YEARBOOK OF THE NOVA CONSUMER LAB
ANUÁRIO DO NOVA CONSUMER LAB
YEARBOOK OF THE NOVA CONSUMER LAB
Ano 2 – 2020
coordenação
Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx
edição
Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx suforte: eletrónico Dezembro, 2020
ISSN 2184-6200
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UID/DIR/00714/2013.
O Regime Geral da Contratação de Consumo
Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx
1. Introdução
I. Designa-se genericamente como contrato de consumo o contrato con- cluído entre um consumidor e um empresário ou profissional, que tem por objeto um bem, serviço ou direito destinado a um uso não profissional por parte do primeiro1-2.
1 Sobre os contratos de consumo em geral, vide entre nós Xxxxxxx, C. Xxxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxxxxx de Xxxxxxx, in: 347 “Boletim do Ministério da Justiça” (1985), 11-38; Xxxxxxxx,
J. Morais, Os Contratos de Consumo: Reflexão sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, Almedina, Coimbra, 2012; Xxxxxxxx, X. Morais, Manual de Direito do Consumo, espec. 71 e ss., 7.ª edição, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
2 A literatura é bastante vasta no estrangeiro: na Alemanha, Xxxxxxxxx, Xxxxxxxx, Rechtsgeschäftliche Selbstbestimmung im Verbrauchervertrag, Mohr Siebeck, Tübingen, 2012; na Áustria, Xxxxxxxx, Xxxxxx, Xxx Xxxxxxxxxxxxxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxxxxx, Xxxx, 0000; no Brasil, Xxxxxx Xx., X. Porto, Contratos Relacionais e Defesa do Consumidor, Ed. Xxx Xxxxxxx, São Paulo, 1998; Marques, C. Lima, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O Novo Regime das Relações Contratuais, 8.ª edição, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2016; em Espanha, Xxxxx, X. Xxxxxxx, Contratación con Consumidores, Editorial Dykinson, Madrid, 2012; Vicente,
J. Xxxxxx, La Contratación con Consumidores, in: “Tratado de Contratos”, vol. II, 1443-1582, Tirant lo Blanch, Valencia, 2009; em França, Calais-Xxxxx, Xxxx, L’Influence du Droit de la Consommation sur le Droit des Contrats, in: 51 “Revue Trimestrielle de Droit Civil” (1998), 239-254; Xxxxxxxx, Xxxxxxxx, Droit de la Consommation et Théorie Générale du Contrat, Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 2015; Xxxxxxxxx-Xxxxxxxxxx, Xxxxxxx/ Xxxxxxx, Élise/ De Vincelles, C. Aubert, Les Contrats de Consommation – Xxxxxx Xxxxxxxx, XXXX, Xxxxx, 0000; em Inglaterra, Hill, John, Cross-Border Consumer Contracts, Oxford University Press, Oxford, 2009; Tang, Z. Xxxxxx, Electronic Consumer Contracts in the Conflict of Laws, 2nd edition, Hart Publishing, New York, 2015; em Itália, Xxxx, Xxxxx, Xxxxxxxxx xxx Xxxxxxxxxxx, Xxxxxxx, Xxxxxx, 0000; Minervini, Xxxxxx, Dei Contratti del Consumatore in Xxxxxxxx, Xxxxxxxxxxxx, Xxxxxx, 0000. Num plano europeu e internacional, Xxxxxxx, Xxxxxxx/ Xxxxxxx, Xxxxxx (eds.), Modernising and Harmonising Consumer Contract Law, Sellier European Law Publishers, München, 2009;
II. Tal como os contratos comerciais são um instituto jurídico central do Direito Comercial3, também assim os contratos de consumo se encontram em pleno cerne do Direito do Consumo: como sublinha Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx, “o contrato constitui o instrumento jurídico do processo económico em mercado, e a proteção do consumidor no e através do direito contratual representa o cerne do direito do consumo”4. O estudo dos contratos de consumo implica a consideração simultânea da sua disciplina jurídica própria ou comum (contratos de consumo em geral) e dos diversos tipos contratuais singulares existentes (contratos de consumo em especial).
III. O presente estudo é dedicado ao primeiro desses planos, sem prejuízo das remissões ocasionais para o último5. Com efeito, é hoje possível identificar um conjunto de normas legais que estabelecem um regime jurídico próprio em matéria da contratação de consumo em geral, especializando-
-a ou diferenciando-a do regime comum dos negócios jurídicos e dos contratos (arts. 217.º e segs., 405.º e segs. do CCivil). Estas especialidades da contratação do consumo, de resto, terão contribuído para a evolução dos próprios quadros dogmáticos do direito contratual clássico6. As principais especialidades podem ser encontradas nos planos:
– da negociação;
– da formação;
– do conteúdo;
– dos efeitos; e
– da extinção dos contratos de consumo.
Poillot, Élise, Droit Européen de la Consommation et Uniformisation du Droit des Contrats, LGDJ, Paris, 2006
3 Sobre os contratos comerciais, vide Antunes, X. Engrácia, Direito dos Contratos Comerciais,
7.ª reimp., Almedina, Coimbra, 2019.
4 Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, 00, Xxxx, Xxxxxxx, 0000.
5 Cf. Xxxxxxx, X. Engrácia, Dos Contratos de Consumo em Especial, in: 78 “Revista da Ordem dos Advogados” (2018), 125-190.
6 Sobre o relevo dos contratos de consumo no quadro da teoria geral dos contratos, vide Xxxx,
K. Cabrera, El Derecho de Consumo. Desde la Teoría Clásica del Contrato hasta los Nuevos Contratos, in: 35 “Revista de Derecho” (2011), 55-95; Xxxxxxxx, Xxxxxxxx, Droit de la Consommation et Théorie Générale du Contrat, Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 2015; Xxxxxx, A. Baggio, Teoria Contratual Pós-Moderna – As Redes Contratuais na Sociedade de Consumo, Juruá Editora, Curitiba, 2007.
2. Negociação
I. A fase de negociação reveste uma particular importância nos contratos de consumo. Com efeito, o caráter massificado do consumo e as assimetrias informativas decorrentes da promoção empresarial dos bens e serviços levaram o legislador a consagrar um significativo reforço dos deveres e garantias pré-contratuais que oneram os empresários e profissionais perante o consumidor – a ponto de ser legítimo afirmar, como melhor veremos adiante, que o velho aforismo caveat emptor (o comprador que se cuide) deu hoje lugar, no domínio em apreço, ao novo paradigma normativo caveat venditor (o vendedor que se cuide)7.
2.1. Informação Pré-Contratual
I. A disciplina legal de uma boa parte dos contratos de consumo passou a consagrar extensos deveres de informação pré-contratual, usualmente a cargo da parte contratante empresarial ou profissional. Na verdade, tal disciplina legal vai sendo hoje crescentemente permeada por um imperativo geral de “transparência negocial” (Transparenzgebot8, trasparenza nella contratta- zione9) que, visando fundamentalmente reforçar a proteção dos interesses dos consumidores em face das assimetrias informativas existentes, se consubstancia em obrigações de informação prévia, de caráter genérico ou específico (disclosure of terms), a respeito dos sujeitos, termos, conteúdo e efeitos dos respetivos contratos.
7 Segundo Xxxx Xxxxx, no caso “Xxxxxx v. Finning” (1997), “a mudança do «caveat emptor» para o «caveat venditor» constitui uma caraterística notável do desenvolvimento do Direito Comercial”. Cf., ainda, Xxxxxxxx, Xxxxxx, Commercial Law, 300, 3rd edition, Xxxxxxxxxxxx, Xxxxxx, 0000.
8 Locher, Xxxxx, Das Recht der Xxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, 000, Xxxx, Xxxxxxx, 0000. Sobre o atual relevo do princípio da transparência, vide XXXXXXX, X. Xxxxx, O Princípio da Transparência no Direito Europeu dos Contratos, in: “Direito dos Contratos – Estudos”, 75-100, Coimbra Editora, Coimbra, 2007.
9 Luminoso, Xxxxxx, La Contrattazione d’Impresa, 534, in: AAVV, “Istituzione di Diritto Commerciale”, 527-626, Xxxxxxxxxxxx, Xxxxxx, 0000.
II. Para além das obrigações resultantes do direito geral à informação dos consumidores (art. 8.º da LDC)10, tenha-se presente a enorme e diversificada panóplia de deveres informativos pré-contratuais, que o legislador previu a respeito de múltiplos contratos de consumo. Estão neste caso, por exemplo, os contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial (art. 4.º da LCCD), os contratos à distância relativos a serviços financeiros (arts. 11.º a 18.º do Decreto-Lei n.º 95/2006, de 29 de maio), os contratos eletrónicos (art. 28.º da LCE), os contratos de crédito ao consumo (arts. 6.º a 9.º da LCC), os contratos financeiros de investidores não profissionais (arts. 312.º e segs., 321.º-A, 322.º e 323.º do Código dos Valores Mobiliários), os contratos de serviços públicos essenciais (art. 4.º da LSPE) ou os contratos de viagem organizada (art. 17.º do Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março)11.
III. Sublinhe-se, ainda, que esta proeminência do valor da “informa- ção” não se esgota no âmbito pré-contratual, projetando-se igualmente no contexto contratual propriamente dito – pense-se, por exemplo, nos elementos informativos que devem obrigatoriamente constar dos contra- tos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial (arts. 4.º, n.º 3 e 9.º da LCCD) – e no contexto pós-contratual – veja-se, por exemplo, a informação a prestar na vigência dos contratos de crédito ao consumo (art. 14.º da LCC)12.
2.2. Integração Publicitária Contratual
I. Os contratos de consumo são quase sempre precedidos de mensagens publicitárias através das quais os empresários procuram justamente captar as preferências dos consumidores, tornando assim inevitável que as decisões de celebração contratual por parte dos primeiros sejam tomadas frequente- mente, senão quando exclusivamente, com base nos conteúdos veiculados
10 Xxxxxxx, X. Engrácia, Os Direitos dos Consumidores, 11 e ss., in: 63 “Cadernos de Direito Privado” (2018), 3-22.
11 Sobre tais deveres informativos, vide mais desenvolvidamente Xxxxxxx, X. Engrácia, Dos Contratos de Consumo em Especial, 140 e ss., 145 e ss., 154 e ss., 171 e ss., 175 e ss., in: 78 “Revista da Ordem dos Advogados” (2018), 125-190.
12 Sobre o ponto, vide também Xxxxx, X. Xxxxxxx, Da Responsabilidade Pré-Contratual por Violação dos Deveres de Informação, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
nessas mensagens publicitárias dos produtos ou serviços em causa: assiste, por isso, razão a quem afirma que, num certo sentido, tais contratos são como que “pré-celebrados” através da publicidade13. Ora, se assim é, tanto mais que nem sempre será fácil destrinçar entre o conteúdo informativo (objetivo) e promocional (persuasivo) dessas mensagens, impõe-se responsabilizar os empresários pelas informações e qualidades divulgadas através da publicidade: falamos da chamada integração publicitária contratual, que visa designar a inserção ou incorporação imperativa nos contratos de consumo das informações constantes de mensagens publicitárias14.
II. A vinculatividade e a eficácia jurídico-contratuais das declarações publicitárias, que colidem frontalmente com a teoria clássica do valor contratual das declarações negociais (caveat emptor), encontram-se hoje expressamente acolhidas no direito português15. Assim, nos termos do art. 7.º, n.º 5 da LDC, “as informações concretas e objetivas contidas nas mensa- gens publicitárias de determinado bem, serviço ou direito, consideram-se integradas no conteúdo dos contratos que se venham a celebrar após a sua emissão, tendo-se como não escritas as cláusulas em sentido contrário”16.
13 Xxxxxxx, Xxxxxxx, Informationsverantwortung und Gewährleistung für Werbeangaben beim Verbrauchsgüterkauf, 287, in: 55 JZ (2000), 280-293.
14 Sobre a integração publicitária contratual, vide Xxxxxxx, J. Engrácia, Direito dos Contratos Comerciais, 119 e ss., 7.ª reimpressão, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000; Xxxxxxx, X. Engrácia, O Direito da Publicidade, 798, in: XCIII “Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra” (2017), 771-848.
15 Sobre a temática, inaugurada com a Diretiva 1999/44/CE, de 25 de maio, vide, entre nós, Xxxxxxx, C. Xxxxxxxx, Relevância Contratual das Mensagens Publicitárias, in: 6 “Revista Portuguesa de Direito do Consumo” (1996), 9-25; Xxxxx, X. Xxxxxx, A Publicidade na Formação do Contrato, in: “Comemorações do 35 Anos do Código Civil”, vol. II, 000-000, Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx, 0000; para domínios específicos, Correia, M. Pupo, Conformação dos Contratos pela Publicidade na Internet, in: VIII “Direito da Sociedade de Informação” (2009), 89-209; Gouveia,
M. França, A Eficácia Negocial da Publicidade a Imóveis, in: XLIX “Scientia Ivridica” (2000), 135-172; na Jurisprudência, vide o Acórdão da RL de 27-V-2010 (L. Espírito Santo), in: www. xxxx.xx. Noutros quadrantes, vide também Xxxxxx, M. Xxxxxx, La Publicidad: Su Incidencia en la Contratación, Ed. Xxxxxxxx, Madrid, 2003; Xxxxx, M. Xxxxx, El Carácter Vinculante de las Declaraciones Públicas en la Venta de Bienes de Consumo, in: 7 “Estudos de Direito do Consumidor” (2005), 211-243; Xxxxxxxxxxx, S. Zubero, La Publicidad y el Contrato: Eficacia Jurídico-Vinculante de las Declaraciones Públicas en la Formación y el Contenido del Contrato, Diss., Zaragoza, 2015.
16 Um princípio algo semelhante aflorava já, antes desta disposição, no art. 2.º da LCCG, onde se sujeitam expressamente ao controlo legal todas as cláusulas contratuais gerais “independentemente da forma da sua comunicação ao público”.
