibilidade a este sujeito, considerando a situação como uma manifestação do direito de seguimento da coisa437/438.
Os seguidores da teoria da eficácia externa das obrigações resolvem o problema noutros termos, mais concretamente, pela doutrina do terceiro cúxxxxxx000. A pouca doutrina portuguesa a seu favor sustenta a importância da cumplicidade do terceiro que conclui um contrato com o devedor, tendo conhecimento das suas implicações na esfera jurídica do credor, de modo a que este possa responsabiliza-lo directamente.
Neste sentido, A. Menezes Cordeiro considerar nulo o contrato de compra e venda celebrado com um terceiro de má fé, por o seu objecto ser contrário à lei, nos termos do art.280.º440. Consequentemente, o conflito de direitos reais desvanece, pois os efeitos ex tunc da declaração de nulidade441 impedem a constituição válida de um direito real incompatível com a garantia442.
Os demais Aa. defensores desta doutrina não mencionam expressis verbis a nulidade da compra e venda mas apenas sublinham a possibilidade de o credor responsabilizar o terceiro. Nesta medida, o direito de retenção reforçará também o direito à indemnização directamente exigível ao adquirente da coisa443. Dúvidas surgem quanto à especificação da má fé do terceiro, ou seja, quanto a saber se basta qualquer comportamento culposo ou se é necessária a actuação dolosa444.
436 V. os acs. do STJ de 27/05/04, CJ/STJ, Ano 12, T. II, 2004, p.80 e de 13/01/00, BMJ, n.º 493, 2000,
p.363, da RP de 09/11/10, cit., p.190, e da RE de 02/07/09, cit., p.257 e de 25/11/04, CJ, Ano 29, T.V, 2004, p.249.
437 V. os acs. do STJ de 12/03/13, relatado por Xxxxxxx Xxxxxxxx e da RL de 30/11/94, relatado por Xxxxxx Xxxxxxxxxx, ambos in xxx.xxxx.xx.
438 No caso de execução para entrega de coisa certa, movida pelo novo proprietário contra o vendedor, o promitente-comprador poderá deduzir embargos de terceiros (arts.351.º e ss do CPC e arts.342.º e ss do CPC/13), v. XXXXXXXX, XXXX XXXXXX XX XXXXXXX, Apreensão de Bens em Processo Executivo e Oposição de Terceiros, 2ª ed., rev. e aum., Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p.269 a 271 e FRANÇA, XXXXXX XXXXXX, «Direito de Retenção. (Algumas das) Suas Implicações na Acção Executiva», RJ/UP, n.º 11, 2003, p.155.
439 V. XXXXXXX, X. XXXXXX, Estudos Jurídicos, vol.II, Coimbra, Atlântida Editora, 1969, p.49, XXXXX, XXXXXXXX XXXXXX, Direito das Obrigações, cit., p.580 e CORDEIRO, X. MENEZES, Direito das Obrigações, vol.I, cit., p.265.
440 V. CORDEIRO, A. XXXXXXX, «O Novo Regime…, cit., p.40. V. tb., XXXXXXXXX, X. XXXX, «À volta…,
cit., p.329.
441 Arts.286.º e 289.º
442 O ac. do STJ de 16/06/64, no âmbito da violação de um pacto de preferência, julgou a necessidade de o terceiro entregar a coisa ao promissário. O ac. foi seguidamente comentado por Xxx Xxxxx que não segue o mesmo entendimento e sugere uma eventual responsabilização do terceiro exclusivamente por força de um abuso de direito a comprovar, in casu, v. RLJ, Ano 98, n.º 3287, 1965, p.19, 30 e 31.
443 V. XXXXX, XXXXXXXX XXXXXX, Direito das Obrigações, cit., p.581 e 583 e CORREIA, A. XXXXXX,
Estudos Jurídicos, vol.II, cit., p.51.
444 Neste sentido v. XXXXX, XXXXXXXX XXXXXX, Direito das Obrigações, cit., p.581 e 583 e, parece-nos, CORREIA, A. XXXXXX, Estudos Jurídicos, vol.II, cit., p.50. No entendimento de que basta o conhecimento da obrigação do parceiro negocial incompatível com a aquisição, v. XXXXXXXXX, X. XXXX, «À volta…, cit., p.328.
A doutrina e a jurisprudência rejeitam, maioritariamente, a teoria da eficácia externa e, concomitantemente, a doutrina do terceiro cúmplice. O crédito goza de mera eficácia interna445, sendo que a única forma de censura jurídica do comportamento do terceiro, encontrar-se-á no instituto do abuso de direito. Cremos que este é o mais avisado pensamento. O dever de celebrar o contrato definitivo impende sobre o promitente-vendedor, logo só ele pode violar o direito subjectivo correspectivo e relativo do credor.
Para responsabilizar o terceiro, não basta ter conhecimento do contrato- promessa, é imprescindível a verificação de uma conduta à partida lícita446, mas especialmente reprovada pelo ordenamento jurídico porque o seu concreto modo de exercício excede manifestamente os limites impostos pela boa fé447. Nesta hipótese e nas palavras de X. X. xx Xxxxxxx Xxxxx, cabe ao juiz decidir pelas sanções jurídicas mais adequadas, seja a de mera indemnização pelo terceiro, mantendo o negócio abusivo, seja a de destruir o seus efeitos e, consequentemente, a de garantir a execução específica pelo promitente-comprador448. Em nossa opinião, no primeiro caso, o direito de retenção deveria estender-se ao crédito exigível do terceiro, mas já não no segundo caso, por seguirmos o pensamento segundo o qual o direito à execução específica não é objecto de reforço pela garantia.
Cumpre retomar a nossa situação típica de acordo com a dogmática consensualmente aceite: eficácia absoluta dos direitos reais versus eficácia relativa dos direitos de crédito, fora da hipótese de um abuso de direito do terceiro.
Há que levar em linha de conta que ainda existem vozes manifestamente contrárias à oponibilidade da retentio perante o terceiro adquirente, ou seja, vozes discordantes quanto à própria natureza jurídica da garantia449.
445 Apesar de existir uma certa oponibilidade a terceiros para alguns direitos de crédito (por ex. pelo art.1057.º), v. XXXXXX, XXXXXXX, Das Obrigações em Geral, vol.I, cit., p.172 e ss.
