The debtor’s legal position face to the factoring agreement
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A POSIÇÃO JURÍDICA DO DEVEDOR FACE AO CONTRATO DE FACTORING∗
The debtor’s legal position face to the factoring agreement
Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx
Professor de Direito Comercial Universidade Lusófona do Porto - Portugal xxxxx_xxxxx@xxxxxxx.xxx
RESUMEN: Tendo por base as características específicas do contrato de factoring, a sua ligação estreita com a cessão de créditos e as suas diferentes funções, este escrito visa desenvolver algumas reflexões sobre as suas repercussões na posição jurídica do devedor cedido. Como poderá a posição jurídica do devedor ser alterada devido aos atos por si adotados? Qual a relevância dos fins específicos do factoring para a definição da posição jurídica do devedor?
PALABRAS CLAVE: factoring; financiamento; cessão de créditos; devedor.
ABSTRACT: Following the specific characteristics of the factoring agreement, its close link with the assignment of credit claims and their different functions, this paper seeks to approach their implications for the debtor’s legal position. How can the debtor’s legal position be changed due to the acts adopted by himself? What is the relevance of the specific purposes of factoring for the definition of the debtor’s legal position?
KEY WORDS: factoring; financing; credit claims assignment; debtor.
Fecha de entrega: 29/12/2016 Fecha de aceptación: 09/01/2017.
* Este trabalho é o resultado de uma investigação realizada no âmbito de um dos seminários do Curso de Doutoramento em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Sumario: I. Notas introdutórias.- II. O contrato de factoring: natureza e modalidades.- III. As cláusulas de incedibilidade entre credor (aderente) e devedor.- IV. Os deveres de conduta do devedor face ao contrato de factoring.- V. A oponibilidade de meios de defesa por parte do devedor.- VI. A renúncia do devedor aos meios de defesa.
I. Notas Introdutórias.
O contrato de factoring tem sido abordado, maioritariamente, no domínio da doutrina sob uma perspetiva de vínculo contratual que une um determinado fornecedor de bens ou serviços (credor/cedente/aderente) a um determinado prestador de múltiplos serviços (credor adquirente/cessionário/factor). Intrinsecamente ligado a este vínculo contratual surge um outro, que une o fornecedor de bens ou serviços a um determinado comprador (devedor/devedor cedido). Não obstante esta ligação, o princípio da relatividade dos contratos impõe que um determinado contrato não produza efeitos relativamente a terceiros e, por isso, poucas razões aconselham a uma abordagem do contrato de factoring sem este referente.
Ademais, o contrato de factoring surge como um importante instrumento para fazer face a necessidades sentidas pelos operadores do mercado de encontrarem soluções inovadoras e alternativas aos clássicos meios de obtenção de financiamento. Esta necessidade é particularmente visível no domínio das pequenas e médias empresas que, para competirem num mercado cada vez mais globalizado, têm de se socorrer de instrumentos de financiamento que lhes permitam a liquidez necessária. O contrato de factoring surge, por isso, com características e funções muito diferentes dos institutos jurídicos tradicionais que lhe estão inerentes, nomeadamente, a cessão de créditos.
No contrato de factoring, o fornecedor de bens ou serviços, assente na autonomia da sua vontade, opta por transmitir um dos seus ativos patrimoniais não para ter, em primeira linha, lucros imediatos, mas sim para obter um conjunto de serviços que lhe permitirão maior eficiência na gestão e financiamento da sua atividade.
Com este pano de fundo, a transmissão dos créditos operada por via do contrato de factoring surge sem necessidade de consentimento por parte do devedor cedido, fazendo a ordem jurídica corresponder a tal facto um comportamento lícito, apesar de constituir uma interferência unilateral na esfera jurídica alheia. Esta desnecessidade de consentimento por parte do devedor cedido baseia-se na ideia fundamental de que a sua posição jurídica não fica afetada pela transmissão verificada. Se o devedor tinha de cumprir com a sua obrigação de pagamento perante um determinado sujeito, após a cessão do seu crédito passa a ter de a cumprir perante um outro sujeito nos mesmos moldes.
