CAROLINA ZAJA ALMADA CAMPANATE DE OLIVEIRA
FUNDAÇÃO XXXXXXX XXXXXX ESCOLA DE DIREITO DO RIO DE JANEIRO
FGV DIREITO RIO
XXXXXXXX XXXX XXXXXX XXXXXXXXX XX XXXXXXXX
Contratos Administrativos Complexos e de Longo Prazo: a Prorrogação Antecipada e a Relicitação na Teoria dos Contratos Públicos
Rio de Janeiro 2018
XXXXXXXX XXXX XXXXXX XXXXXXXXX XX XXXXXXXX
Contratos Administrativos Complexos e de Longo Prazo: a Prorrogação Antecipada e a Relicitação na Teoria dos Contratos Públicos
Dissertação para obtenção de grau de mestre apresentada à Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx
Área de concentração: Direito da Regulação. Economia, Intervenção e Estratégias regulatórias
Orientador: Xxxxxx Xxxxxx
Rio de Janeiro 2018
Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas/FGV
Xxxxxxxx, Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx
Contratos administrativos complexos e de longo prazo: a prorrogação antecipada e a relicitação na teoria dos contratos públicos / Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxx. - 2018.
235 f.
Dissertação (mestrado) - Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx.
Orientador: Xxxxxx Xxxxxx. Inclui bibliografia.
1. Contrato de concessão comercial. 2. Licitação pública. 3. Contratos administrativos. 4. Caducidade (Direito) I. Xxxxxx, Xxxxxx, 1964-. III. Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx. IV. Título.
CDD - 341.3527
“O tema dos contratos da Administração se assemelha a um ‘velho sótão’, terreno propício a descobertas inesperadas e onde, sob aparente quietude, tudo continua em desordem, não se compadecendo com meros momentos de ‘arejamento periódico”
Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxx
Ao Xxxxx, a quem dedico não só essa dissertação, mas os meus sonhos, meu amor, a minha vida.
A você, minha filha, que antes de nascer já mudou o significado de tudo nas nossas vidas.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por me dar a saúde necessária para tantas realizações na minha vida e à Xxxxx por passar na frente e me proteger.
Agradeço ao Paulo, meu marido, meu amigo, meu companheiro, sem ele nada disso xxxxxxx a pena. Nós estudamos na escola juntos, nos formamos na faculdade juntos e o mestrado não poderia ser diferente. Esse trabalho não é só meu, é nosso. Sem a sua companhia em longos finais de semana, inúmeras madrugadas, horas de biblioteca, eu simplesmente não conseguiria. Muito obrigada por suas palavras de incentivo quando eu pensei que fosse demais para mim. E mais, ainda, muito obrigada por ter me dado o maior presente de toda a minha vida, nossa bebê, que tanto nos alegrou no finalzinho dessa jornada.
Agradeço à minha mãe, pela paciência com os meus desesperos diante dos estudos, sem os seus constantes “larga isso e sai um pouquinho”, essa experiência seria bem mais difícil.
Ao meu pai, meu guru, agradeço pelas inúmeras conversas e conselhos, inclusive sobre o tema, pelo carinho em ouvir tudo, sobre tudo e sempre.
À minha Vó, por embarcar de cabeça nesse meu projeto. Muito obrigada por ter topado se mudar pra Portugal, aos 79 anos, só para ajudar a gente.
À toda minha família pela paciência com a minha ausência em eventos importantes por esses dois anos. Especialmente aos meus irmãos, Xxxxxxxx e Xxxxxx, que estão crescendo tão rápido, espero ser uma inspiração para vocês. E às minhas primas-irmãs, Xxxxxxx e Xxxxxx, quantas palavras de incentivo, amo vocês.
Agradeço ao meu orientador, Xxxxxx Xxxxxx, por ter me tirado da zona de conforto logo no início dessa jornada. Desde o dia que me fez ler um livro de Santi Romano antes da minha apresentação, despertou em mim a necessidade de ir até a fonte, e como isso foi essencial.
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Agradeço imensamente aos professores da minha banca de qualificação. À Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, por ter feito observações essenciais, sem as quais esse trabalho não estaria assim. E a minha gratidão ao professor Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, por ser generoso com seu conhecimento, paciente com minhas perguntas e ter feito da minha experiência em Portugal ainda mais proveitosa.
Aproveito, assim, para agradecer à Universidade de Lisboa por ter acolhido a mim e ao Paulo de forma tão especial. A biblioteca e seus funcionários ficarão para sempre no meu coração.
Xxxxxxxx, também, às meninas da biblioteca da Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro, que pacientemente separaram livros e mandaram inúmeros textos para mim, inclusive quando estava fora. Não tenho palavras para o carinho que tiveram comigo.
Não poderia deixar de agradecer a todos aqueles que convivo no trabalho. Ao Xxxxx Xxxxxx e ao Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, por terem me acolhido na PGM Niterói e agora no Navega Advogados Associados e, principalmente, por terem me mostrado que é possível não sucumbir à burocracia estatal e atuar com eficiência na função pública.
Ao Xxxxxx Xxxxxx, pela confiança em me indicar como Subprocuradora, por ter me mostrado sempre o lado bom da Administração, e, com sua paciência inesgotável, me lembrar todos os dias que não fomos eleitos e que não escolhemos as políticas públicas, as viabilizamos da melhor maneira possível. Ao Xxxxx Xxxx, meu amigo de todas as PGMs, por seus conselhos, paranoias que me fazem colocar o pé no chão e, sobretudo, por ouvir com paciência minhas lamentações.
Por fim, agradeço aos meus amigos, por terem persistido mesmo diante da nossa ausência e das constantes negativas para nos encontrarmos. Agradeço especialmente à Clarice e à Thais, que mesmo distantes sempre estão perto de mim. Ao TGQ e à Paty (nossa tradutora oficial desse mestrado), à Julinha (nossa pequenina) e à Ceci pelo carinho diário, amo vocês.
A crise econômica pela qual o país vem passando coloca no centro da discussão os contratos administrativos de longo prazo. Ao mesmo tempo que essas parcerias estão sendo firmadas como estratégia de estímulo à economia e meio de arrecadação de recursos públicos, outras já existentes tem se mostrado inviáveis ou insuficientes. Em meio a essa dualidade, o Governo Federal editou, recentemente, as Medidas Provisórias nºs 727 e 752, posteriormente convertidas nas Leis nºs 13.334/2016 e 13.448/2017, com a intenção de não só endereçar a crise, mas trazer uma nova perspectiva para as contratações estratégicas de infraestrutura, as quais chamou de “parcerias”. O objetivo desse trabalho é, assim, analisar como o novo instituto da relicitação e a aplicação da prorrogação antecipada a essas parcerias representam uma mudança de perspectiva para as contratações de longo prazo e exigem da Administração uma escolha eficiente. Para tanto serão comparados, em termos econômicos — considerando os custos de transação e resultados práticos — a prorrogação antecipada à encampação e a relicitação à caducidade com vistas a demonstrar como a previsão de mecanismos consensuais e mais flexíveis são mais adequados para endereçar a miríade de situações a que se submetem as contratações complexas de longo prazo.
Palavras Chaves: Prorrogação antecipada. Relicitação. Contratos de concessão. Parcerias de longo prazo. Incompletude. Mutabilidade. Consensualidade. Eficiência. Encampação. Caducidade.
The economic crisis which the country has been facing places long-term public procurement contracts at the center of the discussion. While these partnerships are being established as a strategy to stimulate the economy and a means of collecting public funds, other existing ones have proven to be unfeasible or insufficient. In the midst of this duality, the Federal Government recently issued Provisional Measures Nos. 727 and 752, later converted into Laws Nos. 13,334/2016 and 13,448/2017, not only to address the crisis, but to bring a new perspective to strategic infrastructure contracts, called "partnerships". The purpose of this paper is, therefore, to analyze how the new institute of “re-bidding” and the application of the early extension of these partnerships represent a change of perspective for long-term contracts and require the Public Administration to make efficient choices. In order to do so, this work will compare, in economic terms — considering transaction costs and practical results — the anticipated extension to the “encampação” and the “re-bidding” to expiration, in order to demonstrate how the establishment of consensual and more flexible mechanisms are more adequate to address the myriad situations to which complex long-term contracts are subjected.
Keywords: Early extension. Re-bidding. Concession contracts. Long-term partnerships. Incompleteness. Mutability. Consensuality. Efficiency. Encampation. Expiry.
1. CONTRATOS ADMINISTRATIVOS DE LONGO PRAZO 19
1.1. Revisitando a teoria clássica dos contratos administrativos 21
1.1.1. 1ª Fase: da negação à resignação 23
1.1.2. 2ª Fase: do reconhecimento ao entusiasmo 27
1.1.3. 3ª Fase: da crise às novas perspectivas 32
1.2. Uma reflexão sobre a unicidade do regime jurídico dos contratos administrativos 41 1.2.1. Leis nº 13.334/2016 e nº 13.448/2017: um novo regime jurídico? 54
1.2.2. Leis nº 13.334/2016 e nº 13.448/2017: regime para tempos de crise? 58
1.3. O paradigma legislativo anterior: a encampação e a caducidade 64
2. A VISÃO ECONÔMICA DOS CONTRATOS PÚBLICOS DE LONGO PRAZO 74
2.1. O contrato público não é ato unilateral 77
2.1.1. Concessões são contratos administrativos 81
2.1.2. A interpretação dos contratos públicos e a posição de supremacia da Administração
– um paradigma a ser repensado 88
2.1.3. A relação (des)equilibrada entre o parceiro público e o parceiro privado 104
2.2. Contratos complexos, com elevado grau de investimentos e de longo prazo: a necessária incompletude e a consequente mutabilidade desses ajustes 112
2.3. Escolhas públicas eficientes: a avaliação dos custos de transação e resultados 125
2.3.1. Custos de transação 126
2.3.2. Resultados 136
2.4. Poder residual de decisão, abordagem relacional e a crise como fator de renegociação 139
3. OS INSTITUTOS DA LEI 13.448/2017 SOB UMA PERSPECTIVA ECONÔMICA 147
3.1. Prorrogação antecipada: a antecipação de investimentos e a sua distinção com relação à prorrogação premial e reequilíbrio 148
3.1.1. Os requisitos legais para sua implementação 167
3.1.2. Por que prorrogar antecipadamente? Uma análise econômica em comparação à encampação 176
3.2. A Relicitação: alteração consensual do contrato para extingui-lo 188
3.2.1. Os requisitos legais para a sua implementação 193
3.2.2. Por que relicitar? Uma análise econômica em comparação à caducidade 198
CONCLUSÃO 208
REFERÊNCIAS 215
INTRODUÇÃO
Os anúncios do Governo Federal referentes à ampliação do pacote de concessões são constantes. Em agosto de 2017, já haviam sido noticiados cinquenta e sete novos projetos de parcerias com o setor privado1. Menos de sete meses depois, em março 2018, outros trinta e um foram divulgados2. No âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos - PPI3 — criado especificamente com o objetivo de ampliar e fortalecer a relação entre Estado e iniciativa privada nos setores de infraestrutura — existem, atualmente, trinta e oito projetos em andamento, vinte e seis já concluídos e nove em fase de prorrogação4.
A busca por parcerias com a iniciativa privada é fruto da transformação que o Estado brasileiro vem passando desde a década de 1990. A intervenção direta, seja na exploração das atividades econômicas em sentido estrito, seja na prestação dos serviços públicos, passa a conviver com um modelo estatal voltado à regulação e à garantia de execução dessas atividades5. Hoje convivem em um Estado multifacetado: o Estado-Prestador (ou de bem-estar), o Estado-Empresário, o Estado-Regulador e/ou Estado-de-Garantia, e se assiste, ainda, o advento do Estado-Ambiental a demonstrar o incremento da complexidade estatal6.
Paralelamente à divulgação das novas concessões, contudo, o país vivencia o colapso de algumas dessas parcerias. A Concessionária Aeroportos Brasil Viracopos S.A. (ABV), por
1 Segundo dados divulgados pelo Governo Federal. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/-xxxxxxx- um-ano-de-reformas-resultados-e-retomada. Acesso em: 30 nov. 2017.
2 Segundo dados divulgados pelo Governo Federal. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/-00- novos-projetos-foram-qualificados-hoje-na-5-reuniao-do-conselho-do-ppi-. Acesso em: 20 mar. 2018.
3 O referido programa foi criado pela Medida Provisória nº 727, de 12 maio 2016, posteriormente convertida na Lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016, com o objetivo de ampliar e fortalecer a relação entre Estado e iniciativa privada, por meio da instituição de um regime jurídico diferenciado, para atração de novos investimentos em projetos de infraestrutura e para torná-los mais eficientes, como melhor será desenvolvido adiante.
4 Pesquisa realizada no sítio eletrônico do Programa de Parcerias de Investimentos – PPI. PROGRAMA DE PARCERIAS DE INVESTIMENTOS – PPI. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxx.xxx. Acesso em: 10 abril de 2018. A consulta para coleta de dados não levou em consideração eventuais privatizações que serão realizadas no âmbito do programa, mas apenas os dados referentes aos projetos dos quais decorrem parcerias de longo prazo entre a Administração e o particular, tendo em vista ser este o recorte do presente trabalho.
5 GUERRA, Xxxxxx. Regulação Estatal sob a ótica da organização administrativa brasileira. In: GUERRA, Xxxxxx (org.). Regulação no Brasil: uma visão multidisciplinar. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. p. 374-375.
6 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Notas sobre o Estado Administrativo: de omissivo a hiperativo. In: Revista Estudos Institucionais, Vol. 3, 1, jan./jun. 2017. p. 75. Todos são dimensões de um mesmo Estado, a demonstrar a complexidade de se lidar com o Estado Administrativo. No mesmo sentido, Xxxxxx Xxxxxxx indica que as transformações pelas quais passa o Direito Administrativo não são lineares, há avanços e retrocessos e mudanças intermediárias que convivem em um mesmo direito. XXXXXXX, Xxxxxx. As transformações do direito administrativo do século XIX ao XXI. Interesse Público, Belo Horizonte, v. 5, n. 24, mar. 2004. p. 16.
exemplo, reconheceu — cinco anos após ter se sagrado vencedora do leilão para administrar o Aeroporto Internacional de Campinas pelo período de 30 anos — a impossibilidade de cumprir com as obrigações tais como pactuadas no contrato7.
Há outros exemplos de parcerias realizadas pelo Governo Federal que, em pouco tempo, tornaram-se inexequíveis para o contratado. É o caso da xxxxxxx xxxxxxxxx, xx 0000, x Xxxxxx BR-153 para exploração do trecho Anápolis/GO até Aliança do Tocantins/TO8, bem como da rodovia concedida no mesmo ano à Via 040 para exploração do trecho Brasília-DF e Juiz de Fora-MG9.
Nesse mesmo contexto, a União se vê, ainda, diante de setores que dependem de investimentos imediatos, cujas concessões em andamento — mas já perto do fim — não lhe oferecem essa possibilidade. Tome-se como exemplo as concessões ferroviárias realizadas na década de 199010. Esses contratos, em geral firmados pelo prazo de trinta anos, já superaram mais da metade do prazo de execução. Apesar da premente necessidade de expansão da rede para a retomada do crescimento econômico, redução dos custos logísticos e aceleração do escoamento da produção11, nessa fase dos contratos, boa parte dos investimentos já foram feitos e o parceiro privado não possui incentivos concretos para ampliá-los12, tornando esses ajustes praticamente ineficazes para atender a pretensão do poder concedente.
Esse contraste entre o aumento das concessões, a inviabilidade de algumas parcerias e a insuficiência de outras não deve ser considerado um paradoxo ou uma incongruência do modelo estatal brasileiro. O cenário atual reflete, em boa medida, a crise econômica que o país atravessa desde meados de 201413. Em ocasiões como essas, ao mesmo tempo em que contratos
7 Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxx.xxx/xxxxxxxxxxxxx/xxxxxxxx/00-00-0000-xxxx-x-xxxxxxxx.xxxx. Acesso em: 30 nov. 2017.
8 Disponível em: xxxx://xxx.xxxx.xxx.xx/xxxxxxxx/Xxxxxx_XX000/Xxxxxxxxxxxxxx_xx_Xxxxxxxx_Xxxxxx-
_BR153.html. Acesso em: 08 dez. 2017.
9 Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxx.xxx.xx/xxxx.xxxx?xxXxxxxxxxxXX0xXxxxXx000XxXX0XxXxx. Acesso em: 20 maio 2018.
10 Essas concessões são fruto do Programa Nacional de Desestatização – PND, instituído pela Lei n.º 8.031/90. O processo de desestatização do setor ferroviário foi iniciado em 1992, a partir da inclusão da Rede Ferroviária Federal S.A. - RFFSA no PND, pelo Decreto n.º 473/92.
11 Trata-se de constatação feita pelo Governo Federal, o qual considera a “expansão ferroviária estratégica para a retomada do crescimento econômico”. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxx.xxx.xx/- editoria/infraestrutura/2015/06-/expansao-ferroviaria-e-estrategica-para-retomada-do-crescimento. Acesso em: 08 abr. 2018.
12 Veja-se que o contrato está sendo cumprido tal como pactuado. É dizer, o parceiro privado já fez os investimentos que lhe cabia (ou a maioria deles), e o prazo que resta para o fim do contrato não apresenta incentivo para novos investimentos, já que, provavelmente, não será suficiente para amortizá-los e trazer o retorno esperado.
13 De acordo com o Comitê de Datação do Ciclo Econômico (Codace), da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx, a economia brasileira encontra-se formalmente em recessão desde o segundo trimestre de 2014. Segundo seu último relatório, "A recessão de 2014-2016 foi a mais longa entre as nove datadas pelo Comitê a partir de 1980,
administrativos de longo prazo são firmados com particulares como estratégia de estímulo à economia14 e meio de arrecadação para o Poder Público, outros já existentes entram em declínio (ou tornam-se ineficientes).
Os últimos anos, portanto, têm se mostrado especialmente desafiadores à Administração Pública e trazem para o centro do debate as parcerias15 de execução diferida no tempo. Em um contexto no qual mais contratos serão firmados, outros serão revistos, e o Poder Público terá que enfrentar a fragilidade econômica dos parceiros privados (além do déficit de recursos públicos), coloca-se em evidência a postura da Administração diante das suas escolhas. A crise econômica funciona, assim, como o pano de fundo e fio condutor dessa análise, porque ela faz realizar a necessidade da mudança.
De fato, se os recursos são escassos e as necessidades a serem supridas são muitas, não se pode ignorar o fato de que as escolhas públicas têm um preço16. Nesse contexto, se identifica a necessária aproximação entre o direito e a economia17, dotando a Administração de
empatada com a de 1989-1992. A perda acumulada de Produto Interno Bruto (PIB) nesses 11 trimestres foi de 8,6%, também a maior desde 1980, praticamente empatada com os 8,5% de queda do PIB na recessão de 1981- 1983, com base em dados das Contas Nacionais do IBGE". Ainda de acordo com o comitê a recuperação tem se mostrado lenta em comparação com o padrão observado nas saídas de recessões anteriores. Disponível em: xxxx://xxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxx.xxx?xxxXxxxXxx0000000000X0XX0X-0000XXX0000X0XXX. Acesso em: 18 maio 2018.
14 Em períodos de crise econômica, fica mais evidente a utilização dos contratos públicos para além da obtenção do objeto contratado. Estes instrumentos passam a ser utilizados como mecanismo de estímulo à economia e geração de empregos. Ao tratar da crise econômica de 2008 – pela qual Europa e Estados Unidos foram fortemente afetados – e a sua relação com os serviços públicos, o Diretor da Public Services International Research Unit (PSIRU) da Universidade de Greenwich, Xxxxx Xxxx, apontou para o fato de os gastos governamentais com infraestrutura serem uma forma tradicional de controle de inflação e geração de empregos. De acordo com o autor, os anúncios de investimentos públicos nessa área geram, inclusive, aumento de confiança por parte do setor privado. XXXX, Xxxxx. Economic crisis and public services. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxx.xxx-/xxxxxxxxxxxx.xxxx. Acesso em: 19 mar. 2018.
15 Essa é a nomenclatura utilizada tanto pela Lei nº 13.334/2016, como pela Lei 13.488/2017, para tratar dos contratos administrativos de longo prazo de caráter estratégico, complexos, com elevado volume de investimentos e longo prazo. São esses os contratos endereçados no presente trabalho. Portanto, ao longo texto, quando se falar em contratos de longo prazo ou de parceria, entenda-se que estão sendo endereçados os ajustes mencionados pela novel legislação.
16 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Contratos Administrativos de longo prazo: a lógica do seu equilíbrio econômico-financeiro. In: XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx (Coord.). Contratos administrativos, equilíbrio
econômico-financeiro e a taxa interna de retorno: a lógica das concessões e parcerias público privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 80-81.
De acordo com o autor, três fatores são determinantes para essa aproximação entre direito e economia, o aumento da demanda e oferta dos benefícios públicos, a escassez de recursos tributários e o controle das despesas públicas. Por isso, ainda de acordo com o autor, “neste universo jurídico-econômico, os contratos administrativos – em especial os de longo prazo – ocupam papel sobranceiro”.
17 Essa indissociável relação entre direito e economia, na atualidade, foi bem demonstrada por Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, segundo a qual “verifica-se, assim, que a relação entre direito e economia hoje perpassa praticamente todas as questões socialmente relevantes, podendo ser analisada sob distintos aspectos. Enquanto no passado, propugnou-se a completa separação entre as ciências jurídica e econômica como forma de reconhecimento da autonomia metodológica de cada uma, atualmente a inter-relação nevrálgica entre ambas é crescentemente reconhecida como uma realidade inafastável”. XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx.
mecanismos que possam levá-la a escolhas eficientes — que considerem não apenas o enquadramento jurídico, mas os custos e resultados da sua opção.
Até bem pouco tempo atrás, contudo, os exemplos mencionados acima — colapso de algumas concessões e falta de investimentos em outras — eram normalmente resolvidos sem que a questão econômica fosse necessariamente endereçada pela Administração. Na forma estabelecida pela Lei nº 8.987/199518, por exemplo, sendo a hipótese de descumprimento das obrigações pelo parceiro privado, poderia a Administração (a seu critério) decretar a caducidade. No caso de o ajuste se mostrar insuficiente, por sua vez, mesmo diante do cumprimento das obrigações pelo particular, o Poder Público poderia optar por retomar a atividade — em razão do interesse público — por meio da encampação. Existia pouco espaço e até mesmo pouca segurança para o gestor adotar soluções diversas, como alternativas consensuais, para problemas envolvendo a contratação pública19.
Assim, fosse ou não uma escolha economicamente eficiente, havendo conformação legal — normalmente repetida nas cláusulas contratuais — entre a situação fática e a solução, era essa a postura adotada pela Administração.
Para tentar enfrentar essa realidade, o Governo editou, em 2016, as Medidas Provisórias nºs 727 e 752, posteriormente convertidas nas Leis nºs 13.334/2016 e 13.448/2017. A primeira, que cria o Programa de Parceria de Investimentos – PPI, estabelece como diretrizes primordiais dos ajustes submetidos ao novo regramento, a previsibilidade, a estabilidade e a segurança jurídica, lançando as bases para uma nova forma de se endereçar as parcerias de longo prazo.
A segunda, editada para traduzir tais postulados na prática20, institui a relicitação e amplia as hipóteses de prorrogação antecipada para atração de investimento. Ao criar uma forma alternativa de extinção contratual, que pressupõe alteração do ajuste por acordo entre as
Regulação e concorrência: a atuação do CADE nos setores de infraestrutura. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 35. O tema será enfrentado de forma mais aprofundada no Capítulo 2 dessa dissertação.
18 Trata-se da Lei Geral de Concessões e Permissões, que elenca no art. 35 as formas de extinção dessas relações. 19 Não se desconhece, como se verá no decorrer do trabalho, que outras alternativas já podiam ser adotadas diante do incumprimento ou da necessidade de investimentos. O caso da concessão de reequilíbrio econômico financeiro por meio de prorrogação de prazo é um desses exemplos. Mas a falta de reconhecimento legislativo dessas medidas, acaba sendo um fator de insegurança que leva o Poder Público a optar por medidas mais drásticas
pelo fato de estarem reconhecidas em lei.
20 Como bem destacado no Parecer (CN) nº 1, de 2017 do Congresso Nacional, por meio do qual se analisou a conversão da Medida Provisória nº 752/2016 em lei: “A Medida Provisória 752/2016, por sua vez, seria a primeira tentativa de traduzir esta nova fase pragmática da política de investimentos em infraestrutura do governo em medidas mais concretas que permitem uma reestruturação relativamente rápida e bastante significativa das concessões atuais, que têm padecido de problemas de desenho do contrato regulatório, efeitos da crise econômica e falta de incentivos para investir”.
Disponível em: xxxx://xxxxx.xxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxx/xxxxxxxxx?-xxx0000000&xxxxxxxxxxxxxxxxxx. Acesso em: 25 nov. 2017.
partes (relicitação) e ao admitir novos mecanismos consensuais de investimentos utilizando o tempo como forma de amortização (prorrogação antecipada), o novel diploma exigiu da Administração consensualidade para adoção da medida e justificativa econômica para a sua escolha21.
Esses novos diplomas legais, portanto, lançaram outra perspectiva sobre as contratações de longo prazo. Como foram pensados em meio à crise econômica e para tratar de parcerias estratégicas de infraestrutura, representam uma tentativa do Governo de formar um arcabouço jurídico diferenciado, capaz de reconhecer as especificidades dessas relações.
Por isso, o objetivo do trabalho é partir desse primeiro passo dado pela União, para demonstrar como a racionalidade econômica diversa desses ajustes, o seu constante processo de mutação e a sua incompletude, exigem uma postura da Administração Pública dissociada dos paradigmas clássicos dos contratos públicos, mais flexível22 .
Para tanto, parte-se da premissa de que toda escolha pública tem um preço. A Administração, por isso, ao justificar as suas opções, deve levar em conta não apenas valores abstratos ou a conformação jurídica da medida, mas também aspectos econômicos, de modo a demonstrar a eficiência da sua escolha consubstanciada nos custos de transação envolvidos e resultados práticos possíveis de serem alcançados.
Dessa abordagem decorre a hipótese desse trabalho, segundo a qual o reconhecimento da prorrogação antecipada e a instituição da relicitação representam uma mudança de paradigma na teoria das contratações públicas por compreenderem a consensualidade, negociação e eficiência. Esse fato pode ser verificado pela comparação prática entre a prorrogação antecipada e a encampação, bem como entre a relicitação e a caducidade, de modo
21 Os artigos são bastante claros nesse ponto. Caso a Administração opte pela prorrogação antecipada por meio de acordo com o particular “Art. 8º Caberá ao órgão ou à entidade competente, após a qualificação referida no art. 2º desta Lei, realizar estudo técnico prévio que fundamente a vantagem da prorrogação do contrato de parceria em relação à realização de nova licitação para o empreendimento”. Na hipótese de se optar pela relicitação “Art. 14. A relicitação de que trata o art. 13 desta Lei ocorrerá por meio de acordo entre as partes, nos termos e prazos definidos em ato do Poder Executivo. § 1º Caberá ao órgão ou à entidade competente, em qualquer caso, avaliar a necessidade, a pertinência e a razoabilidade da instauração do processo de relicitação do objeto do contrato de parceria, tendo em vista os aspectos operacionais e econômico-financeiros e a continuidade dos serviços envolvidos”.
22 A perspectiva econômica aqui adotada é aquela que ressalta a finalidade útil da medida. Trata-se da mesma perspectiva adotada por Xxxxxxxx Xxxxxx ao tratar da análise econômica do ato de contratar: “A análise económica do contrato pretende ser complementar da análise jurídica, fazendo ressaltar o escopo utilitário que preside, quase que invariavelmente, à deliberação de contratar” XXXXXX, Xxxxxxxx. Teoria económica do contrato. Coimbra: Almedina. Janeiro, 2007. p. 14.
a demonstrar como, em termos de custos de transação e resultados, esses instrumentos consensuais são mais eficientes do que a imposição da vontade estatal23.
Assim, metodologicamente, o presente trabalho se desenvolverá de forma qualitativa, uma vez que se efetivará por meio de pesquisa doutrinária, tanto no âmbito interno como externo, estabelecendo o diálogo entre a teoria jurídica das contratações públicas e a visão econômica. Pode-se dizer, ainda, que a presente pesquisa é exploratória, uma vez que os institutos analisados — especialmente a relicitação — estão em fase inicial de conhecimento e aplicação, demandando um esforço de familiarização com esses objetos.
O ponto de partida para essa análise será a teoria clássica dos contratos públicos e as suas origens. No primeiro capítulo, pretende-se revisitar brevemente a concepção inicial dos contratos administrativos — de inspiração francesa — e propor uma reflexão sobre os seus paradigmas. A intenção é desconstruir o dogma de que os contratos administrativos são naturalmente públicos e as prerrogativas estatais decorrem da sua essência, com vistas a formar as bases para uma nova interpretação.
Nesse ponto, também será demonstrado que a ampla contratualidade atual desafia a perspectiva única do regime aplicável aos contratos firmados pela Administração. E sob essa perspectiva, serão enfrentadas as novas Leis nº 13.334/2016 e nº 13.448/2017, para que se possa responder às seguintes indagações: elas estabelecem um novo regime jurídico? Seria um regime para tempos de crise?
Ainda no capítulo inaugural, será delineado brevemente o paradigma legislativo atual, por meio da demonstração dos requisitos para a encampação e a caducidade, institutos que servirão de base para a comparação a ser realizada no último capítulo desse estudo. O objetivo inicial dessa descrição é demonstrar que as escolhas legalmente possíveis têm um custo que nem sempre é considerado pelo contratante, o que remete a discussão acerca da introdução de aspectos econômicos na atuação estatal.
No segundo capítulo, propõe-se, assim, a estabelecer uma visão prospectiva sobre as contratações públicas complexas de longo prazo, por meio de uma aproximação entre o Direito Administrativo e a Economia, de modo a trazer mais elementos de racionalidade às escolhas públicas. Para tanto, será estabelecida a premissa de que os contratos públicos não são atos unilaterais, e sim verdadeiros contratos e como tal devem ser interpretados e aplicados.
23 A escolha pela encampação e a caducidade não excluem outras medidas que já podiam ser objeto da opção estatal. Para fins desse trabalho, contudo, de forma a demonstrar que os novos instrumentos consensuais traduzem outra perspectiva para a atuação pública, optou-se por compará-los a medidas unilaterais da Administração.
Abordar-se-á a racionalidade diversa das parcerias complexas e de longo prazo. Por meio da perspectiva econômica, serão enfrentadas a incompletude e mutabilidade desses ajustes e a sua implicação na criação de um ambiente de sucessivas alterações e necessárias escolhas estatais. A partir dessa constatação, investigar-se-á como a Administração atuará diante das opções que lhe são fornecidas para que possa responder objetivamente porque optou por uma escolha e não por outra.
Nesse ponto, ter-se-á como objetivo a exploração de dois fatores para uma escolha eficiente: os custos de transação e os resultados. Serão, assim, delineados os custos a serem considerados nas transações envolvendo a Administração. Para além dos gastos financeiros, serão apresentados os custos de oportunidade, informação (e os problemas decorrentes de suas falhas) e tempo. Além disso, serão abordados os resultados práticos das medidas como parte da justificativa da escolha estatal. As premissas doutrinárias estabelecidas nesse ponto do capítulo serão relevantes para a posterior comparação prática realizada no último capítulo do trabalho.
Na sequência, será abordada a questão relativa à renegociação dos contratos públicos. Considerando a miríade de situações que poderão ocorrer ex post, investigar-se-á como a Administração pode lidar com essas questões. Levar-se-á em conta, nessa análise, a alocação do poder residual de decidir, a abordagem econômica relacional e a crise como fator de renegociação.
Estabelecidos os fundamentos desse estudo, tanto da concepção tradicional, quanto da direção a ser seguida, no capítulo 3, serão analisados os institutos consensuais da prorrogação antecipada e da relicitação sob uma perspectiva econômica, de forma a comprovar a hipótese desse trabalho. Investigar-se-á como no dia-a-dia da Administração será enfrentada a escolha entre uma alternativa consensual e outra impositiva para resolver questões surgidas no curso do ajuste.
A prorrogação antecipada será a primeira medida a ser analisada. Objetiva-se, assim, estabelecer as bases da sua aplicação, notadamente por meio da sua comparação com a prorrogação premial e a prorrogação reequilíbrio, outras espécies de prorrogação. Serão, então, apontados os requisitos legais necessários para a utilização e implementação do instituto. Por último, será realizada a comparação econômica — em termos de custos de transação e resultados — entre a prorrogação antecipada e o instrumento clássico da encampação, a fim de que possa ser respondida a pergunta: por que prorrogar antecipadamente?
Ainda nesse capítulo, investigar-se-á o novo instrumento consensual trazido pela Lei nº 13.448/2017, a relicitação. Será, então, delimitada a sua base de aplicação e apontados os requisitos necessários para a sua utilização. Partindo-se desse enquadramento, a relicitação será
comparada ao tradicional instituto da caducidade em termos de custos de transação e resultados, de modo a encontrar a respostas para a seguinte indagação: por que relicitar?
Por fim, serão expostas as conclusões a propósito da pesquisa realizada nesse trabalho.
1. CONTRATOS ADMINISTRATIVOS DE LONGO PRAZO24
A Lei nº 13.334/2016, ao instituir o Programa de Parcerias de Investimentos – PPI, considerou como contratos de parceria “a concessão comum, a concessão patrocinada, a concessão administrativa, a concessão regida por legislação setorial, a permissão de serviço público, o arrendamento de bem público, a concessão de direito real e os outros negócios público-privados que, em função de seu caráter estratégico e de sua complexidade, especificidade, volume de investimentos, longo prazo, riscos ou incertezas envolvidos, adotem estrutura jurídica semelhante”25.
A delimitação da lei tem uma razão de ser. A racionalidade econômica desses ajustes não se confunde com a dos contratos administrativos em geral. O objeto desses “contratos concessionais”26 é complexo, não envolvendo apenas uma relação bilateral que se realiza no tempo presente entre as partes, mas também um plexo de interações, atividades e investimentos que precisam se estender no tempo para a sua amortização27. O dinamismo é condição essencial desses contratos, seja pela complexidade e rapidez com que se alteram as relações atuais28, seja pelo próprio custo que acompanharia uma definição ex ante — se é que possível — de todas os acontecimentos aptos a alterá-los.