446 Ao abrigo da liberdade contratual, art.405.º.
447 Em sentido normativo, o que permite considerar que é o exercício do direito legalmente reconhecido ao terceiro que se torna ilegítimo e não a violação do direito de crédito do credor (art.334.º), v. XXXXXX, XXXXXXX, Das Obrigações em Geral, vol.I, cit., p.179 e XXXXX, M. J. XX XXXXXXX, Direito das Obrigações, cit., p.96. Parece-nos que a própria argumentação desenvolvida por Xxxxxx Xxxxxxx induz que a actuação do terceiro só é efectivamente reprovável em casos de abuso de direito, v. XXXXXXX, X. XXXXXX, Estudos Jurídicos, vol.II, cit., p.50.
448 V. XXXXX, X. X. XX XXXXXXX, Direito das Obrigações, cit., p.90.
449 V. o agravo julgado pela RP, cujo recurso para o STJ, de 25/02/86, foi anotado por Xxxxxxx Xxxxxx, já citado. V. tb. o ac. do STJ de 10/01/08, relatado por Xxxxxxxx xx Xxxxx in xxx.xxxx.xx, que entende que o retentor deve ser credor de quem pode exigir a coisa e o ac. da RC de 21/06/94, XX, X.XXX, 1994, p.36, que ignora a al.f. do art.755.º.
Neste ponto, recordamos o pensamento de Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx. No tocante à específica oponibilidade perante um terceiro adquirente, o A. expressa que, por falta de um preceito análogo ao art.751.º na regulamentação do direito de retenção, mas também, em nome da protecção de terceiros de boa fé, a retenção não será oponível ao terceiro de boa fé, que adquiriu em momento anterior ao registo do arresto ou penhora em processo executivo450 de iniciativa do retentor e independentemente da data de registo do direito de propriedade, por falta de publicidade da retentio aquando da aquisição451.
Lembramos, também, o desenvolvido por Xxxxx Xxxxx, que considera preferível uma mera oponibilidade relativa da garantia nos casos de conexão subjectiva452/453.
Todavia, exceptuando os pensamentos divergentes acima referidos, porque o ius retentionis é reconhecido como um autêntico direito real de garantia, defende-se, maioritariamente, que a venda a um terceiro representa, para ele, uma res inter alios acta454. Não releva a titularidade de quem obteve a detenção, basta que tenha tido a posse com base em qualquer título legítimo455. O que é verdadeiramente determinante, em qualquer caso comum ou especial de direito de retenção, é a ligação entre o retentor e a coisa456.
3.3. A Protecção Pré-tabular do Accipiens: uma Proposta Preventiva do Incumprimento do Tradens
Cumpre reflectir acerca das possíveis soluções alternativas ou meramente preventivas do conflito entre o exercício do direito de retenção e do direito de propriedade de terceiro adquirente.
450 Recordamos que o arresto é um procedimento cautelar especial, que consiste na apreensão judicial de bens do requerido, art.406.º do CPC (arts.391.º e ss do CPC/13). A penhora consiste num acto judicial fundamental ao processo executivo, concretizado na apreensão judicial de bens do executado, v. XXXXXXX, XXXX XXXXX XX, A Acção Executiva, 5ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p.205 e arts.821.º e ss do CPC (arts.735.º e ss do CPC/13). V. tb. os arts.2.º, n.º 1/n e 3.º, n.º 1/d e /e do CRPred.
451 V. XXXXX, XXXXXX XXXXXXX DE, O Direito…, cit., p.51.
452 V. supra, 2.1, II.
453 Xxxxx, vimos que no Direito francês, alguma doutrina e jurisprudência reconhecem ao direito de retenção fundado numa conexão subjectiva, a sua oponível ao proprietário desde que tenha adquirido o direito em momento posterior à detenção.
454 V. SAPUILE, BELCHIOR DO ROSÁRIO LOYA E, Do Direito…, cit., p.284, nota 432.
455 V. XXXXXXXX, XXXXX XXXXXX, Direito das Obrigações…, cit., p.379.
456 V. MADALENO, CLÁUDIA, A Vulnerabilidade…, cit., p.102 e 154.
Deve presenciar a nossa reflexão, a ratio do direito de retenção a favor do promitente fiel. Nesta linha, Xxx Xxxxx sublinha a imprescindibilidade da garantia real por várias razões. Primeiro, porque via de regra, os promitentes fiéis sofrem sempre dificuldades de cumprimento, muitas vezes por insuficiente solvabilidade dos promitentes faltosos. Segundo, porque pretender eliminar as condutas especulativas dos mesmos através de uma indemnização actualizada do valor da coisa ficaria sem efeitos, pela sua alienação a um terceiro e pela consequente dissipação do produto da venda.
Em suma, porque no caso de alienação a terceiro torna-se impossível a execução específica, se a garantia do crédito do promitente fiel não pudesse ser oposta ao terceiro adquirente, muito provavelmente aquele sujeito não seria efectivamente ressarcido pelo promitente faltoso457.
Acresce que, o promitente fiel já gozava da res ao tempo do incumprimento, o que ao nível dos imóveis implica uma indubitável criação de estabilidade e de planos de vida com base naquela habitação ou imóvel para fins habitacionais, comerciais ou profissionais. Sem esquecer que, muitas vezes, já procedeu ao pagamento do seu preço, já mobilou o imóvel, ou seja, já investiu consideravelmente na futura aquisição antecipadamente fruída com autorização do ainda proprietário.
Porém, o exercício do ius retentionis também envolve, frequentemente, o pagamento do crédito pelo terceiro458 que pretende gozar livremente do seu direito de propriedade, podendo desconhecer totalmente do anterior contrato-promessa. Assim e apesar de o crédito ser exclusivamente exigível ao devedor, é o terceiro que acaba por pagar além do preço da coisa ao vendedor, um valor sensivelmente próximo do mesmo mas ao promitente fiel, a título indemnizatório.
É portanto essencial observar as posições jurídicas dos terceiros entre si. Porque este direito de retenção consta especialmente da lei, deverá exigir-se maior cautela por parte do terceiro? Como fazê-lo quando sabemos que o contrato-promessa sem eficácia real, mesmo com traditio rei, não está sujeito a registo? Mais importante ainda, como obstar ao particular enriquecimento do vendedor que recebe o sinal e parte ou totalidade do preço pelo promitente fiel, e ainda, o preço pelo comprador?
457 V. XXXXX, XXX X. X. XXXXXXXXX, O Contrato-Promessa…, cit., p.889 e 890.
458 No Direito francês, tem-se entendido que, tendo conhecimento da situação anterior à sua aquisição, o terceiro tem o ónus de convencionar um modo de obter o reembolso do que pagar ao retentor, junto do verdadeiro devedor – seu vendedor, v. XXXXX, XXXXXXXX, Le Droit…, cit., p.285, que aponta para a convenção de sub-rogação nos direitos do retentor contra o seu devedor.