No entanto, a definição da posição do devedor não deve ser totalmente alheia à verificação da transmissão do crédito para outro sujeito. O facto de o devedor não
estabelecer qualquer relação jurídica com o cessionário (factor) não pode significar que não tenha de coadunar a sua conduta com essa nova realidade.
O contrato de factoring pode servir de base a cessões de créditos presentes e futuros, fazendo corresponder à relação estabelecida entre aderente e factor uma certa continuidade na “relação” entre este e o devedor.
Destarte, tendo por base as características especificas do contrato de factoring, a sua ligação estreita com a cessão de créditos e as suas diferentes funções, tentaremos desenvolver algumas reflexões sobre as suas repercussões na posição jurídica do devedor cedido, na forma como esta pode sofrer determinadas mutações por via de comportamento por parte do próprio devedor ou para melhor atingir os objetivos para os quais foi concebido o contrato de factoring.
II. O contrato de factoring: natureza e modalidades.
O factoring tem já uma longa história no domínio do comércio1. Ao longo dos anos tem sido vista como uma atividade financeira desenvolvida por empresas especializadas na cobrança e gestão de créditos, concessão de financiamento e garantia do risco de incumprimento por parte dos devedores. A importância desta atividade2 não foi, no entanto, acompanhada pelo ordenamento jurídico português, que dedica apenas escassas normas do Decreto-lei n.º 171/95, de 18 de julho à definição de contrato de factoring. A esta escassez de regime têm respondido a doutrina e jurisprudência com formulações capazes de orientar a atividade do intérprete. De tal forma que este utiliza essas linhas orientadoras para prover a todo o conjunto de questões que, em alguns casos, implicaria uma reformulação dessas mesmas linhas, por forma a melhor definir o seu iter interpretativo.
Por ora, centremo-nos nessas linhas orientadoras que nos são fornecidas pela doutrina e pela jurisprudência. A primeira tem sido fértil a definir o contrato de factoring como um contrato por via do qual um determinado sujeito “transfere ou se obriga a transferir ao outro contraente –o factor – a totalidade ou parte dos seus créditos comerciais a curto
1 A evolução da figura em termos económicos e jurídicos, não se podendo considerar uma questão de menor importância, será deixada de parte neste trabalho por necessidade de colocar o enfoque no reduto circunscrito à partida. Não obstante, sobre esta questão vejam-se algumas referências em XXXXX XXXXXX, R.: Escritos sobre leasing e factoring, Principia, 2001, p. 96 ss; MENEZES CORDEIRO, A.: Da cessão financeira (factoring), Lisboa: Lex – Edições Jurídicas, 1994, p. 25 ss.
2 Segundo dados da FCI – Factors Chain International, o mercado global do factoring atingiu, no ano de dois mil e quinze, 2,3 biliões de euros. O mercado europeu continua a ser o que maior volume gera (1,5 biliões de euros), tendo crescido 6% relativamente ao ano de dois mil e catorze. Em Portugal, o volume de negócio aumentou 7%, representando no ano de dois mil e quinze 22.921 milhões de euros. Em Espanha, o volume de negócio aumentou 2%, representando no ano de dois mil e quinze 115.220 milhões de euros. Dados disponíveis em xxx.xxx.xx.
prazo […], presentes ou futuros, resultantes da venda ou prestação de serviços, da totalidade ou de parte (indicada no contrato) dos seus clientes.”3.
Por seu turno, a jurisprudência, não se desligando em absoluto das orientações doutrinais, tem sido impelida a formular definições que melhor se adaptem às circunstâncias do caso concreto4.
Apesar das diferentes formulações verificadas na doutrina e na jurisprudência (ou entre ambas) é comum considerar-se que o contrato de factoring utiliza a cessão de créditos como instrumento para conformar o essencial do seu objeto5. No entanto, o conteúdo desta relação jurídica é mais complexo, pois a prática vem determinando o acesso a financiamento por parte de pequenas e médias empresas como uma importante função do contrato de factoring, em alternativa ao crédito bancário. Ora, tendemos a considerar que a abordagem de um contrato como o de factoring (cuja noção não tem contornos perfeitamente delimitados) não pode ser alheia aos elementos que vão sendo fornecidos pela prática comercial6.