24 Parte das ideias desenvolvidas no presente capítulo tem origem no estudo: XXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx. Contratos administrativos de longo prazo: entre a incompletude e a certeza da mudança, uma proposta regulatória. XXXXXX, Xxxxxx (Org.). Teoria do estado regulador. Curitiba: Juruá, 2017.
25 Redação do parágrafo segundo, do art. 1º da Lei 13.334/2016.
26 Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxx, de forma certeira, cunhou a expressão “contratos concessionais” para abarcar as espécies de concessões nas quais há colaboração dos particulares para a prática de tarefas e finalidades de interesse geral. XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. A mutabilidade e a incompletude na regulação por contrato e a função integrativa das Agências. Revista de Contratos Públicos – RCP. Belo Horizonte: a. 3, n. 5. p. 59-83, mar./ago. 2014. p. 64.
27 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Contratos Administrativos de longo prazo: a lógica do seu equilíbrio econômico-financeiro. In: XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx (Coord.). Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno: a lógica das concessões e parcerias público privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 86.
Com razão, o autor chamou esses contratos de verdadeiros “investimentos de longa maturação”.
28 Tanto quanto a passagem por eventuais crises, os avanços tecnológicos são exemplo claro dessas mudanças. Não é possível, tampouco é desejável, que um contrato de 25 ou 30 anos possa ficar infenso a essa evolução. Não está se discutindo a possibilidade de um serviço ser prestado de maneira adequada, mesmo sem alteração da tecnologia, muitas vezes isso ocorrerá. Todavia, como bem destacado por Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, “o progresso tecnológico produz a redução de custos e tempo de ampliação de utilidades ofertáveis ao público”. XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Teoria Geral das Concessões de serviço público. São Paulo. Dialética, 2003. p. 307. É exatamente essa atualidade que deve acompanhar os contratos de longo prazo.
A realidade das parcerias de longo prazo exige uma análise mais profunda desses arranjos, a qual envolve, necessariamente, uma perspectiva sobre os aspectos econômicos desses verdadeiros “projetos de investimento”. Como bem destacado por António Martins29:
Numa perspectiva económica-financeira – a única que, dada a minha formação de economista, posso assumir neste texto – um contrato de concessão é visto como um projecto de investimento. Com efeito, as características essenciais de um projecto são as seguintes (Ross et. al., 2008): i) um investimento inicial (I) que requer um certo desembolso, a fim de adquirir activos tangíveis (v.g., máquinas) ou intangíveis (v.g. patentes). ii) um conjunto de previsões sobre rendimentos (R) que tal projecto poderá gerar; ancoradas em estimativas de quantidades a vender, preços a cobrar, da taxa de inflação a considerar e de outras variáveis. iii) Um leque de gastos (G) a estimar, tais como consumos de matérias, de serviços externos, de salários, de depreciações dos activos e de juros a pagar. iv) um horizonte temporal (T) durante o qual se prevê que o investimento venha a gerar cash flows para os investidores.
O contratado, na verdade, funciona como um investidor. Os cálculos realizados para a participação em um contrato de longo prazo levam em consideração o futuro, pois o investimento inicial supera, em muito, o retorno imediato. O particular só realiza lucro bastante tempo depois do início da assunção da atividade. Por isso, fala-se em amortização e não simplesmente em remuneração.
Constata-se, assim, a necessidade de se realizar um exame jurídico diverso desse tipo de relação em comparação àquele utilizado para um contrato de empreitada ou um contrato de compra e venda, do qual a Administração seja parte. As parcerias requerem uma divisão de riscos baseada na eficiência e na criação de incentivos econômicos para ambas as partes30, consensualidade e segurança jurídica em patamares muito mais elevados do que o aplicado para os contratos firmados para perdurarem por pouco tempo.
29 XXXXXXX, Xxxxxxx. Sobre o equilíbrio financeiro das concessões e a taxa interna de rentabilidade (TIR) acionista: uma perspectiva econômica. In: XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx (Coord.). Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno: a lógica das concessões e parcerias público privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 322.
30 No caso específico das concessões, apesar da Lei nº 8.987/1995 trazer previsões no sentido de que esses ajustes ocorreriam por “conta e risco” do contratado, a questão já foi doutrinariamente superada para se entender pela necessidade de divisão racional de risco. A Lei nº 11.079/2004, que trata das Parcerias Público-Privadas (também concessões), inclusive adotou essa nova perspectiva ao prever a repartição objetiva de riscos entre as partes (cf. art. 4º, VI — “Art. 4º Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes: (...) VI – repartição objetiva de riscos entre as partes;”).
É por isso que se propõe, no início deste trabalho, um breve retorno às origens da teoria clássica dos contratos administrativos. Afinal, o Direito não pode ser analisado sob uma perspectiva estática, “não convém examinar o Direito congelado, abstraindo-se, também, como ele era ontem, de onde ele vem, quais os seus paradigmas”, só assim “contextualizado na história e no seu tempo, visualiza-se efetivamente a feição da norma jurídica e para onde ela caminha”31.
A partir dessa digressão, mas sem a perspectiva de esgotar o tema — o que fugiria ao escopo desse trabalho — pretende-se entender como tal disciplina formou os paradigmas atuais de um regime jurídico especial para a Administração Pública, derrogatório do Direito comum, a fim de desmistificar os seus dogmas e apontar outros rumos, especialmente diante da especialidade das contratações ora em estudo.
1.1. Revisitando a teoria clássica dos contratos administrativos
Ao tratar das mutações do Direito Administrativo no início da década passada, Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx traçou, de forma objetiva, a evolução do Estado e os limites a que esteve submetido ao longo do tempo. Se no passado, a atuação estatal estava limitada pela moral (inspirada pelo sentimento religioso), o Estado de Direito fez surgir o balizamento legal, até o desenvolvimento da legitimidade, como limite ao Estado Democrático de Direito.
Aliás, foi exatamente no contexto do Estado Democrático que se acentuou a contratualidade na Administração Pública como instrumento de consensualidade, “como alternativa preferível à imperatividade, sempre que possível, ou em outros termos, sempre que não seja necessário aplicar o poder coercitivo”32.
Os contratos, portanto, passaram a ser cada vez mais utilizados e tornaram-se parte do cotidiano da Administração Pública33. Esse fenômeno ganhou ainda mais relevo com o desenvolvimento do Estado Regulador.
31 XXXXX, Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxx. Direito das obrigações. 6ª ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo jurídico, 2016.
32 XXXXXXX XXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxxxx. Mutações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 41.
33 Não se pode deixar de alertar, contudo, que as raízes da atividade contratual da Administração Pública são muito antigas. Como descreve Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxx, já na Grécia Antiga e no Império Romano
Quando o modelo estatal, baseado na intervenção direta na economia, marcado por uma ampla estrutura burocrática hierarquizada, passa a conviver com uma dimensão estatal descentralizada, caracterizada pela busca por uma gestão moderna e eficiente34, com a transferência das atividades exploradas pelo setor público à iniciativa privada, os contratos passam a ser o instrumento central dessa mudança35. Foi por meio dos contratos administrativos, aliás, que se concretizaram as privatizações e as concessões da década de 1990, as quais são marcas desse novo modelo estatal.
Mas nem sempre foi tão aparente essa relação entre a Administração, o particular e a consensualidade que envolve o contrato36. Na verdade, como ensina Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxx, pode-se identificar três fases na evolução da teoria clássica dos contratos
tem-se exemplos de relações contratuais firmadas entre autoridades administrativas e particulares. Todavia, é com o advento do Estado Liberal, já no século XIX, que se assiste ao incremento da contratação pública com bases mais próximas aos contratos administrativos firmados atualmente, ou seja, para fins de realização do interesse público. XXXXXXXXXX, Xxxxx Xxxx. Direito Europeu dos Contratos Públicos: um olhar português. Coimbra: Almedina, 2006. p. 125-135. O mesmo cenário é descrito por Xxxx Xxxxxx, segundo o qual “No plano do Estado Liberal, o direito administrativo se caracterizou, dominantemente, como uma prestação unilateral do Estado, ainda que submetido ao pressuposto de legalidade. Salvo casos específicos em que a relação administrativa prevê a adesão da vontade do administrado (como na progressiva formação do regime dos contratos administrativos) a Administração Pública goza, como regra, de uma margem autoritária no sentido de sobrepor seus atos ao consentimento do administrado.”. A consensualidade, ainda de acordo com o autor, será uma preocupação do Estado social. XXXXXX, Xxxx. Direito administrativo participativo. In: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: 209, .p. 2, jul./set. 1997.
34 GUERRA, Xxxxxx. Regulação Estatal sob a ótica da organização administrativa brasileira. In: GUERRA, Xxxxxx (Org.). Regulação no Brasil: uma visão multidisciplinar. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. p. 375.
35 Os contratos não são o único instrumento utilizado por essa nova estrutura estatal. A cada dia se desenvolvem mais instrumentos consensuais na gestão administrativa, como, por exemplo, os protocolos de intenções, os convênios, os termos de cooperação, os termos de parceria, os consórcios, dentre outros.
36 O termo “aparente” nessa frase pode ter duas conotações bem distintas: sinônimo de algo “visível, manifesto, evidente, ostensivo”, ou empregado com o significado de “ilusório, suposto, fictício”. Explica-se. O reconhecimento da consensualidade nas relações envolvendo a Administração Pública nunca esteve tão em evidência. Quando se fala em mutação do Direito Administrativo, a consensualidade e, consequentemente, a contratualização da Administração ganham destaque. Assim como Xxxxx xx Xxxxxxxxxx – destacado linhas acima –, também Xxxxx Xxxxxxx, na década passada, já dava conta do papel relevante do consensualismo nas relações administrativas: “A atividade de consenso-negociação entre Poder Público e particulares, mesmo informal, passa a assumir papel importante no processo de identificação de interesses públicos e privados, tutelados pela Administração”. MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 211. Hoje, fala-se até mesmo em “administração concertada”, para enfatizar o consensualidade que permeia o domínio público. Contudo, ao mesmo tempo que tais instrumentos foram se desenvolvendo, alguns dogmas e paradigmas anteriores, notadamente nas relações contratuais da Administração, permaneceram os mesmos. Assim, em que pese evidente a consensualidade, esta pode se mostrar ilusória na prática, devido aos dogmas trazidos ao longo dos anos pelo direito administrativo e não totalmente superadas pela doutrina. Essa ideia será melhor desenvolvida no item
2.1 desse estudo, quando se desconstruirá a ideia de contrato como ato unilateral da Administração.
administrativos37: a primeira fase que variou da negativa à resignação; a segunda, a qual envolveu a maturidade e até mesmo o entusiasmo por essas relações; e a terceira fase, de crise e indefinição38.
Trata-se, portanto, na explicação feita por Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx, de uma progressiva construção com base fática e histórica, voltada a explicar a relação de colaboração entre entes estatais e pessoas privadas visando ao desempenho de funções estatais39.
1.1.1. 1ª Fase: da negação à resignação
O contrato tem, historicamente, uma relação estreita com o Direito privado. A dicotomia entre o público e o privado40, aliás, colocou no campo da sociedade as relações
37 Como ficará mais claro adiante, essa mutação da teoria dos contratos públicos é mais evidente na França e nos países, como o Brasil, que se inspiraram na doutrina francesa. Em países integrantes do sistema common law, por exemplo, a formação dos contratos públicos se dá de forma bastante diversa. Nos Estados Unidos, por exemplo, como ensina Xxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxxxx, o que provocou a identificação de um contrato público diverso dos contratos em geral foi uma circunstância fática, os contratos militares. De acordo com o autor, “todos os casos seminais que originalmente conferiram prerrogativas especiais ao Estado Norte-americano ou surgiram no bojo de casos que envolviam military procurements ou foram de alguma forma influenciados por circunstâncias de guerra.”.
XXXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxxx. Estado e Contrato. Supremacia do Interesse público “versus” igualdade. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 84.
38 XXXXXXXXXX, Xxxxx Xxxx. Requiem pelo contrato administrativo. Coimbra: Almedina, 2003. p.
14. Cabe aqui uma constatação interessante, em 1998 a autora já enquadrava a fase do contrato administrativo em um momento de crise e indefinição. O presente estudo, desenvolvido entre os anos de 2017 e 2018 demonstra que ainda há muito a se trilhar no terreno das contratações públicas. São precisas as palavras da autora sobre a questão: “o tema dos contratos da Administração se assemelha a um ‘velho sótão’, terreno propício a descobertas inesperadas e onde, sob aparente quietude, tudo continua em desordem, não se compadecendo com meros momentos de ‘arejamento periódico”.
39ALMEIDA, Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxxx. Contratos Administrativos. In. XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx; XXXXXXX XXXXXX, Xxxxxxx (Coord.). Direito dos contratos. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 194. p.
289. O autor também divide as fases dos contratos entre negação e reconhecimento.
40 A distinção público e privado aqui utilizada guarda relação com as bases do Direito brasileiro. A tradição francesa, por nós incorporada, tem uma forma peculiar de enxergar essa dicotomia. Os juristas continentais pensam o direito a partir e por meio da separação entre a esfera pública e privada. Se esta fosse uma dissertação que viesse a explorar o sistema da common law, utilizar essa distinção para explorar historicamente os contratos públicos teria pouca utilidade. Como bem explicado por Xxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxxxx “Há uma oposição indisputável entre as funções exercidas pela dicotomia nos sistemas norte-americano e francês (ou brasileiro). Em termos gerais, enquanto no mundo da commom law a dicotomia tem tido um papel ínfimo ou, mesmo, inexistente na epistemologia jurídica, o contrário ocorre nos sistemas de Direito Continental, sendo o sistema francês o exemplo paradigmático.”. Como se verá ao longo das fases, essa distinção será essencial para caracterizar os contratos como públicos em contraposição aos contratos privados, como também destacou o referido autor “o propósito da dicotomia em ambos os países continentais [França e Brasil] foi o de facilitar e veicular a ideia de uma superioridade do interesse público, que está intimamente ligada à ideia de contrato administrativo
contratuais e, no âmbito estatal, os atos unilaterais. Enquanto os particulares gozavam de liberdade e da autonomia da vontade para estabelecer vínculos jurídicos41, ao Estado cabia a atuação soberana e verticalizada de tutor dos interesses da coletividade nos estritos limites da lei42.
Assim, ao mesmo tempo que o Direito Administrativo se desenvolveu como instrumento de concretização do Estado de Direito, ou seja, para assegurar a atuação estatal nos limites da legalidade, também transferiu, para o mesmo Estado, um conjunto de prerrogativas próximas daquelas detidas pelos monarcas do regime absolutista. Nesse misto de autoridade reforçada por poderes especiais (puissance publique, como definiu a doutrina francesa), que impedia o Estado de se subordinar a um acordo de vontade com o particular, e a ausência de liberdade em expressar sua vontade, em razão da atuação nos limites da lei, que a relação contratual passava ao largo do Direito Administrativo.
Nessa fase inicial, portanto, tem-se a negativa da contratualidade no âmbito do Direito público, como bem sintetizado por Fernando Dias Menezes Almeida43:
De um lado, o Estado não ter autonomia em sua vontade, devendo seguir estritamente o que for previsto pela lei; de outro, o Estado não poder subordinar-se a uma relação de igualdade com o particular, havendo que preservar sua supremacia. Assim, caberia ao Estado apenas impor unilateralmente a sua vontade.
Não que a Administração e o particular apenas se relacionassem pela imperatividade dos atos estatais. O Estado não se limitava a impor unilateralmente a
enquanto nos Estados Unidos o debate sobre a dicotomia, muito restrito e paroquial, é influenciado pela visão oposta, isto é, pela filosofia liberal, que enfatiza o interesse privado em detrimento do interesse público”. XXXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxxx. Estado e Contrato. Supremacia do Interesse público “versus” igualdade. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 89-117.
41 Xxxxxx Xxxx Xxxxxx e Xxxxxx Xxxxxxxxx xxx Xxxxxx, ao delinearem um breve histórico dos contratos no Direito Civil, especialmente a partir do Code Napoléon de 1804, assim se manifestaram sobre o instituto e a sua relação com a autonomia da vontade: “o contrato, sob a égide inaugural do Code Civil, gozou de um período de pilastra mestra do direito privado (sempre ao lado da propriedade), simbolicamente (mas cuja simbologia revela a força de que gozava o contrato para o Código Civil francês) tido como força de lei entre as partes (art. 1.134 do CC francês “Les conventions légalement formées ‘tiennent lieu de loi’ à ceux qui les ont faites”, destacamos). (...) Tratava-se de nova codificação fortemente influenciada pelas doutrinas de Domat e Xxxxxxx, na qual o contrato, como exercício da autonomia privada, traduzia- se na maior expressão da liberdade individual, e isso era tão caro aos franceses que ele, contrato, na célebre expressão de Fouillé, passava a ser identificado com a ideia de justiça (justice contractuelle) (qui dit contractuel dit juste)”. XXXX XXXXXX, Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxx dos.
Renegociação contratual. In: Revista dos Tribunais. v. 906/2011, p. 113, abr. 2011.
42 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx. Contratualidade administrativa: abrangência e complexidade do fenômeno contratual da administração pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 17-19.
43 XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxxx. Contratos Administrativos. In. XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx; XXXXXXX XXXXXX, Xxxxxxx (Coord.). Direito dos contratos. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 194.
ordem jurídica, enquanto os particulares entabulavam suas parcerias privadas. Na verdade, também existiam relações contratuais firmadas entre o Poder Público e o particular. A distinção, contudo, residia no fato de que tais vínculos não eram reconhecidos na esfera do Direito Administrativo.
Nessas hipóteses, a Administração atuava sem o seu poder de império, em situação comparável ao do particular. Despida do seu ato de autoridade, essa relação não possuía excepcionalidade que exigisse a aplicação de um Direito próprio, que lhe assegurasse prerrogativas diversas daquelas reconhecidas ao parceiro privado.
Até então, não se tinha a figura do “contrato administrativo”, mas tão somente do “contrato”, independente da parte que integrasse a relação. E, de fato, essa posição era coerente com a visão sustentada à época. Se o Estado não poderia se submeter ao particular quando atuava no exercício das atividades públicas, na condição de detentor do poder, ao integrar a relação contratual despido do jus imperii, estaria sujeito às regras do Direito privado e, nos países com dualidade de jurisdição, submetido à Justiça comum.
A separação entre a jurisdição administrativa e a comum, aliás, teve crucial participação na formação da teoria do contrato administrativo, notadamente na França e nos países inspirados pela doutrina francesa. Nesse primeiro momento, de negativa da existência de contratos qualificadamente públicos, as relações contratuais integradas pela Administração eram naturalmente classificadas como “atos de gestão” em contraposição aos “atos de autoridades”, estes, sim, submetidos ao Direito público e aos Tribunais administrativos. A esse respeito, destaca Almiro do Couto e Silva44:
Assim, quando se afirmou, também na França, a célebre distinção entre atos de autoridade e atos de gestão, que remetia os primeiros para a órbita direito público e os outros para a do direito privado, nunca se duvidou que os contratos celebrados pela Administração Pública, independentemente de sua natureza, eram atos jurídicos de direito privado (...) Essa distinção domina incontrastavelmente quase todo o século XIX, com irrestrita aceitação na doutrina e na jurisprudência, servindo como critério básico para separar a competência dos órgãos da jurisdição ordinária e os da jurisdição administrativa. Ela exprime, aliás, uma ideia que, à época, não encontrava opositores na Europa continental: a de que o Estado, quando agia como persona potentior, o fazia à sombra do direito público.
Chegou-se até a se admitir na França — ainda dentro dessa perspectiva inicial de negação dos contratos públicos — que os Tribunais administrativos julgassem
44 XXXXX, Xxxxxx do Couto e. Os indivíduos e o Estado na realização de tarefas públicas. In: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: 209, p. 53-54, jul./set. 1997.
determinadas causas envolvendo relações contratuais das quais o Poder Público fizesse parte. Mas a distinção, como ensinam Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx e Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx, era puramente processual e pragmática, pautada no fato de que a jurisdição administrativa era mais célere e entenderia melhor o funcionamento da Administração Pública. A natureza civil desses ajustes, contudo, permanecia a mesma45.
Na Alemanha, tal como no modelo francês, a construção de um Direito autônomo para tratar das relações envolvendo a Administração no exercício da atividade pública também afastou a contratualidade do âmbito desse Direito46. Partindo-se da ideia capitaneada por Xxxx Xxxxx de que atuação estatal seria puramente unilateral e de que o contrato seria “repugnante” à própria essência do Direito Público, as relações patrimoniais envolvendo a Administração e o particular foram confiadas ao Direito Privado47.
Se, nesta primeira fase, doutrina alemã e francesa se aproximam ao negar a existência de contratos caracterizados como “públicos”, em uma segunda etapa do desenvolvimento da teoria dos contratos administrativos elas se distanciam. Com efeito,
45 XXXXXX DE ENTERRÍA, Xxxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Curso de Derecho Administrativo. I. 12ª ed. Madrid: Civitas Ediciones, S.L., 2005. p. 688-693. Os autores são muito claros quanto ao ponto: “La distinción contratos administrativos – contratos privados es, pues, exclusivamente en su origen una distinción jurisdiccionales y no sustantivos. Las razones de esa excepción al sistema de distribución de competencias jurisdiccionales son puramente pragmáticas y no de naturaleza. Se entiende (la doctrina es unánime sobre el particular) que, aun siendo de naturaleza civil, ciertos contratos de la Administración (entre nosotros, los que se refieren a obras y servicios públicos) deben ser residenciados ante los tribunales contencioso-administrativos por un simple motivo práctico, porque estos tribunales son más rápidos y expeditos y porque conocen mejor el funcionamiento de la Administración, que conviene non perder de vista al enjuiciar estas cuestiones contractuales.”. Essa distinção, contudo, como se verá mais a frente, impulsionará o desenvolvimento de uma doutrina que vê na substância desses contratos a razão de ser dessa distinção.
46 Como destaca Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxx, já em 1817 a doutrina alemã discriminava o Direito Administrativo do Direito Constitucional, mas a sistematizações autônomas só foram ocorrer anos mais tarde. XXXXXXX XXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxxxx. Curso de Direito Administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009. p. 56. Diversamente do Direito francês, contudo, o Direito Administrativo alemão “não adveio de uma ruptura, mas de uma lenta construção sobre as bases absolutistas do sistema, o que fez com que se aproveitasse preponderantemente das figuras do direito privado, adaptando-as pontualmente a necessidades de interesse público.”. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 12. Além disso, a dualidade entre a jurisdição Administrativa e comum tinha notas diversas na Alemanha. Nas palavras de Xxxx Xxxxxx o “sistema judiciário alemão se coloca, assim, a meio termo, entre a absoluta separação das jurisdições, que caracteriza o modelo francês e o sistema de unidade de jurisdição, peculiar à tradição inglesa e norte-americana, caracterizada pela supremacia dos tribunais judiciários.”. XXXXXX, Xxxx. Contencioso administrativo. In: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Editora Forum. 133, p. 59-69, jul./set., 1978. p. 63. Essa característica própria da formação de cada Direito fica mais clara quando as doutrinas francesa e alemã passam a divergir sobre os contratos firmados pela Administração, como se verá adiante nesta dissertação.
47 XXXXX, Xxxx. Derecho Administrativo Alemán. Vol. 4: Parte especial: las obligaciones especiales - 2ª ed. inalt. - Buenos Aires: Depalma, 1982. p. 162.
enquanto a primeira mantém a negativa da existência de um contrato tipicamente público48, a segunda passa a desenvolver a ideia de que existem, efetivamente, relações cujas características materiais são distintas dos contratos em geral e que, por isso, demandam a aplicação de uma sistemática própria e uma jurisdição diversa da comum.
1.1.2. 2ª Fase: do reconhecimento ao entusiasmo
A transferência pragmática de alguns contratos para a jurisdição estatal, mencionada acima, levou a literatura francesa a desenvolver notas características desses ajustes para justificar a sua retirada do âmbito do Direito privado e a passagem ao domínio do Direito público49. Nessa fase, deixa-se de falar apenas em “contrato” e passa-se a
48 Diversamente do que ocorreu na França, a doutrina alemã continuava a negar a sistematização de uma teoria para determinados contratos firmados pela Administração. Não porque só reconhecia a atuação unilateral e autoritária da Administração, mas por acreditar que essas relações poderiam ser objeto de celebração de contratos privados regidos pelo Direito privado. Esse alerta sobre a distinção entre o desenvolvimento dos contratos no âmbito desses dois países foi desenvolvido de forma profunda por Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxx. Segundo a autora, apenas se reconheceu a existência de um contrato “jurídico- público” na Alemanha quando atividades verdadeiramente públicas passaram a ser objeto de acordo com os particulares. Do contrário, como o Direito Administrativo naquele país não tem a mesma vocação globalizante do direito francês, as relações poderiam ser regidas pelo Direito privado, ainda que a Administração fizesse parte delas. “Pode assim concluir-se que, em França, aquilo que se pretendeu foi que tarefas que anteriormente só podiam ser realizadas através de contratos privados, pudessem passar a ser objecto da celebração de contratos administrativos – ou seja, que a Administração pudesse passar, ainda que de forma eventual, a empregar as suas prerrogativas de autoridade para resolver as situações. Na Alemanha, pelo contrário, o problema do ‘contrato de direito público’ andou associado à aceitação do facto de a Administração poder, em certos casos, prescindir do exercício do poder administrativo que até aí utilizava e passar a resolver essas situações através da celebração de acordos com os particulares”. XXXXXXXXXX, Xxxxx Xxxx. Requiem pelo contrato administrativo. Coimbra: Almedina, 2003. p. 45.
49 Ao tratar da qualificação dos contratos como “contratos administrativos” e “contratos privados da Administração” — a qual será apontada mais a frente — Xxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxxxx demonstra com clareza como a dualidade entre o Direito público e privado foi capaz de dar conteúdo próprio aos contratos administrativos. Segundo o autor: “No que toca ao direito dos contratos administrativos na França e no Brasil essa afirmação [a classificação jurídica não se limita a dividir e categorizar áreas do Direito. É um processo muito mais sutil, que alcança o coração de cada tópico] é particularmente verdadeira no que diz com a dicotomia ‘contratos administrativos versus contratos privados da Administração’, uma vez que as consequências dessa classificação se estendem para muito além de saber qual o juízo competente para o julgamento do feito, justamente em razão dos diferentes valores e princípios jurídicos aplicáveis ao direito público e ao direito privado. Ora, o arcabouço teórico dessa classificação entre contratos administrativos e contratos públicos da Administração foi pavimentado durante anos pela dicotomia entre ‘direito público versus direito privado’. A dicotomia, nesse sentido, facilita e induz a aplicação de princípios jurídicos distintos a cada ramo do Direito, assim dando à classificação jurídica conteúdo e sentido específicos.”. XXXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxxx. Estado e Contrato. Supremacia do Interesse público “versus” igualdade São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 132-133.
reconhecer uma categoria especial de “contrato administrativo”. Assim começa, verdadeiramente, a teoria dos contratos públicos. Nas precisas palavras de Rafael Roque Garofano50:
Fato é que a aversão inicial da figura do contrato no Domínio do Direito Administrativo seguiu-se na França, um grande esforço por sua afirmação a partir da criação do instituto jurídico autônomo e informado por princípios diferentes daqueles que norteiam os contratos de Direito Civil: o contrato administrativo.
Mas o que faz destes ajustes, contratos extraordinários? Com base nas decisões dos Tribunais Administrativos51, a doutrina francesa desenvolveu, ao longo do tempo, diversos fundamentos para o reconhecimento dessa especialidade. O primeiro deles, que permitiu a ruptura com o entendimento anterior, surge no início do século XX, com a substituição da dualidade “atos de gestão e atos de autoridade” pela ideia de “serviço público”52.
O pensamento desenvolvido pela Escola de Bordeaux é essencial para esse salto dogmático. Na esteira da concepção de Xxxxxx Xxxx — que irá trazer contorno mais jurídico ao pensamento inicial desenvolvido por Xxxx Xxxxxx, fundador da Escola — a exorbitância do Direito administrativo em relação ao Direito privado se justificaria pela própria necessidade de se fazer a gestão dos serviços públicos53. Nesse passo, aos contratos firmados pela Administração para assegurar o interesse geral (consubstanciado no serviço público), somente poderia ser aplicado um regime especial. Um regime capaz de assegurar a autoridade da Administração, que passa a contratar não como pessoa
50 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx. Contratualidade administrativa: abrangência e complexidade do fenômeno contratual da administração pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 29.
51 O caso Xxxxxx, julgado pelo Tribunal de Conflitos (francês) em fevereiro de 19873, é considerado pela doutrina, com algumas relativizações, como o leading case da formação do conceito de serviço público e a definição entre a competência administrativa e comum e a “própria diferenciação entre o Direito Administrativo e os demais ramos do direito, do Direito Civil em especial”. XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. Direito dos Serviços Públicos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 94.
52 XXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Curso de Derecho Administrativo. I. 12ª ed. Madrid: Civitas Ediciones, S.L., 2005. p. 691.
53 Segundo Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxx: “Superando as ideias de Xxxxxx, para quem inexistia diferença de fundo entre os contratos privados e os contratos administrativos celebrados pelo Poder Público — estes últimos caracterizados pela finalidade de serviço público em vista da qual são celebrados —, a doutrina francesa propendeu, notadamente em Jèze, para o princípio de que existe entre os dois tipos de contrato uma diferença intrínseca derivada da diversidade de efeitos jurídicos decorrentes de cada um deles.
XXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Os contratos da administração pública. In: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: 179-180: 68-91, jan./jun. 1990. p. 77.
jurídica, mas na qualidade de Poder Público. Segundo o autor, os contratos concluídos pela Administração se dividem em duas grandes categorias: os contratos civis e54:
les contrats conclus en vue d’assurer le fonctionnement d’un service public, et soumis à des règles spèciales (régime juridique du droit public). Ex.: Marché de traveux publics, contrat de concesion de servisse public, etc). Ce sont les contrats administratifs proprement dits;
A partir desse pensamento, a doutrina se convence da existência de um critério material de distinção entre os contratos administrativos e os demais contratos privados, cabendo ao primeiro não só uma jurisdição especial, mas um conjunto de privilégios que, sob a justificativa do interesse público, foram paulatinamente sendo transferidos à essas relações, até se tornarem a sua essência.
Na literatura pátria, por exemplo, ao tratar das concessões, Themístocles Brandão Cavalcanti associou os contratos administrativos, aos serviços públicos e ao regime especial de prerrogativas estatais. Segundo o autor55:
Ha em todo contracto feito com a administração, o o conhecimento prévio do contractante que a execução da obrigação se acha subordinada a condições inherentes à natureza do serviço e a posição jurídica de uma das partes, e ahi se acha precisamente a legitimidade de certas medidas tomadas pelo Estado durante a vigência do contracto.
Como já adiantado acima, embora tenha sido o responsável por uma verdadeira mudança dogmática, o critério do serviço público não foi o único utilizado para justificar a especialidade dos contratos administrativos e para distanciá-los dos contratos em geral. Ao sintetizar os fundamentos desenvolvidos pela doutrina, Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxx identificou que, ao longo do tempo, outros critérios substantivos foram sendo desenvolvidos para substituir aqueles puramente formais56 que vigoraram na fase de negação da excepcionalidade dessas relações.
54 Em tradução livre: “contratos celebrados para assegurar o funcionamento de um serviço público, e sujeitos a regras especiais (regime jurídico do direito público). Ex : contrato de obras públicas, contrato de serviço público, etc.). Estes são os próprios contratos administrativos”. XXXX, Xxxxxx. Les contrats administratifs: de x'xxxx, xxx xxxxxxxxxxxx, xxx xxxxxxxx xx xxx xxxxxxxxxxxxxx xxxxxxx / Xxxxxx Xxxx. - Xxxxx: Xxxxxx Xxxxx, 1932. p.7.
55 CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Instituições de Direito Administrativo Brasileiro - parte especial. 2ª ed, v. II, Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1938. p.
56 De acordo com a autora, consideram-se formais os critérios da jurisdição competente, que classificava os contratos de acordo com a jurisdição competente para julgá-los, e o da forma e formalidades, segundo o qual são administrativos os contratos que a lei assim define. Esses dois critérios não
Segundo a classificação proposta pela autora, além do serviço público, também podem ser considerados fundamentos que remetem aos elementos intrínsecos do contrato, e consequentemente poderiam justificar a natureza especial do ajuste: (i) a natureza jurídica das partes, ou seja, a participação da Administração na relação; (ii) a utilidade pública como finalidade contratual; (iii) a sujeição do particular ao contratante público; bem como a (iv) a existência de cláusulas que exorbitavam o Direito privado57.
De todo modo, com acento em uma justificativa ou em outra, fato é que o reconhecimento da existência de contratos qualificadamente públicos possibilitou a aplicação de certas prerrogativas administrativas não só aos atos administrativos, mas também a determinados contratos firmados pela Administração. Com isso, estabeleceu- se traços peculiares dessas relações, diversos daqueles reconhecidos aos contratos privados. É o caso, por exemplo, da supremacia do contratante público, que vai expressar- se “tanto pela possibilidade de instabilizar a relação”, por meio da admissão de alterações unilaterais, quanto pela “autoridade do contratante público”, que se manifesta pela amplitude da fiscalização, controle e possibilidade de aplicação de sanções ao parceiro privado58.
Nessa fase, experimenta-se a ampliação das contratações públicas. A partir da criação de uma sistemática própria e protetora do interesse público, a Administração passa cada vez mais a contratar. Isso porque — pelo menos nesse primeiro momento —, retirar do Direito privado determinadas relações patrimoniais e submetê-las ao regime público, significava admitir certa flexibilização a favor do próprio Estado. Quanto mais próxima do Direito Civil, mais a Administração ficava refém das “amarras” do contratante privado, enquanto a submissão ao Direito Administrativo lhe assegurava compatibilizar o contrato com as necessidades públicas que surgiam ao longo do ajuste59.
identificavam qualquer distinção decorrente da natureza dos contratos. XXXXXXXXXX, Xxxxx Xxxx.
Requiem pelo contrato administrativo. Coimbra: Xxxxxxxx, 0000. p. 77-81.