Também o art. 2.º, n.º 2 da LVBC (compra e venda de bens de consumo), estabelece uma presunção de incumprimento contratual no caso de os bens entregues ao comprador “não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não apresentarem as qualidades que o vendedor tinha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo” (alínea a)) ou “não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas caraterísticas concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade e na rotulagem” (alínea d))17.
2.3. Publicidade Enganosa
I. Malgrado não correspondendo summo rigore a qualquer garantia ou dever pré-contratual positivo, merece ainda referência, pela sua relevância prática e afinidade teleológica, a proibição da publicidade enganosa ( false advertising, irreführende Werbung, publicité trompeuse, pubblicità ingannevole). Com efeito, o legislador português veio interditar e sancionar quaisquer formas de comunicação destinadas à promoção de bens e serviços por parte de empresas que, através de prestação de informações falsas ou da omissão de informações relevantes, induzam ou sejam suscetíveis de induzir em erro os consumidores, afetando a respetiva tomada de decisões negociais livres e esclarecidas18.
17 Os exemplos ou concretizações deste vetor geral vão-se multiplicando: veja-se, assim, por exemplo, a integração das mensagens publicitárias do contrato de seguro, que primam sobre as próprias condições gerais ou especiais que as contrariem sempre que sejam mais favoráveis ao tomador ou beneficiário do seguro (art. 33.º da LCS); ou o relevo da publicidade nos contratos eletrónicos (arts. 20.º e 21.º da LCE, art. 2.º, f) da DCE).
18 A proibição de publicidade enganosa deve ser hoje construída em articulação com a proibição genérica das práticas comerciais desleais, instituída pela LPCD. Tal ligação estreita, expressamente consagrada no art. 11.º do Código da Publicidade, resulta da própria noção geral de “prática comercial” – que abrange a publicidade dirigida à promoção e venda dos bens e serviços das empresas (art. 3.º, d) da LPCD) –, sendo ainda corroborada ao nível das próprias disposições concretas reguladoras das suas principais tipologias – em particular, as chamadas “práticas enganosas” (arts. 7.º a 9.º da LPCD). Sobre a figura, vide Xxxxxxx, X. Engrácia, O Direito da Publicidade, 799 e ss., in: XCIII “Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra” (2017), 771-848.
II. Esta proibição complementa e encerra assim o relevo jurídico do contexto publicitário no âmbito da contratação de consumo: no domínio destes contratos, os empresários e profissionais, além de (positivamente) ficarem vinculados pelas suas declarações publicitárias, estão ainda obrigados (negativamente) a observar um princípio de verdade e clareza relativamente aos conteúdos dessas mesmas declarações (maxime, as caraterísticas dos bens ou serviços publicitados, os respetivos preço e condições de fornecimento, bem como os direitos, deveres e garantias dos adquirentes), por forma a evitar induzir em erro as potenciais contrapartes desses contratos ou distorcer o seu comportamento negocial19.
III. A violação desse “dever negativo” pode ser fonte de sanções con- traordenacionais para os empresários ou profissionais infratores (art. 34.º, n.º 1, a) do Código da Publicidade e art. 21.º da LPCD), sem prejuízo de várias outras importantes consequências laterais (v.g., obrigação de apresentação de provas da exatidão material dos dados de facto contidos na publicidade, presumindo-se que tais dados são inexatos se aqueles não apresentarem as provas pedidas ou estas forem consideradas insuficientes: cf. art. 11.º, n.os 2 e 3 do Código da Publicidade) ou acessórias (v.g., sujeição a medidas cautelares, obrigação de publicidade “corretiva” a expensas próprias: cf. art. 41.º do Código da Publicidade, arts. 20.º e 21.º, n.º 2 da LPCD).
IV. Por último, saliente-se que o entrecruzamento dos regimes jurídicos dos contratos de consumo e da publicidade é prenhe de ilustrações – muito para além das duas figuras fundamentais acabadas de referir (integração publicitária contratual e publicidade enganosa). Basta pensar na frequente subordinação dos contratos de consumo aos princípios gerais juspublicitários: um exemplo, entre muitos, pode ser encontrado na relevância direta do princípio da identificabilidade das mensagens publicitárias no domínio dos contratos eletrónicos de consumo (art. 21.º da LCE)20.
19 Saliente-se, ainda, que tal proibição, para além da proteção dos interesses das contrapartes contratuais dos empresários (consumidores), visa igualmente a tutela jurídica dos interesses dos próprios empresários concorrentes: prova inequívoca disso mesmo é a legitimidade destes para o exercício da ação inibitória, contemplada no art. 16.º da LPCD. Cf. Xxxxxx, X. Xxxxxxxx, A Proibição da Publicidade Enganosa: Defesa dos Consumidores ou Protecção (de Alguns) Concorrentesị, in: AAVV, “Comunicação e Defesa do Consumidor”, 229-256, Instituto Jurídico da Comunicação, Coimbra, 1996.
20 Sobre o princípio da identificabilidade (art. 8.º do Código da Publicidade), que determina que a mensagem publicitária deve surgir identificada enquanto tal aos olhos do público, por
3. Formação
I. A formação dos contratos de consumo, sujeita embora às regras gerais da lei civil e comercial, apresenta também diversas especialidades dignas de nota. Entre as mais relevantes, contam-se as relativas aos requisitos de celebração do contrato (liberdade, forma, língua, vícios) e às modalidades da sua formação (modelos formativos especiais).
3.1. Requisitos de Celebração
I. Existem diversas especificidades formativas em sede dos requisitos de celebração dos contratos de consumo, com destaque para a forma, a língua e os vícios.
II. Ao arrepio do princípio geral da liberdade de celebração dos negócios jurídicos (art. 405.º do CCivil), são frequentes as obrigações legais de contratar no domínio dos contratos de consumo, as quais, suprimindo a autonomia de vontade dos empresários/profissionais, lhes impõem o dever jurídico de os concluir: é o caso, por exemplo, dos contratos de prestação de serviços públicos essenciais, v.g., fornecimento de energia, de água, ou de gás (v.g., arts. 40.º, n.º 3 e 42.º do Decreto-Lei n.º 30/2006, de 15 de fevereiro), comunicações postais (art. 15.º da Lei n.º 102/99, de 26 de junho, Base VIII, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 448/99, de 4 de novembro), comunicações eletrónicas (arts. 39.º e segs. da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro), etc.21.
III. Ao arrepio do princípio da liberdade de forma dos negócios jurídicos (art. 219.º do CCivil), mas em linha com aquilo a que se assiste no domínio dos negócios jurídico-comerciais em geral22, os contratos de consumo estão sujeitos, em regra, a forma especial: assim sucede, por exemplo, com
forma a permitir assim aos respetivos destinatários estar de sobreaviso e ter consciência dos objetivos promocionais dos anunciantes, vide Xxxxxxx, J. Engrácia, O Direito da Publicidade, 793 e ss., in: XCIII “Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra” (2017), 771-848.
21 Sobre esta obrigação, vide, em geral, Teles, M. Xxxxxx, Obrigação de Emitir Declaração Negocial, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000; na doutrina estrangeira, Hackl, Karl, Vertragsfreiheit und Kontrahierungszwang, Duncker & Humblot, Berlin, 1980; Nivarra, Luca, L’Obbligo a Contrattare e il Mercato, Cedam, Padova, 1989.
22 Sobre o “renascimento do formalismo” no âmbito da contratação mercantil, vide Xxxxxxx,
J. Engrácia, Direito dos Contratos Comerciais, 157 e ss., 7.ª reimpressão, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
os contratos celebrados fora do estabelecimento comercial (arts. 5.º, n.º 7 e 9.º, n.º 1 da LCCD), os contratos de crédito ao consumo (art. 12.º, n.º 1 da LCC), os contratos eletrónicos (art. 26.º, n.º 1 da LCE, art. 48.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro) ou os contratos financeiros com investidores não profissionais (art. 321.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários)23.
IV. Ao arrepio do princípio da liberdade de idioma que é caraterístico dos negócios juscomerciais (art. 96.º do CCom)24, a redação dos contratos de consumo e a prestação da conexa informação devem, em regra, ser feitas em língua portuguesa: para além de a LDC determinar que toda “a informação ao consumidor é prestada em língua portuguesa” (art. 7.º, n.º 3), o regime legal de vários contratos contém tal exigência, v.g., contratos celebrados fora do estabelecimento comercial (art. 9.º, n.º 1, in fine, da LCCD), contratos financeiros à distância (art. 9.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 95/2006, de 29 de maio) e contratos de seguro (art. 36.º, n.º 2 da LCS).
V. Enfim, paralelamente ao regime geral dos vícios da vontade dos negócios jurídicos em geral (arts. 240.º e segs. do CCivil), é possível encontrar vícios clássicos dotados de um regime próprio – pense-se no erro na formação e na declaração da vontade no domínio da contratação associada ao comércio eletrónico (rectius, aos contratos eletrónicos automatizados: cf. art. 33.º, n.os 2 e 3 da LCE) – ou até mesmo novos vícios específicos – pense-se na figura da “influência indevida”, a qual, situada algures a meio caminho entre os tradicionais vícios do dolo e da coação, constitui um fundamento autónomo da invalidade dos contratos celebrados entre as empresas e os consumidores (arts. 3.º, j), 11.º, n.º 1, e 14.º, n.º 1 da LPCD).
23 Xxxxxxxxx, X. Xxxxxx, ¿Qué Es Forma en el Derecho Contractual de Consumoị, in: 2 “Anuario de Derecho Civil” (2008), 519-542; Xxxxxxxxx, X. Heras, La Forma de los Contratos: El Neoformalismo en el Derecho de Consumo, in: 89 “Revista de Derecho Privado” (2005), 27-50. Aspeto particular é que, sendo tal requisito de forma estabelecido por mor da proteção do consumidor, a sua omissão origina, em regra, uma invalidade atípica, no sentido em que apenas pode ser invocada por aquele contratante, ficando assim a manutenção ou cessação do contrato nas respetivas mãos (arts. 13.º, n.º 5 da LCC, art. 321.º, n.º 1, in fine, do Código dos Valores Mobiliários).
24 Sobre a língua dos contratos comerciais, vide Antunes, J. Engrácia, Direito dos Contratos Comerciais, 177 e ss., 7.ª reimpressão, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
3.2. Modelos Formativos Especiais
I. Particularmente importante, os contratos de consumo constituem o terreno de eleição dos novos modelos de formação contratual. Com efeito, de acordo com o modelo legal clássico (arts. 228.º e segs. do CCivil), os contratos são formados segundo o ritual da emissão de uma declaração negocial por uma das partes (proposta) e de uma subsequente declaração negocial de conformidade que manifesta total concordância pela outra parte (aceitação): ora, a génese e formação dos contratos de consumo de há muito se afastou desse modelo legal estereotipado, processando-se hoje através de modelos formativos alternativos e especiais25.
II. É o caso da chamada contratação conjunta, em que o consenso negocial entre as partes se consubstancia num documento contratual unitário assinado por empresário e consumidor, tornando assim difícil, artificial, senão mesmo frequentemente impossível, individualizar uma proposta e uma aceitação26. Dada a frequente sujeição dos contratos de consumo à forma escrita ou equivalente, já atrás assinalada, não surpreende que se trate de um modelo formativo crescentemente divulgado neste domínio, incluindo nos contratos celebrados fora do estabelecimento, contratos à distância, contratos de prestação de serviços públicos essenciais, contratos de crédito ao consumo, contratos de viagem organizada, contratos de seguro e tantos outros.
III. É também ainda o caso da chamada contratação em massa caraterística das modernas sociedades de consumo, em que o consenso negocial apresenta importantes especificidades. Aqui se incluem a contratação à distância – processo de contratação que utiliza exclusivamente uma ou mais técnicas de comunicação à distância, v.g., carta normalizada, catálogos, telefone, telefax, videotexto, correio eletrónico, rádio, televisão, “internet” (regulada pela LCCD) –, a contratação eletrónica – processo de contratação no qual as declarações de vontade dos contraentes são produzidas e transmitidas por
25 No domínio dos contratos de consumo formados segundo o modelo legal tradicional, assume especial relevo a proposta ao público (art. 230.º, n.º 3 do CCivil), dado que a generalidade daqueles contratos é celebrada na sequência da aceitação, por parte do consumidor, de propostas emitidas por empresários ou profissionais dirigidas a uma pluralidade de destinatários.
26 Sobre este modelo alternativo de contratação, vide Xxxxxxx, X. Engrácia, Direito dos Contratos Comerciais, 132 e ss., 7.ª reimpressão, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
meios informáticos, maxime, através de correio eletrónico e da “internet” (regulada pela LCE, além de, subsidiariamente, pelas LCCD e LDE) –, a contratação automática – processo de contratação realizado por intermédio de autómatos ou máquinas automáticas destinadas ao fornecimento de produtos ou à prestação de serviços aos consumidores (arts. 22.º a 24.º da LCCD) – e a contratação em autosserviço – processo de contratação realizado em locais de venda, físicos ou virtuais, onde os potenciais consumidores dos bens ou serviços do empresário se servem a si mesmos destes27.
4. Conteúdo
I. Em sede geral e abstrata, as partes dos contratos “têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos” e “incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver” (art. 405.º, n.º 1 do CCivil). Este segmento do mandamento jusprivatístico fundamental da liberdade contratual – correntemente designado na doutrina como princípio da liberdade de estatuição ou modelação do conteúdo contratual (Gestaltungsfreiheit, Inhaltsfreiheit) – visa significar que as partes dos contratos, outrossim livres na sua decisão de contratar ou não contratar, são soberanas na escolha do tipo de negócio mais adequado aos seus interesses (seleção do tipo negocial) e na fixação dos termos concretos do mesmo negócio (fixação do conteúdo negocial)28.
II. Este princípio geral sofre, todavia, numerosas e importantes limitações no domínio da contratação de consumo, que estão assim na origem de um controlo legal do conteúdo dos contratos de consumo. As limitações mais relevantes são as decorrentes do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais (LCCG) e das práticas comerciais desleais (LPCD)29.