A esta dificuldade de definição da natureza do contrato de factoring não será alheio o facto de se apresentarem várias modalidades de factoring7. De entre essas modalidades, interessa uma especial referência ao factoring com recurso por contraposição ao factoring sem recurso e ao factoring aberto por contraposição factoring fechado.
No factoring com recurso, o factor não assume o risco de incumprimento por parte do terceiro devedor, quer porque fica com a faculdade de retransmitir o crédito ao aderente,
3 D. P. XXXXXXX XXXXXXXXXXX, L. M.: Dos contratos de cessão financeira (factoring), Coimbra Editora, Coimbra, BFDUC, Stvdia Ivridica 43, p. 19 e 20. Permitimo-nos realçar aqui a referência do título a “contratos”, porquanto nos parecer ser uma questão que não é de somenos importância para a compreensão do regime jurídico do factoring, nomeadamente, da repercussão deste na esfera jurídica do devedor (que para este é res inter alios acta).
4 “ «Factoringé» uma atividade mercantil que consiste na tomada de créditos a curto prazo por uma instituição financeira (“factor” ou “cessionário”), que os fornecedores de bens ou serviços (“aderentes”) constituem sobre os seus clientes (“devedores”) concretiza-se num mecanismo empresarial que dá a possibilidade às empresas de obterem um melhor financiamento do seu ciclo de exploração, através da sua utilização tornando possível a obtenção de uma antecipação da liquidação do preço das encomendas a pagar pelos seus clientes.” (Ac. STJ, de 3 de maio de 2012, in xxx.xxxx.xx). “O contrato de factoring caracteriza-se pela transferência de créditos a curto prazo do seu titular (cedente, aderente) para um factor (cessionário), créditos esses resultantes da venda de produtos ou prestação de serviços a terceiros (devedores cedidos)”. (Ac. STJ, de 5 de junho de 2003, in xxx.xxxx.xx). “O contrato de factoring consiste na transferência dos créditos a curto prazo do seu titular (cedente aderente ao factor) para um factor (cessionário), derivados da venda de produtos ou prestação de serviços a terceiros (devedores cedidos). Tal contrato reveste a natureza (não obstante a existência de naturais divergências na doutrina) de um negócio de promessa de cessão de créditos ou de cessão de créditos futuros, regendo-se pelas suas cláusulas e, subsidiariamente, pelas regras da cessão de créditos (artigos 577º e seguintes do Código Civil).” (Ac. STJ, de 24 de junho de 2004, in xxx.xxxx.xx).
5 XXXXX, X. x XXXXXXXX, A. P.: Sobre o contrato de cessão financeira ou de factoring, in Separata do BDFUC – Volume Comemorativo dos 75 anos, p. 25.
6 XXXXXX XX XXXXXXXX, J.: Contrato de factoring y cesion de créditos, Editorial Civitas, Madrid, 1996, pp. 35 ss.
7 MENEZES CORDEIRO, A.: Direito Bancário, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, p. 744.
quer porque fica com o direito de regresso contra este. Por seu turno, no factoring sem recurso o factor assume o risco de incumprimento por parte do terceiro devedor8.
De outra banda, a distinção entre factoring aberto e factoring fechado deriva da necessidade das partes pretenderem que a celebração do contrato seja conhecida, ou não, por terceiros. Embora o factoring seja um importante instrumento para o financiamento das empresas, a verdade é que o carácter de boa gestão que, na essência, lhe possa estar associado não é acompanhado pelo “retrato público” que lhe é feito. Assim, para evitar que perante o público a existência do contrato de factoring possa ligar o aderente a dificuldades financeiras, pelas quais efetivamente não passa, é convencionado com o factor a não comunicação ao terceiro devedor. Tal circunstância implica a inexistência de “relação” entre o factor e o terceiro devedor, pelo que o contrato de factoring não terá quaisquer repercussões ao nível da posição jurídica deste.