57 XXXXXXXXXX, Xxxxx Xxxx. Requiem pelo contrato administrativo. Coimbra: Almedina, 2003. p. 79-98.
A autora identifica, ainda, uma fase da doutrina, na qual se admitia a especialidade com base na presença das cláusulas exorbitantes ou diante de um serviço público.
58 XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx de. Curso de direito administrativo. 33ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 639. Essas características foram destacadas pelo autor quando da descrição do desenvolvimento da teoria dos contratos públicos pela doutrina francesa, com especial destaque para as lições de Xxxxxx Xxxx, considerado por Xxxxx Xxxxxxx “o principal teórico na matéria”.
59 Interessante notar que, na fase inicial do desenvolvimento da teoria dos contratos públicos, era o Direito Administrativo que permitia certa flexibilização da rigidez do Direito Civil. De fato, nessa fase do Direito comum, o que se tinha, decorrente da autonomia de vontade dos contratantes, era a força obrigatória dos contratos — pacta sunt servanda. É dizer, se o que fosse pactuado entre as partes não encontrasse vedação legal e não tivesse defeitos no negócio jurídico, o contrato faria lei entre as partes e
Aliás, esse período foi marcado pelo desenvolvimento de grandes parcerias entre o Poder Público e o particular. Enquanto as primeiras concessões de serviço público, submetidas aos ditames do Direito privado, impediam ao Estado exigir a atualização desses serviços e outras alterações no decurso das parcerias, o advento dos contratos qualificados como ‘administrativos” inverte a lógica da relação. A partir dessa “substantivização” dos ajustes públicos, a Administração passa a ter reconhecidos certos poderes — como a mencionada possibilidade de alteração unilateral —, determinantes para a ampliação da contratualidade em âmbito público.
Esse pensamento ganhou proporções para além dos limites da França. Constituiu a base do desenvolvimento do contrato administrativo em outros países da Europa Continental — tais como Espanha e Portugal —, vindo a ser disseminado de forma pacífica no Brasil. Tal como no Direito francês, no caso brasileiro, passou-se a justificar as prerrogativas contratuais da Administração com base “na satisfação do dever de tutela do interesse público e na afirmação da posição da supremacia do interesse público sobre o privado, visando à melhor concepção dos fins estatais”60.
o cumprimento das obrigações assumidas seria plenamente exigível. Ao analisar historicamente a força obrigatória dos contratos, Xxx Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxx, apontou para o fato de que, em um determinado momento da Idade Média “associado ao princípio moral do cumprimento das promessas, o princípio do pacta sunt servanda passou a significar muito mais que a obrigatoriedade do cumprimento do contrato. As partes deveriam cumpri-lo tal como pactuado, ou seja, sem qualquer alteração de seu conteúdo, pois concebido pela livre manifestação das partes e conforme as normas então vigentes”.
Ainda de acordo com a autora as características de obrigatoriedade e de imutabilidade atribuídas ao princípio do pacta sunt servanda atingiram seu máximo com o Código de Xxxxxxxx, que elevou o contrato ao status de norma ao declarar que os contratos celebrados livremente faziam lei entre as partes: “Art. 1.134. Lês conventions légalement formées tiennent lieu de loi à ceux que les ont faites”. XXXXXXXX, Xxx Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx de. Pacta sunt servanda. In: Revista dos Tribunais. v.
905/2011. p. 785-812. Mar/ 2011. p. 795. Foi sob a égide desse entendimento que os contratos foram considerados “engessados” pelo Direito comum. Hoje, contudo, como se verá adiante, o que se percebe é exatamente o movimento inverso, por meio do qual, cada vez mais, se pretende diminuir a distância entre os contratos públicos e os privados para fins de assegurar certa maleabilidade às rígidas prerrogativas estatais.
60 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxx. Contratualidade administrativa: abrangência e complexidade do fenômeno contratual da administração pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 53.
O autor analisa de forma detida a teoria dos contratos públicos no Direito brasileiro. Apresenta a posição de inúmeros juristas — desde o Império — acerca dos contratos públicos para demonstrar que a concepção francesa prevalece na doutrina brasileira mais recente. De acordo com o autor, “não é preciso reproduzir toda a doutrina nacional para reconhecer a incidência, entre nós, do regime jurídico exorbitante do Direito comum (...) em todas as obras que aceitam a existência dos chamados contratos administrativos, o ponto de convergência é justamente a presença de prerrogativas de ação unilateral da Administração, capazes de lhe outorgar poderes de, no mínimo (i) determinar modificações unilaterais nas prestações devidas pelo contratante em função da necessidade pública; (ii) acompanhar e fiscalizar a execução do contrato; (iii) impor as sanções estipuladas quando cabíveis; e (iv) rescindir o contrato por iniciativa unilateral se o interesse público assim exigir”.
Sob essa perspectiva unificadora e verticalizada, a teoria dos contratos administrativos se estabeleceu no país e permitiu distinguir duas naturezas nas relações contratuais firmadas pela Administração (contratos privados da Administração e contratos públicos). Nos contratos privados61, o Poder Público participaria, pelo menos a princípio, em posição de igualdade com particular, enquanto nos contratos administrativos, submetidos a um regime especial, a Administração disporia de uma série de prerrogativas para defesa do interesse público — o que a coloca em posição superior ao contratado privado.
Constata-se, assim, que mesmo diante da inexistência da dualidade de jurisdição (administrativa e comum) no Direito processual pátrio, fixou-se as bases para um contrato público especial62.
Não obstante a relevância da distinção dos regimes público e privado para o desenvolvimento dos contratos no Direito Administrativo e a sua inegável repercussão em outros países, todo o esforço da doutrina e da jurisprudência francesa ainda esbarra na ausência de um critério capaz de justificar a materialidade dessa diferenciação. Os fundamentos diversos apontados acima, são capazes de ilustrar o que a literatura classificou de “mito” do critério único e a busca permanente por um “critério mágico”, apto a justificar a autonomização do contrato administrativo face ao contrato público63.
1.1.3. 3ª Fase: da crise às novas perspectivas
O ritmo acelerado, contudo, da alteração da própria noção de Estado e a crescente complexidade dos contratos celebrados entre a Administração e o particular demonstram
61 De acordo com Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx, estes seriam contratos semipúblicos, tendo em vista a posição de não superioridade da Administração. São tradicionalmente considerados exemplos dessas relações, os contratos locatícios, quando a Administração é locatária, os de seguro e a compra e venda. XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Direito administrativo contratual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 280.
62 Essa perspectiva especial, dissociada do seu contexto histórico, pode ser encontrada na literatura brasileira na seguinte passagem “os contratos públicos são regidos por normas e princípios próprios do Direito Público, atuando o Direito Privado apenas supletivamente, jamais substituindo ou derrogando as regras privatistas da Administração. (...) o que realmente tipifica [o contrato público] e o distingue do contrato privado é a participação da Administração na relação jurídica com supremacia de poder para fixar as condições iniciais do ajuste. Desse privilégio administrativo, na relação contratual decorre para a Administração a faculdade de impor as cláusulas exorbitantes do Direito Comum”. XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. Direito administrativo brasileiro. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 213-215.
63 XXXXXXXXXX, Xxxxx Xxxx. Requiem pelo contrato administrativo. Coimbra: Almedina, 2003. p. 71-75.
a dificuldade de se afirmar que os contratos administrativos seriam essencialmente diversos dos demais contratos. A mera repetição do dogma da natureza pública e especial desses contratos passa a exigir reflexão.
Aliás, o Estado pós-moderno, os influxos da globalização, o desenvolvimento de uma sociedade de risco e a velocidade com que as circunstâncias se alteram, tornam incontestável a necessidade de se revisitar os paradigmas do Direito Administrativo como um todo64. “A compreensão do Estado de risco como aspecto nuclear na organização da sociedade contemporânea remete a uma dinâmica peculiar que submete o direito administrativo a um novo papel, a uma transformação”65.
Xxxxxxx Xxxxxxxxxx, por exemplo, ao tratar dos efeitos desse contexto sobre o Estado, descreveu quatro pontos que podem ser transportados com facilidade para as relações contratuais firmadas pelo Administração: a relativização da imperatividade, a redefinição das funções administrativas, a atenuação das fronteiras entre o público e o privado e o reconhecimento da heterogeneidade das relações66:
- Primeiramente, o processo de globalização em curso coloca o Estado num contexto de interdependência estrutural, que torna obsoleta a concepção tradicional de soberania (seção 1);
- Em seguida, a perda pelo Estado do comando sobe uma série de variáveis essenciais de que depende o desenvolvimento econômico e social acarreta uma redefinição de suas funções (seção 2);
- Correlativamente, a clareza e precisão das fronteiras entre o público e o privado tendem a se atenuar, entranhando uma banalização da gestão pública (seção 3);
- Enfim, nos casos em que o Estado estiver organizado de um modo unitário, assiste-se a um movimento de fragmentação e de degeneração de aparelhos cada vez mais heterogêneos (seção 4).
A crise econômica, mencionada na introdução desse trabalho, também faz acentuar a necessidade de se endereçar essas novas características diante da ineficiência
64 “Hay dos características que son en relación con las transformaciones que están en curso en el Derecho administrativo. La primera es su velocidad, la segunda, su continuidad. Los cambios del pasado han precisado siglos. Los actuales se producen en cortos períodos de tiempo, a gran velocidad. El Derecho Civil ha tenido una gran estabilidad a lo largo del tiempo. El Derecho administrativo, en cambio, se ha caracterizado por cambios cada vez más rápidos. En los años más recientes (en el último cuarto de siglo), la velocidad se ve acompañada de la continuidad: el Derecho administrativo rige por un diseño que cambia continuamente, porque la reforma se ha convertido en una función pública permanente”. XXXXXXX, Xxxxxx. La globalización jurídica. Madri: Xxxxxxx Xxxx, 2006. p. 188-189.
65 GUERRA, Xxxxxx. Sociedade de riscos e incertezas: o controle judicial sobre as escolhas regulatórias.
In: Interesse Público. Belo Horizonte: v. 18, n. 95, p. 155-174, jan./fev. 2016. p. 171.
66 XXXXXXXXXX, Xxxxxxx. O Estado Pós-moderno. Tradutor Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 37.
muitas vezes gerada pela afirmação categórica — sem qualquer juízo crítico — de que a Administração detém prerrogativas67. As constantes rescisões contratuais e as penalizações aplicadas aos contratantes privados que não levam em consideração o contexto econômico, político e social, ilustram essa situação68.
O efeito sistêmico desse comportamento é ainda mais preocupante, já que agrava a crise de confiança do mercado, levando à precificação dos novos ajustes. O círculo vicioso se forma, gerando o questionamento inevitável acerca da própria razão de ser das prerrogativas da Administração Pública.
Mas como tratar dos contratos a partir de uma nova perspectiva, sem descontruir o “mantra”, repetido há anos, de que essas prerrogativas decorrem da própria natureza do contrato público? Se é verdade que a essência do contrato administrativo o faz especial em relação aos demais, como seria possível ao Poder Público atuar de forma diversa?
Foi para desmistificar toda essa ideia — arraigada em boa parte da literatura pátria
— que se revisitou as fases pelas quais passou a teoria do contrato público. O retorno à sua fase de criação aponta para o equívoco de se compreender que a natureza desses contratos teria justificado a sua autonomia em relação aos contratos privados.
O percurso foi bem diferente: diante da regra processual que atribuiu ao juiz administrativo competência para julgar determinados contratos da Administração, a
67 Sobre a crise como elemento de acentuação da rapidez com que as mudanças acontecem no Direito atualmente, assim se manifestou Xxx Xxxxxx Xxxxxxxxx Moniz “a contingência característica do tempo hodierno – que a crise confirmou de uma forma avassaladora e irreversível – veio a demonstrar que nos encontramos nos antípodas desta realidade [perene] e perante uma crescente ‘aceleração do tempo jurídico’.”. XXXXX, Xxx Xxxxxx Xxxxxxxxx. A crise e a regulação: o futuro da regulação administrativa. In: VI ENCONTRO DE PROFESSORES PORTUGUESES DE DIREITO PÚBLICO. A crise e o
direito público. XXXXXXXXX, Xxxxx; XXXXX, Xxxxx Xxxxx (Coord.). Edição de Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, p. 95-96, out. 2013.
68 De fato, a questão relativa à crise econômica e o seu reflexo nos contratos firmados pela Administração não se restringe à exemplos doutrinários. Existem questões práticas que demonstram, com clareza, a situação ora desenhada. Em 2015, por exemplo, por meio do PARECER n.
00034/2015/DEPCONSU/PGF/AGU, a Advocacia-Geral da União avaliou o pedido formulado pela Concessionária Xxxxxxxx Xxxxxx XX-000 à ANTT de adiamento do prazo para o cumprimento das suas obrigações. Naquela oportunidade, dentre outras questões suscitadas pela Concessionária, apontou-se para ausência de crédito público e privado – tendo em vista o contexto de crise do país –, bem como a sua iminente insolvência. O pedido foi afastado pela AGU, que, além de destacar os constantes descumprimentos contratuais por parte da Concessionária, apontou para “a ausência de amparo legal para o adiamento das obrigações”. Hoje, esse contrato teve sua Caducidade declarada pelo Governo Federal. Disponível em: xxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxxxx. Acesso em: 10 mar. 2018. Oportuno esclarecer nesse ponto que a menção ao Parecer exarado pela AGU não significa a realização de qualquer juízo de valor acerca do resultado jurídico alcançado. Com efeito, seria imprudente fazer esse tipo de avaliação sem considerar a realidade do processo administrativo, isto é, o que foi objeto de alegação e prova nos autos. Nesses termos, a menção ao parecer pretende apenas ilustrar a crise como argumento de mutação contratual.
jurisprudência e a literatura se viram diante da necessidade de justificar essa medida. E o fizeram por meio da identificação de um suposto caráter intrinsecamente público69.
A artificialidade dessa formação, apesar de poder ser percebida pela profusão de critérios criados — e já apontados acima — para fundamentar a especialidade desses contratos, parece ter sido esquecida com o passar do tempo. Ao tratar do contrato qualificadamente administrativo, não se costuma acentuar que, em primeiro lugar veio a autonomia processual, para, só depois, se construir a especialidade desses ajustes70.
Esquece-se, assim, que a distinção original era meramente formal. Apenas posteriormente se introduziu uma diferença substancial (e não natural), que acabou servindo para justificar não apenas a submissão à jurisdição administrativa, mas a possibilidade da Administração se valer da sua supremacia nas relações contratuais. Maria João Estorninho71 é enfática sobre a origem desses contratos e, além de apontar para o fato de que a sequência cronológica real desses ajustes foi a autonomização processual seguida da autonomização substantiva, afirmou que:
O contrato administrativo não foi o tal ‘sinal da modernidade’ mas sim, pelo contrário, uma ‘invenção’ da doutrina francesa para encobrir o recurso pela Administração à técnicas autoritárias, em áreas onde lhe costumava ser vedado. O contrato administrativo surgiu quando a Administração começou a sentir-se ‘espartilhada’ nos esquemas contratuais rígidos do Direito Privado, nos quais não podia mover-se a seu bel-prazer nem podia, nomeadamente, alterar as cláusulas ao sabor das variações do interesse público. Punha-se, assim, fora de questão que tais problemas pudessem continuar a ser resolvidos nos termos tradicionais do Direito Privado. No entanto, também repugnava que à Administração fosse permitido, em tais casos, o recurso à solução unilateral e autoritária. Por estas duas razões, a única solução possível foi a da criação do ‘expediente’ do contrato administrativo que, sob a forma contratual, escondia uma realidade na qual Administração poderia, em última instância, recorrer às suas prerrogativas.
69 Não se pode deixar de relembrar nesse ponto, outra questão pragmática que impulsionou essa construção. As amarras iniciais de um Direito Civil — ao qual se submetiam os pactos da Administração —, pautado pela máxima da pacta sunt servanda, foram essenciais na formação desse direito excepcional.
70 A lógica dedutiva, mas artificial, da natureza dos contratos públicos foi traduzida com precisão por Xxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxxxx: “o interesse geral deve prevalecer sobre o interesse privado; o Estado deve submeter-se ao direito público (ao direito administrativo, ao contrato administrativo), o qual é de ser aplicado por juízes e Tribunais especiais. Daí segue o seguinte raciocínio dedutivo: a filosofia da supremacia do interesse público predomina no direito público; essa filosofia é intimamente ligada à dicotomia ‘direito público versus direito privado’; os contratos administrativos, na medida em que são públicos, e não privados, devem ser interpretados segundo o mesmo princípio.”. XXXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxxx. Estado e Contrato. Supremacia do Interesse público “versus” igualdade. São Paulo: Editora Malheiros, 2011. p. 140-141.
71 XXXXXXXXXX, Xxxxx Xxxx. Requiem pelo contrato administrativo. Coimbra: Almedina, 2003. p. 44.
Todo o esforço feito até o momento de retorno à origem da construção da teoria do contrato público tem, então, uma razão de ser: legitimar a nova perspectiva que se pretende lançar sobre os contratos administrativos. O objetivo é deixar claro que as prerrogativas da Administração não são inerentes ao contrato, não decorrem naturalmente do ajuste firmado com o particular.
Esclareça-se, diante dessa premissa, que a intenção não é flertar com a fase de negação desses ajustes e afirmar que a Administração está, em qualquer circunstância, em situação de igualdade plena e irrestrita com o particular.
Essa realidade sequer é uma verdade no âmbito dos contratos firmados por particulares e regidos integralmente pelo Direito privado72. O reconhecimento de direitos fundamentais e os influxos constitucionais também exigiram uma reformulação dos institutos privados73. Atualmente, o contrato deixa de ser interpretado apenas sob a perspectiva da autonomia da vontade, da igualdade entre as partes e da vinculação restrita aos seus participantes, e passa a exigir uma análise sob o ponto de vista da boa-fé objetiva, equilíbrio econômico-financeiro e da sua função social74.
72 Hoje, o desequilíbrio das partes é reconhecido, inclusive, entre contratantes privados. É o caso, por exemplo, dos consumidores, que ocupam, desde o advento da Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do consumidor) posição assimétrica em relação aos fornecedores.
73 Ao tratar dos efeitos do neoconstitucionalismo que se desenvolveu a partir da segunda metade do Século XX, e o consequente reconhecimento da força normativa da Constituição, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxx apontou que “para os particulares, [a constitucionalização] estabelece limitações a sua autonomia da vontade, em domínios como a liberdade de contratar ou o uso de propriedade privada, subordinando-a a valores constitucionais e o respeito aos direitos fundamentais”. Esse conteúdo material e axiológico não se irradiou apenas para o Direito privado, ainda de acordo com o autor “a partir da centralidade da dignidade da pessoa humana e da preservação dos direitos fundamentais, alterou-se a qualidade das relações entre Administração e administrado, com a superação ou reformulação de paradigmas tradicionais”. XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. A constitucionalização do direito e suas repercussões no âmbito administrativo. In: XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx. (Coord.). Direito Administrativo e seus novos paradigmas. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 32-56. Essa repercussão do direito constitucional tanto em âmbito privado como no público esclarecem a razão pela qual, linhas a frente se apontará para uma inevitável aproximação entre o Direito Público e o Direito Privado.
74 Sobre a alteração dos paradigmas da contratação no âmbito civil, assim se pronunciou Xxxxxxx Xxxxxxxx: “O contexto axiológico no qual se insere o Código Civil, a partir da Constituição da República de 1988, altera, de forma radical, o sentido tradicionalmente atribuído à autonomia privada e à teoria contratual. Pode-se afirmar que os três princípios cardinais do regime contratual, a autonomia privada, a força obrigatória dos contratos e a relatividade obrigacional, embora prestigiados pelo sistema, adquirem novos contornos com o surgimento dos princípios da boa-fé objetiva, do equilíbrio econômico e da função social dos contratos. A boa-fé objetiva atua preponderantemente sobre a autonomia privada. O equilíbrio econômico da relação contratual, por sua vez, altera substancialmente a força obrigatória dos pactos, dando ensejo a institutos como a lesão (art. 157, CC/2002), a revisão e a resolução por excessiva onerosidade (arts. 317, 478 e 479, CC/2002). E a função social, a seu turno, subverte o princípio da relatividade, impondo efeitos contratuais que extrapolam a avença negocial. Ou seja, o respeito à disciplina contratual torna-se oponível a terceiros, ao mesmo tempo em que os contratantes devem respeitar os titulares de interesses socialmente relevantes alcançados pela órbita do contrato. (...) O princípio da boa-fé funciona como o elo entre o direito contratual e os princípios
O desenvolvimento do Estado Regulador75 também tem papel fundamental nessa mudança de paradigma. As normas regulatórias se projetam cada vez mais na esfera da autonomia privada e a liberdade contratual vem sendo objeto dessa regulação. Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx e Xxx Xxxxxxxx xx Xxxxx apontam para a acentuação da “publicização do direito privado” em razão da atuação regulatória do Estado sobre as atividades econômicas76.
De acordo com os referidos autores, “atuando a regulação pública sobre o mercado e constituindo o contrato de direito privado o instrumento por excelência (par excellence) do contacto jurídico entre os atores do mercado (rectius, entre as empresas e entre estas e os consumidores) – o ‘motor do direito obrigacional’, que vincula uma pluralidade de
constitucionais. Atribuem-se lhe, do ponto de vista técnico, três funções principais: (a) função interpretativa dos contratos; (b) função restritiva do exercício abusivo de direitos; e (c) função criadora de deveres anexos à prestação principal, nas fases pré-negocial, negocial e pós-negocial. XXXXXXXX, Xxxxxxx. Novos princípios contratuais e teoria da confiança: a exegese da cláusula “to the best knowledge of the sellers”. In: XXXXXXXX, Xxxxxxx. Relações obrigacionais e contratos. v. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 428. Ora, claramente, os princípios que informam esse “novo contrato privado” se adequam ao que se espera, hoje, da atuação administrativa. Daí a inegável aproximação entre os regimes.
75 Estado Regulador aqui entendido como Estado administrativo, decorrente da reorganização das tarefas públicas do último quarto do século XX, por meio do qual abdica de prestar serviços, mas não se abstém como o Estado liberal. Nas claras lições de Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx, “O Estado, até então executor dos serviços públicos, passa a exercer, primordialmente, a função de regulador da economia, encarregando-se pelo bom funcionamento do mercado, bem como, pela correção das suas falhas. O Estado Regulador e Garantidor surge, assim, como um modelo estatal intermediário, alternativo aos dois modelos anteriormente vivenciados – Liberal (Minimalstaat) e Social (Maximalstaat). Uma espécie de ‘terceira via’, em que não atua, via de regra, diretamente na atividade econômica, mas também não se abstém por total desse cenário. Porta-se, assim, como garantidor de certos fins de interesse público”, inclusive interferindo nos contratos privados. XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx xx. O Estado regulador e garantidor em tempos de crise e o direito administrativo da regulação. In: Revista Digital de Direito Administrativo. v. 3, n. 1, p. 163-183, 2016. p. 165. Disponível em: www.revistas-.xxx.xx/xxxx. Acesso em: 17 abr. 2018. Veja-se que o autor fala em “primordialmente” a denotar, como já adiantado na introdução desse trabalho, que esse modelo não suplanta os demais, trata-se de um Estado multifacetado.
76 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx; XXXXXX, Xxx Xxxxxxxx xx Xxxxx. A regulação pública como limite à autonomia de vontade no direito contratual. Revista Brasileira de Direito Público – RDP. Belo Horizonte: a. 14, n. 52, p. 75-95, jan./mar. 2016. p. 75. No mesmo sentido Xxxxx Xxxxxxxxx, para quem: “Passou-se, pois, a uma fase de regulação pública do contrato privado ou, de uma forma mais genérica, a um estádio de publicização do direito privado. Levantava-se a clássica imunidade do direito e do contrato privado à intromissão da regulação do Estado e iniciava-se no terreno um combate às múltiplas deficiências e debilidades de um sistema que se mostrava confortável com o princípio da desnecessidade da defesa dos direito e interesses dos cidadãos nas relações que se processam entre si. (...) Nesse processo de regulação pública do contrato privado, o papel decisivo coube, como se sabe, ao legislador, responsável pela definição (heterónoma) de proibições, restrições e limites às liberdades contratuais (restrições e limites que tocaram a celebração e, ou a definição do conteúdo regulador dos contratos). Mas a referida tarefa não coube exclusivamente ao legislador; na verdade, limites e restrições de vária ordem à autonomia contratual dos sujeitos privados surgiram também em regulamentos administrativos. Por força desta interferência, o objecto do contrato entre privados vê-se determinado, «in via regolativa», por autoridades com competências técnicas e funções administrativas. XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx X. Regulação Administrativa e contrato. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Xxxxxxx Xxxxxxx. XXXXXXX, Xxxxx (Coord.). Coimbra: Coimbra Editora, v. II, 987- 1023. p. 998, 2010.
atores privados –, não surpreende que a instituição contratual se veja transformada num objeto privilegiado da atividade pública regulatória” que passa a subordiná-la, por exemplo, às normas de direito público e aos princípios e regras de justiça social77.
Por isso, não soa incoerente quando vozes na doutrina se levantam defendendo uma aproximação entre o Direto público e o privado78, ou, mais especificamente, entre os contratos privados da Administração Pública e os contratos administrativos79. De fato, uma vez afastada a premissa da natureza pública de determinados contratos, o que se tem,
77 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx; XXXXXX, Xxx Xxxxxxxx xx Xxxxx. A regulação pública como limite à autonomia de vontade no direito contratual. Revista Brasileira de Direito Público – RDP. Belo Horizonte: a. 14, n. 52, p. 75-95, jan./mar. 2016. p. 76.
Para ser mais exata, apesar de focarem na influência pública sobre o privado, os autores identificam a existência de fluxos recíprocos entre o Direito Público e o Direito Privado. “Nos outputs, verificamos que o sistema privado exporta a sua regulamentação jurídica para o sistema público, nas formas de privatização das entidades administrativas e no direito regulador, ao ponto de hoje falar-se, inclusive, num ‘direito administrativo privado’. Nos inputs, destacamos os valores e princípios de justiça social, a teia de normas de direito público e de normas regulatórias.”. Registre-se, contudo, o alerta feito pelos mesmos autores para o excesso de regulação na atividade privada, exigindo-se, inclusive, análise econômica de custos e benefícios e a avaliação das consequências quando do desenvolvimento das normas regulatórias.
78 Sobre o tema, assim se manifestou Xxxxx Xxxxxxx, “sem dúvida as dicotomias apresentam utilidade para fins didáticos, de estudos e discussão. Mas, como bem assinala a doutrina administrativista contemporânea e já notava Xxxxxxxxx na década de 50 do século XX, não se apresentam hoje como polos opostos, contrários, separados rigidamente. Nos primórdios do Século XXI registram-se inúmeros fluxos, intercâmbios, conexões e zonas cinzentas entre público e privado, entre o Direito Público e o Direito Privado. Tanto existe a privatização do público como a publicização do privado, sem significar o enfraquecimento de um ou de outro, mas o convívio, a colaboração acentuada para melhor efetivar os direitos fundamentais e atender as necessidades da população”. MEDAUAR, Odete. Público-Privado. In: XXXXXX XXXXX, Xxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx (Coord.). Parcerias público privadas: reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004. 1ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p.
50. Indo mais além, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx aponta para a necessária superação da bipolaridade existente no Direito administrativo como um todo: “público-privado; indivíduo-coletividade; estrutura da Administração-função pública; concentração-limitação do poder; legalidade-discricionariedade”. Segundo o autor, com base nas lições de Xxxxxx Xxxxxxx: “impende reconhecer que o modelo bipolar cede lugar a um modelo multipolar, em que existirão pelo menos três partes na relação administrativa: dois ou mais interesses (públicos) conflitantes, titularizados por distintos privados, e a Administração, portadora de seus próprios interesses e com a atribuição de mediar, compor ou arbitrar estes conflitos. E estas relações multipolares, diz Xxxxxxx, não seriam exceção, mas regra. Neste modelo de superação da bipolaridade assumem importância central os instrumentos regulatórios e são cada vez mais presentes ‘contratos complexos, onde em um só negócio formal se acumulam uma pluralidade de objetivos negociais provenientes de mais que duas partes contratantes’.”. Mais adiante, o autor completa, “neste novo paradigma apontado por Xxxxxxx se estabelece uma nova relação entre o público e o privado. De tal sorte que ‘em conclusão, Estado e mercado, público e privado’ que vinham considerados mundos separados e em oposição, se apresentam como entidades interpenetradas”. XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx. A bipolaridade do Direito Administrativo e a sua superação. In: Contratos Públicos e Direito Administrativo. XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx; JURKSAITIS, Xxxxxxxxx Xxxxxx. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 405-406.
79 Nesse sentido alertou Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx: “a tendência é a relativização da distinção entre os contratos administrativos e os contratos privados da Administração, especialmente a partir da releitura das cláusulas exorbitantes e uniformização do regime jurídico, inclusive no Direito Comunitário Europeu.”. XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx. Licitações e contratos administrativos. 4ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017. p. 245.
ao fim e ao cabo, é a Administração como parte de uma relação contratual cuja característica “protetiva” aplicada a seu favor pode variar de intensidade.
O contexto atual não admite que a Administração, em todo e qualquer caso, atue de forma a impor a sua posição, independente dos reflexos (na economia, na sociedade e, até mesmo, no parceiro privado) que esse comportamento possa vir a ter. Notadamente no caso das relações objeto desse estudo — complexas e de longo prazo —, fica mais clara a impossibilidade de se definir, desde logo, que ao longo de todos os anos e de todas as circunstâncias concretas, a Administração adotará posição de supremacia em relação ao particular.
A atuação eficiente da Administração, como se verá no decorrer desse trabalho, vai muito além da possibilidade de rever unilateralmente os seus contratos, aplicar sanções ao particular e rescindi-los quando não mais lhe aprouverem. O administrador burocrata e repetidor de normas jurídicas precisa ser substituído por um gestor da coisa pública80 que irá levar em consideração: riscos, impacto econômico e a incompletude e mutabilidade de muitas das suas relações.
Portanto, quando tradicionalmente a literatura define contrato administrativo como o ajuste celebrado entre a Administração e o particular, submetido a um regime jurídico próprio em razão do interesse público envolvido, entenda-se interesse público de uma outra forma81. Não aquela noção fluída trazida pela matriz clássica do século XIX,
80 Ao tratar das Parcerias Público-Privadas (PPPs), por exemplo, Kleber Xxxx Xxxxxxx assim se pronunciou: “O modelo mental estatizante, calçado no rigor cego da lei e na primazia do interesse público, não tem lugar nas PPPs. Assim, para a disseminação desta figura jurídica, o Estado terá que buscar o equilíbrio entre ser um centro de exercício de poder e um player de mercado. Será ao mesmo tempo regulador e regulado. Investidor e controller do investimento. Parte obrigada ao cumprimento de determinada obrigação e julgador sobre o adequado adimplemento do contrato. E, por fim, aplicador e, simultaneamente, sujeito, tanto de Direito Público quanto do Direito Privado.”. XXXXXXX, Xxxxxx Xxxx. Contratos públicos e direito privado: interpretação, princípios e inadimplemento. São Paulo: Xxxxxxxx, 0000. p. 85.
81 São precisas as lições de Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx e Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx acerca da necessidade de reformulação da teoria contratual pública e dos seus postulados: “Nesse cenário, a formação de uma teoria dita atual dos contratos administrativos nada mais do que a atualização dos pressupostos do instituto, sujeito ao dinamismo do conceito em que se insere. (...) O ponto que se pretende assentar aqui, portanto, é a impossibilidade de aplicação dessas premissas de maneira uniforme à infinidade de arranjos contratuais existentes atualmente e à luz desses vetores de transformação. E, principalmente, a impossibilidade de se aplicar a teoria dos contratos administrativos despregada de finalidade para as quais se prestaria. Como resultado, pode-se chegar a uma conclusão de que é possível preservar o conceito de que os contratos administrativos mantem, em alguns casos, para determinadas finalidades, cláusulas específicas. Contudo, tais cláusulas são sempre vinculadas a uma finalidade determinada e somente podem ser manejadas dentro de certos quadrantes definidos pelo ordenamento jurídico.
XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx; XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx. Levando a sério a remuneração dos contratos públicos de longo prazo. In: Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno: a lógica das concessões e parcerias público privadas. XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx (Coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 497.
segundo a qual seria interesse público tudo aquilo que a Administração assim entendesse, tampouco a “dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da sociedade”82. Mas um interesse público justificável por uma escolha racional da Administração83.
É dizer, não há um interesse público definido indistintamente a priori a fundamentar todos os atos da Administração. Existe uma escolha eficiente, pautada na análise dos custos e benefícios envolvidos, e as suas repercussões84.
82 XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx de. Curso de direito administrativo. 33ª ed. rev. e atual. Até a Emenda Constitucional 92, de 12.07.2016. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 60-61.
83 Essa questão será aprofundada no próximo capítulo dessa dissertação. Adianta-se, que a reformulação do conceito de “interesse público” tem despertado o debate da doutrina e a busca por um critério para a sua utilização. Xxxxxxx Xxxxxxxxx, por exemplo, ao afastar a supremacia do interesse público como uma verdade apriorística de interesse geral, propõe a racionalização dos processos de definição dos interesses prevalecentes por meio da ponderação guiada pelo princípio da proporcionalidade. De acordo com o autor “Note-se bem: não se nega a existência de um conceito de interesse público, como conjunto de interesses gerais que a sociedade comete ao Estado para que ele os satisfaça, através de ação política juridicamente embasada (a dicção do direito) e através de ação jurídica politicamente fundada (a execução administrativa ou judiciária do Direito). O que se está a afirmar é que o interesse público comporta, desde a sua configuração constitucional, uma imbricação entre interesses difusos da coletividade e interesses individuais e particulares, não se podendo estabelecer a prevalência teórica e antecipada de uns sobre os outros. Com efeito, a aferição do interesse prevalecente em um dado confronto de interesses é procedimento que reconduz o administrador público à interpretação do sistema de ponderações estabelecido na Constituição e na lei, e, via de regra, obriga-o a realizar seu próprio juízo ponderativo, guiado pelo dever de proporcionalidade.”. XXXXXXXXX, Xxxxxxx. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2ª ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000. p. 105. Como visto, tal como o autor, defende-se nesse estudo a mesma impossibilidade de se reconhecer uma supremacia, a priori, desse interesse. Contudo, aqui se pretende dar um viés econômico à escolha pública, por meio da análise dos custos de transação e consequências de cada opção estatal, de forma a permitir uma escolha eficiente.
