UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx
A utilização de normas não estatais nos contratos internacionais regidos pelo Regulamento Roma I da União Europeia e os limites a seus efeitos jurídicos pela ordem pública e normas de aplicação imediata
Florianópolis 2021
A utilização de normas não estatais nos contratos internacionais regidos pelo Regulamento Roma I da União Europeia e os limites a seus efeitos jurídicos pela ordem pública e normas de aplicação imediata
Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Mestre em Direito.
Orientadora: Prof. Dr.x Xxxxx Xxxxxxxx de Moura
Florianópolis 2021
Ficha de identificação da obra
Omizzolo, Xxxxxxx Xxxxx
A utilização de normas não estatais nos contratos internacionais regidos pelo Regulamento Roma I da União Europeia e os limites a seus efeitos jurídicos pela ordem pública e normas de aplicação imediata/ Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx; orientadora, Xxxxx Xxxxxxxx de Moura, 2021.
165 f.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito, Florianópolis, 2021.
Inclui referências.
1. Direito. 2. Normas não estatais. 3. Regulamento Roma I. 4. Contratos Internacionais. I. Beltrame de Xxxxx, Xxxxx. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.
A utilização de normas não estatais nos contratos internacionais regidos pelo Regulamento Roma I da União Europeia e os limites a seus efeitos jurídicos pela ordem pública e normas de aplicação imediata
O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:
Prof. Dr. Xxxxxxx Xxxxxx de Campos Monaco Instituição USP
Prof. Dr. Xxxxxxxxx X. X. Glitz Instituição Unicuritiba
Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de Mestre em Direito.
Coordenação do Programa de Pós-Graduação
Prof. Dr.x Xxxxx Xxxxxxxx de Moura
Orientadora Florianópolis, 2021
Ao meu tio, padrinho e grande apoiador, Dr. Xxxx Xxxxxxx Xxxxx.
AGRADECIMENTOS
Em 2019, quando iniciei essa jornada junto ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina muitas coisas eram diferentes. Vivíamos em um outro mundo em que a Universidade mantinha suas portas abertas. Encontros eram presenciais. Salas de aula cheias e corredores lotados. Uma doença respiratória não acometia tantos pacientes em único dia e nossa saúde não dependia de máscaras, higienização e isolamento. Difícil compreender como tudo pode mudar em questão de meses. O que não mudou nesse ínterim foi a importância de pessoas essenciais no meu caminho. Algumas permanecem comigo nesse plano, outras tiveram de partir. Muitas chegaram nos últimos anos e as mais importantes nunca me abandonaram.
Esta pesquisa esteve comigo em muitos momentos. A escrita reflete dias bons e ruins. Frustrações e conquistas. As primeiras pesquisas se iniciaram na biblioteca da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional, durante um estágio junto ao Secretariado, em Viena, Áustria. Foi no estopim da pandemia que a investigação me acompanhou até minha cidade natal, Lages, Santa Catarina, onde vivi a doçura de muitos meses em família, em casa. Além de cruzar a estrada também rumo a Florianópolis, para rever amigos e a minha querida orientadora. Por fim, a pesquisa foi finalizada em Genebra, Suíça, onde dei continuidade aos estudos de Direito Internacional Público e Privado.
Nada disso teria sido possível sem o apoio da minha família. O grande motivador da minha escolha em me tornar pós-graduanda, meu pai, Xxxxxx Xxxx Xxxxxxxx, advogado, mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul e professor universitário há 30 anos. A minha maior companheira e melhor amiga, Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx, administradora e bacharel em Direito, que sempre me desafia a saber o que quero na vida e a conquistar meus objetivos. Meu confidente, Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx, que também faz o melhor café e churrasco do mundo e me salva de muitas enrascadas. As minhas tias-madrinhas e tios- padrinhos, Xxxxx Xxxxxx Xxxxx Xxxxx, Xxxxx Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx, Xxxx Xxxxxxx Xxxxx e Luiz Carlos Gonzaga, extensão do meu porto seguro e cujos pitacos me levam a ir mais longe. À pessoa que proporcionou a jornada como pós-graduanda, ao acreditar na minha capacidade como pesquisadora e me guiar entre as dificuldades e desafios. Obrigada professora Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, por ser exemplo de profissional, professora, pesquisadora, mulher e amiga, desde a 4ª fase da graduação em Direito. Admiro-a por isso e
muito mais.
Aos amigos do PPGD pelo companheirismo e comprometimento em todas as atividades dentro e fora do mestrado, Xxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx e Xxxxx Xxxxx. Em especialíssima menção, aos grandes amigos que o mestrado me proporcionou, Xxxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxxx Xxxxxx, aprendi muito com vocês. Foram muitas alegrias e desafios juntos, somos um grande time.
Também foram essenciais ao desenvolvimento da pesquisa os professores membros da banca de qualificação, Prof. Xxxxxxx Xxxx Xxxxxx e Prof. Xxxxxxxxx Xxxxx, cujos comentários ajudaram a clarear o caminho até a conclusão do trabalho. E aos professores membros da banca de defesa, Prof. Xxxxxxx Xxxxxx e Prof. Xxxxxxxxx Xxxxx, por dedicarem tempo e atenção ao trabalho e contribuírem para o aprimoramento da pesquisa com seus comentários e questionamentos.
A todos os amigos que frequentemente me perguntaram “como está a dissertação?”, e em especial aos que ousaram perguntar sobre o tema da pesquisa. Dentre esses, aquelas que me acompanham desde a primeira fase da graduação em Direito, Xxxxxxxx Xxxxxx e Xxxxx Xxxxxxx, a UFSC não teria sido tão incrível sem vocês. Ao melhor abraço, aquele que me manteve calma e serena ao longo da tormenta, meu querido, Xxxxxxx Xxxxxx. Ao amigo que permanece a me motivar e instigar pelos caminhos do Direito Internacional, Xxxxxxx Xxxxxx. À Xxxxxxx Xxxxxxxx por todas as nossas conversas profundas e apoio mútuo. Às amigas que me apoiaram nos meses finais da pesquisa, Xxxxx Xxxxx Xxxx e Xxxxxxxxx Xxxxxxx.
Por fim, não posso deixar de agradecer à Universidade Federal de Santa Catarina, seu campus, servidores, professores, alunos, colaboradores, todos que a fazem ser uma universidade acolhedora, resistente, crítica e plural.
Muito obrigada!
RESUMO
O Direito Internacional Privado Europeu visa promover a uniformização legislativa das regras de conflito de leis aplicáveis a relações jurídicas internacionalizadas no território da União Europeia (UE), como forma de permitir a livre circulação de bens, pessoas e serviços no espaço de segurança, liberdade e justiça da União. Dentre essas relações, as obrigações contratuais são regidas pelo Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Regulamento Roma I). Ao mesmo tempo, a globalização e a intensificação das relações comerciais impulsionam processos de harmonização e uniformização legislativa do Direito Internacional Privado e do Direito Comercial Internacional como formas de se garantir maior previsibilidade e segurança jurídica à contratação transfronteiriça. Percebe-se uma multiplicidade de normas, regras e ordens jurídicas potencialmente incidentes a uma relação contratual eivada de internacionalidade, cabendo ao Direito Internacional Privado identificar o regime que a regulará. Nesse mesmo cenário de pluralismo jurídico, floresce a autorregulação normativa por grupos privados e agentes apartados do Estado, cuja produção normativa consiste em normas não estatais elaboradas especificamente para as demandas do comércio internacional. Dado esse quadro, o presente trabalho investiga a relação entre o Regulamento Roma I e as normas não estatais, visando responder se é possível a incidência dos limites de ordem pública e das normas de aplicação imediata aos efeitos de normas não estatais incorporadas por referência a contratos internacionais sob o regime do Regulamento Roma I. Para tanto, buscou-se identificar e conceituar as principais normas não estatais utilizadas no Direito do Comércio Internacional, compreender como se dá sua utilização, bem como verificar os limites de ordem pública e as normas de aplicação imediata à incidência de seus efeitos. A hipótese central aventada foi a de que tais limites não podem incidir, pois a incorporação por referência não se confunde com a escolha de lei aplicável, cujos efeitos sujeitam-se à ordem pública e às normas de aplicação imediata. Utilizando o método dedutivo, com técnicas de pesquisa bibliográfica e documental, dedicou-se o primeiro capítulo ao conceito de normas não estatais, seu status e codificações no Direito Internacional Privado e Comercial Internacional. O segundo capítulo analisou as possibilidades de utilização de normas não estatais conforme outros instrumentos normativos, em especial, no Direito Internacional Privado Europeu, verificando-se que em tal regime a incorporação por referência de normas não estatais representa alternativa ofertada pelo legislador diante da vedação da escolha de tais normas como lei aplicável ao contrato. Uma vez incorporadas, tais normas constituem termos contratuais e sujeitam-se à lei estatal identificada como aplicável conforme o Regulamento Roma I. O capítulo final do trabalho analisou, assim, quais são as limitações de ordem pública e as normas de aplicação imediata impostas à lei aplicável e, consequentemente, às normas não estatais eventualmente incorporadas por referência a um contrato sob o regime do Regulamento Roma I. Verificou-se que a hipótese principal não se confirmou, na medida em que o planejamento da relação contratual deve considerar a incidência de tais limitações e seus efeitos à incorporação por referência. Diante do exposto, cabe à UE a possibilidade de reconsiderar o regime imposto à utilização de normas não estatais pelo Regulamento Roma I a fim de garantir ainda maior autonomia e liberdade contratual às partes.
Palavras-chave: Normas não estatais. Regulamento Roma I. Contratos Internacionais. Ordem Pública. Normas de Aplicação Imediata.
ABSTRACT
European Private International Law aims at promoting the uniformization of conflict-of-law rules which are applicable to international legal relationships within the territory of the European Union (EU), as a means to ensure the free circulation of goods, people and services in the Union’s space of freedom, security and justice. Amongst these relationships, contractual obligations are regulated by the Regulation (EC) no. 593/2008 of the European Parliament and of the Council of June 17th 2008 on the law applicable to contractual obligations (Rome I Regulation). At the same time, globalization and the growth of commercial relations between individuals have intensified processes of legal harmonization and uniformization of Private International Law and International Commercial Law as a means to ensure greater predictability and legal safety to international contracts. This scenario provides a multiplicity of norms, rules and legal orders potentially applicable to a contractual relationship containing international elements, requiring Private International Law rules to identify the governing law. In this context of legal pluralism, self-regulation of private groups detached from the State provide an extensive normative production specifically developed to international commerce, these are non-state law. Based on this outline, the present research investigates the relationship between the Rome I Regulation and non-state laws. Its goal is to answer whether the limits of public policy and mandatory overriding provisions affects the non-state law incorporated by reference to contracts governed by the Rome I Regulation. In order to do so, it was sought to identify and conceptualize the main non-state bodies of law used in Internacional Commercial Law, to comprehend how these can be used in contractual relationships, as well as to verify the limits of public policy and overriding mandatory provisions to its effects.The main hypothesis was that such limits do not affect the norms incorporated by reference, as this is a distinct tool than the choice of applicable law, whose effects are subjected to public policy and overriding mandatory provisions. The research was performed by using the deductive method, with bibliographic and documentary research techniques. The first chapter was dedicated to the concept of non-state law, its status and codifications in Private International Law and International Commercial Law. The second chapter analysed the possibilities of using non-state law as provided in other legal instruments, particularly, in European Private International Law, verifying that in this regime, incorporation by reference of non-state law was offered by the European legislator as an alternative to the prohibition of choice of such law as applicable law. Once incorporated, these norms become contractual terms subjected to the state law identified as applicable law pursuant to the Rome I Regulation. Therefore, the final chapter of the research analysed what are the limitations of public policy and overriding mandatory provisions related to the applicable law and, consequently, to non-state law incorporated by reference. The main hypothesis was not concluded, as the planning of a contractual relationship shall take into account the interference of these limitations and their effect to incorporation by reference. It was then concluded that the possibility of reconsidering the regime towards greater relevance of non-state law in the Rome I Regulation was up to the EU, in order to allow even greater autonomy and contractual freedom to the parties.
Keywords: Non-state law. Rome I Regulation. International Contracts. Public Policy. Overriding Mandatory Provisions.
AGNU Assembleia Geral das Nações Unidas
CCI Câmara de Comércio Internacional de Paris
CISG Convenção das Nações Unidas para os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias
DCInt Direito Comercial Internacional
DI Direito Internacional
DIPr Direito Internacional Privado
DN Direito Natural
HCCH Conferência da Haia de Direito Internacional Privado
ICC Câmara de Comércio Internacional
PECL Princípios de Direito Contratual Europeu
PICC Princípios Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais
PILA Lei de Direito Internacional Privado Suíça
UNCITRAL Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional
UNITROIT Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado
TJUE Tribunal de Justiça da União Europeia
ROL DE CATEGORIAS
Lei: no âmbito do Direito, significa “regra ou um conjunto ordenado de regras” que se apresenta não apenas de modo escrito, mas também constitui um direito, disciplina, comportamentos individuais ou coletivos, ou ainda infere caráter obrigatório no sistema jurídico em que se insere.1 Ou, ainda, é um “instrumento de que se utiliza o legislador, para atribuir efeitos jurídicos aos atos e fatos, segundo valores socioculturais por ele adotados”.2
Normas: “esquemas ou modelos de organização e de conduta” que disciplinam a experiência social, categorizadas por sua “natureza objetiva ou heterônoma e a exigibilidade ou obrigatoriedade daquilo que ela enuncia”.3 Estabelecem “uma forma de organização ou de conduta, que deve ser seguida de maneira objetiva e obrigatória”.4
Direito estatal: produção normativa escrita que decorre do Estado. Atividade normativa do Estado.5 Equiparado ao Direito pelo paradigma positivista, entendido como uma “ordem uniforme para todos e administrado por instituições estatais”, enquanto sub-roga as demais ordens jurídicas que se subordinam ao aparato estatal.6
Normas não estatais: normas baseadas ou não em textos escritos que não decorrem do Estado ou de seu aparato. Como exemplo, tem-se o Direito religioso, o Direito costumeiro e o Direito tribal, sistemas que não necessariamente se relacionam entre si, mas que apresentam, como característica comum, o fato de não decorrerem do Estado.7
1 XXXXX, Xxxxxx. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 123.
2 XXXXXXXXXX, Xxxxxx. Conceito de Lei em Sentido Jurídico. Ágora: Revista de Divulgação Científica, Mafra, v. 17, n. 1, p. 128-124, 2010, p. 134.
3 XXXXX, Xxxxxx. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 78.
4 XXXXX, Xxxxxx. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 79.
5 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. PLURALISMO JURÍDICO NO BRASIL: DIÁLOGOS ENTRE DIREITO ESTATAL E DIREITO INDÍGENA. 2015. 257 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015, p. 30.
6 XXXXXX, Xxxxxxxxxx xx Xxxxx. O pluralismo jurídico e as escalas do direito: o local, o nacional e o global. In: XXXXXX, Xxxxxxxxxx xx Xxxxx. Sociología jurídica crítica. Madrid: Xxxxxx, 0000. p. 52-63. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/x.xxxx0xxx0.00?xxxx0#xxxxxxxx_xxxx_xxx_xxxxxxxx>. Acesso em: 12 jun. 2021.
7 XXXXXXXX, Xxxx. What Is Non-State Law? In: XXXXXXX, X. Negotiating State and Non-State Law: The Challenge of Global and Local Legal Pluralism. Cambridge: Cambridge University Press, 0000, x. 00-00, x. 00.
1.1 A “ESTATIZAÇÃO” DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO PELO POSITIVISMO 20
1.1.1 A origem universalista do Direito Internacional Privado 22
1.1.2 Das Escolas Estatutárias ao Positivismo 25
1.1.3 O Direito Internacional Privado Moderno 28
1.2 O PLURALISMO JURÍDICO GLOBAL e NORMAS NÃO ESTATAIS 33
1.2.2 Limitações ao princípio da autonomia da vontade e à aplicação do Direito estrangeiro 43
1.2.2.2 Normas de Aplicação Imediata 45
1.3 NORMAS NÃO ESTATAIS NO DIREITO COMERCIAL INTERNACIONAL:
1.3.1 Fontes da nova Lex mercatoria 52
1.3.2 A codificação de normas não estatais por organismos internacionais 54
1.3.2.1 A comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional 56
1.3.2.2 O Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado 58
1.3.2.3 A Câmara de Comércio Internacional 61
1.3.2.4 A Conferência da Haia de Direito Internacional Privado 63
2.1.1 A Convenção Interamericana sobre Direito Aplicável aos Contratos Internacionais 68
2.2.1 O Direito Internacional Privado Europeu: para além das fronteiras estatais82 2.2.2 Normas não estatais na Convenção de Roma de 1980 88
2.2.3 Normas não estatais no Regulamento Roma I da União Europeia 90
2.2.3.1 A incorporação de normas não estatais por referência 96
3 LIMITAÇÕES IMPOSTAS AOS EFEITOS DE NORMAS NÃO ESTATAIS NO REGULAMENTO ROMA I 100
3.1 A ESCOLHA DE LEI APLICÁVEL CONFORME O REGULAMENTO ROMA I 102
3.1.1 Escolha de lei expressa ou implícita 105
3.1.2 Validade da escolha de lei aplicável 107
3.1.3 O âmbito da lei aplicável 110
3.2 LIMITAÇÕES IMPOSTAS AO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE PELO REGULAMENTO ROMA I EM CONTRATOS INTERNACIONAIS DE COMÉRCIO 115
3.2.1 Disposições não derrogáveis por acordo 117
3.2.2 Normas de aplicação imediata 122
3.2.3 A Ordem Pública do Foro 126
3.2.4 Fraude à lei 131
3.2.5 Disposições de Direito da União Europeia em matérias especificas 132
3.3 NORMAS NÃO ESTATAIS ENQUANTO LEI APLICÁVEL ELEITA PELAS PARTES COMO MELHOR GARANTIDORA DA AUTONOMIA DA VONTADE 134
CONCLUSÃO 138
REFERÊNCIAS 142
INTRODUÇÃO
O Direito Internacional Privado Europeu é reconhecido por sua posição de vanguarda ao promover a uniformização legislativa das regras de conflito de leis aplicáveis a relações jurídicas internacionalizadas no território da União Europeia (UE). Como parte do processo de integração europeia, a compatibilidade entre as normas de conflitos de lei aplicáveis nos Estados-Membros representa um dos objetivos da UE para o bom funcionamento do mercado interno. Tal objetivo foi inserido pelo Tratado de Amsterdam de 1999, como parte do Tratado sobre o Funcionamento da UE.
O processo compreende, por exemplo, a edição de Regulamentos dedicados ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, às relações de família e sucessões, às obrigações extracontratuais e às obrigações contratuais; estas são regidas pelo Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Regulamento Roma I).
A importância concedida pela UE aos processos de uniformização e harmonização legislativa decorre da intensificação das relações comerciais e pessoais transfronteiriças, pautadas pela globalização e pela livre circulação de bens, pessoas e serviços. Tais processos encontram correspondentes também a nível internacional e regional, como a Convenção das Nações Unidas para Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG) e a Convenção Interamericana sobre Direito Aplicável aos Contratos Internacionais (Convenção do México). Objetiva-se, com esses mecanismos, oferecer maior segurança jurídica e previsibilidade a contratantes internacionais, cujas relações são sujeitas a diferentes regras e leis potencialmente aplicáveis, a depender do foro em que são analisadas.
Nesse mesmo panorama estão inseridos os processos de uniformização e harmonização do Direito Internacional Privado (DIPr) e do Direito Comercial Internacional (DCInt), capitaneados por entes privados, dedicados ao desenvolvimento de regras, normas ou cláusulas-modelo de contratação que refletem usos e costumes do comércio internacional. Tal arcabouço decorre da produção normativa de entidades privadas, voltadas à facilitação das relações comerciais diante da necessidade de especialização e internacionalização das normas reguladoras do comércio internacional. Trata-se de instrumentos desenvolvidos por comerciantes para comerciantes, ou ainda, desenvolvidos por organismos especializados capazes de acomodar diferentes culturas e regimes jurídicos na produção de normas neutras e
especializadas. Esse fenômeno é, por vezes, denominado “nova lex mercatoria”, em alusão à
prática comercial exercida durante a Idade Média.
Por não decorrerem de um determinado ordenamento jurídico ou de um processo legislativo nacional, as normas que alimentam esse fenômeno são categorizadas como normas não estatais; a categoria mais ampla que traduz a autorregulação de determinados grupos, destacando-se no setor comercial os instrumentos desenvolvidos no âmbito da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (UNCITRAL), do Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT) da Câmara de Comércio Internacional (CCI) e da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (HCCH). Tais instrumentos compreendem tanto convenções internacionais (que se tornam normas estatais após a ratificação por determinado Estado), quanto instrumentos de soft law destinados à orientação e à interpretação do legislador nacional e de contratantes privados que optam por sua utilização.
O emprego de normas não estatais associadas a relações privadas ocorre por meio dos princípios de liberdade contratual e autonomia da vontade das partes, consagrados em diversos ordenamentos jurídicos, permitindo o alinhamento e o planejamento das relações jurídicas privadas. A autonomia da vontade das partes na escolha de lei aplicável consiste na pedra angular do regime do Regulamento Roma I, principal regra de conexão a ser avaliada pelo intérprete. Entretanto, em seu artigo 3º, o Regulamento veda a escolha de normas não estatais como lei aplicável, permitindo apenas a incorporação por referência das mesmas, conforme mencionado em seu considerando n.º 13.
Tal regime reflete a prevalência dos interesses do Estado sobre os interesses particulares na regulamentação de relações jurídicas eivadas de internacionalidade, mesmo que não afetem diretamente interesses públicos. O panorama descrito corresponde à base do Direito Internacional Privado, através do qual diferentes Estados, na arena internacional, pactuam ou aceitam a aplicação e os efeitos de leis estrangeiras nos territórios uns dos outros. Contudo, esses efeitos não se dão sem limitações de ordem pública e normas de aplicação imediata, as quais objetivam garantir a prevalência dos interesses do Estado da lex fori.
Diante desse cenário, considerando a importância do Direito Internacional Privado Europeu, por sua abrangência e volume econômico, e, dado que o Regulamento Roma I apenas permite que as partes utilizem normas não estatais por meio da incorporação por referência ao corpo do contrato, o presente trabalho objetiva responder se é possível a
incidência dos limites de ordem pública e das normas de aplicação imediata aos efeitos de normas não estatais nas relações comerciais internacionais sob o regime do Regulamento.
A hipótese principal aventada estabelece que tal incidência não seja possível, pois a incorporação por referência de normas não estatais a um contrato internacional regido pelo Regulamento Roma I é atividade decorrente do exercício da liberdade contratual das partes e não se confunde com o princípio da escolha de lei aplicável, cujos efeitos são sujeitos aos limites de ordem pública e das normas de aplicação imediata. Por sua vez, a hipótese secundária é de que seria possível a incidência dos limites de ordem pública e das normas de aplicação imediata, tradicionalmente impostos à lei aplicável no regime do Regulamento Roma I, também aos efeitos da aplicação de normas não estatais incorporadas por referência a um contrato internacional.
Busca-se, portanto, analisar se os limites de ordem pública e das normas de aplicação imediata impostos pelo Regulamento Roma I à lei aplicável igualmente atingem os efeitos de normas não estatais incorporadas por referência. Para tanto, objetiva-se compreender a origem e a função de normas não estatais no Direito do Comércio Internacional por meio do princípio da autonomia da vontade. Além disso, pretende-se analisar como se dá a utilização de normas não estatais em contratos internacionais segundo outros diplomas legais, especificamente, busca-se examinar a utilização de normas não estatais segundo o Regulamento Roma I. Por fim, pretende-se verificar quais seriam os limites de ordem pública e das normas de aplicação imediata aplicáveis às normas não estatais incorporadas por referência a contratos internacionais.
Para atingir os objetivos propostos, o trabalho analisa, no primeiro capítulo, o status das normas não estatais no Direito Internacional Privado e no Direito do Comércio Internacional. Busca-se apresentar os pilares do Direito Internacional Privado e sua relação com o Estado, a qual é marcada pelo paradigma positivista, que solidifica a aplicação de normas estrangeiras, desde que as mesmas sejam emanadas por outro Estado soberano. Além disso, explora-se o princípio da autonomia da vontade das partes enquanto instrumento facilitador da utilização de normas não estatais, imbuídas no fenômeno do pluralismo jurídico global, e, enquanto regra de conflito, sujeita a limitações de ordem pública e a normas de aplicação imediata. Para encerrar a discussão do capítulo, aborda-se o surgimento da “nova lex mercatoria” e as principais codificações não estatais dedicadas ao comércio internacional.
Apresentado tal panorama, o segundo capítulo aborda as possibilidades de utilização de normas não estatais em instrumentos internacionais como a Convenção do México, os
Princípios da Haia relativos à Escolha de Lei Aplicável aos Contratos Comerciais Internacionais e o Guia da Organização dos Estados Americanos sobre o Direito Aplicável aos Contratos Comerciais Internacionais nas Américas. Verifica-se que tais normas desempenham diferentes papéis em tais instrumentos. Dessa forma, expõe-se a crescente influência de normas não estatais sobre as relações comerciais contratuais. Nesse sentido, o capítulo ainda introduz o regime das normas não estatais no Direito Internacional Privado Europeu, abordando o processo de europeização do mesmo e o histórico legislativo do Regulamento Roma I, com enfoque na utilização de normas não estatais.
O último capítulo centra a análise no regime da escolha de lei aplicável disposto pelo Regulamento Roma I, como elemento essencial ao planejamento da relação contratual internacional. Busca-se verificar seus efeitos e mapear as limitações de ordem pública e as normas de aplicação imediatas apropriadas a esta e, potencialmente, incidentes sob os efeitos de normas não estatais incorporadas ao contrato por referência. Ao final, propõe-se a reflexão sobre o regime e sua adequação às demandas do Direito Comercial Internacional e do Direito Internacional Privado.
A justificativa para tal investigação reside na importância de se conscientizar contratantes internacionais quanto aos efeitos exercidos pelas limitações de ordem pública e pelas normas de aplicação imediata a relações comerciais sob o regime do Regulamento Roma I, visto que tanto o planejamento da relação contratual quanto o deslinde da mesma demandam custos de transação. Em âmbito nacional, a presente pesquisa visa também contribuir para a educação de contratantes brasileiros que pactuem relações comerciais com partes localizadas ou sujeitas ao Direito da UE.
Ademais, objetiva-se contribuir com a disseminação do estudo do Direito da UE no Brasil, com a elaboração de pesquisa inédita. O trabalho insere-se no âmbito do Núcleo de Pesquisas em Direito Internacional Privado UFSC/CNPq e das atividades dos projetos Xxxx Xxxxxx Module e Xxxx Xxxxxx Network – BRIDGE, cofinanciados pelo Programa Erasmus+ da Comissão Europeia, todos sob a coordenação da Prof. Dr.x Xxxxx Xxxxxxxx de Moura.
Quanto à metodologia, empregou-se o método dedutivo, partindo-se de considerações gerais para considerações particulares.8 Para tanto, foram consultados instrumentos normativos internacionais e doutrina especializada no que concerne às possibilidades de
8 Com base em: MEZZAROBA, Orides; XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx. Manual de metodologia da pesquisa no direito. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 65.
utilização de normas não estatais no Direito do Comércio Internacional. A pesquisa foi realizada a partir de pesquisas bibliográfica e normativa, como fontes primárias de investigação. Para a pesquisa bibliográfica, foram consultadas obras, artigos científicos, pesquisas empíricas e estudos de caso, com especial ênfase em fontes estrangeiras. A pesquisa normativa consistiu na análise e interpretação do Regulamento Roma I, bem como na análise de codificações de normas não estatais identificadas ao longo da pesquisa.
1 NORMAS NÃO ESTATAIS NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO E DO DIREITO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL: STATUS E CODIFICAÇÕES
O presente capítulo se propõe a analisar o desenvolvimento, o status e as codificações de normas não estatais no Direito Internacional Privado e no Direito do Comércio Internacional. Para tanto, inicialmente, aborda-se a origem do Direito Internacional Privado como um Direito universal, cujas regras se aplicavam uniformemente independente de limites territoriais. Através do paradigma positivista, tal ramo da ciência jurídica se fundamenta nos conceitos de soberania, Estado, nação e lei enquanto emanada do Estado. Todavia, o Estado não é o único a deter a produção normativa, razão pela qual o fenômeno do Pluralismo Jurídico também será abordado, bem como as principais codificações não estatais dedicadas à contratação internacional.
1.1 A “ESTATIZAÇÃO” DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO PELO POSITIVISMO
O Direito Internacional Privado (DIPr) ocupa-se em regular as relações sociais e econômicas individuais, de caráter privado, eivadas de elementos de internacionalidade,9 isto é, fatos sociais que se relacionam a mais de um ordenamento jurídico.10 Para tanto, busca-se classificar a relação jurídica e localizar sua sede, determinando-se, por fim, a aplicação correspondente do direito vigente.11
O objeto de estudo desse ramo do Direito não é sinônimo de unanimidade entre a doutrina,12 porém, suas matrizes têm em comum o estudo do conflito de jurisdições e leis,
9 XXXXXX, Xxxxxxxxx. Conflict Of Laws and Private International Law. Proceedings of the American Society
of International Law at Its Annual Meeting (1921-1969), v. 33, 1939, p. 81-94. p. 82.
10 XXXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxx. Curso de direito internacional privado: teoria e prática. São Paulo: Saraiva Educação, s/p.
11 XXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx de. O critério de conexão da nacionalidade na doutrina e na legislação de direito internacional privado brasileiro (1863-1973). Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, v. 39, n. 79, p. 195- 219, nov. 2018, p. 197.
12 Conforme relata Xxxxxxxx, para a corrente francesa, o objeto do Direito Internacional Privado compreende, além do conflito de leis e do conflito de jurisdições, a nacionalidade e a condição jurídica do estrangeiro, sendo esta a corrente à qual o autor se filia. A corrente alemã restringe tal objeto ao conflito de leis, enquanto as correntes anglo-saxãs compreendem o conflito de leis como seu objeto, bem como o conflito de jurisdições e o reconhecimento de sentenças estrangeiras. XXXXXXXX, Xxxxx. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 2.
sendo este último o campo mais amplo e importante de seu objeto”.13 Um “conflito de leis” implica indicar qual a lei estrangeira vigente em determinado Estado e a quais limites a aplicação dessa lei se sujeita em âmbito internacional.14 Juenger destaca que o uso da expressão “conflito de leis” remete ao sentido estrito do termo, restrito a leis nacionais de um determinado Estado15.
Para Story, um dos grandes teóricos do Direito Internacional Privado, a principal máxima sobre a qual o Direito Internacional Privado se baseia estabelece que “[…] cada nação possui poder soberano e jurisdição exclusiva sobre seu próprio território. A consequência direta dessa regra é que as leis de cada Estado afetam e sub-rogam diretamente toda propriedade, real ou pessoal, em seu território, e todas as pessoas que nele residem”.16 Xxxxxxx Xxxxx, “[…] cabe ao Direito Internacional Privado regrar justamente essa potencialidade de aplicação espacial de mais de um ordenamento jurídico, evitando sobreposição ou omissão (ausência de normas)”.17 O Direito Internacional Privado, portanto, ocupa-se em apontar o Direito de qual Estado é aplicável a uma determinada relação jurídica, bem como determina qual o foro competente, sendo sua principal fonte a legislação interna de cada sistema.18
Embora esse ramo do Direito mantenha uma relação estreita com o Estado e suas normas internas, o estudo do conflito de leis tem origem no desenvolvimento do Direito Internacional (DI), tendo sido inicialmente concebido como um sistema universal. Na presente pesquisa, o termo “estatização” é empregado para fazer referência ao processo evolutivo do Direito Internacional Privado, abordado a seguir, com o fito de demonstrar como a centralização do papel do Estado nas relações internacionais resultou na concepção de tal
13 XXXXXXXX, Xxxxx. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 5.
00 XXXXXXXX, Xxxxxx G. Story’s Commentaries on the Conflict of Laws — One Hundred Years After.
Harvard Law Review, x. 00, x. 0, x. 00-00, 0000, x. 00.
15 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. Private International Law or International Private Law. King’s College Law
Journal, n. 5, p. 45-62, 1994-1995, p. 45.
16 STORY, Xxxxxx. Commentaries on the Conflict of Laws. Little Xxxxx, 1834. p. 16.
17 XXXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxx. Evolução histórica do direito internacional privado e a consagração do conflitualismo. Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión, v. 3, n. 5, p. 423-446, 2015, p. 425.
18 XXXXXXXX, Xxxxx. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 6.
ramo do Direito como uma questão de “direito interno individual”,19 que privilegia a aplicação exclusiva do Direito estatal na maioria dos sistemas legais.20
1.1.1 A origem universalista do Direito Internacional Privado
A separação do Direito Internacional em ramos Público e Privado não era tão evidente até o Século XIX,21 tendo o último se originado do primeiro. O desenvolvimento do Direito Internacional fundamenta-se nas concepções de “soberania”, “Estado” e “territorialidade”, que surgiram na Europa Ocidental por volta do século XVI, sendo resultado da influência de diversas teorias do Direito, como o naturalismo, o positivismo e o historicismo. A obra de Story (1834) é um reflexo dessas influências, pois defende que as leis de um Estado vigoram proprio vigore, isto é, apenas em seus limites territoriais, de forma que seus efeitos extraterritoriais dependem do reconhecimento voluntário de outros Estados.22 Destaca-se, também, que o Direito Internacional nasce em uma época na qual o Direito era mais cosmopolita, na Europa Continental do Século XI, em que princípios e instituições se sobrepunham, sem limitações estatistas e positivistas.23
Xxxxx aponta que o Direito Internacional Privado surgiu como parte da chamada “lei das nações”,24 destacando seu caráter internacional e público, em uma perspectiva sistêmica.25 Para o autor, o ius gentium do Direito Romano tem papel fundamental nesse desenvolvimento, pois apesar de o universalismo romano ser sinônimo da unidade daquele império,26 a distinção entre os cidadãos romanos, sujeitos a ius civile, e entre os não cidadãos,
19 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx. U.S. Participation in the International Unification of Private Law: The Making of the UNCITRAL Draft Carriage of Goods by Sea Convention. Tulane Maritime Law Xxxxxxx, x. 00, x. 0, x. 000-000, 0000, x. 617.