A diversidade de modalidades de factoring assinala, por isso, a dificuldade de determinação da natureza jurídica do contrato. Para os que o consideram um contrato unitário o enfoque é colocado na função de cessão dos créditos (sua causa “única”). Para os que o consideram um contrato com uma "pluralidade funcional” é fundamental que se reconduza a sua natureza jurídica “à função visada pelas partes, permitindo extrair as concretas necessidades que satisfaz e, por consequência, determinar o tipo legal em que se subsume em função da probabilidade com que esse tipo legal satisfaça uma mesma necessidade ou, pelo menos, uma necessidade que lhe seja próxima”9.
A (in)determinação da natureza jurídica do factoring está, indelevelmente, ligada à sua atipicidade10, que potencia abordagens doutrinais sob os mais variados pontos de vista. Assim, a referida “pluralidade funcional” do contrato de factoring e a sua atipicidade convocam a questão da determinação do regime jurídico aplicável e a necessidade de recurso à integração de declarações negociais. Neste domínio, XXXXX XXXXXX considera que se deve dar prevalência à aplicação aos contratos atípicos de normas sobre contratos típicos em detrimento da integração das declarações negociais, mas logo alerta para o facto de tais normas não poderem ser aplicadas de forma mecânica, sem que se atente nos resultados a que tal aplicação possa conduzir11.
8 Para maiores desenvolvimentos sobre estas modalidades de factoring, vide D. P. XXXXXXX XXXXXXXXXXX, L. M.: Dos contratos…, cit., p. 333 ss e 341 ss.; XXXXXXX XXXXXXXX, A.: Da cessão…, cit., 1994, p. 85 ss (este autor prefere a designação de factoring impróprio v.s. factoring próprio).
9 XXXXXXX XXXXXXX, Xx. Á.: “Contrato de factoring”, in Contratos Internacionales, Coord. XXXXXX- XXXXXXX XXXXXXX, X., Xxxxxxxxx Xxxxxx, Xxxxxx, 0000, p. 994 ss.
10 CHULIÁ VICÉNT, E. e XXXXXXX ALANDETE, T.: Aspectos Jurídicos de los contratos atípicos, I, Xxxx Xx Xxxxx editor, S.L., Barcelona, p. 25 ss.; XXXXXX XXXXXXXX, P.: Contratos comerciais, Principia, p. 66 ss.
11 XXXXX XXXXXX, X.:Tipicidade e Atipicidade dos contratos, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, p. 134 ss. O autor considera que “na verdade, é de sublinhar que a aplicação das normas sobre contratos típicos e atípicos não pode ser feita de forma mecânica; também aqui os juízos subsuntivos não são suficientes para a aplicação do Direito: também aqui a aplicação da norma não pode ser feita na ignorância dos resultados a que conduz; também aqui o aplicador do Direito deve procurar encontrar entre o comando abstrato e o comando concreto (resultante da aplicação analógica – no sentido clássico – daquele) a proporção que o legislador quis. Mais: a procura de semelhanças não pode ser feita exclusivamente entre o tipo social em que se integre o contrato em discussão e dos contratos típicos com ele aparentados; tem de ser feita
Ora, sendo o factoring mais do que uma simples cessão de créditos, mas constituindo esta figura um importante meio (ou o meio) para o cumprimento das obrigações assumidas pelo factor perante o aderente, revela-se instrumento útil, ao propósito a que nos propomos, a determinação de um ponto de partida suficientemente abrangente.
Assim sendo, para a caracterização do contrato de factoring será importante a busca de uma definição que, embora com uma vetusta roupagem, possa abarcar o maior feixe de possibilidades que nos oferece o contrato de factoring. Seguindo XXXXXXX XXX “o contrato de factoring definir-se-á, então, como a convenção pela qual uma das partes (o aderente) se obriga a ceder à outra (o factor) a totalidade dos créditos a curto prazo, presentes ou futuros, provenientes do exercício da sua atividade comercial, conexos com o fornecimento de bens ou prestações de serviços, vinculando-se por sua vez esta última a proceder à cobrança dos créditos assim cedidos, podendo além de assumir o risco de não cumprimento por parte do devedor cedido, reembolsar antecipadamente à data do seu vencimento o respetivo montante”12.