84 Esse ponto merece, desde já, um esclarecimento. A defesa que aqui se propõe não pretende afastar a Administração dos seus propósitos, notadamente àqueles estabelecidos na Constituição que possuem nítido caráter redistributivo. A intenção é dotar o gestor de racionalidade quando da escolha da política pública, mais especificamente quando da tomada de uma decisão contratual. A lógica econômica, portanto, não afasta esse ideal, apenas justifica a escolha pública. Nesse sentido, são precisos os ensinamentos de Xxx Xxxx Xx. ao tratar da adequação entre eficiência e justiça “se os recursos são escassos e as necessidades potencialmente ilimitadas, todo desperdício implica necessidades humanas não atendidas, logo, toda definição de justiça deveria ter como condição necessária, ainda que não suficiente, a eliminação de desperdícios (i. e., eficiência). Não sabemos o que é justo, mas sabemos que a ineficiência é sempre injusta, por isso, não consigo vislumbrar qualquer conflito entre eficiência e justiça, muito pelo contrário, uma é condição da outra.”. XXXX XX., Xxx. Introdução ao Direito e Economia. In: Direito e Economia no Brasil. XXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx (Org.). 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2018. Em certa medida, a utilização que se pretende dar à eficiência nesse trabalho vai além daquela proposta por Xxxxx xx Xxxxxxxxxx Xxxxxxx, segundo o qual: “resulta daí que, no contexto do setor privado, o principio aponta o máximo de eficiência possível, ao passo que no do setor público, por força da ponderação que deva ser feita, o princípio aponta, tout court, a eficiência possível portanto, o modo em que se deve ponderar a eficiência no curso de princípios de direito público e o peso que se lhe deva atribuir em relação aos demais princípios concorrentes é que fazem toda a diferença aplicativa”.
XXXXXXX XXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxxxx. O futuro das cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos. In: Direito administrativo e seus novos paradigmas. In: XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de; XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx (Coord.). Direito Administrativo e seus novos paradigmas. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 561.
E assim, estabelecida a premissa teórica desse trabalho — de que os contratos administrativos não são “naturalmente públicos” —, pretende-se trazer outro enfoque para a questão contratual, especialmente para os ajustes públicos de longo prazo. A começar pela análise da afirmação acrítica de que os contratos administrativos estão sujeitos a um regime jurídico único e geral a que se submete todo e qualquer tipo de ajuste.
1.2. Uma reflexão sobre a unicidade do regime jurídico dos contratos administrativos
A visão corrente acerca dos contratos administrativos, como exposto acima, associa, quase que instintivamente, Administração, interesse público e regime jurídico próprio. A tese geral é a de que esse regime é único e aplicável uniformemente a todo e qualquer ajuste. Propaga-se, assim, a ideia de que há um só regime público com princípios e regras próprios a reger os contratos da Administração.
Essa, aliás, foi a perspectiva adotada pelo ordenamento normativo pátrio, quando, ao definir contrato como “todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada”85, os submeteu ao mesmo regime assimétrico estruturado pela Lei geral de licitações e contratos da Administração Pública (Lei nº 8.666/1993).
E qual seria o problema dessa afirmação? A necessidade de se conformar as mais diversas situações às soluções jurídicas pré-definidas — nem sempre capazes de assegurar a finalidade pública pretendida no caso concreto — tão somente para seguir a regra geral imposta pelo regime jurídico único a que, aparentemente, se submeteriam todos contratos administrativos.
85 Essa é a reprodução do parágrafo único do art. 2º da Lei nº 8.666/1993 que define, de forma bem ampla o que entende por contrato e consequentemente o seu âmbito de aplicação. Essa definição não se afasta daquela já contida no Decreto-lei nº 2.300/1986, diploma que precedeu a Lei de Licitações, a qual já submetia “os contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, compras e alienações” firmados pela Administração à um regime assimétrico e único (art. 1º).
Se esse entendimento algum dia já foi passível de se verificar na prática, hoje, por muitas razões não é viável86. A começar pela descaracterização — explorada no item anterior — de uma suposta natureza pública desses ajustes. Ora, se os contratos firmados pela Administração não possuem a mesma essência, nada impede — na verdade tudo indica — que sejam tratados de forma diversa, segundo suas peculiaridades.
Além disso, a velocidade com que se alteram as condições gerais de contratação e a diversidade das relações a que se submete a Administração Pública87 tornam impossível a submissão a um único regime geral. No preciso entendimento de Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxx, é complexo uniformizar todas as relações contratuais em um único diploma normativo. Cada contrato tem sua lógica econômica, sendo irreal pretender subjugar toda e qualquer relação contratual às regras rígidas e inflexíveis da Lei 8.666/199388.
Os contratos de parceria de longo prazo, foco do presente trabalho, se amoldam com precisão no que foi dito pelo referido autor. A racionalidade desses ajustes é completamente diversa de outros contratos cujo objeto, algumas vezes, parecem deles se aproximar. É o caso, por exemplo, do contrato de empreitada para a execução de uma obra pública em comparação a uma concessão para execução de uma obra ou para a exploração de um serviço público precedido de obra pública89. Embora as finalidades dos
86 Nas palavras de Xxxxxx Xxx Xxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx “A conclusão é que, se algo os juristas e práticos devem pressupor a respeito dos contratos públicos, certamente não é a uniformidade do seu regime quanto a qualquer aspecto. A pesquisa da realidade jurídica mostra justamente o contrário: que os diversos contratos públicos estão, em geral, submetidos a regimes muito heterogêneos.”.
XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx; CÂMARA, Xxxxxxxx Xxxxxx. In: Uma crítica à tendência de uniformizar com princípios o regime jurídico dos contratos públicos. Revista de Direito Público da Economia: RDPE, Belo Horizonte: a. 11, n. 41, p. 57-72, jan./mar. 2013. p. 71.
87 Por exemplo: ao mesmo tempo que firma contratos de compra de material, também ajusta a exploração de uma ferrovia ou a prestação de serviços de estruturação e operação de securitização de créditos inadimplidos.
88 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Licitações e contratos administrativos: casos e polêmicas. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 340.
89 Cabe destacar que há na doutrina quem não reconheça a existência de concessão de obra pública, ou seja, de uma concessão por meio da qual o particular realizará a obra para a utilização dos usuários sem que também lhe seja transferido um serviço público. Nesse sentido, é o entendimento de Xxxxx Xxxxxxx, segundo a qual existem quatro modalidades de concessão, a saber: a de serviço público, a de serviço público precedida de obra pública, a de uso de bem público, a de direito real de uso. Segundo a autora, a concessão de obra pública é sinônimo de concessão de serviço público precedida de obra pública. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 11ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 210-211. Para Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, contudo, “a exploração pode ser da obra propriamente dita como também de serviços públicos com ela relacionados. Isso fica claro na parte final do referido art. 2º, inc. III (“...mediante a exploração do serviço ou da obra...” - original sem destaque). Logo, é perfeitamente possível que haja concessão exclusiva de obra pública, sem prestação de serviço público propriamente dito.”. XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Teoria Geral das concessões de serviços públicos. São Paulo: Dialética, 2008. p. 98. Segundo o autor, a inexistência de previsão de concessão dessa natureza no art. 175 da Constituição Federal não seria suficiente para afastar a hipótese, uma vez
ajustes sejam, em tese, próximas — a execução de uma infraestrutura —, a composição dos contratos difere substancialmente.
A empreitada administrativa, seja por preço unitário ou preço global90, prevista pelo art. 6º da Lei nº 8.666/1993, constitui um contrato por meio do qual o particular se compromete a realizar uma obra ou serviço de engenharia e o Poder Público arca com a sua remuneração. Nessa hipótese, portanto, o contratante não dispende vultosos investimentos iniciais — no máximo suportará o valor dos materiais — e receberá sua contrapartida diretamente do Poder Público. A duração desse ajuste está intimamente relacionada com o seu escopo, é dizer, determina-se o prazo da relação contratual pelo tempo necessário para a realização da obra.
Imagine-se que a Administração Pública tenha contratado, por meio de empreitada, a realização de um túnel. Durante a execução da obra, verifica-se a necessidade de realizar ajustes quantitativos (ou seja, haverá de se modificar o contrato inicialmente firmado com o particular). Na ocorrência desse tipo de alteração, a primeira questão que se coloca é o exame da adequação aos limites estabelecidos pela Lei nº 8.666/1993 às modificações impostas unilateralmente pela Administração91.
que não há necessidade de autorização constitucional para adoção dessas figuras. A própria Lei nº 8.987/1995 teria previsto de forma ampla serviços e obras a fim de contemplar essa modalidade. Também admitem a figura da concessão de obra pública. XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx. Concessões. 1ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 247-255; XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Direito das Concessões de serviço público: inteligência da Lei 8.987/1995: parte geral. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 139-149.
90 Em síntese apertada, a empreitada por preço global é aquela contratada por preço certo e total, enquanto na empreitada por preço unitário o preço é fixado por unidades determinadas, como, por exemplo, metro de área construída. A adoção de cada modalidade depende das especificidades do objeto contrato. A tratar da questão, o Tribunal de contas da União, por meio Acórdão AC-1977-28/13-P, uniformizou o seu no sentido de que “a empreitada por preço global, em regra, em razão de a liquidação de despesas não envolver, necessariamente, a medição unitária dos quantitativos de cada serviço na planilha orçamentária, nos termos do art. 6º, inciso VIII, xxxxxx 'a', da Lei 8.666/93, deve ser adotada quando for possível definir previamente no projeto, com boa margem de precisão, as quantidades dos serviços a serem posteriormente executados na fase contratual; enquanto que a empreitada por preço unitário deve ser preferida nos casos em que os objetos, por sua natureza, possuam uma imprecisão inerente de quantitativos em seus itens orçamentários, como são os casos de reformas de edificação, obras com grandes movimentações de terra e interferências, obras de manutenção rodoviária, dentre outras;”.
Nessa mesma oportunidade, o Tribunal decidiu que, excepcionalmente, a empreitada por preço global admite a realização de termo aditivo, nos termos mencionados no acordão, para restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do ajuste.
91 “Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos: I - unilateralmente pela Administração: (...) b) quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, nos limites permitidos por esta Lei. (...) § 1º O contratado fica obrigado a aceitar, nas mesmas condições contratuais, os acréscimos ou supressões que se fizerem nas obras, serviços ou compras, até 25% (vinte e cinco por cento) do valor inicial atualizado do contrato, e, no caso particular de reforma de edifício ou de equipamento, até o limite de 50% (cinquenta por cento) para os seus acréscimos.”.
O segundo ponto, consequência direta do primeiro, é a verificação da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, a ser respeitado em atenção ao sinalagma original que motivou o acordo de vontades92. Nesses ajustes, o “equilíbrio se verifica na singela equação encargos remuneração”93, ou seja, estará restabelecido quando a variação decorrente da mudança passe a integrar a remuneração a ser paga pela Administração. Não há receitas alternativas que possam ser consideradas para o reequilíbrio, nem mesmo o prazo funciona como instrumento nessa equação. Considera-se apenas a correspondência entre a obrigação de dar do contratado e a de pagar do Poder Público.
Completamente distinta é a racionalidade econômica de uma concessão. No caso de o Poder Público firmar um contrato dessa natureza, eventuais alterações e suas consequências terão de considerar fatores bem diversos daqueles apontados nas linhas acima. A começar pelo inevitável reconhecimento de que esses são contratos de investimentos (de longa maturação), nos quais os particulares fazem considerável aporte financeiro no início da execução contratual e a projeção de retorno envolve mais do que o pagamento pela execução do objeto, incluindo, também, a remuneração pelo capital investido em razão do risco assumido.
Assim, diversamente da realidade do contrato de empreitada, os valores dispendidos na concessão são do contratado (considerando-se também os investidores), o prazo é fator determinante da equação — já que deve ser estabelecido de acordo com a amortização do investimento e da exploração da utilidade para obtenção de lucro — e a remuneração não advém (em regra) do orçamento público, mas de outras fontes, como as tarifas.
Nesta ordem de ideias, admitindo-se que a Administração pretenda promover alterações94 em um contrato de concessão para a construção, manutenção e expansão da malha rodoviária — por exemplo, a ampliação da praça de pedágio ou a criação de novas “alças” para a via — é necessário indagar: aplicam-se os limites da Lei geral de licitações
92 “Art. 65. (...) § 6º Em havendo alteração unilateral do contrato que aumente os encargos do contratado, a Administração deverá restabelecer, por aditamento, o equilíbrio econômico-financeiro inicial.”.
93 MAXXXXX XXXX, Flxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx. Breves considerações sobre o equilíbrio econômico- financeiro nas concessões. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: 227: 105-109, jan./mar. 2002. p. 107.
94 Aliás, considerando que esses contratos são de execução diferida no tempo, perdurando por vinte, trinta e cinco anos, as alterações são características naturais desses ajustes. A mutabilidade, como se verá em momento próprio, é essencial para esse tipo de parceria. Não por outro motivo, torna-se ainda mais relevante o estudo do arcabouço jurídico ligado à essas alterações, bem como o impacto ao equilíbrio- econômico financeiro que possam vir a ter.
e contratos a esses ajustes? É dizer, a lógica jurídico aplicável a um contrato de desembolso se aplica necessariamente ao contrato de investimento?
A diploma normativo geral das concessões não confere uma resposta definitiva sobre a questão. Com efeito, o art. 9º da Lei nº 8.987/1995 determina que, “em havendo alteração unilateral do contrato que afete o seu inicial equilíbrio econômico-financeiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração”. A Lei nº 8.666/1993, por sua vez, afirma a sua própria aplicação na ausência de conflito com as normas da lei de concessões95. Seria aplicável, então, em nome de um suposto regime único, a sistemática geral das alterações unilaterais à concessão?
A lógica desses ajustes aponta para uma resposta negativa. A começar pelo prazo diferido das concessões. No decorrer da sua execução — vinte, trinta, quarenta anos — é natural (até mesmo esperado) o advento de circunstâncias que irão demandar a sua modificação. Assim, torna-se inviável a aplicação de limites percentuais rígidos a essas alterações, sob pena de engessar as relações, tornando-as obsoletas e inexequíveis.
Mas não é só isso. Outro fator determinante para afastar a aplicabilidade desses limites gerais decorre da sua própria racionalidade dinâmica. Esses ajustes são complexos e envolvem fluxo de despesas e receitas variáveis ao longo do tempo. Os investimentos não correspondem imediatamente à remuneração. Como já antecipado, o concessionário faz aportes vultosos em um primeiro momento, projetando a amortização no decorrer da exploração de acordo com uma previsão demanda. A receita, que é estimada e advém dos utentes, integra o próprio risco do contratado.
Assim, como não se aplica a lógica binária de execução de uma atividade por uma das partes e a remuneração correspondente pela outra, a aplicação do art. 65 da Lei nº 8.666/1993 esbarraria na própria definição de qual seria o “valor inicial atualizado” das concessões. É o que explica com clxxxxx, Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto96:
O contrato de concessão não gera, em regra, dispêndios - pagamentos - para o Poder Público. Por vezes importa na aferição de receitas. O preço previsto no contrato nada mais é que uma projeção de variação presumível e plausível. Os riscos do negócio são assumidos, nas lindes previstas no contrato, pelo concessionário. Posto isso, temos que reconhecer que, à diferença do que ocorre com os contratos normais de empreitada, não se põe lídimo estabelecer limites em função do valor aposto na contratação. Sendo assim, firmo minha
95 “Art. 124. Aplicam-se às licitações e aos contratos para permissão ou concessão de serviços públicos os dispositivos desta Lei que não conflitem com a legislação específica sobre o assunto”.
96 MAXXXXX XXXX, Flxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx. Alteração em contrato de concessão rodoviária. In:
Revista Tributária e de Finanças Públicas. v. 44/2002. p. 203-220. maio/Jun. 2002. p. 211.
convicção no sentido de que para os contratos de concessão não são aplicáveis os limites de alteração previstos no art. 65, § 1.º, da Lei 8.666/93, pois que na espécie: i) não calha falar de acréscimo de serviços; ii) é impróprio estatuir como referência o ‘valor inicial atualizado do contrato’, pois na concessão tal valor nada mais é do que uma projeção do que poderá vir a ser auferido pela concessionária ao longo do prazo de concessão; e por fim iii) a margem de variação intrínseca ao regime de remuneração do concessionário - tarifas cobradas diretamente dos usuários - impede a adoção do valor contratual como referência para o que quer que seja.
Se é certo que os regimes se afastam com relação à aplicação de limitações percentuais ao ajuste97-98, o mesmo pode ser dito com relação à equação do equilíbrio econômico-financeiro. O equilíbrio da empreitada irá se materializar pela ideia da balança, isto é, aquilo que um produz, deve ser remunerado pelo outro. Já o equilíbrio das concessões envolve variáveis muito mais amplas, como, por exemplo, projeções acerca da Taxa interna de Retorno (TIR), Custo Médio Ponderado de Capital (CMPC) ou Valor Presente Líquido (VPL), valor da tarifa e prazo da exploração99.
97 Veja-se que a não imposição de um limite percentual não implica a inexistência de qualquer exigência quando da alteração dos contratos de concessão. Como bem explicita Luxx Xxxxxxx Xxxxxxx, “no âmbito dos contratos de concessão, é possível afirmar que às alterações qualitativas e às qualitativas com repercussões quantitativas, aplicam-se todas as exigências acima – preservação do equilíbrio econômico-financeiro, motivação e demonstração de inexigibilidade de licitação autônoma da alteração.”. BAXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. Alteração dos contratos de concessão rodoviárias. Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Belo Horizonte: v. 4, nº 15, p. 99-129, jul./set. 2006. p. 121. Discorda-se do autor, contudo, quando defende que os limites estabelecidos pelo art. 65 da Lei 8.666/1993 deveriam funcionar como uma diretriz geral, ainda que possam ser superados. Os argumentos já expostos acima caminham para absoluta inaplicabilidade desses limites, ainda que como indicadores gerais, às concessões.
98 Interessante notar que os estritos limites da Lei nº 8.666/1993 foram afastados dos contratos qualificados como parcerias pela Lei nº 13.334/2016. Trata-se de previsão expressa do art. 22, da Lei 13.448/2017, a qual complementou a lei anterior. Segundo o dispositivo: “As alterações dos contratos de parceria decorrentes da modernização, da adequação, do aprimoramento ou da ampliação dos serviços não estão condicionadas aos limites fixados nos §§ 1º e 2º do art. 65 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993”. Sobre o tema, ver item 1.2.1 desse trabalho.
99 Demonstrando com precisão essa distinção, assim se manifestou Egxx Xxxxxxxx Xxxxxxx: “Também é preciso insistir em que os projetos concessionários envolvem investimentos de longa maturação: não há contrapartida imediata ao significativo aporte de capitais por parte do empreendedor, mas sim a projeção equilibrada referente às receitas, despesas e lucros. Uma coisa é o singelo contrato de empreitada, com dois anos de duração, preço e equilíbrio econômico-financeiro fechados (cuja (re)composição circunscreve-se às tradicionais áleas ordinária e extraordinária). Outra realidade, completamente diferente e muitíssimo mais complexa existe num contrato de concessão com vultoso aporte de recursos e projeções estatísticas para mais de duas décadas, no qual o concessionário competirá em mercados locais, nacionais, comunitários e até mesmo globais. Mais ainda, é certo que que o longo prazo do projeto o fará experimentar reveses positivos e negativos oriundos das próprias necessidades econômicas do setor (e daqueles a eles circundantes)”. MOXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx.
Direito das Concessões de serviço público: inteligência da Lei 8.987/1995: parte geral. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 40-41. O mesmo autor, em outra oportunidade, completou “nesses tipos contratuais [de longo prazo], a figura da balança é inadequada, pois existe um negócio firmado entre concedente e concessionário que se destina à eficiência de outros contratos, fragmentados e espalhados no tempo, celebrados com todos e com cada um dos usuários (isso sem falar nos contratos de empréstimos financeiros, de empreitada de obra, de pessoal, de tecnologia de informação, etc.). Não estamos analisando uma relação jurídica bilateral desenvolvida no tempo presente, mas sim estamos diante de
Merece destaque, ainda, o fato de que estes são contratos que vivenciam um constante paradoxo. De um lado, requerem a segurança jurídica refletida na estabilidade das suas disposições para permitir uma execução diferida no tempo. De outro, convivem com a realidade de que para sobreviver por todos esses anos, precisarão sofrer mutações. As premissas econômicas, financeiras e sociais desses ajustes não se mantem estáticas ao longo do tempo100.
Portanto, não se afigura possível fornecer uma única resposta geral para situações substancialmente diversas e que reclamam ponderações jurídicas também diferenciadas. Aliás, nem mesmo as concessões deveriam se submeter a um único regime jurídico101. O exemplo utilizado para demonstrar a distinção entre concessão e empreitada, também pode ser usado para ilustrar a existência da concessão enquanto gênero que comporta diferentes espécies e, consequentemente, regimes distintos.
De fato, quando a Administração realiza parceria com o particular, por meio de concessão, para a recuperação, melhoria, manutenção e expansão da malha rodoviária, realiza negócio jurídico bilateral e convencional para a exploração de uma utilidade pública. Trata-se, assim, de uma concessão entendida como gênero. A depender da interpretação que se faz do negócio, contudo, é possível que se conclua pela existência de uma concessão de serviço público (exploração da atividade em si pelo particular) ou uma concessão de bem público (exploração de um ativo de titularidade do Poder Público pelo particular)102.
um negócio bilateral (Administração-particular), que dá origem a um universo de relações multipolares, presentes e futuras. Assim, se balança houver, ela tem muitos pratos, de diferentes tamanhos e perspectivas, muitos deles presentes e outros tantos futuros. MOXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Equilíbrio econômico-financeiro em contratos administrativos de longo prazo. In: Revista Zênite – informativo de licitações e contratos (ILC). Curitiba: Zênite, n. 240, p. 109-117, fev. 2014. p. 115.
100 A questão da mutabilidade dos contratos de longo prazo e a sua incompletude serão exploradas de forma mais detida no item 2.3 da presente dissertação.
101 Essa é a conclusão a que chegou o autor português, Pexxx Xxxxxxxxx, o qual, diante da existência de concessões com objetos diversos defendeu que “do ponto de vista jurídico-normativo, não existe, afinal, um conceito unitário de concessão; isto é, não pode conceber-se ‘um’ regime jurídico da concessão da concessão administrativa, já que há diferenças essenciais entre as concessões de utilização privativa de bens, e as concessões de atividades públicas, não sendo de menor monta as diferenças entre as concessões constitutivas de atividades públicas e as concessões translativas com o mesmo objeto.”. O autor, contudo, entende que “o facto de não poder conceber-se um regime jurídico único, igual para todas as espécies de concessões administrativas não exclui que haja um regime comum para a todas elas.”. GOXXXXXXX, Xxxxx. A concessão de serviços públicos. Coimbra: Xxxxxxxx, 0000. p. 60-61.
102 Para Flxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx, o que deve ser observado pelo intérprete é a natureza da atividade pública cuja exploração é concedida ao particular. “Se a comodidade fruível pela coletividade (o objeto da concessão) é uma atividade humana, definida em lei como de relevância tal que o Poder Público assume o ônus de garantir sua disponibilidade contínua e universal à coletividade, temos a concessão de um serviço público. Se, doutro modo, cuida-se a comodidade de um bem público (ou seja, se é o bem de domínio do Poder Público disponibilizado que dá margem econômica à
A discussão acerca das razões para se enquadrar a parceria nessa ou naquela modalidade de concessão fugiriam ao escopo do presente trabalho103. Todavia, merece destaque a consequência dessa escolha: o regime jurídico aplicável.
Se considerada como concessão de serviço público, essas relações estão sujeitas à responsabilidade objetiva do concessionário (art. 37, §6º, da Constituição Federal), à normativa de proteção e defesa dos direitos dos usuários (Lei nº 13.460/2017), à modicidade tarifária, à adequação do serviço prestado, ou seja, basicamente a todo um regramento específico referente ao serviço público. Entendida como concessão de bem público, por sua vez, a relação ganha novos contornos, mais apropriados a um vínculo envolvendo a exploração econômica de um bem. O preço, por exemplo, será cobrado em razão da utilidade realizada e não pelo serviço público prestado e a proteção do utente será diversa daquela conferida ao usuário do serviço público.
É preciso reconhecer, portanto, que a existência de diferenças substanciais entre as parcerias reclama a ponderação quando da aplicação de determinado regime jurídico, sob pena de ser inócua essa aplicação, ou pior, indevida.
Note-se que nem mesmo a edição de diplomas legais especiais — como a Lei nº 8.987/1995, que regula as concessões de serviço público104 — foi capaz de trazer modificações significativas na relação de dependência que se mantém com um suposto
exploração concedida), é de concessão de bem público que se trata.”. Nesses termos, o autor considera que a concessão da exploração da malha rodoviária se configuraria concessão de bem público.
MAXXXXX XXXX, Flxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx. Cobrança pelo acesso a rodovias para exploração de atividade Econômica. Revista Tributária e de Finanças Públicas. v. 43/2002. p. 137-170. mar./abr. 2002. p. 140. Para Egxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, todavia, a concessão rodoviária pé exemplo de concessão de serviço público precedido de obra pública. Segundo o autor “Por fim, na concessão de serviço público precedida da execução de obra pública, o que se tem é a necessidade de o concessionário implementar uma obra (construção, reforma etc.) que sirva de base física à gestão do serviço público a ser por ele executado (sozinho ou em concorrência com terceiros).(...) Por exemplo, a construção de terminal ferroviário e sua futura gestão; a instalação de rede de água tratada com sistemas de fornecimento e georreferenciamento, sucedida pela respectiva exploração econômica; a construção de um aeroporto e sua operação; a construção e/ou recuperação de uma rodovia conjugada com a gestão de serviços de manutenção viária, engenharia de tráfego, sistemas de controle e inspeção, balanças de pesagem, guinchamento, resgate paramédico e atendimento pré-hospitalar”. Ainda de acordo com autor, não se trata de uma concessão de bem público, uma vez que não entende factível a concessão do “bem” rodovia apartada das atividades que configuram serviço público. MOXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. A concessão de serviços públicos e os direitos reais administrativos. In: Doutrinas Essenciais de Direito Administrativo. v. 5. p. 285-301. nov. 2012. p. 287.
103 Para uma análise pormenorizada de cada posição, que inclui a defesa de uma terceira modalidade a “concessão de obra pública”, ver: FRXXXXX, Raxxxx Xxxxx. Concessão de Rodovias. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
104 Em razão da dificuldade política de se promover uma profunda alteração na Lei nº 8.666/1993, o Governo tem optado pela criação de diplomas legais próprios. Outros exemplos de regimes especiais, os quais, contudo, não se prestaram a endereçar o modo de superar o problema da unicidade, são: a Lei nº 11.079/2005, a qual disciplina as Parcerias Público-Privadas e a Lei nº 9.637/1998, que disciplina o contrato de gestão com organizações sociais.
regime jurídico único. A uma, porque esses diplomas (tanto quanto à Lei geral de licitações e contratos) tendem a reunir ajustes com objetos diversos sob a mesma disciplina jurídica, o que lhes torna passíveis da mesma crítica unificadora105. A duas, pelo fato de remeterem as relações contratuais que regulam, de uma forma ou de outra, à disciplina da Lei nº 8.666/1993, seja para o suprimento de eventuais lacunas, seja como instrumento de interpretação das suas próprias disposições.
É preciso que fique claro, contudo, que a aplicação do regime tem a ver com a racionalidade do ajuste. Há, sim, um regime geral estabelecido pela Lei nº 8.666/1993 para as contratações públicas — que, aliás, reconhece a edição de regimes especiais. Contudo, o arcabouço jurídico estabelecido pela referida lei é mais voltado para uma visão imperativa e de atuação unilateral administrativa, que tem a ver com a lógica dos ajustes que regula. Diversa é a racionalidade, por exemplo, das parcerias complexas e de longo prazo. A elas, por sua vez, o regime geral só será aplicado pontualmente e se houver compatibilidade lógica, do contrário, ainda que haja lacuna do regime especial, não será utilizado106.
Deve existir, assim, uma convivência harmônica entre os regimes, de modo que o geral não se aplique indistintamente e o especial não reste subjugado ao geral. A crítica feita por Raxxxx Xxxxx xe Freitas à interpretação diversa é contundente107:
Esse vezo doutrinário e legislativo, para o que aqui importa, tem por consequência prática ser contrário às inovações carreadas pela lógica dos contratos de concessão. É dizer, boa parte da malversada interpretação destes ajustes pressupõe a existência de um embate entre a Lei nº 8.666/1993 (que traria esse regime jurídico único) e a lei nº 8.987/1995. Aquela seria ‘boa’; esta, ‘má’. Trata-se de um conflito imaginário; inexistente. E isso pelo simples fato de que tais diplomas cuidam de modelos contratuais absolutamente diferentes, razão pela qual devem conviver de forma paralela e pontualmente subsidiária, sem que um subverta a lógica do outro. Isto porque, o grande perigo de se mesclar o regime da Lei 8.666/93 e aquele do contrato de concessão é, pois, exagerar na dose e acabar esvaziando a concessão,
105 É o que ocorre ao se tentar interpretar toda e qualquer concessão sob a perspectiva da Lei nº 8.987/1995, fato já abordado e refutado linhas acima. São incompatíveis sob a mesma perspectiva uma concessão envolvendo serviço público e outra a delegação de uma atividade econômica. As premissas são distintas.
106 Importante destacar que existem duas possíveis acepções para o que se entende como regime geral ou especial. é possível eu a lei seja subjetivamente/verticalmente geral, isto é, aplicável a todos os entes da federação, mas seja especial com relação àquilo que regula. A lei nº 8.987/1995, por exemplo, é subjetivamente geral, mas especial em termos do seu âmbito de regulação. O PPI, como se verá adiante, é especial tanto subjetivamente — aplica-se apenas à União — como na sua aplicação.
107 FRXXXXX, Xxxxxx Xxxxx xe. A subconcessão de serviço público. Revista Brasileira se Infraestrutura - RBINF. Belo Horizonte: a. 5, n. 10, p. 75-101, jul./dez. 2016. p. 79.
transmutando-a numa prestação de serviços que, se assim o for, deveria acompanhar in totum o modelo tradicional.
A necessidade de conformação de toda e qualquer situação a um mesmo regime geral parece ser a verdadeira sina do Direito Administrativo brasileiro108. Fala-se em “interpretação sistemática”, em “conciliação” entre as normas jurídicas existentes, tudo a justificar a aplicação das mesmas regras, ou pelo menos a sua exegese, para relações completamente distintas109.
E, se mesmo após tantos exemplos, ainda persista dúvida acerca da necessidade de superação da premissa anacrônica do regime jurídico único dos contratos públicos, o desenvolvimento do Estado Regulador funciona como mais um argumento desafiador dessa premissa. De fato, se adotado o conceito de regulação como função estatal voltada à intervenção no domínio econômico para garantia do equilíbrio do sistema regulado com
108 Na verdade, essa parece ser a sina do Direito Administrativo que tem bases no Direito francês. Essa crítica também foi feita por Edxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx x Toxxx Xxxxx Xxxxxxxxx, ao tratar do Direito espanhol e a herança da doutrina do serviço público francês. Segundo os autores: “Hablar de un régimen jurídico específico de los contratos administrativos sólo es posible, em sede doctrinal, sobre la base de una serie de generalizaciones sucesivas. Un régimen jurídico unitario para todos los contratos administrativos no ha existido nunca, ni existe tampoco xx xx xxxxxxxxxx. (…) Xxxx supuesto, resulta obvia la imposibilidad de definir um régimen jurídico unitario para todos los contratos administrativos, así como la necesidad de admitir la existencia de tantos regímenes singulares como contratos celebra la Administración en el ámbito de su giro o tráfico específico.”. GAXXXX XX XXXXXXXX, Xxxxxxx; FEXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Curso de Derecho Administrativo. I. 12ª ed. Madrid: Civitas Ediciones, S.L., 2005. p. 708-709.
109 Exemplo claro sobre a constante necessidade de “conciliação” entre os regimes especiais e o regime geral estabelecido pela Lei nº 8.666/1993 pode ser verificado no Acórdão nº 604/2018 do Plenário do Tribunal de Contas da União. Nessa oportunidade, estava em discussão a extensão do art. 32, da Lei nº 9.074/1995, segundo o qual admite que as empresas estatais celebrem pré-contratos com terceiros com dispensa de licitação quando forem participar de algum certame. A medida visa, portanto, assegurar flexibilidade às estatais para que estas possam concorrer em igualdades de condições com os particulares quando estiverem participando de um procedimento licitatório. A despeito da ratio do dispositivo, ou seja, de estabelecer uma regra licitatória diversa daquela existente no regime geral, a fim de assegurar a essas empresas condições de concorrência com as empresas privadas, o TCU, no referido acórdão, entendeu que “as dispensas de licitação regidas pelo art. 32 da Lei 9.074/1995 devem observar as disposições da Lei 8.666/1993”. Assim, rejeitando a própria razão de ser do dispositivo, o órgão de controle aplicou o regime geral para uma situação peculiar.
vistas à satisfação de finalidade pública110, o seu exercício, muitas vezes, não será compatível com o regime hermético e verticalizado previsto pela Lei nº 8.666/1993111.
É preciso reconhecer que, se a regulação vai atuar de modo a endereçar falhas, propor soluções neutras e objetivas, sistemicamente preocupadas e voltadas ao resultado eficiente112, seria incoerente não admitir que se está diante de um regime jurídico diverso. A intervenção de uma Agência Reguladora em um contrato complexo como o de concessão, não pode estar limitada aos mesmos moldes que os contratos administrativos clássicos de obras, serviços ou compras.
A perspectiva adotada por esses agentes independentes precisará ser outra. A função ora exercida não se desenvolve com base na certeza da supremacia de uma das partes, nem na verdade absoluta de um regime assimétrico. As soluções nesse campo dependem de modelos flexíveis que reconheçam a análise de resultados, ponderação entre custo e benefícios e consensualidade.