00 XXXXX, Xxxx. Xxxxxx xx Xxx-Xxxxx Xxx. In: XXXXX, Xxxx. Party Autonomy in Private International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. p. 491-520, p. 502.
21 XXXX, Xxxx X. The Isolation of Private International Law. Wisconsin International Law Journal, v. 7, n. 1, p. 149-178, 1988-1989, p. 155.
00 XXXXXXXX, Xxxxxx G. Story’s Commentaries on the Conflict of Laws — One Hundred Years After.
Harvard Law Review, x. 00, x. 0, x. 00-00, 0000, x. 00.
23 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. A historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 144.
24 Conforme a teoria de Xxxxxxx xx Xxxxxx na obra O Direito das Gentes, para quem os Estados, dotados de soberania, se fazem os únicos juízes de seus atos, direitos e deveres. A igualdade existente entre todos os Estados seria o principal critério da ordem internacional, legitimando as guerras e interações internacionais, constituindo- se assim a “lei das nações”.
25 XXXXX, Xxxx. The confluence of public and private international law: justice, pluralism and subsidiarity in the international constitutional ordering of private law. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 28.
26 XXXXX, Xxxx. The Private History of International Law. International and Comparative Law Quarterly, v. 55, p 1-50, 2006, p. 7.
sujeitos a outros sistemas de justiça, resultou na multiplicidade de fontes de direito a serem aplicadas a um mesmo caso, originando o ius gentium.27 Segundo XxXxxxxx, o ius gentium romano é o que hoje se denomina Direito Internacional Privado, pois se tratava de um corpo de leis desenvolvido pelo praetor peregrinus28 para resolver conflitos envolvendo estrangeiros e cidadãos romanos.29
Xxxxx atenta ainda para a inexistência de um sistema de Direito Internacional Privado no Direito Romano, ressaltando que o aspecto universalista deste último, como um sistema aplicável não apenas aos seus cidadãos, mas a todos os não cidadãos, influenciou o desenvolvimento do Direito Internacional Público e Privado.30
Com a queda do Império Romano, a civilização passou a se organizar em diversas comunidades e tribos, emergindo daí a distinção entre indivíduos quanto à sua cidadania e ao seu domicílio, sujeitando-os a estatutos pessoais ou tribais. A partir do Século X, com o desenvolvimento do Feudalismo, esses estatutos cederam espaço a sistemas territoriais sujeitos ao senhor feudal, os quais não admitiam a interferência de sistemas alienígenas.31 Já com a transição da Idade Média para a Idade Moderna, junto ao surgimento do Renascimento, o comércio transfronteiriço entre cidades-Estado europeias expandiu-se significativamente, levando a um aumento no volume de conflitos de cunho comercial envolvendo elementos de estraneidade.32 Foi nesse cenário que, segundo Xxxxxxx, surgiu o estudo do conflito de leis e o Direito Internacional Privado como hoje se concebe.33
Especificamente no norte da Itália, dada a intensificação do comércio e o problema sobre qual lei se aplicar à sua regulação, a partir do Século XI, a abordagem proposta pelo Direito Romano passou a ser alvo de reinterpretações nas universidades italianas, com estudiosos conhecidos como Glossadores.34 Buscando soluções no Corpus Juris35 romano,
27 XXXXX, Xxxx. The confluence of public and private international law: justice, pluralism and subsidiarity in the international constitutional ordering of private law. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 29-30.
28 Magistrado romano responsável por administrar o tratamento das relações jurídicas entre estrangeiros e cidadãos romanos no Império Romano. XXXXXXXX, Xxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxx. Guide to Latin in International Law. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 224.
29 XXXXXXXX, Xxxxxx X. III. Private International Law: Ius Gentium Versus Choice of Law Rules or Approaches. American Journal of Comparative Law, v. 38, n. 3, p. 521-538, 1990, p. 521.
30 XXXXX, Xxxx. The confluence of public and private international law: justice, pluralism and subsidiarity in the international constitutional ordering of private law. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 30.
31 X XXXXX, Xxxx. Conflict of Laws. Londres: Cavendish Publishing Limited, 1999. p. 11.
32 XXXXX, Xxxx. The confluence of public and private international law: justice, pluralism and subsidiarity in the international constitutional ordering of private law. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 29-30. 33 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. A historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 140.
34 X XXXXX, Xxxx. Conflict of Laws. Londres: Cavendish Publishing Limited, 1999. p. 12.
esses estudiosos se depararam com problemáticas como a possibilidade de aplicação ou não de estatutos locais a fatos ocorridos em outros territórios e vice-versa, resultando no reconhecimento e legitimação da existência de uma pluralidade de leis vigentes num mesmo território e no desenvolvimento do estudo do conflito de leis36. Essa legitimação resultou também no respeito mútuo ao Direito, oriundo de diferentes regiões, em especial entre aquelas regiões que partilhavam raízes comuns no Direito Romano.37
As reinterpretações do Direito Romano promovidas em cada cidade-Estado italiana colaboraram para a diversificação dos sistemas legais e, consequentemente, para a existência de inconsistências na regulação de disputas comerciais transfronteiriças.38 As releituras do Direito Romano, encabeçadas pelos glossadores, logo tornaram-se um sistema de regras e princípios,39 originando a escola estatutária. Juenger explica que esses estudiosos passaram a questionar se normas locais (statuta) poderiam e deveriam ser aplicadas extraterritorialmente a cidadãos no estrangeiro, bem como se cidadãos estrangeiros em território italiano estariam submetidos às normas locais, originando as metodologias unilateralista e multilateralista40 do Direito Internacional Privado.41 A partir do Direito Natural (DN), Xxxxx explica que as escolas estatutárias intentavam, portanto, identificar normas que compusessem o estatuto42 pessoal e o estatuto territorial — e ainda uma terceira categoria composta de um estatuto misto — refletindo a complexidade política, social e econômica da época, na medida em que prevalecia no âmbito internacional a divisão do mundo em povos e em territórios.
A concepção de um Direito Internacional Privado surge, portanto, como forma de minimizar inconsistências no deslinde de controvérsias eivadas por mais de um sistema de
35 Compilação de normas e jurisprudências vigentes no Império Romano de 529 a 534, publicadas na forma de código por ordem do imperador Xxxxxxxxxx X.
36 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. A historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 141.
37 XXXXX, Xxxx. The Private History of International Law. International and Comparative Law Quarterly, v. 55, p 1-50, 2006, p. 11.
38 XXXXX, Xxxx. The confluence of public and private international law: justice, pluralism and subsidiarity in the international constitutional ordering of private law. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 31.
39 DE XXXX, Xxxxxxx. Historical and Comparative Introduction to Conflict of Laws. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 118, p. 435-440, 1996, p. 446.
40 A abordagem unilateralista tem por objeto o alcance extraterritorial de normas substantivas, partindo da ideia de que algumas normas seguem o indivíduo para além do território em que são vigentes, enquanto outras têm seu escopo limitado por fronteiras territoriais. Já a abordagem multilateralista baseia-se na definição da jurisdição competente, a partir da máxima locus regit actum, ou seja, o Direito aplicável depende do local em que um contrato é executado, enquanto direitos patrimoniais estariam sujeitos à lei do local em que se encontram.
41 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. A historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 193, p. 136-169, 1985, p.140-142.
42 O termo “estatuto” refere-se às normas vigentes num determinado território, quaisquer sejam suas fontes.
Direito, como parte das leis naturais, reconhecendo a existência de uma diversidade legal entre territórios,43 sujeitos a uma lei natural superior que imporia um sistema universal a todos os territórios.44 O Direito Internacional Privado foi inicialmente concebido como uma categoria de Direito Natural universal, e não um Direito local, um conjunto de regras para se determinar o Direito a ser aplicado a um fato ou uma disputa diante da vasta diversidade de normas existentes,45 tendo como plano de fundo o alcance supranacional do Direito Romano e Canônico e o reconhecimento do ius commune.46
1.1.2 Das Escolas Estatutárias ao Positivismo
Processos históricos como o Renascimento, o descobrimento de novos territórios, o fortalecimento do método científico, e o crescimento exponencial do comércio internacional impuseram desafios à crença na universalidade do Direito Natural, invocando a necessidade de metodologias mais pragmáticas.47
No Século XVII, a escola holandesa assume um papel relevante no desenvolvimento do Direito Internacional,48 pois promoveu a concessão de espaço da abordagem universalista do conflito de leis para tendências modernas,49 pautadas pelo territorialismo, defendendo que nenhum estatuto é capaz de produzir efeitos extraterritorialmente, na medida em que são criados por legisladores cujos poderes são concedidos e limitados a determinado território.50 Nesse período, a Holanda era uma das nações mais atuantes internacionalmente, protagonizando grande parte do comércio marítimo. Internamente, porém, dividia-se em províncias independentes, caracterizadas por uma descentralização política. Nesse cenário, o
43 XXXXX, Xxxx. The confluence of public and private international law: justice, pluralism and subsidiarity in the international constitutional ordering of private law. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 31.
44 XXXX, Xxxx X. The Isolation of Private International Law. Wisconsin International Law Journal, v. 7, n. 1, p. 149-178, 1988-1989, p. 155, p. 157.
45 XXXXX, Xxxx. The Private History of International Law. International and Comparative Law Quarterly, v.
55, p 1-50, 2006, p. 12.
46 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. A historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 144.
47 XXXXX, Xxxx. The Private History of International Law. International and Comparative Law Quarterly, v. 55, p 1-50, 2006, p. 15.
48 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. A historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International
Xxx, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 147.
49 DE XXXX, Xxxxxxx. Historical and Comparative Introduction to Conflict of Laws. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 118, p. 435-440, 1996, p. 449.
50 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx. Treatise on the Conflict of Laws or Private International Law.Cambridge, Harvard University Press, 1916. p. 39.
conceito de soberania51 passa a pautar o problema do conflito de leis, cujo ponto focal volta- se à colisão de diferentes leis, igualmente soberanas, aplicáveis a um mesmo fato.52
Diz-se, portanto, que a escola holandesa foi parte de uma “revolução positivista no Direito Internacional”.53 O Positivismo consiste em uma metodologia por meio da qual o Direito é tido como um fenômeno da natureza, de forma que as normas decorrem da observação do comportamento social; especificamente no âmbito do Direito Internacional, o Direito decorre do comportamento e da prática dos Estados.54 Para o autor, ainda, a abordagem positivista do Direito Internacional se dá com a teoria de Xxxx Xxxxxxx,55 segundo a qual o Direito Internacional reflete o comportamento dos Estados, enfatizando a vontade soberana dos mesmos, afastando, assim, o Direito Internacional do Direito Natural.56
A origem comum e de caráter extraterritorial assumida na abordagem universalista passou a ser refutada.57 O holandês Xxxxxx Xxxxx rompe com as correntes estatutárias italianas e francesas e propõe um sistema de conflitos de lei pautado pela ideia de soberania.58 A partir de uma concepção unitária do Direito — que não poderia ser dividido em estatutos — o autor defende a normatividade como produto de um poder soberano,59 cujos efeitos são adstritos à territorialidade, na medida em que os Estados legislam apenas para seus próprios cidadãos e territórios.60
Segundo Xxxxx, através do mútuo reconhecimento, por sua livre escolha, Estados
poderiam vir a aplicar normas de outros Estados desde que estas não ameaçassem o poder
51 Tal qual desenvolvido por Xxxx Xxxxx como a qualidade máxima de poder social detido pelo Estado-Nação, sem limitações de ordem interna ou externa e por meio da qual as normas e decisões elaboradas pelo Estado prevalecem sobre as normas e decisões emanadas de grupos sociais intermediários.
52 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. A historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 147.
53 XXXXX, Xxxx. The Private History of International Law. International and Comparative Law Quarterly, v. 55, p 1-50, 2006, p. 15.
54 XXXXX, Xxxx. The Private History of International Law. International and Comparative Law Quarterly, v. 55, p 1-50, 2006, p. 16.
55 A teoria de Xxxxxxx não é categorizada como positivista, mas sim jusnaturalista. Sua relação com o positivismo é metodológica, de forma que sua teoria, tendo por base a vontade humana, viria a influenciar mais tarde o surgimento de teorias positivistas do Direito.
56 XXXXX, Xxxx. The Private History of International Law. International and Comparative Law Quarterly, v. 55, p 1-50, 2006, p. 18-19.
57 XXXXXXXX, X. The general principles of private international law. Xxxxxxxx Xxxxxxx, 1972. p. 97-229, p. 123.
58 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. A historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International
Xxx, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 148.
59 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx. Treatise on the Conflict of Laws or Private International Law.Cambridge, Harvard University Press, 1916. p. 41
60 XXXXXXXX, X. The general principles of private international law. Xxxxxxxx Xxxxxxx, 1972. p. 97-229, p. 123.
normativo destes, nem tampouco as normas fossem aplicadas em prejuízo de seus cidadãos,61 concedendo ao Direito Internacional um caráter local.62 Nesse cenário, a aplicação e a execução da lei de outros Estados passaram a ser determinadas por regras de direito internacional, emanadas internamente por cada Estado.63 Sujeita à livre vontade do poder soberano local, a aplicação de leis de um Estado por outro constituiria em costume internacional, visando respeito e boa vontade para com outros Estados, resultando em um consentimento tácito entre as nações acerca do reconhecimento e possibilidade de aplicação de normas umas das outras.64
A teoria de Xxxxx influenciou a formação de regras especificamente delineadas para resolver conflitos de lei no Direito anglo-saxão e estadunidense, e, principalmente, teve grande impacto na obra de Story, que cunhou o termo “Direito Internacional Privado”65 como um ramo do Direito66 dedicado às relações de pessoas privadas, não envolvendo a esfera estatal.67 Story defendia ainda um sistema multilateral de regras de conflito,68 baseado nos interesses de cooperação e comércio internacional comuns a ambos Direito Internacional Público e Privado.69 A concepção do autor acerca do estabelecimento de uma base comum de princípios para resolução de conflitos de lei foi, todavia, “[…] eclipsada pelo positivismo, através de uma ênfase exclusiva e nacionalista ao Direito tal qual é posto”.70
O positivismo sob o Direito Internacional também se manifesta na obra de Xxxxxxx, que nega as teorias estatutárias, incluindo a doutrina de Xxxxx,71 e a abordagem
61 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx. Treatise on the Conflict of Laws or Private International Law.Cambridge,
Harvard University Press, 1916. p. 41
62 XXXXXXXX, X. The general principles of private international law. Xxxxxxxx Xxxxxxx, 1972. x. 00-000, x. 000.
00 XXXXXXXX, X. The general principles of private international law. Xxxxxxxx Xxxxxxx, 1972. p. 97-229, p. 122.
64 DE XXXX, Xxxxxxx. Historical and Comparative Introduction to Conflict of Laws. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 118, p. 435-440, 1996, p. 450-451.
65 O termo viria a designar um ramo autônomo do Direito, como hoje reconhecido, apenas a partir da segunda
metade do Século XIX.
66 XXXX, Xxxx X. The Isolation of Private International Law. Wisconsin International Law Journal, v. 7, n. 1, p. 149-178, 1988-1989, p. 155, p. 159-161.
67 STORY, Xxxxxx. Commentaries on the Conflict of Laws. Little Xxxxx, 1834. p. 9.
68 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. A historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 157.
69 XXXX, Xxxx X. The Isolation of Private International Law. Wisconsin International Law Journal, v. 7, n. 1,
p. 149-178, 1988-1989, x. 000, x. 00.
00 XXXXXX, Xxxxxx E. The Historic Bases of Private International Law. American Journal of Comparative Law, v. 2, n. 3, p. 297-317, 1953, p. 307.
71 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. A historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 158.
universalista.72 O autor defende que a aplicação de leis estrangeiras se daria conforme as normas internamente positivadas pelos Estados, de forma que cada Estado já estaria dotado de regras de conflito em suas legislações, cabendo à doutrina identificar tais regras, tornando o conflito de leis uma questão interna, sujeita ao direito nacional.73
Para Mills, a abordagem positivista do Direito Internacional influenciou o desenvolvimento do Direito Internacional Privado de duas formas principais: pela centralização de aspectos como soberania, independência e territorialidade de cada Estado, dificultando a categorização do conflito de leis como um direito de ordem internacional ou nacional; e, em segundo lugar, servindo como forma de limitação da interferência de um Estado sobre outro, como forma de proteção da soberania.74
1.1.3 O Direito Internacional Privado Moderno
A influência do positivismo sobre o Direito Internacional Privado intensifica-se no Século XIX com o cientificismo aplicado ao Direito, bem como em razão de fatores econômico-sociais como a Revolução Industrial, a expansão capitalista, a independência das colônias norte-americanas — e, posteriormente, da América hispânica e portuguesa — promovendo um cenário de novos fluxos comerciais.75
Acerca de tal período histórico, Xxxxxxxxxx destaca ainda o papel das codificações, iniciadas com o Direito Napoleônico após a Revolução Francesa. Segundo o autor, um “individualismo nacional” do Direito Civil floresce no Século XIX e o Direito Internacional Privado, que nasceu comum à Europa Continental, cede lugar a uma série de sistemas nacionais, ao passo que a natureza do conflito de leis, antes costumeira e jurisprudencial, torna-se rígida, com regras codificadas; e, ao mesmo passo, o surgimento de diversos códigos civis nacionais ressalta as diferenças morais, materiais e técnicas entre diferentes ordens
72 DE XXXX, Xxxxxxx. Historical and Comparative Introduction to Conflict of Laws. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 118, p. 435-440, 1996, p. 452.
73 DE XXXX, Xxxxxxx. Historical and Comparative Introduction to Conflict of Laws. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 118, p. 435-440, 1996, p. 455-456.
74 XXXXX, Xxxx. The Private History of International Law. International and Comparative Law Quarterly, v.
55, p 1-50, 2006, p. 24-25.
00XXXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxx. Evolução histórica do direito internacional privado e a consagração do conflitualismo. Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión, v. 3, n. 5, p. 423-446, 2015, p. 433.
jurídicas estatais.76 Na seara do conflito de leis, tal período é marcado pelas obras de três grandes teóricos: Xxxxxxxxx Xxxx xxx Xxxxxxx, Xxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx, e o já mencionado Xxxxxx Xxxxx.77 Tais autores são responsáveis pelo desenvolvimento do Direito Internacional Privado moderno.78
Xxxxxxx publica sua teoria em 1849, objetivando estabelecer uma base científica para o conflito de leis, partindo do princípio de soberania territorial proposto por Xxxxx,79 e estabelecendo, assim, uma abordagem oposta à centralização territorialista proposta por Xxxxxxx.80 De Nova destaca como trunfo da teoria de Xxxxxxx a rejeição ao princípio da lex fori, segundo o qual a aplicação de normas estrangeiras se daria apenas em circunstâncias excepcionais, defendendo que a aplicação de normas estrangeiras seria não apenas necessária, mas também mais coerente com o ideal de justiça.81
Conforme explica Xxxxxxxxxx, ao invés de buscar delimitar o âmbito de aplicação de uma determinada ordem legal, Xxxxxxx inicia sua investigação buscando identificar a que ordens normativas uma relação jurídica pode estar vinculada, e, sugere, então, ser necessário identificar por meio de quais elementos tal relação jurídica se sujeita a uma determinada ordem legal.82 Para Yntema, Xxxxxxx traduz o problema do conflito de leis na descoberta sobre a que ordem legal, por sua própria natureza, uma determinada relação jurídica pertence ou se sujeita.83 Para tanto, Xxxxx esclarece que se deve observar elementos ligados às relações jurídicas, tais quais o lugar da situação de um bem ou o lugar do cumprimento de uma obrigação,84 de forma que:
76 XXXXXXXXXX, Xxx. Le développement historique du droit international privé. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, p. 287-400, 1929, p. 334.
77 XXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx de. O Critério de Conexão da Nacionalidade na Doutrina e na Legislação de Direito Internacional Privado Brasileiro (1863-1973). Revista Seqüência, n. 79, p. 195-219, 2018, p. 200.
78 DE XXXX, Xxxxxxx. Historical and Comparative Introduction to Conflict of Laws. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, x. 000, x. 000-000, 0000, x. 000.
00 XXXXXX, Xxxxxx E. The Historic Bases of Private International Law. American Journal of Comparative
Xxx, v. 2, n. 3, p. 297-317, 1953, p. 309.
80 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. A historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 159.
81 DE XXXX, Xxxxxxx. Historical and Comparative Introduction to Conflict of Laws. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 118, p. 435-440, 1996, p. 457.
82 XXXXXXXXXX, Xxx. Le développement historique du droit international privé. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, p. 287-400, 1929, p. 355.
83 YNTEMA, Hessel E. The Historic Bases of Private International Law. American Journal of Comparative
Xxx, v. 2, n. 3, p. 297-317, 1953, p. 309.
84 XXXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxx. Evolução histórica do direito internacional privado e a consagração do conflitualismo. Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión, v. 3, n. 5, p. 423-446, 2015, p. 434.
Em geral, Xxxxxxx defende o domicilio das pessoas para reger o estado e capacidade e a situação da coisa para a regência dos bens. No tocante à sucessão, Xxxxxxx sustenta que a sede da sucessão é o domicílio do de cujus, pois seria fruto implícito de sua vontade final (fixando o seu domicílio). Já quanto à forma dos atos jurídicos, a lei do lugar da celebração seria a sede desse tipo de relação.85
Savigny defendia que para cada relação jurídica existente haveria um sistema legal “apropriado” a ser aplicado, desenvolvendo regras relacionadas a elementos de ligação para se determinar a qual sistema a relação jurídica estaria sujeita.86 O domicílio, portanto, seria o mais apropriado elemento de ligação para se determinar a capacidade jurídica de um indivíduo, enquanto as demais relações jurídicas poderiam ser categorizadas por elementos de ligação correspondentes ao domicílio, local de situação, local em que é celebrada a obrigação e local em que ocorre o litígio, assim, a partir de tais elementos, poder-se-ia identificar a ligação de qualquer relação jurídica a um determinado ordenamento jurídico.87
Xxxxxxx também acreditava na concepção de uma “comunidade legal” entre Estados independentes, de forma que, assim como defendido por Xxxxx, as relações internacionais deveriam ser pautadas por reciprocidade, propondo um sistema de conflito de leis que permita deslindes similares a um mesmo conflito, seja qual for o foro em que ocorrer o julgamento.88 Nas palavras de Xxxxxxxxxx, “[…] uma mesma relação jurídica deveria submeter-se a uma mesma lei, qualquer que seja o Estado em que o julgamento ocorrer”.89 Dessa forma, o autor defendia que regras de conflito de leis deveriam ter como objetivo garantir resultados uniformes.90
Mixxx xestaca o caráter universal e comum das regras de conflito propostas por Saxxxxx, partindo da concepção de uma comunidade internacional de nações, divergindo da
85 RAXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxx. Evolução histórica do direito internacional privado e a consagração do conflitualismo. Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión, v. 3, n. 5, p. 423-446, 2015, p. 434.
86 MIXXX, Xxxx. The Private History of International Law. International and Comparative Law Quarterly, v. 55, p 1-50, 2006, p. 35.
87 JUXXXXX, Xxxxxxxxx X. X historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 161.
88 DE NOXX, Xxxxxxx. Historical and Comparative Introduction to Conflict of Laws. Collected Courses of the
Hague Academy of International Law, v. 118, p. 435-440, 1996, p. 459-460.
89 GUXXXXXXXX, Xxx. Le développement historique du droit international privé. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, p. 287-400, 1929, p. 358.
90 JUXXXXX, Xxxxxxxxx X. X historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 162.
concepção de Direito Internacional Privado como um ramo do Direito excluído das relações
internacionais, confinado à normatividade interna dos Estados.91
A teoria de Paxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx00 xompleta o processo evolutivo do Direito Internacional Privado moderno,93 categorizada como uma corrente internacionalista, posto que o autor também defendia a aplicação e a aceitação pelos Estados da incidência de normas estrangeiras em suas jurisdições,94 bem como a unidade do direito público e privado no campo do Direito Internacional.95
Maxxxxx xnaugura uma nova escola do Direito Internacional, denominada “sistema da personalidade do Direito”, tendo a nacionalidade como princípio fundamental.96 Sexxxxx Xxxxx, para o jurista italiano “[…] a Nação é a que deveria ocupar o papel de interlocutor no direito internacional, pois esta seria o verdadeiro sujeito do ordenamento internacional, ente real e permanente, criado pela história e não pela política como seria o Estado”.97
Assim como Saxxxxx, Maxxxxx xefendia a existência de uma comunidade de nações e a aplicação imperativa de normas estrangeiras a determinadas relações jurídicas contaminadas por elementos de estraneidade,98 de forma que cada uma deveria promover a igualdade legal através da aplicação uniforme dos direitos individuais.99 Para ambos os autores, as regras de Direito Internacional Privado serviriam essencialmente a uma função global, de coordenação da relação existente entre diferentes ordenamentos.100
Para Maxxxxx, o Direito Privado tem por objetivo tutelar seus próprios cidadãos em detrimento do território, resguardado ainda o tratamento igualitário a cidadãos nacionais e
91 MIXXX, Xxxx. The Private History of International Law. International and Comparative Law Quarterly, x.
00, x 0-00, 0000, x. 00.
00 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxxx. Direito Internacional (Diritto Internazionale. Prelezioni). Unijui, 2003.
93 JUXXXXX, Xxxxxxxxx X. X historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 164.
94 RAXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxx. Evolução histórica do direito internacional privado e a consagração do conflitualismo. Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión, v. 3, n. 5, p. 423-446, 2015, p. 434.
95 MOURA, Aline Beltrame de. O direito internacional privado entre a nacionalidade de Maxxxxx x a cidadania
da União Europeia. Revista Eletrônica Direito e Política, v. 7, n. 2, 2012, p. 1061.
96 GUXXXXXXXX, Xxx. Le développement historique du droit international privé. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, p. 287-400, 1929, p. 366.
97 MOXXX, Xxxxx Xxxxxxxx xe. O critério de conexão da nacionalidade na doutrina e na legislação de direito internacional privado brasileiro (1863-1973). Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, v. 39, n. 79, p. 195- 219, nov. 2018, p. 198.
98 DE NOXX, Xxxxxxx. Historical and Comparative Introduction to Conflict of Laws. Collected Courses of the
Hague Academy of International Law, v. 118, p. 435-440, 1996, p. 464.
99 JUXXXXX, Xxxxxxxxx X. X historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 164.
100 MIXXX, Xxxx. Rediscovering the Public Dimension of Private International Law. Hague Yearbook of International Law, v. 24, p. 11-24, 2011, p. 14.
estrangeiros. O autor defende o Direito Privado como inerente ao indivíduo, acompanhando-o para além dos limites territoriais de sua pátria,101 de forma que o reconhecimento da nacionalidade de um indivíduo como elemento de conexão preponderante para a resolução de uma disputa jurídica seria um requisito imposto pela ordem internacional, na forma de tratados internacionais celebrados entre as nações, garantindo tal reconhecimento.102 A teoria do jurista materializou-se como regra de conflito no código civil italiano de 1865, tendo influenciado também o desenvolvimento do Direito Internacional Privado em outros países europeus, na América Latina, África e Ásia.103
Maxxxxx x considerado também um dos bastiões do princípio da autonomia da vontade na escolha do Direito aplicável. Para o autor, as relações jurídicas privadas diferenciam-se em obrigatórias e voluntárias, sendo as primeiras aquelas que fogem à vontade do indivíduo, enquanto as últimas seriam aquelas constituídas voluntariamente pelo indivíduo, como a contratação de obrigações e a aquisição de bens.104 Às relações voluntárias, o jurista italiano defende que os próprios indivíduos possam determinar a qual lei se aplicam, enquanto as relações obrigatórias sujeitariam-se à lex patriae, de forma que o princípio da territorialidade prevaleceria excepcionalmente, aplicando-se a lei do foro às relações que envolvem políticas públicas, soberania e direitos reais.105
A obra de Maxxxxx xode ser considerada como a última novidade para os fundamentos teóricos e os conceitos sobre os quais o Direito Internacional Privado se baseia,106 sendo considerada por Mixxx xomo importante fator da relativização de seu caráter universalista, pois a escola italiana, ao enfatizar o Direito como expressão da identidade nacional, teria contribuído com a diversificação dos sistemas de conflitos de leis entre os Estados,
101 MOXXX, Xxxxx Xxxxxxxx xe. O critério de conexão da nacionalidade na doutrina e na legislação de direito internacional privado brasileiro (1863-1973). Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, v. 39, n. 79, p. 195- 219, nov. 2018, p. 200.
102 MIXXX, Xxxx. The Private History of International Law. International and Comparative Law Quarterly, v. 55, p 1-50, 2006, p. 40.
103 JUXXXXX, Xxxxxxxxx X. X historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 164.
100XXXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxx. Evolução histórica do direito internacional privado e a consagração do conflitualismo. Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión, v. 3, n. 5, p. 423-446, 2015, p. 435.
100XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. X historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 164.
106 JUXXXXX, Xxxxxxxxx X. X historical overview. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 193, p. 136-169, 1985, p. 165.
ressaltando a individualidade de cada país e atuando como expressão de um nacionalismo
crescente na Europa.107
Deve-se notar que o Direito Internacional Privado nasce do Direito Internacional como uma concepção de justiça pela aplicação da lei mais eficaz e útil, a depender da natureza do caso, e, com a influência do positivismo, torna-se reflexo da soberania estatal, privilegiando a aplicação do Direito local.108 Dessa forma, o Direito Internacional Privado afastou-se do Direito Internacional Público, assumindo aspecto nacional e doméstico,109 resultando no isolamento desse ramo do Direito.110
Conforme os Estados passaram a codificar suas próprias regras de Direito Internacional Privado, a concepção de um sistema transnacional, de caráter universal, foi pouco a pouco rejeitada,111 resultando no surgimento de uma multiplicidade de sistemas de Direito Privado.112
Normas de Direito Internacional Privado objetivam, portanto, selecionar o Direito específico de um dado Estado segundo o qual uma demanda jurídica deve ser dirimida, independentemente do resultado que a aplicação desse Direito poderá produzir, de forma que essas demandas transnacionais restam sujeitas à aplicação de normas nem sempre condizentes às políticas internacionais relevantes.113 A história vindoura viria a exigir novos contornos do Direito Internacional Privado e da própria teoria do Direito, na medida em que as relações internacionais tomaram novos contornos com o processo de globalização.
1.2 O PLURALISMO JURÍDICO GLOBAL E NORMAS NÃO ESTATAIS
A expansão econômica do pós-Segunda Guerra Mundial, a criação de organizações e
tratados internacionais voltados ao fomento do comércio internacional, o desenvolvimento
107 MIXXX, Xxxx. The Private History of International Law. International and Comparative Law Quarterly, x. 00, x 0-00, 0000, x. 00.
000 XXXXXX, Xxxxxx E. The Historic Bases of Private International Law. American Journal of Comparative
Lax, v. 2, n. 3, p. 297-317, 1953, p. 317.
109 MIXXX, Xxxx. The Private History of International Law. International and Comparative Law Quarterly, v. 55, p 1-50, 2006, p. 43.
110 PAXX, Xxxx X. Xhe Isolation of Private International Law. Wisconsin International Law Journal, v. 7, n. 1, p. 149-178, 1988-1989, p. 155, p. 177-178.
111 MCXXXXXX, Xxxxxx X. XII. Private International Law: Ius Gentium Versus Choice of Law Rules or
Approaches. American Journal of Comparative Law, v. 38, n. 3, p. 521-538, 1990, p. 522.
112 RODL, Florian. Private Law beyond the Democratic Order - On the Legitimatory Problem of Private Law beyond the State. American Journal of Comparative Law, v. 56, n. 3, p. 743-768, 2008, p. 745.
113 MCXXXXXX, Xxxxxx X. XII. Private International Law: Ius Gentium Versus Choice of Law Rules or Approaches. American Journal of Comparative Law, v. 38, n. 3, p. 521-538, 1990, p. 522.
dos meios telemáticos de comunicação, dentre outros aspectos intrínsecos à globalização114, resultam em alto volume e complexidade das relações internacionais privadas. Tal cenário é marcado pela “compressão espaço-temporal” resultante do desenvolvimento tecnológico e das relações internacionais,115 em que o protagonismo dos mercados financeiros colabora com a relativização do papel do Estado e com a internacionalização das decisões.116
Nesse cenário de relações jurídicas transfronteiriças, contaminadas de estraneidade, a figura do Estado Nação soberano passou a dividir a função regulatória com outros atores do mercado117, como organizações não governamentais e entes privados, que, pelo princípio da autonomia da vontade, promovem a autorregulamentação.118
A globalização transcende a sociedade para além do Estado, de forma que leis domésticas nem sempre contêm respostas adequadas às relações comerciais num contexto neoliberal.119 Tal processo pode ser entendido como a intensificação da transnacionalização e interdependência dos mercados, na forma de relações jurídicas transnacionais que não encontram correspondente normativo em um único sistema estatal.120 Conforme as relações interpessoais ultrapassam fronteiras geográficas, seus impactos não são mais adequadamente regulados por normas estatais, concebidas para regular fatos jurídicos domésticos,121 de maneira que
[…] o Estado não pode desconsiderar o poderio econômico das corporações transnacionais, bem como a existência e a atuação de outras ordens em âmbito global, que vão de blocos regionais a até mesmo ONG’s. Pelo contrário, há que ser
114 O termo “globalização” não comporta uma definição única, portando diferentes significados ao redor do mundo. Neste trabalho, admite-se seu uso para referir a intensificação das relações globais, por meio da qual se intensificou o fluxo de capitais e pessoas para além das fronteiras nacionais em uma frequência cada vez maior. 115 CORRÊA, Caxxxxx Xxxx. Processos de globalização e estado nacional: uma interface histórica e conceitual. In: BAXXXXXXX, Ubxxxx Xxxxx; DAL RI JUNIOR, Arxx; MOXX, Sexxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. (Org.). Direito, estado e constituição: homenagem ao professor Luxx Xxxxxx Xxxxxxxxxx xe Olivo. 1. ed. Florianópolis: Insular, 2018. p. 63-92, p. 65.
116 CORRÊA, Caxxxxx Xxxx. Voltando a falar do fenômeno da globalização: pluralismo jurídico-político e impactos na função social do Estado. In: OLXXX, Luxx Xxxxxx Xxxxxxxxxx xe; BOXXXXX, Alxxxxxxx; MOXX, Sexxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. (Org.). Direito e Crítica: Homenagem ao Professor Anxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx. 1. ed. Florianópolis: Insular, 2017. p. 95-118, p. 98.