A abrangência desta noção de factoring não deve ser confundida com a sua suficiência. A realidade que pretende abarcar está longe de ser imutável e as circunstâncias atinentes ao desenvolvimento de outros mecanismos financeiros para fazer face às necessidades dos operadores há de sempre convocar novos problemas suscetíveis de novas e melhores definições.
Pelo que, o factoring está longe de encontrar um reduto, suficientemente predeterminado, para a delimitação do seu regime jurídico. A aplicabilidade do regime jurídico da cessão de créditos no domínio do contrato de factoring deve ser, por isso, rodeada das maiores cautelas, tendo em conta a diferente índole dos objetivos e das funções que uma e outro têm em vista. Se a cessão de créditos tem o respetivo regime jurídico orientado para uma transmissão isolada de créditos, o contrato de factoring deve ter o seu regime jurídico conformado tendo por base a especificidade de fins que visa prosseguir. Seguimos de perto o entendimento defendido por CUNHA quanto à necessidade de olhar para o contrato de factoring como representativo de uma utilidade económica dos serviços prestados pelo factor ao aderente “e em face dos quais as principais atribuições patrimoniais do aderente se encontram em relação de correspectividade […], ao contrário do que sucede no plano civilístico, onde o «negócio que serve de base à cessão» (art. 578º, n.º1) tipicamente se alicerça no valor do próprio crédito (ou da sua especifica titularidade), crédito cuja transmissão consubstancia, portanto, uma verdadeira atribuição patrimonial”13.
(também) a propósito da questão jurídica especifica do contrato, regulando o que estiver em causa” (vide p. 143 e 144)
12 XXXXXXX XXX, X.: “O contrato de factoring”, in Revista da Banca, núm. 3, Julho/Setembro de 1987, pp. 53 ss..
13 XXXXX, X.: “Contrato de factoring: quem paga mal, paga duas vezes?”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 3, julho/setembro 2003, p. 48 e CUNHA, C. e XXXXX XXXXXXXX, A.: Sobre o contrato…, cit., pp. 25 a 26.
III. As cláusulas de incedibilidade entre credor (aderente) e devedor.
Esta (nova) relação jurídica entre o aderente e o factor traz uma nova conformação à (velha) relação jurídica entre o aderente e o devedor. Por via do contrato de factoring, o devedor vê surgir um novo sujeito perante o qual passa a ter de cumprir as suas obrigações14. É, por isso, normal que o devedor possa pretender que a sua relação com o credor (aderente) se mantenha inalterada, estabelecendo clausulas de incedibilidade.
Verificando-se a existência de contrato com uma cláusula deste tipo, as partes ficam, mutuamente, vinculadas ao seu cumprimento sob pena de incorrerem em responsabilidade contratual. Responsabilidade contratual que não impede, em absoluto, que o credor possa vir a ceder o seu crédito. Se perante estas circunstâncias a cessão for realizada, então, terão de ser ponderados os interesses que devem prevalecer: se os do devedor ou os do cessionário.
A questão adensa-se com a concorrência dos interesses do próprio credor, titular de um ativo patrimonial que não pretende ver anulado por via da cláusula de incedibilidade. Ora, o credor nem sempre tem a possibilidade de definir o destino do seu próprio ativo, tendo em conta que a contraparte pode ser suficientemente importante para a atividade daquele (fornecedor de bens ou prestador de serviços). O adquirente dos bens ou serviços (devedor) pode bem ser a parte mais forte no contrato que origina o crédito, impondo as suas condições contratuais e colocando o credor numa posição de sujeição. Neste domínio é ilustrativo o Acórdão do STJ, de 15 de Janeiro de 201315, ao estabelecer que um determinado contrato de factoring é inoponível ao devedor (Município) que tenha clausulado com o credor (empreiteiro) a necessidade de prévio acordo para a cedência dos créditos emergentes de um contrato de empreitada, ainda que se tenha verificado uma declaração de aceitação posterior (emitida por funcionário do Município com competência delegada para a transmissão de deliberações do órgão colegial competente – a Câmara Municipal)16.