Importa debruçarmo-nos sobre o trágico paradoxo apontado por X.X.Xxxxxxx Proença, que consiste em conseguir uma perspectiva conciliadora da forte expectativa de aquisição criada na esfera jurídica do promitente fiel, sem perder de vista o facto de onde emerge: o contrato-promessa que, pela sua eficácia meramente obrigacional, mas também, pelo espaço temporal necessariamente existente entre o momento de celebração do contrato preliminar e do contrato definitivo, assinala uma ínsita instabilidade do compromisso459.
A nossa convicção assenta na atribuição de efeitos substantivos ao registo provisório de aquisição, com base no contrato-promessa com efeitos meramente obrigacionais. Vejamos.
Sabemos que, entre nós460 vigora o sistema do título, sendo que o registo dos direito reais representa uma mera manifestação do princípio da publicidade. Recordamos igualmente que a função do registo predial destina-se a dar a conhecer ao público a situação jurídica dos prédios ou coisas móveis sujeitas a ele, tendo por regra, um efeito consolidativo461.
O registo inscreve462 factos relativos a coisas imóveis ou móveis legalmente sujeitas a ele. O acto de registo é definitivo quando produz os seus efeitos sem qualquer reserva, e é provisório quando alguma circunstância impede que tal aconteça. O registo é provisório por dúvidas quando algum motivo obsta a inscrição tal como é requerida463. Neste caso, a conversão em definitivo opera quando as dúvidas desaparecerem. O registo é provisório por natureza pelas razões legalmente previstas no art.92.º do CRPred. Nesta hipótese, a conversão em definitivo ocorre mediante a comprovação de um outro facto que supre a causa da provisoriedade464/465.
O registo provisório de aquisição encontra-se no art.47.º do CRPred. O seu n.º 1 refere o registo provisório de aquisição de um direito ou de constituição de uma
459 V. XXXXXXX, J. C. XXXXXXX, «Para a necessidade…, cit., p.3.
460 Mas tb. em França e Itália, v. XXXXXXXX, XXXXXXX DE, Direito das Coisas, cit., p.274.
461 V. supra, 4.2, I.
462 Art.91.º, n.º 1 do CRPred.
463 Art.70.º do CRPred. Doravante, referir-nos-emos somente a este diploma e dispensaremos as menções ao CRBM, uma vez que, para além do seu regime ser análogo, o nosso estudo centra-se no contrato- promessa relativo a imóveis.
464 O registo caduca no prazo de seis meses sem conversão em definitivo (ou renovação na hipótese de provisoriedade por natureza), art.11.º do CRPred.
465 Por tudo o que foi exposto acerca da inscrição, v. XXXXX, X. SANTOS, Direitos Reais, cit., p.59 e 60.
hipoteca voluntária, antes de titulado o negócio. O seu n.º 3 estabelece a possibilidade de registo provisório de aquisição com base em contrato-promessa de aquisição466.
A este propósito, Xxxxxx Xxxxxx sublinha que, no registo provisório inscreve-se uma aquisição ainda não ocorrida, pois o título com base no qual se procede à mesma não é o contrato definitivo, melhor se dirá, o facto jurídico aquisitivo do direito real. Porém, porque se prevê que no futuro irá existir, torna-se público um direito ainda não adquirido em termos substantivos mas que irá surgir, com base num título futuro, na esfera jurídica a favor de quem reverte a inscrição. Por isso, esse registo é provisório por natureza, nos termos do art.92.º, n.º1/g e n.º 4 do CRPred467. A sua conversão em definitivo ocorrerá quando a causa da provisoriedade, ou seja, a incerteza da aquisição do direito, for removida468, antes de caducar ou de ser cancelado469. A estabilidade deste registo será portanto alcançada, aquando do registo definitivo do facto aquisitivo do direito já publicitado: o direito real agora titulado, válido e incontestavelmente eficaz erga omnes.
Qual o valor a atribuir ao registo provisório por natureza de aquisição? Afirmámos supra que a nossa convicção demarca-se pela atribuição de efeitos substantivos. Este entendimento implica a procedência de uma acção de execução específica registada provisoriamente por natureza470, um consequente registo da decisão judicial que produz os efeitos reais da declaração negocial não emitida471 e a conversão ex officio em definitivo do registo provisório472, mesmo em caso de alienação da mesma res a terceiro, registada antes do registo da acção judicial mas depois do registo provisório. À luz do art.92.º, n.º2/b, do CRPred, o registo do facto aquisitivo do terceiro será realizado provisoriamente por natureza e será cancelado ex officio, nos termos do n.º 6 da mesma norma, por força do registo da decisão judicial, uma vez que ela produziu efeitos reais incompatíveis com o direito emergente daquele facto provisoriamente registado e que, de acordo com o art.6.º, n.º3 do mesmo diploma, a
466 Com efeitos obrigacionais, pois o contrato-promessa com efeitos reais é objecto de registo definitivo, art.2.º, n.º 1/f do CRPred. O registo provisório surge com o actual CRPred de 1984.
467 V. JARDIM, XXXXXX XXXXXXXXXX XXXXX XX XXXXX, O Registo Provisório de Aquisição, Comunicação feita na F.D.U.C., no Congresso de Direitos Reais, em 29/11/03, in xxx.xx.xx.xx, p.8.
468 Art.34.º, n.º 2 do CRPred.
469 Arts.11.º, 13.º e 92.º, n.º 4 do CRPred.
470 Arts.3.º, n.º1 e 92.º, n.º2/b do CRPred. O registo da acção é feito por averbamento à primeira inscrição, relativa ao registo provisório de aquisição, v. arts.100.º, n.º1 do CRPred.
471 Esta decisão é igualmente registada por averbamento à inscrição do registo provisório de aquisição (art.101.º, n.º 2/c do CRPred).
472 Art.34.º, n.º 2 do CRPred, também efectuado por averbamento, art.101.º, n.º 2/d do CRPred.
prevalência do registo da decisão judicial retroage à data de um não-direito, melhor se dirá, à data do registo provisório de aquisição ainda não titulada473/474.
Assim, reconhecer efeitos substantivos ao registo provisório implica concluir pela prevalência do direito publicitado mas ainda não existente na titularidade do promitente-comprador e com base num título futuro, perante um posterior registo de um facto jurídico aquisitivo de um direito com ele incompatível, baseado num título presente.
Assumindo uma tutela registal que contradiz as regras de Direito Civil substantivo, verifica-se um pertinente debate académico.