Tome-se como hipótese um pedido de alienação do controle societário de uma concessionária, ou mesmo o pedido de dilação de prazo como forma de repactuação do ajuste. Interpretá-los sob a perspectiva da Lei nº 8.666/1993 — ou seja, considerar
110 A palavra regulação possui diversas acepções, não apenas sob o ponto de vista etimológico, mas também quando se está diante da sua delimitação no âmbito jurídico. Enfrentando essa questão, Vixxx Xxxxxxx xraçou três concepções para a regulação “(a) em sentido amplo, é toda forma de intervenção do Estado na economia, independentemente dos seus instrumentos e fins; (b) num sentido menos abrangente, é a intervenção estadual na economia por outras formas que não a participação, por outras formas que não a participação directa na atividade económica, equivalendo, portanto, ao condicionamento, coordenação e disciplina da atividade económica privada; (c) num sentido restrito, é somente o condicionamento normativo da atividade económica privada (por via de lei ou outro instrumento normativo).” Para o autor, a segunda acepção é a mais utilizada, sendo que o essencial nesse conceito é entender que regulação visa alterar o comportamento dos agentes econômicos em relação ao que eles teriam se não houvesse regulação, isto é, se estivessem submetidos apenas ao mercado. MOXXXXX, Xxxxx. Auto-regulação profissional e administração pública. Coimbra: Xxxxxxxx, 0000. p. 35-36. Nessa ordem de ideias, aqui adota-se o conceito de regulação desenvolvido por Sérgio Guerra, segundo o qual “estamos diante de uma nova categoria das escolhas administrativas: a escolha regulatória. Na regulação de atividades econômicas pelo Estado, a estrutura estatal necessária para equilibrar subsistemas regulados, ajustando as falhas do mercado, ponderando-se diversos interesses ambivalentes, tudo com vistas à dignidade da pessoa humana, não se enquadra no modelo positivista clássico e moderno, haja vista sua patente singularidade”. GUERRA, Sérgio. Regulação Estatal sob a ótica da organização administrativa brasileira. In: GUERRA, Sérgio (Org.). Regulação no Brasil: uma visão multidisciplinar. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. p. 377.
111 Aqui entendida tanto como norma aplicada imediatamente aos contratos por ela regulados, como norma interpretativa aplicável subsidiariamente aos demais regimes legais, conforme alertado linhas acima.
112 Na clara lição de Juarez Freitas “A hipótese básica é a de que apenas uma regulação de Estado (não propriamente governativa), com a maior cientificidade disponível, revela-se inteligente e apta a realizar (antes e depois da decisão) adequada avaliação de impactos, de maneira a disciplinar, com eficiência e eficácia, os setores envolvidos, obtendo benefícios líquidos (sociais, ambientais e econômicos) aferíveis em horizonte temporal prolongado. FREITAS, Juarez. Direito da Regulação: avaliação de impactos de longo prazo. In: Interesse Público. v. 89, p. 279-287, 2015.
absoluto o caráter intuitu personae dos contratos administrativos, o que poderia resultar na rescisão unilateral pelo Poder Público do ajuste (art. 78, VI e XI c/c art. 79, I); e não reconhecer a prorrogação reequilíbrio por ausência de previsão legal (art. 57) —, resultaria no esvaziamento da função regulatória, caso a manutenção do equilíbrio sistêmico dependesse da preservação da concessão113.
Há, ainda, os autores que reconhecem o exercício da regulação por meio das próprias disposições do contrato público. Ao definir a estrutura tarifária, metas de qualidade, indicadores de desempenho, compromissos de investimento, a Administração estaria, ao fim e ao cabo, regulando por contrato. Nesses casos, a adoção de um único regime jurídico torna-se ainda mais complexo. Cada relação, sob essa perspectiva, passa a ter uma realidade e uma função diversa da outra, interpretá-las da mesma forma, em todas as situações, seria ilógico.
Ao tratar do tema da regulação por contrato, Flávio Amaral Garcia defende, inclusive, a necessidade de que esses ajustes sejam precedidos de marcos regulatórios próprios, “para a fixação de padrões e critérios que, sem retirar o espaço de conformação discricionária da estratégia contratual, confiram coerência sistêmica a cada setor.”114. Nessa ordem de ideias, seriam necessários quantos marcos regulatórios fossem a racionalidade das situações reguladas.
Sob qualquer ângulo que se analise a questão, portanto, a unicidade de regime é contrária à noção atual dos contratos públicos, e mais do que isso, contrária à própria mutação que vem sofrendo o Direito Administrativo. Interpretar todos os contratos com base em um regime legal padronizado não fornece soluções — pelo menos não à custa de
113 Fala-se em esvaziamento da função regulatória, uma vez que a busca do equilíbrio sistêmico é elemento da sua própria definição, como aponta Floriano de Azevedo Marques: “a função regulatória como sendo a modalidade de intervenção estatal indireta no domínio econômico ou social destinada à busca do equilíbrio de interesses internos ao sistema regulado e à satisfação de finalidades públicas, condicionada aos limites e parâmetros determinados pelo ordenamento jurídico”. KLEIN, Aline Lícia; MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Funções administrativas do Estado. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Coord.). Tratado de Direito Administrativo. v. 4, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 512.
114 GARCIA, Flávio Amaral. A mutabilidade e a incompletude na regulação por contrato e a função integrativa das Agências. Revista de Contratos Públicos – RCP. Belo Horizonte: a. 3, n. 5. p. 59-83, mar./ago. 2014. p. 63. Nesse ponto cabe destacar que o autor defende a existência de marcos regulatórios para impedir que objetos similares ao serem regulados gozem de tratamento diferente. De todo modo, mesmo sob essa perspectiva, o que se percebe é a defesa do autor de um marco regulatório distinto para cada objeto semelhante e não um único marco para toda e qualquer relação da administração. Sobre o tema dos contratos regulatórios ver: GONÇALVES, Pedro António P. Regulação Administrativa e contrato. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia. MIRANDA, Jorge (Coord.). Coimbra: Coimbra Editora, v. II, 987-1023. p. 998, 2010.
uma conformação jurídica forçada — para a miríade de hipóteses que surgem no curso da relação contratual115.
Cabe repisar, todavia, que o problema, obviamente, não está na existência de uma lei geral, nem nessa ou naquela lei específica, a questão está em enxergar todas as relações contratuais da Administração sob a mesma lente jurídica: da autoridade administrativa, das prerrogativas públicas e da supremacia de uma das partes. Como pontuou Egon Bockmann Moreira “o Direito Administrativo precisa efetivamente se libertar de fórmulas abstratas construídas no século XIX e início do século XX, próprias para as exigências e racionalidade daquela época”, pois são impróprias para os desafios do presente, como se a compreensão do Direito do futuro fosse determinada, em termos absolutos pelo que se pensou há mais de 100 anos116.
Diante dessa constatação o que se pretende não é, como dito no início deste capítulo, o abandono das previsões legais que tratem dos contratos públicos. Elas são necessárias e trazem segurança tanto para o gestor, como para o contratado. Nem mesmo se pretende afastar de forma completa as prerrogativas da Administração, já que estas, utilizadas com base em parâmetros objetivos, podem ser a resposta para a garantia do interesse geral a ser atendido pelo contrato. A proposta que se faz no presente trabalho, envolve reconhecer que situações diversas — e adversas, como a crise econômica — demandam regimes distintos que não sejam suplantados pelo regime geral.
No caso específico dos contratos de longo prazo, por exemplo, não há espaço para a elaboração de contratos inflexíveis e repetidores das regras legais. Toda essa indefinição quando da sua interpretação se transformam em custos. Forçoso que se desenvolvam regimes capazes de delinear procedimentos que dotem o próprio contrato da flexibilidade necessária para se adaptar às vicissitudes que venham a surgir no curso da sua execução
115 Sobre essa questão, indispensável a colocação de Rafael Véras: “tal entendimento (a “caixinha”) não se mostra mais adequado para dar conta da realidade subjacente às contratações públicas, seja porque nem todos os contratos administrativos veiculam a prestação de serviços públicos (o que impede a transposição da concepção Francesa tout court), seja porque relações verticalizadas entre o Estado e os administrados não se coadunam com Estados Democráticos de Direitos, seja, ainda, porque o poder público, no exercício das suas mais complexas funções, se vale de diversos módulos contratuais (o que desafia a concepção de um regime jurídico único).” . FREITAS. Rafael Veras de. O que a Análise Econômica do Direito tem a ver com os contratos administrativos? Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/Rafael-Veras/o-que-a-analise-economica-do-direito-tem- a-ver-com-os-contratos-administrativos. Acesso em: 11 ago. 2017.
116 MOREIRA, Egon Bockmann. O contrato administrativo como instrumento de governo. In: Direito Administrativo: transformações e tendências. MARRARA, Thiago (Org.). São Paulo: Almedina, 2014. p. 515.
e que não se subjuguem, em todas as hipóteses, ao regime geral. Esses regimes, como vistos, precisam conviver paralelamente, e apenas, pontualmente, se tocar.
Sob essa perspectiva, indaga-se: as Leis Federais nº 13.334/2016 e nº 13.448/2017 podem ser consideradas um passo na direção da superação do regime jurídico único?
1.2.1. Leis nº 13.334/2016 e nº 13.448/2017: um novo regime jurídico?
Em 12 de maio de 2016, o primeiro ato do então Presidente da República interino, Michel Temer, foi a edição da Medida Provisória nº 727, criando, no âmbito do setor de infraestrutura, o Programa de Parceria de Investimentos – PPI. O objetivo da medida, posteriormente convertida na Lei nº 13.334/2016, sempre foi claro: atrair investimentos do setor privado, por meio do estreitamento das relações com o governo, como instrumento de superação da crise econômica que assola o país. Para tanto, foram estabelecidas como diretrizes primordiais a previsibilidade, a estabilidade e a segurança jurídica dos ajustes submetidos ao novo regramento.
O referido ato foi posteriormente acompanhado pela edição da Medida Provisória nº 752/2016, por meio da qual foram previstas formas de saneamento e requalificação das relações por ela regulamentadas, com a intenção de traduzir em postulados práticos os objetivos e premissas delineadas pela norma anterior. Assim, a medida, convertida na Lei Federal nº 13.448/2017, passou a tratar da prorrogação (antecipada e contratual) e da relicitação desses ajustes.
Importante notar que, diversamente do que já havia sido feito anteriormente — quando editadas, por exemplo, as leis especiais de Concessões (Lei nº 8.987/1995) e de Parceria Público-Privadas (Lei nº 11.079/2004) —, os atos normativos atuais não estabeleceram nova modalidade contratual para a Administração117. Na verdade,
117 No mesmo sentido se manifestou Rafael Wallbach Schwind ao tratar especificamente do PPI: “A MP 727 não estabeleceu uma nova sistemática de parceria entre o Estado e a iniciativa privada. Não foi criada nenhuma modalidade contratual inovadora de parcerias público-privadas, nem era este o objetivo da MP. Na realidade, a MP 727 estabeleceu um programa (muito relevante, diga-se desde logo) de incentivo e fortalecimento das parcerias entre o Estado e a iniciativa privada.”. SCHWIND, Rafael Wallbach. O Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) e suas implicações no setor portuário. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, nº 111, maio de 2016, Disponível em: http://www.justen.com.br/informativo. Acesso em: 11 abr. 2018.
desenharam um arcabouço jurídico diferenciado para os contratos qualificados como “parcerias”.
A inovação normativa, portanto, se dirige à ajustes de infraestrutura complexos e estratégicos – típicos ou atípicos, vigentes ou ainda em fase de formulação – que possuam estrutura similar em razão da especificidade, volume de investimentos, longo prazo, riscos e incertezas envolvidos. A preocupação não foi com a caracterização do contrato em si, mas com a construção de um arranjo de diretrizes a serem a eles aplicadas.
Daí a se afirmar categoricamente que foi elaborado um novo regime jurídico para essas parcerias de infraestrutura de longo prazo, exige que as premissas delineadas acima sejam verificadas. É dizer, faz-se necessário analisar se os atos normativos em questão desenham um arcabouço jurídico próprio para situações semelhantes e se trazem regras gerais que sirvam de norte para interpretação e aplicação das suas disposições (afastando esses ajustes do regime em vigor).
Para Rafael Véras de Freitas, por exemplo, a definição de um novo regime é evidente. A Lei nº 13.334/2016, mais do que estabelecer normas programáticas, orienta a elaboração de modelagens contratuais adequadas aos ajustes de longo prazo, enquanto a Lei nº 13.448/2017 efetiva as diretrizes traçadas pelo Programa de Parceria de Investimentos, assegurando estabilidade e segurança jurídica. Assim, segundo o autor118:
O novel diploma [Lei nº 13.334/2016] institui um novo regime jurídico para os contratos de longo prazo. Tem por desiderato aprimorar aspectos regulatórios exógenos (atinentes ao ambiente institucional) e endógenos (atrelados às modelagens de pactos concessórios) dos projetos de infraestrutura. Tudo com vistas a atrair investimentos privados para tais projetos público-privados. (...) A ratio dos contratos de parceria é disciplinar um modelo econômico de um negócio público-privado, o qual é substancialmente distinto dos contratos disciplinados pela Lei nº 8.666/1993.
Sob a perspectiva adotada nesta dissertação, pode-se dizer que, de fato, os novos diplomas representam movimento importante na construção de um regime jurídico próprio para disciplinar relações distintas dos contratos regidos pelo regime geral.
O regramento atual traz um arcabouço diverso para ajustes com características semelhantes. Conquanto seja bastante ampla a definição das “parcerias” submetidas aos referidos atos normativos — podendo abarcar contratos que se destinem à prestação de
118 FREITAS, Rafael Veras. Concessão de Rodovias. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 169-172.
um serviço público ou que tenham por escopo um bem público —, elas estão unidas por uma estrutura própria: a complexidade, o longo prazo e o caráter estratégico.
Assim, mesmo tendo submetido ao seu palio ajustes com objetos tão diversos, as leis reuniram contratos cujas características, notadamente o prazo diferido, justificam a adoção de um arranjo jurídico próprio. O que fizeram, portanto, foi considerar a racionalidade econômica diversa dessas relações para afastá-las dos contratos circunstanciais e, consequentemente do regime imposto pela Lei nº 8.666/1993.
De fato, as leis nº 13.334/2016 e nº 13.448/2017 exigem que contratos qualificados como de parceria sejam interpretados sob a lógica da eficiência, da estabilidade e da segurança jurídica. Para tanto, trouxeram regras gerais que funcionam como norte para a interpretação dessa realidade peculiar. E os exemplos legais são marcantes.
É o caso da disposição contida no inciso II, do art. 2º da Lei nº 13.334/2016, a qual define como objetivo do PPI a garantia de expansão com qualidade da infraestrutura, com tarifas adequadas. Não houve espaço para a previsão de tarifas módicas, como determina a lei 8.987/1995119. E a razão é clara: a lógica dos contratos de investimento, já apontada anteriormente, exige uma receita que seja apropriada aos aportes feitos quando da consecução da infraestrutura.
Os artigos 11 a 16 da mesma lei, bem como o seu artigo 17, também denotam o esforço pelo estabelecimento de um regramento diverso para essas parcerias. Enquanto os primeiros dispositivos deram ênfase para a estruturação desses contratos — admitindo a contratação de terceiros com expertise para a sua elaboração e criando um Fundo capaz de viabilizar a prestação apoio técnico para essa fase —, o segundo se preocupou em derrubar entraves burocráticos de todas as esferas federativas quando da liberação de licenças, autorizações, registros ou outras permissões para a execução da parceria120.
A Lei nº 13.448/2017, da mesma forma, traz exemplos dessa nova perspectiva. A começar pela previsão contida no seu art. 22, o qual afasta expressamente a aplicação do
119 Assim dispõe o parágrafo 1º, do seu art. 6º: “Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.”.
120 O foco no postulado da eficiência é bem evidente nesse dispositivo, confira-se “Art. 17. Os órgãos, entidades e autoridades estatais, inclusive as autônomas e independentes, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, com competências de cujo exercício dependa a viabilização de empreendimento do PPI, têm o dever de atuar, em conjunto e com eficiência, para que sejam concluídos, de forma uniforme, econômica e em prazo compatível com o caráter prioritário nacional do empreendimento, todos os processos e atos administrativos necessários à sua estruturação, liberação e execução”.
art. 65 da Lei nº 8.666/1993. Assim, corroborando o que já havia sido exemplificado anteriormente, a demonstrar a lógica diversa desses ajustes, as alterações dos contratos de parceria não estão submetidas aos estritos limites do diploma legal denominado lei geral de licitações e contratos administrativos.
Mas, veja-se, as novas leis não revogam os atos normativos em vigor, apenas estabelecem um regime alternativo e facultativo para tratar de projetos que a própria União qualifique como de interesse nacional sobranceiro. O que, aliás, não o torna um regime anti-isonômico. O fato de o Governo Federal legislar para si — já que se trata de norma federal e não nacional — e estabelecer regras especiais para contratos qualificados como parcerias no âmbito de um Programa específico, não se configura inconstitucional. Na esteira do que se vem defendendo nesse trabalho, é possível admitir a convivência de regimes jurídicos diversos a regular situações distintas. Afinal, a isonomia não está no tratamento igualitário de hipóteses desiguais. Se a União entendeu que para determinados contratos (de infraestrutura) deveria prever soluções mais flexíveis, a especificidade e o caráter estratégico desses ajustes devem ser capazes de justificar a distinção imposta pela medida. Até porque, não se está impedindo que outros regimes sejam criados para hipóteses especiais justificadas e que os anteriores sejam revogados.
Trata-se, de um regime especial, um microssistema voltado à criação de incentivos e desincentivos, capaz de conviver com outros regimes, até mesmo com as regras gerais.
Os instrumentos normativos representam, assim, a mesma lógica que trazia o projeto denominado Programa Público-Privado Avançado – PPP MAIS, elaborado por Carlos Ari Sundfeld a pedido do então Ministro da Fazenda, Joaquim Levi. A intenção do projeto anterior, como explicam o próprio Carlos Ari Sundfeld e Egon Bockmann Moreira, era exatamente instalar um microssistema autônomo para contratações específicas – uma lei especial, com valência e hermenêutica diferenciadas121.
Naquela hipótese, tal como na presente, o que se pretende é a utilização desse regramento como um experimento, de modo que, com o passar do tempo, a partir da análise empírica e comparação rigorosa das experiências, numa tentativa de erro e acerto, seja possível identificar com clareza as vantagens e desvantagens das medidas. Foi exatamente o que aconteceu, por exemplo, no caso do pregão. Essa modalidade licitatória foi inicialmente prevista pelos artigos 54 a 57 da Lei nº 9.472/19997, sendo aplicada assim
121 SUNDFELD, Carlos Ari; MOREIRA, Egon Bockmann. PPP MAIS: um caminho para práticas avançadas nas parcerias estatais com a iniciativa privada. Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Belo Horizonte, nº 53, jan./mar. 2016. p. 9-49. p. 11.
no âmbito do setor de Telecomunicações. A prática, restrita à Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, se mostrou eficaz, gerando maior velocidade nas licitações e redução de custos operacionais. Diante do seu sucesso, teve seu âmbito de aplicação ampliado pela Medida Provisória nº 2.026/2000, posteriormente convertida na Lei nº 10.520/2002, que a estendeu para os demais entes federativos.
Dessa forma, não se pode deixar de apontar para o fato de que os atos normativos trouxeram uma perspectiva inovadora e experimental para as contratações de longo prazo de infraestrutura e passam a refletir a intenção de superar a perspectiva de unicidade de regimes, por meio da criação de um arcabouço jurídico próprio para parcerias de infraestrutura complexas e de longo prazo.
Dúvida surge, contudo, se este novo arcabouço jurídico seria um regime para tempos de crise.
1.2.2. Leis nº 13.334/2016 e nº 13.448/2017: regime para tempos de crise?
Quando editada a primeira Medida Provisória relativa ao PPI, em 2016, o Governo encontrava-se diante da inexequibilidade de algumas parcerias firmadas entre os anos de 2012 a 2014 e a dificuldade de endereçar as questões delas decorrentes por meio dos instrumentos até então vigentes. Tanto quanto o parceiro privado, que passava pela retração de investimentos122, a realização de medidas como a encampação e a decretação de caducidade do objeto concedido, por exemplo, exigiriam do Poder Público recursos, os quais, não possuía.
122 Os bancos públicos federais (BNDES, BB e CEF) divulgavam cartas de incentivo quando da formação da relação contratual, prevendo condições bem mais favoráveis aos investidores de concessões, como: financiamento de até 70% dos investimentos, taxa de juros de até 2% ao ano, prazo de carência de até 5 anos e financiamento na modalidade Project Finance. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2014/06/antt-divulga-carta-de-intencoes-referentes-a- investimentos-em-concessoes. Acesso em: 23 dez. 2017. Diante dos problemas econômicos do país, muitos desses ajustes laterais ao contrato não se se concretizaram.
O contexto econômico de recessão intensa da época123— especialmente em comparação com o momento de modelagem desses ajustes124 — levou empreendimentos de grande vulto a um momento crítico. Em grande parte dos setores de infraestrutura se verificou a incapacidade dos concessionários em alocar os recursos necessários para cumprir o objeto tal como contratado.
A derrocada da concessão da BR-040 (trecho Brasília-DF - Juiz de Fora-MG), já mencionada na introdução desse trabalho, é um exemplo típico do que ocorreu nesse período. Ao demonstrar a intenção de devolver a concessão, a concessionária Via-040 apontou a crise econômica como um dos fatores determinantes da sua escolha. De acordo com a nota divulgada pelo seu Conselho de Administração125:
o projeto que serviu como base para a proposta apresentada pela Via 040, em 2013, foi impactado negativamente por diversos fatores, como, por exemplo, a severa recessão econômica que o país enfrenta desde 2014, sendo um dos principais deles a queda do tráfego estimado. A soma desses fatores desconfigurou todo plano de negócios da Via 040, levando a empresa a tomar a decisão de buscar a adesão à relicitação proposta pelo Governo.
De fato, por serem contratos de investimento de longa maturação, que agregam ao seu valor estático a projeção da remuneração do capital e a avaliação da expectativa de retorno126, tornam-se muito mais suscetíveis às alterações do panorama econômico do que os contratos de curto prazo, cuja execução se dá pela lógica do cumprimento e respectivo pagamento.
123 Como já apontado anteriormente, os dados apresentados pelo Comitê de Datação do Ciclo Econômico (Codace), da Fundação Getúlio Vargas, indicam que a recessão de 2014-2016 foi a mais longa desde 1980. Disponível em: http://portalibre.fgv.br/main.jsp?lumPageId=4028808126B9BC4C0126BEA1779E6CAA. Acesso em: 18 maio 2018.
124 Os ajustes firmados entre 2012 e 2014, foram modelados em um momento de expansão econômica, o que traz reflexos para sua modelagem econômica. O Comitê de Datação do Ciclo Econômico (Codace), da Fundação Getúlio Vargas, “identificou a ocorrência de um pico no ciclo de negócios brasileiro no primeiro trimestre de 2014. O pico representa o fim de uma expansão econômica que durou 20 trimestres — entre o segundo trimestre de 2009 e o primeiro de 2014 — e sinaliza a entrada do país em uma recessão a partir do segundo trimestre de 2014.”. Disponível em: http://portalibre.fgv.br/main.jsp?lumPageId=4028808126B9BC4C0126BEA1779E6CAA. Acesso em: 18 maio 2018.
125 Disponível em: http://www.invepar.com.br/show.aspx?idMateria=yWR7pMobiFl834UnFS1GlQ==. Acesso em: 20 maio 2018.
126 MOREIRA, Egon Bockmann. Contratos Administrativos de longo prazo: a lógica do seu equilíbrio econômico-financeiro. In: MOREIRA, Egon Bockmann (Coord.). Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno: a lógica das concessões e parcerias público privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 83.
E não é só isso. Da mesma forma que a crise tem considerável impacto nesses contratos, o colapso destes ajustes reflete diretamente na recuperação da economia. Projetos como a construção de ferrovias, ampliação de rodovias e aeroportos, produzem externalidades positivas que vão além do objeto contratado, como a geração de emprego e a movimentação do mercado. Por isso, permitir a retração dessas parcerias leva a um círculo vicioso que gera um resultado evidente: o agravamento da crise.
Diante dessa constatação — e na linha do entendimento aqui já defendido acerca do desenvolvimento de regimes jurídicos diversos para tratar de situações semelhantes e especiais — a elaboração de um arcabouço jurídico próprio para tempos de crise parece ser uma solução não apenas possível, mas aconselhável. Admitir normas excepcionais que dotem essas relações de maior flexibilidade, pode ser a única forma de se preservar inúmeros ajustes127.
Tome-se como exemplo o Decreto nº 45.387/2015 do Estado do Rio de Janeiro. Em meio à crise econômica vivida pelo ente128, o ato normativo admitiu que a Administração Pública afastasse a aplicação de sanções aos contratados quando ausente a manutenção das condições de habilitação ou descumpridas outras obrigações acessórias na hipótese de serem consequência do inadimplemento estatal.
Tal como essa medida — endereçada à contratos diretamente remunerados pelo governo — entende-se plenamente viáveis prescrições normativas próprias para lidar com concessões atingidas pelos efeitos da crise econômica. A elaboração de normas, desde que acompanhada de parâmetros objetivos próprios e dever de transparência entre as partes, pode ser uma forma de evitar as consequências drásticas de um cenário econômico crítico, como o que vem se delineando no Brasil nos últimos anos.
127 Nas precisas lições de Flávio Amaral Garcia: “é preciso que os entes públicos se ocupem em promover uma gestão contratual que considere o contexto econômico atual e adotem providências concretas para minimizar os efeitos do inadimplemento no fluxo de caixa dos contratados, cogitando, inclusive, de medidas atenuadoras que possam refrear as drásticas consequências acima mencionadas.”. GARCIA, Flávio Amaral. Direito contratual em tempos de crise. Revista Zênite ILC – informativo de licitações e contratos. Curitiba: Zênite, n. 275, p. 9-14, jan. 2017. p. 10.
128 De acordo com o relatório “Efeitos da crise econômica sobre o Rio de Janeiro” formulado pelo SEBRAE/RJ, “a crise econômica e política que atingiu o Brasil também deixou o Rio de Janeiro especialmente vulnerável. O Estado tem o segundo PIB do País (R$ 677 bilhões em 2015, segundo estimativa do Ceperj), mas o governo fluminense vem sofrendo com a perda de receitas: entre 2014 e 2016, a queda foi de 53%. As despesas também diminuíram, mas numa proporção menor: apenas 42%. O resultado desse descompasso foi um aumento de 80% do déficit público, que passou de R$ 4,3 bilhões em 2015 para R$ 7,8 bilhões em 2016”. Disponível em: https://m.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/UFs/RJ/Menu%20Institucional/SinteseSebrae_45_201 7%20final.pdf. Acesso em: 11 maio 2018.
Aliás, essa não é uma realidade estritamente brasileira. Outros países, como os europeus, já passaram por situação semelhante diante da crise financeira e econômica que teve início em 2008129. Também por lá se defendeu a elaboração de regimes próprios para tratar dos contratos administrativos em razão da precariedade do contexto econômico. No caso de Portugal, por exemplo, assim se pronunciou Pedro Gonçalves130:
A actual crise económica e financeira global, que se abateu também sobre a Europa desde o ano de 2008 e, no caso de Portugal, com particular intensidade no ano de 2010, tem sido a responsável pela promoção de específicas medidas públicas, de carácter legal e administrativo, dirigidas ao sector da contratação pública e ao direito dos contratos públicos. Embora o naipe de acções se revele heterogéneo, existe, entre elas, o elemento comum de se tratar de providências de regulação dos contratos públicos estabelecidas por causa da crise: estamos, pois, diante de medidas incluídas em verdadeiros pacotes anti-crise, que cumprem, em geral, um propósito contra-cíclico. Apesar de a causa se revelar a mesma, nem sempre se revelam idênticos os fins concretamente prosseguidos: nuns casos, visa-se contribuir para debelar ou enfrentar directamente a crise e as suas causas, enquanto noutros, se procura, mais modestamente, mitigar ou esbater alguns dos efeitos que a crise pode ter sobre a situação particular de cada operador económico.
No Brasil, por sua vez, as Medidas Provisórias — convertidas nas Leis nº 13.334/2016 e nº 13.448/2017 — fizeram referência expressa à crise (de meados de 2014) como justificativa para a sua edição. Na exposição de motivos da MP nº 727/2016 a questão foi tratada de maneira objetiva quando se afirmou que o país estava “passando por uma das piores crises econômicas de sua história” e que a solução dependeria de investimento em infraestrutura como forma de se “atuar em todas as fases do ciclo econômico.”131.
O contexto econômico também foi objeto do Parecer (CN) nº 1, de 2017 do Congresso Nacional, já citado na introdução desse trabalho, no qual se analisou a conversão da Medida Provisória nº 752/2016 em lei. De acordo com o voto do deputado
129 Trata-se da crise originada nos Estados Unidos, com a bolha do crédito hipotecário de alto risco "subprimes". De acordo com o Federal Reserve, ao descrever a crise, os sinais do colapso já começaram a ser sentidos em 2007 quando os preços das habitações subiram e o refinanciamento das hipotecas e a venda de habitações tornaram-se meios menos viáveis de liquidar as dívidas hipotecárias. Nesse mesmo ano, inclusive, a principal credora hipotecária subprime apresentou pedido de falência. Disponível em: https://www.federalreservehistory.org/-essays/subprime_mortgage_crisis. Acesso em: 02 maio 2018.
130 GONÇALVES, Pedro. Gestão de contratos públicos em tempo de crise. GONÇALVES, Pedro Costa (Org.). Estudos de Contratação Pública – III, Coimbra: Coimbra Editora, 2010. p. 5-6.
131 BRASIL. Exposição de Motivos da MP nº 727/2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/Exm/Exm-MP-727-16.pdf. Acesso em: 2 maio 2018.
relator, a medida seria essencial para a reestruturação rápida das concessões, que padecem, dentre outros problemas132, dos efeitos da crise econômica e da falta de incentivos para investir133.
Tratam-se, portanto, de atos normativos concebidos em meio à crise134 e que admitiram a utilização de instrumentos capazes de deslocar a lógica da contratação pública da sanção/extinção para a uma realidade de consensualidade/viabilidade. Todavia, diversamente do que se indagou inicialmente, as novas regras não se configuram propriamente um regime jurídico para a crise, mas um regime decorrente da crise.
A distinção é sutil, mas possui consequências relevantes. Quando o Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, editou o Decreto já mencionado acima, afastando a aplicação de sanções aos seus contratados, criou um regime jurídico para a crise. É dizer, o seu fundamento de validade é a situação econômica crítica e a sua utilização só se justifica enquanto perdurar o contexto de adversidade. Logo, é excepcional e temporário.
No caso das leis federais mencionadas, contudo, o regime estabelecido é decorrente da crise, mas não se limita a ela. Mesmo que o contexto econômico tenha sido a razão para retirar a Administração da inércia e levá-la a instituir mecanismos que se afastam do regramento legal atual, as suas disposições não ficarão restritas à conjuntura de crise. O regramento estabelecido poderá ser aplicado ainda que se supere o cenário economicamente frágil que, um dia, veio a ser determinante para a sua edição. Afinal, como visto anteriormente, o PPI representa um experimento do Governo em introduzir novas perspectivas a relações contratuais específicas, de modo a avaliar os seus erros e acertos.
132É preciso reconhecer que a modelagem de determinados editais e contratos também pode ser apontada como motivo da derrocada de algumas parcerias. A dispensa de apresentação do plano de negócios em conjunto com a proposta econômica, a alocação genérica de riscos e a inviabilidade do estudo de demandas são exemplos de problemas enfrentados por concessões estruturadas entre 2012-2014 e que fragilizam os ajustes no curso da sua execução. Importante notar, contudo, que a crise pode ser considerada fator determinante na adoção das medidas uma vez que agrava o cenário das outras causas de instabilidade contratual.
133 Disponível em: http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=5278031&disposition=inline. Acesso em: 25 nov. 2017.
134 Bernanrdo Strobel Guimarães e Heloísa Conrado Caggiano fazem uma crítica ao pragmatismo dessas medidas. Segundo os autores: “As soluções da lei, seguramente, não são as ideias. Ideal seria que não houve a necessidade de se criarem norma que, nitidamente, visam a mitigar os efeitos da crise instalada no Brasil e/ou de projetos mal estruturados. Como as coisas são o que são, a lei é pragmática e busca permitir que o setor de infraestrutura se recupere o quanto antes, dando sinalização positiva a investidores e a potenciais interessados projetos de infraestrutura, haja vista a sua relevância para a economia nacional.”. GUIMARÃES, Bernardo Strobel; CAGGIANO, Heloísa Conrado. O que mudou no direito das concessões com a aprovação da MP nº 752: perguntas e resposta. In: Revista de Direito Público de Economia – RDPE. Belo Horizonte: a. 15, n. 58, p. 9-22, abr./jun. 2017. p. 21.
Vale lembrar que a Lei nº 13.334/2016 cria um Programa de Parceria de Investimentos destinado à ampliação e fortalecimento da relação entre a Administração e a iniciativa privada no âmbito de projetos de infraestrutura. Trata-se, portanto, de norma voltada à contratos de longo prazo e à materialização da segurança jurídica e estabilidade, cuja aplicação não ficará restrita ao adverso cenário econômico atual. Na realidade, a sua transição e manutenção em períodos de crescimento econômico será ainda mais relevante para consolidação dos seus propósitos.
Os institutos previstos pela Lei nº 13.448/2017 — a prorrogação antecipada135 e a relicitação — tampouco podem ser considerados instrumentos excepcionais a serem aplicados apenas em momentos de crise. A possibilidade de alterar o contrato para extingui-lo consensualmente em razão da sua inviabilidade ou para alcançar mais investimentos por meio da extensão do seu prazo, mostram-se medidas aptas a endereçar questões relativas aos contratos de longo prazo mesmo que não se esteja diante de uma grave recessão136.