117 CAXXXX, Xxxxxxx. Private Law and State-Making in the Age of Globalization. New York University Journal of International Law and Politics, v. 39, n. 1, 2006.
118 ASXXX, Xxxx. From the Theory of Private Law to Legal Pluralism: On the reconstruction of Private Law in the Age of Globalization. Japanese Yearbook of International Law, v. 57, p. 163-178, 2014, p.165.
119 NIXX, Xxxxxx; MIXXXXXX, Xxxx. Beyond the State? Rethinking Private Law: Introduction to the Issue.
American Journal of Comparative Law, v. 56, n. 3, 2008, p. 527.
120 RODL, Florian. Private Law beyond the Democratic Order - On the Legitimatory Problem of Private Law beyond the State. American Journal of Comparative Law, v. 56, n. 3, p. 743-768, 2008, p. 744.
121 ASXXX, Xxxx. From the Theory of Private Law to Legal Pluralism: On the reconstruction of Private Law in the Age of Globalization. Japanese Yearbook of International Law, v. 57, p. 163-178, 2014, p. 163.
justamente considerada a composição desses entes no sistema global de relação de forças.122
Como resposta à limitação imposta pelo Direito doméstico, normas concebidas para além dos Estados podem representar um enquadramento mais adequado a fatos jurídicos transnacionais.123 Nesse cenário, Asano sugere que leis domésticas podem ser complementadas ou substituídas por mecanismos de autorregulação ou mesmo por costumes, na medida em que tais mecanismos podem funcionar como normas aptas a regular atividades sociais, caracterizando-se uma situação de pluralização jurídica.124
O panorama consolidado pela globalização, no qual a atividade humana enquadra-se em diferentes esferas de regulação e atrai não apenas um regulamento jurídico, fornece à Teoria do Direito múltiplas nuances; as quais, Berman sugere que sejam vistas através das lentes do Pluralismo Jurídico, que se ocupa do estudo de situações nas quais dois ou mais sistemas legais, incluindo aquelas de origem não estatal, se ocupam de um mesmo campo social,125 resultando em uma regulamentação jurídica híbrida.126
Vox Xxxxx-Xxxxxxxx xelata que o Pluralismo Jurídico foi por muito tempo estritamente rejeitado por teóricos que defendiam ser a lei dos Estados-nação a única relevante, de forma que o reconhecimento do Direito Internacional como um sistema distinto do Direito Interno contribuiu para uma maior aceitação do fenômeno.127 Em resposta aos estatistas, teóricos do Pluralismo Jurídico têm como premissa a existência de comunidades para as quais as leis estatais não são a ordem normativa predominante, tendo logrado maior
122 CORRÊA, Caxxxxx Xxxx. Voltando a falar do fenômeno da globalização: pluralismo jurídico-político e impactos na função social do Estado. In: OLXXX, Luxx Xxxxxx Xxxxxxxxxx xe; BOXXXXX, Alxxxxxxx; MOXX, Sexxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. (Org.). Direito e Crítica: Homenagem ao Professor Anxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx. 1. ed. Florianópolis: Insular, 2017. p. 95-118, p. 100.
123 RODL, Florian. Private Law beyond the Democratic Order - On the Legitimatory Problem of Private Law
beyond the State. American Journal of Comparative Law, v. 56, n. 3, p. 743-768, 2008, p. 744.
124 ASXXX, Xxxx. From the Theory of Private Law to Legal Pluralism: On the reconstruction of Private Law in the Age of Globalization. Japanese Yearbook of International Law, v. 57, p. 163-178, 2014, p. 163.
125 O conceito de “campos sociais” é atribuído ao sociólogo Pixxxx Xxxxxxxx, e pode ser definido como um espaço social multidimensional de relações sociais entre agentes que compartilham e disputam interesses em comum, de forma competitiva, podendo-se identificar campos específicos, como o cultural, econômico, educacional, científico, jornalístico, dentre outros.
126 BEXXXX, Xxxx. A World of Legal Conflicts. In: BEXXXX, Xxxx. Global Legal Pluralism: A Jurisprudence of Law beyond Borders. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. x. 00-00.
000 XXX XXXXX-XXXXXXXX, Xxxxxx. Globalisation and Legal Pluralism. International Law Forum Du Droit International, v. 4, n. 1, p. 19-25, 2002, p. 19.
aceitação por parte de juristas e da sociedade em geral ao final do Século XX, pela expansão da globalização e da proliferação de normas internacionais e transnacionais.128
O Pluralismo Jurídico abrange, além da interação entre o Direito Interno, Internacional e Transnacional, o Direito Costumeiro e Religioso, tendo sido originado da expansão colonialista e de movimentos migratórios, encontrando substrato em sociedades industriais nas quais comunidades desenvolvem suas próprias leis.129 Ao considerar normas canônicas, indígenas e étnicas como Direito, os pluralistas refutam a concepção do Estado como detentor exclusivo da criação normativa.130
Acerca da origem do Pluralismo Jurídico no Colonialismo, destaca o papel do Estado de Direito que, sob o mote civilizatório, serviu de crivo ao Direito Costumeiro, impondo restrições às colônias. Assim, através do Pluralismo Jurídico, determinados costumes foram reconhecidos legalmente, enquanto outros foram categorizados como “incivilizados” e, portanto, rechaçados. Dessa forma, o Direito serviu como meio de legitimação de poder aos Estados colonizadores.131 Nesse cenário, Bexxxx xxplica que ao se observar a imposição da legalidade estatal sobre normas indígenas, a abordagem pluralista foca na interação entre ambos os sistemas e não apenas na compatibilidade ou não das normas locais para com as normas impostas, pois a implementação do sistema colonialista não logrou a extinção das normas previamente vigentes nos territórios colonizados.132
Considerando as origens do fenômeno, o Pluralismo Jurídico, enquanto forma de dominação de leis e de formalização de normas sociais, é tido por Texxxxxx xomo uma visão “antiga”, que indevidamente restringe a visão “moderna” do fenômeno, cujo enfoque deve se dar na fragmentação da autoprodução normativa, em virtude da pluralização de grupos e comunidades, e, consequentemente, de discursos sociais.133
128 UBXXX, Xxxxxx. Introduction: Legal Pluralism in a Globalized World. U.C. Irvine L. Rev., v. 8, n. 141, p
141-148, 2008, p. 143.
000 XXX XXXXX-XXXXXXXX, Xxxxxx. Globalisation and Legal Pluralism. International Law Forum Du Droit International, v. 4, n. 1, p. 19-25, 2002, p. 19.
130 BEXXXX, Xxxx. Global Legal Pluralism: A Jurisprudence of Law beyond Borders. Cambridge: Cambridge University, 2012. p. 16.
131 GRXXXXXX, Xxxxx. A globalised view of the rule of law and legal pluralism. In: GRXXXXXX, Xxxxx. Promoting the Rule of Law in Post-Conflict States. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. p. 14-58, p. 15-16.
132 BEXXXX, Xxxx. Global Legal Pluralism: A Jurisprudence of Law beyond Borders. Cambridge: Cambridge University, 2012. p. 17.
133 TEUBNER, Gunther. The Two Faces of Jaxxx: Rethinking Legal Pluralism. Cardozo Law Review, v. 13, n. 5, p. 1443-1462, 1992, p. 1457.
Analisando as bases teóricas do pluralismo jurídico, Grxxxxxxx xelacionou o fenômeno não apenas ao Direito, mas também à Sociologia, cuja origem reside na existência de mais de uma fonte normativa, ou ordenamento jurídico identificável. Para o autor, o pluralismo jurídico consiste na “heterogeneidade normativa associada ao fato de que ações sociais se dão num contexto de múltiplos e sobrepostos ‘campos sociais semi-autônomos’”.134
Colhe-se da abordagem “pós-moderna” de Saxxxx x concepção de pluralismo jurídico como a existência de “[…] diferentes espaços legais superpostos, impregnados, misturados em nossas mentes e ações”.135 Segundo o autor, vive-se em tempos de “porosidade legal”, em virtude das múltiplas redes de ordens jurídicas que interceptam nossas vidas, fazendo da integralidade um aspecto crucial à concepção pós-moderna do Direito.136
Mixxxxxx xborda o conceito de “Pluralismo Jurídico Global”, relacionando-o ao potencial conflito entre os sistemas normativos existentes atualmente, pois tais sistemas “complementam, sobrepõem, competem, influenciam, ou colidem uns com os outros”, de forma que a concepção de um conjunto de normas compatíveis e sistematicamente ordenadas deixa de abranger a fragmentação do Direito.137
Para Taxxxxxx, diante da pluralidade de teorias do Direito, o entendimento de que o Direito decorra de uma pluralidade de fontes implica também em uma pluralidade de concepções acerca do Pluralismo Jurídico.138
Ao teorizar a coexistência de normas oriundas do Legislativo estatal e de normas não estatais, o Pluralismo Jurídico concebe uma nova dimensão do Direito no contexto da globalização, relativizando a concepção tradicional do Direito como emanado pelo Estado. 139 O Direito Transnacional, oriundo dos processos de globalização desde a segunda metade do Século XX, não originou, por si só, o Pluralismo Jurídico, mas sim contribuiu com novas roupagens ao fenômeno.140
134 GRXXXXXXX, Xxxx. What Is Legal Pluralism?. Journal of Legal Pluralism and Unofficial Law, v. 24, p. 1-
56, 1986, p. 38.
135 SAXXXX, Xxxxxxxxxx xx Xxxxx. Law: A Map of Misreading. Toward a Postmodern Conception of Law.
Journal of Law and Society, v. 14, n. 3, p. 279-302, 1987, p. 298.
136 Ibidem.
137 MIXXXXXX, Xxxx. What Is Non-State Law? In: HEXXXXX, X. Xegotiating State and Non-State Law: The Challenge of Global and Local Legal Pluralism. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. x. 00-00, x. 00. 000 XXXXXXXX, B.Z. A Non-Essentialist Version of Legal Pluralism. Journal of Law and Society, v. 27, n. 2, p. 296-321, 2000, p. 297.
139 ASXXX, Xxxx. From the Theory of Private Law to Legal Pluralism: On the reconstruction of Private Law in the Age of Globalization. Japanese Yearbook of International Law, v. 57, p. 163-178, 2014, p. 164-166.
000 XXX XXXXX-XXXXXXXX, Xxxxxx. Globalisation and Legal Pluralism. International Law Forum Du Droit International, v. 4, n. 1, p. 19-25, 2002, p. 19.
Tal fenômeno é hoje alimentado pela expansão da atividade legislativa privada e da autorregulação em diversas áreas do Direito Privado, ou seja, por meio do desenvolvimento de normas não estatais por mercados globais.141 O Pluralismo Jurídico apresenta-se, portanto, como substrato ao direcionamento de influências na criação de normas não estatais, como alternativa ao paradigma tradicional estadocentrista.142
Normas não estatais, ou normas não nacionais”, são assim denominadas por não decorrerem de um determinado ordenamento jurídico, mas sim de grupos privados, que visam regular diferentes aspectos de atividades econômicas e transnacionais, a nível doméstico e internacional, resultando em uma relativização do monopólio estatal sob a atividade legislativa.143 Essas normas compreendem uma vasta gama de autorregulação e instrumentos de soft law, focadas em questões de interesse público que, apesar de passíveis de regulação pelos Estados, resultam principalmente da ação coordenada de diversos atores internacionais, como empresas transnacionais, organizações não governamentais e associações sem fins lucrativos, de forma conjunta ou individual.144
Doxxxxx xponta sempre ter existido sistemas normativos privados, independentes da existência de um Estado centralizado ou de qualquer estrutura de poder e autoridade, e utiliza como exemplo os sistemas normativos nas religiões judaica e islâmica, nos quais nem sempre as estruturas de poder mantiveram uma configuração perene.145 Conforme aponta Syxxxxxxxx, a criação de leis precede o surgimento dos Estados modernos, independente da existência de um poder soberano institucionalizado.146
Normas não estatais possuem uma ampla abrangência, compreendendo regras decorrentes de práticas reiteradas e internacionalmente reconhecidas; regras regionalmente aceitas e praticadas; regras resultantes de determinada atividade econômica; regras
141 ASXXX, Xxxx. From the Theory of Private Law to Legal Pluralism: On the reconstruction of Private Law in the Age of Globalization. Japanese Yearbook of International Law, v. 57, p. 163-178, 2014, p. 164-166.
142 BEXXXX, Xxxx. Global Legal Pluralism: A Jurisprudence of Law beyond Borders. Cambridge: Cambridge
University, 2012. p. 15.
143 WIXXXXX, Xxxx. Party Autonomy and the Selection of Non-State Norms in International Commercial Contracts. HKLJ, v. 48, n. 3, 2018, p. 953.
144 VEXXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Introduction. In: VAX XXXXXXXX, Xxxxxxx; VEXXXXXXXXX, Xxxxxxxx (Ed.). International Governance and Law: State Regulation and Non-state Law. Edawrd Elgar Publishing Inc., 2008. x. 0-0, x. 0.
000 XXXXXXX, Xxxxxxx Jr. Private Law without the State and during its formation. American Journal of
Comparative Law, v. 56, n. 3, p. 541-566, 2008, p. 543.
000 XXXXXXXXXX, Xxxxxx C. Contracts Subject to Non-State Norms. The American Journal of Comparative Law, v. 54, p. 209–231, 2006, p. 2010. Disponível em: <xxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/00000000>. Accesso em: 2 mai. 2021.
codificadas ou não, dentre outras.147 Mixxxxxx xsclarece que normas não estatais não se submetem nem compõem qualquer sistema hierárquico para com leis estatais e compreendem diversos tipos de normas — religiosas, costumeiras, tribais — podendo ou não ser baseadas em codificações, dotadas ou não de organismos jurisdicionais centralizados. Para o autor, normas não estatais não consistem em uma categoria, pois não detêm muitos aspectos em comum, exceto pelo fato de não serem fruto da atividade legislativa estatal.148
Embora a redação do Regulamento Roma I, objeto deste trabalho, indique haver distinção entre “corpo legislativo não estatal” e “convenções internacionais”149, tratando-os como categorias separadas, a autora da presente pesquisa filia-se à corrente doutrinária que classifica convenções internacionais como normas não estatais, pois ainda que se sujeitem à adesão de Estados, a elaboração de tais instrumentos não decorre da atividade legislativa do Estado em âmbito interno, mas sim do multilateralismo internacional.
1.2.1 As normas não estatais no Direito Internacional Privado como expressão do princípio da autonomia da vontade
O Direito Privado, emanado do Estado, ao admitir a autonomia da vontade, a liberdade contratual, costumes como fonte de Direito, e, ao criar uma esfera de regulação na qual o Estado se abstém ou restringe sua intervenção, mais se aproxima de normas não estatais do que se imagina.150 A autonomia da vontade consiste no principal mecanismo para que normas não estatais se vinculem aos ordenamentos jurídicos internos, instrumentalizando a demanda por uma infraestrutura legal a nível transnacional.151
147 TAXX, Xxxxx Xxxxxx. Non-state law in party autonomy–a European perspective. International Journal of Private Law, v. 5, n. 1, p. 22-39, 2012, p. 24.
148 MIXXXXXX, Xxxx. What Is Non-State Law? In: HEXXXXX, X. Xegotiating State and Non-State Law: The Challenge of Global and Local Legal Pluralism. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 41-58, p. 48. 149 Dispõe o Considerando n.º 13 do Regulamento: “O presente regulamento não impede as partes de incluírem, por referência, no seu contrato um corpo legislativo não estatal ou uma convenção internacional”. UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (CE) n. o 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I). OJL 177, 04.7.2008. Disponível em:
<xxxx://xxxx.xxxxxx.xx/xxx/xxx/0000/000/xx>. Acesso em: 25 abr. 2020.
150 ASXXX, Xxxx. From the Theory of Private Law to Legal Pluralism: On the reconstruction of Private Law in the Age of Globalization. Japanese Yearbook of International Law, v. 57, p. 163-178, 2014, p. 168-169.
151 RODL, Florian. Private Law beyond the Democratic Order - On the Legitimatory Problem of Private Law beyond the State. American Journal of Comparative Law, v. 56, n. 3, p. 743-768, 2008, p. 749.
O desenvolvimento do Direito Internacional Privado como apresentado até aqui resulta todo e qualquer contrato sujeito a uma determinada lei.152 Regras de conflito positivadas por cada Estado, bases do Direito Internacional Privado, objetivam apontar as leis ou normas de determinada comunidade como aplicáveis a relações envolvendo membros de múltiplas comunidades.153 Tais regras variam essencialmente entre si em cada comunidade ou Estado, de forma que os mesmos fatos podem levar a diferentes efeitos,154 muitas vezes imprevisíveis, pois dependem do foro competente.155
O princípio da autonomia da vontade, enquanto regra de conflito, consagra a vontade das partes como elemento de conexão, independentemente de outras leis potencialmente aplicáveis.156 No que concerne à escolha de lei aplicável, a autonomia da vontade apresenta-se como o critério mais adequado às relações transnacionais, pois permite efeitos de maior segurança, previsibilidade e uniformidade, resultado do princípio fundamental da liberdade contratual.157 Trata-se de uma solução prática ao enigma da lei aplicável segundo as regras de conflito, pois permite a indivíduos e pessoas jurídicas de Direito submeter suas transações a normas que acomodem seus interesses e expectativas para com aquela relação jurídica.158
A faculdade das partes na escolha do Direito aplicável deve-se muito à obra de Duxxxxxx, o qual, filiado à escola estatutária francesa, propõe as bases teóricas para tal princípio, ao defender que a autonomia da vontade individual, ao permitir liberdade de contratação, permitiria também a escolha de leis a serem aplicadas ao contrato.159 Posteriormente, conforme referido, a concepção da autonomia da vontade das partes no Direito Privado viria a ganhar força com a obra de Maxxxxx, cuja teoria Moura associa à “[…] liberdade individual, pela faculdade de o indivíduo derrogar as suas normas de direito
000 XXXXXXXXXX, Xxxxxx C. Contracts Subject to Non-State Norms. The American Journal of Comparative Law, v. 54, p. 209–231, 2006, p. 209. Disponível em: <xxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/00000000>. Accesso em: 2 mai. 2021.
153 BEXXXX, Xxxx. A World of Legal Conflicts. In: BEXXXX, Xxxx. Global Legal Pluralism: A Jurisprudence of Law beyond Borders. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. p. 191.
154 ROXXXXXXX, Kermit III. The Myth of Choice of Law: Rethinking Conflicts (1999). Faculty Scholarship at Penn Law, 1340. p. 2541.
155 JUXXXXX, Xxxxxxxxx X. Xhe Lex Mercatoria and Private International Law. Uniform Law Review, v. 5, n. 1, p. 171-188, 2000, p. 176.
156 NIXXXXXXX, Xxxx. Party Autonomy in Contemporary Private International Law. Japanese Yearbook of International Law, v. 59, 2016, p. 300-344, p. 308.
157 JUXXXXX, Xxxxxxxxx X. Xrivate International Law or International Private Law. King’s College Law
Journal, v. 5, p. 45-62, 1994-1995, p. 58.
158 JUXXXXX, Xxxxxxxxx X. Xhe Lex Mercatoria and Private International Law. Uniform Law Review, v. 5, n. 1, p. 171-188, 2000, p. 179.
159 BEXXX, Xxxxxx Xxxxx. Treatise on the Conflict of Laws or Private International Law.Cambridge, Harvard University Press, 1916. p. 32.
nacional para submeter determinada relação jurídica que possua algum elemento de
estraneidade a uma lei diversa, de acordo com sua livre preferência”.160
Pelo princípio da autonomia da vontade das partes, é possível se convencionar não apenas a lei aplicável a uma relação contratual, mas também as regras de ordem pública aplicáveis, visto que, em princípio, isso afastaria os efeitos da lex fori e de quaisquer outras leis potencialmente aplicáveis.161 Tal princípio encontra-se positivado em diversos países, tendo alcançado, segundo Juenger,162 status mundial, consagrado também em convenções internacionais. Apesar de limitações impostas pelos próprios ordenamentos jurídicos estatais ao princípio da autonomia da vontade, é justamente essa vinculação que torna plenamente possível a autonomia contratual.163
Conforme se extrai da Seção 1.1 deste trabalho, o Direito Internacional Privado foi tradicionalmente estruturado, por meio de regras de conflito, para determinar as leis de qual Estado devem ser aplicadas a uma relação jurídica eivada de estraneidade. As regras de conflito passaram a ser parte dos ordenamentos nacionais e tradicionalmente compõem o monopólio regulador do Estado.164 Originalmente, nem mesmo o princípio da autonomia da vontade, uma vez consagrado pelos Estados, foi estruturado para permitir a eleição de toda e qualquer lei aplicável, mas sim a eleição de uma lei estatal pelas partes.
Concebida no século XIX, a teoria de Xxxxxxx baseou-se na autonomia da vontade das partes e na escolha de lei aplicável vinculada ao princípio da liberdade contratual, restringindo o primeiro ao segundo, de forma que a existência e a validade da escolha das partes estariam vinculadas aos parâmetros do ordenamento estatal.165
Assevera Mills que os Estados passaram a reconhecer também os sistemas jurídicos uns dos outros, de forma que o princípio da autonomia da vontade faculta às partes a liberdade de se escolher determinada lei a elas aplicável, mas não qualquer lei. Segundo o autor, o
160 MOURA, Aline Beltrame de. O critério de conexão da nacionalidade na doutrina e na legislação de direito internacional privado brasileiro (1863-1973). Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, v. 39, n. 79, p. 195-219, nov. 2018, p. 203.
161 XXXXXXXXX, Xxxx. Party Autonomy in Contemporary Private International Law. Japanese Yearbook of International Law, v. 59, 2016, p. 336.
162 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. The Lex Mercatoria and Private International Law. Uniform Law Review, v. 5, n. 1, p. 171-188, 2000, p. 179.
163 XXXX, Xxxxxxx. Private Law beyond the Democratic Order - On the Legitimatory Problem of Private Law beyond the State. American Journal of Comparative Law, v. 56, n. 3, p. 743-768, 2008, p. 757.
000 XXXXX, Xxxx. Xxxxxx xx Xxx-Xxxxx Xxx. In: XXXXX, Xxxx. Party autonomy in private international law. Cambridge University Press, 2018a. p. 491-520, p. 496. Disponível em:
<xxxx://xx.xxx.xxx/00.0000/0000000000000.000>.
165 NISHITANI, 2016, p. 307.
princípio é “estruturado como uma escolha limitada a leis estatais, reconhecendo o pluralismo de sistemas jurídicos estatais, mas não de ordens jurídicas para além das estatais”.166
A autonomia da vontade quanto à escolha de lei aplicável deve observar os limites impostos pela lei aplicável, assim, mesmo que as partes elejam a aplicação de normas não estatais, sua incidência não será vinculante em razão da vontade das partes, mas sim em virtude da possibilidade dessa escolha conforme o ordenamento jurídico aplicável de acordo com as regras de conflito.167 Segundo Juenger,168 a tradicional restrição à escolha de normas não estatais priva contratantes de suas próprias opiniões, e de uma solução que potencialmente simbolize a opção por leis verdadeiramente neutras. Afirma o autor que “[…] diante de contratos transnacionais, a elaboração de normas substantivas de caráter supranacional é preferível às regras de conflito dos ordenamentos nacionais”.169
Por outro viés, Rodl afirma que os efeitos transfronteiriços de leis domésticas se dissolvem diante da autonomia da vontade na escolha de lei aplicável, pois a lei eleita não se aplicaria em virtude da possibilidade legal, mas sim em razão da vontade das partes, que não mais se originaria do Direito Privado, mas sim de sua própria validade, sua natureza não estatal.170
O princípio da autonomia da vontade das partes é, portanto, o principal aliado da segurança jurídica, por meio do qual contratantes poderão alinhar melhor suas intenções. Nesse sentido, pesquisa conduzida pela Universidade Queen Xxxx, em parceria com o escritório de advocacia White & Case, demonstra a relevância e a alta utilização da autonomia da vontade ao revelar as legislações aplicáveis mais comumente escolhidas por corporações em disputas internacionais submetidas à arbitragem. Em ordem decrescente, são apontadas a inglesa, a nova iorquina, a suíça, a francesa e a americana.171
000 XXXXX, Xxxx. Xxxxxx xx Xxx-Xxxxx Xxx. In: XXXXX, Xxxx. Party autonomy in private international law. Cambridge University Press, 2018a. p. 496-497. Disponível em:
<xxxx://xx.xxx.xxx/00.0000/0000000000000.000>.
000 XXXXXXXXXX, Xxxxxx C. Contracts Subject to Non-State Norms. The American Journal of Comparative Law, v. 54, p. 209–231, 2006, p. 211. Disponível em: <xxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/00000000>. Accesso em: 2 mai. 2021.
168 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. The Lex Mercatoria and Private International Law. Uniform Law Review, x. 0, x. 0, 0000, x. 000-000, x. 000.
000 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. The Lex Mercatoria and Private International Law. Uniform Law Review, v. 5, n. 1, 2000, p. 171-188, p. 186.
170 XXXX, Xxxxxxx. Private Law beyond the Democratic Order - On the Legitimatory Problem of Private Law beyond the State. American Journal of Comparative Law, v. 56, n. 3, p. 743-768, 2008, p. 749.
171 WHITE & CASE. International arbitration survey: Choices in International Arbitration. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxxxxxxxxxx.xxxx.xx.xx/xxxxx/xxxxxxxxxxx/xxxx/0000_XxxxxxxxxxxxxXxxxxxxxxxxXxxxxxXxxxxx.xxx>. Acesso em: 20 ago. 2019, p. 14.
Por outro lado, em sua mais recente obra, Xxxxx realizou estudo empírico quanto à escolha de lei aplicável em contratos internacionais de compra e venda, tendo mapeado as razões pelas quais a escolha de leis estatais tende a ser evitada.172 O autor categorizou-as em
(i) razões fundamentais e (ii) razões não fundamentais. No primeiro grupo, foram identificados fatores como a incompatibilidade entre o Direito das Obrigações doméstico e obrigações típicas do comércio internacional; inadequação de leis domésticas à cultura jurídica dos contratantes; dificuldade de interpretação e insegurança jurídica de algumas leis domésticas; restrições à autonomia da vontade legalmente impostas; inflexibilidade do Direito Interno e limitações à liberdade contratual, dentre outras. No segundo grupo, destacam-se fatores como parcialidade da escolha e benefício de uma parte em detrimento da outra; falta de especialidade e desenvolvimento de leis domésticas para acomodar contratos internacionais; insegurança jurídica quanto ao entendimento das cortes nacionais; instabilidade política e social dos Estados, dentre outras.
Diante do estadocentrismo do Direito Internacional Privado e das recorrentes restrições impostas à utilização de normas não estatais como lei aplicável em diversas jurisdições, observa-se que o princípio da autonomia da vontade das partes é a única regra de conflito que permite, com exatidão, a aplicação de normas não estatais a uma controvérsia jurídica, funcionando como instrumento para a sua legitimação jurídica.
1.2.2 Limitações ao princípio da autonomia da vontade e à aplicação do Direito estrangeiro
Independentemente do caráter liberal de alguns sistemas legais, ao permitir a plena autonomia privada, o Direito Estatal pode livremente impor limites à aplicação do Direito estrangeiro, estatal ou não. A teoria de Xxxxxxx, principal inspiração às regras de Direito Internacional Privado, reconhece a existência de normas cuja aplicação as partes não poderiam derrogar ou anular.173 Com base em diferentes regras e princípios, procura-se disciplinar, coordenar, controlar, moderar e limitar a utilização de regras de conexão ao se identificar a lei aplicável a relações jurídicas internacionais.174 Baptista descreveu essa
172 MOSER. Xxxxxxx. Rethinking Choice of Law in Cross-border Sales. Reino Unido: Eleven International Publishing, 2019. p. 65-67.
173 XXXX, Xxxxx. Autonomy in International Contracts. Oxford University Press, 1999. p. 199.
174 XXXXXXXX, Xxxxx. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 380.
limitação às normas de conflito como “anticorpos” dos sistemas jurídicos domésticos, aptos a defendê-los “contra corpos estranhos ao sistema ou ao seu uso indevido”.175
Esses mecanismos consistem nas figuras de ordem pública, normas de aplicação imediata e fraude à lei.176 Sujeitando-se a tal controle, a lei aplicável eleita pelas partes somente produzirá efeitos se respeitados tais princípios de direito interno.
No Direito Internacional Privado, os mecanismos referidos sob a rubrica de “ordem pública” funcionam como um filtro aos efeitos da aplicação do Direito estrangeiro à determinada situação,177 sendo uma figura de direito doméstico, da lex fori, destinada à proteção dos valores básicos de uma sociedade.178 A ordem pública pode, portanto, revogar ou substituir a aplicação do Direito estrangeiro identificado como lei aplicável pelo intérprete.179
Apesar de sua reconhecida indefinição,180 a ordem pública pode ser compreendida como os valores fundamentais de uma determinada sociedade, ligados não propriamente às normas legais, mas sim à moral, à economia, à religião e à ética.181 Seu conteúdo é mutável e reflete os valores de um determinado momento. A ordem pública é imune à vontade das partes e, se desrespeitada, acarreta em invalidade do ato jurídico.182
A aplicação da ordem pública à determinada relação jurídica pode ser classificada em negativa e positiva.183 A primeira ocorre na última etapa do processo de aplicação de regras
175 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. Aplicação do direito estrangeiro pelo juiz brasileiro. Revista de Informação Legislativa Brasília. v. 36, n. 142, abr./jun. 1999, p. 272.
176 Dentre os principais institutos do Direito Internacional Privado, o reenvio também limita a aplicação do Direito estrangeiro eleito como aplicável pelas partes na medida em que ordenamentos que o admitem podem, através de suas. Regras de conflito, proceder à da lei de um país terceiro, que não aquela eleita pelas partes. Todavia, uma vez que o Regulamento Roma I, objeto desta pesquisa, não admite o reenvio, o instituto não será abordado no presente trabalho.
177 XXXXXXXX, Xxxxxxx. L'ordre public en droit national et en droit de l'Union européenne: essai de systématisation. 2015. Tese de Doutorado. Université Panthéon-Sorbonne-Paris I. p. 185.
178 XXXXXXX, Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxx. Ordre public (Public Policy). Max Planck Encyclopedias of International Law [MPIL]. Oxford University Press, 2019.
179 XXXXXX, Xxxxxx. The conflict of laws. Oxford University Press, 2019. p. 208.
180 XXXXXXXX, Xxxxx. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 349.
181 MONACO, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxx. A exceção de ordem pública internacional. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 114, p. 231-249, 2019, p. 234.
182 XXXXXXXX, Xxxxx. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 353.
XXXXXXX, Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxx. Ordre public (Public Policy). Max Planck Encyclopedias of International Law [MPIL]. Oxford University Press, 2019.
de conflito: uma vez identificada a lei aplicável, a soberania da lex fori dispõe da última palavra sobre o processo, de forma que caso a aplicação do direito estrangeiro viole a ordem pública do foro, por seu conteúdo ou efeitos,184 a corte estatal não se obriga a dar efeito ao direito estrangeiro.185 O direito estrangeiro é reconhecido como lei aplicável, porém, sujeito ao controle da lex fori, excepcionalmente, não o será.186 Nesse cenário, a ordem pública incide em momento posterior à aplicação das regras de conflitos. Em sua forma positiva, há as chamadas normas de aplicação imediata, apresentadas a seguir.187
1.2.2.2 Normas de Aplicação Imediata
As normas de aplicação imediata, como parte da teoria de Xxxxxxx, compreendem “hipóteses especificas e excepcionais” em que o Estado sequer necessita aplicar regras de conflitos para identificar a lei aplicável à relação jurídica, pois a lex fori incidirá de forma “imediata e necessária” em defesa dos interesses estatais.188 Assim, a aplicação de regras de conflito será revogada pelas normas de aplicação imediata,189 as quais, por sua vez, consistem na lei material a ser aplicada ao fato.190 Estas normas são classificadas como positivas por serem superpostas à lei aplicável, enquanto a ordem pública compreende a “desaplicação” da lei identificada.191
Entretanto, nem todas as normas de aplicação imediata prevalecem sobre as regras de conflito aplicáveis, cabendo ao intérprete determinar tal questão a partir da função e dos interesses que a norma visa proteger. A depender da importância concedida a tais interesses no sistema jurídico, é possível se determinar a aplicação dessas normas através de regras de conflitos, conferindo maior previsibilidade se comparada à abordagem discricionária do
184 XXXXXX, Xxxxxx. The conflict of laws. Oxford University Press, 2019. p. 208.
185 XXXXX, Xxxxxxx. The public policy and mandatory rules of third countries in international contracts.
Journal of Private International Law, v. 2, n. 1, p. 27-70, 2006, p. 5.
186 XXXXXXX, Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxx. Ordre public (Public Policy). Max Planck Encyclopedias of International Law [MPIL]. Oxford University Press, 2019. p. 4.
187 XXXXXXX, Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxx. Ordre public (Public Policy). Max Planck Encyclopedias of International Law [MPIL]. Oxford University Press, 2019. p. 4.
188 MONACO, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxx. A exceção de ordem pública internacional. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 114, p. 231-249, 2019, p. 212.
189 XXXX, Xxxxx. Autonomy in International Contracts. Oxford University Press, 1999. p. 199.
190 XXXX, Xxxxx. Autonomy in International Contracts. Oxford University Press, 1999. p. 202.
191 XXXXX, Xxxxxxx. The public policy and mandatory rules of third countries in international contracts.
Journal of Private International Law, v. 2, n. 1, p. 27-70, 2006, p. 7.
intérpret.192 Tal cenário é geralmente identificado em relações jurídicas envolvendo partes hipossuficientes, que requerem proteção, como nas relações de trabalho, consumo, seguros, transporte ou agência.193 Monaco explica que, dessa forma, “[...] o legislador do foro quer é submeter a situação plurilocalizada à incidência de uma norma material vigente naquele próprio ordenamento, e que resolverá a questão ex ante”.194
Ademais, é possível que um Estado permita a incidência de normas de aplicação imediata advindas de um ordenamento que não o da lex fori, ou seja, de um terceiro Estado que mantenha vínculos com aquela relação jurídica.195 Tal possibilidade é verificada, por exemplo, no artigo 19 da legislação suíça de Direito Internacional Privado, desde que os efeitos da lei do Estado terceiro sejam considerados consonantes com o Direito suíço.196 Como um princípio, a possibilidade de incidência de normas de aplicação imediata oriundas de um Estado terceiro se origina da jurisprudência holandesa,197 tendo alcançado natureza internacional em textos como a Convenção de Roma sobre a lei aplicável às obrigações contratuais de 1980198 e a Convenção da Haia sobre a lei aplicável ao trust e a seu reconhecimento de 1985199.
