RESUMO
Contratados angolanos nas roças de São Tomé e Príncipe (1875-1899)
Para o desenvolvimento das roças seria a utilização de mão de obra barata e da imposição do trabalho forçado?
Xxx Xxxxx Pires Lobo1
RESUMO
A partir da segunda metade do século XIX, dá-se início ao desenvolvimento das roças de café e cacau em São Tomé e Príncipe. Esse arquipélago ia se transfigurando em uma colónia de plantação. No entanto, considerando a falta de recursos financeiros e industriais da potência colonizadora – Portugal –
, a única força produtiva para o desenvolvimento das roças seria a utilização de mão de obra barata e da imposição do trabalho forçado. Contudo, São Tomé e Príncipe, além de ter um baixo índice demográfico, os nativos santomenses recusavam-se ao trabalho das roças (plantação, cultivo e outras atividades de campo) e também esses nativos, em princípio, eram proprietários de roças de café e cacau. Consequentemente, o governo colonial português, ao longo desse período, foi decretando uma série de leis com vistas ao recrutamento e emigração de mão de obra barata e intensiva em outras colônias portuguesas na África, particularmente em Angola.
Palavras-chave: Contrato de trabalho. Recrutamento de mão de obra. Roça de café e cacau, Angola, São Tomé e Príncipe.
ABSTRACT
Since the second half of the 19th century, the coffee and cocoa plantations from São Tomé and Príncipe started to developed. Nevertheless, considering the lack of financial and industrial resources of the colonial power, i. e., Portugal, the only productive force for the roças development would be the employ of cheap labour and imposition of forced labour. Meanwhile, besides low demographic rate of the islands, their natives refused to work at roças (planting, growing and other related activities) and also because those natives were themselves, roças owners of cocoa and coffee. Consequently, the Portuguese colonial goverment, during that period, a succession decrees and laws were applied having in view the recruiting and emigration of intensive and cheap labour in other Portuguese colonies in Africa, particularly from Angola.
Key-words: Labour agreement. Recruiting of labour. Coffee and cocoa plantations, Angola, São Tomé e Príncipe.
1 Prof. Auxiliar – ISCED de Luanda
RÉSUMÉ
C’est à partir de la seconde moitié du XIX siècle que commence le développement des plantations de cacao à São Tome e Príncipe. Cet archipel c’est ainsi transformé en une colonie agricole. Face au manque de ressources financières et industriel, la puissance colonial – Portugal- constate qu’ils ne pouvaient développer les plantations que en contant sur une main d’œuvre humaines disponible et bon marché, á la quel ils imposent le travail forcé. Néanmoins São Tome e Príncipe avaient un faible índice démographique des natalités et les natifs refusaient de travailler dans les plantations (semi, récolte et toute autres activités lie à cette culture) depuis et les habitants de Príncipe étaient les propriétaires des plantations de café et cacao. Par conséquent le pouvoir colonial portugais décrétait une série de lois visant le recrutement et l’immigration une main d’œuvre bon marché venant des autres colonies portugaises en Afrique, en particulier d’Angola au long de cette période.
Mot-clé: Contrat de travail. Recrutement de main d’oeuvre, Plantation de café et cacao, Angola. São Tomé e Príncipe.
Resumen
A partir de la segunda mitad del siglo XIX se inició el desarrollo de las plantaciones de café y cacao en Santo Tomé y Príncipe. Este archipiélago se estaba transformando en una colonia de plantaciones. Sin embargo, considerando la falta de recursos económicos e industriales de la potencia colonizadora - Portugal-, la única fuerza productiva para el desarrollo de los campos sería el empleo de mano de obra barata y la imposición de trabajo forzoso. Sin embargo, Santo Tomé y Príncipe, además de tener un índice demográfico bajo, los nativos de Santo Tomé se negaron a trabajar en el campo (siembra, cultivo y otras actividades del campo) y estos nativos, en principio, también poseían Campos de café y cacao. En consecuencia, el gobierno colonial portugués, durante ese período, promulgó una serie de leyes destinadas al reclutamiento y la emigración de mano de obra barata e intensiva en otras colonias portuguesas en África, particularmente en Angola.
Palabras clave: Contrato de trabajo. Contratación laboral. Plantación de café y cacao, Angola, São Tomé e Príncipe.
Introdução
Os contratos de trabalho para a prestação de serviço agrícola nas roças de cacau em São Tomé e Príncipe tiveram como fundamento a política de emancipação dos libertos e da institucionalização do trabalho livre e assalariado nas então colônias de Portugal na África. 2 Essa política foi idealizada pelos adeptos da corrente abolicionista, destacando-se o Marquês de Xx Xxxxxxxx, membro do governo português que, apesar da oposição dos mais radicais defensores da continuidade do estado de escravidão nas colônias africanas, conseguiu apresentar à Câmara de Lisboa, no dia 13 de janeiro de 1874, um projeto de lei em que previa a extinção da condição de liberto. Tal projeto foi convertido em Lei no dia 29 de abril de 1875, e entrou em vigor um ano após sua publicação.