Assim, o que se verifica é a construção de um regime que vai além da crise e reflete, em boa medida, a mutação do Direito Administrativo e uma tentativa, ainda que não ideal, de desenvolver soluções menos padronizadas, mais voltadas para a consensualidade e eficientes. É o que Carlos Ari Sundfeld chama de “direito administrativo dos negócios” (DAN) em contraposição ao “direito administrativo do clips” (DAC)137:
135 A prorrogação antecipada já havia sido prevista em atos normativos próprios para setores específicos, como o portuário, na forma da Lei nº 12.815/2013 e o elétrico, conforme as disposições contidas na Lei nº 12.783/2013. A Lei atual, portanto, representa a extensão dessa modalidade de prorrogação para os setores rodoviário e ferroviário.
136 É preciso alertar para o fato de que os fundamentos suscitados para a utilização desses instrumentos em detrimento de outros, como a caducidade e a encampação, deverão ganhar novos contornos em tempos de estabilidade ou crescimento econômico. Tome-se como exemplo a relicitação. Enquanto a crise econômica é capaz de justificar, quase que por completo, a inviabilidade superveniente dos termos de uma parceria e a sua derrocada. O contexto de estabilidade econômica demanda um ônus argumentativo maior com relação à essa inviabilidade, cuja a causa superveniente de instabilidade deverá ficar bem delineada. De todo modo, custos e benefícios, seja qual for o contexto econômico, terão de ser avaliados pela Administração.
137 SUNDFELD, Carlos Ari. O direito administrativo entre clips e negócios. In: Direito administrativo e seus novos paradigmas. ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. (coord.). Direito Administrativo e seus novos paradigmas. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 82-83. Ainda de acordo com o autor, a crise econômica é ambiente propício para o desenvolvimento do “direito administrativo dos negócios”. Nas palavras do autor “Também os momentos de crise econômica e política aguda são adequadas para elas. Aí, são muito fortes os estímulos para a busca de resultados e, por isso, não funcionam do mesmo modo os mecanismos de autopreservação dos agentes públicos, típicos do DAC”.
Direito administrativo do clips (DAC) é o da Administração de papelaria que age por autos e atos, trata direitos e deveres em papel, é estatista, desconfia dos privados, despreza a relação tempo, custos e resultados, não assume prioridades. (...) Ao DAC se opõe o direito administrativo dos negócios (DAN), o dos que se focam em resultados e, para obtê-los, fixam prioridades. E com base nelas gerenciam a escassez de tempo e de recursos. Para esse âmbito, valem práticas opostas às do DAC: aumenta a informalidade nos procedimentos; a inação é o pior comportamento possível do agente; soluções devem ser encontradas o mais rápido; acordos são desejáveis; evitar e eliminar custos é fundamental; só se envolvem na decisão agentes e órgãos indispensáveis; riscos devem ser assumidos sempre que boa a relação custo- benefício etc.
A importância dessa mudança de paradigma fica mais clara diante da comparação entre as novas medidas e alguns instrumentos decorrentes da atuação unilateral estatal que, juridicamente, poderiam ser aplicados aos mesmos casos práticos, como é o caso da encampação e da caducidade.
1.3. O paradigma legislativo anterior: a encampação e a caducidade
Os últimos anos tem se mostrado especialmente desafiadores no âmbito das parcerias que envolvem infraestrutura. Como narrado na introdução desse trabalho, ao mesmo tempo que a União Federal se vê diante da perda de investimentos em concessões firmadas há muitos anos (já em fase final de exploração), presencia a inviabilidade de contratos com menos de cinco anos de vigência.
Essas questões — antes da edição dos novos diplomas legais — eram endereçadas basicamente pelas regras estabelecidas na Lei nº 8.987/1995138, Lei Geral de Concessões e Permissões, e pelas disposições contratuais, muitas vezes repetidoras do regime legal. Por meio dos exemplos práticos trazidos a seguir, são estabelecidos, em linhas gerais, o trâmite e os requisitos para a aplicação prática de dois instrumentos tradicionalmente reconhecidos à Administração: a encampação e a caducidade. O objetivo é avaliar brevemente essas medidas unilaterais, de modo a estabelecer as bases para a efetiva
138 Diz-se basicamente endereçadas pela Lei geral de concessões e permissões pelo fato de que algumas normas setoriais tratam especificamente de situações em razão da peculiaridade do setor. É o caso do setor portuário, já mencionado em nota anterior, o qual prevê desde a edição da Lei nº 12.815/2013 a possibilidade de se prorrogar antecipadamente o contrato.
comparação, no Capítulo 3 desse trabalho, com os instrumentos consensuais reconhecidos no novo diploma legal.
Alerta-se, contudo, que a Administração poderia considerar a adoção de outras medidas — não só a encampação ou caducidade — para lidar com as situações narradas a seguir, mas para os fins de comparação econômica pretendida por esse trabalho, optou- se pela análise das medidas unilaterais previstas pela legislação em vigor de modo a comparar prerrogativas estatais e instrumentos consensuais.
Parte-se, assim, da concessão precedida de obra pública da malha ferroviária paulista, ocorrida em dezembro de 1998. Após se sagrar vencedora do leilão realizado pela União, a FERROBAN - Ferrovias Bandeirantes S.A.139 adquiriu o direito de “exploração e desenvolvimento do serviço público de transporte ferroviário de carga” na referida malha pelo prazo de 30 anos prorrogáveis por mais 30140.
O setor ferroviário foi, de fato, um dos primeiros setores a serem transferidos aos particulares após a edição da Lei Geral de Concessões e Permissões141. Contudo, como identificou Vitor Rhein Schirato, muito mais do que o estabelecimento de uma política pública setorial clara, essas concessões foram realizadas, à época, para responder a uma questão orçamentária da União, que pretendia estancar os prejuízos decorrentes da Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) e arrecadar o máximo possível142-143.
139 Posteriormente a FERROBAN foi substituída por ALL – América Latina Logística Malha Paulista S.A., em razão de alteração estatutária, aprovada pela Deliberação nº 359/08, de 9 de setembro de 2008.
140 É o que dispõe as cláusulas primeira, segunda e terceira do contrato de concessão: “CLÁUSULA PRIMEIRA: DO OBJETO. O presente contrato tem por objeto a CONCESSÃO da exploração do serviço público de transporte ferroviário de carga na MALHA PAULISTA, de propriedade da Rede Ferroviária Federal S.A. – RFFSA, descrita no Anexo I deste contrato, à concessionária, outorgada pelo Decreto 22 de Dezembro de 1998. ( ) CLÁUSULA SEGUNDA – DA DURAÇÃO DA
CONCESSÃO. A presente CONCESSÃO terá duração de 30 anos, contados a partir da publicação do presente contrato, nos termos da Cláusula Vigésima primeira. No texto do presente contrato o vocábulo ano significa sempre ano contratual, contado na forma expressa nessa cláusula. CLÁUSULA TERCEIRA – DA PRORROGAÇÃO DO CONTRATO. Em havendo interesse manifesto de ambas as partes, o presente contrato poderá ser prorrogado até o limite máximo total de 30 anos.”.
Disponível em: http://www.antt.gov.br/ferrovias/arquivos/America_Latina_Logistica_Malha_Paulista_SA.html. Acesso em: 20 fev. 2018.
141 Para o contexto histórico do setor ferroviário, ver: PINHEIRO, Armando Castelar; RIBEIRO, Leonardo Coelho. Regulação das Ferrovias. Rio de Janeiro: Editora FGV/IBRE, v. 1, p. 1-44, 2017.
142 SCHIRATO, Vitor Rhein. A Valec e as novas concessões de infraestrutura ferroviárias. In: RIBEIRO, Leonardo Coelho; FEIGELSON, Bruno; FREITAS, Rafael Véras de (Coord.). A nova regulação da infraestrutura e da mineração: portos, aeroportos, ferrovias e rodovias. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 385-396.
143 Essa constatação é interessante para demonstrar como a economia é cíclica. Como já demonstrado em outros momentos da presente dissertação, a crise econômica atual também tem levado o poder público a firmar parcerias como meio de arrecadação. Olhar o passado, portanto, se mostra extremamente relevante para evitar os mesmos erros de modelagem nas novas concessões.
Esse contexto acabou refletindo na própria modelagem desses ajustes. A análise das cláusulas contratuais de investimentos e metas da concessão mencionada acima demonstra com clareza essa intenção inicial e quase que uma despreocupação com o futuro. Passados 20 anos de execução contratual, todavia, o futuro se faz presente, e é preciso saber o que fazer com esses contratos diante da premente necessidade de investimentos no setor.
Com efeito, quando firmado em 1998, a preocupação da União era com o aumento de produção (toneladas/quilômetro-úteis) e a redução do índice de acidentes. A cláusula quinta do contrato, ao descrever a qualidade do serviço, estabeleceu como metas a serem atingidas pelo concessionário os níveis mínimos de produtividade nos três primeiros anos e o aumento dos índices de segurança nos cinco primeiros anos144. Decorrido o lapso indicado, caberia à União estabelecer metas anuais pactuadas com a FERROBAN/ ALL
– América Latina Logística Malha Paulista S.A., cujo critério para fixação sequer é mencionado no ajuste.
Dessa estrutura contratual resultaram consequências práticas importantes. Em primeiro lugar, não havia previsão de como deveriam ser realizados esses investimentos. Assim, cumpridas as metas de produção e redução de acidentes, o parceiro privado adimplia a sua obrigação. É dizer, poderia investir de forma direcionada em fragmentos da malha que lhe fossem mais atrativos e deixar o resto da infraestrutura em total abandono. Até porque, a construção de novos ramais, melhoria e/ou expansão dos serviços da malha, foram elencados não como obrigações do concessionário, mas como um direito145.
Além disso, como não há obrigação de investimento especificada, o transcurso do tempo funciona como um desincentivo para aportes em infraestrutura. Isso porque, nos
144 “CLÁUSULA QUINTA – DA QUALIDADE DO SERVIÇO. 5.1 DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO.
A CONCESSIONÁRIA deverá atingir, nos três primeiros anos, os níveis mínimos de produção anual abaixo discriminados, medidas em toneladas-Kilômetros-úteis, devendo prover investimentos necessários ao atingimento de tais metas (...) 5.2 DA SEGURANÇA DO SERVIÇO. (...) Parágrafo 2º - A CONCESSIONÁRIA deverá atingir as seguintes metas mínimas de redução do número de acidentes, tendo como referência o índice de 147 acidentes por milhão de trens-quilômetro registrado na MALHA PAULISTA entre junho/97 e maio/98, de acordo com o critério estabelecido no parágrafo primeiro desta cláusula, devendo prover os investimentos necessários ao atingimento de tais metas”.
145 “CLÁUSULA DÉCIMA – DOS DIREITOS DA CONCESSIONÁRIA. Construir ramais, variantes, pátios, estacoes, oficinas e demais instalações, bem como proceder a retificações de traçados para a melhoria e/ou expansão dos serviços da malha objeto deste contrato, sempre com prévia autorização da CONCEDENTE, que se manifestará a respeito no prazo de 90 (noventa) dias;”
termos da Cláusula Décima-Sexta do ajuste146, os bens decorrentes de investimento revertem ao Poder Concedente ao final da concessão. Com isso, quanto mais perto do fim, resta menos tempo para amortização dos valores despendidos nesses bens. O montante investido nesse período final será pago pela União por meio de indenização — nem sempre de fácil estimativa — somente após o fim da concessão. Além disso, as melhorias efetivadas na superestrutura da via permanente, não serão consideradas investimentos para fins indenizatórios. Nesse sentido, foi precisa a constatação feita por Fábio Ferreira Durço147:
Decorridos os primeiros quinze anos das concessões de ferrovias, parece haver pouco interesse da iniciativa privada na expansão da malha existente, uma vez que os investimentos realizados não são reversíveis ao final da concessão, válida por trinta anos e renovável por mais trinta anos. Além disso, os investimentos efetuados entre 1996 e 2010 concentraram-se na recuperação da malha existente, na aquisição de equipamentos de material rodante e na contratação e capacitação de mão de obra especializada, de forma que, nesse caso, o tempo necessário para os projetos de infraestrutura ferroviária parece ser insuficiente.
A União, se vê, então, diante de um impasse: ao mesmo tempo que possui contratos ainda em vigor sem incentivos para novos investimentos, mas sendo corretamente cumpridos pelos concessionários, vivencia a necessidade de endereçar os problemas relativos aos gargalos da infraestrutura, o que envolve invariavelmente o setor ferroviário148. Trata-se, aliás, de uma questão inerente aos contratos de longo prazo. O passar dos anos vai trazer novas perspectivas regulatórias que precisarão ser enfrentadas pela Administração e, ao mesmo tempo, impactarão nos contratos em vigor.
146 “CLÁUSULA DÉCIMA-SEXTA. DA REVERSÃO E DA INDENIZAÇÃO. (...) III) Os bens
declarados reversíveis serão indenizados pelo CONCEDENTE pelo valor residual do seu custo, apurado pelos registros contábeis da CONCESSIONÁRIA depois de deduzidas as depreciações e quaisquer acréscimos decorrentes de reavaliação. Tal custo estará sujeito a avaliação técnica e financeira por parte da CONCEDENTE. Toda e qualquer melhoria efetivada na superestrutura da via permanente, descrita no Anexo V, não será considerada investimento para os fins deste contrato;”
147 DURÇO, Fábio Ferreira. A regulação do setor ferroviário brasileiro: Monopólio natural, concorrência e risco moral. 2011. Dissertação (Mestrado em Economia) - Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – Escola de Economia de São Paulo - EESP, 2011. p. 95.
148 A infraestrutura é um dos aspectos que mais influenciam a competitividade de uma economia. O Governo brasileiro vem tentando endereçar essa questão com sucessivos planos de investimento. Foi o caso Programa de Investimento em Logística (PIL), lançado em 2012 para promover um sistema de transporte moderno e eficiente. No caso do setor ferroviário, por exemplo, o Programa buscava ampliar a utilização do transporte ferroviário de carga, criar uma malha ferroviária moderna e integrada, aumentar a capacidade de transporte por ferrovias e diminuir os gargalos logísticos, garantindo-se, para tanto, a aplicação de R$ 86,4 bilhões na construção, modernização e manutenção de 7,5 mil quilômetros de linhas férreas. Disponível em: http://www.epl.gov.br/ferrovias2. Acesso em: 08 maio 2018. Um dos entraves encontrados foram as concessões existentes. Hoje, o PIL foi substituído pelo PPI.
Diante desse cenário, como proceder? A Administração poderia, por exemplo, aguardar o término do prazo contratual ou realizar a encampação da atividade por interesse público.
De fato, antes da edição dos novos diplomas legais, os contratos de concessão comum e as parcerias público-privadas da União149 se submetiam, basicamente, a seis formas de extinção: (i) fim do prazo contratual; (ii) encampação por interesse público;
(iii) caducidade por descumprimento atribuível ao contratado; (iv) rescisão por descumprimento do Poder Público; (v) anulação em razão de contrato inválido; ou (vi) falência ou extinção da concessionária150. Assim, não sendo hipótese de descumprimento contratual ou falência/extinção da concessionária, poderia a União aguardar o fim do prazo ou encampar a concessão para, posteriormente, licitá-lo em novos termos. Sob a perspectiva do particular, por sua vez, não haveria incentivo para a realização de investimentos não previstos, apenas se estes fossem acompanhados da devida compensação.
A premência de novos investimentos afasta a primeira solução. Se a União precisa resolver gargalos de infraestrutura para o desenvolvimento do país, aguardar mais 10 anos para realizar nova licitação não seria uma solução viável. Se a remodelagem não fosse urgente, não se estaria cogitando de novas medidas até o fim do contrato, afinal, o ajuste está sendo cumprido tal como estabelecido.
Poderia a Administração, assim, optar por retomar o serviço concedido. Essa retomada — que recebe o nome legal de “encampação”151 —, em linhas gerais, ocorre no curso do prazo contratual, por motivo de interesse público, mediante lei autorizativa específica e prévio pagamento da indenização pelo poder concedente. Os custos e o tempo (que acaba se traduzindo em custo) necessários para a integral formalização da medida, são fatores a serem considerados pela União quando da sua escolha.
149 Nesse ponto, entenda-se que nas concessões firmadas pela União também se enquadram os contratos decorrentes dos convênios de delegação celebrados na forma da Lei nº 9.277/1996. Como destacado por Rafael Veras, esses contratos também são abrangidos pelos novos institutos da relicitação e da prorrogação antecipada. FREITAS, Rafael Véras de. Concessão de Rodovias. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 172.
150 As hipóteses aqui elencadas são aquelas listadas pelo art. 35 da Lei nº 8.987/1995 e, em regra, repetidas pelos instrumentos contratuais.
151 Na forma do art. 37 da Lei nº 8.987/1995: “Considera-se encampação a retomada do serviço pelo poder concedente durante o prazo da concessão, por motivo de interesse público, mediante lei autorizativa específica e após prévio pagamento da indenização, na forma do artigo anterior.”.
Com efeito, não se trata de uma medida célere ou sem implicações para o erário. Constatada a razão de interesse público — a qual merece ampla justificativa com fundamento nas suas consequências práticas e na adequação e necessidade da medida152
— o poder concedente deverá buscar a aprovação de lei específica autorizativa, que pormenorize a retomada do serviço delegado. Veja-se que, além do tempo necessário para a aprovação da medida — o qual pode ser estender por tempo considerável —, a inclusão do Poder Legislativo nesse trâmite insere outro componente na decisão administrativa: o político.
Obtida a autorização, ainda assim não se promoverá a imediata retomada da atividade. Também é requisito prévio de validade do ato, o pagamento de indenização, pelo poder público, relativa aos bens do concessionário empregados na execução do serviço contratado. Os custos, aqui, se mostram elevados, uma vez que deverão ser consideradas as parcelas dos investimentos vinculados a bens reversíveis, ainda não amortizados ou depreciados, que tenham sido realizados com o objetivo de garantir a continuidade e atualidade do serviço concedido. Aliás, nesse ponto, o fator tempo/custos também pode se fazer presente, em razão de possíveis disputas judiciais envolvendo o montante indenizável.
A encampação, portanto, somente se efetivará após a obtenção de autorização legal e o pagamento da indenização ao concessionário. Nesse momento, o poder concedente assumirá a atividade e todos os custos dela decorrentes até a realização de nova licitação153.
152 Foram elencados os requisitos exigidos para as decisões administrativas constantes no art. 20 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro: “Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”. Afinal, como destacado por Fernando Vernalha Guimarães, ao tratar do interesse público na encampação: “atualmente, vige uma interpretação restritiva para o exercício de competências autoritárias no plano de contratos administrativos. Tal significa o reconhecimento de que as interferências administrativas em contratos administrativos devem ser excepcionalíssimas, legitimadas apenas em hipóteses anormais e cujo advento seja inevitável para garantir o interesse administrativo (justificativa que se procede à luz dos princípios da razoabilidade-proporcionalidade). E a hipótese há de ter cabimento ainda mais restritivo no universo das concessões de serviços públicos, que conformam contratos complexos e longevos, os quais, via de regra, pressupõem investimentos bastante expressivos a serem aportados pelo concessionário”. GUIMARÃES, Fernando Vernalha.
Concessão de serviço público. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
153 Na prática, não foi essa a solução adotada. A concessão explorada pela ALL – América Latina Logística Malha Paulista S.A., atualmente, está submetida aos tramites necessários para a prorrogação antecipada prevista pela Lei nº 13.448/2017. Disponível em: http://www.avancarparcerias.gov.br/rumo- malha-paulista-sa. Acesso em: 10 maio 2018. De toda sorte, as características da encampação, aqui
Solução legal diversa se aplica ao caso envolvendo a concessão do Aeroporto Internacional de Campinas, realizada em fevereiro de 2012, decorrente da segunda rodada de leilões do setor. Naquela oportunidade, a concessionária Aeroportos Brasil Viracopos
S.A. (ABV), vencedora do certame, firmou contrato com a Administração federal para a ampliação, manutenção e exploração da infraestrutura do complexo aeroportuário, pelo prazo de trinta anos154.
Transcorridos cerca de 4 anos da formalização do ajuste, a contratada passou a apresentar dificuldades no cumprimento de suas obrigações. Em 2015, não honrou tempestivamente com o pagamento de aproximadamente R$ 79 milhões referentes à outorga pactuada no momento da concessão155 e, de acordo com a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC)156, tampouco promoveu a recomposição da garantia de execução contratual, gerando um déficit de mais de R$160 milhões157.
No Mandado de Segurança nº 35661 — impetrado por Aeroportos Brasil Viracopos com vistas a solicitar a análise do seu pedido de relicitação, em trâmite no Supremo Tribunal Federal158 — a crise foi apontada como fator relevante para o inadimplemento da concessionária, uma vez que, diante desse cenário, o estudo de demanda realizado pelo próprio poder concedente não se materializou, (apenas 52% da projeção inicial teria se efetivado), tampouco a movimentação de carga atingiu o nível esperado, tendo ficado 60 % aquém do projetado.
delineadas, serão necessárias para a análise comparativa das medidas a ser realizada no item 3.3 desse trabalho, quando, então, serão aprofundadas.
154 De acordo com as cláusulas 2.1 e 2.5 do contrato de concessão: “2.1. O objeto do presente contrato é a Concessão dos serviços públicos para a ampliação, manutenção e exploração da infraestrutura aeroportuária do Complexo Aeroportuário, a ser implementada em quatro fases”; e “2.5. A vigência do Contrato será pelo prazo de 30 (trinta) anos para o Aeroporto de Campinas, sendo sempre contado a partir da sua Data de Eficácia.”. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2014/06/antt- divulga-carta-de-intencoes-referentes-a-investimentos-em-concessoes. Acesso em: 21 nov. 2017.
Importante destacar que a prorrogação contratualmente prevista é de mais cinco anos para fins de reequilíbrio econômico-financeiro.
155 De acordo com a Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC,, a concessionária chegou a ajuizar ação para suspender a referida obrigação de pagamento. ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil. Disponível em: http://www.anac.gov.br/-noticias/2015/viracopos-tera-que-pagar-outorga-total-em- 2015. Acesso em: 21 nov. 2017.
156 Interessante notar que nesse contrato — em algumas outras concessões recentes — a Agência Reguladora funciona também na posição de poder concedente, por delegação da União.
157 Vide: ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil. Disponível em: http://www.anac.gov.br/- noticias/anac-apura-descumprimentos-contratuais-pela-concessionaria-de-viracopos-3. Acesso em: 10 mar. 2018.
158 Disponível em <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5446001> acessado em 12 de dezembro de 2018.
Mesmo diante do contexto adverso, pela lógica binária das previsões legais vigentes, “a critério do poder concedente”159, poder-se-ia optar pela sanção ou a extinção da concessão por meio da decretação da caducidade.
A caducidade, como mencionado acima, é mais uma causa de extinção das concessões. Nessa hipótese, contudo, considerando a existência inadimplemento por parte do concessionário, o procedimento legal é diverso daquele estabelecido para a realização da encampação. São outros os fatores que influenciam os custos e o tempo envolvidos na escolha da Administração Pública. A começar pela instauração de processo administrativo que, além de incluir o tempo necessário para que o poder concedente elabore a sua justificativa, apontando a conduta do concessionário que se enquadre em uma das hipóteses legais e/ou contratuais de inadimplemento, também agrega o período necessário e razoável para que o contratado apresente sua defesa ou, eventualmente, corrija as falhas apontadas.
O transcurso desse lapso, chamado de “cura”, com a comprovação do inadimplemento do particular e a não correção dessas falhas, levam à declaração da caducidade da concessão por meio de Decreto. Nesse momento, afasta-se o parceiro privado da execução da atividade, que é assumida integralmente pelo poder público.
159 Nos exatos termos do artigo 38 da ei 8.987/1995: “A inexecução total ou parcial do contrato acarretará, a critério do poder concedente, a declaração de caducidade da concessão ou a aplicação das sanções contratuais, respeitadas as disposições deste artigo, do art. 27, e as normas convencionadas entre as partes.”. Maurício Portugal Ribeiro faz duras críticas à previsão legal que deixa à discricionariedade da Administração a opção pela sanção ou caducidade. De acordo com o autor, “é preciso notar que esse dispositivo deveria ser modificado, por inconstitucionalidade. A possibilidade de qualquer descumprimento ser apenada com caducidade “a critério do poder concedente” viola frontalmente o assim chamado Princípio da Proporcionalidade da ação estatal. Somente descumprimentos graves deveriam poder ser apenados com a caducidade, uma vez que os demais descumprimentos contratuais são apenados pelas outras sanções ordinariamente previstas nos contratos, como as multas. (...) Esse dispositivo [art. 38, §1º] deveria trazer uma enumeração que delimitasse claramente apenas condutas extremamente graves que justificassem a aplicação da sanção de caducidade. Todavia, o dispositivo é redigido de modo a abranger qualquer descumprimento contratual. Vide, por exemplo, o inciso II acima citado, que diz que é motivo para aplicação da sanção de caducidade “a concessionária descumprir cláusulas contratuais ou disposições legais ou regulamentares concernentes à concessão”. Pela redação do dispositivo não seria preciso sequer que os descumprimentos contratuais fossem graves para se aplicar a pena de caducidade.”. (RIBEIRO, Maurício Portugal. Caducidade de concessões e PPPs: notas sobre a conveniência e oportunidade da decisão para instauração do processo e sobre as formalidades para tanto. Disponível em < http://www.portugalribeiro.com.br/caducidade-de-concessoes-e-ppps-notas-sobre-a-conveniencia-e- oportunida-de-da-decisao-para-instauracao-do-processo-e-sobre-as-formalidades-para-tanto/> acessado em 26 de dezembro de 2017). Conquanto o autor tenha razão em chamar a atenção para o fato de a lei não ter sido objetiva em apontar a inadimplência grave como fator determinante para a aplicação da caducidade, entende-se que o poder concedente tem o ônus argumentativo de demonstrar a gravidade da situação para legitimar a sua opção. Os dispositivos inseridos recentemente na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, como o art. 20 — já mencionado em nota anterior — exigem uma motivação da administração pautada em parâmetros objetivos e adequados, como a gravidade do inadimplemento no caso da caducidade.
Isso significa que, além do tempo e do custo envolvidos na realização de uma nova licitação, a Administração deve arcar com a prestação da atividade de maneira adequada e eficiente enquanto não efetivado o certame. Aliás, integram também esses gastos a indenização, arcada pelo poder público — a ser paga posteriormente à assunção da atividade —, das parcelas dos investimentos vinculados a bens reversíveis, ainda não amortizados ou depreciados, deduzidas, em razão da culpa, as multas contratuais e por danos causados. É preciso lembrar, ainda, que o procedimento está sujeito à infindáveis disputas judicias que podem se arrastar por muitos anos160.
As características e formalidades de cada instrumento brevemente levantadas e aplicados à exemplos práticos demonstram como fatores econômicos precisam ser considerados pela escolha administrativa e como, muitas vezes, as soluções jurídicas não se amoldam perfeitamente à hipótese ou são insuficientes para se alcançar o fim pretendido. Em um contexto de crise econômica, como a atual, esses problemas de conformação jurídica e a ausência de avaliação de custos de transação e resultados podem agravar a situação. A Administração precisa atrair investimentos, resolver de forma célere impasses contratuais e ao mesmo tempo agir com recursos cada vez mais escassos.
Por isso, a instituição da relicitação e a ampliação das hipóteses de prorrogação antecipada fazem mais do que apenas fornecer outras opções jurídicas aos impasses contratuais da Administração Pública. Os instrumentos retiram o Poder Público de sua “zona de conforto”, fazendo com que justifique, também com base em fatores econômicos, por que irá encampar e não prorrogar antecipadamente ou por que irá declarar a caducidade e não relicitar.
Esses, portanto, são os fatores que serão enfrentados comparativamente no último capítulo desse trabalho, quando se terá oportunidade de aprofundar os aspectos econômicos envolvidos em cada medida (inclusive os custos de transação, falhas informacionais e os resultados práticos delas decorrentes), com vistas a fornecer um norte à escolha pública. Antes, contudo, será necessário tratar da natureza mutável desses contratos, cujo constante processo de mudança, a miríade de situações a que se submetem, bem como a complexidade intrínseca aos ajustes, os afastam da lógica das contratações
160 Na prática, a concessão do Aeroporto Internacional de Campinas se encontra em um impasse, a concessionária apresentou, em julho de 2017 pedido de relicitação. Disponível em: http://www.viracopos.com/-institucional/imprensa/28-07-2017-nota-a-imprensa.html. Acesso em: 30 jul. 2017. A ANAC, por sua vez, iniciou o processo de caducidade, fevereiro desse ano. ANAC - Agência Nacional de Aviação Civil. Disponível em: http://www.anac.gov.br/-noticias/anac-apura- descumprimentos-contratuais-pela-concessionaria-de-viracopos-3. Acesso em: 10 mar. 2018.
em geral e demandam uma perspectiva capaz de conjugar economia e direito. Por esse motivo, passa-se, agora, a tratar dos contratos de longo prazo não apenas sob o ponto de vista jurídico, mas também por um viés econômico.
2. A VISÃO ECONÔMICA DOS CONTRATOS PÚBLICOS DE LONGO PRAZO
Os movimentos de compreensão do Direito Administrativo como algo especial são tão naturais e solidificados na literatura, na concepção do administrador público e na noção geral, que tornam mais complexas as tentativas de se introduzir outras ideias nesse campo. Não se pode, contudo, fugir ao debate jurídico e (pelo menos tentar) trazer, para o dia-a-dia da Administração, outras formas de pensar.
A aproximação com a Economia é uma dessas vertentes, que fazem muitos operadores negarem essa possibilidade — fugindo ao debate —, sob a justificativa de que os valores defendidos pela Administração seriam contrários à análise econômica. Difunde-se, assim, a ideia de que justiça e economia não se confundem, já que não seria possível conjugar distributividade e maximização de riquezas — como se cada uma dessas ciências se reduzisse a esses conceitos.
Há muito, contudo, notadamente em sistemas jurídicos regidos pela common law, já se admite que Direito e Economia não são ciências opostas. Nos Estados Unidos, por exemplo, desde a década de 1990, pelo menos um economista fazia parte do corpo docente das mais conceituadas escolas de Direito do país, também passaram a ser publicadas diversas revistas especializadas sobre o tema. Antes, contudo, as teorias econômicas já tinham aplicação frequente nas decisões judiciais, como as proferidas por Stephen Breyer, Richard A. Posner, Frank Easterbrook, Guido Calabresi, Douglas Ginsburg, Robert Bork e Alex Kozinski161. Desenvolvia-se, assim, a chamada Análise Econômica do Direito ou Law and Economics162.
Dar um passo no sentido de introduzir elementos econômicos no âmbito específico do Direito Administrativo não parece, assim, tão drástico. Principalmente se considerada a ponderação realizada por Susan Rose-Ackerman163 acerca do tema:
161 COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and economics. 2ª Ed. reprinted with corrections. Massachusetts: Addison-Wesley, 1998. p. 2-3.
162 De acordo com Richard A. Posner, essa mais recente aproximação entre direito e economia pode ser identificada como new law and economics. Isso porque, segundo o autor, já existia antes a análise econômica do direito, mas praticamente restrita à análise de leis antitruste. Conforme expõe o autor, “the new law and economics may be dated somewhat arbitrarily from the beginning of the 1960s, when Guido Calabresi’s first article on torts abd Ronald Coase’s article on social cost were published. These were the first modern attempts to apply economic analysis systematically to areas of law that do not avowedly regulate economic relationships”. POSNER, Richard A. Economic analysis of law. 6th ed. New York: Aspen, 2003. p. 19-20.
163 ROSE-ACKERMAN, Susan. Análise econômica progressista do direito e o novo direito administrativo. In: Regulação Econômica e Democracia. O debate norte-americano. MATTOS, Paulo Todescan Lessa (Coord.). 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2017. p. 231-265. Vale acrescentar que a autora propõe, inclusive, uma visão prospectiva da análise econômica. Portanto, não discute sequer a sua aplicabilidade, mas formas de
Economia: a ciência desanimadora. Isso certamente insulta o portador das notícias ruins. O método econômico não é desanimador, exceto no caso em que o menor sinal de matemática ou estatística deprime o leitor. A economia tenta revelar os custos em tempo, dinheiro e energia de todos os empreendimentos da vida; ela se recusa a permitir que sonhadores ignorem a escassez. Mas se os recursos realmente são escassos, teríamos algum benefício em ignorar a verdade?
Não há espaço mais exemplificativo, do que a Administração Pública em termos de recursos escassos. Ter que lidar com eles não é só uma realidade, mas uma obrigação do administrador público. E se isso é um fato, por que não utilizar os ensinamentos econômicos de modo a analisar os custos e resultados das escolhas estatais?
Da mesma forma que a Economia pode fazer uso de normas jurídicas que garantam estabilidade das relações164, também o Direito pode fazer uso dos ensinamentos econômicos para trazer mais elementos de racionalidade às escolhas jurídicas. A relação de intercambialidade entre as ciências induz, assim, a um tratamento novo para institutos tradicionais.
É o que ocorre, por exemplo, com os contratos. Em termos de relações complexas e de longo prazo levar em consideração não só o que dispõem as normas legais e as cláusulas imperativas, mas também o custo de transação envolvido, o comportamento das partes e a necessidade de mutação/adaptação ao longo do tempo, pode ser a forma de assegurar estabilidade e estimular a confiança entre os contratantes.
Sobretudo em tempos de crise econômica, de escassez ainda mais evidente dos recursos públicos e privados, torna-se clara a necessidade de a Administração avaliar os custos, benefícios e as consequências da sua escolha. Introduz-se, assim, a figura do juseconomista, ou seja, de um praticante da “ciência da escolha humana”, como identificou Ivo Gico Jr., segundo o qual165:
considerar outras variáveis, além daquelas trazidas pela Escola de Chicago (utilitarista) ou pela Escola da Virgínia (que considera a public choice no plano constitucional), e pelas teorias que enfatizam os direitos de propriedade estáveis. A autora, defende a análise econômica em conjunto com as políticas públicas.
164 Conforme destacado por Antônio José Maristrello Porto e Lucas Thevernard Gomes, na economia neoclássica “as normas jurídicas, como instrumento de regulação latu sensu por excelência, tem dois papéis centrais: a defesa do funcionamento do livre mercado em regra, e a viabilização da intervenção do Estado para corrigir falhas de mercado quando necessário”. PORTO, Antônio José Maristrello; GOMES, Lucas Thevenard. Análise econômica da função social dos contratos: Críticas e aprofundamentos. Revista Economic Analysis of Law Review. v. 1, n. 2, p. 196-212, jul./dez. 2010. p. 203.