Enquanto a ordem pública e as normas de aplicação imediata manifestam-se no momento de se aplicar o Direito estrangeiro para se dirimir conflitos, a fraude à lei “[...] incide no momento da decis o judicial sobre o exequatur ou sobre o cumprimento de um ato
192 CORDEIRO-XXXX, X. International commercial contracts. Applicable Sources and Enforceability. Cambridge University Press, 2014. p. 192.
193 CORDEIRO-XXXX, X. International commercial contracts. Applicable Sources and Enforceability. Cambridge University Press, 2014. p. 193-194.
194 MONACO, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxx. A exceção de ordem pública internacional. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 114, p. 231-249, 2019, p. 236.
195 CORDEIRO-XXXX, X. International commercial contracts. Applicable Sources and Enforceability. Cambridge University Press, 2014. p. 193-199.
196 SWISS. Decret. Federal Act on Private International Law (PILA), of 18 December 1987. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxx.xxxxx.xx/xxx/xx/0000/0000_0000_0000/xx.
197 XXXX, Xxxxx. Autonomy in International Contracts. Oxford University Press, 1999. p. 218.
198 UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I). OJL, v. 177, n. 04.7, 2008. Disponível em:
<xxxxx://xxx-xxx.xxxxxx.xx/xxxxx-xxxxxxx/XX/XXX/?xxxxxxxxx%0X00000X0000>.
199 CONFERÊNCIA DA HAIA DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO. Princípios relativos à escolha do direito aplicável aos contratos comerciais internacionais. Tradução de Xxxxxxxxx Xxxxx. 2019. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxxx.xxx/xxxx/000x0000-0000-0000-xxx0-0000xxx00000.xxx>. Acesso em: 15 mai. 2020.
emanado do exterior”.200 A fraude à lei caracteriza-se, segundo Xxxxxxxx (1997, p. 385), ao se alterar propositalmente o elemento de conexão pertinente para a identificação da lei aplicável, com o objetivo de atrair aplicação de lei diversa daquela que seria originalmente relevante.201 Como resultado, tem-se o abuso do direito (pela alteração de domicílio ou nacionalidade, interferindo no estatuto pessoal), com o objetivo de esquivar-se da ordem pública ligada à lei originalmente aplicável.202
Na seara contratual, os negócios jurídicos podem, em princípio, utilizar-se da autonomia da vontade para escolha de lei estrangeira por força da vontade das partes.203 Ainda assim, o Direito Inglês (DI), por exemplo, requer que tal escolha seja feita em boa-fé, pois se for feita apenas com o intuito de evadir-se da lei originalmente aplicável, pode resultar inválida.204
1.3 NORMAS NÃO ESTATAIS NO DIREITO COMERCIAL INTERNACIONAL: A
“NOVA LEX MERCATORIA”
A estreita relação entre a globalização e a intensificação da atividade normativa privada tem como núcleo a produção de normas não estatais voltadas ao Direito Comercial Internacional (DCInt), que compõem o que a doutrina denomina de “nova lex mercatoria”. Tal fenômeno compreende uma multiplicidade de normas não estatais empregadas na regulação do comércio internacional, incluindo normas elaboradas por organismos privados, em virtude da necessidade de internacionalização e especificação das normas reguladoras do comércio internacional para melhor adequá-las à globalização dos mercados e cadeias produtivas. Considerando o objeto desta pesquisa, tal fenômeno ilustra a importância da utilização de normas não estatais aplicadas a relações jurídicas internacionalizadas no contexto da globalização.
200 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. Aplicação do direito estrangeiro pelo juiz brasileiro. Revista de Informação Legislativa Brasília. v. 36, n. 142, abr./jun. 1999, p. 273.
201 XXXXXXXX, Xxxxx. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 383. 202 XXXXXXXX, Xxxxx. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 385. 203 XXXXXXXX, Xxxxx. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 386.
204 CORDEIRO-XXXX, X. International commercial contracts. Applicable Sources and Enforceability. Cambridge University Press, 2014. p. 153; XXXXXXXX, Xxxxx-Xxxxx. Article 3 Freedom of Choice. In: CALLIESS, Xxxxx-Xxxxx; XXXXXX, Xxxxxx (Ed.). Rome Regulations: commentary. 3. ed. United Kingdom: Kluwer Law International. 2020. p. 78-113, p. 91; UNIDROIT, International Institute For The Unification Of Private Law. UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts. Preamble. 2016. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxx-xxxxxxxxx/xxxxxxxx-xxxxxxxxxx-0000>. Acesso em: 12 jun. 2021.
Através de processos de urbanização e da expansão das relações comerciais que levaram ao surgimento do Direito Internacional Privado, surge um ius mercatorum, ainda durante a Idade Média, período marcado por uma estruturação normativa e jurisdicional plural e descentralizada.205
À luz do ius gentium romano, conforme o comércio envolvia cada vez mais diferentes territórios e culturas, os comerciantes da época passaram a desenvolver um Direito próprio206, de caráter universalista e uniformizado, melhor adaptado às atividades econômicas.207 Esse Direito seria vinculante ao comércio e independente de autoridades locais, consistindo em um conjunto autônomo de normas criadas a partir de usos e costumes.208 Huck afirma que essa não era uma novidade daquele período, ressaltando que:
Um direito dos mercadores é alvo tão antigo quanto o próprio comércio. Traços de um sistema análogo podem ser encontrados já no ano 300 a.C. com a Lei do Mar de Rodes, adotada por gregos e romanos e, posteriormente, introduzida no restante da Europa. No curso do tempo, várias manifestações jurídicas no mesmo sentido são detectadas, tais como as regras de direito marítimo desenvolvidas pelo Imperador Xxxxxxx X, no século LX; as tábuas de Amalfi, editadas no século XI naquela República italiana; os rolos de Oleron, surgidos no século XII na Corte de Oleron, uma ilha atlântica da costa francesa; as leis de Wisby, que desde 1350 regulavam o comércio no mar Báltico; o Consulado do Mar, ainda no século XIV, uma coletânea de costumes do comércio marítimo, reunida pela Corte Consular de Barcelona e aceita em praticamente todos os centros comerciais marítimos da Europa.209
Fatores como a expansão comercial, o estudo do Direito nas universidades e o desenvolvimento de sistemas normativos — eclesiásticos e seculares — contribuíram para a concepção da lex mercatoria como a reunião de costumes estabelecidos e praticados entre comerciantes, por eles próprios administrados.210 Conforme assevera Glitz:
[A lex mercatoria] nasceria corporativo, objetivo, universal, baseado na reciprocidade de direitos, com jurisdição participativa e exclusivo aos comerciantes, mas com o tempo se estende para fora dos seus estreitos limites iniciais (em primeiro lugar para abarcar aqueles que negociavam com comerciantes). Por outro
205 XXXXX, Xxxxxxxxx X. X. Contrato, Globalização e Lex Mercatoria: Convenção de Viena 1980 (CISG),
Princípios Contratuais UNIDROIT (2010) e Incoterms (2010). São Paulo: Clássica, 2012. p. 190.
206 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. The Lex Mercatoria and Private International Law. Uniform Law Review, v. 5, n. 1, 2000, p. 171-188, p. 172.
207 XXXXX, Xxxxxxxxx X. X. Apontamentos sobre o Conceito de Lex Mercatoria. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, v. 1, p. 307-334, 2012, p. 309.
208 XXXXXXXX, Xxxxx X. International Sales Law: A Global Challenge. Cambridge: Cambridge University
Press, 2014, p. 9.
209 XXXX, X. X. Lex mercatoria: horizonte e fronteira do comércio internacional. Revista da Faculdade de Direito, v. 87, p. 213-235, 1992, p. 216.
210 XXXXXX, Xxxxxx X.; XXXXXXX, Xxxxx. Law of International Commercial Transactions (Xxx Xxxxxxxxxx).
Harvard International Law Journal, v. 19, n. 1, p. 221-277, 1978, p. 225.
lado criaria inovações como a integração jurídica do Direito comercial (independentemente de espaços territoriais), utilização de instrumentos de circulação de crédito e a difusão de novos tipos sociais (por exemplo, a comenda).211
Fradera destaca que a lex mercatoria representou importante desenvolvimento do comércio em escala internacional ao passo que possibilitava uma aplicabilidade uniforme entre as diversas regiões nas quais o comércio era praticado, afastando, assim, divergências entre os estatutos locais, os quais eram motivo recorrente de conflitos e insegurança para os comerciantes, dada sua diversidade.212
Xxxxxxxx, por sua vez, relaciona o surgimento da lex mercatoria a um mito, uma estória fabricada, mas não nega sua influência sobre o fenômeno da autorregulação do comércio mundial no contexto da globalização.213 Na ideia de um conjunto autônomo de normas transnacionais servir de modelo para outras normas não estatais contemporâneas à globalização, segundo o autor, pode-se verificar a existência de uma lex digitalis acerca do Direito digital privado; uma lex constructionis acerca dos estandartes contratuais observados em construção civil; uma lex financiaria relativa às normativas privadas de mercados financeiros; uma lex sportiva, que concatena regras internacionais de desporto criadas por entes privados; e ainda, uma lex maritima acerca do comércio marítimo.214
Em 1964, Goldman215 publica o artigo Fronti res du droit et lex mercatoria, no qual cunha a expressão “nova lex mercatoria”, ao propor a existência de um direito costumeiro como fonte do Direito do comércio internacional, capaz de regular as relações econômicas internacionais.216 Defende o autor que:
[…] além disso, as cláusulas de contratos tipo, como os usos codificados do comércio internacional, não são, em seu estado atual, frutos de uma elaboração espontânea, mas sim de uma adoção ou de uma constatação informativa. Essas provêm, na maioria das vezes, de organismos profissionais que certamente não são
211 XXXXX, Xxxxxxxxx X. X. Contrato, Globalização e Lex Mercatoria: Convenção de Viena 1980 (CISG), Princípios Contratuais UNIDROIT (2010) e Incoterms (2010). São Paulo: Clássica, 2012. p. 192.
212 FRADERA, Véra Xxxxx xx. A interpretação dos negócios jurídicos empreendidos no Brasil: o alargamento das hipóteses previstas no artigo 113 do Código Civil brasileiro mediante inspiração do artigo 9.º da CISG. In: XXXXXXXXX, Xxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxx X. Xxxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxx (Coord.). A CISG e o Brasil: Convenção das Nações Unidas para os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias. São Paulo: Xxxxxx Xxxx; Curitiba: Federação das Indústrias do Estado do Paraná, 2015. p. 569-574, p. 570.
213 XXXXXXXX, Xxxx. What Is Non-State Law? In: XXXXXXX, X. Negotiating State and Non-State Law: The Challenge of Global and Local Legal Pluralism. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. x. 00-00, x. 00. 000 XXXXXXXX, Ralf. What Is Non-State Law? In: XXXXXXX, X. Negotiating State and Non-State Law: The Challenge of Global and Local Legal Pluralism. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 41-58, p. 44.
000 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Frontières du droit et lex mercatoria. Archives de Philosophie du Droit, n. 09, p. 177-192, 1964.
216 FIORATI, Xxxx Xxxx. A lex mercatoria como ordenamento jurídico autônomo e os Estados em desenvolvimento. Revista de Informação Legislativa, v. 41, n. 164, p. 17-30, 2004, p. 18.
autoridades públicas […]; mas não por isso os operadores do comércio internacional
não os consideram menos qualificados para definir tais normas.217
De acordo com Xxxxxxxx, é possível concluir que, para Xxxxxxx, a lex mercatoria consiste em um conjunto de regras de direito, composto por práticas profissionais codificadas, cláusulas contratuais, concepções jurídicas, contratos-tipo criados espontaneamente pelos operadores do comércio internacional, que são, através da repetição e recorrência em seu uso, transformados em regras costumeiras.218
Na prática, o século XX foi palco da revitalização do comércio internacional, não apenas de bens e tecnologia, mas também do transporte marítimo, seguradoras, bancos, dentre outras associações, que criaram ordens jurídicas autônomas em âmbito transnacional, com o fito de evitar as diversidades existentes entre o ordenamento jurídico de um Estado e outro, bem como as complexidades que envolvem litigar em uma jurisdição estrangeira.219 Glitz associa a lex mercatoria a uma “tentativa de criação de espaço de liberdade para atuação transnacional, portanto independentemente de Estados nacionais, com ‘aspiração do reconhecimento da legitimidade e da legalidade de um Direito não estatal’”220, possivelmente como resultado da crise do modelo de regulação jurídica do comércio internacional, consistindo em alternativa encontrada por contratantes a possíveis divergências entre os sistemas legislativos nacionais221 e também como plataforma a interesses mercadológicos.222
Xxxxxxx volta a definir a lex mercatoria, dezesseis anos após seu primeiro ensaio, como um “direito espontâneo” constituído por usos profissionais codificados, arranjos
217 Texto original traduzido livremente pela autora: “[…] au surplus, les clauses des contrats types comme les usages codifiés du commerce international ne sont pas, en leur état actuel, les fruits d'une élaboration spontanée, mais bien d'une édiction ou d'une constatation informatrice.Celles-ci émanent le plus souvent d'organismes professionnels qui ne sont certes pas des autorités publiques […]; mais les opérateurs de commerce international ne les en considèrent pas moins comme qualifiés pour en définir les normes”.
218 STRENGER, Irineu. Les facteurs qui expliquent la naissance de la lex mercatoria. Collected Courses of the Hague Academy of International Law,v. 227, p. 253-280, 1991, p. 271.
219 XXXXXX, Xxxxxx X.; XXXXXXX, Xxxxx. Law of International Commercial Transactions (Xxx Xxxxxxxxxx).
Harvard International Law Xxxxxxx, x. 00, x. 0, x. 000-000, 0000, x. 228.
220 XXXXX, Xxxxxxxxx X. X. Contrato, Globalização e Lex Mercatoria: Convenção de Viena 1980 (CISG), Princípios Contratuais UNIDROIT (2010) e Incoterms (2010). São Paulo: Clássica, 2012. p. 317.
221 STRENGER, Irineu. Les facteurs qui expliquent la naissance de la lex mercatoria. Collected Courses of the
Hague Academy of International Law,v. 227, p. 253-280, 1991, p. 270.
000 XXXXXXXXXX, Xxxxxx C. Contracts Subject to Non-State Norms. The American Journal of Comparative Law, v. 54, p. 209–231, 2006, p. 234. Disponível em: <xxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/00000000>. Accesso em: 2 mai. 2021.
jurídicos e cláusulas contratuais recorrentes na contratação internacional (potencialmente
costumes), e sentenças arbitrais.223
Strenger identifica três tendências que traduzem a lex mercatoria segundo a doutrina: primeiramente, é entendida como ordem jurídica autônoma, criada espontaneamente através das relações econômicas internacionais, independente de sanção estatal; em seguida, há a concepção como um corpo de regras apto a resolver controvérsias em substituição a leis nacionais; e, por fim, é considerada como um complemento à legislação doméstica aplicável e como uma gradual consolidação dos anseios e usos típicos do comércio internacional.224
Cumpre destacar que o conceito de uma “nova lex mercatoria” não é isento de controvérsias225, pelo contrário, as ideias de Xxxxxxx suscitaram vasta literatura acerca da temática, congregando críticas, questionamentos e apoiadores. Aspectos como fonte, conteúdo e objeto da lex mercatoria são alvos de recorrentes desentendimentos e discussões acerca de sua própria existência, de forma que Xxxxxxxxx a compara a uma “esfinge fazendo perguntas”.226
Xxxxxx é um dos principais críticos da teoria de Xxxxxxx, considerando-a ambígua e imprecisa, afirmando que partes de um contrato internacional não se vinculam juridicamente às supostas regras da lex mercatoria, mas sim ao Direito que rege aquele contrato:
A adoção geral por operadores do comércio internacional às Regras criadas pela CCI [Câmara de Comercio Internacional] através de sua efetiva utilização em transações comerciais é condição necessária para que tenha valor jurídico, ou seja, que sejam usos comerciais. Antes dessa intervenção prática, as Regras criadas não passam de simples sugestões. O que importa não é a sugestão de uma prática contratual por um organismo privado, qualquer que seja sua autoridade moral, ele não dispõe de um poder regulatório. É necessário, portanto, que as sugestões tornem-se práticas efetivas.227
000 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Xx lex mercatoria dans les contrats et l'arbitrage internationaux: réalité et perspectives. Travaux du Comité français de droit international privé, v. 2, n. 1977, p. 221-270, 1980, p. 225-226.
224 STRENGER, Irineu. Les facteurs qui expliquent la naissance de la lex mercatoria. Collected Courses of the Hague Academy of International Law,v. 227, p. 253-280, 1991, p. 275.
225 XXXXXXXX, Xxxxxxx-xxxx Xxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxxx. Lex mercatoria and private international
arbitration. Cuadernos de Derecho Transnacional, x. 00, x. 0, x. 00-00, 0000, x. 00.
000 XXXXXXXXX, Xxxxxxxxxxx. Lex Mercatoria: An International Regime without State. Revue Hellenique de Droit International,v. 46, p. 261-268, 1993.
227 Texto original traduzido livremente pela autora: “l'adoption générale par les opérateurs du commerce international des Règles créées par la CCI à travers leur utilisation effective dans les transactions courantes est donc la condition nécessaire pour leur donner valeur juridique, c’est-à-dire pour en faire des usages commerciaux. Avant l'intervention de cette adoption pratique, les Règles créées ne sont pas plus que de simples suggestions. Ce qui importe, ce n'est pas la suggestion d'une pratique contractuelle par un organisme privé, même s'il est international, et quelque grande que soit son autorité mo- rale, dès lors qu'il ne dispose pas d'un pouvoir réglementaire. C'est plutôt que la suggestion devienne pratique effective.” XXXXXX, Xxxxxxx. Théorie générale des usages du commerce, Paris, LGDJ, 1984, p. 316 apud STRENGER, Irineu. Les facteurs qui
Para Caravaca e González, a nova lex mercatoria não consiste em uma ordem jurídica independente, isto é, não se trata de um direito objetivo criado pelo comércio, mas sim um conglomerado de regras e normas fragmentárias de costumes comerciais que regem determinados aspectos particulares do comércio internacional.228
Lagarde, por sua vez, sustenta a fragilidade da concepção da lex mercatoria como ordem jurídica, na medida em que sua existência não se baseia na existência de normas, mas sim na existência de uma societas mercatorum.229 Outra controvérsia envolvendo a lex mercatoria diz respeito à sua interação com os ordenamentos jurídicos estatais. Xxxxxxxxxxx identifica duas vertentes doutrinárias: os autonomistas, para quem a lex mercatoria detém caráter não estatal; e os integracionistas, que pregam se tratar de um conjunto de normas estatais e não estatais.230
Apesar da relevância do debate doutrinário acerca na natureza da lex mercatoria como um Direito próprio, ressalta-se que seus objetivos melhor se coadunam à escolha de uma fonte normativa aplicável às relações jurídicas do que ao reconhecimento de um conjunto de regras autônomo e independente dos Estados.231 Xxxxxxx Xxxxxxxx, as críticas dirigidas à aplicação da lex mercatoria não se justificam por sua metodologia ou por seu conteúdo propriamente dito, mas sim por sua utilização ou aplicação errônea a casos concretos.232
1.3.1 Fontes da nova Lex mercatoria
A nova lex mercatoria é, como visto, alvo de inúmeras controvérsias, inclusive no que tange às suas fontes e ao seu conteúdo, muitas vezes tidos como “incertos”. Glitz esclarece que, originalmente, suas bases formais são os costumes, que oferecem a mesma certeza,
expliquent la naissance de la lex mercatoria. Collected Courses of the Hague Academy of International
Law,v. 227, p. 253-280, 1991, p. 315.
228 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx Xxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxxx. Los Contratos Internacionales y el Mito de la “Nueva Lex Mercatoria”. Cadernos da Escola de Direito Centro Universitário Autônomo do Brasil, x. 0, x. 00, x. 0-00, 0000, x. 7-9.
229 XXXXXXX, Xxxx. Approche critique de la lex mercatoria. Le droit des relations économiques internationales. Etudes offertes à Xxxxxxxx Xxxxxxx, v. 125, 1982, p. 135.
230 XXXXXXXXXXX, Xxxxxxx X. The Many Lives - and Faces - of Xxx Xxxxxxxxxx: History as Genealogy in
International Business Law. Law and Contemporary Problems, v. 71, n. 3, p. 169-190, 2008, p. 173.
231 XXXXX, Xxxxxxxxx X. X. Contrato, Globalização e Lex Mercatoria: Convenção de Viena 1980 (CISG), Princípios Contratuais UNIDROIT (2010) e Incoterms (2010). São Paulo: Clássica, 2012. p. 235.
232 XXXXXXXX, Xxxxxxxx. Trente ans de Xxx Xxxxxxxxxx pour une application sélective de la méthode des principes généraux du droit. Journal du Droit international, n. 1, p. 05-30, 1995, p. 9-10.
previsibilidade e efetividade das normas positivadas, em razão do consenso em sua utilização
e, consequentemente, legitimação.233
Conforme observam Berman e Kaufman, a partir da revitalização do comércio internacional e do fortalecimento de associações comerciais privadas, grande parte do comércio internacional é operacionalizada por cláusulas contratuais padrão, sob a chancela de associações privadas, a exemplo da Câmara de Comércio Internacional de Paris (CCI).234 Segundo Glitz, a doutrina, de modo geral, reconhece como fontes da lex mercatoria as práticas comerciais, a jurisprudência arbitral, com usos e cláusulas padrão, guias profissionais e códigos de condutas.235
Discute-se se regulamentos cuja elaboração envolve Estados fazem parte ou não da lex mercatoria. Asseveram Caravaca e Xxxxxxxx que regras elaboradas por Estados não fariam parte da lex mercatoria, exceto se resultarem da codificação de costumes e usos previamente originados da prática contratual. Por tal razão, para os autores, mesmo os Princípios de Direito Contratual do Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT) não seriam parte da lex mercatoria, por terem sido elaborados em antro acadêmico, não propriamente originados da prática de mercado, o jus mercatorum.236
Xxxxxxxxxxx, por sua vez, defende que esse direito do comércio internacional deriva de duas fontes: da legislação internacional e de costumes do comércio internacional. 237 Michaels questiona se a lex mercatoria teria passado de uma espécie de soft law amorfa e flexível a um sistema de normas jurídicas codificadas — muito em virtude dos Princípios UNIDROIT de Direito Contratual — dotado de institucionalização, através da expansão da arbitragem comercial internacional.238 O próprio autor responde que a lex mercatoria não pode ser considerada um sistema autossuficiente, independente dos Estados, pois mesmo os princípios
233 XXXXXXXXX, Xxxxx. Article 3 of the Hague Principles. Uniform Law Review, v. 26, n. 1, 2017, p. 5.
234 XXXXXX, Xxxxxx X.; XXXXXXX, Xxxxx. Law of International Commercial Transactions (Xxx Xxxxxxxxxx).
Harvard International Law Journal, v. 19, n. 1, p. 221-277, 1978, p. 228.
000 XXXXX, Xxxxxxxxx XX. Lex mercatoria:¿orden jurídico autónomo?. Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión, v. 5, n. 9, p. 196-223, 2017. p. 208.
236 XXXXXXXX, Xxxxxxx-xxxx Xxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxxx. Lex mercatoria and private international
arbitration. Cuadernos de Derecho Transnacional, x. 00, x. 0, x. 00-00, 0000, x. 70-71.
237 XXXXXXXXXXX, Xxxxx. The Unification of the Law of International Trade. Journal of Business Law, v. 000, x. 0, 0000, x. 000.
000 XXXXXXXX, Xxxx. The True Lex Mercatoria: Law Beyond the State. Indiana Journal of Global Legal Studies, v. 14, n. 2, 2007, p. 448.
UNIDROIT não possuem natureza vinculante, enquanto a jurisdição arbitral depende da atuação de cortes nacionais.239
1.3.2 A codificação de normas não estatais por organismos internacionais
Juenger questiona se o Direito Internacional Privado e o universalismo manter-se-ão incompatíveis, ou se há espaço para coexistência e interação entre ambas as escolas.240 Em um mundo ideal, a criação legislativa nacional e internacional levaria em consideração outros diplomas legais já existentes sobre o mesmo objeto, porém, não vivemos nesse mundo,241 assim, tentativas de uniformização e harmonização legislativa a nível global apresentam-se apenas como uma investida nessa aproximação.
A regulação e a governança da economia e dos negócios privados internacionais é um processo complexo que envolve diversos agentes e mecanismos, com vistas à persecução de seus interesses de mercado,242 e conforme explica Xxxx:
[…] torna-se cada vez mais importante que os interesses privados possam dispor de um conjunto de regras minimamente unificadas que regulamentem e abriguem as atividades econômicas entre dois ou mais países, de modo a proporcionar um ambiente de negócios em que prevaleça maior segurança jurídica. A aproximação de legislações constitui, assim, uma das principais demandas da comunidade internacional, especialmente em raz o da maior interdependência que existe, hoje, entre os Estados e os interesses privados. Trata-se de um incentivo importante às ações privadas que transbordem as fronteiras de um país, pois a diversidade jurídica poderá gerar custos adicionais a essas transações.243
A harmonização legislativa a níveis nacionais, regionais e internacionais, promove maior segurança jurídica, ao oferecer uma base legal comum, reduzindo divergências entre sistemas legais.244 Tal processo ocorre por meio da edição de normas não estatais de ordem
239 XXXXXXXX, Xxxx. The True Lex Mercatoria: Law Beyond the State. Indiana Journal of Global Legal
Studies, x. 00, x. 0, 0000, x. 000.
000 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. The Lex Mercatoria and Private International Law. Uniform Law Review, v. 5, n. 1, p. 171-188, 2000, p. 180.
241 XXXXXXX, Xxxxx Xxxx. The advantages of soft law in international commercial law: The role of UNIDROIT, UNCITRAL, and the Hague Conference. Brooklyn Journal of International Law, v. 34, n. 3, p. 3, 2009, p. 660.
242 XXXXXXXXXXX, Xxxx; XXXXXX, Xxxxx. Global Business Regulation. Cambridge: Cambridge University
Press, 2000. p. 9.
243 XXXX, Xxxx Xxxxx. A harmonização do direito privado. Brasília: Fundação Xxxxxxxxx xx Xxxxxx, 2007. p. 14.
244 BAZINAS, Spiros V. Harmonisation of International and Regional Trade Law: The UNCITRAL Experience.
Uniform Law Review, x. 0, x. 0-0, x. 00-00, 0000, x. 00.
procedimental ou substantiva que fornecem soluções mais coerentes às relações comerciais globalizadas. Conforme visto, normas podem ser desenvolvidas e consolidar-se de diferentes formas, em especial, na seara do Direito Comercial Internacional, normas podem ser moldadas e instrumentalizadas por meio de contratos-tipo, práticas comuns entre mercados e indústrias, associações advocatícias245, decisões judiciais, movimentos doutrinários, e também por meio da atividade de instituições públicas a nível nacional e internacional.246
Nesse sentido, Xxxxxxx identifica quatro categorias de normas não estatais relacionadas ao comércio internacional: (i) convenções internacionais e leis modelo, como as formuladas pela Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (UNCITRAL)247, que podem ser adotadas em contratos internacionais; (ii) codificações de princípios como os Princípios UNIDROIT248 de Contratos Comerciais Internacionais e os Princípios Europeus de Direito Contratual, destinados à harmonização de princípios de Direito Contratual para fins de lei aplicável a contratos internacionais, interpretação ou suplementação de outros instrumentos internacionais e de leis nacionais; (iii) usos comerciais, regras efetivamente empregadas em transações, sendo as mais conhecidas os Incoterms249 elaborados pela CCI; e (iv) normas não codificadas, como a própria lex mercatoria ou um “direito transnacional”.250
As três primeiras categorias apontadas pela autora são fruto do trabalho de importantes atores na construção de um Direito globalizado, consistindo ainda nos principais diplomas utilizados na “regulação não estatal” do comércio internacional. Para fins de estudo do tema aqui proposto, além das três primeiras organizações citadas pela autora, será abordado ainda o papel da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado, dada sua importância para o processo de uniformização do Direito Internacional Privado, através da elaboração de instrumentos normativos não estatais. A última categoria apontada por Xxxxxxx (a lex mercatoria) foi abordada na Seção 1.3 da presente pesquisa.
245 Nesse sentido, destaca-se o trabalho desenvolvido pela International Bar Association através da edição de
guidelines.
000 XXXXX, Xxxxxx X. Normative Modeling for Global Economic Governance: The Case of the United Nations Commission on International Trade Law (UNCITRAL). Brooklyn Journal of International Law, v. 36, n. 2, p. 567-604, 2011, p. 571.
247 Sigla em inglês correspondente à Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional.
248 Sigla em inglês correspondente ao Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado.
249 O termo designa a expressão “International commercial terms”. Vide Seção 1.3.2.3.
250 XXXXXXX, Xxxx. Party Autonomy and the Selection of Non-State Norms in International Commercial Contracts. HKLJ, v. 48, n. 3, 2018, p. 6.
1.3.2.1 A comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional
A UNCITRAL foi criada por determinação da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) em 1966, sendo a segunda comissão especializada em Direito Internacional já criada pela organização, com o fito de impulsionar a harmonização e a modernização normativa em setores estratégicos do direito comercial.251
O desenvolvimento do comércio internacional como forma de coexistência, cooperação e assistência entre as nações, promovendo, por consequência, a manutenção da paz, foi uma das principais motivações a colaborar com a criação do órgão, que, estabelecido em um fórum genuinamente global como as Nações Unidas, abriria as portas do progresso em matéria comercial também às nações em desenvolvimento.252 Conforme relata Xxxxxxxxxx, era imprescindível eliminar os obstáculos impostos ao desenvolvimento do comércio internacional pelas divergências existentes entre diferentes sistemas de Direito, pois as incertezas e as consequências jurídicas advindas de cada sistema representam desestímulo à contratação internacional.253
Quando de sua criação em 1966, a comissão era composta por 29 Estados-Membros, tendo se expandido ao longo dos anos, congregando hoje 60 Estados-Membros,254 sendo estruturada de forma a permitir a participação de representantes de diversas regiões geográficas, incluindo membros observadores,255 representantes de outras organizações internacionais, especialistas, acadêmicos, dentre outros entes de âmbito público e privado.256
A Comissão tem como um de seus objetivos a coordenação e cooperação com outras organizações destinadas à uniformização do Direito Privado, congregando atividades de
251 UNCITRAL. A Guide to UNCITRAL: basic facts about the united nations commission on international trade law. Basic facts about the United Nations Commission on International Trade Law. 2013. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxxxx.xx.xxx/xxxxx/xxxxxxxx.xx.xxx/xxxxx/xxxxx-xxxxxxxxx/xxxxxxxx/xx/00-00000-xxxxx-xx-xxxxxxxx- e.pdf>. Acesso em: 10 mai. 2020.
252 XXXXX, Xxxx. UNCITRAL: Its Origins and Prospects. The American Journal of Comparative Law, v. 15,
n. 3, p. 626-639, 1966.
253 XXXXXXXXXX, Xxxxxx. Uncitral - A Sound Beginning. American Journal of International Law, v. 62, n. 4, p. 935-941, 1968, p. 936.
254 UNCITRAL. Origin, Mandate and Composition of UNCITRAL. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxxxx.xx.xxx/xx/xxxxx/xxx/xxxxxxx_xxxxxxxxxxx>. Acesso em: 10 mai. 2020.
255 XXXXXX, Xxxx X. Towards a Predictable Law on International Receivables Financing: The UNCITRAL Convention. New York University Journal of International Law and Politics, v. 31, n. 2-3, p. 611-644, 1999, p. 615.
000 XXXXX, Xxxxxx X. Normative Modeling for Global Economic Governance: The Case of the United Nations Commission on International Trade Law (UNCITRAL). Brooklyn Journal of International Law, v. 36, n. 2, p. 567-604, 2011, p. 580.
criação normativa,257 especialmente de elaboração de leis modelo, inspiradas em princípios e standards reconhecidos internacionalmente,258 cuja promulgação pelos Estados como parte de suas leis domésticas é recomendada pelo órgão.259
Os textos elaborados no âmbito da UNCITRAL não visam vincular ou substituir leis domésticas. Do contrário, são privilegiados instrumentos que transparecem flexibilidade,260 em virtude da dificuldade em se atingir um consenso através de tratados internacionais, priorizando-se, por tal razão, a adoção de leis modelo como inovação regulatória.261 As leis modelo já elaboradas pela UNCITRAL abrangem setores como Arbitragem Comercial Internacional (1985); Aquisição de Bens, Construção e Serviços (1994); Comércio Eletrônico (1996); Insolvência Transnacional (1997); Transações com Garantia (2016); Documentos trasmissíveis eletronicamente (2017), dentre outros.262
Além de leis modelo, a atividade legislativa da Comissão se dá através da elaboração de convenções internacionais, guias e recomendações.263 Dentre as convenções internacionais, os textos que logram maior número de ratificações, e, por consequência, melhor atingiram o ímpeto de uniformização ao qual se destinam, são a Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras (Convenção de Nova York)264 e a Convenção
257 XXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxxxx. The Relationship between Formulating Agencies in International Legal Harmonization: Competition, Cooperation, or Peaceful Coexistence: A Few Remarks on the Experience of UNCITRAL. Loyola Law Review, v. 51, n. 2, p. 253-286, 2005, p. 263.
000 XXXXX, Xxxxxx X. Normative Modeling for Global Economic Governance: The Case of the United Nations Commission on International Trade Law (UNCITRAL). Brooklyn Journal of International Law, v. 36, n. 2, p. 567-604, 2011, p. 568.