14 Referimo-nos ao cumprimento de obrigações e não ao cumprimento da obrigação de saldar o seu débito, tendo em conta que, conforme referido infra, o devedor terá de cumprir outros deveres para com o seu novo credor (o factor).
15 Este Xxxxxxx confirma um outro proferido pelo Tribunal da Relação de Xxxxxxxxx (datado de 31 de maio de 2012), in xxx.xxxx.xx
16 Manifestamos as nossas reservas quanto aos antecedentes desta decisão, porquanto tendo sido enviada missiva por parte de um Chefe de Divisão do Município ao empreiteiro na qual lhe comunicava que “a Câmara Municipal aceita fazer os pagamentos da referida empreitada através de factoring” e havendo delegação de competência na referida chefia, por parte do Presidente da Câmara Municipal, para transmitir deliberações da competência deste órgão autárquico, seria exigível que o destinatário da missiva tivesse de procurar saber se houve deliberação? Se o ofício fosse assinado pelo Presidente da Câmara já haveria aceitação da cessão? Tendo entendido o tribunal “a quo” que a competência é de um órgão colegial (a Câmara Municipal), seria exigível que o empreiteiro tivesse de marcar presença na reunião do órgão, quando ainda há Municípios que não publicitam atempadamente as decisões dos seus órgãos? Julgamos, no entanto, que a decisão do STJ não é alheia às suas limitações quanto à apreciação da matéria de facto dada como assente nas anteriores instâncias. Ficamos, também, sem saber se o empreiteiro ou o factor avançaram com uma ação de responsabilidade ao abrigo da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, alterada pela Lei n.º 31/2008, de 17 de julho, que aprova o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do
Do lado do devedor não concorrem apenas razões atinentes ao (des)equilíbrio na conformação da relação contratual com o credor. O devedor pode bem ter interesse legítimo na consagração de cláusula de incedibilidade17, posto que por via desta dificulta a cessão do crédito a um terceiro e, consequentemente, pode opor ao titular do crédito todos os seus meios de defesa. Este problema coloca-se com bastante acuidade no domínio da compensação como meio de defesa perante do credor. Se não houver transmissão do crédito, o devedor pode compensar este com um outro que detenha sobre o credor. Mas, havendo transmissão do crédito, o devedor apenas poderá opor ao cessionário os meios de defesa que provenham de factos verificados até ao momento da cessão do crédito.
Por outro lado, o cessionário (factor) pretende que o crédito lhe seja transmitido com o mínimo de obstáculos à sua cobrança, sem que a relação que originou o crédito (e que é para ele “res inter alios acta”) possa interferir na sua atividade.
No âmbito do regime jurídico da cessão de créditos, o legislador português, colocado perante a necessidade de ponderação de diferentes interesses, optou por dar prevalência, não só ao interesse do cedente, mas também ao interesse geral da livre transmissão de créditos (valor a salvaguardar por estar inerente às necessidades do comércio). Ora, necessitando as empresas de meios expeditos (e alcançáveis) para o financiamento das suas atividades e sendo o factoring um mecanismo financeiro ao alcance de empresas que têm dificuldade em obter outras formas de financiamento –essencialmente as pequenas e médias empresas–, a cessão de créditos, enquanto instrumento mais apto para permitir a execução do contrato de factoring18, tem um regime jurídico consagrado no código civil que se articula, perfeitamente, com essa função do contrato de factoring19.
O legislador português não deixa, no entanto, de atribuir eficácia à cláusula de incedibilidade perante o cessionário (factor) se este a conhecia no momento da cessão. Trata-se de assegurar que só o cessionário (factor) que se encontre de boa-fé (ou seja, que
Estado e Demais Entidades Públicas (seja como for, sempre se trataria de matéria que, pela sua amplitude, não poderíamos abordar neste texto).
17 No sentido de que tal cláusula é consagrada, em princípio, no interesse do devedor veja-se o Ac.
TRP, de 18 de janeiro de 2005, in xxx.xxxx.xx.