27 Sobre estes modelos formativos especiais, vide desenvolvidamente Antunes, X. Engrácia,
Direito dos Contratos Comerciais, 141 e ss., 7.ª reimpressão, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
28 Sobre a noção e o alcance do princípio da livre estipulação contratual, vide Xxxxx, M. Xxxxxxx, Direito das Obrigações, 215 e ss., 8.ª edição, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000; Xxxxxxxxx,
L. Xxxxxxxx, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 398 e ss., 5.ª edição, UCP Editora, Lisboa, 2010; Xxxxxx, X. Xxxxxxx, Das Obrigações em Geral, vol. I, 246 e ss., 10.ª edição, Almedina, Coimbra, 2000.
29 Compreende-se assim que uma das principais caraterísticas do regime jurídico das relações contratuais consumeristas consista, justamente, na limitação da autonomia privada, a qual se encontra ainda subjacente a diversos outros traços desse regime (v.g., caráter injuntivo
4.1. Cláusulas Contratuais Gerais
I. Dificilmente se poderia encontrar uma melhor ilustração da crise do referido princípio jusprivatístico geral, no mundo da contratação mercantil em massa dos nossos dias, do que os contratos de consumo. Com efeito, é hoje visível a olho nu que uma boa parte de tais contratos, antes que representar negócios jurídicos cujo conteúdo é livremente negociado e acordado entre as partes, corresponde a verdadeiros contratos de adesão (contrat d’adhésion, standard form contract, Standardvertrag) cujo conteúdo é determinado unilateralmente e de antemão por uma das partes (empresário ou profissional), consubstanciado-se em cláusulas contratuais uniformes ou padronizadas destinadas a uma massa indeterminada de destinatários, às quais a contraparte (consumidor) se limita pura e simplesmente a aderir ou a rejeitar em bloco30.
II. Os contratos de consumo, construídos com recurso a cláusulas contratuais gerais, encerram obviamente riscos para os consumidores aderentes, a que a ordem jurídica não poderia ficar indiferente. Por definição, afastando o consumidor de qualquer intervenção na definição do conteúdo negocial, tais contratos representam uma espécie de versão atualizada da velha máxima “pegar ou largar” no mundo dos negócios: deixando apenas ao consumidor a alternativa de aceitar ou rejeitar em bloco o contrato padronizado, tal tipo de contratação coloca-o perante o dilema de celebrar o negócio, aderindo de olhos fechados às cláusulas preestabelecidas, ou
das normas jusconsumeristas e consequente nulidade das convenções a ela contrárias: cf. art. 16.º da LDC). Cf. Xxxx, Xxxxxxxx, Privatautonomie und Verbraucherschutz, in: 39 “Versicherungsrecht
– Juristische Rundschau für die Individualversicherung” (1999), 129-141; Xxxxxx-Xxxxxxx, Xxxxxxxx, Verbraucherschutz im Schuldvertragsrecht: Private Freiheit und staatliche Ordnung, Mohr, Tübingen, 2005; para uma imbricação destes dois domínios, Santos, T. Moura, A Tutela do Consumidor entre os Contratos de Adesão e as Práticas Comerciais Desleais, in: 1 “Revista Electrónica de Direito” (2016), 1-53.
30 Sobre os contratos de consumo como contratos de adesão, vide Xxxxxxx, X. Xxxxxxx, Os Contratos de Adesão no Cerne da Protecção do Consumidor, in: 3 “Estudos de Direito do Consumidor” (2001), 389-424; Xxxxxxx, Yara, As Cláusulas Contratuais Abusivas em Matéria de Relações de Consumo, in: AAVV, “Direito Privado e Direito Comunitário – Alguns Ensaios”, 643-750, Âncora Editora, Lisboa, 2007. Para uma resenha da nossa Jurisprudência mais recente, vide Baftista, Fátima, Cláusulas Abusivas nos Contratos com os Consumidores, in: V “Estudos de Direito do Consumo” (2017), 13-39.
rejeitá-lo, privando-se do bem ou serviço pretendido. Além disso, não se pode perder de vista que a desigual posição das partes contratantes (inequality of bargaining power) acentua ainda mais o perigo de abusos: com efeito, se o proponente, assessorado de recursos financeiros, humanos e técnicos sofisticados, está em condições de assegurar uma regulamentação contratual exaustiva e adequada dos seus próprios interesses, o aderente, ao invés, encontra-se amiúde numa situação de desproteção, já que, colocado diante de modelos ou formulários contratuais supinamente minuciosos e técnicos, não dispõe frequentemente do tempo, da vontade ou até das competências necessárias para se aperceber do significado e do alcance de boa parte desse clausulado31.
III. Neste domínio, assume importância crucial o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, instituído pela “Lei das Cláusulas Contratuais Gerais” (LCCG), aprovada através do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro32. Relevantes para efeito dos contratos de consumo são as regras relativas à noção e aos requisitos das cláusulas contratuais gerais, ao âmbito de aplicação, à interpretação e integração e, muito em particular, à previsão de cláusulas contratuais proibidas.
IV. A noção e as caraterísticas das cláusulas contratuais gerais extraem-
-se do preceito inaugural da LCCG (art. 1.º, n.º 1): dizem-se cláusulas contratuais gerais o conjunto de cláusulas negociais elaboradas sem prévia negociação individual que proponentes ou destinatários indeterminados se limitam a propor ou a aceitar. Os contratos de consumo que incorporem tais clausulados gerais passam a ficar subordinados ao regime legal, inde- pendentemente de o conteúdo negocial se esgotar em tais clausulados ou
31 Certos autores falam sugestivamente da situação de “inferioridade dos profanos perante os profissionais” (Xxxxxxx, Xxxxxxx, La Formation du Contrat, 53, 3ème édition, LGDJ, Paris, 1993). Sobre os fundamentos da disciplina e controlo legal das cláusulas abusivas gerais, veja-se desenvolvidamente Xxxxxxx, X. Xxxxx, O Problema do Contrato – As Cláusulas Contratuais Gerais e o Princípio da Liberdade Contratual, especialmente 323 e ss., Almedina, Coimbra, 1999.
32 Sobre tal regime, vide Xxxxxx, X. Xxxxxx, Xxxxxxxxx Contratuais Gerais – DL n.º 446/85
– Anotado – Recolha de Jurisprudência, Wolters Kluwer/ Coimbra Editora, 2010; XXXXX, X. Xxxxxxx, Síntese do Regime Jurídico Vigente das Cláusulas Contratuais Gerais, 2.ª edição, UCP Editora, Lisboa, 1999; Costa, M. Xxxxxxx/ Xxxxxxxx, X. Menezes, Cláusulas Contratuais Gerais: Anotação ao Xxxxxxx-Xxx x.x 000/00, xx 00 xx xxxxx, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000; Prata, Ana, Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais. Anotação ao DL n.º 446/85, 25 de outubro, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
prever simultaneamente outras cláusulas particulares ou individuais, sendo uma das partes contratantes designada “proponente” e a outra “aderente”. Da noção legal resulta que as cláusulas contratuais gerais se identificam por um conjunto de elementos essenciais ou necessários (predisposição unilateral, generalidade, imodificabilidade) e elementos naturais frequentes embora não necessários (desigualdade dos contraentes, complexidade e estandardização)33. As cláusulas contratuais gerais devem consistir necessariamente em condições pré-elaboradas unilateralmente por um dos contraentes (predisposição unilateral) a fim de serem inseridas ou incorporadas numa pluralidade de contratos (generalidade) e de serem acolhidas em bloco e imutavelmente por quem as subscreve ou aceite (imodificabilidade). Além disso, as cláusulas contratuais gerais surgem usualmente, embora não forçosamente, no âmbito de contratos celebrados entre partes com diferente poderio económico (desigualdade das partes) e de conteúdo negocial particularmente intrincado (complexidade), aparecendo vertidas em documentos escritos ou eletrónicos de natureza formulária (estandardização)34.
V. Aspeto igualmente relevante são as normas em matéria da interpretação
e integração das cláusulas contratuais gerais, seja através de remissão genérica para as regras hermenêuticas gerais dos arts. 236.º e segs. do CCivil (art. 10.º da LCCG), seja ressalvando expressamente que o risco da ambiguidade das cláusulas corre por conta do proponente, o que, de algum modo, já resultaria daquelas regras gerais (art. 11.º, n.º 2 da LCCG)35. O art. 11.º da LCCG, sob a epígrafe “Cláusulas Ambíguas”, estabelece que “as cláusulas contratuais
33 Sobre as caraterísticas essenciais das cláusulas contratuais gerais, vide Xxxxxxx, C. Xxxxxxxx, Contratos, vol. I, 196 e ss., 6.ª edição, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000; Xxxxx, M. Xxxxxxx/ Xxxxxxxx, X. Menezes, Cláusulas Contratuais Gerais: Anotação ao Xxxxxxx-Xxx x.x 000/00, xx 00 xx xxxxx, 00, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
34 Aspeto relevante é ainda a amplitude do regime aplicável: em princípio, aquele considera-se aplicável a todas e quaisquer cláusulas contratuais que correspondam à noção legal, independentemente da sua forma de comunicação (v.g., formulários, catálogos, prospetos, anúncios publicitários, sites e páginas web), da sua extensão (v.g., totalidade ou parte do conteúdo negocial), do seu teor (v.g., elementos essenciais ou acessórios do contrato) ou da sua autoria (v.g., elaboradas pelo proponente ou por terceiro) (art. 2.º da LCCG).
35 Um problema interpretativo recorrente consiste na frequente erosão do jargão dos contratos comerciais padronizados (commercial boilerplate), decorrente do seu uso massificado, criando verdadeiros “buracos negros” (black holes) hermenêuticos de difícil resolução para os
ambíguas têm o conteúdo que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real” (n.º 1), acrescentando ainda que “na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente” (n.º 2)36. A razão de ser desta norma é também inequívoca. Em princípio, a interpretação e a integração dos contratos de adesão (rectius, celebrados com recurso a cláusulas contratuais gerais) são realizadas de acordo com as regras comuns previstas para os negócios jurídicos em geral nos arts. 236.º e segs. do CCivil (art. 10.º da LCCG), valendo ainda, em caso de ambiguidade de uma determinada cláusula contratual, o sentido que lhe seria atribuído por um aderente normal colocado na posição do aderente real (art. 11.º, n.º 1 da LCCG). Todavia, se tal ambiguidade ou obscuridade permanecer insanável mesmo após o recurso a tais regras, prevê o legislador a regra da interpretação mais favorável ao aderente, segundo a qual à cláusula ambígua será imputado o sentido que se mostrar mais favorável a este (ambiguitas contra stipulatorum ou in dubio contra proferentem) (art. 11.º, n.º 2 da LCCG)37. Verdadeiramente, antes que um cânone interpretativo hoc sensu, estamos diante de uma regra integradora de caráter sancionatório (penalty rule): sendo as cláusulas gerais predispostas unilateralmente pelo proponente do contrato, justo é fazer recair sobre ele o risco de eventuais ambiguidades do texto negocial, até como forma de prevenir ou incentivar-lo a redigi-las de forma clara38.
tribunais: sobre a questão, Xxxx, Xxxxxx/ Xxxxxx, Xxxx/ Xxxxx, Xxxxxx, The Grey Hole Problem in Commercial Boilerplate, Columbia Law and Economics Working Paper 547, 2016.
36 Sobre tal disposição, Costa, M. Xxxxxxx, Síntese do Regime Jurídico Vigente das Cláusulas Contratuais Gerais, 22, 2ª edição, UCP Editora, Lisboa, 1999; Costa, M. Almeida/ Cordeiro,
A. Menezes, Cláusulas Contratuais Gerais: Anotação ao Xxxxxxx-Xxx x.x 000/00, xx 00 xx Xxxxx, 00, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000; SÁ, Almeno, Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva sobre Cláusulas Abusivas, 67 e s., 2.ª edição, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000. Noutros quadrantes, para disposições idênticas ou congéneres (v.g., §5 do “AGBG” alemão, art. 1370 do “Codice Civile” italiano, art. 6.º, n.º 2 da “Ley sobre Condiciones Generales de Contratación” espanhola), vide Xxxxxxxx, Xxxxxxx/ Xxxx, X. Xxxxx (dir.), Comentarios a la Ley sobre Condiciones Generales de Contratación, 384 e ss., Civitas, Madrid, 2002.
37 Nos termos do Acórdão do TJUE de 20-IX-2018 (“OTP Bank Nyrt. v. Xxxxx / Kisss”), o caráter abusivo de uma cláusula contratual não clara, que faz recair o risco cambial sobre o mutuário e que não reflete as disposições legislativas, pode ser objeto de fiscalização jurisdicional (in: ECLI:EU:C:2018:750).
38 Como salienta Xxxxx Xxxxxx Águila-Real, o princípio ambiguitas contra stipulatorum
possui duas funções: “Em primeiro lugar, distribuir equitativamente os riscos da ambiguidade
VI. Por último, e mais importante, uma atenção especial deve merecer o fulcro do regime legal, constante dos arts. 15.º a 23.º da LCCG, relativos às Cláusulas Contratuais Gerais Proibidas39. A centralidade deste conjunto de disposições legais – outrossim que representar o “cerne”40 ou “aspeto nuclear”41 da própria economia global do diploma legal – resulta da cir- cunstância de ser nele que se consubstancia a limitação do conteúdo dos contratos de consumo: tal limitação traduz-se, basicamente, num princípio geral de controlo (arts. 15.º e 16.º da LCCG) e num extenso catálogo de cláusulas proibidas concretas (arts. 20.º a 22.º da LCCG).