259 UNCITRAL. A Guide to UNCITRAL: basic facts about the united nations commission on international trade law. Basic facts about the United Nations Commission on International Trade Law. 2013. Disponível em: xxxxx://xxxxxxxx.xx.xxx/xxxxx/xxxxxxxx.xx.xxx/xxxxx/xxxxx-xxxxxxxxx/xxxxxxxx/xx/00-00000-xxxxx-xx-xxxxxxxx-x.xxx. Acesso em: 10 maio 2020. p. 14.
260 VIS, Willen. Process of preparing universally acceptable uniform legal rules. Proceedings of the Congress of the United Nations Commission on International Trade Law, New York, p. 18-22, 1992, p. 14.
261 BRAITHWAITE; DRAHOS, 2000, p. 541.
262 O status acerca da adesão a cada documento encontra-se em: UNCITRAL. Overview of the status of UNCITRAL Conventions and Model Laws. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxxxx.xx.xxx/xxxxx/xxxxxxxx.xx.xxx/xxxxx/xxxxx-xxxxxxxxx/xxxxxxxx/xx/xxxxxxxx-xxxxxx-xxxxx.xxx>. Acesso em: 10 mai. 2020.
263 UNCITRAL. A Guide to UNCITRAL: basic facts about the united nations commission on international trade law. Basic facts about the United Nations Commission on International Trade Law. 2013. Disponível em: xxxxx://xxxxxxxx.xx.xxx/xxxxx/xxxxxxxx.xx.xxx/xxxxx/xxxxx-xxxxxxxxx/xxxxxxxx/xx/00-00000-xxxxx-xx-xxxxxxxx-x.xxx. Acesso em: 10 maio 2020. p. 14.
264 Concluída em 1958, e ratificada pelo Brasil em 2002 (Decreto n.º 4.311/2002), a Convenção de Nova York não foi elaborada no âmbito da UNCITRAL, sendo anterior à criação do órgão, cujas atribuições incluem a promoção do referido texto.
das Nações Unidas para os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG).265
A Convenção de Nova York, hoje com 163 Estados signatários, possibilitou a criação de um regime universal para reconhecimento e execução de sentenças arbitrais, tornando-se a “mola propulsora” do desenvolvimento da arbitragem no mundo.266 A CISG, dedicada ao comércio internacional de mercadorias, conta atualmente com 93 Estados signatários, proporcionando um alto grau de uniformização das regras aplicáveis a esse ramo do Direito.267 Logrando congregar divergências ideológicas, jurídicas e econômicas, o texto final foi inspirado em princípios contratuais, jurisprudência internacional e premissas de Direito Interno.268
Por se tratar de uma convenção internacional, uma vez ratificada, a CISG incorpora-se ao ordenamento jurídico do Estado signatário, contribuindo para a aproximação do Direito estatal ao modelo de governança internacional da lex mercatoria, fomentando, assim, o fluxo comercial por meio da segurança jurídica.269 A Convenção, ao considerar os principais aspectos do comércio internacional, oferece um modelo contratual técnico, pragmático, que visa a eficiência das relações comerciais. Em vista disso, a CISG é considerada “[…] uma moderna uniformização de Direito Privado que cria um Direito unitário para a compra e venda internacional”.270
1.3.2.2 O Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado
265 XXXXXXXX. Xxxxxxx Xxxxxx; OMIZZOLO. Xxxxxxx Xxxxx. O advento da Convenção das Nações Unidas para os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG). In: XXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx de. et al. (Org.) Course of Private International Law: New trends on private international law concerning international contracts, 2018.
266 XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx; XXXXXXX, Eleonora Coelho. A Convenção de Nova Iorque: ratificação pelo Brasil. In: XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx xx Xxxx xx Xxxxxxx (Coord.). Novos rumos da arbitragem no Brasil. São Paulo: Fiuza, 2004. p. 307-325, p. 308.
267 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx da. O Brasil perante uma Nova Perspectiva de Direito Mercantil Internacional. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1998, v. 341, p.193-211, p. 198.
268 FRADERA, Véra Xxxxx Xxxxx de. A noção de contrato na Convenção de Viena de 1980 sobre Venda Internacional de Mercadorias In: XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXX, Xxxxx Xxxxx; TELLINE, Xxxxx Xxxxxxx (Coord.). Tempestividade e Efetividade Processual: Novos rumos do processo civil brasileiro. Caxias do Sul: Xxxxxx. 0000. p. 657-671, p. 658.
269 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx da. O Brasil perante uma Nova Perspectiva de Direito Mercantil Internacional. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1998, v. 341, p.193-211, p.193.
270 XXXXXXXXX, Xxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx. O Brasil e a adesão à Convenção de Viena de 1980 sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias. Revista Fórum CESA, v. 4, n. 10, jan./mar. 2009, p. 03.
Muito antes da criação da UNCITRAL, em 1928, por iniciativa da então Liga das Nações, predecessora da Organização das Nações Unidas, foi criado em Roma o UNIDROIT, a partir de uma proposição do governo italiano, com o objetivo de promover a uniformização através da elaboração de convenções internacionais e outros textos de natureza legislativa.271
Os primeiros trabalhos do instituto dedicaram-se à uniformização das regras aplicáveis à compra e venda internacional de mercadorias, tendo resultado na elaboração de duas convenções internacionais sobre o tema que, todavia, não lograram grande adesão.272 A atuação do instituto abrange diversas áreas do Direito Privado a nível internacional, como mercado de capitais, contratos agrários, propriedade cultural, franquias, contrato de leasing, dentre outros.273
Na seara da contratação internacional, o instrumento de maior relevância já elaborado pelo UNIDROIT são os Princípios Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais, comumente denominados de “PICC”274, publicados em 1994 e considerados por alguns como um sucesso,275 e, por outros, como um instrumento pouco utilizado.276 Basedow os define como a “codificação das mais essenciais regras de Direito Contratual”, na medida em compilam conceitos comuns a diversos sistemas legais, oferecendo soluções que, inspiradas em legislações nacionais, representam maior eficiência possível às transações internacionais.277
Xxxx Xx. xxxxx à natureza dos princípios como “normas flexíveis”, categorizados sob a rubrica de soft law, pois, segundo o autor,
Essa especial natureza dos Princípios do UNIDROIT deriva igualmente da ênfase que suas normas colocam nos costumes, usos comerciais e outras regras cuja autoridade primária acha-se fora do comando legislativo positivo do Estado (o que
271 XXXXXXXXX, Xxxxx. The History of Unidroit and the Methods of Unification. Law Library Xxxxxxx, x. 00, x. 0, x. 000, 0000.
000 XXXXX, Xxxx. The Vienna Sales Convention 1980 and the Hague Uniform Laws on International Sale of Goods 1964: A Comparative Analysis. International And Comparative Law Quarterly, v. 38, n. 1, p.1-25, 1989, p. 3-4.
273 UNIDROIT. History and overview. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxx-xxxxxxxx/xxxxxxxx>. Acesso em: 10 mai. 2020.
274 Sigla relativa à denominação em Língua Inglesa “UNIDROIT Principles for International Commercial
Contracts”.
275 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. The Role of the UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts in International Contract Practice: The UNIDROIT Model Clauses. Uniform Law Review, v. 19, n. 4, p. 519-541, 2014, p. 519.
276 XXXXXXX, Xxxxx Xxxx. UNIDROIT Principles as a Source for Global Sales Law. Villanova Law Review, x. 00, x. 0, x. 000-000, 0000, x. 000.
000 BASEDOW, Jurgen. Uniform Law Conventions and the UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts. Uniform Law Review, v. 5, n. 1, p. 129-140, 2000, p. 129-130.
revela seu vínculo com as teorias pós-positivistas do direito), bem como da
importância que dedicam à autonomia privada das partes.278
Segundo Xxxxxx, os Princípios inauguram uma nova forma de codificação normativa, pois não se enquadram em nenhuma categoria tradicional de fonte legal, consistindo em uma “manifestação de Direito transnacional”, corroborando com a modernização do Direito face à globalização, em que a atividade legislativa privada vem se tornando a regra, e não a exceção.279
Tal instrumento foi idealizado para atender a uma diversidade de propósitos,280 conforme indicado em seu preâmbulo, sendo estruturado em dez capítulos dedicados a “Disposições gerais” sobre os contratos internacionais; “Formação do contrato e o Poder de representação”; “Validade”; “Interpretação”; “Conteúdo do contrato e os Direitos de terceiros”; “Execução”; “Inexecução” do contrato; “Compensação”; “Cessão de créditos, dívidas e contratos”; e ainda, normas sobre os “Prazos de prescrição”.281 Assemelhando-se, assim, à sistemática de um verdadeiro código de lei “não nacional”.282 Ademais, os princípios foram idealizados para serem aplicáveis não apenas a determinados setores comerciais, mas também a contratos internacionais em geral.283
Destaca-se, ainda, que os princípios foram delineados tendo como inspiração os
restatements284 norte-americanos,285 embora alguns sugiram que, por sua redação, o
278 XXXX XX, Xxxxx. Os princípios do UNIDROIT relativos aos contratos do comércio internacional: uma nova dimensão harmonizadora dos contratos internacionais. In. DIREITO, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx Xxxxx (Orgs.). Novas Perspectivas do Direito Internacional Contemporâneo: estudos em homenagem ao Professor Xxxxx X. xx Xxxxxxxxxxx Xxxxx. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 100.
279 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. The Role of the UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts in International Contract Practice: The UNIDROIT Model Clauses. Uniform Law Review, v. 19, n. 4, p. 519-541, 2014, p. 519. p. 520.
280 XXXXXX, M. J. Modernizing and harmonizing international contract law: the CISG and the UNIDROIT principles continue to provide the best way forward. Uniform Law Review. Revue de Droit Uniforme, v. 19, n. 1, p. 114-151, 2014, p. 119.
281 XXXX XX, Xxxxx. Os princípios do UNIDROIT relativos aos contratos do comércio internacional: uma nova dimensão harmonizadora dos contratos internacionais. In. DIREITO, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx Xxxxx (Orgs.). Novas Perspectivas do Direito Internacional Contemporâneo: estudos em homenagem ao Professor Xxxxx X. xx Xxxxxxxxxxx Xxxxx. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 101.
282 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. The Role of the UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts in International Contract Practice: The UNIDROIT Model Clauses. Uniform Law Review, v. 19, n. 4, p. 519-541, 2014, p. 519. p. 520.
283 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. The law governing international commercial contracts and the actual role of the
UNIDROIT Principles. Uniform Law Review, x. 00, x. 0, x. 00-00, 0000, x. 21.
284 Conjunto de princípios e regras oriundas de experiência jurisprudencial e doutrinária elaborado pelo American Law Institute como um guia legislativo a juízes para aplicação diante de casos não tutelados por lei específica.
preâmbulo contenha uma hierarquia de usos, de forma a privilegiar a utilização dos princípios como lei aplicável por escolha das partes.286 Na prática, porém, são raros os casos em que os princípios são escolhidos como lei aplicável por contratantes, segundo Xxxxxx, possivelmente em virtude de desconhecimento sobre sua existência e conteúdo.287 Cortes estatais revelam-se relutantes em aceitar os PICC como lei aplicável escolhida pelas partes,288 justamente em virtude de sua natureza não estatal, pois, conforme observa Clerici, a aplicação de normas não estatais é mais afeita à jurisdição arbitral do que às cortes estatais.289
Ainda assim, Xxxx Xx xxxxx à grande aceitação dos princípios pelos operadores do direito, cuja aplicação pode ser comprovada em quase quinhentos casos entre os anos 1990 e 2020, em cortes judiciais e tribunais arbitrais, disponíveis na plataforma UNILEX290. A aplicação dos princípios como lei escolhida pelas partes, ou mesmo como lei aplicável na ausência de escolha, depende das regras de Direito Internacional Privado aplicáveis, sendo sinônimo da aplicação de normas de natureza não estatal ao invés da lei de um determinado Estado.291
1.3.2.3 A Câmara de Comércio Internacional
Ainda no Século XIX, anteriormente à criação da Câmara de Comércio Internacional em Paris, associações de comerciantes privadas já propunham iniciativas autorregulatórias de unificação do Direito Comercial e Internacional Privado,292 porém, somente a CCI alcançou o patamar de governança nacional, regional e global enquanto associação privada no Século
285 BASEDOW, Jurgen. Uniform Law Conventions and the UNIDROIT Principles of International Commercial
Contracts. Uniform Law Review, v. 5, n. 1, p. 129-140, 2000, p.130.
286 XXXXXXXX, Xxxx. The UNIDROIT Principles as Global Background Law. Uniform Law Review, x. 00, x. 0, x. 000-000, 0000, x. 000.
000 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. The Role of the UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts in International Contract Practice: The UNIDROIT Model Clauses. Uniform Law Review, v. 19, n. 4, p. 519-541, 2014, p. 519. p. 522.
288 XXXXXXXX, Xxxx. The UNIDROIT Principles as Global Background Law. Uniform Law Review, v. 19, n.
4, p. 643-668, 2014, p. 646.
289 XXXXXXX, Xxxxxxx. O Papel da Autonomia Privada e seus Efeitos na Aplicaçãoo da CISG. In: XXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx de. et al. (Org.) Course of Private International Law: New trends on private international law concerning international contracts, 2018. p. 10.
290 Base de dados mantida pelo Centre for Comparative and Foreign Law Studies, em iniciativa conjunta com o Conselho Nacional de Pesquisa Italiano, a Universidade de Roma I La Sapienza”, e o UNIDROIT. UNILEX. Selected cases by date. Disponível em: <xxxx://xxx.xxxxxx.xxxx/xxxxxxxxxx/xxxxx/xxxx/xxx>. Acesso em: 10 mai. 2020.
291 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. The law governing international commercial contracts and the actual role of the UNIDROIT Principles. Uniform Law Review, x. 00, x. 0, x. 00-00, 0000, x. 24-25.
292 XXXXXX, X. Xxxxxx. Private Power and Global Authority: transnational merchant law in the global political economy. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 208.
XX.293 A instituição foi criada em 1919, por iniciativa do setor empresarial, tendo por objetivos facilitar o comércio entre as nações, garantir a harmonia em questões afetas ao comércio e indústrias internacionais, promover a paz, o progresso e a cordialidade entre países e cidadãos por meio da cooperação entre empresários e associações ligadas a esses fins.294 Com o passar dos anos, a instituição alcançou destaque no cenário internacional, pela cooperação com organizações internacionais, e mantém status de observadora nas Nações Unidas, no Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, dentre outras.295
Pautada pelo liberalismo econômico, a associação dedica-se à cooperação técnica e operacional objetivando remover obstáculos para as relações comerciais internacionais. Conforme relata Xxxxxx, a influência de organizações privadas na atividade legislativa do Direito Comercial Internacional se dá principalmente através da padronização de princípios e costumes oriundos da prática mercantil, forma pela qual a CCI obteve grande sucesso com a codificação de termos comerciais296, os chamados “Incoterms” traduzem condições contratuais padrão oriundas da prática comercial internacional de compra e venda e objetivam identificar o momento da transferência de riscos nas transações internacionais.297
Xxxxxxx ressalta que os Incoterms não constituem mera codificação de costumes comerciais, pois refletem o olhar da instituição, contendo melhorias formuladas por revisões periódicas ao texto pela Câmara de Comércio Internacional (ICC).298 A versão mais recente dos Incoterms foi concluída em 2019, tendo efeito a partir de primeiro de Janeiro de 2020, sendo acompanhada de notas explanatórias que visam auxiliar os usuários na escolha e na interpretação dos termos.299
Da mesma forma, a instituição é responsável pela publicação das “Regras e Usos Uniformes da CCI para os Créditos Documentários”, que contemplam regras comumente
293 XXXXX, Xxxxxxx. The International Chamber of Commerce. New Political Economy, v. 10, n. 2, p. 259- 271, 2005, p. 269.
294 XXXXXXXX, Xxxxxx X. Merchants of Peace: twenty years of business diplomacy through the International
Chamber of Commerce, 1919-1938. Nova Iorque: Columbia University Press, 1938. p. 15.
295 XXXXXXXX, Xxxxxxxx. ICC's Stake in the Law of International Trade. Journal of World Trade Law, v. 2, n. 1, p. 1-27, 1968, p. 2.
296 XXXXXX, X. Xxxxxx. Private Power and Global Authority: transnational merchant law in the global political economy. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 196-197.
297 XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Transferência do risco contratual e Incoterms: breve análise de sua aplicação pela jurisprudência brasileira. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, v. 5, p. 3885-3944, 2013, p. 3895.
298 XXXXXXX, Xxxxx. Private Regulation in the Context of International Sales Contracts. Law, Democracy and Development, v. 24, p. 27-53, 2020, p. 40.
299 ICC. What are the key changes in Incoterms® 2020? Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxx/xxxxxxxxx-xxx- business/incoterms-rules/what-are-the-key-changes-in-incoterms-2020/>. Acesso em: 15 mai. 2020.
aplicadas a operações de créditos documentários a partir da observação de usos e práticas comerciais.300 Dentre as atividades da CCI, cumpre destacar ainda os serviços de resolução de conflitos oferecidos pela instituição, através de mediação e arbitragem, sendo uma das mais respeitadas instituições no setor.301
A ICC provê ainda modelos de contratos e cláusulas,302 os quais normalmente contém cláusulas de escolha de lei aplicável, encorajando a escolha de normas não estatais pelos contratantes, pois a elaboração de tais modelos contratuais não leva em consideração ordenamentos nacionais específicos.303
Dada sua relevância internacional, a instituição também atua junto aos governos nacionais a fim de influenciar na elaboração de políticas econômicas de forma a reduzir restrições comerciais e de investimento,304 muito porque os documentos elaborados pela instituição guardam natureza não vinculante, exceto se codificados em leis nacionais ou adotados como lei aplicável por contratantes, ou, ainda, caso a prática reiterada transforme-os em costume internacional.305
A codificação de usos e práticas comerciais pela CCI compõe o conjunto de fontes da nova lex mercatoria,306 dado que são elaboradas por instituição privada ligada à classe mercantil, com o objetivo de promover a harmonização do Direito Comercial e, consequentemente, a intensificação dos fluxos comerciais.
1.3.2.4 A Conferência da Haia de Direito Internacional Privado
Dentre as instituições internacionais dedicadas à codificação de normas não estatais
com vistas à harmonização do Direito Comercial internacional, destaca-se, ainda, a
300 PUYO ARLUCIAGA, Xxx Xxxxx. Las reglas y usos uniformes relativas a créditos documentarios (versión de 1993). Revista de Dirección y Administración de Empresas, n. 10, p. 193-215, 2002, p. 197.
301 DERUSSI, Xxxxxxx; GLITZ, Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Pluralismo jurídico: desafios para uma nova lex mercatoria. In: CAOVILLA, Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. (Org.). Temas sobre Constitucionalismo, Interculturalidade e Pluralismo Jurídico na América Latina. 1. ed. São Leopoldo: Karywa, 2016. p. 76-94, p. 87.
302 ICC. Model contracts & clauses. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxx/xxxxxxxxx-xxx-xxxxxxxx/xxxxx-xxxxxxxxx- clauses/>. Acesso em: 15 mai. 2020.
303 XXXXXX Xxxxxxxxx, The International Market for Contracts: The Most Attractive Contract Laws.
Northwestern Journal of International Law & Business, v. 34, n. 3, p. 455-517, 2014, p. 488.
304 XXXXXXXX, Xxxxxxxx. ICC's Stake in the Law of International Trade. Journal of World Trade Law, v. 2, n. 1, p. 1-27, 1968, p. 2.
305 XXXXXX, X. Xxxxxx. Private Power and Global Authority: transnational merchant law in the global political economy. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 208.
306 CALLIESS, Gralf-Peter. The Making of Transnational Contract Law. Indiana Journal of Global Legal Studies, v. 14, n. 2, p. 469-484, 2007, p. 476.
contribuição da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (HCCH). Como organização intergovernamental, dedica-se ao estudo e desenvolvimento da uniformização de regras de Direito Internacional Privado, através da elaboração de convenções internacionais307 e outros instrumentos jurídicos multilaterais. Apesar de sua produção normativa decorrer, primordialmente, de agentes estatais, o papel da Conferência é abordado no presente capítulo por sua contribuição à harmonização do Direito Internacional Privado e Direito do Comércio Internacional, através da elaboração de instrumentos considerados estatais e não estatais.
A organização iniciou seus trabalhos em 1892, a partir da iniciativa do governo holandês em realizar uma conferência internacional para codificação do Direito Internacional Privado, ocorrendo uma vez ao ano na forma de reuniões intergovernamentais de participação voluntária. Dessas reuniões, foram concluídas cinco convenções até 1928, com a participação de Estados majoritariamente europeus;308 em 1955, institucionalizou-se na forma de organização internacional.
Diferentemente do propósito originalmente sugerido por Xxxxxxx, um de seus idealizadores, ao invés de buscar um Direito Internacional Privado universal, a Conferência passou a se debruçar sobre áreas estratégicas do Direito Privado,309 restringindo-se a uma “codificação por temas”.310 Os primeiros trabalhos da Conferência tinham por objeto o Direito de Família e, com o passar dos anos, passaram a concentrar esforços também na uniformização de normas processuais civis, visando a harmonização entre países de sistemas common law e civil law, em virtude da intensificação do trânsito de pessoas após a Segunda Guerra .311 A atuação da Conferência abrange hoje as áreas de Direito de Família, proteção internacional a crianças e adolescentes, normas processuais, Direito Contratual, dentre outras.312
Em matéria de Direito Comercial Internacional, no âmbito da instituição já foram elaboradas convenções relativas à lei aplicável à compra e venda internacional de mercadorias, à transferência de propriedade, a contratos de agência, dentre outras áreas
307 XXXXXX, Xxxxx xx. Direito internacional privado: teoria e prática brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 57.
308 XXXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxx. Curso de Direito internacional privado. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 47.
309 XXXXXXXX, Xxxxxx X. xxx. La contribution de la Conférence de la Haye au développement du Droit International Privé. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, p. 9-98, 1992, p. 22.
310 XXXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxx. Curso de Direito internacional privado. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 48.
311 XXXX, Xxxxxxx X.X. A Comment on the Role of the Hague Conference on Private International Law. Law and Contemproary Problems, x. 00, x. 0, x. 0-00, 0000, x. 4.
312 HCCH Convenções (incl. Protocolos e Princípios). Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxx.xxx/xx/xxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxxx/>. Acesso em: 15 mai. 2020.
afetas.313 Tais convenções não lograram grande número de assinaturas e ratificações, de forma que algumas jamais entraram em vigor, todavia, a elaboração de tais instrumentos revela o pioneirismo da Conferência em promover a uniformização do Direito Privado e o princípio da autonomia da vontade das partes através da escolha de lei aplicável.314
Nesse sentido, a Conferência publicou os Princípios da Haia sobre os Contratos Internacionais, em 2015, com o objetivo de harmonizar as regras de Direito Internacional Privado aplicáveis a contratos comerciais internacionais315 e promover a consolidação do princípio da autonomia na escolha de lei aplicável entre Estados que ainda não o admitem.316 O artigo 3º dos Princípios permite a escolha de normas não estatais como lei aplicável a contratos internacionais pelas partes contratantes, e, segundo Xxxxxxxxx, objetiva relativizar a rigidez do sistema conflitualista do Direito Internacional Privado,317 constituindo um novo paradigma à autonomia da vontade.318
Dada a importância de tal instrumento para a aceitação e a legitimação da utilização de normas não estatais no plano internacional, os Princípios da Haia sobre os Contratos Internacionais serão abordados com maior profundidade no capítulo seguinte, no qual se discorrerá sobre o tratamento das normas não estatais em instrumentos de Direito Internacional Privado e no Direito Internacional Privado Europeu, objeto da presente pesquisa.
313 HCCH. Convenções (incl. Protocolos e Princípios). Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxx.xxx/xx/xxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxxx/>. Acesso em: 15 mai. 2020.
314 XXXXXXXX, Xxxxxx X. xxx. La contribution de la Conférence de la Haye au développement du Droit International Privé. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, p. 9-98, 1992, p. 82.
315 XXXXXXXX, Xxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxx. Party Autonomy and its Limits: Convergence Through the New Hague Principles on Choice of Law in International Commercial Contracts. Brooklyn Journal of International Law, v. 39, n. 3, p. 975-1003, 2014, p. 978.
316 XXXXXXX, Xxxxx Xxxx. UNIDROIT Principles as a Source for Global Sales Law. Villanova Law Review,
x. 00, x. 0, x. 000-000, 0000, x. 000.
000 XXXXXXXXX, Xxxxx. Article 3 of the Hague Principles: the final breakthrough for the choice of non-State law? Uniform Law Review, v. 22, n. 2, p. 369–394, 2017, p. 394.
318 XXXXXXX, Xxxxxx. The Hague Principles on Choice of Law: their addressees and impact. Uniform Law Review, v. 22, n. 2, p. 304-315, 2017, p. 305.
2 A PREVISÃO DE UTILIZAÇÃO DE NORMAS NÃO ESTATAIS EM CONTRATOS INTERNACIONAIS NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO E NO REGULAMENTO ROMA I
O presente capítulo abordará o tratamento dado à utilização de normas não estatais em instrumentos internacionais que abranjam não apenas a arbitragem, mas também alcancem as disputas submetidas aos tribunais domésticos. Em seguida, o capítulo será dedicado ao desenvolvimento da competência da União Europeia para legislar sobre normas de conflitos de lei, processo conhecido como “europeização” do Direito Internacional Privado. O enfoque principal, nessa parte, residirá sobre o processo de codificação do Direito Internacional Privado Europeu relativo às obrigações contratuais, o que inclui a Convenção de Roma 1980 e o Regulamento Roma I. Ao final, serão apresentadas as possibilidades de utilização de normas não estatais conforme o Regulamento Roma I, objeto de investigação da presente pesquisa.
2.1(IM)POSSIBILIDADES DE UTILIZAÇÃO DE NORMAS NÃO ESTATAIS COMO LEI APLICÁVEL ELEITA PELAS PARTES EM INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS
A utilização de normas não estatais em contratos internacionais é instrumentalizada pelo princípio da autonomia da vontade das partes como regra de conflito no Direito Internacional Privado. Conforme visto no capítulo anterior, tal princípio consagra a vontade das partes ao isolar determinado contrato de outras leis potencialmente aplicáveis que não aquela escolhida pelas partes — de acordo com o permitido pela ordem pública. Na ausência de determinação da lei aplicável pelas partes contratantes, caberá ao intérprete determiná-la de acordo com as regras de conflito aplicáveis, sendo possível a incidência de mais de uma lei.
Dessa forma, o contrato está sujeito a diferentes efeitos, o que gera maior imprevisibilidade aos contratantes.319 Por isso, a autonomia da vontade é considerada uma regra de conflito essencial às relações transnacionais, na medida em que permite maior segurança aos contratantes quanto aos efeitos da relação contratual. Por tais razões de cunho prático, o princípio da autonomia da vontade goza de ampla aceitação em diversos sistemas jurídicos, dentre os quais está inclusa a maioria dos países da Europa Ocidental, sendo
319 SAUMIER, Genevieve. The Hague Principles and the Choice of Non-State “Rules of Law” to Govern an International Commercial Contract. Brooklyn Journal of International Law, v. 40, p. 1-29, 2014, p. 2. Disponível em: <xxxxx://xxxxxxxxxxxxx.xxxxxxxx.xxx/xxxx/xxx00/xxx0/0>. Acesso em: 03 fev. 2021.
considerado, também, o mais importante elemento de conexão na seara do direito contratual
internacional.320
Como parte do arcabouço jurídico emanado — ou legitimado — do Estado, o princípio da autonomia da vontade consagra a escolha das partes quanto ao direito (lei estatal) de outro Estado para reger determinada relação jurídica. Com relação à escolha de normas não estatais, a autonomia da vontade é ainda bastante limitada. Tentativas de legitimação da utilização de normas não estatais podem ser identificadas em alguns instrumentos normativos internacionais, os quais serão objeto de análise do presente capítulo.
Cumpre ressaltar que a aplicação de normas não estatais a relações contratuais submetidas à arbitragem é amplamente aceita e prevista em diversas legislações sobre a matéria. A Lei Modelo de Arbitragem Comercial Internacional, elaborada pela UNCITRAL, prevê expressamente a possibilidade de utilização dessas normas por meio da expressão “normas de direito”.321 Da mesma forma, as legislações dos seguintes países: Brasil, Colômbia, Costa Rica, Chile, El Salvador, Guatemala e Venezuela, dentre outros, contêm dispositivos no mesmo sentido.322
Todavia, caso um contrato designe “normas de direito” como lei aplicável, uma vez submetido às cortes nacionais, tal escolha não produzirá efeitos.323 A restrição fundamenta-se, por exemplo, na inexistência de um conceito único para o significado de “normas”, “direito”, ou ainda, “sistemas de direito”, tendo-se em conta diferentes ordenamentos e tradições jurídicas, o que se revela particularmente problemático em litígios domésticos.324 Por ser uma expressão tão ampla, pode se referir tanto a uma determinada lei estatal quanto a princípios gerais de direito, à lex mercatoria, ou a convenções internacionais.325 Dessa forma, para
320 XXXXXX, Xxxxxx. La importancia de la autonomía conflictual para el futuro del Derecho de los contratos internacionales. Cuadernos de derecho transnacional, p. 214-233, 2011, p. 216. Disponível em: <xxxxx://x- xxxxxxxx.xx0x.xx/xxxxx.xxx/XXX/xxxxxxx/xxxx/0000>. Acesso em: 03 fev. 2021.
321 UNITED NATIONS COMMISSION ON INTERNATIONAL TRADE LAW. UNCITRAL. Model Law on International Commercial Arbitration. 2006[1985]. (Art. 28). p. 17. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxxxx.xx.xxx/xxxxx/xxxxxxxx.xx.xxx/xxxxx/xxxxx-xxxxxxxxx/xxxxxxxx/xx/00-00000_x_xxxxx.xxx>. Acesso
em: 03 fev. 2021.
322 Ver mais em: COMISSÃO JURÍDICA INTERAMERICANA. Guia relativo ao Direito Aplicável aos Contratos Comerciais Internacionais nas Américas. 2019. p. 122. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxx.xxx/xx/xxx/xxx/xxxx/xxxxxxxxxxx_xxxxxxx_Xxxx_xxxxx_x_Xxxxxxx_Xxxxxxxxx_xxx_Xxxxxxxxx_Xxx erciais_Internacionais_nas_Americas.pdf>. Acesso em: 01 jan. 2021.
000 XXXXXXX, Xxxxxxxxx. Xxx Xxxxx Principles and the Choice of Non-State “Rules of Law” to Govern an International Commercial Contract. Brooklyn Journal of International Law, x. 00, x. 0-00, 0000, x. 0.
000 XXXXXXXX, Xxxxx. Rules Applicable to Substance of Dispute. In: BANTEKAS, Ilias et al. UNCITRAL Model Law on International Commercial Arbitration: A Commentary. Cambridge: Cambridge University Press, 2020. p. 732-757.
325 XXXXXXXX, Xxxx. Choice of substantive law in international arbitration. Journal of International Arbitration, v. 14, p. 39-66, 1997, p. 56.
disputas submetidas à via judicial, junto aos tribunais domésticos, a escolha quanto à lei aplicável restringe-se aos direitos estatais de cada Estado.
Tal restrição à escolha de lei aplicável não permite aos contratantes internacionais a opção por normas neutras, “não nacionais”, como os PICC. Além disso, ao contrário do que ocorre em disputas submetidas à arbitragem, essa restrição impossibilita que tribunais domésticos possam aplicar diretamente normas elaboradas para contratação internacional, resultando na aplicação exclusiva de legislações nacionais e na impossibilidade de se desenvolver jurisprudência quanto às lacunas existentes em tais normas.326 Araujo e Xxxx Xxxxxx ressaltam que as cortes nacionais encontram-se aptas a interpretar e complementar instrumentos internacionais, pois já o fazem com relação às leis estatais doméstica e estrangeira (quando aplicável).327
Como forma de se ampliar os efeitos da autonomia da vontade e permitir maior incidência de normas não estatais, ou ainda sua aplicação direta na regulação de relações contratuais, diversos instrumentos a nível internacional preveem tal cenário. Tanto em âmbito Americano quanto Europeu destacam-se iniciativas acadêmicas na forma da elaboração de “princípios contratuais”.328 A nível regional e internacional, identificam-se convenções internacionais, diretrizes e instrumentos de soft law tratando da matéria.
2.1.1A Convenção Interamericana sobre Direito Aplicável aos Contratos Internacionais
Desde as últimas décadas do século XIX, a América Latina é palco de um particular processo de harmonização, codificação e desenvolvimento do Direito Internacional Privado. Ao longo desse processo, o debate acerca do respeito à autonomia da vontade como regra conflitual foi, de certa forma, recorrente, mas encontra-se longe de obter aceitação universal no continente. Tal pauta esteve presente nos países latino-americanos não apenas a nível doméstico, mas também com substrato em instrumentos internacionais, tais como os Tratados
326 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X.; XXXXXXX, Xxxxx X. Xxxxxxx. Conflictualism and the Lex Mercatoria in Private International Law. Revista Espanola de Derecho Internacional, v. 52, n. 1, p. 15-48, jan./jun. 2000, p. 38.
327 XXXXXX, Xxxxx xx; XXXX XX., Xxxxx. A escolha da lei aplicável aos contratos do comércio internacional: os futuros Princípios da Haia e perspectivas para o Brasil: escritório permanente da Conferência de Haia de Direito Internacional Privado. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 9, n. 34, p. 11-38, jul./set. 2012, p. 18.
328 Sobre os “Princípios Latino-Americanos de Direito Contratual”, ver mais em: XXXXXXX, Xxxxxxx. The
Principles of Latin American Contract Law: Nature, Purposes and Projections. Latin American Legal Studies,
v. 2, 2018. Disponível em: <xxxxx://xxxx.xxx/xxxxxxxxx0000000>. Acesso em: 03 jan. 2021. XXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxxx (Ed.). The Future of Contract Law in Latin America: the principles of latin- american contract law. Oxford: Bloomsbury Publishing, 2017.
de Montevidéu de 1888 e o Código de Bustamante de 1928.329 contratos internacionais, que garantam justiça e segurança entre as partes.330
Trata-se da primeira convenção interamericana contendo expressa aceitação ao princípio da autonomia da vontade331 e, desde então, é considerada como uma das mais modernas convenções internacionais sobre lei aplicável a relações contratuais.332 De fato, desde 1987, desenvolvia-se no continente americano uma tendência à autonomia da vontade, em virtude da participação de diversos Estados na negociação e na conclusão da Convenção de Haia sobre a lei aplicável aos contratos de compra e venda internacional de mercadorias,333 que prevê expressamente a possibilidade de escolha de lei aplicável.334
Como regra geral,335 a Convenção do México dispõe em seu Art. 7º que “El contrato se rige por el derecho elegido por las partes”.336 Apesar de a versão em língua inglesa do referido dispositivo aludir expressamente à palavra “law”337, eleita pelas partes, Hoekstra nota
329 VIAL UNDURRAGA, María Ignacia. International Contracts in Latin America: History of a Slow Pace towards the Acceptance of Party Autonomy in Choice of Law. Rev. Derecho Privado, Bogotá, n. 38, p. 241- 276, jun. 2020, p. 254.