X. X. xx Xxxxxxx Xxxxx e X. Xxxxxxxx Xxxxxxxxx criticam a atribuição de efeitos substantivos ao registo provisório de aquisição. Perante uma alienação da coisa prometida vender ao sujeito a favor do qual existe um registo provisório, pelo titular registal a um terceiro, independentemente do registo, ele é titular do direito real incompatível com a futura aquisição daquele. À luz das regras de Direito Civil, deve prevalecer a aquisição do direito real pelo terceiro perante um direito de crédito à celebração de um contrato real mas futuro. L. Xxxxxxxx Xxxxxxxxx salienta que, porque a alienação a terceiro é válida e eficaz, não chega a ser celebrado o contrato definitivo prometido nem há produção dos seus efeitos por decisão judicial e o registo provisório de aquisição não é convertido em definitivo. Aliás, um entendimento diverso levaria a uma diluição de fronteiras entre o contrato-promessa com eficácia real e o contrato- promessa com efeitos meramente obrigacionais475.
Em termos jurisprudenciais, no ac. de 25/06/02, o STJ476 argumentou no sentido de que, à luz dos arts.408.º, n.º 1, 1316.º e 1317.º/a do CC, um contrato-promessa de
473 V. JARDIM, XXXXXX XXXXXXXXXX XXXXX XX XXXXX, O Registo…, cit., p.10, 15 e 16.
474 Este resultado está condicionado à não caducidade ou cancelamento do registo provisório antes da aquisição do terceiro, nos termos dos arts.11.º e 92.º, n.º 4 do CRPred. In casu, a inscrição deve ser renovada por períodos de seis meses, até ao limite máximo de um ano após a data prevista para a celebração do contrato definitivo e com base em documento que prove o consentimento das partes.
475 V. XXXXX, X. X. XX XXXXXXX, Direito das Obrigações, cit., p.413 e 414, nota 2. Na medida em que o registo provisório acaba por tutelar um direito que só existirá aquando da celebração do contrato definitivo, o A. recorda o instituto alemão da prenotação (§883, do BGB), como medida registal e cautelar da posição do adquirente. Recordamos que no Direito alemão vigora o sistema do modo. São celebrados dois negócios, no primeiro as partes manifestam a vontade de alienar a coisa, e no segundo, independentemente da sorte do anterior, determina-se a produção de efeitos reais, quando acompanhado da entrega da coisa ou do seu registo, consoante esteja em causa uma coisa móvel ou imóvel (§§929 e 873 do BGB). V. tb. XXXXXXXXX, X. XXXXXXXX, «Efeitos do registo da acção de execução específica do contrato-promessa», Estudos dedicados ao Prof. Doutor Xxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxx, Lisboa, Universidade Católica de Lisboa, 1ª ed., 2001, p.950 e 951. Segundo este último A., o registo provisório tem como único efeito, o de apurar a hipotética responsabilidade do terceiro adquirente, enquanto cúmplice do promitente faltoso.
476 V. CJ/STJ, Ano 10, T.II, 2002, p.127 e 128.
compra e venda sem eficácia real gera apenas direitos obrigacionais. Assim, o simples registo provisório não pode fazer retroagir o direito de propriedade a um momento em que ele não era da titularidade do sujeito a favor do qual foi realizado. A RL decidiu, no ac. de 11/02/10477, pela inoponibilidade da aquisição registada provisoriamente por envolver uma absoluta incompatibilidade com o regime de contrato-promessa com eficácia real. In casu, ambos os acs. decidiram pela prevalência do registo de um arresto da coisa perante o anterior registo provisório de aquisição com base num contrato- promessa.
Extrapolando a argumentação desenvolvida pelo STJ e pela RL, para a situação de confronto entre um registo provisório de aquisição e o registo posterior de um facto aquisitivo incompatível com ele a favor de terceiro, seria dada prevalência ao direito deste e negada a prioridade daquele, considerando, a alienação com base no registo provisório de aquisição como uma compra e venda de coisa alheia.
Xxxxxxxxxx a crítica a esta jurisprudência argumentada por Xxxxxx Xxxxxx. A
A. defende que negar os efeitos substantivos ao registo provisório tem por consequência retirar-lhe qualquer efeito útil478. Porque razão registar provisoriamente um facto aquisitivo a existir no futuro, se perante uma situação de conflito de interesses, as regras de direito substantivo primam sobre as regras registais?
A A.479 entende que o registo provisório de aquisição goza de efeitos substantivos e representa uma reserva de prioridade própria e causal480. Mais concretamente, argumenta que o registo provisório de aquisição, com base num pactum de contrahendo, permite ao titular registal limitar voluntariamente os seus poderes de alienação ou oneração da coisa objecto de um contrato-promessa com efeitos meramente obrigacionais.
Deste modo, ultrapassa o obstáculo invocado pelas teorias ex adverso ao realçar uma essencial diferença entre o registo definitivo do contrato-promessa com eficácia real e o registo provisório com base num contrato-promessa com efeitos meramente obrigacionais. Naquele, estamos perante um registo com uma função muito similar à prenotação do Direito alemão481, onde se alarga a eficácia inter partes do direito de crédito aos restantes membros de uma comunidade jurídica, e onde o registo visa
477 Relatado por Xxxxxx Xxxxxxx in xxx.xxxx.xx.
478 V. JARDIM, XXXXXX XXXXXXXXXX XXXXX XX XXXXX, O Registo…, cit., p.6.
479 Xxxxxx.
000 Xxxxxx. O STJ manifestou uma opinião idêntica nos acs. de 08/02/00 e de 15/05/01, id., p.4, mas inversa no ac. de 25/06/02, como foi referido.
481 V. supra nota 475.
proteger o titular de um direito já existente contra o próprio titular registal inscrito482. A contrario sensu, no registo provisório de aquisição483 publicita-se a intenção de o titular registal vir a alienar a coisa a um promitente-comprador, limitando deste modo, os efeitos substantivos dos actos posteriores de alienação ou oneração que se revelem incompatíveis com o futuro direito real do promitente-comprador, sujeito a favor do qual é feita uma reserva de lugar484. Esta limitação opera perante direitos posteriormente constituídos e incompatíveis com aquela reserva, provenientes do titular inscrito, e fica condicionada à caducidade ou cancelamento do registo provisório485/486.
Assim, a A. não considera que o registo provisório antecipa um direito ainda inexistente487, mas sim, que pela incompatibilidade entre o registo posterior de um direito de terceiro sobre a coisa com a reserva de lugar já realizada, a posição desse terceiro é inoponível perante o sujeito a favor do qual a reserva reverteu. Nas palavras de Xxxxxx Xxxxxx, pelo registo provisório, o titular inscrito fica privado dos benefícios inerentes à sua posição registal, em proveito do futuro adquirente488.