Os contratados de Angola e as roças de cacau em São Tomé e Príncipe
A Lei de 29 de abril de 1875 impunha algumas restrições aos ex-libertos, que ficariam sujeitos à tutela pública até 29 de abril de 1878, e prestariam serviço por mais dois anos, de preferência aos seus antigos patrões. Quando os ex-libertos em São Tomé tiveram conhecimento dessa circunstância, organizaram uma revolta exigindo o fim imediato da escravidão, abandonaram as roças nos anos de 1875 e 1876, instalou-se uma crise de oferta de mão de obra em São Tomé, pondo em risco a produção de café e cacau.3 A respeito desse momento da História das ilhas, Seibert (2015, p. 110) enfatiza que:
Conforme uma lei aprovada em 1875, a abolição da escravatura no império colonial português estava prevista para o ano seguinte, quando receberam essa notícia, os escravos em São Tomé deixaram as plantações e manifestaram-se na cidade a favor do fim imediato de escravatura […], os escravos recém-libertos recusaram-se a voltar às plantações em regime assalariado.
Perante o impacto da revolta, em 1875 o governo colonial de São Tomé e Príncipe aboliu a escravatura. Os libertos passaram a ser chamados de “forros gregorianos”, esses se recusaram
2 O Tratado de 3 de julho de 1842, o Regulamento de 25 de outubro de 1853 e o Decreto de 14 de dezembro de 1854 vão criar uma categoria intermediaria – o liberto –, em relação ao homem livre e ao escravo (ANGOLA, 1997).
3 O termo “roça” foi vulgarizado a partir da decadência do ciclo do açúcar. As primeiras roças de café e cacau foram organizadas em torno dos antigos engenhos, situados no Nordeste, localizadas perto do mar, e que a esta altura tinham sido suplantadas pela densa floresta. Para a reimplantação e reocupação desses espaços e, posteriormente, de outros novos, foram usados os métodos de desmatação da floresta tropical, de capinagem e de roçar. Por isso, o vocábulo foi facilmente projetado para os espaços ou propriedades dedicadas à cultura de café e cacau.
a voltar para as roças como trabalhadores assalariados (SEIBERT, 2015). Para superar a crise de mão de obra, o governo colonial português, pressionado pelos roceiros, recrutou trabalhadores no Gabão, Libéria, Daomé (atual Benim), além de ter intensificado o recrutamento a partir de Angola.
Sobre esse aspeto, Xxxxxx Xxxxxx (2009, p. 91) observa que:
Durante o primeiro ano agrícola completo sob o novo regime laboral (1876-77), os efectivos foram reconstituídos em parte com novos contingentes. Havia agora três grupos quanto a região de origem. Por ordem decrescente: “angolas”, isto é, população embarcada em portos angolanos (40%); krooos/liberianos, contratados em 1876-77 (30%); “gabões” (24%). Tanto as “angolas” como os “gabões” faziam parte da população anteriormente importada como escrava, sendo que parte dela o havia sido clandestinamente.
A partir da Lei de 29 de abril de 1875, a mão de obra contratada para prestação de serviços nos empreendimentos coloniais passou a ser designada de “serviçais”. Em Angola, os serviçais foram vulgarmente chamados de “contratados”, devido a um suposto contrato de trabalho que tinham que assinar. Quem seriam os serviçais ou contratados em Angola? A resposta a essa pergunta pode ser encontrada na constituição de dois grupos socioculturais surgidos ao longo da ocupação colonial desse país: o grupo dos “civilizados” e o dos “não civilizados”.
O grupo dos “civilizados” era constituído por todos os indivíduos brancos, nascidos, quer na colônia, quer na metrópole, independentemente de sua condição econômica, social e nível acadêmico, desde que fossem brancos detinham o status de civilizados. Além dos brancos, abrangia um setor da população africana, os lusodescendentes (mestiços) e os negros que tivessem adquirido hábitos e costumes europeus. Esse grupo geralmente residia nos núcleos coloniais de Luanda e Benguela. Devido à fragilidade da presença colonial em Angola e de alguns direitos políticos e civis que esses africanos considerados como civilizados usufruíam, conseguiram granjear, até meados da primeira década do século XX, posições como funcionários da administração colonial portuguesa (RODRIGUES, 2003).
O outro setor da população negra africana, por conseguinte, majoritariamente compunha o grupo dos “não civilizados” ou “indígenas” – este termo é oficial e recorrente em documentos emitidos pelo poder colonial, a partir do século XIX. Essa população mantinha e exibia os valores, costumes e hábitos de sua identidade étnico-cultural africana. Foi essa população que,
a partir da segunda metade do século XIX, esteve sujeita ao recrutamento, à emigração e ao trabalho contratado nas roças de café e cacau em São Tomé e Príncipe.4
A partir dessa lei, foram estabelecidas as seguintes espécies de contrato: a) “Os contratos destinados à prestação de trabalho; b) Os contratos destinados à prestação de trabalho e colonização por concessão de terras; c) Os contratos destinados à colonização por concessão de terras; e d) Os contratos destinados à prestação de serviço na própria província e para servir em província diferente” (PORTUGAL, 1875, p. 3).
Os serviçais recrutados para prestarem serviço agrícola nas roças de cacau em São Tomé e Príncipe encaixavam-se na espécie de contrato para servir em província diferente. Eram considerados serviçais os contratados para prestação de serviço e aprendizado, tendo sido pré- determinado que o tempo de contrato para os serviçais era de 5 anos e para os aprendizes, 10 anos.