VII. O princípio geral de controlo está assente no mandamento da boa-fé (art. 15.º da LCCG), ao qual acrescenta, como diretiva concretizadora42, a ponderação dos valores fundamentais do direito em face da situação considerada, designadamente a confiança suscitada nas partes e os objetivos negociais pretendidos (art. 16.º da LCCG)43. É, todavia, evidente que o controlo ou a sindicância efetiva das cláusulas contratuais gerais nos negócios de consumo seria, pura e simplesmente, impraticável caso assentasse exclusivamente num tal mandamento jusprivatístico de caráter genérico: por essa razão, o legislador consagrou um extenso catálogo ou “lista negra”
da declaração, imputando-os ao seu autor; e, em segundo lugar, estimular o predisponente a expressar-se claramente, penalizando-o no caso de não o fazer com uma interpretação contrária aos seus interesses” (La Interpretación de las Condiciones Contratuales Generales, 51, in: 183 “Revista de Derecho Mercantil” (1987), 7-61). Sobre este princípio, vide desenvolvidamente Xxxxxxx, M. Xxxx, «Interpretatio contra Stipulatorem» y Princípio de Interpretación más Favorable al Consumidor, in: XVIII “Actualidad Civil” (1994), 315-328; Xxxxx, Xxxxxxx, «Ambiguitas contra Stipulatorem», in: “Juristische Blätter” (1981), 666-673.
39 Intimamente conexo com ele, estão ainda o Capítulo IV, que prevê a disciplina da invalidade das cláusulas proibidas (arts. 12.º a 14.º), e o Capítulo VI, que prevê os meios processuais de reação às cláusulas proibidas, em especial a ação inibitória (arts. 24.º a 34.º).
40 Xxxxxxxx, X. Menezes, Manual de Direito Comercial, 594, 3.ª edição, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
41 Xxxxx, X. Xxxxxxx/ Xxxxxxxx, X. Menezes, Cláusulas Contratuais Gerais: Anotação ao Xxxxxxx-Xxx x.x 000/00, xx 00 xx xxxxx, 00, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
42 Segundo alguns, aliás, de valor precetivo duvidoso: cf. Xxxxxxxxxxx, X. Pais, Teoria Geral do Direito Civil, 631, 5.ª edição, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
43 Ascensão, X. Xxxxxxxx, Cláusulas Contratuais Gerais, Cláusulas Abusivas e Boa-Fé, in: 60 “Revista da Ordem dos Advogados” (2000), 573-595; Xxxxxxx, X. Xxxxx, A Boa Fé como Norma de Validade, esp. 720 e ss., in: “Ars Iudicandi – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor A. Castanheira Neves”, vol. II, 000-000, Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
de cláusulas proibidas relativas aos contratos celebrados entre empresários e consumidores finais (arts. 20.º a 22.º da LCCG). Tais cláusulas foram agrupadas pelo legislador em duas classes ou tipos fundamentais: as cláusulas absolutamente proibidas (art. 21.º da LCCG) e as cláusulas relativamente proibidas (art. 22.º da LCCG). A contraposição legal assenta fundamentalmente no critério do alcance ou efeitos da proibição: ao passo que as cláusulas do primeiro tipo são sempre vedadas em contratos de adesão (sendo a sua inclusão ou inserção sancionada com a nulidade da cláusula: cf. art. 12.º da LCCG)44, as cláusulas do último tipo poderão ser ou não vedadas, consoante o juízo de valor que sobre elas for realizado à luz do quadro negocial no seu conjunto (ou seja, podendo ser nulas ou válidas consoante o “quadro negocial padronizado”: cf. art. 22.º, proémio, da LCCG)45.
VIII. As primeiras (cláusulas absolutamente proibidas), constantes do art. 21.º da LCCG, podem ser classificadas em dois grupos: cláusulas relativas aos direitos e deveres contratuais e cláusulas relativas às garantias do consumidor46.
44 Uma vez declarada a nulidade, o aderente pode optar pela manutenção do contrato (art. 13.º, n.º 1 da LCCG), o que implica a vigência, na parte afetada, das normas legais supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos (art. 13.º, n.º 2 da LCCG). Caso o aderente não exerça a faculdade prevista pelo art. 13.º, ou o seu exercício originar um desequilíbrio de prestações gravemente lesivo da boa-fé, passará a vigorar o regime geral da redução dos negócios jurídicos (art. 292.º do CCivil).
45 Justamente em virtude da necessidade de realização de um juízo valorativo sobre o quadro negocial padronizado, numerosas proibições relativas constantes do elenco legal recorrem a conceitos indeterminados, como tais carecidos de concretização caso a caso: v.g., “pré-aviso adequado”, “motivo adequado”, “prazos manifestamente curtos”, “antecipações exageradas” e outros semelhantes. Sobre o referido juízo valorativo, vide o Acórdão do STJ de 21-III-2006 (Xxxxx Xxxxx), in: XIV CJ/STJ (2006), I, 145-148.
46 Para algumas ilustrações jurisprudenciais de cláusulas abrangidas pelo art. 21.º da LCCG, vide o Acórdão do STJ de 3-XII-1998 (Xxxxxxx Xxxxxxxx), sobre condições gerais de utilização de cartões de crédito (in: VI CJ/STJ (1998), III, 140-145); o Acórdão do STJ de 17-VI-1999 (Xxxxxx xx Xxxxxxxxxxx), sobre condições gerais de utilização de cartões de crédito (in: VII CJ/STJ (1999), II, 148-150); o Acórdão do STJ de 19-XI-2002 (Xxxxxxx Xxxxx), sobre condições gerais de utilização de cartão eurocheque (in: X CJ/STJ (2002), III, 135-139); o Acórdão do STJ de 19-IX-2006 (Xxxxxxx Xxxxxx), a propósito de contrato de aluguer de longa duração (in: XIV CJ/STJ (2006), III, 59-63); o Acórdão da RL de 9-VI-1994 (Xxxxxx Xxxxxxx), a propósito de contratos predispostos por empresa bancária relativos à utilização de eurocheques (in: XIX CJ (1994), III, 107-109); e o Acórdão da RL de 8-XI-2007 (Xxxxx
Por um lado, temos cláusulas relativas aos direitos e deveres contratuais: são assim vedadas, em qualquer, caso as cláusulas que “limitem ou de qualquer modo alterem obrigações assumidas, na contratação, diretamente por quem as predisponha ou pelo seu representante” (alínea a)), “confiram, de modo direto ou indireto, a quem as predisponha, a faculdade exclusiva de verificar e estabelecer a qualidade das coisas ou serviços fornecidos” (alínea b)), “permitam a não correspondência entre as prestações a efetuar e as indicações, especificações ou amostras feitas ou exibidas na contratação” (alínea c)) ou “excluam os deveres que recaem sobre o predisponente, em resultado de vícios da prestação, ou estabeleçam, nesse âmbito, reparações ou indemnizações pecuniárias predeterminadas” (alínea d)). Trata-se, no essencial, de impedir que o predisponente, através de uma regulação contratual injustificada dos seus direitos e deveres – mormente, uma limitação das suas obrigações contratuais ou uma exclusão das garantias legais de prestação isenta de vícios – possa afetar a concreta obtenção, por parte dos consumidores finais, dos bens ou serviços que são objeto do contrato.
Por outro lado, temos ainda cláusulas relativas às garantias do consumidor:
aqui se incluem as cláusulas que “atestem conhecimentos das partes relativos ao contrato, quer em aspetos jurídicos, quer em questões materiais” (alínea e)), “alterem as regras respeitantes à distribuição do risco” (alínea f )), “modifiquem os critérios de repartição do ónus da prova ou restrinjam a utilização de meios probatórios legalmente admitidos” (alínea g)), ou “excluam ou limitem de antemão a possibilidade de requerer tutela judicial para situações litigiosas que surjam entre os contratantes ou prevejam modalidades de arbitragem que não assegurem as garantias de procedimento estabelecidas na lei” (alínea h)). Trata-se agora de prevenir que a posição do consumidor possa ser afetada por expedientes destinados a diminuir as suas garantias, seja através de uma redistribuição do risco contratual, do risco em sede probatória ou ainda do risco em sede de resolução de conflitos.
IX. As cláusulas relativamente proibidas, cujo elenco consta do art. 22.º, n.º 1 da LCCG, podem também ser ordenadas funcionalmente em vários grupos: cláusulas relativas à duração, vigência e termo do contrato, cláusulas
Xxxxxx), sobre condições gerais de serviço de “internet” (in: XXXII CJ (2007), V, 84-87). Sobre o fenómeno no âmbito imobiliário, vide Olmos, C. Ranzini, Práticas e Cláusulas Abusivas nas Relações de Consumo de Aquisição Imobiliária, Almedina, São Paulo, 2015.
relativas ao cumprimento do contrato, cláusulas relativas ao preço e cláusulas relativas a matérias heterogéneas47.
Um primeiro grupo é composto por cláusulas relativas à duração, vigência e termo contratuais: aqui se incluem as que “prevejam prazos excessivos para a vigência do contrato ou para a sua denúncia” (alínea a)), “permitam, a quem as predisponha, denunciar livremente o contrato, sem pré-aviso adequado, ou resolvê-lo sem motivo justificativo, fundado na lei ou em convenção” (alínea b)), “atribuam a quem as predisponha o direito de alterar unilateralmente os termos do contrato, exceto se existir razão atendível que as partes tenham convencionado” (alínea c); cf., todavia, o n.º 2), “imponham a renovação automática de contratos através do silêncio da contraparte, sempre que a data limite fixada para a manifestação de vontade contrária a essa renovação se encontre excessivamente distante do termo do contrato” (alínea h)) ou “confiram a uma das partes o direito de pôr termo a um contrato de duração indeterminada, sem pré-aviso razoável, exceto nos casos em que estejam presentes razões sérias capazes de justificar semelhante atitude” (alínea i)).
Um segundo grupo é constituído por cláusulas relativas ao cumprimento
contratual: aqui se abrangem as cláusulas que “afastem, injustificadamente, as regras relativas ao cumprimento defeituoso ou aos prazos para o exercício de direitos emergentes dos vícios da prestação” (alínea g)), “imponham antecipações de cumprimento exageradas” (alínea l)), ou “fixem locais, horários ou modos de cumprimento despropositados ou inconvenientes” (alínea n)).
Um terceiro conjunto é representado por cláusulas relativas ao preço: aqui se abrangem as cláusulas que “estipulem a fixação do preço de bens
47 Para ilustrações jurisprudenciais de cláusulas proibidas pelo art. 22.º da LCCG, vide o Acórdão do STJ de 6-VI-1993 (Xxxxxxxxxx xx Xxxxx), a propósito de contrato de empresa de fornecimento de gás, que também incluía cláusulas proibidas pelo art. 18.º, a) a d) da LCCG (in: 427 BMJ (1993), 509-515); o Acórdão do STJ de 23-XI-1999 (Xxxxxx Xxxxxxx), a propósito de cláusulas de livre denúncia em contratos bancários de cartão de débito (in: 491 BMJ (1999), 241-257); o Acórdão do STJ de 19-IX-2006 (Xxxxxxx Xxxxxx), a propósito de contrato de aluguer de longa duração (in: XIV CJ/STJ (2006), III, 59-63); o Acórdão do STJ de 17-V-2007 (Xxxxxxxx Xxxxx), relativo a cláusula de livre denúncia inserta em contrato de utilização de cartão bancário (in: XV CJ/STJ (2007), II, 77-80); e o Acórdão da RL de 27-II-2003 (R. Xxxxxxx Xxxxxx), relativo a cláusula de livre redução e resolução em contrato de seguro (in: XXVIII CJ (2003), I, 118-122).
na data da entrega, sem que se dê à contraparte o direito de resolver o contrato, se o preço final for excessivamente elevado em relação ao valor subjacente às negociações” (alínea d)), “permitam elevações de preços, em contratos de prestações sucessivas, dentro de prazos manifestamente curtos, ou, para além desse limite, elevações exageradas, sem prejuízo do que dispõe o artigo 437.º do Código Civil” (alínea e); cf., todavia, os n.os 3 e 4), e “impeçam a denúncia imediata do contrato quando as elevações dos preços a justifiquem” (alínea f)).
Por fim, uma última categoria residual respeita a cláusulas com finalidades heterogéneas: são exemplos as cláusulas que “impeçam, injustificadamente, reparações ou fornecimentos por terceiros” (alínea j)), “estabeleçam garantias demasiado elevadas ou excessivamente onerosas em face do valor a assegu- rar” (alínea m)) ou “exijam, para a prática de atos na vigência do contrato, formalidades que a lei não prevê ou vinculem as partes a comportamentos supérfluos, para o exercício dos seus direitos contratuais” (alínea o))48.
X. A terminar, vai ainda a tempo de advertir para dois aspetos com- plementares, mas importantes, do regime das cláusulas contratuais gerais com reflexos na disciplina da contratação de consumo. O primeiro diz respeito à relevância das “listas negras” relativas aos contratos celebrados entre empresários. É consabido que a LCCG repousa numa distinção fundamental entre duas categorias de cláusulas proibidas, assente no critério do status das partes contratantes: cláusulas relativas a “relações entre empresários ou entidades equiparadas” (arts. 17.º a 19.º da LCCG) e cláusulas relativas a “relações com consumidores finais” (arts. 20.º a 22.º da LCCG): ora, por força da parte final do art. 20.º da LCCG (que considera ainda aplicáveis “as proibições constantes das seções anteriores”), será também vedada a inclusão nos contratos de consumo das cláusulas proibidas constantes dos elencos dos arts. 18.º e 19.º da LCCG49. O segundo aspeto prende-se com
48 Um exemplo recente do relevo prático destas cláusulas são as chamadas cláusulas de fidelização do consumidor, consistentes na previsão de um período contratual mínimo (“período de fidelização”) nos contratos de consumo duradouros ou sem termo (art. 8.º, n.º 1, h) da LDC, art. 4.º, n.º 1, p) da LCCD, art. 48.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro). Cf. Carvalho, J. Xxxxxx, Período de Fidelização, in: AAVV, “I Congresso de Direito do Consumo”, 00-00, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000; na Jurisprudência, Acórdão do STJ de 14-XI-2013 (Xxxx Xxxxxxxx), in: XXI CJ/STJ (2013), III, 131-135.