No tocante à legitimidade para solicitar o registo, a A. assume duas perspectivas opostas consoante se discuta o tema antes e depois da entrada em vigor do DL n.º116/2008, de 04/07. Em momento anterior à vigência deste diploma, o registo provisório de aquisição translativa apenas deveria ser lavrado quando o promitente manifestasse vontade em ver alterada a situação tabular489. A A. argumenta que esta interpretação é a que melhor se adequa, além do mais, com os arts.34.º, n.º 2 e 92.º, n.º4 do CRPred mas, sobretudo, com a soberania ínsita dos direito reais, dificilmente consentânea com a legitimidade do promitente-comprador que, sem o consentimento do titular do ius in re, poderia limitar a eficácia dos actos posteriormente praticados por ele,
482 V. JARDIM, XXXXXX XXXXXXXXXX XXXXX XX XXXXX, O Registo…, cit., p.14.
483 J. C. Brandão Proença refere a estreita aproximação entre o registo provisório de aquisição e a trascrizione italiana do contrato-promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre imóveis construídos ou em construção, prevista no art.2645.º bis do CCit. O preceito estatui que, quando seja acompanhada da trascrizione do contrato definitivo ou da sentença de execução específica, a trascrizione do contrato-promessa prevalece sobre os registos posteriores de direitos reais, v. XXXXXXX, J. C. XXXXXXX, «Para…, cit., p.23.
484 Id., p.9, 10 e 14.
485 Art.10.º do CRPred
486V. tb., XXXXXXX, XXXXX, «O direito…, cit., p.96. O A. tb. invoca a alternativa de o legislador considerar válida a atribuição de efeitos reais ao pactum de contrahendo, através de mero documento particular.
487 Neste âmbito, diverge da opinião manifestada em parecer pelo CTDGRN, constante do Proc. n.º101/96
R.P. 4, BRN n.º 7/97, II Caderno in xxxx://xxx.xxx.xx.xx.
488 V. JARDIM, XXXXXX XXXXXXXXXX XXXXX XX XXXXX, O Registo…, cit., p.15. V. tb. XXXXXX, XXXXXXXX,
Código do Registo Predial Anotado Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p.272 e 273.
489 Apesar de se integrar nas teorias ex adverso, é da mesma opinião XXXXXXXXX, L. XXXXXXXX, «Efeitos do registo…, cit., p.950. Na jurisprudência, v. o ac. da RC, de 25/06/02, CJ, Ano 27, T. III, 2002, p.37.
sobre uma coisa da sua titularidade490. O título que deveria basear o registo provisório de aquisição translativa seria exclusivamente a vontade do titular registal inscrito em ver alterada a situação tabular, acompanhada de uma declaração de intenção de alienar o direito no futuro491.
O DL n.º 116/2008 alterou a redacção do n.º 4, do art.47.º do CRPred, ao estatuir que o registo provisório de aquisição pode ser lavrado com base num contrato-promessa de alienação, salvo convenção em contrário. Segundo Xxxxxx Xxxxxx, o legislador deixou claro que este registo pode ser realizado com base na declaração de intenção de alienar contida num contrato-promessa, independentemente da declaração do promitente-alienante, titular registal definitivamente inscrito, em ver alterada a situação tabular, salvo convenção em contrário492.
Segundo a A., não se compreende por que razão o legislador reconhece a possibilidade de feitura deste registo com dois títulos diferentes, um baseado numa declaração de ver alterada a situação registal que contém ou revela a intenção de alienar o imóvel, e outro apenas fundado na intenção de alienar o direito através de um acto certo e determinado nos seus elementos essenciais, quando ambos os registos geram os mesmos efeitos substantivos.
Na sua perspectiva, o legislador atribui relevância à vontade do promitente- adquirente e de um terceiro interessado, em ver a situação registal alterada493. Por isso, na prática, o registo provisório de aquisição é lavrado com base na intenção do titular registal, definitivamente inscrito, alienar o direito e na vontade daquele que o requeira, por pretender ver alterada a situação registal existente494.
Xxxxxx Xxxxxx entende que o iter legislativo deveria ter sido o oposto ao efectivamente seguido, no sentido de estabelecer que o registo provisório de aquisição de direitos poderia ser lavrado com base numa declaração da intenção de alienar contida no contrato-promessa, desde que a mesma fosse acompanhada da declaração de vontade do promitente-alienante em ver a situação tabular alterada495. A contrario, o art.36.º do CRPred vigora para todos os registos, inclusive provisórios de aquisição de direitos, com as devidas adaptações. Ou seja, têm legitimidade para pedir o registo
490 V. JARDIM, XXXXXX XXXXXXXXXX XXXXX XX XXXXX, O Registo…, cit., p.11.
491V. JARDIM, XXXXXX XXXXXXXXXX XXXXX XX XXXXX, Efeitos Substantivos do Registo Predial: Terceiros para Efeitos de Registo, Dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 2013 e que nos foi cedida pela A., p.834.
492 Ibidem
493 Id., p.835.
494 Id., p.836.
495 Id., p.841.
provisório de aquisição, com base numa declaração de alienar o direito contida num contrato-promessa, o sujeito activo – futuro adquirente, ou passivo – futuro alienante, da relação jurídica ainda não existente mas a publicitar, bem como qualquer interessado em tal assento registal496.
Muito brevemente, cumpre referir a opinião de G. Xxxxx Xxxxxxxxx000. Embora a propósito de um conflito de direitos reais de garantia, melhor, entre o direito de retenção e uma hipoteca registada após o registo provisório com base no contrato-promessa, o A. menciona que o sentido a reconhecer ao art.47.º, n.º 3, conjugado com o art.92.º, n.º1/g, ambos do CRPred, só poderá ser um: o de tornar oponível erga omnes a situação jurídica do prédio objecto mediato de contrato-promessa sem eficácia real a favor do promitente-comprador, agora devidamente publicitada. Refere igualmente que, a legitimidade do registo é de qualquer interessado e que o mesmo não depende da tradição da coisa. Inversamente, esta é conditio do nascimento do ius retentionis.
Portanto, poderíamos concluir que o A. também reconhece efeitos substantivos ao registo provisório. Todavia, mais tarde acrescenta que esse registo do contrato- promessa sem eficácia real diferencia-se do registo definitivo da promessa com eficácia real pelo facto de este permitir a execução específica custe o que custar, ou seja, mesmo no caso de alienação a terceiro, o que aquele não possibilita, pela falta de realidade do direito de aquisição do promitente-adquirente498.