330 XXXXXX, Xxxxx X. The Inter-American Convention on the Law Applicable to International Contracts: Another Piece of the Puzzle of the Law Applicable to International Contracts. Fordham International Law Journal, v. 19, n. 2, p. 662-735, dez. 1995, p. 713.
331 A Convenção do México é amplamente inspirada na Convenção de Roma de 1980 e, para alguns autores, comporta menos restrições à autonomia da vontade das partes, se comparada ao texto europeu. Sobre o tema, ver: XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. The Inter-American Convention on the Law Applicable to International Contracts: Some Highlights and Comparisons. American Journal Of Comparative Law, v. 42, n. 1, p. 381-394, nov. 1994. XXXXXX, Xxxxx X. Xxxxxxxxx. La Convención Interamericana sobre derecho aplicable a los contratos internacionales aprobada por a CIDIP-V (hecha en México, DF, el 17 de marzo de 1994). Revista Española de Derecho Internacional, v. 46, n. 2, p. 929-940, 1994. XXXXXX, Xxxxx X. Xxxxxxxxx. La Convention Interaméricaine sur la loi applicable aux contrats internationaux: certains chemins conduisent au-delà de Rome. Revue critique de droit international privé, v. 84, p. 178, 1995.
332 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx. Choice of Law in International Contracts in Latin American Legal Systems.
Journal Of Private International Law, v. 0, x. 0, x. 00-00, xxx. 2010, p. 27.
333 Concluída em 1986, a Convenção não logrou grande adesão, tendo hoje apenas Argentina, Eslováquia, Países Baixos, República Checa e República da Moldávia como signatários.
334 VIAL UNDURRAGA, María Ignacia. International Contracts in Latin America: History of a Slow Pace towards the Acceptance of Party Autonomy in Choice of Law. Rev. Derecho Privado, Bogotá, n. 38, p. 241- 276, jun. 2020, p. 260.
335 TAQUELA, Xxxxx Xxxxxx Xxxxx. Reglamentación general de los contratos internacionales en los Estados mercosureños. In: XXXXXX, Xxxxx X. Xxxxxxxxx. Derecho internacional privado de los estados del mercosur. Buenos Aires: Zavalia, 2003. p. 976-1026, p. 999.
336 A versão em português do dispositivo prevê o seguinte, no Art. 7º: “O contrato rege-se pelo direito escolhido pelas partes. O acordo das partes sobre esta escolha deve ser expresso ou, em caso de inexistência de acordo expresso, deve depreender-se de forma evidente da conduta das partes e das cláusulas contratuais, consideradas em seu conjunto. Essa escolha poderá referir-se à totalidade do contrato ou a uma parte do mesmo. A eleição de determinado foro pelas partes não implica necessariamente a escolha do direito aplicável”. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Departamento de Assuntos Jurídicos Internacionais. Convenção interamericana sobre direito aplicável aos contratos internacionais. 1994. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxx.xxx/xxxxxxxx/xxxxxxxxxx/xxxxxxxx/x-00.xxx>. Acesso em: 1º jan. 2021.
337 ORGANIZATION OF AMERICAN STATES. Inter-american convention on the law applicable to international contracts. –Disponível em: <xxxxx://xxx.xxx.xxx/xxxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxx/x-00.xxxx>. Acesso em: 15 jan. 2021.
que não há nenhuma exigência expressa quanto à natureza estatal das normas escolhidas, permitindo-se a escolha de qualquer “derecho” ou “law”, ainda que não guarde relação com o contrato.338 Na ausência de escolha pelas partes, o intérprete deve depreender a vontade dos contratantes a partir dos elementos que compõem a relação jurídica contratual.339
Parte da doutrina340 defende a interpretação da Convenção do México no sentido de ser permitida a escolha de normas não estatais para reger obrigações contratuais. A utilização de tais normas é expressamente prevista pela Convenção341 em seus Art. 9º342 e Art. 10343, segundo os quais o intérprete deve (i) considerar princípios gerais de direito comercial internacional, aceitos por organizações internacionais, ao se determinar a lei aplicável de acordo com a teoria dos vínculos mais estreitos; (ii) aplicar normas, costumes e princípios de direito comercial internacional, bem como (iii) empregar usos e práticas comerciais ao caso concreto. Tais dispositivos referem-se, portanto, à incidência da lex mercatoria nas relações contratuais.
Sustenta Juenger que o Art. 9º da Convenção, ao prever a teoria dos vínculos mais estreitos e ao se referir à lex mercatoria, intenta a aproximação forçada de dois conceitos
338 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Non-State Rules in International Commercial Law: Contracts, Legal Authority and Application. New York: Routledge, 2021. cap. 6, p. 1.
339 CASTRO, Xxxxxx Xxxxxxxxxx. Introducción a la Convención Interamericana sobre Derecho Aplicable a los
Contratos Internacionales. Revista de Derecho Privado, v. 13-15, 1994, p. 144.
340 Cf. VIAL UNDURRAGA, María Ignacia. International Contracts in Latin America: History of a Slow Pace towards the Acceptance of Party Autonomy in Choice of Law. Rev. Derecho Privado, Bogotá, n. 38, p. 241- 276, jun. 2020, p. 260. XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxxx. Introducción a la Convención Interamericana sobre Derecho Aplicable a los Contratos Internacionales. Revista de Derecho Privado, v. 13-15, 1994. XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. Contract Choice of Law in the Americas. American Journal of Comparative Law, v. 45, 1997. XXXX XX, Xxxxx. Contratos Internacionais à luz dos Princípios do UNIDROIT 2004: Soft Law, Arbitragem e Jurisdição. São Paulo: Xxxxxxx, 0000, p. 431.
341 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx. Contracts and Non-State Law in Latin America. Uniform Law Review
- Revue de Droit Uniforme, v. 16, n. 4, p. 877-889, 1º dez. 2011, p. 880.
342 Art. 9º “Não tendo as partes escolhido o direito aplicável, ou se a escolha do mesmo resultar ineficaz, o contrato reger-se-á pelo direito do Estado com o qual mantenha os vínculos mais estreitos. O tribunal levará em consideração todos os elementos objetivos e subjetivos que se depreendam do contrato, para determinar o direito do Estado com o qual mantém os vínculos mais estreitos. Levar-se-ão também em conta os princípios gerais do direito comercial internacional aceitos por organismos internacionais. Não obstante, se uma parte do contrato for separável do restante do contrato e mantiver conexão mais estreita com outro Estado, poder-se-á aplicar a esta parte do contrato, a titulo excepcional, a lei desse outro Estado”. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Departamento de Assuntos Jurídicos Internacionais. Convenção interamericana sobre direito aplicável aos contratos internacionais. 1994. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxx.xxx/xxxxxxxx/xxxxxxxxxx/xxxxxxxx/x-00.xxx>. Acesso em: 1º jan. 2021.
343 Art. 10 “Além do disposto nos artigos anteriores, aplicar-se-ão, quando pertinente, as normas, costumes e princípios do direito comercial internacional, bem como os usos e práticas comerciais de aceitação geral, com a finalidade de assegurar as exigências impostas pela justiça e a equidade na solução do caso concreto”. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Departamento de Assuntos Jurídicos Internacionais. Convenção interamericana sobre direito aplicável aos contratos internacionais. 1994. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxx.xxx/xxxxxxxx/xxxxxxxxxx/xxxxxxxx/x-00.xxx>. Acesso em: 1º jan. 2021.
incompatíveis, sendo resultado da resistência dos Estados-Membros em prever a aplicação direta dos PICC na ausência de escolha de lei expressa pelas partes. Para o autor, a redação do Art. 9º orienta o intérprete a identificar a lei que melhor se adeque à noção de justiça e às particularidades do comércio internacional, sendo preferível a escolha de normas da lex mercatoria em detrimento de direitos estatais.344 Em comentário ao mesmo dispositivo, Neels reforça a intenção dos redatores da Convenção ao se permitir às partes a escolha de normas não estatais, a saber, destaca-se o fito de conceder ao intérprete, isto é, às Cortes nacionais, a possibilidade de aplicação de tais normas ainda que as próprias partes não tenham determinado a lei aplicável.345
A maioria da doutrina346, todavia, entende não ser possível a escolha de normas não estatais como lei aplicável ao contrato. Isso porque o Art. 17 da Convenção define como “lei” o direito vigente em determinado Estado, excluídas as normas de direito internacional privado para se evitar o reenvio.347 Dessa forma, o Art. 7º, ao utilizar a palavra “lei”, refere-se à escolha das partes por um direito estatal.348
Para Xxxxxxxx, não se trata da aplicação de normas não estatais como a lei que rege o contrato. O autor explica que ao se determinar a lei estatal aplicável ao contrato a partir da teoria dos vínculos mais estreitos, o intérprete deverá considerar diversos fatores dentre elementos objetivos e subjetivos do contrato, inclusive os princípios gerais do direito comercial internacional. Tais princípios devem, ainda, incidir sobre a análise do conteúdo das possíveis leis identificadas como mais próximas, para se determinar, ao final, a lei estatal que detém os vínculos mais estreitos com aquela relação contratual e que se encontra em maior harmonia com a lex mercatoria. Dessa forma, a lex mercatoria funcionaria como um critério parcial a ser utilizado na determinação da lei aplicável.349
344 XXXXXXX, Xxxxxxxxx X. Contract Choice of Law in the Americas. American Journal of Comparative Law, v. 45, 1997. p. 206.
345 XXXXX, Xxx. L. Choice of Law in the Revision of the Mexico City Convention-Inspirations from the Hague Principles and Beyond. Journal of Contemporary Roman-Dutch Law, v. 81, n. 4, p. 661-667, 2018, p. 665.
346 TAQUELA, Xxxxx Xxxxxx Xxxxx. Reglamentación general de los contratos internacionales en los Estados mercosureños. In: XXXXXX, Xxxxx X. Xxxxxxxxx. Derecho internacional privado de los estados del mercosur. Buenos Aires: Zavalia, 2003. p. 976-1026, p. 999.
347 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Non-State Rules in International Commercial Law: Contracts, Legal Authority and Application. New York: Routledge, 2021.
000 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx. Reflections on the Mexico Convention in the Context of the Preparation of the Future Hague Instrument on International Contracts. Journal of Private International Law, v. 7, n. 3, p. 491-526, dez. 2011, p. 503.
349 XXXXXXXX, Xxxxx. Direito internacional privado: contratos e obrigações no direito internacional privado. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. v. 2, p. 366. apud. DIZ, Jamile Bergamaschine Mata. Desenvolvimento e aplicação da teoria dos vínculos mais estreitos no direito internacional privado: por uma rediscussão do método de solução do conflito de leis. Revista de Direito Internacional, v. 11, n. 1, p. 100-115, 2014.
Apesar de amplamente discutida e aprovada, a Convenção somente obteve assinatura de Bolívia, Brasil, Uruguai, México e Venezuela, tendo sido ratificada apenas pelos dois últimos, fato que impacta diretamente a abrangência e a relevância de sua aplicação. Analisando as razões pelas quais o instrumento não logrou mais ratificações, Undurraga elenca: (i) a incompatibilidade da autonomia da vontade para com as regras de direito internacional privado de diversos Estados americanos, pautadas pelo territorialismo;350 (ii) a referência à lex mercatoria no texto da Convenção sendo entendida como demasiado ampla e incerta; (iii) a falta de vontade política dos Estados, possivelmente por desconhecimento dos potenciais benefícios trazidos pela Convenção; e, por fim, (iv) a existência de lacunas em seu texto, a serem complementadas pelas regras de direito internacional privado dos Estados, à época inexistentes ou não totalmente desenvolvidas em alguns países.351
Xxxxxxxxx nota uma crescente e já desenvolvida presença de normas não estatais em instrumentos latino-americanos, de forma que não se poderia atribuir a baixa adesão à Convenção do México à previsão de utilização de normas não estatais, ressaltando que o fenômeno se deve, possivelmente, à tradição jurídica na região e ao desconhecimento das consequências de sua ratificação para o comércio internacional.352
A Convenção, portanto, permite que um contrato internacional seja regulado pela lei estatal eleita pelas partes, sujeita aos limites impostos pela ordem pública e normas de aplicação imediata do foro, e ainda, normas de aplicação imediata de um terceiro Estado relacionado ao contrato.353 A aplicação de normas não estatais, a lex mercatoria, limita-se, então, a um papel secundário, sendo possível destacar duas funções da mesma: auxiliar na determinação da lei aplicável ao contrato mediante ausência de escolha pelas partes, de forma
350 O territorialismo compreende a aplicação da lei de um determinado Estado a todas as pessoas e atividades presentes em seu território, de forma que a aplicação de leis estrangeiras ocorreria de forma excepcional. Tal doutrina é tradicionalmente aplicada na América Latina. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx. Choice of Law in International Contracts in Latin American Legal Systems. Journal Of Private International Law, v. 0, x. 0, x. 00-00, xxx. 2010, p. 23.
351 VIAL UNDURRAGA, María Ignacia. International Contracts in Latin America: History of a Slow Pace towards the Acceptance of Party Autonomy in Choice of Law. Rev. Derecho Privado, Bogotá, n. 38, p. 241- 276, jun. 2020, p. 262.
352 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx. Contracts and Non-State Law in Latin America. Uniform Law Review
- Revue de Droit Uniforme, v. 16, n. 4, p. 877-889, 1º dez. 2011, p. 881.
000 XXXX XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. International Contracts in Latin America: History of a Slow Pace towards the Acceptance of Party Autonomy in Choice of Law. Rev. Derecho Privado, Bogotá, n. 38, p. 241- 276, jun. 2020, p. 261.
que o intérprete identifique a lei estatal mais adequada aos interesses comerciais internacionais; e, de forma suplementar, assegurar justiça e equidade no regime contratual.354
2.1.2 Os Princípios da Haia relativos à Escolha de Lei Aplicável aos Contratos Comerciais Internacionais
A partir de 2006, a Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (HCCH) passou a considerar a viabilidade de se desenvolver um instrumento internacional dedicado à escolha de lei aplicável aos contratos comerciais355 internacionais,356 tendo em vista os diferentes regimes sobre a matéria e a inexistência de regras claras e modernas em Estados- Membros e não membros da organização.357
Nesse sentido, a Conferência adotou, em 2015, os “Princípios da Haia sobre os Contratos Internacionais”, com o objetivo de harmonizar as regras de Direito Internacional Privado aplicáveis a contratos comerciais internacionais358 e promover a consolidação do princípio da autonomia da vontade na escolha de lei aplicável entre Estados que ainda não o admitem.359 Tal instrumento surgiu da necessidade constatada pela Conferência de se aperfeiçoar, no cenário internacional, a consolidação dos pactos de escolha do direito aplicável, de modo a “estabelecer um modelo global de normas de direito internacional privado aplicáveis aos contratos internacionais”.360
354 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx. Reflections on the Mexico Convention in the Context of the Preparation of the Future Hague Instrument on International Contracts. Journal of Private International Law, v. 7, n. 3, p. 491-526, dez. 2011, p. 520-523.
355 O instrumento aplica-se apenas a contratos business-to-business (B2B), excluindo de seu âmbito de aplicação relações de consumo e emprego.
356 HAGUE CONFERENCE ON PRIVATE LAW. Conclusions de la commission spéciale du 3 au 5 avril 2006 sur les affaires générales et la politique de la conférence. Document préliminaire n. 11 de jun. 2006 à l’intention du Conseil d’avril 2007 sur les affaires générales et la politique de la Conférence. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxx.xxxx.xxx/xxxx/x0xx0xx0-x0x0-0x0x-0xxx-00x000x0000x.xxx>.
357 HAGUE CONFERENCE ON PRIVATE LAW. Étude de faisabilité sur le choix de la loi applicable en matière de contrats internationaux rapport sur les travaux effectués et conclusions (note de suivi). Document préliminaire n. 5 de fev. 2008 à l’intention du Conseil d’avril 2008 sur les affaires générales et la politique de la Conférence. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxxx.xxx/xxxx/xx0xx00x-0x00-0x00-x0x0- e929075fdef2.pdf>.
358 PERTEGÁS, Xxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxx. Party Autonomy and its Limits: Convergence through the New Hague Principles on Choice of Law in International Commercial Contracts. Brooklyn Journal of International Law, v. 39, n. 3, p. 975-1003, 2014, p. 978.
359 XXXXXXX, Xxxxx Xxxx. UNIDROIT Principles as a Source for Global Sales Law. Villanova Law Review,
v. 58, n. 4, p. 661-680, 2013, p. 177.
360 XXXXXX, Xxxxx xx; XXXX XX., Xxxxx. A escolha da lei aplicável aos contratos do comércio internacional: os futuros Princípios da Haia e perspectivas para o Brasil: escritório permanente da Conferência de Haia de Direito Internacional Privado. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 9, n. 34, jul./set. 2012, p. 11- 38, p. 12.
Os Princípios compreendem um “código” de melhores práticas para o reconhecimento da autonomia da vontade em contratos internacionais, abordando os principais aspectos que a escolha de uma lei aplicável implica.361 Inaugurou-se, assim, um novo paradigma, de forma que os Princípios reúnem, em um mesmo instrumento, a possibilidade expressa de escolha de normas não estatais como lei aplicável às obrigações contratuais, bem como privilegiam a autonomia da vontade e comportam regras específicas sobre battle of forms362, contemplando, por fim, provisões acerca de normas de aplicação imediata e de ordem pública.363
Diferentemente de convenções internacionais, e assim como os PICC, os Princípios da Haia são instrumentos de soft law não vinculantes, servindo “[…] de guia para a criação, modificação e interpretação dos regimes jurídicos de escolha do Direito aplicável em nível nacional, regional ou internacional”.364 Além disso, por sua natureza, “[...] não se destinam à aplicação direta pelos tribunais estatais, mas apenas por força da escolha das próprias partes ou dos árbitros”.365
Conforme mandato conferido pelo Escritório Permanente da Conferência para elaboração do instrumento, não se objetivou a elaboração de regras de conflito para se identificar a lei aplicável diante de um conflito de leis, mas sim a elaboração de regras substantivas para a designação da lei aplicável pelas próprias partes contratantes.366 Dessa forma, o instrumento promove ativamente a autonomia da vontade nas relações comerciais internacionais.367
361 BOELE-XXXXXX, Xxxxxxxxx. Party Autonomy in Litigation and Arbitration in View of the Hague Principles on Choice of Law in International Commercial Contracts. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 379, 2016, p. 53.
362 A expressão designa a existência de cláusulas conflitantes entre termos e condições gerais apresentados por partes envolvidas em uma contratação.
363 XXXXXXX, Xxxxxx. The Hague Principles on Choice of Law: their addressees and impact. Uniform Law Review, x. 00, x. 0, x. 000-000, 00 xxx. 2017, p. 305.
364 XXXXXXXXXX, Xxxxxxxxxx. Prefácio. In: CONFERÊNCIA DA HAIA DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO. Princípios relativos à escolha do direito aplicável aos contratos comerciais internacionais. Tradução de Xxxxxxxxx Xxxxx. 2019. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxxx.xxx/xxxx/000x0000-0000-0000-xxx0- 9450dcc01316.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2020.
365 XXXXXX, Xxxxx xx; XXXX XX., Xxxxx. A escolha da lei aplicável aos contratos do comércio internacional: os futuros Princípios da Haia e perspectivas para o Brasil: escritório permanente da Conferência de Haia de Direito Internacional Privado. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 9, n. 34, jul./set. 2012, p. 11- 38, p. 14.
366 SAUMIER, Genevieve. The Hague Principles and the Choice of Non-State “Rules of Law” to Govern an International Commercial Contract. Brooklyn Journal of International Law, v. 40, p. 1-29, 2014, p. 7.
367 HAGUE CONFERENCE ON PRIVATE INTERNATIONAL LAW. Conclusions and recommendations of the council on general affairsand policy of the conference (24-26 march 2015). Procedural Document n. 1 of December 2015 for the attention of the Council of March 2016 on General Affairs and Policy of the Conference. Disponível em: < xxxxx://xxxxxx.xxxx.xxx/xxxx/0x0x0x0x-0000-0000-0x0x-x00000x00000.xxx>. Acesso em: 28 jun. 2021.
Para tanto, designou-se um grupo de trabalho específico, composto por especialistas advindos dos principais sistemas legais e de diferentes regiões geográficas, objetivando alcançar uma alta representatividade cultural, social e econômica, com o intuito de elaborar um conjunto coerente de regras sobre a escolha de lei aplicável.368
Considerando esse escopo, desde o início dos trabalhos já se esperava que o texto final dedicasse espaço à controversa questão do uso de normas não estatais.369 Nesse sentido, o projeto dos Princípios da Haia teve como ponto de partida instrumentos internacionais anteriores, como a Convenção do México e o próprio Regulamento Roma I, representando uma nova tentativa de se introduzir a escolha de normas não estatais como lei aplicável em um instrumento internacional.370 Em sua versão final, o Art. 3º dos Princípios permite às partes escolher como lei aplicável a contratos internacionais “[...] normas jurídicas geralmente aceitas a nível regional, supranacional ou internacional como um conjunto de normas neutro e equilibrado, salvo disposição da lei do foro em contrário”.371
O emprego da expressão “normas jurídicas” propositalmente abrange a escolha de normas não estatais como lei aplicável eleita pelas partes.372 O comentário adjacente ao Art. 3º contém referência à expressão conforme definida na Lei Modelo de Arbitragem Comercial Internacional elaborada pela UNCITRAL:373 normas que não emanam de fontes estatais.374 A
368 HAGUE CONFERENCE ON PRIVATE INTERNATIONAL LAW. Choice of law in international contracts report on work carried out and perspectives for the development of the future instrument: Preliminary Document n. 6 of March 2010. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxxx.xxx/xxxx/000x00x0-0000-0x00- a420-58356acedbfa.pdf>. Acesso em: 15 maio 2020.
000 XXXXXXX, Xxxxxxxxx. Xxx Xxxxx Principles and the Choice of Non-State “Rules of Law” to Govern an International Commercial Contract. Brooklyn Journal of International Law, v. 40, p. 1-29, 2014, p. 8
370 XXXXXXXX, Xxxx. Non-State Law in the Hague Principles on Choice of Law in International Contracts. In: XXXXXXXXX, X.; XXXX, X. (Eds) Varieties of European Economic Law and Regulation. Studies in European Economic Law and Regulation. Spinger, 2014. p. 43-69.
371 CONFERÊNCIA DA HAIA DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO. Princípios relativos à escolha do direito aplicável aos contratos comerciais internacionais. Tradução de Xxxxxxxxx Xxxxx. 2019. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxxx.xxx/xxxx/000x0000-0000-0000-xxx0-0000xxx00000.xxx>. Acesso em: 15 mai. 2020.
000 XXXXXXXX, Xxxxxx. Xxx Xxxxx Choice of Law Principles, CISG, and PICC: a hard look at a choice of soft law. The American Journal of Comparative Law, v. 66, n. 1, p. 175-217, mar. 2018, p. 180.
373 De acordo com a Nota Exploratória da Lei Modelo, o Art. 28 (§1º) utiliza a expressão “rules of law” para permitir às partes a escolha de instrumentos internacionais não incorporados a qualquer direito interno, ou, ainda, a escolha direta de convenções internacionais como lei aplicável. Nesse caso eximindo as partes de necessariamente referir-se à lei de determinado Estado. Todavia, na ausência de escolha expressa das partes quanto à lei aplicável, o tribunal arbitral, de acordo com a Lei Modelo, deverá identificar a lei aplicável em atenção às regras de direito internacional privado incidentes sobre o caso. UNITED NATIONS COMMISSION ON INTERNATIONAL TRADE LAW. UNCITRAL Model Law on International Commercial Arbitration. 2006[1985]. p. 33. Disponível em: <xxxxx://xxxxxxxx.xx.xxx/xxxxx/xxxxxxxx.xx.xxx/xxxxx/xxxxx- documents/uncitral/en/19-09955_e_ebook.pdf>.
374 CONFERÊNCIA DA HAIA DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO. Comentários. Art. 3º Normas Jurídicas. In: Princípios relativos à escolha do direito aplicável aos contratos comerciais internacionais. Tradução de Xxxxxxxxx Xxxxx. 2019. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxxx.xxx/xxxx/000x0000-0000-0000-xxx0- 9450dcc01316.pdf>. Acesso em: 15 maio 2020.
ausência de uma definição própria da expressão no texto dos Princípios foi inicialmente defendida para se garantir o máximo suporte possível à autonomia da vontade e evitar, assim, o emprego de critérios restritivos para o uso de normas não estatais.375
Não obstante, durante as negociações, a União Europeia opôs sucessivas restrições à utilização de normas não estatais como lei aplicável,376 sob a justificativa de que a ampliação de seu uso poderia implicar em uma “proliferação de regras unilaterais” e fomentar complexidades e incertezas no deslinde de casos envolvendo normas não estatais perante tribunais domésticos.377 Assim, com o objetivo de atingir um consenso entre os Estados- Membros da Conferência, a redação final do dispositivo evitou a utilização de conceitos exatos e definições binárias378, sujeitando a utilização de normas não estatais a três critérios principais.379
Dessa forma, o Art. 3º prevê a utilização de normas não estatais, desde que sejam (i) “geralmente aceitas” a nível regional, supranacional ou internacional; e (ii) categorizadas, de forma a constituir um conjunto de regras (iii) neutro e equilibrado. Por ser esse o primeiro dispositivo de ordem internacional a assumir uma posição explicitamente favorável à escolha de normas não estatais como lei aplicável em contratos internacionais,380 seus três critérios operativos serão analisados separadamente.
Iniciemos pelo primeiro critério: a aceitação da norma a nível regional, supranacional ou internacional. A esse respeito, o Comentário 3.4 ao Art. 3º explica que as normas não estatais a serem utilizadas devem ser reconhecidas além do âmbito nacional. Assim, impossibilita-se a escolha de regras existentes apenas no contrato, de termos e condições gerais de qualquer uma das partes, ou de regras cuja aplicação e desenvolvimento limitam-se
375 HAGUE CONFERENCE ON PRIVATE INTERNATIONAL LAW. Consolidated version of preparatory workleading to the draft hague principles on the choice of lawin international contracts. Preliminary Document n. 1 of October 2012 for the attention of the Special Commission of November 2012 on Choice of Law in International Contracts. 2012. p. 15. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxx.xxxx.xxx/xxxxxx/xxx/xxxxxxxxx_0000xx00x.xxx>.
000 XXXXXXXXXX, Xxxxxx. The Hague Principles on Choice of Law for International Contracts: Some Preliminary Comments. The American Journal of Comparative Law, x. 00, x. 0, x. 000-000, 0000, x. 893- 894.
377 SAUMIER, Genevieve. The Hague Principles and the Choice of Non-State “Rules of Law” to Govern an International Commercial Contract. Brooklyn Journal of International Law, x. 00, x. 0-00, 0000, x. 00
000 XXXXXXXXX, Xxxxx. Article 3 of the Hague Principles. Uniform Law Review, v. 26, n. 1, 2017, p. 5.
000 XXXXXXXXXX, Xxxxxx. Codifying Choice of Law Around the World: An International Comparative Analysis. Oxford University Express, 2014. p. 146.
380 SYMEONIDES, Xxxxxx. Codifying Choice of Law Around the World: An International Comparative Analysis. Oxford University Express, 2014. p. 146.
a uma determinada indústria local.381 A “aceitação” à qual se refere o dispositivo está ligada à reputação da organização responsável pela elaboração do instrumento não estatal que se deseja aplicar ao contrato, e ainda, à aceitação e utilização do instrumento pelo mercado no qual se insere.382 Dessa forma, evita-se que as partes escolham como lei aplicável categorias de normas jurídicas de conteúdo vago ou incerto.383 Entretanto, Xxxxxxxxx ressalta não haver orientações ou critérios para se definir de que forma as normas ou regras não estatais seriam consideradas “aceitas”, limitando a escolha das partes a instrumentos recorrentemente utilizados para se evitar insegurança jurídica.384
O segundo critério decorre da expressão “um conjunto de normas” contida no Art. 3º, e visa que as normas escolhidas sejam suficientemente desenvolvidas, abarcando aspectos inerentes à contratação internacional.385 Ou seja, normas categorizadas sistematicamente e razoavelmente abrangentes.386 Conforme o Comentário 3.10 ao Art. 3º, tal conjunto de normas deve “permitir a resolução dos problemas comuns dos contratos no contexto internacional”.387 Para Xxxxxxxx, ao direcionar as partes à escolha de normas não estatais minimamente abrangentes, tal requisito pode pretender mimetizar os efeitos da escolha de um direito estatal, evitando-se a escolha de um conjunto de normas capaz de regular o contrato apenas parcialmente.388 Dessa forma, a escolha de “princípios gerais de Direito”, da lex mercatoria ou de um único Incoterm como regra vigente sobre o contrato, não atenderia a tal requisito.389 Todavia, ressalta Xxxxxxxx que tal requisito se revela relativizado pelo uso do
381 XXXXXXXXX, Xxxxx. Article 3 of the Hague Principles: the final breakthrough for the choice of non-State
law? Uniform Law Review, v. 22, n. 2, p. 369–394, 2017, p. 394.
382 XXXXXXXXX, Xxxxx. Article 3 of the Hague Principles: the final breakthrough for the choice of non-State law? Uniform Law Review, v. 22, n. 2, p. 369–394, 2017, p. 394.
383 XXXXXXXX, Xxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxx. Party Autonomy and its Limits: Convergence through the New Hague Principles on Choice of Law in International Commercial Contracts. Brooklyn Journal of International Law, v. 39, n. 3, p. 975-1003, 2014, p. 999.
384 MANKOWSKI, 2019, p. 7.
385 SAUMIER, Genevieve. The Hague Principles and the Choice of Non-State “Rules of Law” to Govern an
International Commercial Contract. Brooklyn Journal of International Law, v. 40, p. 1-29, 2014, p. 17.
000 XXXXXXXXXX, Xxxxxx. The Hague Principles on Choice of Law for International Contracts: Some Preliminary Comments. The American Journal of Comparative Law, v. 61, n. 4, p. 873-899, 2013, p. 894.
387 CONFERÊNCIA DA HAIA DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO. Comentários. Artigo 3º Normas
Jurídicas. Princípios relativos à escolha do direito aplicável aos contratos comerciais internacionais. Tradução de Xxxxxxxxx Xxxxx. 2019. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxxx.xxx/xxxx/000x0000-0000-0000-xxx0- 9450dcc01316.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2020.
388 XXXXXXXX, Xxxx. Non-State Law in the Hague Principles on Choice of Law in International Contracts. In: XXXXXXXXX, X.; XXXX, X. (Eds) Varieties of European Economic Law and Regulation. Studies in European Economic Law and Regulation. Spinger, 2014. p. 43-69.
389 SAUMIER, Genevieve. The Hague Principles and the Choice of Non-State “Rules of Law” to Govern an International Commercial Contract. Brooklyn Journal of International Law, v. 40, p. 1-29, 2014, p. 17.
depeçage, previsto no Art. 2º dos Princípios,390 o qual permite às partes a escolha de diferentes leis ou normas para regular diferentes partes do contrato.
De acordo com o terceiro critério previsto no Art. 3º, isto é, a escolha de um conjunto de normas “neutro e equilibrado”, há a necessidade de reprimir a aplicação de normas injustas ou parciais391 impostas pela parte contratante que detém maior poder de barganha.392 O atributo de neutralidade refere-se à fonte das normas escolhidas, satisfeito diante de normas elaboradas por um organismo neutro e imparcial.393 Nesse sentido, Xxxxxxxx sugere a CISG e os PICC como conjuntos de normas adequados a tais requisitos.394
Ainda que satisfeitos os três critérios abordados, o Art. 3º contém uma “cláusula de escape”,395 ao condicionar a utilização de normas não estatais à decisão do Estado do foro.396 Tal cláusula visa acomodar as cortes estatais, as quais devem aplicar as regras de Direito Internacional Privado do Estado em que se encontram.397 Dessa forma, os critérios impostos pelo Art. 3º são considerados restritivos,398 gerando incertezas quanto a quais normas não estatais podem ser utilizadas como lei aplicável por meio do dispositivo.
O Art. 3º representa o compromisso atingido entre os membros da Conferência da Haia quanto ao regime das normas não estatais em contratos comerciais internacionais, sendo o resultado de diferentes visões acerca da temática. Ainda que se encontre em um instrumento
390 XXXXXXXX, Xxxx. The UNIDROIT Principles as Global Background Law. Uniform Law Review, x. 00, x. 0, x. 000-000, 0000, x. 00.
000 XXXXXXXX, Xxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxx. Party Autonomy and its Limits: Convergence through the New Hague Principles on Choice of Law in International Commercial Contracts. Brooklyn Journal of International Law, v. 39, n. 3, p. 975-1003, 2014, p. 997.
392 XXXXXXXX, 2019, p. 8.
393 CONFERÊNCIA DA HAIA DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO. Comentários. Artigo 3º Normas
Jurídicas. Princípios relativos à escolha do direito aplicável aos contratos comerciais internacionais. Tradução de Xxxxxxxxx Xxxxx. 2019. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxxx.xxx/xxxx/000x0000-0000-0000-xxx0- 9450dcc01316.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2020. XXXXXXXX, Xxxx. Non-State Law in the Hague Principles on Choice of Law in International Contracts. In: XXXXXXXXX, X.; XXXX, X. (Eds) Varieties of European Economic Law and Regulation. Studies in European Economic Law and Regulation. Spinger, 2014. p. 43-69. 394 XXXXXXXX, Xxxxxx. The Hague Choice of Law Principles, CISG, and PICC: a hard look at a choice of soft law. The American Journal of Comparative Law, v. 66, n. 1, p. 175-217, mar. 2018, p. 180.