Com o objetivo de controlar e garantir todo o processo de recrutamento e emigração dos serviçais, assim como sua vida laboral e social em São Tomé e Príncipe, o governo colonial criou a Curadoria Geral dos Serviçais e Colonos de São Tomé, e institui o cargo de Curador Geral, concedendo-lhe amplos poderes. Este passou a ser o protetor nato dos serviçais e colonos e foi-lhe atribuído o direito excepcional de se comunicar diretamente com o Ministério da Marinha e Ultramar e com os governadores das outras colônias (PORTUGAL, 1875).
O governo colonial alegava que era necessário conceder tais poderes ao curador geral, devido ao “estado de civilização” dos africanos, já que esses não estavam “habilitados” para promoverem, por si mesmos, a manutenção dos seus direitos de cidadãos livres, e que, consequentemente, necessitavam de uma proteção especial das autoridades (BABO, 1916). Configurava-se, dessa maneira, uma política paternalista na qual o africano era considerado como uma criança adulta, sem capacidade de exercer plenamente os seus direitos civis.
A partir de 1875, as delegações da Curadoria Geral de Serviçais e Colonos de São Tomé, em Angola foram instaladas nas administrações dos concelhos, destacando-se as dos Concelhos de Cambambe e Catumbela. Era nesses núcleos que se celebravam os contratos de trabalho e o registro oficial dos serviçais ou contratados para as roças de São Tomé e Príncipe. A partir daí, os serviçais eram encaminhados para os portos de Luanda e Benguela e, posteriormente, embarcados para as referidas ilhas.5
4 Arquivo Nacional de Angola (ANA) Códs. 84-6-2-13; 54-6-1-54; 3-2-22; Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) Cx. 56. Cap. 176, Fundo Mantero (FM) 0434; Cx. 149. Cap. 35. XX 0000.
5 ANA Cód. 4-2-19; 4-2-44.
A Lei de 29 de abril de 1875 determinou que os patrões ou xxxx deveriam fornecer salário, alimento, alojamento, vestuário e assistência médica aos serviçais, no entanto, não previu o repatriamento dessas pessoas para as suas terras de origem. Isso permitiu que os contratados de Angola e os seus descendentes permanecessem, durante anos ou por toda a vida, em São Tomé e Príncipe.
Diante da necessidade de ter uma mão de obra contratada e barata, e de enquadrá-la ao novo contexto laboral, em 21 de novembro de 1878, o governo colonial português promulgou de forma detalhada o Regulamento para os Contratos de Serviçais e Colonos nas Províncias da África Portuguesa (PORTUGAL, 1878).
Intensificação do recrutamento e emigração dos contratados de Angola para as roças em São Tomé e Príncipe
Segundo, o Regulamento para os Contratos de Serviçais e Colonos nas Províncias da África Portuguesa, os contratos de trabalho para as colônias deveriam obedecer às regulamentações estipuladas pelo Código Civil Português de 1867. Conforme constava no Livro II – “Dos direitos que se adquirem por facto e a vontade própria de outrem”, no Titulo I, “Dos contractos e obrigações em geral”, o artigo 641.º designava contrato como sendo o “acordo por que duas ou mais pessoas transferem entre si algum direito, o que sujeita a alguma obrigação” (PORTUGAL, 1868, p. 118). As disposições legais desse assunto não poderiam ser aplicadas em Angola, visto que se tratava de uma sociedade totalmente diferente. Os africanos sequer tinham noção dessas leis e não havia como cumpri-las, a não ser pela imposição ou sujeição.
Nesse regulamento ficou acordado que os contratos poderiam ser estabelecidos de forma verbal ou escrita (PORTUGAL, 1878). Desse modo, questiona-se: como os contratados de Angola aceitariam e assinariam esses contratos, uma vez que eles não sabiam ler, escrever e falar fluentemente o português?
Por outro lado, os funcionários das agências da Curadoria Geral dos Serviçais e Colonos de São Tomé e os agentes contratadores não podiam se comunicar com os contratados em suas línguas nativas. Mesmo que esses agentes estivessem acompanhados de intérpretes na época da celebração dos contratos, eles não explicavam aos contratados que partiriam para São Tomé e que ficariam longe de suas famílias e incomunicáveis, longe de sua terra e que nunca mais
regressariam. Dessa forma, a celebração desses contratos era feita de forma desonesta e ludibriosa.
Xxxxxxx Xxxxxxx (1979), o cidadão inglês Xxxx Xxxx, após ter visitado Angola e observado como os contratos eram firmados, publicou um livro em 1883, intitulado Rebus Africanus, expondo a forma de como esses contratos eram celebrados:
[…] os escravos vindos de Catumbela e Benguela são abordados em Luanda por agentes administrativos portugueses, que depois de lhes registarem o nome fazem perguntas tão estúpidas como “tens fome?”, “queres comer alguma coisa?”, etc., de forma a obterem deles uma resposta positiva que possa parecer adesão ao contrato. (ALMEIDA, 1979, p. 230).
Outra questão enfatizada nesses regulamentos foi a “vadiagem”. O governo colonial, ciente da repulsa dos africanos ao trabalho contratado e da necessidade de se obter nas colônias mão de obra barata, intensiva e disponível para prestação de serviços nos empreendimentos coloniais, estrategicamente apropriou-se do Art. 256 do Código Penal Português, que criminalizava a vadiagem.