18 O nosso ordenamento jurídico fornece outro instrumento jurídico para a transmissão da titularidade ativa numa relação obrigacional – a sub-rogação. No entanto, pelas razões expostas por Xxxxxxxx Xxxxx e
Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx, consideramos ser a cessão de créditos o instrumento mais adequado (CUNHA, X. x XXXXX XXXXXXXX, A.: Sobre o contrato…, cit., pp. 36 ss.).
19 Em vários Estados a solução é idêntica, nomeadamente, nos Estados Unidos, onde o recurso ao factoring atinge números elevados. Segundo o §9-401, (b) do Uniform Commercial Code “An agreement between the debtor and secured party which prohibits a transfer of the debtor's rights in collateral or
makes the transfer a default does not prevent the transfer from taking effect”. Em Espanha a regulamentação é semelhante, no âmbito dos artigos 1526 ss. do Código Civil e dos artigos 347 e
348 do Código de Comercio. Segundo o artigo 347 do Código de Comercio Espanhol “Los créditos mercantiles no endosables ni al portador, se podrán transferir por el acreedor sin necesidad del consentimiento del deudor, bastando poner en su conocimiento la transferencia. El deudor quedará obligado para con el nuevo acreedor en virtud de la notificación, y desde que tenga lugar no se reputará pago legítimo sino el que se hiciere a éste.”
desconhecia a existência de uma cláusula deste tipo entre o cedente e o devedor ao tempo da cessão) possa alegar a inoponibilidade da cláusula de incedibilidade.
A boa-fé assume, por isso, uma função mitigadora da inexistência de qualquer vínculo contratual entre o factor e o devedor. A falta de vínculo contratual entre factor e devedor não implica que as suas condutas não possam ser apreciadas de diferente modo, consoante tenham, ou não, conhecimento de determinada vicissitude20. Assim, quer seja no domínio do exercício de direitos perante o aderente no âmbito do contrato de factoring, quer seja no domínio do exercício do direito de crédito perante o devedor, o factor deve atuar de boa-fé, sob pena de cláusulas de um contrato que é “res inter alios acta” lhe poderem ser oponíveis.
IV. Os deveres de conduta do devedor face ao contrato de factoring.
Concomitantemente, a inexistência de vínculo contratual entre o factor e o devedor não pode implicar uma absoluta inalterabilidade da posição deste. Ora vejamos.
Conforme referido supra, o contrato de factoring é “res inter alios acta” relativamente ao devedor. Mas, será suficiente esta afirmação, deixando de parte todo um conjunto de aspetos ligados ao comportamento do devedor que se revelam fundamentais para a boa execução do contrato de factoring?
O terceiro devedor deve ser notificado da cessão dos créditos (art. 583º, n.º 1 CC) para que esta produza efeitos perante si. No entanto, a norma refere, expressamente, outro meio possível para a produção de efeitos da cessão: a aceitação por parte do devedor.
Por outro lado, o art. 583º, n.º 2 do CC consagra a inoponibilidade ao cessionário de pagamentos ao cedente e de negócios celebrados com este, desde que aquele prove que o terceiro devedor conhecia a existência da cessão. A relevância do conhecimento por parte do devedor é manifesta21.
Ora, sendo reconhecido ao contrato de factoring uma importante função de financiamento das empresas e sendo a cessão de créditos instrumento fundamental para a sua execução consideramos que a sua eficácia perante o terceiro devedor pode ser perspetivada de diferentes ângulos.
O conhecimento, por parte do devedor, da existência de contrato de factoring que implique a transferência de direitos de crédito para outro sujeito, pode ser sustentado na notificação, judicial ou extrajudicial, mas também em factos que demonstrem que o devedor tinha conhecimento da transferência de titularidade 22 . Um desses factos
20 PAIS DE VASCONCELOS, P.: Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 2015, p. 21.
21 XXXXXX, X. x XXXXX XX XXXX, F.: Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 599. 22 A notificação judicial ou extrajudicial e o conhecimento são questões que se interligam e podem conduzir a soluções diferentes para questões, aparentemente, semelhantes. Não obstante, o foco da questão deve ser colocado no conhecimento da transmissão do crédito por parte do devedor, para que a
demonstrativos do conhecimento por parte do devedor é a sua aceitação. No entanto, as repercussões deste facto demonstrativo de conhecimento na posição jurídica do devedor declarante devem ser diferentes das que adviriam de outras situações23.