395 XXXXX-XXXXXX, Xxxxxxxxx. Party Autonomy in Litigation and Arbitration in View of the Hague Principles on Choice of Law in International Commercial Contracts. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 379, 2016, p. 53.
396 CONFERÊNCIA DA HAIA DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO. Comentários. Artigo 3º Normas
Jurídicas. Princípios relativos à escolha do direito aplicável aos contratos comerciais internacionais. Tradução de Xxxxxxxxx Xxxxx. 2019. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxxx.xxx/xxxx/000x0000-0000-0000-xxx0- 9450dcc01316.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2020.
397 XXXXX-XXXXXX, Xxxxxxxxx. Party Autonomy in Litigation and Arbitration in View of the Hague Principles on Choice of Law in International Commercial Contracts. Collected Courses of the Hague Academy of International Law, v. 379, 2016, p. 53.
398 XXXXXXXXX. Xxxxx. Uniform Rules. Article 3. In: XXXXXX, Xxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxx (Ed.).
European Commentaries on Private International Law: Rome I regulation. Colonia: Otto Xxxxxxxx, 0000x.
não vinculante e possa ter sua utilização limitada, o dispositivo reflete o reconhecimento por parte dos Estados de que “normas jurídicas” podem ser uma escolha legítima de lei aplicável não apenas em casos sujeitos à arbitragem, mas também diante das cortes estatais.399
Nesse sentido, os Princípios vêm servindo também como inspiração legislativa no âmbito latino-americano. Seu texto foi adotado no Paraguai400, na forma da lei n.º 5393 de 2015401, a qual permite expressamente a escolha de normas de origem não estatal402 como aplicáveis ao contrato, equiparando-as ao termo “direito” aplicável em seu Art. 5º. Mais recentemente, o Uruguai também aprovou uma nova lei de direito internacional privado (Lei n.º 619/2020),403 após mais de dez anos de tramitação do projeto. O texto amplia a autonomia da vontade das partes e, em seu Art. 13º, permite a escolha de normas que reflitam costumes comerciais, criadas por organizações internacionais das quais o Uruguai participa.
Iniciativas como as descritas acima demonstram uma maior aceitação da autonomia da vontade em países latino-americanos, relativizando o paradigma restritivo que influenciou a baixa adesão à Convenção do México, no passado.
2.1.3 O Guia da Organização dos Estados Americanos sobre o Direito Aplicável aos Contratos Comerciais Internacionais nas Américas
De modo inovador, a Comissão Jurídica Interamericana publicou, em 2020, o “Guia da Organização dos Estados Americanos sobre o Direito Aplicável aos Contratos Comerciais Internacionais nas Américas”, elaborado com o propósito de “[...] destacar importantes aspectos do Direito aplicável aos contratos comerciais internacionais nas Américas, com
399 SAUMIER, Genevieve. The Hague Principles and the Choice of Non-State “Rules of Law” to Govern an International Commercial Contract. Brooklyn Journal of International Law, v. 40, p. 1-29, 2014, p. 30.
400 Dessa forma, o Paraguai se tornou o primeiro país a adotar os Princípios da Haia como lei doméstica, garantindo efeito estatutário e ampliando o escopo de aplicação do texto a contratos internacionais de natureza civil. VIAL UNDURRAGA, María Ignacia. International Contracts in Latin America: History of a Slow Pace towards the Acceptance of Party Autonomy in Choice of Law. Rev. Derecho Privado, Bogotá, n. 38, p. 241- 276, jun. 2020.
401 PARAGUAI. Lei n.º 5.393 de 20 de janeiro de 2015. Sobre el derecho aplicable alos contratos internacionales. Assunção: Gabinete Civil de la Presidencia. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxx.xxxx.xxx/xxxxxx/xxxxxxxxxxxx_xx_xx.xxx>.
402 A lei Paraguaia exclui o requisito de que as normas não estatais aplicáveis sejam geralmente aceitas em nível internacional, supranacional ou regional, a fim de evitar divergências ao se categorizar instrumentos normativos de acordo com tal critério.
403 URUGUAI. Sanção n.º 619 de 17 de novembro de 2020. Ley General de Derecho Internacional Privado.
Montevidéu: Parlamento de la República Oriental del Uruguay. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxxxxxxxx.xxx.xx/xx-xxxxxxx/xxxxxxx/0000/00/00000.xxx>.
vistas a promover a harmonização regional sobre o tema [...]”.404 A Comissão tem, como objetivo, promover o desenvolvimento progressivo e a codificação do direito internacional, incentivando a uniformização, sempre que possível, dadas as problemáticas relativas ao processo de integração americana.405
A partir de uma série de estudos preliminares que teve início em 2015, a Comissão mapeou diversas disparidades entre os sistemas jurídicos americanos quanto ao tratamento da lei aplicável aos contratos comerciais internacionais, percebendo uma lacuna no processo de harmonização regional do Direito Internacional Privado.406 Dentre esses estudos, destaca-se um questionário407 enviado a especialistas da área, bem como aos Estados membros da OEA, cujas respostas revelaram a percepção geral de que os Princípios da Haia de 2015 representariam um desenvolvimento da matéria, para além da Convenção do México de 1994, de forma que poderiam ser utilizados como base para reformas desta.408
Nos últimos anos, a Comissão vem, no entanto, concentrando esforços na elaboração de diretrizes, leis-modelo e guias, ou seja, instrumentos não vinculantes, ao invés de recorrer à codificação internacional por meio de convenções e tratados, num processo que se pode denominar de “codificação soft”.409 Nesse sentido, ao invés de dedicar-se a reformar a Convenção do México410, o próprio Guia relata a opção da Comissão por levar a cabo um
404 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Jurídica Interamericana. Guia relativo ao Direito Aplicável aos Contratos Comerciais Internacionais nas Américas. 2020. p. 3. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxx.xxx/xx/xxx/xxx/xxxx/xxxxxxxxxxx_xxxxxxx_Xxxx_xxxxx_x_Xxxxxxx_Xxxxxxxxx_xxx_Xxxxxxxxx_Xxx erciais_Internacionais_nas_Americas.pdf>.
405 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx. La labor del Comité Jurídico Interamericano. Agenda Internacional, Año XXII, n. 33, p. 211-230, 2015, p. 2012.
406 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Jurídica Interamericana. Guia relativo ao
Direito Aplicável aos Contratos Comerciais Internacionais nas Américas. 2020. p. 1. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxx.xxx/xx/xxx/xxx/xxxx/xxxxxxxxxxx_xxxxxxx_Xxxx_xxxxx_x_Xxxxxxx_Xxxxxxxxx_xxx_Xxxxxxxxx_Xxx erciais_Internacionais_nas_Americas.pdf>.
407 XXXXXXXX, Xxx; XXXXXXX, Xxxxx. Questionnaire on the Implementation of the Inter-American Conventions on Private International Law. Disponível em: < xxxx://xxx.xxx.xxx/xx/xxx/xxxx/xxxx/xxxxxx_xxxxxxxx_xxxxxxxxx_Xxxxxxxxx_XXX-xxx_000-00.xxx>.
408 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx. Reflections on the Mexico Convention in the Context of the Preparation of the Future Hague Instrument on International Contracts. Journal of Private International Law, v. 7, n. 3, p. 491-526, dez. 2011.
409 XXXX, Xxxxx Xxxxxx. O Comitê Jurídico Interamericano da OEA e a codificação do direito internacional regional. Revista de Direito Internacional, v. 16, n. 2, p. 291-302, 2019, p. 297.
410 Salienta-se que o Guia da OEA não se restringe a tratar da Convenção do México, mas utiliza de tal instrumento como “ponto de partida” para a abordagem sobre a lei aplicável a contratos internacionais nas Américas em virtude de ter sido elaborado também no âmbito da OEA. Além da Convenção, o Guia frequentemente relaciona-se aos Princípios da Haia dada a relevância destes no cenário internacional. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Jurídica Interamericana. Guia relativo ao Direito Aplicável aos Contratos Comerciais Internacionais nas Américas. 2020. p. 36. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxx.xxx/xx/xxx/xxx/xxxx/xxxxxxxxxxx_xxxxxxx_Xxxx_xxxxx_x_Xxxxxxx_Xxxxxxxxx_xxx_Xxxxxxxxx_Xxx erciais_Internacionais_nas_Americas.pdf>.
instrumento não vinculante, entendido como mais eficaz, se comparado ao processo de negociação e adoção de uma convenção internacional. Optou-se, assim, por promover a revisão das legislações nacionais de cada Estado-Membro pela elaboração de diretrizes endossadas pela Organização, as quais permitem uma maior correspondência com normas internacionais.411 Nesse sentido, a elaboração do Guia levou em consideração os principais instrumentos internacionais dedicados à contratação internacional, em especial, o Regulamento Roma I, os Princípios da Haia, e a já mencionada Convenção do México.412
Ao invés de ser um texto destinado unicamente ao setor legislativo, o relator do projeto junto à Comissão, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx, atribui ao Guia ao menos quatro funções principais, relacionadas, também, à sociedade em um âmbito mais amplo: (i) educar a comunidade quanto ao conteúdo e aos efeitos da autonomia da vontade na contratação internacional; (ii) servir como instrumento atualizado e moderno a ser considerado pelos legisladores nacionais; (iii) coordenar-se com outros instrumentos internacionais dedicados à contratação comercial internacional (PICC, CISG e os Princípios da Haia); e, ainda, (iv) servir como guia interpretativo para magistrados, árbitros e partes contratantes.413
O Guia contém dezoito recomendações principais relativas ao direito aplicável aos contratos comerciais internacionais, das quais duas são diretamente dedicadas às normas não estatais. Tratam-se das recomendações 6.1 e 6.2, as quais dispõem o seguinte:
6.1 O regime jurídico interno que rege o Direito aplicável aos contratos comerciais internacionais deveria reconhecer e esclarecer a escolha do Direito não estatal como aplicável.
6.2 Os legisladores, os julgadores e as partes são encorajados, em relação ao Direito não estatal, a interpretar a Convenção da Cidade do México à luz do critério oferecido pelos Princípios da Haia e seus Comentários, e a reconhecer, à luz deste instrumento, a distinção entre a escolha de Direito não estatal e a utilização do Direito não estatal como ferramenta de interpretação.
No continente americano, além de Paraguai e Uruguai, a lei de direito internacional privado da Venezuela também permite a aplicação de normas não estatais a relações contratuais, excepcionalmente, submetidas a jurisdições de cortes estatais, vez que a lei não
411 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Jurídica Interamericana. Guia relativo ao Direito Aplicável aos Contratos Comerciais Internacionais nas Américas. 2020. p. 35. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxx.xxx/xx/xxx/xxx/xxxx/xxxxxxxxxxx_xxxxxxx_Xxxx_xxxxx_x_Xxxxxxx_Xxxxxxxxx_xxx_Xxxxxxxxx_Xxx erciais_Internacionais_nas_Americas.pdf>.
412 XXXXX, Xxxxxxx X. The Future of Contract Law in Latin America: The Principles of Latin American Contract
Law. Journal of Civil Law Studies, v. 13, n. 1, p. 185-191, 2020, p. 186.
413 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx. Reflections on the Mexico Convention in the Context of the Preparation of the Future Hague Instrument on International Contracts. Journal of Private International Law, v. 7, n. 3, p. 491-526, dez. 2011.
contempla arbitragem.414 As recomendações do Guia revelam-se, portanto, essenciais para promover mudanças no continente Americano, a fim de que outros países passem a considerar a regularização — ou ampliação, naqueles países em que já são utilizadas como ferramenta interpretativa — do uso de normas não estatais.
2.2 NORMAS NÃO ESTATAIS NO PROCESSO DE CODIFICAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO EUROPEU RELATIVO ÀS OBRIGAÇÕES CONTRATUAIS
2.2.1 O Direito Internacional Privado Europeu: para além das fronteiras estatais
Anteriormente ao Tratado de Amsterdam415 de 1999, questões de Direito Internacional Privado não eram substancialmente abordadas nos tratados internacionais das Comunidades Europeias. Apenas “regras isoladas” eram inseridas em determinadas diretivas e regulamentos comunitários.416 Enquanto o Direito Internacional Privado dedica-se à coordenação dos efeitos de diferentes sistemas jurídicos ao apontar a lei aplicável e o foro competente para dirimir questões de natureza privada, o Direito da UE se ocupa da instituição, organização e funcionamento da própria União.
Não obstante, processos de integração regional como a UE, pautados pela livre circulação de pessoas, serviços e capitais,417 resultam no surgimento de relações jurídicas complexas, emaranhando diferentes ordenamentos que envolvem também o Direito da UE.418 Desse modo, a criação e a manutenção de um mercado comum para aproximar e desenvolver
414 VENEZUELA. Ley de Derecho Internacional Privado de Venezuela de 9 de julio de 1998. Caracas: Palacio Federal Legislativo. Disponível em: <xxxxx://xxxxxxxx.xxxxx.xxxxxxxxx.xxx/0000/00/xxx-xx-xxxxxxx-xxxxxxxxxxxxx- privado-de-venezuela.pdf>.
415 UNIÃO EUROPEIA. Tratado de Amsterdam. Luxembourg: Office for Official Publications of the European Communities, 1997. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xx/xxxxxxxx- union/sites/europaeu/files/docs/body/treaty_of_amsterdam_en.pdf>.
416 XXXXXXX, Xxxx. The Evolution of European Private International Law. International and Comparative Law Quarterly, v. 57, n. 4, p. 969-984, 2008, p. 970-972.
417 Art. 48 do Tratado de Roma de 1957, que estabelece a comunidade econômica europeia
418 XXXXX XXXXX, Xxx Xxxxxx Gens de. Introdução ao Direito Internacional Privado da União Europeia: da interacção originária do direito internacional privado e do direito comunitário à criação de um direito internacional privado da União Europeia. In: XXXXX XXXXX, Xxx Xxxxxx Xxxx de; MONACO, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxx (Coord.). Aspectos da Unificação europeia do direito internacional privado. São Paulo: Intelecto, 2016, p. 3-61. p. 4.
a atividade econômica dos Estados membros419 requer uma mobilidade legal transnacional, na
medida em que seus efeitos se dão na esfera do direito privado.420
A harmonização do Direito Internacional Privado Europeu no contexto da integração se inicia em convenções internacionais celebradas entre os Estados membros da Comunidade Econômica Europeia421, sob a forma do Art. 220 do Tratado, o qual estabelece, precisamente, a Comunidade Econômica Europeia422 (Tratado de Roma de 1957).
Tal dispositivo prevê o compromisso de os Estados membros negociarem medidas mais benéficas aos seus nacionais, por exemplo, com relação à simplificação de formalidades relativas ao reconhecimento e à execução de sentenças estrangeiras e laudos arbitrais. Esse é o objetivo da Convenção de Bruxelas de 1968, relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em matéria civil e comercial.423 Trata-se da primeira convenção internacional celebrada como parte da agenda de integração europeia, a qual é vista como uma forma de facilitar a consecução do objetivo de um mercado comum,424 ao harmonizar as diferenças identificadas entre as legislações dos Estados membros.425
O uso de convenções internacionais, instrumentos de Direito Internacional Público, decorre da vontade soberana dos Estados em contratar acerca da matéria. Apesar de a Comissão Europeia ter participado das negociações, o caráter desse instrumento não era considerado comunitário. Nas palavras de North, trata-se de uma convenção assinada por nove Estado soberanos, também Estados-Membros da então Comunidade Econômica Europeia.426
419 Objetivo principal para a criação da Comunidade Econômica Europeia através do Tratado de Roma de 1957, expresso em seu Art. 2º. UNITED NATIONS. Treaty Series. v. 298, 1958. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxxxx.xx.xxx/xxx/Xxxxxxxxxxx/XXXX/Xxxxxx%00000/x000.xxx>.
420 XXXXXXX, Xxxxx. Instrumentalisation of Private International Law in the European Union: towards a european conflicts revolution? European Journal of Migration And Law, v. 9, n. 3, p. 287-305, 2007, p. 288. 421 XXXXX, XxxxxXxxxx on private international law in the european union fourth edition. Cheltenham, UK: Edward Elgar Publishing, 2018. p. 6.
422 EUROPEENNE COMMUNAUTE ECONOMIQUE. Traite instituant la communauate economique europeene, et documents annexes. 1957. Disponível em: <xxxxx://xxx-xxx.xxxxxx.xx/xxxxx- content/FR/TXT/PDF/?uri=CELEX:11957E/TXT&from=PT>.
423 UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial. Bruxelas: 2000. Disponível em: <xxxxx://xxx-xxx.xxxxxx.xx/xxxxx-xxxxxxx/XX/XXX/?xxxxXXXXX:00000X0000(00)>.
424 XXXXXXX, Xxxxx. Instrumentalisation of Private International Law in the European Union: towards a european conflicts revolution? European Journal of Migration And Law, v. 9, n. 3, p. 287-305, 2007, p. 289.
425 XxXXXXXXX, Xxxxxxx. The Rome I Regulation on the Law Applicable to Contractual Obligations.
Oxford: Oxford University Press, 2015. p. 11.
426 NORTH, Xxxxx X. (Ed.) The E.E.C. Convention on the Law Applicable to Contractual Obligations: a Comparative Study. Amsterdam and New York: North-Holland Publishing Company, 1982. apud
Ainda durante as negociações da Convenção de Bruxelas, os Estados-Membros e a Comissão Europeia iniciaram projetos colaborativos dedicados ao Direito Internacional Privado, com a ideia de elaborar uma segunda convenção internacional que abordasse a lei aplicável às obrigações civis,427 particularmente, questões afetas à contratação transfronteiriça entre nacionais de diferentes Estados-Membros.428 Como resultado, em 1980 foi celebrada a Convenção de Roma sobre a Lei aplicável às Obrigações Contratuais.429 A Convenção de Roma traduz o desejo de se eliminar inconveniências decorrentes da diversidade de regimes contratuais domésticos430 e a vontade de promover os objetivos de mercado comum, fornecendo maior segurança e previsibilidade jurídicas.431
A ausência de competência legislativa específica ao Direito Internacional Privado no Tratado de Roma permitia apenas um regime fragmentado, com algumas diretivas e regulamentos dispersos dedicados à harmonização de determinados setores do direito material.432 A capacidade regulatória se dava a nível setorial, à margem dos sistemas nacionais, e impactava na persecução dos objetivos comunitários.433
O cenário mudou com a adoção do Tratado de Maastricht, em 1991, que inseriu novas formas de cooperação judicial em matéria civil434, com vistas ao objetivo da União435 de estabelecer um elevado nível de proteção aos seus cidadãos em um espaço de livre circulação
XxXXXXXXX, Xxxxxxx. The Rome I Regulation on the Law Applicable to Contractual Obligations. Oxford: Oxford University Press, 2015.
427 XXXXXX, Xxxxxx. Introduction. In: XXXXXX, Xxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxx (Eds.). European Commentaries on Private International Law: Rome I regulation. Colonia: Otto Xxxxxxxx, 0000. p. 15.
428 XxXXXXXXX, Xxxxxxx. The Rome I Regulation on the Law Applicable to Contractual Obligations. Oxford: Oxford University Press, 2015. x. 00.
000 XXXXXXXX, Xxxx xx Xxxx. Um Direito Internacional Privado Comum. Retrieved, v. 18, n. 2019, 2011, p. 2.
430 XxXXXXXXX, Xxxxxxx. The Rome I Regulation on the Law Applicable to Contractual Obligations. Oxford: Oxford University Press, 2015. p. 109.
431 KUIPERS, Jan-Jaap. Bridging the Gap: The Impact of the EU on the Law Applicable to Contractual Obligations. Rabels Zeitschrift Für Ausländisches Und Internationales Privatrecht/The Rabel Journal of Comparative and International Private Law, v. 76, n. 3, p. 562-96, 2012, p. 565. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/00000000>.
432 XXXXXXX, Xxxx. The Evolution of European Private International Law. International and Comparative Law
Quarterly, v. 57, n. 4, p. 969-984, 2008, p. 972.
433 XXXXX XXXXX, Xxx Xxxxxx Xxxx de. Introdução ao Direito Internacional Privado da União Europeia: da interacção originária do direito internacional privado e do direito comunitário à criação de um direito internacional privado da União Europeia. In: XXXXX XXXXX, Xxx Xxxxxx Xxxx de; MONACO, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxx (Coord.). Aspectos da Unificação europeia do direito internacional privado. São Paulo: Intelecto, 2016, p. 10.
434 XXXXXXX, Xxx-Xxxx. EU law and private international law: the interrelationship in contractual
obligations. Martinus Nijhoff Publishers, 2011. p. 12.
435 O Tratado de Maastricht institui uma União Europeia, prevendo, dentre outros objetivos, “o desenvolvimento de uma estreita cooperação no domínio da justiça e dos assuntos internos” (Artigo B). UNIÃO EUROPEIA. Tratado da União Europeia. Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 1992. Disponível em: <xxxxx://xxx-xxx.xxxxxx.xx/xxxxx-xxxxxxx/XX/XXX/XXX/?xxxxXXXXX:00000X/XXX&xxxxxXX>.
de pessoas.436 O Conselho Europeu passou a deter um papel ativo na produção legislativa,
podendo elaborar convenções e iniciar negociações entre os Estados-Membros.437
Não obstante, houve uma transformação ainda maior promovida pelo Tratado de Amsterdam em 1999, o qual introduziu a competência expressa da Comunidade Europeia para legislar sobre o Direito Internacional Privado,438 bem como a possibilidade de se demandar questões preliminares quanto à interpretação de tratados do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).439
A necessidade de centralizar e fortalecer a produção normativa em âmbito europeu decorre das diversas dificuldades encontradas na manutenção dos regimes introduzidos pelas Convenções de Bruxelas e de Roma. O crescente número de Estados-Membros aderindo à Comunidade Europeia, somado às intercorrências de longos processos de ratificação das convenções em cada um deles, expôs as complicações de um sistema baseado em tratados internacionais com efeitos comunitários em uma comunidade em amplo crescimento.440 Xxxx xx Xxxx Xxxxxxxx questiona se a atribuição de competência em matéria de Direito Internacional Privado aos órgãos comunitários é necessária para a efetiva livre circulação de pessoas e para o funcionamento do mercado interno, considerando-se o bom funcionamento deste em países nos quais existe uma pluralidade de sistemas jurídicos locais.441
436 UNIÃO EUROPEIA. Tratado da União Europeia. Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 1992. Artigo K1. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xx/xxxxxxxx- union/sites/europaeu/files/docs/body/treaty_on_european_union_en.pdf>.
437 UNIÃO EUROPEIA. Tratado da União Europeia. Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 1992. Artigo K3. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xx/xxxxxxxx- union/sites/europaeu/files/docs/body/treaty_on_european_union_en.pdf>.
438 XXXXXXX, Xxxxx. Instrumentalisation of Private International Law in the European Union: towards a european conflicts revolution? European Journal of Migration And Law, v. 9, n. 3, p. 287-305, 2007, p. 288. O Art. 2º (§15) do Tratado de Amsterdam altera os dispositivos do Tratado que institui a Comunidade Econômica Europeia, incluindo como medida necessária ao bom funcionamento do mercado interno prover a compatibilidade das normas aplicáveis nos Estados-Membros em matéria de conflitos de leis e de jurisdição. UNIÃO EUROPEIA. Tratado da União Europeia. Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 1992. Disponível em: <xxxxx://xxx-xxx.xxxxxx.xx/xxxxx- content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:11992M/TXT&from=ES>.
439 XXXXX-XXXXXX, Xxxxxxxxx. Unification and Harmonization of Private International Law in Europe. In: BASEDOW, Jurgen; XXXXX, Xxxx. Private Law in the International Arena: From National Conflict Rules Towards Harmonization and Unification-Liber Amicorum Xxxx Xxxxx. Cambridge University Press, 2000. p. 64.
440 BASEDOW, Jurgen. The Communitarisation of the Conflict of Laws under the Treaty of Amsterdam.
Common Market Law Review, x. 00, x. 0, 0000, x. 000.
000 XXXXXXXX, Xxxx xx Xxxx. Um Direito Internacional Privado Comum. Retrieved, v. 18, n. 2019, p. 2, 2011.
No contexto regional ou internacional, é fato que o Direito Internacional Privado tem papel primordial no manejo de inseguranças jurídicas associadas à contratação internacional442, possibilitando um mercado interno mais coeso e eficiente443.
O Tratado de Amsterdam ampliou a relação entre Estados-Membros e Comunidade Europeia ao aprimorar a cooperação jurídica e incluir a criação de um “espaço de liberdade, segurança e justiça”444, concedendo à Comissão Europeia a possibilidade de apresentar propostas legislativas pertinentes a questões de direito interno que, até aquele momento, eram de trato exclusivo dos Estados-Membros.445 Ademais, o tratado concretiza a competência do TJUE para conceder pareceres vinculantes quanto à validade e à interpretação de normas e convenções de natureza comunitária446, independentemente da exaustão das vias judiciais domésticas.
A partir de tal reforma, inicia-se o processo de “comunitarização” ou “europeização” do direito privado,447 que reflete a mudança de paradigma no processo de harmonização do Direito Internacional Privado Europeu, antes, de caráter intergovernamental, e, a partir de então, fundamentado em uma base supranacional, com instrumentos legislativos de natureza comunitária.448 É importante destacar que o processo de codificação europeu não buscou inovar, mas sim refletir tradições em matéria de Direito Internacional Privado já existentes nos Estados-Membros.449
Nessa nova estrutura, a Comissão e o Conselho Europeus traçaram um plano de ação com ênfase na cooperação jurídica em matéria civil, com fins de implementar maior
442 XXXX, Xxxxxxx; XXX XXXX, Xxx. Towards a European Code on Private International Law?. Rabels Zeitschrift für ausländisches und internationales Privatrecht/The Rabel Journal of Comparative and International Private Law, n. 4, p. 701-751, 2015, p. 703.
443 Nesse sentido, o relatório final da presidência da Reunião Especial do Conselho Europeu dedicada ao estabelecimento do espaço de liberdade segurança e justiça, sediada em Tampere, Finlândia e ocorrida em 15 e 16 de Outubro de 1999 registra que “em um genuíno espaço Europeu de Justiça, indivíduos e empresas não devem ser impedidos ou desencorajados de exercer seus direitos em razão da incompatibilidade ou complexidade de sistemas legais e administrativos nos Estados membros” (tradução da autora). EUROPEAN PARLIAMENT. Tampere European Council, 15 and 16 October 1999. Bulletin Quotidien Europe, n. 2158, 1999. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxxxxx.xx/xxxxxxx/xxx_xx.xxx#x>.
444 FIORINI, Aude. The Evolution of European Private International Law. International and Comparative Law Quarterly, v. 57, n. 4, p. 969-984, 2008, p. 972.
445 VAN XXXXXXX, Xxxxx. European private international law. Bloomsbury Publishing, 2016, p. 17.
446 UNIÃO EUROPEIA. Tratado da União Europeia. Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 1992. Artigo K.7. Disponível em: <xxxxx://xxx-xxx.xxxxxx.xx/xxxxx- content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:11992M/TXT&from=ES>.
447 XXXXXXXXXX, Xxxxxxxxx X. Rome convention-Rome I regulation. Juris Publishing, Inc., 2011. p. 3
448 XXXXXXXX, Xxxx xx Xxxx. Um Direito Internacional Privado Comum. Retrieved, v. 18, n. 2019, p. 3, 2011.
449 XXXXXXX, Xxx-Xxxx. EU law and private international law: the interrelationship in contractual obligations. Martinus Nijhoff Publishers, 2011. p. 39.
segurança a partir de regras claras para se determinar a jurisdição competente, a designação da lei aplicável e a exequibilidade das decisões judiciais450 relativas a obrigações contratuais e extracontratuais, divórcio, regimes matrimoniais e de sucessões.451 Como prioridade na agenda, destacou-se a conversão da Convenção de Bruxelas em regulamento452, de ordem vinculante aos Estados membros, hoje correspondente ao Regulamento Bruxelas I.
Muitos domínios do Direito Internacional Privado foram abordados por meio de diretivas, normativas e regulamentos, expandindo-se do direito processual civil para normas de conflitos de lei em matéria obrigacional, familiar, sucessória e, mais recentemente, regimes matrimoniais.453 Percebe-se, portanto, intensa e ativa participação dos organismos da UE na atividade legislativa em matéria de Direito Internacional Privado. Conforme previsto por Xxxxx-Xxxxxx, as normas de natureza comunitária (ou de direito da UE)454 assumem uma posição mais importante do que aquelas de natureza doméstica, as quais resignam-se a uma segunda instância de aplicação.455
Como resultado, Xxxxxxx destaca que a tal competência, conferida pelo Tratado de Amsterdam, permite a existência de uma “justiça especializada” em Direito Internacional Privado, independente da justiça material relativa aos conflitos sociais.456 Assim, permite-se que as regras de conflito aplicáveis apontem para uma mesma lei material, e consequentemente, para um mesmo resultado, promovendo segurança e previsibilidade jurídicas, objetivos já propostos por Xxxxxxx em sua teoria de conflitos de normas.457
A partir de 2004, o Conselho e o Parlamento Europeus expressam suporte ao projeto de “transposição” da Convenção de Roma para um regulamento europeu, que resultou na adoção do Regulamento Roma I sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, em 17 de
450 BASEDOW, Jurgen. Uniform Law Conventions and the UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts. Uniform Law Review, x. 0, x. 0, x. 000-000, 0000, x. 000.
000 EUROPEAN UNION. Vienna Action Plan. Official Journal of the European Communities C. 19 of 23 January 1999. Disponível em: <xxxxx://xxx-xxx.xxxxxx.xx/xxxxx-xxxxxxx/XX/XXX/?xxxxXXXXXXXX%0Xx00000> 452 BELOHLAVEK, Xxxxxxxxx X. Rome convention-Rome I regulation. Juris Publishing, Inc., 2011. p. 3.
453 XXXXXX XXXXXX, Xxxxxxx; XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx. Estudos brasileiros sobre a europeização do direito internacional privado. In: Xxxxx, Xxxxx Xxxxxxxx de (Org.). O direito internacional privado europeu: entre a harmonização e a fragmentação. Florianópolis: EMais, 2019. p. 255-276, 2019. p. 258. Disponível em:
<xxxxx://xxxxxxxxxx.xxxxxxx.xxxx.xx/xxxxx/0000/00/XXXXX-XXX-Xxxx-Xxxxxx-0000.xxx>.
454 Denominação prevalente após o Tratado de Lisboa de 2009.
455 BOELE-XXXXXX, Xxxxxxxxx. Unification and Harmonization of Private International Law in Europe. In: BASEDOW, Jurgen; XXXXX, Xxxx. Private Law in the International Arena: From National Conflict Rules Towards Harmonization and Unification-Liber Amicorum Xxxx Xxxxx. Cambridge University Press, 2000. p. 61- 78.
456 BASEDOW, Jurgen. Uniform Law Conventions and the UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts. Uniform Law Review, x. 0, x. 0, x. 000-000, 0000, x. 000.
000 BASEDOW, Jurgen. Uniform Law Conventions and the UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts. Uniform Law Review, v. 5, n. 1, p. 129-140, 2000, p. 458.
Junho de 2008. O intervalo de tempo necessário para adoção do Regulamento, entre discussão, elaboração e aprovação, indica não ter sido esse um processo simples.
Entre os principais pontos de divergência, encontramos a utilização e a incidência de normas não estatais sobre as obrigações contratuais. Apesar de considerada a possibilidade de se reconhecer normas não estatais como lei aplicável em versões iniciais do Regulamento, seu texto final permite apenas a incorporação de normas não estatais por referência.
Para compreendermos como se deu a opção do legislador europeu durante o processo de transposição da Convenção de Roma para o Regulamento Roma I, o regime de normas não estatais será especificamente abordado à luz do processo de codificação do Direito Internacional Privado Europeu relativo às obrigações contratuais.
2.2.2 Normas não estatais na Convenção de Roma de 1980
O Art. 3º da Convenção de Roma dispõe sobre a escolha de lei aplicável às obrigações contratuais, reconhecendo a autonomia das partes, a liberdade contratual, e promovendo a aceitação da escolha de lei aplicável no âmbito da então Comunidade Econômica Europeia.458 Tal dispositivo determina que “[o] contrato rege-se pela lei escolhida pelas partes”,459 sendo um dos principais fatores aos quais se atribui o sucesso da Convenção.460 Ainda que o dispositivo conceda ampla liberdade aos contratantes, a possibilidade de se submeter um contrato a normas não estatais no regime da Convenção é uma questão considerada controversa pela doutrina.461
Apesar de a previsão do Art. 3º não qualificar o vocábulo “lei”, analisando a versão em língua inglesa da Convenção, Nygh destaca que seu Art. 15, dedicado à exclusão do reenvio, especifica que, no âmbito da Convenção, a “aplicação da lei” refere-se à “aplicação das normas de direito em vigor nesse país”. Para o autor, portanto, o Art. 3º expressa uma
458 XXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx de; XXXXXXX, Xxxxxxx. A autonomia da vontade na escolha da lei aplicável aos contratos de comércio internacional no regulamento Roma I da União Europeia. Revista de Direito Internacional, v. 16, n. 2, p. 319-333, 2019, p. 325.
459 COMUNIDADE ECONOMICA EUROPEIA. Convenção de Roma de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (versão consolidada). OJC, v. 27, n. 26.1, 1998. Disponível em: <xxxxx://xxx- xxx.xxxxxx.xx/xxxxx-xxxxxxx/XX/XXX/?xxxxXXXXX%0X00000X0000%0000%00>.
460 XXXXXXX, Xxx-Xxxx. Bridging the Gap: The Impact of the EU on the Law Applicable to Contractual Obligations. Rabels Zeitschrift Für Ausländisches Und Internationales Privatrecht/The Rabel Journal of Comparative and International Private Law, v. 76, n. 3, p. 562-96, 2012, p. 566. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/00000000>.
000 XXXXX, Xxx; XXXXXXX, Xxxxx Xxxx. The Rome I Proposal. Journal of private international law, v. 3, n. 1, p. 29-51, 2007.
ambiguidade quanto ao seu conteúdo, a depender da definição que se fornece para o termo
“lei”.462
Heiss relata que parte da doutrina aceita a escolha de normas não estais sob o Art. 3º da Convenção de Roma, que contemplaria tanto a escolha de leis de um país, quanto de princípios soft law como lei aplicável ao contrato. O mesmo autor refere que tal questão permanece incerta no regime do Regulamento Roma I.463 Trata-se, no entanto, de uma posição minoritária na doutrina.