49 A justificação para tal perímetro alargado de aplicação prende-se essencialmente com a natureza mais débil dos aderentes, que aqui são consumidores e não empresários ou
a relevância do controlo legal ao nível da própria formação dos contratos de consumo, que não apenas do seu conteúdo. As cláusulas contratuais gerais constituem meros modelos contratuais padronizados e uniformes que, sendo pré-elaborados para uma pluralidade indeterminada de contratos, apenas adquirem relevância jurídica se e a partir do momento em que são inseridas em contratos de adesão singulares e concretos, mediante a aceitação ou adesão do destinatário. Ora, justamente para assegurar a proteção do aderente logo na fase pré-contratual e de formação contratual, o legislador previu uma disciplina especial que fez depender a inserção das cláusulas contratuais gerais nos contratos singulares de um dever de comunicação ao aderente dessas cláusulas (art. 5.º da LCCG), de um dever de informação sobre o alcance destas (art. 6.º da LCCG) e da inexistência de cláusulas contratuais particulares prevalentes (art. 7.º da LCCG): a inobservância destes deveres é sancionada com a sua expurgação do contrato de adesão celebrado (art. 8.º da LCCG), o qual, em princípio, subsistirá mediante o recurso às normas supletivas e integradoras gerais (art. 9.º da LCCG)50.
4.2. Práticas Comerciais Desleais
I. Do mesmo passo, constitui também marca distintiva da moderna contratação mercantil o recurso frequente dos empresários e profissionais
– na desbragada ânsia de venderem os seus produtos e serviços, derrotarem
profissionais liberais agindo nessa qualidade. Atentas as necessidades acrescidas de proteção neste caso, compreende-se que às proibições específicas previstas na lei se aditem, ad fortiori, as proibições relativas aos casos em que o aderente é um empresário ou profissional liberal – as quais acabam, assim, por funcionar como uma espécie de mínimo denominador comum para a utilização de cláusulas contratuais gerais em qualquer tipo de contrato de adesão. Cf. também Xxxxx, X. Xxxxxxx, Síntese do Regime Jurídico Vigente das Cláusulas Contratuais Gerais, 25, 2.ª edição, UCP Editora, Lisboa, 1999.
50 Sublinhe-se a diversidade das consequências no plano da formação e do conteúdo negociais: ao passo que as cláusulas que envolvam a violação das regras de inserção contratual são sancionadas com a sua exclusão do contrato, considerando-se liminarmente expurgadas do acordo e não produzindo quaisquer efeitos jurídicos, as cláusulas que envolvem a violação de regras relativas ao conteúdo do contrato (cláusulas contratuais “proibidas” ou abusivas: cf. arts. 15.º e segs. da LCCG) são feridas de nulidade, o que significa que, embora inválidas, não deixam de produzir efeitos práticos até à eventual declaração da sua nulidade.
os seus concorrentes e maximizarem os seus lucros – a práticas comerciais suscetíveis de afetar a liberdade contratual dos consumidores: exibir marcas de confiança sem autorização necessária, promover a venda de um produto a preço inferior a fim de vender outro, criar a ilusão de ofertas gratuitas ou prémios associados ao ato da compra, envolver o consumidor em esquemas de pirâmide e enviar-lhe bens ou serviços não encomendados são apenas alguns exemplos por todos nós conhecidos dessas práticas comerciais desleais (unfair commercial practices, unlautere geschäftlichen Handlungen, pratiques commerciales déloyales, pratiche commerciali sleale)51.
II. Tradicionalmente, a repressão destas práticas foi obtida exclusiva- mente através do instituto da concorrência desleal. Esta situação, todavia, mostrava-se duplamente insatisfatória: por um lado, este instituto visa classicamente a proteção dos interesses das empresas concorrentes e dos interesses gerais de organização do mercado, só reflexamente tutelando os interesses dos consumidores lesados por atos de concorrência desleal; por outro lado, as legislações nacionais em matéria de práticas comerciais desleais exibem diferenças significativas, criando assim um complexo mosaico regulatório no âmbito das relações comerciais transfronteiriças entre empresas e consumidores. A fim de colmatar esta lacuna, o legislador português – sob a batuta direta do legislador comunitário (Diretiva 2005/29/ CE, de 11 de maio)52 – instituiu um regime jurídico específico em matéria
51 Sobre tais práticas e a tutela do consumidor, vide, entre nós, Xxxxxxx, Xxxxxxxx, As Práticas Comerciais Desleais: Uma Proteção nas Relações com os Consumidores ou uma Limitação à Livre Concorrência e à Liberdade Contratualị, Diss., Lisboa, 2014; Xxxxxxxx, X. Morais, Práticas Comerciais Desleais das Empresas Face aos Consumidores, in: III “Revista de Direito das Sociedades” (2011), 187-219; Leitão, L. Menezes, As Práticas Comerciais Desleais nas Relações de Xxxxxxx, in: “Liber Amicorum Xxxxx Xxxxx”, 369-386, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000; Xxx, X. Pegado, Práticas Comerciais Desleais, in: IV “Estudos do Instituto de Direito do Consumo” (2014), 79-141; Xxxxxxxx, X. Dias, Práticas Comerciais Proibidas, in: III “Estudos do Instituto de Direito do Consumo” (2006), 147-173; Xxxxx, X. Xxxxxx, A Repressão das Práticas Comerciais Desleais das Empresas face aos Consumidores, in: 4 “Revista de Direito das Sociedades” (2012), 1009-1045. Noutros quadrantes, vide Xxxxxxxxx, Xxxxxx/ Xxxxxx, Xxxxxxx, Xx Xxxxxxxx Xxxxxxxxxxx Xxxxxx, Xxxxxxx, Xxxxxx, 0000; Xxxxxxxxx, Xxxxx, Pratiche Commerciali Scorrette, Xxxxxxx, Milano, 2010; Xxxxxxxxx, Xxxxxx, Unlautere geschäftliche Handlungen bei und nach Vertragsschluss, H. Utz Xxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
52 Sobre esta Diretiva, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno, vide Martins, A. Soveral, A Transposição da Directiva sobre Práticas Comerciais Desleais (Directiva 2005/29/CE) em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26
de práticas comerciais desleais nas relações das empresas com os consumidores: falamos da “Lei das Práticas Comerciais Desleais” (LPCD), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março. De entre os múltiplos aspetos a salientar, destaque-se a vocação genérica do regime legal, a proibição geral de práticas comerciais desleais e a previsão das modalidades principais dessas práticas.
III. Relativamente ao seu âmbito de aplicação, merece ser, desde logo, sublinhada a vocação genérica do regime legal. Com efeito, como logo no seu preceito inaugural se esclarece expressamente, o referido regime é “aplicável às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores, ocorridas antes, durante ou após uma transação comercial relativa a um bem ou serviço (...)” (art. 1.º da LPCD). Tal significa que o regime proibitivo legal das práticas comerciais desleais (art. 4.º da LPCD), longe de se confinar ao conteúdo dos contratos de consumo, vale tendencialmente para a totalidade do espetro das relações jusnegociais entabuladas entre empresas e consumidores, abrangendo indistintamente negócios jurídicos bilaterais (contratos) ou unilaterais e indo desde o plano da negociação e da formação negociais até ao do cumprimento e dos efeitos pós-contratuais. Nesta oportunidade, concentramo-nos exclusivamente naquelas disposições legais que, com vista a proteger o consumidor nas suas relações com as empresas, funcionam como limitações ao conteúdo dos contratos comerciais celebrados entre ambos53.
IV. Relativamente à cláusula geral de proibição de práticas comerciais desleais
(art. 4.º da LPCD), são três os pressupostos essenciais: a existência de um contrato de consumo – rectius, de uma relação jurídica de consumo entre um empresário/profissional e um consumidor –, a existência de uma prática comercial – ou seja, qualquer conduta ativa ou omissiva do empresário/ profissional relacionada diretamente com a promoção, a venda ou o for- necimento de um bem ou serviço ao consumidor (art. 3.º, d) da LPCD) – e a natureza desleal dessa prática – decorrente da sua desconformidade com o padrão de competência especializada e de cuidado que se pode
de março, in: AAVV, “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx”, vol. I, 000-000, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000; mais desenvolvimentos em Kolb, Xxxxxx, Die Übergangsregelung der Richtlinie über unlautere Geschäftspraktiken, Mohr Siebeck, Tübingen, 2016.
53 Sobre o relevo destas normas no plano da negociação e da formação contratuais, em particular dos deveres pré-contratuais de informação, vide já supra § 2-1.
razoavelmente esperar daquele nas suas relações com este, avaliado de acordo com a prática honesta de mercado e/ou com o princípio geral de boa-fé no âmbito da atividade profissional (“conformidade à diligência profissional”: cf. arts. 3.º, h) e 5.º, n.º 1 da LPCD)54 e da distorção ou suscetibilidade de distorção substancial do comportamento económico do consumidor seu destinatário relativamente a certo bem ou serviço, conduzindo-o a tomar uma decisão de transação que não teria tomado de outro modo (“distorção do comportamento do consumidor”: cf. arts. 3.º, e) e 5.º, n.º 1 da LPCD)55.
V. Finalmente, importa ainda referir a distinção legal entre duas moda- lidades específicas de práticas comerciais desleais: as práticas enganosas e as práticas agressivas (art. 6.º da LPCD)56.
VI. Em termos gerais, são consideradas enganosas as práticas comerciais adotadas por uma empresa nas suas relações negociais com os consumidores dos respetivos bens e serviços que, veiculando informações suscetíveis de induzir em erro ou omitindo informações substanciais para uma decisão negocial esclarecida, conduzem ou são suscetíveis de conduzir um consumidor a tomar a decisão de celebrar um contrato que este não teria tomado de outro modo (arts. 7.º, n.º 1 e 9.º, n.º 1, a) da LPCD)57.
54 Xxxxxxxx, Xxxx, Xxxxxxxx Commerciale Sleali e Diligenza Professionale: Profili Comparatistici e Diritto Europeo, Diss., Macerata, 2012.
55 Xxxxxxxxx, X. Xxxxx, A Cláusula Geral das Práticas Comerciais Desleais das Empresas face aos Consumidores, in: 758 “JusNet – Wolters Kluwer” (2009), 1-27. Tão relevante quanto problemático, para estes efeitos, é o conceito de “consumidor médio”, enquanto referente da aplicação das normas comunitárias e nacionais na matéria (art. 5.º, n.º 2 da LPCD): cf. Xxxxxx,
M. Xxxxxx, O Consumidor de Referência para Avaliar a Deslealdade da Publicidade e de Outras Práticas Comerciais, in: AAVV, “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx”, vol. I, 000-000, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
56 Tal significa dizer que, ao lado da cláusula geral das práticas comerciais desleais, o legislador previu e regulou as modalidades especiais mais comuns dessas práticas – as quais, por seu turno, são também reguladas através de uma cláusula geral (arts. 7.º e 11.º da LPCD) e um elenco casuístico (arts. 8.º e 12.º da LPCD). Sublinhe-se que, ao lado das duas referidas no texto, a lei previu ainda uma terceira: as práticas contra consumidores particularmente vulneráveis (art. 6.º, a) da LPCD) (cf. Xxxxxxxxx, X. Rigor, A Proteção dos Consumidores Particularmente Vulneráveis nas Práticas Comerciais Desleais, in: 56 “Revista Portuguesa de Direito do Consumo” (2008), 83-118).
57 Sobre a figura, Xxx, Xx Xxxx, A Tutela dos Consumidores nas Publicidades Enganosas, esp. 429 e ss., in: 12 “Estudos de Direito do Consumidor” (2017), 423-453.
Desta cláusula geral decorrem assim limitações positivas e negativas ao conteúdo dos contratos de consumo: o clausulado contratual deve (positivamente) fazer menção expressa e (negativamente) não conter informação inverídica ou falaz, relativamente aos vários aspetos substanciais da relação negocial estabelecida (v.g., caraterísticas do bem ou serviço, seus riscos, seus acessórios, entrega, garantias de conformidade, preço e respetiva forma de cálculo, serviços pós-venda, obrigações da empresa, direitos do consumidor, etc.)58. Mas o legislador foi mais longe, consagrando expressamente uma “lista negra” de práticas negociais enganosas, de caráter meramente exemplificativo: são, assim, proibidas e inválidas, entre outras, as cláusulas ou condutas que proponham ao consumidor-comprador a aquisição de determinado bem ou serviço, seguidas de alteração do preço respetivo, apresentação de amostra defeituosa ou recusa de fornecimento do mesmo, com a intenção de promover um bem ou serviço diferente (“isco-troca”: cf. art. 8.º, f)); que envolvam o consumidor-comprador num sistema de promoção em que aquele dá a sua própria contribuição em troca da possibilidade de receber uma contrapartida que decorra essencialmente da entrada de outros consumidores no sistema (vendas em “pirâmide”: cf. art. 8.º, r)); ou que apresente como caraterística distintiva da oferta do bem ou serviço vendido direitos do consumidor previstos na lei (art. 8.º, m), todos da LPCD)59.
VII. Por seu turno, são reputadas agressivas as práticas comerciais ado- tadas por uma empresa nas suas relações negociais com os consumidores dos respetivos bens e serviços que, limitando ou sendo suscetíveis de limitar
58 Retenha-se, ainda, o disposto no art. 10.º, que contém um elenco dos aspetos negociais que devem necessariamente acompanhar a proposta contratual ou o convite a contratar, tais como as caraterísticas principais do bem ou serviço, o endereço geográfico, a identidade do empresário e sua designação comercial, o preço (incluindo impostos e taxas) ou o modo como é calculado (bem como, se for caso disso, todos os custos suplementares de transporte, expedição, entrega e serviços postais), as modalidades de pagamento, de expedição ou de execução e o mecanismo de tratamento das reclamações, ou existência dos direitos de resolução ou de anulação, qualquer que seja a denominação utilizada, sempre que resultem da lei ou do contrato.