Segundo Xxxxxxxxx Xxxxxxxx (2008, p. 17):
Nos termos do código penal português vadio era conceitualizado como sendo “aquele que não tem domicilio certo em que habite, nem meios de subsistência, nem exercita habitualmente alguma profissão, ou oficio, ou outro mister em que ganhe sua vida, não provando necessidade de força maior, que justifique de se achar nestas circunstâncias”.
Com base nesse artigo, quem seriam os vadios em Angola? Se os africanos habitavam suas terras, tinham as suas casas e desempenhavam várias atividades econômicas. Foi necessário arranjar outros elementos que tipificassem os africanos como vadios. O regulamento em análise considerava como vadios os indivíduos que se recusassem a ser contratados ou os que abandonassem o trabalho oferecido pelas autoridades coloniais. Consequentemente, nesse regulamento foram definidas três modalidades de trabalho, a saber: o “trabalho voluntário”, o “trabalho compulsivo” e o “trabalho correcional”.
O trabalho era voluntário quando os africanos saiam em busca de emprego nos empreendimentos coloniais. O trabalho era “compelido” quando os africanos se recusavam a trabalhar ou fugiam do lugar onde lhe havia sido oferecido trabalho. Caso desobedecessem à intimação e resistissem à ação compulsória, eram capturados e apresentados ao curador ou aos seus agentes para serem julgados como vadios e condenados ao “trabalho correcional”.
Na prática, as três modalidades de trabalho se configuravam como funções compulsórias. Na metrópole as pessoas que não tinham onde viver e se não quisessem trabalhar
incorriam a uma pena de seis meses de trabalho obrigatório (XXXXXXXX, 2008, p. 17). Quanto aos africanos, o Art. 90 desse regulamento determinava que:
Os indivíduos que nas condições do artigo 256º do código penal forem julgados vadios serão sujeitos ao trabalho obrigatório até dois anos nos estabelecimentos do estado, que para isso forem especialmente criados, ou nas fortalezas e obras publicas da província, e receberão o salário que for estabelecido pelo respectivo governador em conselho. (PORTUGAL, 1878, p. 7).
Para os que se recusassem a trabalhar, o Art. 97 sublinha que:
Se um, ou mais servições ou colonos sós ou reunidos, se recusarem formalmente a trabalhar nos termos do seu contrato, sem motivo justificado de escusa, serão por esse facto considerados como vadios para todos os efeitos deste regulamento, nos termos do artigo 90.º. (PORTUGAL, 1878, p. 8).
O Art. 98, por sua vez, foi mais longe, determinando que o indivíduo que desse abrigo a um contratado foragido, pagaria uma multa de 20.500 a 50.500 reis.
Nesse regulamento também ficou estabelecido que os patrões deveriam fornecer alimentação, vestuário, salário, alojamento e assistência médica aos contratados, porém, se o contratado fosse julgado como vadio, além de ser submetido ao trabalho correcional nos estabelecimentos públicos ou privados, também perderia a ração e o salário. Trata-se, de fato, de outro subterfúgio para coagi-lo ao cumprimento obrigatório do contrato de trabalho.
Dessa forma, o contrato foi um ato obrigatório e a vadiagem requeria uma condenação judicial. Essas leis, além de permitirem a obtenção de mão de obra barata e o cumprimento obrigatório dos contratos, foram mecanismos jurídicos que objetivavam a fixação e acomodação dos contratados ao ambiente das roças.
O aparecimento progressivo de roças e os impasses que os ingleses impunham ao recrutamento de serviçais da Libéria e Serra Leoa para São Tomé e Príncipe vão determinar que, a partir de 1879, o recrutamento e a emigração de mão de obra contratada fosse substancialmente realizada em Angola (SANTOS, 2009, p. 91).6
O envio exclusivo de contratados de Angola para São Tomé se estendeu até a primeira década do século XX, quando começaram a ser recrutados trabalhadores de outras colônias portuguesas: Cabo-Verde, em 1903 (NASCIMENTO, 2001) e Moçambique a partir de 1908 (NASCIMENTO, 2011).
6ANA Códs. 4-2-19, 4-2-44, 5-5-16, 4-3-39, 32-1-52, 32-2-31, 32-1, 41, 5-3-21, 253; AHU – Cx. nº 56, cap. 176.
FM 0434, AHU – Cx., 149. Cap. 35. FM 1137 – AHSTP – Cx. nº 147, pasta, cota 2-4-4-6.
Conforme a Lei de 29 de abril de 1875 e o Regulamento para os Contratos de Serviçais e Colonos nas Províncias da África Portuguesa, determinou-se que os colonos seriam contratados para prestação de trabalho e colonização por concessão de terras ou para colonização por concessão de terras – nos registros consultados não há referência de concessão de lotes de terras aos colonos contratados.
Por exemplo, o registo de serviçais e colonos celebrados na Administração do Concelho de Cambambe aponta que no dia 10 de janeiro de 1879, a bordo do vapor Silva Americano, seguiram para Luanda 126 colonos devidamente contratados pela delegação desse concelho para prestação de serviço agrícola na Província de São Tomé, sendo 1 para Xxxxxx xxXxxxxxxx Xxxxx, 2 para Manoel da Trindade do Nascimento Neto, 4 para a Sucursal do BNU, 10 para Xxxx Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxxx, 38 para Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx e Companhia e o restante para Xxxxxxx Xxxx Xxxxx. Os colonos não foram vacinados.7 E ao que tudo indica, os colonos eram contratados somente para prestação de serviço agrícola nas roças.