165 GICO JR., Ivo. Introdução ao Direito e Economia. In: Direito e Economia no Brasil. TIMM, Luciano Benetti (Org.). 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 29.
É precisamente nessa qualidade que a abordagem econômica é de maior utilidade para o direito ao auxiliar a compreensão (diagnóstico) e a previsão (prognose) das consequências sociais de cada escolha. A abordagem econômica é um método que pode nos fornecer o arcabouço teórico (conjunto de ferramentas) robusto o suficiente para auxiliar a compreender como o ser humano reagirá a cada alteração de sua estrutura de incentivos e, em última instância, como o direito pode elaborar tal estrutura para alcançar maior bem-estar social.
Mais do que assumir, portanto, a posição de detentor da última palavra ou daquele que aporta recursos, o administrador público assume a função de gestor do contrato administrativo. Diante dessa perspectiva, o Poder Público contratante tem a tarefa administrativa de acompanhar a relação contratual, de forma orientada a uma perspectiva profilática ou preventiva, no sentido de evitar ou prevenir eventos de incumprimento por parte do contraente privado, adotando medidas “reactivas, com caráter ex post, que cumprem o propósito de remediar certas situações disfuncionais”166.
Essa tarefa, por sua vez, pode ser desempenhada de modo a considerar os influxos da ciência econômica, passando-se de decisões fundamentadas puramente em valores, para uma postura que possa, conforme os ensinamentos de Ejan Mackaay e Stéphane Rousseau, inventariar os resultados desejados, identificar as ações que podem ser tomadas na sua busca, determinar em que medida cada ação contribui para o resultado desejado e a que custo167.
A realidade, não só da legislação168, mas da interpretação que se vem conferindo à atuação pública no Brasil, demonstram, contudo, que há ainda um caminho longo a ser trilhado nesse sentido. Espera-se que a crise econômica — por mais que isso possa soar contraditório
166 GONÇALVES, Pedro. Gestão de contratos públicos em tempo de crise. GONÇALVES, Pedro Costa (Org.). Estudos de Contratação Pública – III, Coimbra: Coimbra Editora, 2010. p. 11.
167 MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphane. Análise econômica do direito. Tradução SZTAJN, Rachel. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 31. Trata-se da descrição do procedimento adotado por um indivíduo ao fazer uma escolha racional. Faz-se necessário esclarecer, contudo, que na própria economia, vozes se levantaram contra a racionalidade, entendendo-a como irrealista. Para Herbert Simon, a racionalidade é limitada, havendo outros fatores que são considerados pelo agente econômico quando da sua tomada de decisão (como questões políticas e éticas, por exemplo). cf. SIMON, Herbert A., A behavioral model of rational choice. Quarterly Journal of Economics. 69, p. 99-118, 1955. O estudo mais aprofundado sobre o tema foge ao objetivo desse trabalho.
168 Sobre o atraso legislação em considerar aspectos econômicos, assim se pronunciou Marcos Nóbrega, “Fica claro que uma série de problemas, assimetrias de informações, subsistem em nosso sistema de seleção para parceiros em projetos de infraestrutura, seja pelo anacronismo da lei geral de licitações (Lei nº 8.666/1993) ou mesmo pela incapacidade da legislação específica (Leis nº 8.987/95 e 11.074/04) de discernir aspectos como custos de transação, assimetrias de informação e incompletude contratual”. NÓBREGA, Marcos. Análise econômica do direito administrativo. In: TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direito e Economia no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 404-416. A par da constatação do autor, não se pode deixar de mencionar que a edição das Leis 13.334/2016, 13.448/2017 e 13.655/2018 trouxeram novas perspectivas para o âmbito do Direito Administrativo, exigindo, inclusive, análise de custos e benefícios pelo Administrador e a avaliação das consequências da escolha pública.
—, sirva de impulso para acelerar essas mudanças. Afinal, “a escassez nos força a utilizar as coisas a nossa disposição melhor e a imaginar novas formas ou meios de fazê-lo”169. A inovação que modifica o ambiente, por outro lado, força a que nos adaptemos ao novo modo de fazer, pensar e agir.
É com essa perspectiva que se propõe a análise dos contratos administrativos complexos e de longa duração objeto desse estudo. Diante de outro olhar sobre os seus dogmas e paradigmas, é possível apresentar formas diversas de pensá-los.
2.1. O contrato público não é ato unilateral
A digressão realizada no capítulo anterior, para além de contextualizar o tema, serve para demonstrar que as transformações do direito administrativo — ou nos dizeres de Odete Medauar, a sua evolução170 — levaram ao reconhecimento de que o Estado contrata.
Fala-se, inclusive, em Administração concertada, dando conta de uma Administração que atua também pelo consenso. É dizer, que busca a concordância dos interessados “não apenas para o desempenho da administração corrente como e principalmente para o desenvolvimento de projetos conjuntos entre a iniciativa privada e as entidades administrativas públicas e até para a solução de conflitos”171.
169 MACKAAY, Ejan; ROUSSEAU, Stéphane. Análise econômica do direito. Tradução SZTAJN, Rachel. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 39.
170 A professora Odete Medauar desenvolveu o tema da mutação do direto administrativo no livro intitulado “O direito administrativo em evolução”. Nessa oportunidade, a autora contextualizou o contrato em âmbito público em dois momentos distintos dessa evolução. O primeiro envolveu o seu reconhecimento pelo direito administrativo e a superação da ideia de que a posição de supremacia da Administração e o interesse público afastariam essa possibilidade. Já no segundo momento, mais atual, destaca que as mutações do quadro político- institucional acarretam transformações no conteúdo das matrizes clássicas, como discussões acerca da posição dominante e impositiva da Administração nas relações contratuais ou mesmo a necessidade de sua flexibilização. MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 206-215.
171 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novos institutos consensuais da ação administrativa. In: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: 231, p. 146, jan./mar. 2003. Não se pode deixar de apontar para o fato de que a expressão foi aqui utilizada de forma ampla, é dizer, colocou-se as relações contratuais no âmbito do consenso. Cabe, contudo, o alerta de que para parte da literatura os institutos são próximos, mas não se confundem. Nesse sentido, são esclarecedoras as lições de Patrícia Baptista: “Noção vizinha à de consensualidade é a de contratualidade, surgida em decorrência do substancial aumento de atividade contratual da Administração Pública nas últimas décadas. Entre ambas, consensualidade e contratualidade existe uma certa confusão, já que as duas são reflexos de um processo mais amplo de busca da Administração por parcerias na sociedade, com vistas à realização de tarefas públicas. Não obstante essa zona comum, para fins de tratamento dogmático consensualidade e contratualidade não devem ser tidas como sinônimos”.
BAPTISTA, Patrícia. Transformações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 272-273.
Jacques Chevallier chega até mesmo a relacionar governança e contratualização. Na visão do autor, os contratos no âmbito administrativo instrumentalizam a governança (promovem a sua juridicização) e se apresentam como forma de flexibilização da atuação estatal, de forma a repousar “mais sobre a cooperação dos atores do que sobre a unilateralidade”172. De acordo com Chevallier173:
A contratualização constitui um instrumento privilegiado de formalização da governança. Com efeito, ela traduz juridicamente a abordagem contratualista e consensual da ação pública – que figura entre os fundamentos da governança. A contratualização implica relações jurídicas fundadas não mais sobre o unilateralismo e a coerção, mas sobre o acordo de vontades. Se, de um lado, ela pressupõe que seja levada em consideração a existência de autores autônomos (dos quais se deve obter cooperação), de outro, ela passa por um processo de negociação visando a definir os contornos de uma ação comum. Encontra-se aqui, portanto, a lógica que caracteriza a governança.
Se é fato que a Administração contrata e o direito administrativo caminha para o reconhecimento dessa nova posição do Estado e das relações contratuais, o presente tópico não seria apenas um contrassenso, seria desnecessário. Aliás, se consideradas as parcerias especificamente tratadas nesse trabalho, bastaria a leitura dos dispositivos legais que as classificam, para considerá-las contratos administrativos, afastando-se, mais uma vez, a coerência da afirmação inaugural: “o contrato público não é ato unilateral”.
Com efeito, a Lei nº 13.334/2016, ao delimitar o âmbito de incidência do Programa de Parcerias de Investimentos – PPI, foi bastante clara ao dispor sobre parcerias instrumentalizadas por meio de contratos174. O ato normativo, inclusive, delimitou o que se deveria entender como contrato de parceria, a saber: a concessão comum, a concessão patrocinada, a concessão administrativa, a concessão regida por legislação setorial, a permissão de serviço público, o arrendamento de bem público, a concessão de direito real e os outros negócios público-privados que, em função de seu caráter estratégico e de sua complexidade, especificidade, volume de
172 CHEVALLIER, Jacques. A governança e o direito. In: Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Belo Horizonte: a. 3, n. 12, p. 129-146, out./dez., 2005. p. 131.
173 CHEVALLIER, Jacques. A governança e o direito. In: Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Belo Horizonte: a. 3, n. 12, p. 129-146, out./dez., 2005. p. 138-139.
174 De acordo com o art. 1º da referida lei, “Fica criado, no âmbito da Presidência da República, o Programa de Parcerias de Investimentos - PPI, destinado à ampliação e fortalecimento da interação entre o Estado e a iniciativa privada por meio da celebração de contratos de parceria para a execução de empreendimentos públicos de infraestrutura e de outras medidas de desestatização.”.
investimentos, longo prazo, riscos ou incertezas envolvidos, adotem estrutura jurídica semelhante175.
Não por outro motivo, com a edição da Lei nº 13.448/2017, buscou-se exatamente tratar de problemas contratuais das parcerias reguladas pelo PPI. Seja pela alteração do prazo — antecipadamente, para fins de investimento, ou em razão da proximidade do término —, seja pela extinção amigável, por meio da relicitação, os instrumentos trazidos pela lei foram pensados para enfrentar questões de índole contratual.
Aliás, não foi só a partir do advento do PPI que a legislação foi expressa quanto o caráter contratual das parcerias por ele mencionadas. A própria Constituição Federal, ao tratar especificamente sobre a concessão e a permissão de serviços públicos, já trazia o dever legal de “dispor sobre o caráter especial de seu contrato”, dando conta da natureza do instituto.
Em 1995, quando editada a Lei nº 8.987 — estabelecendo a normativa geral das concessões de serviços públicos e de obras públicas e as permissões de serviços públicos — seguiu-se a orientação constitucional por meio de disposições que apontaram para a submissão da relação a um contrato176. No mesmo sentido foram editadas legislações setoriais que, ao tratar de concessões, destacaram o caráter contratual dos ajustes, como a Lei Geral de
175 Trata-se da redação extraída do parágrafo 2º, do art. 1º da Lei nº 13.334/2016.
176 Além do artigo 1º da referida lei — segundo o qual “As concessões de serviços públicos e de obras públicas e as permissões de serviços públicos reger-se-ão pelos termos do art. 175 da Constituição Federal, por esta Lei, pelas normas legais pertinentes e pelas cláusulas dos indispensáveis contratos”—, o art. 4º, ao tratar especificamente da concessão e o art. 40 acerca da permissão, apontaram para a contratualidade dessas parcerias. Não se desconhece a discussão da literatura acerca da natureza da permissão de serviço público.
Adota-se, contudo, a posição defendida por Egon Bockmann Moreira, a qual reconhece o caráter contratual da permissão. Segundo o autor, “a Lei 8.987/1995 disciplina, sob esse rótulo normativo, um contrato de adesão oriundo de prévio certame licitatório. É a conclusão a que se chega da leitura dos arts. 1º (´cláusulas dos indispensáveis contratos’), 2º, IV (‘mediante licitação’), e 40 (‘formalizada mediante contrato de adesão’). Nos dias de hoje, muito menos se pode desprezar o fato de que o caput do art. 175 da CF exige licitação para a outorga da permissão e seu inciso I prescreve o caráter especial do contrato. Em que pese haver reservas quanto à técnica legislativa, os textos constitucional e legal abarcam a contratualidade das permissões de serviços público, a emergir da combinação do processo licitatório que as antecede com a especialidade do seu regime contratual. (...) Nos termos da Lei Geral de Concessões, a permissão é o contrato de adesão, precedido de licitação, por meio do qual a Administração ao mesmo tempo em que permite o exercício de determinado serviço público pelo particular, regula essa atividade ao instalar certas obrigações contratuais.”. MOREIRA, Egon Bockmann. Direito das Concessões de serviço público: inteligência da Lei 8.987/1995: parte geral. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 164-165. De modo diverso entende Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem a
permissão, ainda que de serviço público, configura ato unilateral, precário e intuito personae. Para o autor, nem mesmo a redação Constitucional ou da Lei 8.987/1995 seriam capazes de afastar tal natureza: “Conquanto o parágrafo único, inciso I, do art. 175 da Constituição Federal, que trata conjuntamente de concessões e permissões, fale em ‘contrato’, evidentemente o fez com imprecisão técnica de redação, pois a expressão, obviamente, só pode estar reportada às concessões, embora, do modo como está posta linguagem normativa, abarcasse a ambas”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 33ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 787.
Telecomunicações177 e a Lei que promoveu a reestruturação dos transportes aquaviário e terrestre178.
Há, ainda, a disciplina estabelecida pela Lei nº 11.079/2004, que ao tratar das Parcerias Público-privadas, as definiu como “contrato administrativo de concessão, na modalidade patrocinada ou administrativa”179.
Veja-se que também os arrendamentos — mencionados pelo PPI — já haviam sido caracterizados como contratos pela legislação. É o caso, por exemplo, do arrendamento no setor portuário. Desde a edição da antiga Lei dos Portos (Lei nº 8.630/1993), a construção, reforma, ampliação, melhoramento e exploração da instalação portuária dependia da celebração de um contrato de arrendamento, celebrado com a União no caso de exploração direta, ou com sua concessionária180. A mesma natureza contratual foi mantida pela Lei nº 12.815/2013, que, ao revogar a legislação anterior, estabeleceu que o arrendamento de bem público destinado à atividade portuária será realizado “mediante a celebração de contrato, sempre precedida de licitação”181.
177 A Lei nº 9.472/1997 dispôs sobre a concessão no capítulo II, a partir do seu art. 83, tendo dedicado a seção II do referido capítulo integralmente à disciplina contratual.
178 Além de criar a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), a Lei nº 10.233/2001 dispôs sobre a forma contratual da concessão e da permissão nos artigos 35 e 39 respectivamente.
179 Redação do art. 2º da Lei.
180 ARAGÃO, Alexandre Santos de; FIDALGO, Carolina Barros. Regime Jurídico da autorização portuária no Brasil. In: RIBEIRO, Leonardo Coelho; FEIGELSON, Bruno; FREITAS, Rafael Véras de (Coord.). A nova regulação de infraestrutura e da mineração: portos, aeroportos, ferroviais e rodovias. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 157-178. Interessante notar que sob a égide da lei anterior muito se discutiu acerca da natureza jurídica desse contrato, se de concessão de serviço público ou bem público, ou mesmo se contrato privado. Não se discutia, contudo, acerca da natureza contratual do ajuste. Como explicam Floriano de Azevedo Marques e Fábio Barbalho Leite, ao tratar do arrendamento previsto na lei anterior, “a doutrina se divide quanto à natureza do contrato de arrendamento no bojo da Lei n° 8.630/93. Além daqueles que sustentam tratar-se de concessão de serviço público, outros afirmam que o arrendamento consiste em concessão de bem público ou de obra pública, e ainda há quem propugne que se trata do arrendamento clássico do direito civil (artigo 679 do Código Civil) aplicado à Administração Pública sob o regime do Decreto-lei n° 9.760/46”. MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo; LEITE, Fábio Barbalho. Peculiaridades do Contrato de Arrendamento Portuário. Revista de Direito Administrativo. v. 231, p. 277, 2003. A natureza contratual tampouco se tornou objeto de discussão com o advento da lei atual. Segundo Egon Bockmann Moreira, “é de se destacar que o art. 1º, §3º, da Lei nº 12.815/2013, exige que as concessões, os arredamentos e as autorizações somente sejam ‘outorgadas a pessoa jurídica que demonstre capacidade para o seu desempenho, por sua conta e risco’. Aqui houve a uniformização dos regimes dessas três modalidades contratuais portuárias”. MOREIRA, Egon Bockmann.
Portos brasileiros e seus regimes jurídicos. In: MOREIRA, Egon Bockmann (Coord.). Portos e seus regimes jurídicos: a Lei nº 12.815/2013 e seus desafios. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 55. Alerta-se, todavia, que há quem defenda que no caso da autorização portuária, embora tenha sido endereçada pela lei como um contrato de adesão, seria, na verdade, um ato administrativo (cf. CARVALHO, Juliene Erthal de. A natureza jurídica da autorização para a exploração da infraestrutura portuária. In: CESAR PEREIRA, Rafael Wallbach Schwind (Coord.) Direito portuário brasileiro: lei 12.815, porto organizado, poligonal, arrendamento e autorização, arbitragem. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2015. p. 519-532.
181 Trecho extraído do art. 4º da referida lei.
O que se percebe, portanto, é que a leitura dos dispositivos acima indicados — e são inúmeros os exemplos — deveria ser suficiente para confirmar o fato de que a Administração celebra contratos e que estes não se confundem com a imposição de atos unilaterais. Mas, então, qual seria o motivo da afirmação inaugural?
A resposta a essa indagação e a justificativa para o presente tópico possuem três ordens distintas. Em primeiro lugar, por uma razão histórica, uma vez que muito já se discutiu acerca da natureza jurídica das concessões — foco do Programa de Parceria de Investimentos182. A segunda é de ordem interpretativa, pois, apesar da qualificação legal, ignora-se em inúmeras oportunidades a bilateralidade e o acordo de vontade característicos dos contratos.
Há, ainda, uma implicação de ordem prática, a questão de saber se deve atribuir-se maior relevo aos interesses privados do concessionário (na estabilidade da relação de concessão e dos seus direitos) ou ao interesse público (que pode exigir a alteração ou a extinção prematura da relação da concessão)183.
2.1.1. Concessões são contratos administrativos
De fato, do ponto de vista histórico, a transformação no modo de se conceber e qualificar as concessões184 praticamente se confunde com a mutação pela qual passou o contrato administrativo ao longo do tempo. “Através da concessão, passa a existir um verdadeiro
182 Como visto acima, o art. 4º da Lei nº 13.334/2016, ao definir os contratos passíveis de sujeição ao PPI elencou basicamente os contratos concessionais. Para além da definição legal, a complexidade desses ajustes
— os quais envolvem a disciplina das condições de prestação do objeto concedido; as relações entre concessionários, concedentes e usuários; e o plexo de relações com terceiros —, e a sua importância na construção da teoria dos contratos administrativos. Vide: MENEZES DE ALMEIDA, Fernando Dias. Contrato administrativo. São Paulo: Quartier Latin, 2012.p. 139-151. Justificam o recorte aqui realizado para fins de demonstração das mudanças de interpretação quanto à sua natureza jurídica.
183 GONÇALVES, Pedro. A concessão de serviços públicos. Coimbra: Almedina, 1999. p. 178.
184 A expressão concessão é um termo equívoco até mesmo se considerado apenas no âmbito do Direito Administrativo, havendo autores que lhe dão sentido restrito e outros, sentido amplíssimo (a abarcar, por exemplo, a concessão de títulos, cidadania ou vistos até a delegação de uma função ao particular). Fernando Vernalha Guimarães, por exemplo, chega a afirmar que o termo concessão isoladamente considerado não apresenta significação jurídica técnica. GUIMARÃES. Fernando Vernalha. Concessão de serviço público. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 22. No caso do presente estudo, o termo está sendo utilizado com o seu sentido intermediário, é dizer, “como sendo a outorga, a diversa pessoa, de um direito relativo a algo que seja inerente à Administração, quer se trate de um serviço — serviço público em sentido estrito ou outra atividade própria da Administração —, quer seja o uso ou exploração de um bem público.”. MENEZES DE ALMEIDA, Fernando Dias. Contrato administrativo. São Paulo: Quartier Latin, 2012. p. 262. No mesmo sentido, cf.
SUNDFELD, Carlos Ari. Guia jurídico das parcerias público-privadas. In: SUNDFELD, Carlos Ari. (Coord.)
Parcerias Público-Privadas. 2ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 35.
fenómeno de substituição da Administração por particulares na realização de tarefas de serviço público”185, e a depender do período ou da corrente interpretativa adotada, tal relação jurídica entre o particular e o Estado pode ser entendida como um ato unilateral, um contrato ou mesmo o resultado de ambos.
Essa, aliás, é a classificação adotada por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, que divide em três categorias fundamentais os entendimentos acerca da natureza jurídica das concessões: “1) doutrinas unilaterais; 2) doutrinas contratuais; e 3) doutrinas complexas”186.
A literatura comparada também dá conta da existência de mais de uma interpretação acerca da natureza das concessões. O autor português, Pedro Costa Gonçalves, por exemplo, classifica os entendimentos sobre esses ajustes da seguinte forma: (a) como “acto administrativo”; (b) como “fattispecie global, desdobrada em dois momentos jurídicos: acto administrativo de concessão seguido de contrato”; (c) como “contrato administrativo”; (d) como “acto misto (normativo e contratual)”; e (e) como “acto de natureza dupla, variável em função das pessoas a quem se aplicam as disposições nele inseridas” 187.
Ainda que sejam diversas as classificações adotadas — em três categorias, como se passa a discorrer a seguir, ou em cinco, como defendido pelo autor português —, essa multiplicidade de entendimentos denotam a ausência de consenso acerca da natureza jurídica das concessões a despeito da definição legal188. E as consequências dessa divergência de entendimentos não se reduzem ao âmbito acadêmico, tendo relevância prática sobre a postura da Administração nesses ajustes e sobre os direitos e obrigações reconhecidos ao particular.
A concessão concebida como um ato unilateral administrativo tem suas bases na própria passagem desse instituto do direito privado para o direito público. Quando se reconhece a natureza pública da concessão, a literatura passa a buscar enquadrá-la em uma forma típica da
185 ESTORNINHO, Maria João. Direito Europeu dos Contratos Públicos: um olhar português. Coimbra: Almedina, 2006. p. 128.
186 O autor alerta, todavia, que cada uma das categorias comporta teorias diversas a sustentar a natureza escolhida.
MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Natureza Jurídica da Concessão de Serviço Público. In: Revista da Faculdade de Direito de Porto Alegre. v. 2, p. 879, 1951.
187 GONÇALVES, Pedro. A concessão de serviços públicos. Coimbra: Almedina, 1999. p. 181-193.
Conquanto o autor tenha elencado duas categorias além daquelas apontadas pela classificação ora utilizada, a análise dos termos de cada uma delas indica que, ao fim e ao cabo, as classificações são muito semelhantes. Isso porque, o autor subdivide as teorias complexas em duas — “fattispecie global, desdobrada em dois momentos jurídicos, acto administrativo de concessão seguido de contrato” e “acto misto (normativo e contratual)” —, gerando uma categoria a mais. Além disso, quando o autor classifica a concessão de acordo com o seu ator, afasta-se das outras categorias que levam em conta o ato. Isso, representaria, na verdade, uma nova classificação, pelo elemento subjetivo.
188 Veja-se que, também em Portugal, a legislação considera a concessão um contrato. O instituto está expressamente elencado no artigo 11 do Código dos Contratos Públicos aprovado pelo Decreto-Lei nº 18/2008, alterado pelo Decreto-Lei nº 111/2017.
atuação administrativa, e, diante da supremacia da Administração, o ato unilateral passa a ser entendido como a melhor conformação189.
A concessão, assim, seria instituída por ato do Poder Concedente, sendo a vontade do concessionário ignorada ou, no máximo, entendida como complementar à manifestação exarada pela Administração. Como explica Floriano de Azevedo Marques Neto190:
a vertente unilateralista não concebe a possibilidade de a concessão depender de acordo de vontades. Essa linha doutrinária presume ser a concessão uma manifestação da autoridade e, portanto, não aceita que haja vinculação necessária entre a concessão e a manifestação de vontade do particular. Embora tal entendimento comporte vários diferentes matizes, em comum há o fato de os autores considerarem ser (i) secundária ou irrelevante a vontade do concessionário paro o perfazimento do ato concessório e (ii) a delegação ser ato unilateral e exclusivo de poder, não se assemelhando a uma relação negocial pois que o Poder Público não estaria vinculado juridicamente ao particular.
Dessas características não decorre apenas a constatação da unilateralidade do ato de concessão, mas, principalmente, uma posição de maior vulnerabilidade do particular. Se não há um acordo de vontades, o plexo de direitos do concessionário é bem reduzido, e da mesma forma que a vontade do Poder Público bastaria para se efetivar a concessão, também esta seria suficiente para a sua extinção.
A perspectiva oposta à unilateralidade do instituto é aquela que reconhece a sua natureza contratual. É dizer, a concessão “surge de um acôrdo entre o Estado e o particular, cujas vontades se integram como elementos necessários para que este acôrdo produza os seus
189 Como visto no capítulo anterior, especialmente no subitem 1.1.1, essa visão ganhou maior relevo dentre os doutrinadores alemães. Nesse sentido, Otto Mayer se manifestou sobre a natureza das concessões como atos unilaterais. MAYER, Otto. Derecho Administrativo Alemán. Vol. 4: Parte especial: las obligaciones especiales - 2ª ed. inalt. - Buenos Aires: Depalma, 1982. p. 162.
190 MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Concessões. 1ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 138. Interessante nesse ponto resgatar a visão defendida em 1968 pela doutrina pátria, de que a Administração ou celebraria contrato de natureza privada (cf. categoria infra da contratualidade) ou praticaria ato unilateral. Para Celso Seixas Ribeiro Bastos, se a questão envolve serviço público não se trataria de contrato, mas ato: “À luz desta, em nosso entender, desaparece a utilidade da noção de contrato administrativo. Isto porque, diante de uma convenção celebrada entre a Administração Pública e o particular, ou estaremos na presença de um acordo vinculante ao extremo, com todas as características de estabilidade e permanência próprias do Direito Privado; ou estaremos enfrentando uma situação em que a Administração detém poder de disposição sobre as cláusulas. Então, não estaríamos diante de um contrato. Trata-se, no caso, apenas de subsunção do particular a um regime legal ou estatutário. Com efeito, nesta última hipótese, o bem, ou interesse objeto da relação jurídica é ‘serviço público’ e, portanto, inegociável, pelo que nem mesmo a Administração poderia ‘negociá-lo’, através de um contrato.”. BASTOS, Celso Seixas Ribeiro. In: A concessão de Serviços públicos e os contratos administrativos. Revista de Direito Público- RDP. São Paulo: Revista dos Tribunais. n. 11, jan./mar. 1970. p. 191.
efeitos”191. A relação jurídica estabelecida entre a Administração e o parceiro privado dependeria, assim, da fusão de vontade de ambos — um pretendendo conceder e o outro aceitando as condições e querendo explorar o objeto — gerando obrigações e direitos recíprocos.
Essa, aliás, foi a classificação inaugural do instituto, quando este ainda não era reconhecido no âmbito do Direito Administrativo. Tal como já demonstrado nesse trabalho (cf. item 1.1.1), as primeiras concessões foram inicialmente celebradas como contratos de direito privado192. Isso porque, apesar do seu objeto público, entendia-se que, ao celebrar o contrato, o Estado atuaria desprovido do seu poder de império, o que afastaria a aplicação do regime público e atrairia a disciplina privada.
Desde o início do Século XX, contudo, a figura da concessão está incorporada ao Direito público. Assim, embora exista uma categoria que considere ser a concessão um contrato, esse entendimento não afasta a aplicação das regras públicas a essas parcerias193.
Na literatura pátria, essa é a posição adotada por Marcos Juruena Villela Souto194, segundo o qual:
As concessões são contratos de natureza tipicamente administrativa, através dos quais a Administração – poder concedente — transfere a um particular — concessionário
— a realização e exploração, por sua conta e risco de uma obra ou serviço público, cabendo este o direito de remunerar-se através da cobrança de uma tarifa, paga pelo usuário do serviço, sendo o valor fixado pelo concedente de acordo com a proposta vencedora da licitação (Lei nº 8.987/95).
191 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Natureza Jurídica da Concessão de Serviço Público. In: Revista da Faculdade de Direito de Porto Alegre. v. 2, p. 879, 1951. p. 884.
192 ESTORNINHO, Maria João. Direito Europeu dos Contratos Públicos: um olhar português. Coimbra: Almedina, 2006. p. 131.
193 O autor Pedro Costa Gonçalves alerta que houve recentes tentativas de parte da literatura italiana de recuperar a tese privatista dos contratos de concessão, sem obter, todavia, adesão significativa. Segundo o autor, “apareceram mais recentemente, em Itália, Autores a recuperar a tese da natureza privada dos actos constitutivos da relação de concessão: foi, primeiro, o caso de Aldo Bardusco e, já nos anos 80, de Marco D’Alberti, defensores de uma teoria pan-privatística de todos os contratos da Administração, incluindo, portanto, os contratos de concessão de serviços públicos.”. GONÇALVES, Pedro. A concessão de serviços públicos. Coimbra: Almedina, 1999. p. 180.
194 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo das concessões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 10. No mesmo sentido, pode-se citar Themístocles Brandão Cavalcanti, que em 1938, assim se manifestou: “A theoria da concessão como contracto de direito publico é a mais lógica e de acordo com a realidade. A natureza contratual da concessão se nos afigura manifesta porque a sua existência e obrigatoriedade decorre de uma dupla manifestação de vontade do poder concedente e do concessionário. É indispensável, assim, o acordo de vontades. Pouco importa que hajam clausulas obrigatórias, decorrentes de normas geraes e impessoais dictadas pela lei e que preexistem, e a ellas se acham subordinadas as autoridades administrativas na estipulaão das clausulas contractuaes.”. CAVALCANTI, Themístocles Brandão.
Instituições de Direito Administrativo Brasileiro - parte especial. 2ª ed, v. II, Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1938. p. 315.
Como se verá adiante, adota-se também no presente trabalho o entendimento de que a concessão é um contrato, ou seja, consubstancia relação jurídica bilateral decorrente de um acordo de vontades entre a Administração e o particular. E desse ajuste, decorrem, também, direitos e obrigações recíprocos, ainda que se reconheça a convivência com certas prerrogativas estatais.
Antes, todavia, não se pode deixar de tratar da última categoria mencionada, a que vê a concessão como um instituto jurídico complexo, envolvendo tanto um ato unilateral da Administração, como um contrato (são as chamadas teorias complexas).
Para os defensores desse entendimento — nas suas diferentes nuances195 —, a reunião do ato mais contrato seria capaz de conciliar as divergências entre as duas categorias anteriores. Assim, a concessão seria formada pela união de um ato unilateral do Poder Público, envolvendo a regulamentação do objeto concedido (o que estaria no âmbito do exercício das prerrogativas estatais), bem como por um negócio jurídico, o contrato, capaz de endereçar as questões de natureza puramente econômica do ajuste.
A respeito das concessões, foi essa a posição adotada por Celso Antônio Bandeira de Mello196:
A concessão é uma relação jurídica complexa, composta de um ato regulamentar do Estado que fixa unilateralmente condições de funcionamento, organização e modo de prestação de serviço, isto é, as condições, em que será oferecido aos usuários; de um ato-condição, por meio do qual o concessionário voluntariamente se insere debaixo
195 Embora seja possível reunir em uma categoria a defesa da concessão como ato mais contrato, existem diferentes modulações acerca da teoria bipartida. Alguns entendem que a concessão surge com o ato unilateral e apenas se aperfeiçoa, para efeitos de execução, com o contrato complementar. Para outros, a concessão só nasce com o contrato, mas que depende de um ato regulamentar anterior. Há, ainda, os defensores do ato- união, por meio do qual as partes acordam que o objeto será explorado conforme regulamento proveniente de ato unilateral do Poder Público, assegurado o equilíbrio econômico-financeiro por meio de contrato. Sobre essas concepções cf. MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Natureza Jurídica da Concessão de Serviço Público. In: Revista da Faculdade de Direito de Porto Alegre. v. 2, p. 879, 1951. p. 893-898.
196 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 33ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016.
p. 739. Veja-se que outros autores defendem a existência de um ato e um contrato quando se está diante de uma concessão, mas, como visto na nota acima, as teorias possuem nuances que as distinguem. Para Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, por exemplo, a Concessão é um ato-união “Poderá haver contrato tão somente quanto à equação econômico-financeira da concessão, como ato jurídico complementar e adjeto ao ato unilateral ou união da concessão”. MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direto administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 682. O professor Egon Bockmann Moreira, também defende a existência de um ato unilateral a compor a concessão, embora intimamente ligado ao contrato. Segundo o autor, “o ato de outorga, que a Lei Geral de Concessões denomina de delegação, é estruturalmente ligado ao contrato de concessão: este não existe sem aquele, que pode ser (ou não) expressamente consignado no texto contratual. A relação jurídica concessionária depende, portanto, da outorgada da execução do serviço público por meio de ato administrativo. Mas fato é que este ato representa apenas o instante inaugural de todas as relações dinâmicas a serem desenvolvidas no projeto concessionário.”. MOREIRA, Egon Bockmann. Direito das Concessões de serviço público: inteligência da Lei 8.987/1995: parte geral. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 93.
da situação jurídica objetiva estabelecida pelo Poder Público, e de contrato, por cuja via se garante a equação econômico-financeira, resguardando os legítimos objetivos de lucro do concessionário.
Nesse caso, os direitos dos contratados não serão reduzidos, como na corrente unilateralista, mas ficarão restritos à matéria apta a integrar o contrato. No mais — isto é, naquilo que for regulamentado por meio do ato administrativo — impera a vontade da Administração.
Diversamente dessa última categoria e do entendimento que enxerga a concessão como ato unilateral, entende-se nesse trabalho — como já adiantado acima — que as concessões são verdadeiros contratos, tanto por expressa disposição legal, como pela própria natureza do ajuste firmado com o particular. É dizer, não há ato unilateral na concessão, mas manifestação da vontade da Administração em contratar-conceder para obtenção de determinada finalidade pública e a vontade do particular de formar o vínculo e prestar o serviço ou realizar a obra pública197.