59 Considerando que as práticas comerciais desleais podem fundamentar a recusa de registo de direitos privativos de propriedade industrial, mormente marcas (art. 304.º, n.º 1, e) do Código da Propriedade Industrial), vide Leitão, A. Menezes, Práticas Comerciais Desleais como Impedimentos à Outorga de Direitos Industriais, 562 e ss., in: AAVV, “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx”, vol. I, 547-567, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
significativamente a liberdade de escolha destes devido a assédio, coação ou influência indevida, conduzam ou sejam suscetíveis de conduzir um consumidor a tomar uma decisão de celebração contratual que não teria tomado de outro modo (art. 11.º, n.º 1 da LPCD)60.
Sem dúvida que a grande maioria das situações abrangidas por tal cláusula geral, bem assim como pela “lista negra” exemplificativa prevista no art. 12.º, dirá respeito ao processo de negociação e formação contratual, não se projetando, desse modo, a não ser ocasional ou reflexamente, no teor dos contratos de consumo propriamente dito: assim, por exemplo, o TJUE qualificou recentemente como prática desleal agressiva a comercialização de cartões SIM que contêm serviços pré-instalados e previamente ativados, sempre que os consumidores não hajam sido informados previamente dessas condições61. Não obstante, a proibição legal da agressividade comercial não é totalmente inócua da perspetiva do conteúdo contratual: pense-se, por exemplo, na imposição contratual de uma obrigação a cargo de um tomador de seguro, que pretenda solicitar a liquidação do sinistro, de apresentar documentação irrelevante, designadamente com o fito de o dissuadir do exercício dos seus direitos contratuais (art. 12.º, d) da LPCD; cf. ainda os arts. 3.º e 19.º, n.º 2 da LCS).
VIII. Tanto as práticas enganosas como agressivas, para além de outras
consequências de ordem vária – designadamente, a eventual responsabi- lização civil (art. 15.º) e contraordenacional (art. 21.º) do empresário –, podem dar origem à invalidade do contrato de consumo: nos termos da lei, “os contratos celebrados sob a influência de alguma prática comercial desleal são anuláveis a pedido do consumidor, nos termos gerais do artigo 287.º do Código Civil” (art. 14.º, n.º 1). Esta invalidade, todavia, poderá não ter lugar por vontade do próprio consumidor, que poderá optar alternativamente, seja por uma modificação dos termos contratuais realizada segundo juízos de equidade (art. 14.º, n.º 2), seja pela manutenção do contrato expurgado da cláusula ou cláusulas inválidas (art. 14.º, n.º 3, todos da LPCD)62.
60 Sobre a figura, vide desenvolvidamente Xxxxxx, M. Adalgisa, Pratiche Commerciali Agresive, Cedam, Padova, 2010.
61 Acórdão do TJUE de 13-VII-2018 (“Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato” c. “Wind Tre SpA” e “Vodafone Italia Sp”), in: ECLI: EU:C:2018:710.
62 Saliente-se, todavia, que o Acórdão do TJUE de 19-IX-2018 (“Bankia SA v. Xxxx Xxxxxx Xxxx e Outros”) veio considerar que as legislações nacionais dos Estados-Membros não estão
5. Efeitos
I. Os contratos de consumo exibem também um conjunto de parti- cularidades no plano dos respetivos efeitos: essas particularidades podem ser encontradas tanto no que diz respeito às obrigações contratuais do empresário/profissional (com particular destaque para o conceito de conformidade com o contrato) quanto às do próprio consumidor (com destaque para o preço).
II. Tradicionalmente, o cumprimento dos contratos reconduz-se exclu- sivamente à realização, pelo contraente devedor, da prestação de coisa ou de facto a que este se obrigou (art. 762.º, n.º 1 do CCivil): transposta esta doutrina clássica para os contratos de consumo, tal significaria dizer que o cumprimento contratual se esgota essencialmente na realização da prestação do empresário ou profissional (fornecimento do bem, prestação do serviço ou transmissão do direito) nas condições de lugar (arts. 772.º e segs. do CCivil) e de tempo (arts. 777.º e segs. do CCivil) decorrentes de acordo das partes ou disposição especial na lei. Tal visão tradicional revela-se inidónea para assegurar um nível de proteção suficientemente elevado ao consumidor, já que fragmenta essa proteção em caso de incumprimento da prestação debitória (maxime, a garantia da sua qualidade) por uma complexa plêiade de mecanismos de reação (erro sobre o objeto negocial, venda de coisas oneradas e defeituosas: cf. arts. 251.º, 905.º e segs., 913.º e segs. do CCivil), impede aquele de exigir a reparação ou substituição dos bens defeituosos nos casos em que o vendedor desconhece sem culpa o defeito e sujeita-o a um ónus de verificação das qualidades desses bens. Daí que existam múltiplas especialidades no âmbito da contratação de consumo63.
impedidas de proibir que a validade de título executivo seja fiscalizada, oficiosamente ou a pedido das partes, à luz da existência de práticas comerciais desleais (in: ECLI: EU:C:2018:735).
63 Não tomaremos aqui em consideração às disposições transitórias e excecionais apro- vadas na sequência da crise pandémica de 2020, como é o caso do art. 11.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março (viagens organizadas), Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março (espetáculos de natureza artística), Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março (proteção dos créditos das famílias e empresas), Decreto-Lei n.º 17/2020, de 23 de abril (reservas de empreendimentos turísticos), Lei n.º 7/2020, de 10 de abril (serviços públicos essenciais), e Decreto-Lei n.º 20-E/2020, de 12 de junho (vendas em saldo). Sobre o ponto, vide Xxxxxxxx,
J. Morais, COVID-19 e Direito do Consumo, in: 152 “Revista do Ministério Público” (2020), 285-310.
5.1. Conformidade com o Contrato
I. Desde logo, ao arrepio desta doutrina clássica, o regime do cumpri- mento dos contratos de consumo encontra hoje o seu centro de gravidade regulatório no conceito de conformidade com o contrato, segundo o qual os bens, serviços ou direitos objeto de determinado contrato devem possuir as caraterísticas acordadas pelos contraentes (qualidade, quantidade, tipo, etc.), servir as finalidades específicas a que se destinam e ser funcionalmente adequados às utilizações habituais de bens ou serviços idênticos (conformity with the contract, Vertragsmässigkeit, conformité au contrat).
II. Tal conceito – que constitui crescentemente um elemento caraterís- tico da contratação mercantil em geral64 e que ecoa já essencialmente no direito à qualidade dos consumidores (art. 4.º da LDC)65 – foi expressamente acolhido pelo art. 2.º da LVBC, que dispõe que “o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda”, consagrando, assim, uma noção lata e uniforme de incumprimento que confere uma acrescida proteção ao consumidor66. Isto significa também dizer que, para o mais clássico dos contratos civis (art. 874.º do CCivil) e comerciais (art. 463.º do CCom), o legislador português adotou uma conceção lata e uniforme de incumprimento, unificando debaixo de um
64 Sobre o relevo deste conceito nos contratos comerciais em geral, vide Xxxxxxx, X. Engrácia, Direito dos Contratos Comerciais, 250 e ss., 7.ª reimpressão, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
65 Sobre o direito à qualidade dos bens de consumo, enquanto bens dotados de uma aptidão ou adequação funcional apreciada segundo as “legítimas expetativas do consumidor”, vide supra
§ 10-3. Sem prejuízo da sua eventual relevância ou inter-relações nos casos concretos, advirta-se que aquele conceito não se confunde com a exigência prevista na lei de uma “declaração de conformidade” dos fabricantes dos produtos na respetiva colocação de mercado, bem como de outros operadores económicos intervenientes no posterior circuito comercial (v.g., art. 18.º do Decreto-Lei n.º 57/2017, de 9 de junho). Cf. Acórdão da RL de 25-X-2017 (Xxxxx xx Xxxxxxx), in: xxx.xxxx.xx.
66 Sobre a noção e os critérios legais da conformidade contratual nas vendas de bens de consumo, vide Assunção, A. Xxxxxx, Os Direitos do Consumidor em Caso de Desconformidade do Bem com o Contrato na Compra e Venda de Bens de Consumo, Diss., Universidade Nova, Lisboa, 2016; Xxxxxxxx, X. Morais, Direitos do Consumidor em Caso de Falta de Conformidade do Bem com o Contrato, in: 145 “Revista de Legislação e de Jurisprudência” (2016), 237-248; Xxxxx,
P. Mota, Conformidade e Garantias na Venda de Bens de Consumo, in: 2 “Estudos de Direito do Consumidor” (2000), 197-331; Xxxxx, X. Calvão, Venda de Bens de Consumo, 80 e ss., 4,ª edição, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
conceito e um regime comuns aquilo que até então se encontrara disperso por uma variedade de noções (“defeito”, “vício”, “falta de qualidade”), regimes (cumprimento defeituoso, venda de coisas defeituosas e oneradas, erro sobre o objeto negocial) e preceitos jurídicos distintos (mormente, arts. 251.º, 799.º, n.º 1, 905.º, 913.º, e 1218.º do CCivil)67.
III. Para além desta significativa evolução em termos dogmáticos, são igualmente evidentes os seus efeitos práticos. Ao passo que no regime clássico do cumprimento a proteção do comprador se encontrava espartilhada por um intrincado feixe de mecanismos diferenciados consoante a coisa comprada padecesse de vícios materiais ou jurídicos, agora aquela é obtida de forma simples e unitária a partir do momento em que a coisa vendida apenas é conforme ao contrato se for entregue ao comprador sem qualquer limitação física, jurídica ou outra; e ao passo que o regime clássico do cumprimento se pautava pelo princípio caveat emptor (o comprador que se acautele), o regime assente na conformidade com o contrato inverte uma teleologia normativa centenária, que agora se inspira antes na máxima caveat venditor (o vendedor que se cuide)68. A falta de conformidade da prestação debitória com o contrato investe o consumidor afetado (maxime, o comprador) numa série de medidas de tutela, que consistem essencialmente, ressalvadas algumas nuances, num direito à reparação e substituição do bem desconforme, à redução do preço ou à resolução do contrato (arts. 45.º e segs. da Convenção de Viena, art. 3.º da Diretiva 1999/44/CE, art. 4.º da LVBC), cumulativamente com uma indemnização por perdas e danos (arts. 74.º e segs. da Convenção de Viena, art. 12.º, n.º 1 da LDC, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril)69.
67 Neste sentido, especialmente para os contratos de consumo, vide Xxxxxxx, C. Ferreira, Direito do Consumo, 165 e ss., Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000; Xxxxx, X. Calvão, Compra e Venda de Coisas Defeituosas – Conformidade e Segurança, 000, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
68 Segundo Xxxx Xxxxx, no caso “Xxxxxx v. Finning” (1997), “a mudança do «caveat emptor» para o «caveat venditor» constitui uma caraterística notável do desenvolvimento do Direito Comercial” (cf. Xxxxxxxx, Xxxxxx, Xxxxxxxxxx Xxx, 000, 3.rd edition, Butterworths, London, 2000). Sobre o ponto, vide ainda, entre nós, Xxxxxx, L. Menezes, Caveat Venditorị A Directiva 1999/44/CE do Conselho e do Parlamento Europeu sobre a Venda de Bens de Consumo e Garantias Associadas e Suas Implicações no Regime Jurídico do Contrato de Compra e Venda, in: AAVV, “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor I. Xxxxxx Xxxxxx”, vol. I, 000-000, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
69 Cf., respetivamente, Xxxxxx, Xxxx, The Rules of Convention Relating to Buyer’s Remedies in Cases of Breach of Contract, especialmente 114 e ss., in: AAVV, “Problems of Unification
5.2. Boa-Fé
I. Pese embora tratar-se de um mandamento geral do cumprimento contratual (art. 762.º, n.º 2 do CCivil), importa salientar que a boa-fé na realização da prestação contratual foi objeto de uma consagração especial no âmbito dos contratos de consumo. Assim, para além da sua previsão em pleno âmago dos direitos fundamentais dos consumidores (art. 9.º, n.º 1 do LDC) e do padrão de conduta contratual das suas contrapartes empresariais (art. 3.º, h) da LPCD), ela aflora expressamente no regime legal dos contratos à distância (art. 5.º, n.º 1 da LCCD) e dos contratos de serviços públicos essenciais (art. 3.º da LSPE)70.
II. Repare-se, todavia, que essa exigência de boa-fé não é unidirecional ou exclusiva do cumprimento do empresário ou profissional, a ela se encontrando também submetidos os consumidores (que a violarão, por exemplo, ao celebrarem o contrato com o único propósito de utilizar e devolver posteriormente o bem dentro do prazo legal de exercício do direito de desistência)71.
5.3. Lugar e Prazo da Prestação
I. Cumpre ainda chamar a atenção para algumas particularidades do regime do lugar e prazo da prestação do empresário ou profissional. Quanto ao lugar da prestação, esta realiza-se usualmente no estabelecimento
of International Sales Law”, 000-000, Xxxxxx, Xxx Xxxx/ Xxxxxx/ Xxxx, 0000; Xxxxx, X. Mota, Conformidade e Garantias na Venda de Bens de Consumo. A Directiva 1999/44/CE e o Direito Português, 252 e ss., in: 2 “Estudos de Direito do Consumidor” (2000), 197-331; Leitão, L. Xxxxxxx, O Novo Regime da Venda de Bens de Consumo, 57 e ss., in: II “Estudos do Instituto de Direito do Consumo” (2005) 37-73.
70 Caldeira, Mirella, A Boa-Fé Objetiva como Princípio Norteador das Relações de Consumo, in: 2 “Revista do Curso de Direito da UM São Paulo” (2005), 193-217; Júnior, R. Xxxxxx, A Boa-Fé na Relação de Consumo, in: 14 “Revista de Direito do Consumidor” (1995), 20-27.