Toda essa mão de obra era recrutada mediante um conjunto de práticas ilícitas: raptos, escravidão por dívidas (MALUMBU, 2005; SANTOS, 2009); comércio inter-regional de escravos (HENRIQUES, 1997; HEINTZE, 2004) e conflitos entre africanos e o governo colonial português (PÉLISSIER, 1986; FERREIRA, 2012).
Como o Art.º. 55 do Regulamento para os Contratos de Serviçais e Colonos nas Províncias da África Portuguesa tinha determinado que os africanos resgatados em terras avassaladas a Portugal ou em país estranho, ou seja, os reféns produzidos por esse conjunto de práticas, seriam livres se fossem contratados como trabalhadores assalariados (Portugal, 1878). Essa lei permitiu que os roceiros e seus recrutadores em Angola arregimentassem mão de obra para as suas roças. Conforme se pode ver no mapa de registo de serviçais resgatados no Libolo:8
Mappa dos serviçais resgatados no sertão do Libollo e devidamente contratados na delegação desta curadoria geral no Concelho de Cambambe sendo o agente contratador Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx como procurador dos agricultores abaixo mencionados rezidentes em S. Tome para ali prestarem serviços agrícolas, aprendizagem de carpinteiro e cozinheiro no espaço de cinco anos e dez anos na conformidade do art.º 27 do regulamento geral. Os quais seguem para aquella localidade a bordo do navio portuguez “Benguella” devidamente autorizado.9
7 ANA Cód. 4-2-19.
8 O Libolo é uma região da província do Cuanza Sul. Nesse período, a presença portuguesa nas regiões do Cuanza Sul era ténue. Por isso, nos mapas de registo de serviçais e colonos não constam as áreas onde esses africanos foram resgatados ou angariados, aparecendo apenas como resgatados no sertão do Libolo.
9 ANA. Cx. 3241.
A partir do posto de Calulo, que nesse período era a sede da Circunscrição do Libolo, esses resgatados eram encaminhados para a sede do Concelho de Cambambe, no Dondo, onde eram estabelecidos os contratos de trabalho. As caravanas dos contratados utilizavam as mesmas vias comercias que interligavam as diversas regiões de Angola (HENRIQUES, 1997; FREUDENTHAL, 2005). Assim, os resgatados teriam que percorrer a pé aproximadamente 117 km de distância, entre Calulo e o Dondo. Cumpridas as formalidades no Dondo, daí seguiam para Luanda, cuja viagem poderia ser feita de duas maneiras: os resgatados percorriam a pé mais uma distância de 178 km, percorrendo assim, um trecho de aproximadamente 295 km, e a partir do porto de Luanda eram transportados para São Tomé e Príncipe; a outra maneira, era a partir do porto fluvial do Dondo (ANGOLA, 2015), os serviçais eram embarcados diretamente para São Tomé e Príncipe.10
A distância marítima entre Luanda e São Tomé é de 1250 km, equivalentes a 777 milhas. 11 Levando-se em consideração as datas de duas viagens realizadas pelo vapor Silva Americano, que fazia habitualmente o transporte de mão de obra para as referidas ilhas, esse navio, no dia 2 de janeiro de 1879, saiu do porto fluvial do Dondo transportando 91 colonos, depois de ter feito uma breve escala no porto de Luanda para desembarcar 85 desses colonos, que tinham sido contratados para prestação de serviço nas obras públicas dessa cidade, daí seguiu para São Tomé com os demais colonos, que foram contratados para prestação de serviço agrícola. A outra viagem ocorreu no dia 10 do mesmo mês, o navio saiu novamente do porto fluvial do Dondo, fez o mesmo percurso, dessa vez transportando 126 colonos contratados para prestação de serviço agrícola em São Tomé.12 Daí a conclusão de que a viagem marítima de Angola para São Tomé e Príncipe (e vice-versa) podia ser realizada em aproximadamente oito dias, permitindo, assim, a frequência de viagens entre essas regiões e a exportação intensiva de mão de obra de Angola.
Ainda em relação ao recrutamento e emigração dos contratados de Angola para São Tomé e Príncipe, segundo o Art. 48, os administradores dos concelhos deveriam enviar trimestralmente ao Curador Geral um mapa do registro da mão de obra contratada para São Tomé e Príncipe, nele tinha de ser anotado o nome, filiação, sexo, idade, estado civil,
10 Distância terrestre entre Calulo e Dondo. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx/xx/xxxxxxxxx-xxxxx- calulo-e-dondo-angola/DistanciaHistoria/426418.aspx. Acessado em: 4 de dezembro de 2019.
Distância terrestre entre Dondo e Luanda. Disponível em: xxx.xxxxxxxxx.xxx/xxxxxxxxx-xxxxxx -dondo- 21810.html. Acessado em: 4 de dezembro de 2019.
ANA. Cód. 4-2-19.
11 Distância entre Luanda e São Tomé. Disponível em: xxxxx://xxxxxxxxxxx.xxxx/xx/xxxxxxxx.xxx?xx0x0000000&xx0x0000000. Acessado em: 27 de novembro de 2020.