Assim, apesar de prima facie parecer tender para uma posição protectora do promitente-adquirente com registo provisório perante qualquer terceiro, logo, face a alienações futuras da coisa a adquirir, revela-se negativamente, pois a eficácia do registo provisório só vale perante certos actos de disposição do titular registal, mais concretamente, apenas perante os que implicam uma oneração do prédio mas já não, uma transmissão a terceiro. Desenvolveremos infra, com mais ênfase e em lugar próprio, o pensamento do A. e as fragilidades que lhe apontamos.
Note-se que, o conflito que agora se discute não é um verdadeiro conflito de exercício de direitos reais incompatíveis entre si. Porque antecedemos o problema ao tempo do valor a reconhecer ao registo provisório, discute-se a prevalência de um direito a adquirir a propriedade, registado a favor do promitente-adquirente, perante
496 Id., p.829.
497 V. XXXXXXXXX, XXXXXXX XXXXX, «Temas da Acção Executiva», Xxxxxx, V.9, vol.2, 2004, p.283, 285 e nota 31 e 33.
498 Id., p.292 e 293.
um direito de propriedade efectivamente transmitido pelo mesmo sujeito – titular registal, a favor de um terceiro499.
Relativamente aos efeitos a reconhecer ao registo provisório de aquisição translativa, concordamos com o pensamento de Xxxxxx Xxxxxx e com as suas críticas às teorias ex adverso. Rejeitamos assim, as conclusões que nos desolam, da doutrina defendida por X. X. xx Xxxxxxx Xxxxx e X. Xxxxxxxx Xxxxxxxxx e, pela jurisprudência do STJ, no ac. de 25/06/02.
A nossa convicção em solucionar o conflito sob apreciação neste ponto, pelo reconhecimento, de iure condito, de efeitos substantivos ao registo provisório de aquisição, justifica-se pela razão de estarmos a prevenir os efeitos negativos de um potencial direito de retenção do sujeito a favor de quem, neste caso, reverte o mesmo registo.
Porque o registo goza de fé pública, o terceiro que pretenda adquirir o imóvel ou móvel sujeito a ele, poderá sempre confiar no que foi dado a conhecer ao público pelo registo provisório, e assim prevenir os efeitos prejudiciais de um direito de retenção que emerge ao abrigo da lei, pela falta de cumprimento do contrato-promessa celebrado entre o beneficiário daquele registo e o, até então, titular registal.
Apesar de aplaudirmos o pensamento de Xxxxxx Xxxxxx, cumpre apontar duas nótulas em que nos afastamos da A.. Numa primeira nótula, sublinhamos o mérito da opção legislativa de 2008, interpretada no sentido de que a legitimidade para requerer o registo provisório deve estender-se ao promitente-comprador, em afirmação da regra geral do art.36.º do CRPred. Neste sentido também se manifestam J. C. Brandão Proença500 e o XXXXXX000. Nas palavras de J. C. Brandão Proença, porque o objectivo a alcançar neste ponto, consiste numa prevenção do incumprimento estimulado pela natureza obrigacional da promessa502, limitar a legitimidade ao titular registal, significa
499 V. XXXXXXXXX, X. XXXXXXXX, «Efeitos do registo…, cit., p.951, nota 41.
500 V. XXXXXXX, J. C. XXXXXXX, «Para a necessidade…, cit., p.24.
501 O CTDGRN sempre reconheceu que a solicitação do registo provisório de aquisição de direitos poderia ser feita com base em declaração da intenção de alienar o direito contido no contrato-promessa, legitimando o promitente-comprador ou um terceiro interessado que, não sendo parte do contrato- promessa, tivesse interesse na realização de tal assento, v. a decisão tomada pelo presidente do Instituto dos Registo e do Notariado, I. P., constante do Proc. n.º R.P.327/2004 DJS, in xxxx://xxxxxx.xxx.xx, o parecer constante do Proc. n.º X.X. 000/00 XXX-XX, XXX n.º 5/1999, II Caderno in xxxx://xxx.xxx.xx.xx e o parecer já citado, constante do Proc. n.º 101/96 R.P. 4. V. tb. XXXXXX, XXXXXXXX, Código…, cit., p.274. 502 V. XXXXXXX, J. C. XXXXXXX, «Para a necessidade…, cit., p.4.
deixar à mercê de quem se discute o hipotético comportamento faltoso, a sorte dos direitos/ou não do promitente-adquirente e do terceiro adquirente.
Se pretendemos restringir as probabilidades de incumprimento do contrato- promessa por alienação da coisa a um terceiro mas prometida vender àquele promitente- comprador, não podemos fazer depender a realização do registo provisório da vontade do promitente-alienante.
Vejamos, se o sujeito em causa tiver intenções especulativas, nunca irá requerer o registo e a situação de conflito de direitos reais irá comprovar-se posteriormente, sem que, muitas vezes, o mesmo sinta prejuízos na sua esfera jurídica, pelo exercício de um direito de retenção do promitente fiel. Aliás, quando o contrato-promessa é acompanhado da tradição antecipada da coisa, a intenção de o promitente-vendedor aliená-la ao accipiens é duplamente exposta, encontrando, nesta hipótese, um reforço para o alargamento da legitimidade deste último na solicitação do registo provisório com base no contrato-promessa. Não podemos negar que existe, no pactum de contrahendo, uma intenção claramente manifesta de o sujeito alienar a coisa à sua contraparte, pelo que, quando acrescida da traditio rei, é reforçada a legitimidade para o promitente-adquirente requerer o registo provisório. O terceiro adquirente da mesma res passa a ser um terceiro para efeitos de registo503 para além de um terceiro em termos substantivos. Desta forma, o seu direito perde os efeitos jurídicos concedidos pelo Direito civil, não por este ter adquirido um direito tabular mas por ter antecipadamente reservado o seu lugar.
Numa segunda nótula, intimamente ligada ao acima exposto, cremos que, de iure condendo, o efeito substantivo do registo provisório de aquisição deve admitir-se exclusivamente desde que haja traditio rei da coisa objecto do contrato definitivo.
Justificamos a nossa convicção por duas razões. Primeiro, porque propomos a tutela registal de modo a bloquear o poder de disposição do titular inscrito, uma vez que já assumiu um compromisso cuja violação poderá, nos termos da norma citada, gerar importantes inconvenientes para dois sujeitos, terceiros entre si.
Em segundo lugar, cremos que somente com a tradição da coisa se justifica uma maior tutela da expectativa de aquisição do promitente-comprador, uma vez que a
503 Art.5.º, n.º 1 do CRPred. Devido aos limites formalmente impostos no âmbito desta investigação, não trataremos da exposição deste preceito. Para melhores desenvolvimentos, v. XXXXX, X. XXXXXX, Direitos Reais, cit., p.63 a 84.
atribuição de efeitos substantivos ao registo provisório representa uma excepção aos princípios de Direito substantivo contidos no CC.