71 Sobre o abuso de direito no domínio jusconsumerista, vide Florença, Â. Xxxxxxx, O Abuso do Direito no Direito do Consumo, Diss., Universidade Nova de Lisboa, 2015. No caso específico das vendas de bens de consumo, Xxxxx, M. Santos, Os Direitos dos Consumidores em Caso de Desconformidade da Coisa Comprada e Sua Articulação com o Abuso de Direito, 61 e ss., Diss., Universidade Nova de Lisboa, 2011.
comercial deste (art. 773.º do CCivil), sem prejuízo da existência de certas regras especiais (mormente, no caso dos contratos eletrónicos B2C e dos contratos de prestação de serviços públicos essenciais).
II. Já quanto ao tempo da prestação, importa advertir para o regime especial previsto no art. 9.º-B da LDC, o qual prevê que o empresário ou profissional deve entregar os bens na data ou dentro do período fixado pelo consumidor (art. 9.º-B, n.º 1) ou, na falta dessa fixação, sem demora injustificada até ao prazo máximo de 30 dias após a celebração do contrato (art. 9.º-B, n.º 2), sob pena de o consumidor poder resolver o contrato. Esse direito de resolução pode ser exercido após o decurso de prazo adicional fixado pelo consumidor (art. 9.º-B, n.os 4 e 5) ou de imediato, caso o empresário se recuse a entregar os bens ou se se tratar de prazo essencial (art. 9.º-B, n.º 6), ficando este obrigado à restituição da totalidade do montante pago por aquele no prazo de 14 dias (art. 9.º-B, n.º 7) ou, em caso de incumprimento, à devolução em dobro do montante pago, sem prejuízo de eventual indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais (art. 9.º-B, n.º 8, todos da LDC).
5.4. Preço
I. Se os contratos de consumo têm como efeito principal, do ponto de vista do empresário/profissional, a prestação de um bem, serviço ou direito em conformidade com o contrato, eles encontram-no, do ponto de vista do consumidor, no pagamento de um preço. O preço dos produtos e serviços constitui um elemento essencial e estratégico dos contratos de consumo, sendo objeto de importantes regras em matéria da sua existência, modalidades, indicação, fixação e pagamento.
II. Desde logo, sendo um elemento natural, o preço não é um elemento contratual necessário, podendo existir contratos de consumo gratuitos. Estes podem ser contratos gratuitos puros – em que o bem ou serviço é oferecido ao consumidor sem qualquer obrigação ou contrapartida (o que, todavia, pode integrar uma prática comercial desleal: cf. art. 8.º, z) da LPCD)72 – e
72 A oferta gratuita de bens e serviços de consumo, maxime em campanhas de divulgação de empresas ou produtos, está vedada em certos bens (v.g., tabaco: cf. art. 16.º da Lei n.º 37/2007, de 14 de agosto), não se confundindo com a prestação de bens ou serviços não solicitados, que visam a conclusão de contratos onerosos (art. 9.º, n.º 4 da LDC, art. 12.º, f) da LPCD).
contratos gratuitos impuros ou híbridos – como sucede na oferta de bens ou serviços em contratos onerosos, seja no âmbito da celebração destes (em que ao consumidor é oferecido um ou mais bens a título gratuito, v.g., brindes, “pague dois, leve três”) (cf. ainda Decreto-Lei n.º 291/2001, de 20 de novembro, relativo à comercialização de géneros alimentícios com brinde)73, seja na sequência ou em consequência dessa mesma celebração (v.g., acumulação de pontos em cartões de fidelização, prémios de concursos ou sorteios: cf. art. 8.º, x) da LPCD)74.
III. Por outro lado, tenha-se presente que nem sempre o “preço” nos contratos de consumo consistirá necessariamente numa obrigação de prestação de uma quantia em dinheiro por parte do consumidor, podendo ainda ser relevantes outros tipos de contraprestações com valor pecuniário ou patrimonial. Tal poderá ser o caso de um número crescente de negócios ou relações jurídicas (especialmente, no domínio do comércio eletrónico) nos quais os bens são fornecidos ou os serviços são prestados ao consumidor em contrapartida da mera disponibilização por este último à empresa fornecedora ou prestadora dos seus dados pessoais: com efeito, tenha-se presente que os dados pessoais, que permitem identificar os consumidores e cujos armazenamento e tratamento automatizados podem fornecer modelos algorítmicos para a determinação das classes, preferências e tendências dos consumidores (Big Data), se transformaram hoje num bem transacionável de enorme valor económico75. O seu relevo jurídico como modalidade de
73 Cf. Carvalho, J. Morais, Reflexão em Torno dos Contratos Promocionais com Objeto Plural, in: “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor C. Xxxxxxxx xx Xxxxxxx”, vol. I, 499-520, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000. Os contratos promocionais que ofereçam bens de natureza diferente (v.g., oferta de um eletrodoméstico na adesão aos serviços de uma empresa) não se confundem com os contratos ligados, pois naqueles existe apenas um único contrato oneroso com um objeto misto, ao passo que nestes existem dois ou mais contratos autónomos com um objeto próprio, ligados entre si por um vínculo de subordinação. Sobre esta última figura, vide supra
§ 13-3.
74 Xxxxxx, X. Mendonça, Concurso com Atribuição de Prémio “Para a Melhor Frase” – Incumprimento do Promitente, in: AAVV, “Conflitos de Consumo”, 211-213, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
75 Sobre o relevo dos dados pessoais nas relações comerciais e de consumo, Xx Xxxxxxxxxx, Xxxxxxx/ Xxxxxxx, Xxxxxxx, Data as Tradeable Commodity and New Measures for their Protection, in: 1 “Italian Law Journal” (2017), 51-72; Xxxxxx, Xxxxxxxxx/ Xxxxxx, Xxxxxx/ Xxxxxxxxxxxx, Xxxx, Trading Data in the Digital Economy: Legal Concepts and Tools, Nomos, Baden-Baden, 2017;
contraprestação é hoje indiscutível em sede geral e abstrata, muito embora a sua qualificação definitiva só possa ser realizada em concreto caso a caso, especialmente tendo em atenção a apertada malha regulatória relativa à recolha, circulação e tratamento dos dados pessoais (LPDP, Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto, Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, Regulamento UE/2016/676, de 27 de abril, Diretiva UE/2016/680, de 27 de abril).
IV. Particularmente relevante é a informação sobre o preço dos produtos e serviços, a qual representa, além de condição de transparência e livre concorrência na economia de mercado, um pressuposto fundamental do poder de autodeterminação dos consumidores. O diploma base é o Decreto- Lei n.º 138/90, de 26 de abril, que estabelece a indicação obrigatória do preço dos bens nas vendas a retalho76, devendo ainda ter-se presente que a falta de informação sobre o preço poderá constituir uma violação dos direitos do consumidor (art. 8.º, n.º 1 da LDC) e uma prática comercial desleal (arts. 9.º, n.º 1 e 10.º, c) da LPCD), passíveis de sanções civis e contraordenacionais.
V. Destaque merece ainda o princípio geral de liberdade contratual da fixação do preço, o qual sofre, no domínio dos contratos de consumo, numerosas exceções legais. Tenha-se presente que existem preços máximos (v.g., medicamentos: cf. art. 8.º do Decreto-Lei n.º 97/2015, de 1 de junho) e preços fixos (v.g., livros: cf. Decreto-Lei n.º 176/96, de 16 de setembro) de venda ao público de certos tipos de bens e serviços. Além disso, as vendas a retalho com redução de preço, visando escoar as existências, aumentar o volume de vendas ou promover o lançamento de novos produtos, são objeto de uma regulação própria com vista à proteção dos consumidores e do próprio mercado, que inclui regras especiais em matéria das modalidades de redução permitidas (saldos, promoções, liquidações) e da formação (“preços de referência”) e informação (“afixação”) dos preços dos bens
Xxxx, Xxxxxxx, Data as a Tradeable Commodity, in: AAVV, “European Contract Law and the Digital Single Market”, 51-79, Intersentia, Cambridge, 2016.
76 A que acrescem depois abundantes normas especiais sobre determinados produtos e serviços, v.g. Portaria n.º 99/91, de 2 de fevereiro (preços de serviços de reparação automóvel), Portaria n.º 128/94, de 1 de março (preços de táxis), Portaria n.º 297/98, de 13 de maio (preços de serviços médicos), Portaria n.º 240/2000, de 3 de maio (honorários de advogados), Decreto-Lei n.º 170/2005, de 10 de outubro (preços da gasolina), Decreto-Lei n.º 65/2007, de 14 de março (preços de medicamentos sujeitos a receita médica), e Decreto-Lei n.º 107/2017, de 30 de agosto (comissões bancárias).
ou serviços transacionados a preços reduzidos (Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março)77.
VI. Finalmente, no que diz respeito ao pagamento do preço, a regra geral é a de que as partes contratantes são livres de acordar o meio de pagamento (v.g., numerário, cartões de débito, cartões de crédito, cheques), sendo proibido, todavia, que o empresário/profissional cobre ou desconte qualquer valor adicional ao preço contratado em função do meio utilizado (cf. Decreto-
-Lei n.º 3/2010, de 5 de janeiro, art. 7.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março). Saliente-se que se o comércio eletrónico veio, por um lado, criar novas modalidades de pagamento, por outro, e do mesmo passo, originou novos problemas: um deles é o chamado wap billing, modalidade de pagamento de conteúdos digitais de entretenimento (v.g., jogos, músicas, vídeos, toques, fundos de ecrã), acessíveis a dispositivos móveis sem fios (v.g., smartphones) por intermédio de protocolos de comunicação (WAP ou Wireless Application Protocol), que são faturados pelo prestador dos serviços de rede em nome e por conta da empresa fornecedora daqueles conteúdos78.
6. Extinção
I. Os contratos de consumo encontram-se sujeitos aos fundamentos ou causas gerais da extinção dos contratos e da cessação dos vínculos jurídicos deles emergentes (revogação, resolução, denúncia, caducidade), apresentando, todavia, algumas particularidades a merecer destaque especial.
77 São três os tipos ou modalidades relevantes das práticas comerciais com redução de preço: os saldos, que são vendas a preço reduzido com o objetivo de promover o escoamento acelerado das existências; as promoções, que são vendas a preço reduzido ou em condições mais vantajosas, com vista a promover a venda de determinados produtos, o lançamento de novos produtos e o desenvolvimento da atividade comercial; e as liquidações, que são vendas com redução de preço que revestem um caráter excecional, resultantes de motivos que determinem a interrupção da atividade do estabelecimento e visando o escoamento acelerado da totalidade ou de parte das suas existências (art. 3.º do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março). Tenha-se em atenção o Decreto-Lei n.º 20-E/2020, de 12 de junho (regime excecional e temporário das vendas em saldo). Cf., ainda, Brito, P. Quelhas, Promoção de Vendas e Comunicação de Preços, Almedina, Coimbra, 2016.
78 Xxxxxx, Xxxxx, Wap Billing: Problemas e Soluções, in: 14 “Estudos de Direito do Consumidor” (2018), 383-414.
6.1. Direito de Desistência
I. O traço mais emblemático da extinção dos contratos de consumo
– senão mesmo do regime geral destes contratos no seu todo, tendo-se tornado num verdadeiro “ex libris do direito do consumo” (C. Xxxxxxxx xx Xxxxxxx)79 – reside no direito de desistência. Este direito – também conhecido entre nós por designações diversas (mormente, direito de arrependimento) e consagrado noutras ordens jurídicas estrangeiras (Widerrufsrecht, withdrawal right, diritto di ripensamento, droit de repentir, derecho al desistimiento) – consiste no direito potestativo do consumidor se desvincular de um contrato de consumo já celebrado, durante um determinado prazo e através de mera declaração unilateral e discricionária80.
II. O direito de desistência, espécie de revivescência do ius poenitendi, constitui um traço típico do regime legal da moderna contratação mercantil em massa81. Com efeito, a massificação da oferta das empresas vendedo- ras de bens e serviços, assistida por sofisticadas e agressivas técnicas de comercialização, envolve frequentemente a ausência de uma verdadeira ou plena liberdade contratual por parte dos compradores/consumidores, seja pela pressão psicológica exercida sobre a decisão de contratar, seja pela vulnerabilidade excessiva aos métodos promocionais da venda, seja ainda
79 Xxxxxxx, X. Ferreira, Direito do Consumo, 106, Almedina, Coimbra, 2005.
80 Sobre a figura, Xxxxxx, A. Junqueira, Direito de Arrependimento nos Contratos de Consumo, Almedina, Coimbra, 2014; Xxxxxx, F. Gravato, O Direito de Revogação nos Contratos de Crédito ao Consumo, in: 307 “Scientia Ivridica” (2006), 457-491; Proença, C. Brandão, A Desvinculação Não Motivada nos Contratos de Consumo: Um Verdadeiro Direito de Resoluçãoị, in: 70 “Revista da Ordem dos Advogados” (2010), 219-272; Rebelo, F. Neves, O Direito de Livre Resolução no Quadro Geral do Regime Jurídico de Protecção do Consumidor, in: AAVV, “Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais”, vol. II, 572-617, Coimbra Editora, Coimbra, 2007. Para diferentes paragens, vide Xxxxx, Xxxxxxx, Zur Disponibilität gesetzlicher Widerrufsrechte im Privatrecht, in: 196 “Archiv für die civilistische Praxis” (1996), 313-361; Xxxxxxx, Geraint, The Right of Withdrawal in European Consumer Law, in: Schulte-Nölke, Xxxx/ Xxxxxxx, Xxxxxx (Hrsg.), “Europäisches Vertragsrecht im Gemeinschaftsrecht”, 229-238, Xxxxxxxxxxxxxx, Xxxx, 0000; Vicente, X. Xxxxxx, Ley de Contratos Celebrados Fuera de los Establecimientos Mercantiles: Xx Xxxxxxx xx Xxxxxxxxxx, Xxxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000.