12 ANA Cód. 4-2-19.
naturalidade e residência em São Tomé, entre outras observações (PORTUGAL, 1878). Contudo, essa orientação nem sempre era cumprida. Dos vários registros consultados há evidencias da ausência dos nomes dos contratados, idade, tempo de serviço, naturalidade e outras informações pertinentes.13
Segundo o registro realizado no dia 11 de outubro de 1880, lê-se o seguinte:
Participo a V Exª que nessa data segue para essa cidade a bordo do vapor Silva Americano 33 serviçais devidamente contratados na delegação deste concelho (Cambambe) pelo agente contratador Xxxxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx, sendo para Loanda 6 do sexo masculino, para a ilha de São Tomé 16, 14 do sexo masculino e 2 do feminino e 13 para o serviço da fazenda de Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx VCª, 2 para o serviço doméstico de Xxxx Xxxxxxx e 1 para o serviço doméstico de Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxx. Para a ilha do Príncipe vão 9 do sexo masculino e 2 do sexo feminino para o serviço doméstico de D. Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx; 1 para a fazenda de Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx, 3 para Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx e 5 para Xxxxxxx Xxxx xx Xxxxx. Os contratados foram todos vacinados.14
Nesse registo, percebe-se que os contratados foram despojados de sua identidade, geralmente eram identificados apenas como “serviçais de Angola” ou “angolas” (SANTOS, 2009; NASCIMENTO, 2013). Uma multiplicidade de povos de diferentes pontos geográficos da África, majoritariamente fora do domínio colonial português, mas, como eram embarcados para São Tomé e Príncipe, a partir dos portos de Angola, eram denominados de “angolas”. Havia apenas a precaução de informar o sexo, o número de contratados requisitados pelos roceiros e verificar se os mesmos tinham sido vacinados. Xxxx não tivessem sido vacinados no momento do embarque, deveriam ser vacinados na hora do desembarque, para evitar que doenças, como varíola e a doença do sono se espalhassem pelas roças.
Não obstante, nesse período ocorreu o encarecimento da mão de obra recrutada em Angola, conforme assevera Xxxxxxx Xxxxxxxxxx (2004, p. 79):
No derradeiro decénio de oitocentos, para contornar os condicionalismos do recrutamento de angolas – com realce para o aumento do preço do resgate, o qual minava as hipóteses de especulação com a mão-de-obra ou, mais simplesmente onerava os custos de elaboração […].
Todavia, o recrutamento e a emigração de mão de obra para as roças de cacau de São Tomé e Príncipe não regrediu, pelo contrário, intensificou-se ainda mais (EYZAGUIRRE, 1986), principalmente nas regiões do Planalto Central. Conforme atestam os mapas de registo de serviçais e colonos realizados na delegação da Curadoria Geral de Serviçais e Colonos de
13 ANA Cód. 4-2-19; Cxs. 215, 1107, 1175, 1659, 3530.
14 ANA Cód. 4-2-19.
Catumbela, por exemplo, o códice 253 indica que entre 11 de Maio 1889 e 11 de Março de 1891 foram registados aproximadamente 6 mil serviçais oriundos do Planalto Central de Angola.15
Entre os principais fatores que contribuíram para o recrudescimento da arregimentação de mão de obra forçada, pode-se apontar: a) A situação geoestratégica do Planalto Central de Angola e a sua densidade populacional; b) O comércio caravaneiro ou a longa distância organizada pelos comerciantes do Planalto Central; c) A experiência e habilidade que os povos daquela região tinham com agricultura (MALUMBU, 2005); d) o fluxo de comerciantes portugueses para o centro da colônia de Angola, a partir da última década do século XIX (SANTOS, 2009).
A região do Planalto Central está situada no Centro de Angola, fazem parte dela as Províncias do Bié, Huambo e Benguela (RÁKÓCZI, 2019). Em termos demográficos, é a área que desde a formação do território de Angola apresenta maior densidade populacional e é constituída maioritariamente pelo grupo étnico Ovimbundu, com os 15 subgrupos regionais: Xxxxxxxx, Xxx, Xxxxx, Xxxxxxxx, Xxxxx, Xxxxxx, Xxxxxxx, Xxxxx, Xxxxxxx, Xxxxxx, Xxxxxxx, Kalukembe, Civula e Cikuma, constituindo mais de um terço da população total de Angola (MALUMBU, 2005).
No século XVII, já era notório a presença dos comerciantes Bienos e Bailundos nos circuitos comerciais de Dondo, Luanda, Benguela, Kassanje e Congo. O êxito do comércio de longa distância dos comerciantes Ovimbundu tinha sido favorecido pela organização do sistema de caravanas comerciais e da posição geoestratégica do Planalto Central de Angola, situado entre a Costa Atlântica e algumas regiões da África Ocidental (XXXXXXXXX XXXX, 1994; HENRIQUES, 1997; MALUMBU, 2005).
Os comerciantes Ovimbundu, além de comercializarem produtos manufaturados de origem europeia e asiática, como tecidos, cauris, missangas, pérolas de vidro, armas de fogo, pólvora, vinho, aguardente, objetos de ferro e de cobre, também comercializavam produtos africanos: cera, mel, sal, marfim, gado e escravos. Em meados do século XIX, a borracha passou a fazer parte da pauta de produtos (MALUMBU, 2005). O comércio de escravos inter-regional e as rotas estabelecidas pelo comércio a longa distância permitiram a obtenção e o trânsito de
15 ANA. Cxs. 31, 45, 82, 119, 193, 215, 236, 248, 361, 1107, 1175, 1659, 2917, 2920, 3358, 34 32, 3531,3654,
326; 3241, 3249, 1269, 1659, 2917, 326, 1659, 2917. Cods. 253, 4-2-19.