Se recuarmos no tempo, atribuindo efeitos substantivos ao registo provisório de aquisição com base num contrato-promessa, desde que tenha havido tradição da coisa prometida vender, protege-se de forma mais adequada as posições jurídicas do promitente-adquirente – que pode adquirir a titularidade da coisa por cumprimento voluntário do contrato-promessa ou pela execução específica, cujos efeitos do registo definitivo retroagem ao tempo do registo provisório e, portanto, ao momento em que obteve efectivamente o direito de gozo sobre a coisa nos termos da tradição jurídica – e também do terceiro – que já não irá celebrar aquele contrato gerador do incumprimento da promessa, logo de um direito de retenção a favor do promitente fiel e perturbador do um pleno direito de propriedade.
Assim, embora à luz do Direito vigente reconheçamos os efeitos substantivos do registo provisório, por força das variantes da nossa opinião acima expostas, propomos várias alterações ao CRPred504, no plano do Direito a constituir. Vejamos.
Cremos que o n.º 4, do art.47.º poderá ser removido, pois se defendemos a aplicação da regra geral acerca da legitimidade para requerer o registo provisório de aquisição, não vemos razões justificativas para a manutenção do seu regime num preceito sistematicamente referente à Secção II – Casos especiais, do Cap. II – Documentos, do Tít. III – Do processo de registo. Julgamos, humildemente, mais adequado reformular a al.g. do n.º 1, do art.92.º e acrescentar um novo número (n.º 2) ao artigo, respeitante aos casos de registo provisório por natureza, na Secção I – Inscrição, do Cap. III – Inscrição e seus averbamentos, do Tít.IV – Dos actos de registo, alterando-se a ordem numérica dos números seguintes.
Aliás, entendemos que a inscrição deverá ser acompanhada de um documento que comprove o acordo da tradição da coisa, independentemente do conteúdo e do tipo de direitos que as partes convencionaram transmitir pelo mesmo505/506. Consideramos
504 Doravante, os arts. mencionados consideram-se referentes a este diploma.
505 J. Xxxxxxx Xxxxxxxx invoca a diversidade de direitos possivelmente emergentes do acordo de traditio. O conteúdo dos direitos do accipiens sobre a res irão depender da real vontade dos contraentes reflectida no acordo de entrega e no tipo de contrato-promessa. Ou seja, o accipiens só será titular de um direito de gozo, caso o próprio contrato definitivo o atribua, v. XXXXXXXX, X. XXXXXXX, Direitos Pessoais de Xxxx, Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p.75 a 77 e 12. Este é o nosso caso, uma vez que circunscrevemos o estudo deste ponto ao contrato-promessa de compra e venda, v. supra, 3.2, II. A communis opinio vai no sentido de qualificar o direito de gozo transmitido como direito pessoal de gozo (art.407.º), implicativo de uma posse precária (art.1253/a). Somente em circunstâncias excepcionais poderá surgir da tradição, o
bastante, a título de suporte comprovativo da tradição, o contrato-promessa que a preveja.
Cumpre ainda salientar que o n.º 4 do art.92.º poderá ser removido, passando o seu conteúdo a constar de uma das als. do novo número (n.º 2) do preceito.
Por fim, o n.º 3 do art.6.º do CRPred poderá adoptar uma redacção mais clara acerca da conservação da prioridade registal quando o registo inscrito provisoriamente se converte em definitivo, mesmo nos casos de registo provisório de aquisição com base num contrato-promessa.
Apresentamos as seguintes possíveis redacções507 dos arts.92.º e 6.º:
Artigo 92.º Provisoriedade por natureza
1. São efectuadas provisoriamente por natureza as seguintes inscrições: […]
g) de aquisição com base em contrato-promessa de alienação e desde que tenha sido antecipadamente entregue a coisa objecto do contrato prometido, salvo convenção em contrário;
[…]
2. Na inscrição referida na alínea g) do n.º 1:
a) Têm legitimidade para requerer o registo os sujeitos referidos no art.36.º;
b) É título suficiente para o registo o contrato-promessa de alienação, desde que acompanhado da comprovação de acordo de entrega da coisa objecto do contrato prometido, independentemente da natureza dos direitos atribuídos sobre ela, por aquele;
c) O registo é renovável por períodos de seis meses e até um ano após o termo do prazo fixado para a celebração do contrato prometido, com base em documento
exercício de poderes de facto correspondentes ao direito de propriedade a adquirir, ou seja, uma verdadeira posse, um animus possidendi (por ex., pelo pagamento total do preço ou quando as partes não têm intenção de celebrar o contrato definitivo por razões fiscais, etc.), v. XXXXX, XXXX XXXXXX DA,
«Contrato-Promessa…, cit., p.86, nota 55. V. tb os acs. do STJ de11/10/05, CJ/STJ, Ano 13, T.III, 2005,
p.66 e de 13/01/00, cit., p.363. Afirmando a verdadeira posse, v. o ac. da RL de 09/11/95, relatado por Xxxxxxx xx Xxxxxxxx in xxx.xxxx.xx.
506 Não existe consenso doutrinal acerca da sorte dos direitos do accipiens quando passa a ser retentor. Sobre este assunto, concordamos com Xxx Xxxxx que defende a extinção do direito de gozo pela aquisição da garantia, por força dos arts.758.º, 759.º, n.º3 e 671.º/b, v. XXXXX, XXX X. X. XXXXXXXXX, O Contrato- Promessa…, cit., p.889. V. tb MESQUITA, M. XXXXXXXX, Obrigações…, cit., p.76.
507 Em itálico são referidas as partes que se mantêm inalteradas.
que comprove o consentimento das partes ou, na falta de convenção de data, até um ano a contar da data de celebração do contrato-promessa508.
[…]
Artigo 6.º Prioridade do registo
[…]
3. O registo convertido em definitivo conserva a prioridade que tinha como provisório, mesmo quando tiver ingressado provisoriamente por natureza, nos termos da al.g. do n.º 1 do artigo 92.º.
[…]
Cumpre, neste lugar, sublinhar o meritíssimo pensamento J. Lebre de Freitas que, no se anteprojecto de reforma do processo executivo, elaborado para o Ministério da Justiça em 1999509, propôs a alteração aos arts.2.º, n.º 1/e e 47.º, n.º 4 do CRPred510. Com efeito, o A. defende o registo da tradição da coisa para o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição da promessa de transmissão ou constituição de direito real, sendo qualificado como provisório por natureza.