81 Segundo alguns autores, estaríamos aqui diante do “elemento central da estratégia de tutela do interlocutor do empresário em algumas categorias dos contratos de empresa” (Buonocore, Xxxxxxxx, Contrattazione d’Impresa e Nuove Categorie Contrattuali, 153, Xxxxxxx, Milano, 2000).
pela falta de informação suficiente sobre os produtos adquiridos. Justamente a fim de proteger o “elo fraco” nestes contratos contra o risco de precipitação na hora de contratar e de lhe permitir amadurecer ideias durante um período de reflexão (colling-off period, delais de refléxion), mas também, por tabela, de assegurar a própria lealdade e liberdade da concorrência em mercado, são hoje numerosas as disposições legais que consagram tal direito de desistência, embora sob terminologia e até alcance diversos: pense-se, por exemplo, no “direito de resolução” nos contratos de aquisição de direitos reais de habitação periódica (art. 16.º do Decreto-Lei n.º 275/93, de 5 de agosto)82, no “direito de livre resolução” nos contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial (art. 10.º da LCCD, art. 9.º, n.º 7 da LDC)83, no “direito à livre resolução” nos contratos financeiros comercializados à distância (arts. 19.º e segs. do Decreto-Lei n.º 95/2006, de 29 de maio)84, no “direito de livre revogação” nos contratos de crédito ao consumo (art. 17.º da LCC)85 ou no “direito à retratação” nos contratos de viagem organizada (art. 26.º do Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março).
III. Como é evidente, a crescente consagração legal deste direito,
permitindo a uma das partes contratantes retratar-se ou desistir do contrato, desfere uma forte machadada no clássico princípio “pacta sunt servanda”: xxxxx, a vocação expansiva de tais exceções é de tal modo marcante que não falta mesmo quem tenha considerado que o direito de desistência “se converteu num traço caraterístico do atual direito dos contratos”86. Não é este o momento – dependente que está também da consideração dos concretos regimes legais que o consagram – para analisar em profundidade este novel direito que veio colocar em cheque, para um setor cada vez mais relevante
82 Xxxxx, X. Costa, Sobre o Direito de Arrependimento do Adquirente do Direito Real de Habitação Periódica (Time Sharing) e a sua Articulação com Outros Direitos Similares noutros Contratos de Consumo, in: 3 “Revista Portuguesa de Direito do Consumo” (1995), 70-86.
83 Xxxxx, X. Xxxxxxxx, O Exercício do Direito de Arrependimento do Consumidor nos Contratos à Distância, Diss., Universidade do Porto, 2015.
84 Xxxxxxxxx, X. Nascimento, O Direito de Resolução do Investidor na Contratação dos Serviços Financeiros à Distância, in: AAVV, “Direito dos Valores Mobiliários”, vol. VII, 233-273, Coimbra Editora, Coimbra, 2007.
85 Xxxxxx, X. Gravato, O Direito de Revogação nos Contratos de Crédito ao Consumo: Confronto entre os Regimes Jurídicos Português e Alemão, in: 307 “Scientia Ivridica” (2006), 457-491.
86 Xxxxxx, X. Xxxxxxx, El Desistimiento Unilateral en los Contratos con Xxxxxxxxxxx Xxxxxxxxx, 00, Xxxxxx, Xxxxxx, 0000.
da contratação mercantil hodierna, uma das “vacas sagradas” da doutrina contratualista tradicional – deixando-se aqui apenas algumas notas relativas à sua natureza e às suas caraterísticas fundamentais87.
IV. Relativamente à sua natureza jurídica, é mister assinalar que se trata de questão extremamente controversa na doutrina e jurisprudência portuguesas, onde se perfila uma panóplia variada de entendimentos que contribuem para exacerbar, antes que mitigar, a flutuação terminológica da própria lei vigente (resolução, revogação, retratação, rescisão): a verdade, porém, é que não se afigura possível falar aqui, com inteira propriedade, de um caso de “resolução” (pois não se destina a reagir contra qualquer incumprimento contratual, nem tem o seu exercício de ser motivado), de “retratação” (a qual, em regra, visa evitar a celebração de um contrato, obstando à produção dos efeitos de declaração negocial anterior), de “revogação” (a qual, em regra, não possui uma eficácia ex tunc nem está sujeita a prazos de caducidade) ou de “rescisão” (a qual pressupõe, em regra, uma justa causa ou motivo, geralmente um facto imputável à contraparte)88. Seguro parece apenas afirmar que o direito de desistência contratual constitui um evento extintivo original e sui generis, refratário às figuras extintivas clássicas, que confere aos negócios de consumo abrangidos a natureza de contratos sob condição potestativa, de natureza resolutiva (em que o exercício do direito extingue os efeitos do contrato) ou suspensiva (ficando tais efeitos dependentes do não exercício desse direito)89.
87 Xxxxxxx, Xxxxxxx, The Right of Withdrawal in European Consumer Law, 232, in: Schulte- Nölke, Xxxx/ Xxxxxxx, Xxxxxx (Hrsg.), “Europäisches Vertragsrecht im Gemeinschaftsrecht”, 229-238, Xxxxxxxxxxxxxx, Xxxx, 0000.
88 Qualificando tal direito como um caso de revogação ou de retratação, vide Proença,
C. Brandão, A Desvinculação Não Motivada nos Contratos de Consumo: Um Verdadeiro Direito de Resoluçãoị, 253 e ss., in: 70 “Revista da Ordem dos Advogados” (2010), 219-272; como um direito de resolução, Rebelo, F. Neves, O Direito de Livre Resolução no Quadro Geral do Regime Jurídico de Protecção do Consumidor, in: AAVV, “Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais”, vol. II, 572-617, Coimbra Editora, Coimbra, 2007.
89 Com efeito, o regime legal concreto pode conferir a tal direito uma eficácia suspensiva (o contrato celebrado é originariamente ineficaz, vendo os seus efeitos suspensos até ao termo do período de reflexão sem exercício do direito de desistência) ou uma eficácia resolutiva (o contrato é eficaz, vendo, todavia, os seus efeitos cessar caso, durante tal período, o direito for exercido). Sobre o ponto, vide entre nós Xxxxxxx, C. Ferreira, Direito do Consumo, 110 e ss., Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000; noutros quadrantes, distinguindo entre os modelos de eficácia suspensiva (Unwirksamkeitsmodell) e de eficácia extintiva (Wirksamkeitsmodell), vide Xxxxxx,
V. Já no que concerne às suas caraterísticas fundamentais, como deflui da noção geral atrás apresentada, são cinco os elementos identitários ou notas distintivas do direito de desistência contratual. Encontramo-nos perante um direito ex lege (embora nada impeça que as partes, em regra, o possam convencionar noutros contratos de consumo onde não exista previsão legal expressa, inexistindo assim um direito “geral” de desistência independente de consagração contratual ou legal), imperativo (que não pode ser objeto de renúncia antecipada pelo respetivo titular, embora seja passível de alterações convencionais in meius), temporário (que deve ser exercido pelo titular dentro do prazo fixado na lei ou contrato)90, potestativo (cujo exercício depende apenas de simples manifestação de vontade unilateral do seu titular para produzir os respetivos efeitos na esfera jurídica da contraparte) e discricionário (não carecendo da invocação ou sequer exis- tência de qualquer motivo para o seu exercício, além de dispensar qualquer contrapartida).
6.2. Insolvência dos Contraentes
I. Não obstante o protagonismo deste evento extintivo, existem ainda outros domínios onde existem particularidades do regime da cessação dos contratos de consumo. Um desses domínios é o dos contratos de consumo em situações de crise económico-financeira (situação económica difícil, insolvência iminente, insolvência atual) das partes contratantes, seja do consumidor, seja do empresário.
II. Com efeito, o sobreendividamento dos consumidores constitui um fenómeno socioeconómico típico das modernas sociedades de consumo. Ora, o legislador previu diferentes regimes jurídicos destinados a fazer face
Xxxxxx, Der verbraucherschützende Widerruf im Xxxxx xxx Xxxxxxxxxxxxxxxx, 0 e ss., in: 203 “Archiv für die civilistische Praxis” (2003), 1-45.
90 Na esmagadora maioria dos casos, o direito de desistência atribui ao titular um período de reflexão posterior à celebração do contrato, durante o qual lhe é permitido revogar um consentimento já dado – e só muito raramente configurando um período de reflexão adicional anterior à conclusão do contrato, que permite retardar ou adiar a prestação do próprio consentimento. Na linha da previsão comunitária (art. 16.º da 2011/83/UE, de 25 de outubro), a maior parte dos países europeus adotou o prazo legal é de 14 dias de calendário, incluindo Portugal (art. 9.º, n.º 7 da LDC).
a tal fenómeno, de grau crescente de intrusão – por exemplo, o “plano de ação para o risco de incumprimento” (PARI), o “procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento” (PERSI), o “processo especial para acordo de pagamento” (PEAP) ou mesmo, no limite, a exoneração do passivo restante do consumidor insolvente (art. 235.º e segs. do CIRE)
–, os quais produzirão importantes reflexos no destino dos contratos por aqueles celebrados, também eles de diferenciada natureza (extrajudicial e judicial) e invasividade – v.g., consolidação de créditos, planos escalonados de pagamento, dilação de prazos de cumprimento, redução de juros, perdão parcial ou total das dívidas91.
III. Mas também a crise dos empresários ou profissionais pode possuir igualmente importantes incidências sobre os respetivos contratos de consumo em curso. Um exemplo pode ser encontrado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 4/2014, o qual veio erigir a qua- lidade de consumidor do promitente-comprador em elemento constitutivo essencial do direito de retenção do art. 755.º, n.º 1, f) do CCivil nos casos de insolvência do promitente-vendedor nos contratos-promessa de compra e venda imobiliária92: ora, é mister salientar que a nossa Jurisprudência superior deu testemunho de uma indesejável indefinição no conceito de consumidor, relevante para estes efeitos, oscilando entre uma aceção restrita, em linha com a noção acolhida na LDC (pessoa singular que adquire o bem imóvel para uso pessoal ou não profissional, maxime, para
91 Sobre o sobre-endividamento dos consumidores, vide AAVV, O Endividamento dos Consumidores, Almedina, Coimbra, 2000. Sobre os mecanismos de reação, vide Frade, Xxxxxxxx, Sobreendividamento e Soluções Extradudiciais: A Mediação de Dívidas, in: “I Congresso de Direito da Insolvência”, 9-28, Almedina, Coimbra, 2013; Xxxxx, F. Xxxxxxxx, O Sobreendividamento por Créditos ao Consumo e os Pressupostos de Indeferimento Liminar da Exoneração do Passivo Restante no Processo de Insolvência, in: 12 “Estudos de Direito do Consumidor” (2017), 337-387. Para mais desenvolvimentos, Xxxx, Xxxxx, Xxx Xxxxxxxxxxxxxxxxxx, X. Xxxxxxxx, Xxxx, 0000; Xxxxxxx, Xxxxxx, Consumer Bankruptcy Law in Focus, Wolters Kluwer, Aspen, 2016; Siniquel, Xxxxxxx, Consumidor Superendividado – Tratamento Jurídico na Sociedade de Consumo, Juruá Editora, Curitiba, 2018.
92 AUJ do STJ n.º 4/2014, de 20 de março (Xxxxxx Xxxxxx), in: DR, I.ª série, n.º 95, de 19 de janeiro. Sobre tal acórdão uniformizador, vide OLIVEIRA, N. Xxxxx, Efeitos da Declaração de Insolvência sobre os Contratos em Curso: Em Especial, sobre o Contrato-Promessa, in: 2 AB (2014), 11-51; Xxxxxxxxxxx, X. Pestana, Direito de Retenção, Contrato Promessa e Insolvência, in: 33 CDP (2011), 3-29.
habitação)93 e uma aceção ampla (que abrange ainda os próprios usos profissionais do bem, com exclusão apenas da revenda imobiliária, v.g., arrendamento, instalação de estabelecimento comercial, etc.)94. Por essa razão, foi proferido o novo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 4/2019, que qualifica como consumidor (apenas para efeitos do citado AUJ n.º 4/2014) “o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de «traditio», a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”. Infelizmente, este aresto não fecha a questão em torno do conceito de consumidor que esteve na sua génese – deixando em aberto, entre outros problemas, quanto ao destino do bem, a qualificação como consumidor do promitente-comprador que adquire um imóvel para utilização de terceiros e, quanto à natureza jurídica do promitente-comprador, as associações (sem fins lucrativos) de índole cultural, social ou outras, instituições particulares de solidariedade social, fundações, etc.
Abreviaturas
BMJ Boletim do Ministério da Justiça CCivil Código Civil
CCom Código Comercial
CJ Coletânea de Jurisprudência
CJ/STJ Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ LCC Lei do Crédito ao Consumo
LCS Lei do Contrato de Seguro
LCCD Lei dos Contratos Celebrados à Distância LCCG Lei das Cláusulas Contratuais Gerais LCE Lei do Comércio Eletrónico
LDC Lei de Defesa do Consumidor
93 Neste sentido, entre outros, vide os Acórdãos do STJ de 14-X-2014 (Xxxx Xxxxxx), de 25-XI-2014 (Xxxxxxxx xx Xxxx), de 17-XI-2015 (Fonseca Ramos) e de 24-V-2016 (Xxxx Xxxxxxx), todos in: xxx.xxxx.xx.
94 Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 29-V-2014 (Xxxx Xxxxxxxx) e de 3-X-2017 (Xxxxx Xxxxx), ambos in: xxx.xxxx.xx. Sobre tal questão, acertadamente, vide Xxxxxxxx, M. Rosário, Anotação ao Acórdão do STJ de 3 de outubro de 2017, in: 2 RDI (2018), 123-146.
LPCD Lei das Práticas Comerciais Desleais LSPE Lei dos Serviços Públicos Essenciais LVBC Lei das Vendas de Bens de Consumo RC Relação de Coimbra
RG Relação de Guimarães
RL Relação de Lisboa
RP Relação do Porto
STJ Supremo Tribunal de Justiça
TJUE Tribunal de Justiça da União Europeia UE União Europeia