ANA. Cód. 253. Administração do Concelho de Catumbela. Registo de serviçais para São Tomé, 11 de Maio de 1889 a 11 de Março de 1891.
mão de obra não apenas proveniente do Planalto Central, como também de algumas regiões circunvizinhas e da África Central.
Segundo os mapas de registo de serviçais realizados pelo Concelho de Catumbela, constam contratados com as seguintes naturalidades: Huambo, Benguela, Bié, Bailundo, Cuito, Catiavala, Garanganja, Ganda, Dombe Grande, Calembe, Galanga, Sambo, Quipeio, Quico, Libolo, Quiçama, Hebo, Caconda, Cassumba, Dulo, Chitembo, Cuemba, Luando, Upache, Hule, Sanpanga, Chicuma, Dala, Bimbe, Lunge, Tunda, Jamba, Hungulo, Chimbenge, Mungo, Sambo, Gombe, Cusso e outras. Das regiões do Leste e Sudeste de Angola, as naturalidades dos contratados confundem-se com a identidade étnica, como é o caso de Luvale, Lunda, Luba, Nganguela, Xinje, Kasanji, Songo, Kazembe, Zambeze e os das regiões da África Central aparecem como Banana, Congo, Luvo, Lualaba, Katanga, Katende, Teke e Kuba.16
A habilidade, a experiência e a disposição dos povos do Planalto Central na lida com a agricultura foram fatores observados pelos recrutadores de mão de obra, que logo passaram a ter preferência em recrutar e contratar mão de obra oriunda do Planalto Central.17
Xxxxxx Xxxxxxx (2005, p. 148) destaca que:
A partir do século XIX a agricultura do otchumbo praticada pelos ovimbundu era já bem conhecida. Nesse tipo de agricultura já era evidente a adaptação da influência da estrutura e das funções familiares na organização da produção agrícola. A agricultura do otchumbo era nesse período uma tarefa particularmente reservada ao homem o qual a alternava com a caça, a recolha de mel silvestre, a construção da habitação familiar e outras tarefas similares.18
O governo colonial, a respeito da postura que os povos dessa região demonstravam em relação ao trabalho agrícola, escreveu:
Os indígenas do Bihé e do Bailundo têm notáveis aptidões de trabalho, que interessa estimular e proteger. São eles os verdadeiros intermediários do comércio do sertão com as feitorias do litoral de Benguella e Novo Redondo e mesmo com as margens do rio Quanza, indo até aos confins da província em busca dos productos mais ricos de permuta. Os seus arimos são tratados com esmero e contribuem para o abastecimento de numerosa população. (ANGOLA, 1902, p. 503).
No âmbito geral, os roceiros tinham preferência em contratar mão de obra masculina e jovem, devido à especificidade dos trabalhos nas roças, ou seja, as atividades eram voltadas
16 A N A. Códs. 240, 253, 4989; Cxs. 31, 45, 82, 119, 193, 215, 236, 296, 439, 1754, 1760, 1762, 1175, 2917);
Arquivo Histórico de São Tomé e Príncipe. Cx.2 86. Cota 2.8.1.2, pasta 3.
17 A atividade agrícola foi facilitada pelo clima temperado e ameno e pela quantidade de recursos hídricos. É nessa região que nascem os principais rios de Angola, a exemplo do Cuanza, Catumbela, Kive, Kuvangu, Cunene e muitos riachos que possibilitaram o aprovisionamento de água para irrigar os campos agrícolas.
18 Otchumbo são campos agrícolas de pequena e média dimensão.
para o desmatamento, abertura de valas, limpeza, plantação e poda dos cacaueiros e outras que exigiam esforço e rotina.19
Levando-se em consideração que nas sociedades rurais de Angola essas atividades eram desempenhadas geralmente por homens, por conta disso, interessava aos roceiros trabalhadores que já tivessem esse tipo de experiência. Entretanto, a retirada de homens adultos e jovens de suas aldeias foi um motivo de desarticulação socioeconômica, já que as mulheres eram obrigadas a realizar todo o tipo de trabalho agrícola, comprometendo assim a divisão social do trabalho, além de levar a mortes, sofrimento, perda de parentes e a fuga de pessoas de suas aldeias.
Diante desses constrangimentos, muitas mulheres eram compelidas ao contrato da mesma forma que os homens, com o principal objetivo de acompanharem os seus cônjuges, irmãos, pais e filhos. Nesse cenário, como os circuitos fornecedores de mão de obra dispunham de mulheres e crianças, desse modo, o recrutamento e emigração para São Tomé também abrangia mulheres e crianças. As mulheres e crianças contratadas exerciam serviços domésticos e agrícolas nas roças.
É oportuno mencionar aqui o caso da serviçal cujo número de contrato era 5.049, de nome Paciência, natural de Seles, de 24 anos de idade, altura 1,64m, contratada para prestação de serviço agrícola na Ilha de São Tomé, na roça de Xxxxxxxxx Xxxxxxx. Segundo o registo, essa contratada usufruiria do salário mensal de 600 reis e iria acompanhada de sua filha de três anos.20
A permissão ou o direito concedido aos contratados/as de levar os seus filhos/as e outros parentes para São Tomé e Príncipe foi uma mais-valia para os roceiros, pois esses teriam um estoque de mão de obra barata e jovem, acomodada ao ambiente das roças.