Ainda que se encontre suporte para a utilização de normas não estatais em contratos internacionais no regime da Convenção de Roma464, a maioria dos autores registra que tal escolha não foi contemplada pelo tratado.465 Como fundamento a essa restrição, remete-se ao Art. 1º da Convenção, sobre seu âmbito de aplicação, o qual, na versão em língua inglesa, é restrito a “[...] situações que envolvam escolha entre as leis de diferentes países”.466 Esse dispositivo, em conjunto com o Art. 3º (§1º), restringiria a escolha de lei aplicável a normas estatais.
Xxxxxx destaca que a redação do Art. 3º da Convenção, ao se referir a uma “lei”, leva à interpretação de que há uma escolha entre normas estatais, o que pode ser confirmado pela opção do legislador em não utilizar a expressão “normas de direito”,467 empregada na Convenção do México, como visto na Seção 2.1.1, e, propositalmente, em instrumentos dedicados à arbitragem internacional.
Maniruzzaman, também em referencia à versão em língua inglesa do texto, destaca que o emprego da expressão “lei aplicável” no Art. 3º (§4º) mais parece referir à escolha de
462 XXXX, Xxxxx. Autonomy in International Contracts. Oxford University Press, 1999. p. 61.
463 HEISS. Xxxxxx. The Common Frame of Reference (CFR) of European Insurance Contract Law. In: XXXXXXX, Xxxxxx (Ed) Common Frame of Reference and Existing EC Contract Law. Walter de Gruyter, 2009. p. 229-250. p. 244.
000 XXXXX, Xxx; XXXXXXX, Xxxxx Xxxx. The Rome I Proposal. Journal of private international law, v. 3, n. 1,
p. 29-51, 2007, p. 30.
465 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Non-State Rules in International Commercial Law: Contracts, Legal Authority and Application. New York: Routledge, 2021. cap. 5, p. 14. XXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxxxxx. The European Private International Law of Obligations. 3. ed. Sweet and Maxweel, 2009. p. 137. XXXX, Xxxxx Xxxxxx. Non-state law in party autonomy–a European perspective. International Journal of Private Law, v. 5, n. 1, p. 22-39, 2012, p. 25.
466 “The rules of this Convention shall apply to contractual obligations in any situation involving a choice between the laws of different countries.” EUROPEAN COMMUNITY. Convention on the law applicable to contractual obligations (consolidated version). Official Journal of the European Communities, x. 00, x. 0, 0000.
000 XXXXXX, Xxxxxx; XXXXXX, Xxxx. Yearbook of Private International Law. Sellier, 2008. p. 65.
princípios ou regras do que, propriamente, a um determinado Direito estatal; porém, o autor destaca que a Convenção é clara ao adotar uma concepção positivista da palavra “lei”.468
Além da leitura do Art. 1º da Convenção de Roma, Tang elenca outras duas principais razões pelas quais a escolha de normas não estatais como lei aplicável não é possível sob o regime da Convenção: seu texto foi elaborado seguindo correntes tradicionais, que não refletem essa intenção, em um período anterior ao desenvolvimento do conceito de “nova lex mercatoria”; e, ainda, há a oposição do professor Xxxx Xxxxxxx a essa hipótese, expressa durante os trabalhos preparatórios do Regulamento Roma I.469
Para Xxxxxxx, a Convenção de Roma não contempla a escolha de normas não estatais como lei aplicável como sendo uma escolha oriunda do princípio da autonomia da vontade como regra de Direito Internacional Privado. O autor explica ser papel do intérprete definir quais efeitos as normas não estatais podem gerar, em conformidade com o Direito estatal aplicável, tendo seu campo de atuação confinado aos limites impostos pelas normas imperativas do Direito estatal.470
Refletindo a prática da maioria dos Estados-Membros, a Convenção de Roma consagra em seu Art. 3º a autonomia da vontade quanto à escolha de lei aplicável ao permitir:
(i) a escolha de lei de qualquer país, ainda que o contrato não tenha qualquer relação com aquele país, ou então, ainda que o país não seja Estado membro da UE; (ii) a escolha de diferentes leis para reger determinadas partes do contrato (dépeçage); e (iii) a liberdade de modificação da lei aplicável, escolhida a qualquer tempo.471
2.2.3 Normas não estatais no Regulamento Roma I da União Europeia
468 XXXXXXXXXXXX, A. F. Munir. Choice of Law in International Contracts-Some Fundamental Conflict of Laws Issues. Journal of International Arbitration, v. 16, p. 141-172, 1999, p. 143.
469 XXXX, Xxxxx Xxxxxx. Non-state law in party autonomy–a European perspective. International Journal of Private Law, v. 5, n. 1, p. 22-39, 2012, p. 25.
470 LAGARDE. Xxxx. Remarques sur la proposition de règlement de la Commission européenne sur la loi applicable aux obligations contractuelles (Rome I). In: XXXXXXX, Xxxxxx (Ed). New Features in Contract Law. Munich: Seiller, 2007. p. 283.
471 XXXXXXX, Xxx-Xxxx. Bridging the Gap: The Impact of the EU on the Law Applicable to Contractual Obligations. Rabels Zeitschrift Für Ausländisches Und Internationales Privatrecht / The Rabel Journal of Comparative and International Private Law, v. 76, n. 3, p. 562-96, 2012. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/00000000>.
O processo de transposição da Convenção de Roma para um regulamento europeu472 se inicia com a elaboração de um “Livro Verde”473 em 2003, preparado pela Comissão Europeia com objetivo de apresentar propostas legislativas e consultar instituições europeias, Estados-Membros e sociedade civil sobre a necessidade e o conteúdo de iniciativas legislativas em âmbito comunitário.474 A Comissão Europeia mantém a clara posição de que não se trata da criação de um novo regime, mas sim da conversão da Convenção de Roma para um instrumento de caráter comunitário, alterando determinadas disposições com o intuito de modernizar o texto e tornar o regime mais preciso.475
Como parte do Direito da União Europeia, e dada sua natureza como Regulamento, suas disposições são diretamente aplicáveis sem a necessidade de transposição para a legislação doméstica dos Estados-Membros, assumindo “precedência automática” sobre as regras de Direito Internacional Privado emanadas em âmbito doméstico.476 Quanto à liberdade de escolha da lei aplicável, a proposta deixava claro que o caráter liberal da Convenção de Roma seria preservado, assegurando a manutenção das prerrogativas previstas no Art. 3º da Convenção.477 Assim como a Convenção de Roma, o Regulamento aplica-se a obrigações contratuais que “impliquem um conflito de leis”, com a ressalva de que faz referência especificamente às obrigações em matéria civil e comercial.478
O Livro Verde reconhece como prática comum na contratação comercial internacional a sujeição de contratos a convenções internacionais, como a CISG, costumes do comércio internacional, princípios de direito, à lex mercatoria e a codificações, como os PICC.479 Nesse
472 Para uma cronologia completa do processo legislativo que resultou na adoção do Regulamento Roma I, ver XxXXXXXXX, Xxxxxxx. The Rome I Regulation on the Law Applicable to Contractual Obligations. Oxford: Oxford University Press, 2015. p. 851.
473 COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS. Livro Verde relativo à transformação da Convenção de Roma de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais num instrumento comunitário e sua modernização. Bruxelas, 14 janeiro de 2003. Disponível em: <xxxxx://xxx-xxx.xxxxxx.xx/xxxxx- content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A52002DC0654>.
474 XXXXXXXXX XXXX, Xxxxxxx. Derecho Contractual Europeo más coherente. Anuario Mexicano de
Derecho Internacional, v. IV, p. 289-309, 2006, p. 291.
475 COMISSAO EUROPEIA. Proposal for a regulation of the european parliament and the council on the law applicable to contractual obligations (Rome I). Bruxelas, 15 de dezembro de 2005. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxxxxx.xx/XxxXxxx/xxxx_xxxxxx_xxxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxx_xxxxxxxxxx/xxx/0000/0000/X OM_COM(2005)0650_EN.pdf>.
476 XXXXXX, Xxxxxx. Introduction. In: XXXXXX, Xxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxx. European Commentaries on Private International Law: Rome I regulation. Colonia: Otto Xxxxxxxx, 0000. x. 0-00, x. 00.
000 XXXXXX, Andrea. Conversion of the Rome Convention into an EC Instrument. In: XXXXXX, Xxxxxx.
Yearbook of Private International LawSellier, 2008. x. 00
000 Xxx. 0x (§0x) xx Xxxxxxxxx xx Xxxx e do Regulamento Roma I.
479 COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS. Livro Verde relativo à transformação da Convenção de Roma de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais num instrumento comunitário e sua modernização.
sentido, a publicação questiona se a escolha direta de uma convenção internacional ou de princípios de direito como lei aplicável deve ser permitida num futuro instrumento de natureza europeia.
O Livro Verde proposto pela Comissão obteve cerca de oitenta respostas, dentre as quais encontram-se algumas que expressam criticismo em relação à possibilidade de escolha de normas não estatais como lei aplicável.480 Todavia, a proposta legislativa apresentada pela Comissão ao Parlamento e ao Conselho Europeus previa tal prerrogativa, inserida no Art. 3º (§2º), como forma de promover a autonomia da vontade das partes.481 A redação proposta foi:
As partes podem também escolher como lei aplicável os princípios e regras substantivas de Direito contratual reconhecidos internacionalmente ou em âmbito Comunitário. Porém, aspectos relativos a questões governadas por tais princípios e regras que não são expressamente enfrentados por eles devem ser governados pelos princípios gerais que os inspiram ou, na falta destes princípios, de acordo com a lei aplicável na ausência de escolha de lei conforme disposto neste Regulamento.482
O texto ainda refere como exemplos de princípios e regras substantivas de Direito contratual os PICC, os Princípios de Direito Contratual Europeu (PECL) e um futuro instrumento europeu de direito contratual material. Ademais, a proposta exclui a possibilidade de se utilizar a lex mercatoria, pura e simplesmente, como lei aplicável, em virtude da imprecisão e do conteúdo incerto que a expressão denota.483
Bruxelas, 14 janeiro de 2003. p. 22. Disponível em: <xxxxx://xxx-xxx.xxxxxx.xx/xxxxx-
content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A52002DC0654>.
480 XXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxxxxx. The European Private International Law of Obligations. 3. ed. Sweet and Maxweel, 2009. p. 137. XXXX, Xxxxx Xxxxxx. Non-state law in party autonomy–a European perspective. International Journal of Private Law, v. 5, n. 1, p. 22-39, 2012, p. 137.
481 COMISSAO EUROPEIA. Proposal for a regulation of the european parliament and the council on the law applicable to contractual obligations (Rome I). Bruxelas, 15 de dezembro de 2005. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxxxxx.xx/XxxXxxx/xxxx_xxxxxx_xxxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxx_xxxxxxxxxx/xxx/0000/0000/X OM_COM(2005)0650_EN.pdf>.
482 No original: “2. The parties may also choose as the applicable law the principles and rules of the substantive law of contract recognized internationally or in the Community. However, questions relating to matters governed by such principles or rules which are not expressly settled by them shall be governed by the general principles underlying them or, failing such principles, in accordance with the law applicable in the absence of a choice under this Regulation.” COMISSAO EUROPEIA. Proposal for a regulation of the european parliament and the council on the law applicable to contractual obligations (Rome I). Bruxelas, 15 de dezembro de 2005. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxxxxx.xx/XxxXxxx/xxxx_xxxxxx_xxxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxx_xxxxxxxxxx/xxx/0000/0000/X
OM_COM(2005)0650_EN.pdf>.
483 XXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxxxxx. The European Private International Law of Obligations. 3. ed. Sweet and Maxweel, 2009. p. 137. XXXX, Xxxxx Xxxxxx. Non-state law in party autonomy–a European perspective. International Journal of Private Law, v. 5, n. 1, p. 22-39, 2012, p. 137.
Nota-se, ainda, que o dispositivo proposto se inspira no Art. 7º (§2º) da CISG484, referindo o intérprete aos princípios gerais que inspiram as normas não estatais escolhidas, ou à lei aplicável na ausência de escolha das partes. Além disso, a proposta da Comissão alinhava-se às novidades legislativas nos Estados Unidos da América, onde as legislações dos estados de Oregon e Louisiana haviam permitido, à época, a escolha de regras e princípios como direito aplicável, liberando as partes de escolher apenas normas estatais.485
Xxxx observa que a proposta da Comissão reflete o intuito de se expandir a autonomia da vontade ao reconhecer a importância de normas não estatais para o comércio internacional, sem deixar de observar as dificuldades inerentes à aplicação de tais normas quanto à ambiguidade, à imprevisibilidade e à qualidade legislativa de tais codificações.486 Lagarde, por sua vez, considera que a proposta da Comissão representa uma escolha de política jurídica.487
Heiss relata que apesar de essa “nova dimensão” da autonomia da vontade na proposta da Comissão ter sido, inicialmente, bem recepcionada pela doutrina488, argumentos contrários à proposta acabaram se tornando a posição predominante.489
Uma primeira objeção refere-se à dificuldade em se conceituar uma codificação não estatal como um conjunto de normas “reconhecido internacionalmente ou em âmbito Comunitário”. A proposta legislativa não indicava critérios para tanto e não apontava qual
484 (§2º) As questões referentes às matérias reguladas por esta Convenção que não forem por ela expressamente resolvidas serão dirimidas segundo os princípios gerais que a inspiram ou, à falta destes, de acordo com a lei aplicável segundo as regras de direito internacional privado. BRASIL. Decreto, n.º 8.327, de 16 de outubro de 2014. Promulga a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias-Uncitral, firmada pela República Federativa do Brasil, em Viena, em 11 de abril de 1980. Brasília, DF: Presidência da República. 2014. Disponível em: <xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/_xxx0000- 2014/2014/decreto/d8327.htm>.
485 XxXXXXXXX, Xxxxxxx. The Rome I Regulation on the Law Applicable to Contractual Obligations. Oxford: Oxford University Press, 2015. p. 149.
486 XXXX, Xxxxx Xxxxxx. Non-state law in party autonomy–a European perspective. International Journal of Private Law, v. 5, n. 1, p. 22-39, 2012, p. 26.
487 LAGARDE. Xxxx. Remarques sur la proposition de règlement de la Commission européenne sur la loi applicable aux obligations contractuelles (Rome I). In: XXXXXXX, Xxxxxx (Ed). New Features in Contract Law. Munich: Seiller, 2007. p. 282
488 Nesse sentido, ver BASEDOW, Xxxxxx et al. Max Planck Institute for Comparative and International Private Law: Comments on the European Commission’s Proposal for a Regulation of the European Parliament and the Council on the Law Applicable to Contractual Obligations (Rome I). Rabels Zeitschrift Für Ausländisches Und Internationales Privatrecht/The Rabel Journal of Comparative and International Private Law, v. 71,
n. 2, 2007, p. 225–344. Disponível em: <JSTOR, xxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/00000000>. Accesso em: 29 abr. 2021. XXXXX, Xxx; XXXXXXX, Xxxxx Xxxx. The Rome I Proposal. Journal of private international law, v. 3, n. 1, p. 29-51, 2007.XXXXX-XXXXXX, Xxxxxxxxx. Where Do We Stand on the Rome I Regulation? In: XXXXX- XXXXXX, Xxxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxx X. The Future of European Contract Law: Essays in honour of Xxxxx Xxxxxxx to commemorate his retirement as Professor of Civil Law at the University of Utrecht. Xxxxxxx Xxxxxx, 2007. p. 19-41, p. 29.
489 HEISS. Xxxxxx. Party Autonomy. In: FERRARI, Xxxxxx; LIEBE, Xxxxxx (Eds.) Rome I Regulation: the law applicable to contractual obligations in Europe. Munique: Xxxxxxx, 0000. p. 1-16, p. 10.
seria a autoridade competente para análise da questão. Xxxxxxx, portanto, aos juízes das cortes domésticas verificar tal critério.490 Lagarde discute que o dispositivo proposto levantou objeções mais em virtude de sua formulação do que em razão de seu princípio motor, dada a incerteza que paira sobre a caracterização de normas não estatais vis-a-vis os requisitos propostos.491 Além disso, alegou-se, também, que os “princípios e regras” passíveis de escolha pelas partes carecem de legitimidade democrática e de completude, sendo necessária sua suplementação com leis domésticas.492
Por outro lado, tendo em vista a prática de utilização de normas não estatais como lei aplicável em contratos sujeitos à arbitragem, alguns autores sustentam ser desejável permitir também que as cortes estatais possam apreciar tal construção jurídica, passando a aplicar diretamente normas não estatais a relações contratuais, desde que resguardada a ordem pública do foro e do país com o qual o contrato mantem vínculos mais estreitos.493
Perante o Conselho Europeu, a proposta da Comissão quanto ao Art. 3º (§2º) não foi bem recebida. Além das objeções destacadas acima, o governo da Espanha ressaltou não haver demanda prática para a inclusão de tal dispositivo, de tal modo que o considerou arriscado, tendo em vista a inexistência de um instrumento europeu relativo a regras de Direito contratual material494 que pudesse figurar como lei aplicável em substituição a um Direito estatal.
Mesmo os Estados-Membros que expressaram visões favoráveis à proposta, fizeram- no sob a condição de se alterar a redação do dispositivo para esclarecer quais instrumentos estariam disponíveis para escolha de lei aplicável pelas partes, sugerindo a inclusão de requisitos mínimos que servissem como critérios aos intérpretes na análise da cláusula de escolha da lei aplicável.495 A delegação da Finlândia, por exemplo, junto ao Conselho Europeu, propôs que o Art. 3º (§2º) fosse excluído da proposta legislativa e, com endosso da
490 HEISS. Xxxxxx. Party Autonomy. In: FERRARI, Xxxxxx; LIEBE, Xxxxxx (Eds.) Rome I Regulation: the law
applicable to contractual obligations in Europe. Munique: Xxxxxxx, 0000. p. 1-16, p. 10.
491 XXXXXXX, Xxxx. Cadre commun de réference et droit international privé. In: XXXXXXX, Xxxxxx. Common Frame of Reference and Existing EC Contract Law. Munich: Seiller, 2008. p. 263-284, p. 271.
492 HEISS. Xxxxxx. Party Autonomy. In: FERRARI, Xxxxxx; LIEBE, Xxxxxx (Eds.) Rome I Regulation: the law applicable to contractual obligations in Europe. Munique: Xxxxxxx, 0000. x. 0-00, x. 00.
000 XXXXX, Xxx. Some Issues Relating to the Law Applicable to Contractual Obligations. King’s College Law
Journal, v. 7, p. 55-74, 1996-1997, p. 64.
494 XxXXXXXXX, Xxxxxxx. The Rome I Regulation on the Law Applicable to Contractual Obligations. Oxford: Oxford University Press, 2015. p. 150.
495 XxXXXXXXX, Xxxxxxx. The Rome I Regulation on the Law Applicable to Contractual Obligations. Oxford: Oxford University Press, 2015. p. 151.
delegação da Alemanha, recebeu apoio de outros Estados-Membros. Na proposta apresentada
após deliberações no Conselho Europeu, tal dispositivo acabou sendo suprimido.496
Todavia, o Comitê Econômico Social e o Parlamento Europeu continuavam favoráveis à manutenção de referências a um futuro instrumento europeu de Direito contratual material no Art. 3º (§2º). Diante da posição do Conselho, o Parlamento propôs novas emendas ao projeto, preservando a possibilidade de se eleger princípios e regras de Direito contratual material, desde que tais princípios e regras tenham sido incorporados em um instrumento europeu.497 A aplicação de tais princípios e regras restaria sujeita às normas de aplicação imediata incidentes na ausência de escolha de lei aplicável.498 Tais emendas fundamentam-se na justificativa do relator de que o conteúdo de princípios e regras não estatais passíveis de escolha pelas partes deveria passar por escrutínio do Parlamento, o que conferiria segurança jurídica e maior clareza quanto aos instrumentos que possam ser eleitos pelas partes.499 Essas emendas, no entanto, não foram consideradas nos textos subsequentes da proposta.500
A versão final do Art. 3º do Regulamento Roma I, adotada em 17 de Junho de 2008, não contém referência a normas não estatais e, resguardadas as modificações, de forma geral, conserva a fórmula introduzida pela Convenção de Roma.501 Conforme o dispositivo, apenas um Direito estatal pode ser objeto de uma cláusula de escolha de lei aplicável.502 Nesse sentido, Xxx Xxxxxxx afirma que “a mais forte autoridade contra a escolha de normas não estatais como lei aplicável é a leitura conjunta do considerando n. 13 com os trabalhos
496 CONSELHO EUROPEU. Council Document 6935/07 JUSTCIV 44 CODEC 168. Brussels, 2 march 2007. Disponível em: <xxxxx://xxxx.xxxxxxxxx.xxxxxx.xx/xxx/xxxxxxxx/XX-0000-0000-XXXX/xx/xxx>.
497 PARLAMENTO EUROPEU. Comite de Assuntos jurídicos. Proposal for a regulation of the European Parliament and of the Council on the law applicable to contractualobligations (Rome I). Amendment 90 Art. 3º, paragraph 2º. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxxxxx.xx/xxxxxxxx/0000_0000/xxxxxxxxx/xx/000/000000/000000xx.xxx>.
498 PARLAMENTO EUROPEU. Comite de Assuntos jurídicos. Proposal for a regulation of the European Parliament and of the Council on the law applicable to contractualobligations (Rome I). Amendment 87 Recital
7 Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxxxxx.xx/xxxxxxxx/0000_0000/xxxxxxxxx/xx/000/000000/000000xx.xxx>.
499 PARLAMENTO EUROPEU. Comite de Assuntos jurídicos. Proposal for a regulation of the European Parliament and of the Council on the law applicable to contractualobligations (Rome I). Amendment 90 Art. 3º, paragraph 2º. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxxxxx.xx/xxxxxxxx/0000_0000/xxxxxxxxx/xx/000/000000/000000xx.xxx>.
500 XxXXXXXXX, Xxxxxxx. The Rome I Regulation on the Law Applicable to Contractual Obligations. Oxford: Oxford University Press, 2015. p. 153.
501 XXXX, Xxxxx Xxxxxx. Non-state law in party autonomy–a European perspective. International Journal of Private Law, x. 0, x. 0, x. 00-00, 0000, x. 00. XXXXX, Xxxxxxxxx. Article 3: Freedom of Choice. In FERRARI, Xxxxxx (Ed.). Rome I Regulation: Pocket Commentary. Munich: Seiller, 2015. p. 78.
000 XXXX, Xxxxxxx. Choice of Law by the Parties in European Private International Law (January 21, 2012). MAX PLANCK ENCYCLOPEDIA OF EUROPEAN PRIVATE LAW. XXXXXXX, Xxxxxx; XXXX, Xxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxxxxxx. (Eds.) Oxford University Press, 2012. p. 5. Disponível em::<xxxxx://xxxx.xxx/xxxxxxxxx0000000>.
preparatórios [do Regulamento]”.503 Pode-se dizer, então, que o Regulamento evitou prover uma resposta ao status das normas não estatais no Direito Comercial Internacional.504
2.2.3.1 A incorporação de normas não estatais por referência
Apesar de não permitir a escolha de normas não estatais como lei aplicável, a versão final do Regulamento Roma I não deixou de mencioná-las. Como forma de conciliar as posições do Parlamento e do Conselho Europeus, foram incluídos no Regulamento dois Considerandos referindo expressamente a normas não estatais.505
Os Considerandos n.º 13 e n.º 14 dispõem, respectivamente, sobre a possibilidade de se incluir em um contrato normas não estatais por referência e a possibilidade de se eleger como lei aplicável um futuro instrumento europeu de Direito contratual material.506
McParland ressalta que a previsão do Considerando n.º 13 representa a tentativa falha do Parlamento em preservar a proposta de inclusão do Art. 3º (§2º), traduzindo a intenção desse último em conceder a contratantes, sob o regime do Regulamento, a faculdade de se eleger normas não estatais como lei aplicável.507 Na verdade, a incorporação por referência de um conjunto de normas, oriundas de direito estatal ou de normas não estatais, destina-se ao delineamento do conteúdo do contrato.508 Tal conjunto de normas será aplicável desde que não contrarie disposições imperativas da lei aplicável ao contrato, identificada conforme as regras de conflito incidentes.509
503 VAN XXXXXXX, Xxxxx. European Private International Law. Oxford: Hart Publishing, 2016, p. 213.
504 XXXX, Xxxxx Xxxxxx. Non-state law in party autonomy–a European perspective. International Journal of Private Law, x. 0, x. 0, x. 00-00, 0000, x. 00. XXXXX, Xxxxxxxxx. Article 3: Freedom of Choice. In FERRARI, Xxxxxx (Ed.). Rome I Regulation: Pocket Commentary. Munich: Seiller, 2015, p. 78.
505 XXXX, Xxxxx Xxxxxx. Non-state law in party autonomy–a European perspective. International Journal of Private Law, v. 5, n. 1, p. 22-39, 2012, p. 27.
506 Considerando n.º 13 “O presente regulamento não impede as partes de incluírem, por referência, no seu contrato um corpo legislativo não estatal ou uma convenção internacional”. n.º 14 “Caso a Comunidade venha a aprovar num instrumento jurídico adequado regras de direito material dos contratos, incluindo termos e condições normalizados, esse instrumento poderá prever a possibilidade de as partes optarem por aplicar essas regras”. UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I). OJL, v. 177, n. 04.7, 2008. Disponível em: <xxxxx://xxx-xxx.xxxxxx.xx/xxxxx-xxxxxxx/XX/XXX/?xxxxxxxxx%0X00000X0000>.
507 XxXXXXXXX, Xxxxxxx. The Rome I Regulation on the Law Applicable to Contractual Obligations.
Oxford: Oxford University Press, 2015. p. 153.
508 XXXXX, Xxxx. Introduction. In: XXXXX, Xxxx. Party Autonomy in Private International Law. Cambridge University Press, 2018. p. 1-28.Disponível em: <xxxx://xx.xxx.xxx/00.0000/0000000000000.000>.
509 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. La ley aplicable a los contratos internacionales. International Law: Revista Colombiana de Derecho Internacional, n. 21, p. 117-157, 2012, p. 127.
As normas incorporadas por referência se tornam parte do acordo estabelecido entre as partes. Segundo Xxxxx, não se destinam a estabelecer a lei aplicável ao contrato segundo o Direito Internacional Privado, sendo apenas uma prerrogativa derivada da autonomia contratual.510 Dessa forma, Heiss destaca que o Considerando “não declara mais do que o óbvio”.511
Xxxx ressalta que para alguns autores a redação do Considerando n.º 13 implicitamente impede a escolha de normas não estatais como lei aplicável.512 Para Behr, a redação do considerando permite levantar duas hipóteses: (i) a de que a escolha de normas não estatais como lei aplicável equivale à escolha de um Direito estatal; ou (ii) as normas não estatais seriam apenas uma parte dos termos do contrato, sujeito a um Direito estatal.513 Apenas a segunda hipótese reflete verdadeiramente a intenção do legislador europeu. Xxx Xxxxxxx, por sua vez, não questiona o objetivo da redação, mas sim sua interpretação; o autor destaca não estar claro se o mecanismo “por referência” pode significar a simples menção a um corpo legislativo não estatal ou, então, se seria necessária a inclusão literal das normas específicas que se deseja incorporar, recomendando aos contratantes que prossigam pela última opção.514
A incorporação de determinada lei ou de certos dispositivos a um contrato distingue-se da escolha de lei aplicável.515 Havendo referência, expressa ou implícita, a uma determinada lei como aplicável ao contrato, tal lei será aplicada em sua totalidade, incluindo as modificações legislativas que ocorrerem após a conclusão do contrato. A mesma situação não é o caso para dispositivos incorporados na forma de termos contratuais.516
510 XXXXX, Xxxx. Introduction. In: XXXXX, Xxxx. Party Autonomy in Private International Law. Cambridge University Press, 2018. p. 1-28.Disponível em: <xxxx://xx.xxx.xxx/00.0000/0000000000000.000>. Nesse sentido, as conclusões do Advogado Geral Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, apresentadas ao TJUE no caso DG, EH v. SC Gruber Logistics SRL (C-152/20) e Sindicatul Lucratorilor din Transporturi, TD v. SC Samidani Trans SRL (C-218/20), esclarecem que “[A] técnica da ‘inclusão por referência’ pressupõe um exercício da autonomia da vontade material (e não conflitual)” (grifos do original). UNIÃO EUROPEIA. Tribunal de Justiça da União Europeia. Conclusões do Advogado-Geral n.º Processos apensos C152/20 e C218/20. Edição Provisória.
511 HEISS. Xxxxxx. The Common Frame of Reference (CFR) of European Insurance Contract Law. In: XXXXXXX, Xxxxxx (Ed) Common Frame of Reference and Existing EC Contract Law. Walter de Gruyter, 2009. p. 229-250. p. 11.
512 TANG, Xxxxx Xxxxxx. Non-state law in party autonomy–a European perspective. International Journal of Private Law, v. 5, n. 1, p. 22-39, 2012, p. 27.
513 XXXX, Xxxxxx. Rome I Regulation: A-Mostly-Unified Private International Law of Contractual Relationships within-Most-of the European Union. Journal of Law & Commerce, v. 29, p. 233, 2010.
514 VAN XXXXXXX, Xxxxx. European Private International Law. Oxford: Hart Publishing, 2016, p. 213.
515 MAPESBURY, Xxxx Xxxxxxx. et al. Xxxxx, Xxxxxx and Xxxxxxx on The Conflict of Laws. London: Sweet &
Xxxxxxx, 2006. p. 1571.
516 XXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxxxxx. The European Private International Law of Obligations. 3. ed. Sweet and Maxweel, 2009. p. 137. XXXX, Xxxxx Xxxxxx. Non-state law in party autonomy–a European perspective. International Journal of Private Law, x. 0, x. 0, x. 00-00, 0000, x. 000.
Sob o Regulamento Roma I, uma cláusula designando normas não estatais como lei aplicável é considerada como “ausência de escolha de lei”, levando o intérprete a determinar a lei aplicável conforme o Art. 4º do Regulamento.517 Para Bonomi, tal regime é insatisfatório e acarreta restrições desnecessárias ao princípio da autonomia da vontade, na medida em que a designação de normas não estatais como lei aplicável é cabível em contratos submetidos à arbitragem, respeitando-se a vontade das partes.518
Como visto, em Direito Internacional Privado, uma escolha de lei aplicável derroga a incidência de outras leis potencialmente aplicáveis, incluindo as normas de aplicação imediata destas.519 Sob o regime do Regulamento Roma I, e conforme as regras de Direito Internacional Privado da maioria dos países, a eleição de normas não estatais como lei aplicável leva à incorporação por referência, tornando-as “meras condições contratuais”520, sujeitas ao Direito estatal aplicável à relação jurídica.521
Apesar de haver uma clara distinção teórica, a incorporação por referência e a escolha de lei aplicável podem não ser tão evidentes na prática. Por exemplo, um contrato que não contém escolha expressa de lei aplicável, mas contém referência a uma determinada lei doméstica, pode ter a referência interpretada como expressão da intenção das partes de sujeitar o contrato àquele Direito estatal, ainda que se tenha incluído a referência apenas como termo contratual.522
Em comentário ao Restatement (Second) of the Conflict of Laws, instrumento que orienta a aplicação de regras de Direito Internacional Privado nos Estados Unidos da América, Symeonides destaca a incorporação por referência como mecanismo que permite a incidência de normas não estatais sobre a relação contratual como forma de preencher lacunas
517 XXXXXXXX, Xxxx. Capo II norme uniformi Art. 3º. (Libertà di scelta). In: XXXXXXX, XXXXXXXXX; XXXXXXXX, XXXXXX. Regolamento CE n. 593/2008 del parlamento europeo e del Consiglio del 17 giugno 2008 sulla legge applicabile alle obbligazioni contrattuali (‘Roma I’). Le nuove leggi civili commentate, v. 32, n. ¾, p. 521-959, 2009, p. 619.
518 XXXXXX, Xxxxxx. Conversion of the Rome Convention into an EC Instrument. In: XXXXXX, Xxxxxx.
Yearbook of Private International LawSellier, 2008. p. 66.
519 HEISS. Xxxxxx. The Common Frame of Reference (CFR) of European Insurance Contract Law. In: XXXXXXX, Xxxxxx (Ed) Common Frame of Reference and Existing EC Contract Law. Walter de Gruyter, 2009. p. 229-250. p. 11.
520 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. The creeping codification of the new lex mercatoria. Kluwer Law International BV, 2010. p. 65
521 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. The creeping codification of the new lex mercatoria. Kluwer Law International
BV, 2010. p. 113
522 XXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxxxxx. The European Private International Law of Obligations. 3. ed. Sweet and Maxweel, 2009. p. 137. XXXX, Xxxxx Xxxxxx. Non-state law in party autonomy–a European perspective. International Journal of Private Law, v. 5, n. 1, p. 22-39, 2012, p. 136.
contratuais, levando o intérprete a efetivar as intenções dos contratantes com a referência a
normas não estatais.523
No Regulamento Roma I, apesar da ausência de instrução expressa, a incorporação por referência de normas não estatais é regulada pela lei aplicável, determinada de acordo com as regras do Regulamento,524 de forma que seus efeitos se sujeitam à interpretação conforme a lei doméstica aplicável, mantendo a mesma posição adotada pela Convenção de Roma.525
Tendo isso em vista, o capítulo seguinte desta dissertação será dedicado a examinar os limites impostos à escolha de lei aplicável e à incorporação por referência, estabelecidos pelo Regulamento Roma I.
523 SYMEONIDES, Xxxxxx X. Contracts Subject to Non-State Norms. The American Journal of Comparative Law, v. 54, 2006, p. 209–231. Disponível em: <xxx.xxxxx.xxx/xxxxxx/00000000>. Accesso em: 2 mai. 2021. p. 216.
524 Artigo 10 (§1º) do Regulamento Roma I. “A existência e a validade substancial do contrato ou de alguma das suas disposições são reguladas pela lei que seria aplicável, por força do presente regulamento, se o contrato ou a disposição fossem válidos”.
525 XxXXXXXXX, Xxxxxxx. The Rome I Regulation on the Law Applicable to Contractual Obligations. Oxford: Oxford University Press, 2015. p. 155.