O caráter contratual do ajuste, como muito bem pontuado por Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, não se afasta sob os argumentos de (i) haver desigualdade entre as partes; (ii) inexistir autonomia de vontade na relação concessória; (iii) ser o objeto da concessão coisa fora do comércio; e, principalmente, (iv) não ser admissível à Administração sujeitar-se ao pactuado pelo prazo da concessão198.
A questão da desigualdade entre a Administração e o particular contratado e a sua irrelevância para a configuração da natureza contratual do ajuste já havia sido tratada nesse trabalho (cf. item 1.1.3). Como sustentado anteriormente, até mesmo no Direito Privado se admite que uma das partes tenha grau de proteção estatal mais elevado e, ainda assim, celebre contratos. Se não se entendesse dessa forma, não existiriam contratos de consumo, ou mesmo de trabalho.
Esse ponto, aliás, está intimamente relacionado ao contrato como expressão da autonomia da vontade e a suposta incompatibilidade com a relação concessória e os demais
197 Quando Mário Masagão, em 1933, defendeu a natureza contratual das concessões, tratou da vontade como ponto central da questão. Segundo o autor: “se os dois consentimentos manifestados cream direitos e deveres para as partes, se estas ficam, assim, vinculadas a relações jurídicas recíprocas, aparece, sem qualquer dúvida, um contrato. E é isso, precisamente, o que se dá na concessão. Por consequência, as vontades do concedente e do concessionário não permanecem isoladas, em negócios unilaterais distintos. Elas se fundem, em um contrato”. MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Natureza Jurídica da Concessão de Serviço Público. In: Revista da Faculdade de Direito de Porto Alegre. v. 2, p. 879, 1951. p. 78.
198 MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Concessões. 1ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 142.
ajustes firmados pela Administração. No novo contexto em que se insere a relação contratual no próprio Direito Privado — cuja admissão de partes desiguais é uma de suas vertentes —, a autonomia privada deixa de ser a sua expressão determinante. O contrato, então, “passa a ser uma estrutura de conteúdo complexo e híbrido, com disposições voluntárias e compulsórias, nas quais a composição dos interesses reflete o antagonismo social entre as categorias a que pertencem os contratantes”199.
Não há razão, portanto, para se afastar a contração do âmbito público buscando fundamento na ausência de autonomia. A Administração, quando resolve conceder determinado objeto para atingir finalidade pública, exerce uma opção reconhecida, inclusive, por lei. E tal escolha não configura um ato unilateral, como pretendem as teorias dualistas, do contrário toda escolha da administração pressuporia esse ato. Na verdade, essa escolha pode ser entendida como o momento que precede a aceitação pelo contratado — sucessão, aliás, também presente no Direito das obrigações, no qual a proposta precede o aceite.
Da mesma forma, o contratado não está obrigado a aceitar o objeto concedido, se o faz é porque expressa a sua vontade nesse sentido. Por esses motivos, a concessão se perfaz com a “manifestação recíproca de concessionário e concedente (ambos capazes para exarar validamente essa manifestação) tendo por objeto a oferta e a exploração da atividade pública”200, resultando em um contrato público.
Tampouco afasta o caráter contratual a alegação de que o objeto concedido seria coisa fora do comércio, simplesmente porque não é isso que ocorre. A Administração não transfere ao particular o objeto concedido, mas delega o seu exercício por prazo determinado201. Aliás, “se a concessão importasse em pôr no comércio coisas que estão fora dele, a sua impossibilidade jurídica tanto inexistiria na forma contratual como na unilateral”202.
Por último, não se sustenta a alegação de que o Poder Público não poderia se sujeitar ao particular durante a concessão. A uma porque essa posição reflete uma visão autoritária e até
199 GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 17.
200 MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Concessões. 1ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 144. 201 Como explica Marcello Caetano“A concessão implica transferência temporária do exercício dos direitos e poderes da pessoa coletiva de direito público necessários à gestão do serviço pelo concessionário. Não há
neste caso simples delegação de poderes mas verdadeira transferência de exercício: durante o prazo da concessão ou enquanto esta subsistir a titularidade dos direitos e poderes continua na entidade concedente, mas a faculdade de os exercer passa a ser exclusivamente do concessionário.”. CAETANO, Marcello. Manual de direito administrativo. t. II. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1970. p. 1017. Interessante notar que o autor entende que as concessões podem ser tanto “acto administrativo” — quando decorrentes da vontade da Administração aceita ou não pelo concessionário —, ou “contrato administrativo”, na hipótese de ser decorrente de negociação entre as partes, fruto de um livre acordo de vontades.
202 MASAGÃO, Mário. Natureza jurídica da concessão de serviço público. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva & Cia., 1933. p. 66.
mesmo anacrônica da Administração203. Em tempos de esforço para se afirmar a consensualidade no âmbito do Direito Público, falar em supremacia/sujeição seria um retrocesso. Há, ainda, uma razão jurídica relevante. A Administração está autorizada por lei a conceder e as cláusulas contratuais formam arcabouço jurídico que também vinculam a sua atuação.
A posição adotada quanto às concessões, reflete o que se vem afirmando no decorrer desse trabalho. Os ajustes que tem por finalidade a delegação de atividades materiais de interesse coletivo a um particular por longo prazo, envolvendo a realização de grandes investimentos ao longo desse tempo204, são contratos, tanto por expressa disposição legal, como pela sua própria natureza.
E isso não significa apenas afastar o entendimento acadêmico da unilateralidade, mas reconhecer a natureza contratual (complexa, incompleta e mutável — cf. item 2.2) quando da sua interpretação e aplicação prática. É preciso pensar nesses ajustes como verdadeiros contratos complexos e de longo prazo.
2.1.2. A interpretação dos contratos públicos e a posição de supremacia da Administração
– um paradigma a ser repensado
Se a premissa é verdadeira, ou seja, a Administração Pública contrata, resta saber se a sua posição como parceira/contratante também se verifica na prática. É dizer, o Poder Público quando firma esses ajustes atua como parte de uma relação contratual ou se posiciona como mero executor/prolator de um ato administrativo unilateral ao qual o particular deverá se submeter?
A resposta a essa indagação é ainda mais desafiadora do que se afirmar a natureza contratual dos ajustes de longo prazo. Isso porque, o enfrentamento do tema está intimamente
203 Esse entendimento reflete a posição adotada na origem do desenvolvimento da contratação pública, quando ainda se negava essa possibilidade. Como explica Fernando Dias Menezes de Almeida, tal argumentação fundamenta-se “sobretudo numa visão de Estado que ressaltava seu aspecto de superioridade — atributo da soberania estatal — em relação aos indivíduos. São corolários desta superioridade, de um lado, a ausência de isonomia entre eventuais vontades pública e privada contratantes; de outro, a impossibilidade de o Estado propriamente negociar seus interesse soberanos.”. MENEZES DE ALMEIDA, Fernando Dias. Contrato administrativo. São Paulo: Quartier Latin, 2012. p. 151.
204 Interessante notar que essa é a definição utilizada por Rafael Roque Garofano para as concessões em geral, o que reafirma a relação íntima entre as parcerias de longo prazo estudadas nesse trabalho e as concessões.
GAROFANO, Rafael Roque. Contratualidade administrativa: abrangência e complexidade do fenômeno contratual da administração pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 129.
relacionado com a visão de supremacia da Administração, traduzida, no âmbito dos contratos públicos, por meio das chamadas cláusulas exorbitantes.
Essas disposições, que asseguram à Administração prerrogativas para além daquelas reconhecidas ao parceiro privado, praticamente se confundem com a posição assumida pelo Poder Público nos contratos que firma. Se não se assegura, a priori e de forma indiscriminada, a possibilidade de a Administração alterar o contrato, sancionar o particular ou mesmo rescindir unilateralmente o ajuste, não se teria propriamente um contrato público.
Os ensinamentos de José Cretella Júnior205 (nos idos de 1981) denotam a associação natural entre os contratos administrativos, a superioridade da Administração e a existência dessas cláusulas:
‘Cláusulas de privilégio’, cláusulas de prerrogativas’, ‘cláusulas exorbitantes’ ou ‘cláusulas derrogatórias’ são as que permitem à Administração, ‘dentro do contrato’, inegável posição de supremacia, de desnível, verticalizando o Estado em relação ao particular contratante, mostrando ao intérprete que, ao contratar, a Administração ‘não desce’, ‘não se nivela’, mão se privatiza’, não abdica de sua potestade pública (‘puissance publique’), mas ao contrário, dirige o contratante, fiscaliza-lhe os atos, concede-lhe benefícios, aplica-lhe penalidades, baixa instruções, transfere-lhe alguns privilégios.
Veja-se que a natureza contratual pública aparece indissociável da posição assimétrica assumida pela Administração e dos poderes que dela decorrem. Trata-se de um verdadeiro dogma dessas contratações, uma relação de causa e efeito. É como se o contrato administrativo somente pudesse existir diante da condição ex ante privilegiada do Poder Público.
Essa característica se afigura tão importante no âmbito da formação da teoria dos contratos administrativos que fundamenta a própria dicotomia entre direito público e o direito privado. As cláusulas derrogatórias justificam o afastamento do regime contratual comum e
205 CRETELLA Jr., José. In: As cláusulas “de privilégio” nos contratos administrativos. Revista de Direito Público- RDP. São Paulo: Revista dos Tribunais. n. 76, p. 11-27. 1981. Veja-se que Themístocles Cavalcanti, já em 1938, trazia a noção de superioridade da Administração ao reconhecer a natureza contratual das concessões: “não podem mais subsistir as dúvidas até hoje existentes em doutrina quanto à natureza da concessão de serviço público. Não seria lícito pretender attribuir a taes contractos a natureza privada, quando o Estado nelles se reserva o direito de intervir em qualquer tempo na modificação posterior de obrigações assumidas”. CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Instituições de Direito Administrativo Brasileiro - parte especial. 2ª ed, v. II, Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1938. p. 319.
sustentam o regime especial das contratações administrativas206. Nos dizeres de Sabino Cassese207:
A outorga à Administração de poderes exorbitantes faz com que o direito administrativo seja um direito especial, diverso do direito privado, porque fundado sobre uma radical desigualdade, unilateral e singular. E conduzirá à busca de espécies diferentes de propriedade, contratos e responsabilidade, próprias deste direito e separadas do direito privado.
O direito administrativo abandonava, assim, o domínio do direito privado que, até então, lhe servia de padrão, constituindo-se em um sistema independente de regras e princípios, onde a contratualidade e o consenso eram limitados pela presença de um direito de maior peso. Formava-se, assim, a dicotomia direito administrativo/direito civil.
Apesar de o autor italiano ter apontado tal característica como própria do Direito Administrativo do fim do século XIX — e os ensinamentos de Cretella Júnior datarem do século passado — a posição superior do contratante público é confirmada, ainda hoje, pela interpretação que a doutrina normalmente confere a esses ajustes. A leitura dogmática, fundamentada na literatura francesa de viés estrutural, do puissance publique, tende a colocar a Administração em posição mais favorável pelo simples fato de ser Administração.
206 Note-se que as cláusulas exorbitantes são, inclusive, utilizadas para justificar a distinção tradicionalmente feita pela doutrina entre contratos administrativos e contratos privados da Administração ou contratos semipúblicos. É dizer, seriam contratos administrativos àqueles nos quais estariam necessariamente presentes as prerrogativas estatais (ainda que implicitamente), o que não se verificaria nos chamados contratos privados firmados pelo Poder Público, nos quais, em regra, essas cláusulas derrogatórias não estariam presentes, salvo se expressamente previstas. Reflexo dessa noção — quase que de causa e efeito entre contratos administrativos e prerrogativas estatais — pode ser encontrado na edição da Lei nº 13.303/2016, conhecida como a Lei das Estatais. Ao regulamentar os contratos firmados pelas empresas públicas, sociedades de economia mista e subsidiárias, a referida lei, na tentativa de afastar a aplicação das cláusulas exorbitantes, afirmou expressamente a regência das relações pelo direito privado (art. 68). A crítica a essa separação entre os “tipos” de contratos firmados pela Administração pode ser constatada no seguinte trecho dos ensinamentos de Fernando Dias Menezes de Almeida: “a referência mais genérica há de ser a contrato como categoria geral do Direito, enquanto as referências específicas devem considerar todas as gradações possíveis de incidência de um regime publicístico, até, no limite mínimo, ante a ausência de prerrogativas autoexecutórias, chegar-se a um regime privado”. MENEZES DE ALMEIDA, Fernando Dias. A distinção entre “público” e “privado” aplicado aos contratos celebrados pela Administração. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela (Org.). Direito Privado Administrativo. São Paulo: Atlas, 2013. p. 245-246.
207 CASESSE, Sabino. As transformações do direito administrativo do século XIX ao XXI. Belo Horizonte: Interesse Público, v. 5, n. 24, mar. 2004. p. 17. O trecho transcrito apresenta, de acordo com os ensinamentos do autor, uma das características do direito administrativo do fim do século XIX. Além da separação entre direito público e privado, o autor também identifica como características essenciais desse período: a nacionalidade, o interesse público que se impõe ao interesse particular, a centralidade (direito “governativo”) e a separação entre administração e justiça. Como se verá adiante, o autor discorre sobre as transformações pelas quais essas características vêm passando, o que reflete na própria mudança do direito administrativo.
Como constata Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, a assimetria está tão vinculada à noção de Administração Pública que “entre dois polos, o direito administrativo penderá para a autoridade, será por ela apropriado”208. Isso significa que, mesmo diante de uma relação contratual, a tendência será dar mais atenção às prerrogativas estatais, aos seus privilégios. Ignora-se, muitas vezes sem qualquer justificativa, a bilateralidade209 do acordo a favor da contratante público.
É como se a leitura dos contratos públicos — inobstante as transformações pelas quais vem passando o Direito Administrativo —, fosse feita através da lente original utilizada pela doutrina pátria desde a sua formação, considerando como característica essencial a presença de privilégios decorrentes da “participação da Administração com supremacia de poder”210. “Mudam os tempos, mudam as finalidades, mas permanece a eterna resistência da doutrina brasileira (com claríssimos reflexos na jurisprudência e na atuação dos órgãos de controle) em mudar também”211.
Esquece-se, todavia, que não existe “almoço grátis”, e que as cláusulas exorbitantes — e sua instabilidade inerente — poderão se traduzir em custos adicionais aos contratos212. Com isso, o que era para ser algo positivo, uma forma de assegurar certa flexibilidade para a atuação administrativa, pode vir a se configurar, de algum modo, um fator prejudicial desde a formação da relação contratual.
Foi por esse motivo, aliás, que se revisitou a teoria clássica dos contratos públicos no capítulo anterior desse trabalho. O esforço feito linhas acima buscou exatamente desmistificar certos paradigmas das contratações públicas, como o desequilíbrio inerente entre o contratante público e o privado. A intenção — que vem a se confirmar nesse ponto do estudo — foi demonstrar que essa assimetria na relação não faz parte da substância desses ajustes, não está na sua essência, e como tal pode ser reavaliada diante do caso concreto.
208 MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. A bipolaridade do Direito Administrativo e a sua superação. In: Contratos Públicos e Direito Administrativo. SUNDFELD, Carlos Ari; JURKSAITIS, Guilherme Jardim. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 379.
209 Bilateralidade aqui entendida não como o número de partes envolvidas (os contratos são no mínimo formados por duas pessoas), mas como uma relação que transfere mutuamente direitos e obrigações entre as partes.
210 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 197.
211 SCHIRATO, Vitor Rhein. Concessões de serviços públicos e investimentos em infraestrutura no Brasil: espetáculo ou realidade? In: SUNDFELD, Carlos Ari; JURKSAITIS, Guilherme Jardim. Contratos Públicos e Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 143.
212 Como claramente alertou Marcos Juruena Villela Souto: “Trata-se de opção de política legislativa, não sendo indispensável que para todo e qualquer contrato a Administração faça uso de prerrogativas; no entanto, a simples existência dessas prerrogativas cria um custo para o contratante, tendo em vista que o risco para o seu exercício pode afetar a economia do contrato.”. SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo contratual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 277.
É preciso, de fato, entender o tratamento dogmático dado no Brasil aos fundamentos teóricos incorporados da doutrina francesa para, então, repensá-los. A importância excessiva que se confere às prerrogativas da Administração e a sua associação à ideia de autoridade configuram-se pontos a serem explorados na busca por alternativas ao modo de se interpretar os contratos públicos.
As prerrogativas não devem ser associadas a um sentido negativo de privilégio ou a um salvo conduto ao incumprimento contratual pelo Poder Público. A sua interpretação, e, consequentemente, a sua aplicação podem ser identificadas como uma característica comum do Direito Público. A utilização das cláusulas, assim, decorreria naturalmente da atuação administrativa e não funcionaria como o reflexo de uma face autoritária do Poder estatal.
Como destacado por Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernandez, o problema não estaria em reconhecer singularidade ou exorbitância nas relações firmadas pela Administração, desde que adotadas sem “dramatismos” ou como forma radical de se distanciar do Direito privado. Essas prerrogativas públicas deveriam ser entendidas como meras modulações contratuais, a serem inseridas sempre que justificadamente necessárias213.
De fato, como já se teve oportunidade de verificar, a possibilidade de alteração unilateral, de aplicação de sanções ou rescisão dos contratos decorre da necessidade de se conferir, em determinadas situações, maior flexibilidade à atuação estatal. E isso não se pode perder de vista.
O alerta feito por Fernando Dias Menezes de Almeida214, ao tratar das prerrogativas contratuais da Administração215, é providencial nesse ponto:
Criou-se no Brasil, sobretudo na mentalidade da Administração e seus agentes, a ideia
— ou, talvez, o pretexto — de que o reforço do poder da autoridade pública é sinônimo de garantia de respeito ao interesse público.
213 Nas palavras dos autores: “En el Derecho Administrativo, como derecho proprio de las Administraciones Públicas en cuanto sujetos, se modulan las instituciones jurídicas generales conforme a las exigencias de desenvolvimiento propias de tales sujetos, como ya nos consta. El caso del contrato no es el único de tales sujetos, como ya nos consta. El caso del contrato no es el único, supuesto lo cual el problema no ha de plantearse em términos de singularidades sustantividad o exorbitancia, sino, más sencillamente, sin dramatismos, inquiriendo cuáles son esas modulaciones o variantes que introduce la presencia subjetiva de la Administración sobre la abstracta intuición contractual”. GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNANDEZ, Tomás Ramon. Curso de Derecho Administrativo. I. 12ª ed. Madrid: Civitas Ediciones, S.L., 2005. p. 288.
214 MENEZES DE ALMEIDA, Fernando Dias. Contrato administrativo. São Paulo: Quartier Latin, 2012. p. 230.
215 O autor é, inclusive, refratário à expressão cláusulas exorbitantes — chega a utilizar a expressão entre aspas. Para Fernando Menezes não haveria exorbitância, mas apenas a caracterização de um regime específico.
MENEZES DE ALMEIDA, Fernando Dias. Contrato administrativo. São Paulo: Quartier Latin, 2012. p. 218.
Esta mentalidade pode ser um dos principais fatores a explicar a dificuldade de se mudarem os dogmas em matéria de contratos administrativos que, desde algumas décadas, encontram-se cristalizados na legislação, reiterados na jurisprudência e defendidos por importante parte da doutrina.
A interpretação de viés autoritário e de superioridade indiscriminada da Administração não parece fazer sentido diante da complexidade das relações que atualmente envolvem o Poder Público216. A tendência à unilateralidade — entendida aqui como imposição — da atuação estatal, não acompanha o estado atual de um Direito Administrativo voltado para o consenso e negociação.
Interessante notar, inclusive, que a orientação no sentido do autoritarismo já não fazia sentido quando da interpretação dos atos administrativos (quanto mais diante de uma relação bilateral). No final do século passado, Vasco Pereira da Silva, ao anunciar a busca do acto administrativo perdido, já dava conta da inviabilidade de manutenção de uma visão clássica de ato como expressão da exorbitância da Administração. Nos dizeres do autor português217:
O acto administrativo, mais do que a manifestação do poder de uma Administração toda-poderosa, tende antes a surgir em nossos dias, como um instrumento da função administrativa, que é utilizado pelas diferentes administrações, a fim de permitir a realização das multifuncionais tarefas públicas. E o poder, que persiste no conceito de acto administrativo, não é já uma supremacia fáctica mas um poder jurídico que não tem nada que ver com a execução forçosa (a qual, deixou de ser uma característica essencial do acto, para passar a ser um simples efeito possível deste) antes diz respeito à unilateralidade (esta sim, elemento caracterizador essencial do acto administrativo). Unilateralidade que nada tem de “exorbitante”, pois, trata-se de um poder jurídico que pode igualmente existir no Direito Privado.
Naquela época, aliás, a celebração de ajustes pelo Poder Público foi entendida como um exemplo de avanço na superação dessa perspectiva impositiva. Para Vasco “a contractualização
216 Ao tratar das linhas de transformação das matrizes clássicas do direito público, Odete Medauar, em seu Direito administrativo em evolução, elencou um conjunto de fatores que propiciou um novo modo de atuar da Administração, uma forma consensual/concertada. Segundo a autora, poderiam ser apontados “a afirmação pluralista, a heterogeneidade de interesses detectados numa sociedade complexa; a maior proximidade entre Estado e sociedade, portanto, entre Administração e sociedade”, assim como a crise da lei formal, “ao processo de deregulation, à emersão de interesses metaindividuais, à exigência de racionalidade, modernização e simplificação da atividade administrativa, assim como de maior eficiência e produtividade, alcançados por de modo mais fácil quando há consenso sobre o teor das decisões”. MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 210.
217 SILVA, Vasco Pereira da. 1961. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 1996. p. 492.
da atividade administrativa, nos nossos dias [1996], é de tal forma relevante que há mesmo que falar no surgimento de uma Administração concertada”218. Passados mais de 20 anos da sua obra, contudo, pelo menos no direito brasileiro, o viés autoritário não só permanece plenamente presente na atuação da Administração, como foi estendido como norte na interpretação das relações contratuais públicas. Há praticamente uma deferência acrítica à posição superior do Poder Público.
A necessidade de desfazer essa visão cristalizada de uma atuação forjada pelo autoritarismo gratuito nunca esteve tão em evidência. A crise geral — notadamente econômica
— a qual o Brasil vem passando intensifica a necessidade de se repensar a atuação estatal. Em um período em que recursos já escassos se dissipam, paradigmas doutrinariamente criados precisam ser revisitados se, sob uma perspectiva de eficiência da atuação estatal, não mais se justificam219.
Quando o contrato administrativo se torna inviável ou seus atores perdem capacidade de investimento, as medidas a serem tomadas pela Administração não podem ser apenas àquelas estabelecidas pela lógica binária imposta pela superioridade estatal. É preciso justificar racionalmente a escolha pública. Por que relicitar? Por que não, diante do inadimplemento do parceiro privado, iniciar o procedimento de caducidade até então previsto? Por que encampar e não prorrogar o prazo antecipadamente em nome de novos investimentos? São perguntas que, hoje, não aceitam uma resposta motivada pela simples existência de uma prerrogativa estatal.
A consensualidade, a negociação e a eficiência, reputadas por Diogo de Figueiredo Moreira Neto como novos atributos da atuação administrativa, a ganhar espaço da supremacia, imposição e unilateralidade, precisam levar os operadores à novas discussões220. É necessário
218 SILVA, Vasco Pereira da. 1961. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 1996. p. 105.
219 A questão da preocupação com a utilização de recursos escassos pela Administração, e seu necessário endereçamento jurídico podem ser encontrados na seguinte passagem do artigo publicado pelo professor Egon Bockmann Moreira: “A administração precisa tomar decisões reciprocamente excludentes quanto à alocação de recursos: o dinheiro gasto em determinado projeto de interesse público simplesmente não pode ser gastado em qualquer outro. Mais: existem várias técnicas para se tentar descobrir qual o valor do dinheiro e dos investimentos públicos (é melhor gastar mais hoje e preservar o meio ambiente para as futuras gerações, pois é mais eficiente ter projetos sustentáveis). A liberdade de escolha pública vem qualificada pelas respectivas responsabilidades socioeconômicas, presentes e futuras. Não há — e nem pode haver — escolhas irresponsáveis no setor público da economia”. MOREIRA, Egon Bockmann. Contratos Administrativos de longo prazo: a lógica do seu equilíbrio econômico-financeiro. In: MOREIRA, Egon Bockmann (Coord.).
Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno: a lógica das concessões e parcerias público privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 79-80.
220 São claras as lições do autor sobre esse novo momento do Direito Administrativo “Como reflexo das novas relações juspolíticas entre Estado e sociedade, a consensualidade passa a ser uma forma privilegiada de administrar interesses públicos nas relações entre administração e administrados, como marca de muitos novos institutos, em que a flexibilidade, a negociação, o uso criterioso da discricionariedade, o exercício da
transferir o eixo do debate, deslocando-o do fundamento dessas cláusulas, para o estudo de quando e como utilizá-las.
Assim, se um dia, a preocupação esteve pautada em saber o que fundamentaria essa assimetria — se imperatividade, a existência de um serviço público ou, mais recentemente, o interesse público —, o presente trabalho se propõe a dar um passo no sentido de se discutir o conteúdo dessa justificativa.
Mas, veja-se, o alerta feito no item 1.1.3 não foi esquecido. A proposta está longe de afastar as prerrogativas estatais. Elas existem e fazem parte do Direito Público a que estão submetidas as contratações administrativas. A questão, portanto, não se coloca nas prerrogativas em si, mas em como os operadores e a própria Administração interpretam e aplicam essas cláusulas. Os ensinamentos da professora Patrícia Baptista resumem de forma exemplar esse ponto221:
Mesmo abdicando da unilateralidade e da imperatividade, a Administração, em busca de cooperação, não pode se despir do seu papel de tutora do interesse público e renunciar às prerrogativas que lhes são conferidas para esse fim. Em outras palavras, mesmo na busca do consenso a Administração não chega ao ponto de ficar em absoluta posição de igualdade com o particular. É por isso que nas relações administrativas consensuais deve subsistir, por exemplo, a possibilidade do exercício da autotutela administrativa.
Assim, quando se fala em Direito Administrativo que admite a consensualidade, estimula a negociação e abranda a noção de superioridade indiscriminada da Administração, a
ponderação entre interesses, valores e direitos e, sobretudo, a motivação dão a tônica pragmática e democrática do pós-modernismo”. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O futuro das cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos. In: Direito administrativo e seus novos paradigmas. ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo (Coords.). Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 555. Sem dúvida, essa nova forma de ver o Direito Administrativo e a própria Administração decorre também dos influxos da Constituição. Como explica Luis Roberto Barroso: “Mais decisivo do que tudo para a constitucionalização do Direito Administrativo foi a incidência no seu domínio dos princípios constitucionais
— não apenas específicos, mas sobretudo os de caráter geral, que se irradiam por todo o sistema jurídico. Também aqui, a partir da centralidade da dignidade humana e da preservação dos direitos fundamentais, alterou-se a qualidade das relações entre Administração e administrado, com a superação ou reformulação de paradigmas tradicionais. BARROSO, Luís Roberto. A constitucionalização do Direito Administrativo. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano. (Coord.). Direito Administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 49.
221 BAPTISTA, Patrícia. Transformações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 277. No mesmo sentido são as lições de Alexandre dos Santos Aragão que, citando a autora francesa Helène Hoepffner deixou claro que, embora seja a exorbitância a característica marcante do contrato administrativo, ele continua sendo, antes de qualquer coisa, um contrato. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Revisão tarifária substitutiva da modelagem econômica licitada. In: MOREIRA, Egon Bockmann (Coord.). Contratos administrativos, equilíbrio econômico-financeiro e a taxa interna de retorno: a lógica das concessões e parcerias público- privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 40.
consequência não será a fuga para o Direito Privado e o fim das fronteiras entre os dois campos222. Trata-se, na verdade, de enxergar o Direito Público — com todas as suas vicissitudes, inclusive as prerrogativas — sob uma perspectiva diversa.
Como explica Sabino Casesse, “a supremacia do direito administrativo encontra-se erodida”, é dizer “a supremacia e a unilateralidade foram substituídas pelo consenso e pela bilateralidade” assim como o “cidadão não é mais colocado em posição de subordinação”. Para o autor, contudo, essa evolução não reduz o poder administrativo a uma entidade de direito comum, também na administração consensual perdura uma assimetria de fundo entre o poder administrativo e particulares223.
No mesmo sentido é a interessante constatação feita por Luís S. Cabral de Moncada, segundo o qual, o contrato hoje não é apenas um meio normal de exercício de soberania, como já ocorria com o tradicional contrato administrativo em que o Estado não prescinde dos seus poderes unilaterais, mas transforma-se no meio de associar o particular à própria decisão administrativa, verdadeiro interlocutor da Administração224.
Bem vistas as coisas, é preciso saber, então, como lidar com essa assimetria. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao tratar especificamente do futuro das cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos, apresentou duas propostas em termos de flexibilização da lógica imperativa anterior: a adoção das cláusulas discricionárias e a teoria da dupla motivação. Segundo o autor, que enxerga as prerrogativas como verdadeiras “modulações”, seria possível
222 Para uma análise aprofundada sobre a aproximação entre o Direito Público e o Direito Privado cf. ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da actividade administrativa de direito privado da Administração pública. Livraria Almedina: Coimbra, 1996. A autora reconhece o estreitamento entre os campos, mas critica a possibilidade de extinção dessa separação. Nas palavras de Maria João, “pode dizer-se que houve um fenómeno <compenetração> destes dois domínios e parece-me inevitável reconhecer que estes movimentos de <aproximação e inter-ligação dos dois domínios> levam a uma situação de <miscelânea> que acaba por dificultar a distinção que, de qualquer modo, há muito já era polémica. No entanto, talvez não valha a pena caír na tentação de dramatizar em excesso esta questão, até porque a necessidade de uma distinção não deve ser julgada apenas em função dos casos de fronteira, mais difíceis, mas antes também pelos casos normais, em relação aos quais não se levantam dificuldades de maior”. Mais adiante a autora aponta para o risco de se extinguirem as fronteiras entre os direitos público e privados, pois, sob a sua perspectiva seria possível à Administração libertar-se da vinculação aos direitos fundamentais e “dar a volta” à lei e a Constituição. ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da actividade administrativa de direito privado da Administração pública. Livraria Almedina: Coimbra, 1996. p. 157-160. Diversamente da autora, contudo, entende-se que a ausência de barreiras entre os dois campos não levaria ao necessário afastamento dos direitos fundamentais pela Administração, já que a estes também se submetem as relações privadas. O maior risco que se verifica, pois, é a impossibilidade de, diante de um caso concreto e justificado, a Administração não estar dotada de flexibilidade para atuar de forma autoexecutória.
223 CASESSE, Sabino. As transformações do direito administrativo do século XIX ao XXI. Belo Horizonte: Interesse Público, v. 5, n. 24, mar. 2004. p. 19.
224 MONCADA, Luiz S. Cabral de. Direito Económico. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2018. p. 61.
ao legislador delegar ao administrador público a possibilidade de, diante do caso concreto, avaliar a conveniência e oportunidade do emprego dessas cláusulas.
A essa imprescindível avaliação discricionária, se conjugaria a necessidade de dupla motivação. Em nome da legitimidade e segurança jurídica, a Administração deveria justificar tanto a previsão em tese da exorbitância, como a sua aplicação prática. Com isso, ainda na visão do autor, se configuraria uma perspectiva mais pragmática e democrática da atuação administrativa pós-moderna225.
De fato, faz sentido transferir a tônica das cláusulas exorbitantes da imperatividade para a motivação. Quando se propõe a passagem da perspectiva impositiva para a negociada, exigir a justificativa das escolhas públicas se mostra uma consequência lógica. A questão que se coloca, contudo, é saber o fundamento que a Administração utilizará para motivar a sua opção entre a negociação ou o uso das prerrogativas. E nesse ponto, a menção genérica e abstrata à existência de um interesse público226 (superior) não se mostra suficiente.
A começar pela dificílima tarefa de defini-lo. Ainda que se restrinja a pesquisa ao seu conceito jurídico — deixando-se de lado a sua concepção sociológica, filosófica ou mesmo política —, o interesse público é dotado de uma indeterminabilidade que lhe é peculiar. Há muito já identificado como interesse geral, como interesse da coletividade e utilizado como fundamento da supremacia estatal227, encontrar a sua definição em uma sociedade policêntrica e complexa como a atual, torna-se uma tarefa cada dia mais desafiadora.
225 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O futuro das cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos. In: Direito administrativo e seus novos paradigmas. ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo (Coords.). Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 555-559.
226 Destaca-se que, se considerada a classificação tradicional influenciada pela doutrina italiana, o presente ponto do trabalho trata do interesse público primário, e não do interesse público secundário, entendido como o interesse da pessoa jurídica pública. Na classificação de Renato Alessi, “Estos intereses públicos, colectivos, cuya satisfacción está a cargo de la Administración, non son simplemente el interés de la Administración entendido como aparato organizativo, sino lo que se ha llamado el interés colectivo primario, formado por el conjunto de intereses individuales preponderantes en una determinada organización jurídica de la colectividad, mientras que el interés del aparato (si es que puede concebirse un interés del aparato unitariamente considerado) sería simplemente uno de los intereses secundarios”. ALESSI, Renato. Instituciones de derecho administrativo. t. I. Barcelona: Bosch, 1970. p. 184-185. Como se verá adiante, contudo, o caráter mutante e variado da sociedade atual tornou mais complexa a definição do chamado “interesse público primário”, podendo-se, inclusive, reconhecer uma releitura e até ampliação do conceito proposto pelo autor italiano.
227 Surgiram, inclusive, vozes na doutrina buscando desconstruir o princípio da supremacia do interesse público, associando-o a um Direito Administrativo autoritário a ser ultrapassado. Sobre o tema, confira-se: ÁVILA, Humberto Bergman. Repensando o "Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular". In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o Princípio da Supremacia do Interesse Público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 171-215. Diversamente desse entendimento, perfilha-se aqui às ideias defendidas por Alice Gonzales Borges, para quem não seria o caso de desconstruir, mas de repensar o instituto diante de novas perspectivas. BORGES, Alice Gonzalez. Supremacia do interesse público: desconstrução ou reconstrução. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. Bahia: nº 26, mai./jun./jul. 2001, Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br. Acesso em: 20 out. 2018.