Quanto à repatriação dos contratados para as suas terras de origem, ficou acordado que os patrões deveriam pagar as despesas de retorno, caso eles desejassem ser repatriados. Todavia, ficou estabelecido o recontrato dos serviçais, quando vencido o prazo de seus contratos (PORTUGAL, 1878). A cláusula sobre o recontrato permitiu que os contratados de Angola fossem sistematicamente recontratados por longos anos e de forma ininterrupta.
A partir de 1890, o recrutamento, a emigração e o trabalho contratado para as roças de São Tomé e Príncipe vão coincidir com o período da ocupação efetiva de Angola. Portugal tinha a necessidade de ocupar efetivamente as suas possessões em África, face às pretensões
19 AHU, Cx. 22, cap. 4, XX 0000.
20 ANA, Cód. 253.
territoriais de outras potências europeias, como foram os casos da Inglaterra, Alemanha e França, que desvalorizavam a versão apresentada por Portugal acerca dos direitos históricos que tinha sobre as suas possessões na África (ALEXANDRE, 2000).
Objetivando realizar a ocupação efetiva, o governo colonial português socorreu-se de informações prestadas por missionários, soldados, comerciantes e exploradores que participaram das viagens de exploração geográfica em Angola (PINTO, 1881; MEMÓRIAS DE UM EXPLORADOR, 2012), além de outros estudos promovidos pela Sociedade de Geografia de Lisboa e das teorias racistas que foram surgindo na Europa (AZEVEDO, 2018) incluindo Portugal, destacavam-se as teorias de Xxxxxxxx Xxxxxxx, mentor do darwinismo social e de seu contemporâneo, Xxxxxxx Xxxx, mentor do Regulamento do Trabalho dos Indígenas de 1899 (SANTOS, 1991; MATOS, 2006).
Essas teorias tinham como objetivo atestar a suposta inferioridade intelectual e cultural dos negros, de modo a justificar o dever e o direito que Portugal tinha de colonizar e civilizar essa população das suas então colônias na África, mediante a política do trabalho indígena (ZAMPARONI, 2007).
Xxxxx Xxxxxxxxxx (1986) refere que no período compreendido entre 1876 e 1900 foram embarcados de Angola para as roças de São Tomé e Príncipe 55.865 contratados (p. 188), conforme atestam os vários registos de serviçais existentes no Arquivo Nacional de Angola.21
Considerações finais
A Lei de 29 de Abril de 1875, a qual determinou a emancipação dos libertos e a institucionalização do trabalho livre e assalariado no Ultramar português, e o Regulamento de 21 de Novembro de 1878, que foi o primeiro documento a regulamentar os contratos de serviçais e colonos nas províncias da África Portuguesa, sancionando o princípio da liberdade de trabalho, constituíram mecanismos legais que permitiram a exploração capitalista dos recursos naturais das colônias e a imposição do trabalho contratado para a prestação de serviços nos empreendimentos coloniais.
As rotas estabelecidas pelo comércio a longa distância, a persistência do comércio de escravos em Angola, até no início do século XX, permitiram o recrutamento e a exportação
21 Arquivo Nacional de Angola. Mapas dos serviçais contratados para os serviços agrícolas nas Ilhas de São Tomé e Príncipe. Caixas nº. 3241, 215, 1107, 1175, 1659, 3530, 3145, 82, 119, 193, 215, 326, 248, 2917, 2920, 3236,
3358, 3432, 3531, 3654, 296, 439, 1754, 1760,1762, 1175, 2917, 236, 3249, 1269, 1659, 2917, 3241, 3249,
1269,1659, 2917, 3238, 450, 451, 698, 699, 700, 3312, 3564, 1366, 1269, 000, 000, 000, 000.
massiva de mão de obra de Angola, “os contratados”, para prestação de serviço agrícola nas roças de café e cacau em São Tomé e Príncipe.
Na verdade, o trabalho escravo foi substituído pelo trabalho “contratado” apenas eufemisticamente, portanto, na prática, o trabalho escravo ainda continuava a existir, pois os africanos considerados indígenas eram obrigados a trabalhar como contratados, em condições idênticas à escravidão.
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. Arquivo Nacional de Angola. Códice 5-3-21. Administração do Concelho de Cambambe. Delegação da Curadoria Geral. Registo de contratos de serviçais e colonos celebrados
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. Arquivo Nacional de Angola. Códice 5-5-16. Administração do Concelho de Cambambe. Delegação da Curadoria Geral. Registo de contratos de serviçais e colonos celebrados (1881-1890).
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. Arquivo Nacional de Angola. Mapas dos serviçais contratados para os serviços agrícolas nas Ilhas de São Tomé e Príncipe. Caixas nº. 3241, 215, 1107, 1175, 1659, 3530,
3145, 82, 119, 193, 215, 326, 248, 2917, 2920, 3236, 3358, 3432, 3531, 3654, 296, 439,
1754,1760,1762, 1175, 2917, 236, 3249, 1269, 1659, 2917, 3241, 3249, 1269,1659, 2917,
3238, 450, 451, 698, 699, 700, 3312, 3564, 1366, 1269, 000, 000, 000, 000.
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