Na sua proposta, a inscrição da tradição é feita com base no contrato-promessa que a preveja e na declaração do beneficiário ou no contrato-promessa que a não preveja e na declaração do titular do direito real sobre ela.
O A. não se pronuncia expressis verbis acerca dos efeitos deste registo, contudo, parece-nos que lhe atribui força substantiva, pois na sua opinião o registo da tradição deveria prevalecer sobre o registo posterior de uma hipoteca511.
508 No tocante às novas als.b. e c. do art.92.º, n.º2, apoiamo-nos num parecer do CTDGRN , constante do Proc. n.º R.P. 19/2011 SJC-CT in xxxx://xxx.xxx.xx.xx. V. tb. XXXXXX, XXXXXXXX, Código…, cit., p.279.
509 V. XXXXXXX, XXXX XXXXX DE, «A Revisão do Código de Processo Civil e Processo Executivo», O Direito, Ano 131, 1999, p.15 a 90.
510 V. XXXXXXX, XXXX XXXXX XX, Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p.720, 780 e 782. A proposta não logrou êxito na Lei de autorização legislativa n.º 23/2002, de 21/08 e na efectiva reforma legislativa do processo executivo de 2003, v. «Sobre a prevalência…, cit.,
p.582 e Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil, vol.II, 2ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p.737 e ss e p.761.
511 Veremos infra (III), com mais ênfase, o pensamento do A.
A proposta do A. não altera a nossa opinião concretizada nas possíveis alterações legislativas supra mencionadas. Com efeito, entendemos preferível o registo de aquisição com base no contrato-promessa, acompanhado da traditio rei e não o contrário, por razões de melhor adequação à facti species sob apreciação. O que impulsiona a tutela acrescida do beneficiário da promessa é o contrato preliminar onde se retira uma intenção do titular registal transmitir o direito real à sua contraparte, intenção essa reforçada pela entrega antecipada da coisa seu objecto.
Para finalizar a nossa reflexão, há que levar em linha de conta as fragilidades da nossa proposta, uma vez que a protecção pré-tabular é justamente preventiva de um incumprimento do tradens da res mas não afasta decisivamente a possibilidade de um comportamento faltoso do titular registal. Vejamos três hipóteses.
Primeira: o terceiro celebra um contrato de compra e venda e regista o seu direito após a celebração de um contrato-promessa com efeitos meramente obrigacionais entre o seu vendedor e outro sujeito, mas antes da traditio da res a favor deste último. Neste caso o registo definitivo do facto aquisitivo do terceiro torna-se oponível erga omnes. Por força dos princípios da legitimação, do trato sucessivo e da legalidade512, o posterior registo provisório de aquisição a favor do promitente- comprador nem seria realizado, pois o tradens, promitente-vendedor já não é o titular registal.
Segunda: o terceiro é um promitente-comprador que adquiriu esta qualidade por contrato-promessa com efeitos reais, celebrado antes ou após um contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional, mas registado antes da tradição da res ao abrigo do segundo contrato. Este caso é análogo ao primeiro, uma vez que a única diferença reside no direito adquirido e registado pelo terceiro. Estamos perante um conflito de interesses entre dois promitentes-compradores mas, a posição jurídica do primeiro prevalece, na medida em que se torna absolutamente oponível a partir do registo definitivo que o segundo só poderia realizar provisoriamente e em momento posterior, mais concretamente, aquando da traditio.
Apontamos para a falta de verificação destas duas hipóteses de iure condito. Porque a lei registal não exige a traditio rei para a realização do registo provisório, o promitente-adquirente ao abrigo do contrato-promessa sem eficácia real, está logo em
512 Arts.9.º, n.º 1, 34.º e 68.º do CRPred.
condições de o realizar, reservando antecipadamente o seu lugar, perante posteriores alienações ou promessas, independentemente de já ter ou não havido entrega da res513.
Apesar de a nossa proposta assumir estas fragilidades, cremos que na primeira e segunda hipótese, o crédito indemnizatório do promitente fiel, garantido pelo direito de retenção, poderá ser objecto de redução ou de exclusão por culpa do lesado, que sabia ou devia saber da situação jurídica actual do prédio, aquando do acordo de tradição da coisa (art.570.º do CC)514.
Terceira: A promete vender a B a coisa x e procede à sua entrega antecipada, sendo realizado o registo provisório de aquisição. Um tempo depois, A promete vender a C a mesma coisa, privando-a de B, e entregando-a a C que regista provisoriamente a aquisição futura. Estamos perante dois contratos-promessa sem eficácia real. Nesta situação, prevalece o registo de B que será convertido em definitivo, seja pelo registo do contrato prometido, seja pela inscrição da decisão judicial que produz os efeitos reais. Todavia, porque o terceiro é também ele, um promitente-adquirente que obteve a tradição da coisa, gozará do ius retentionis contra A mas oponível a B, novo titular registal.
Neste caso, entendemos que vale o que foi dito acerca da primeira e segunda hipótese. Ou seja, a indemnização de C, crédito garantido pela retenção, deverá ser quantitativamente reduzido ou excluído por culpa do lesado, que sabia ou devia saber do primeiro registo provisório de aquisição incompatível com o dele (art.570.º do CC).
Em gesto de conclusão, e apesar das fragilidades acima expostas, a nossa opinião, acompanhada das correspondentes alterações ao CRPred, previne situações especialmente chocantes de incumprimento do tradens. Conseguimos proteger essencialmente o accipiens de um terceiro posterior adquirente da mesma res pelo mesmo tradens, e também de um terceiro promitente-comprador, cuja posição derive de um contrato-promessa com eficácia real, celebrado após a tradição da mesma res àquele accipiens que reservou oportunamente o seu lugar.
No tocante às três fragilidades apontadas, pensamos que as regras relativas à obrigação de indemnizar garantida pelo direito de retenção e em especial, o art.570.º, n.º1 do CC, contribuirão para uma resolução justa e equitativa do conflito de interesses emergente entre o retentor e o terceiro. Não esqueçamos igualmente, o instituto do
513 Nesta linha, v. JARDIM, XXXXXX XXXXXXXXXX XXXXX XX XXXXX, O Registo…, cit.,p.23 a 25.
514 Relativamente à segunda hipótese, v. XXXXXX, XXXXXXX, Sobre o contrato-promessa, Coimbra, Coimbra Editora, 2ª ed., 1989, p.155.
abuso de direito, como forma de censurar a conduto do retentor, num exercício ilegítimo da garantia, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé.
Para além disso, o terceiro que pagar ao retentor para poder gozar plenamente do seu direito de propriedade, poderá sub-rogar-se nos direitos do credor – promitente fiel, contra o devedor – promitente faltoso515.
515 Arts.606.º e ss