O devedor, por via da aceitação, deixa de adotar uma situação passiva perante a cessão de créditos operada por via do contrato de factoring, passando a desenvolver ato(s) perante o factor, cujas consequências lhe devem ser diretamente imputáveis. A partir do momento em que manifesta uma determinada vontade perante o factor, a sua posição já não é de mero “espectador” perante a consolidação do direito de crédito na esfera jurídica do factor.
mesma possa produzir plena eficácia. Sobre a questão da citação para a ação refere ASSUNÇÃO CRISTAS “que o centro está no «conhecimento» que o devedor tenha da transmissão, advenha ele da notificação ou de qualquer outra via, é inquestionável que a citação confere ao devedor esse conhecimento” (CRISTAS, A.: “Citação como notificação ao devedor cedido”, in Cadernos de Direito Privado, núm. 14, abril/Junho 2006, p. 63).
23 Algumas legislações europeias consagram soluções com determinadas especificidades (ou alguns desenvolvimentos) relativamente à lei portuguesa, no que concerne à aceitação do devedor (ou emissão de documento), que nos permitem questionar a clareza do regime jurídico atinente à posição jurídica do devedor, conforme estejamos perante uma cessão de créditos notificada ao devedor ou perante uma cessão de créditos aceite por parte do devedor.
Em Itália, o artigo 1248º do Codice Civile estabelece que “Il debitore, se ha accettato puramente e emplicemente la cessione che il creditore ha fatta delle sue ragioni a un terzo, non può opporre al cessionario la compensazione che avrebbe potuto opporre al cedente. La cessione non accettata dal debitore, ma a questo notificata, impedisce la compensazione dei crediti sorti posteriormente alla notificazione.”.
Na França, o art. 1295 do Code Civil consagra que “Le débiteur qui a accepté purement et simplement la cession qu’un créancier a faite de ses droits à un tiers, ne peut plus opposer au cessionnaire la compensation qu’il eût pu, avant l’acceptation, opposer au cédant. A l’égard de la cession qui n'a point été acceptée par le débiteur, mais qui lui a été signifiée, elle n'empêche que la compensation des créances postérieures à cette notification”. Por seu turno, o art. X000-00 Xxxx Xxxxxxxxx e Financier consagra que “Sur la demande du bénéficiaire du bordereau, le débiteur peut s’engager à le payer directement : cet engagement est constaté, à peine de nullité, par un écrit intitulé: ‘Acte d’acceptation de la cession ou du nantissement d'une créance professionnelle’. Dans ce cas, le débiteur ne peut opposer à l'établissement de crédit ou à la société de financement les exceptions fondées sur ses rapports personnels avec le signataire du bordereau, à moins que l’établissement de crédit ou la société de financement, en acquérant ou en recevant la créance, n'ait agi sciemment au détriment du débiteur.
Na Alemanha p §404 do BGB estabelece o seguinte: “Der Schuldner kann dem neuen Gläubiger die Einwendungen entgegensetzen, die zur Zeit der Abtretung der Forderung gegen den bisherigen Gläubiger begründet waren”. Mas parece que de seguida atribui relevância à emissão de documento/declaração por parte do devedor no §405: “Hat der Schuldner eine Urkunde über die Schuld ausgestellt, so kann er sich, wenn die Forderung unter Vorlegung der Urkunde abgetreten wird, dem neuen Gläubiger gegenüber nicht darauf berufen, dass die Eingehung oder Anerkennung des Schuldverhältnisses nur zum Schein erfolgt oder dass die Abtretung durch Vereinbarung mit dem ursprünglichen Gläubiger ausgeschlossen sei, es sei denn, dass der neue Gläubiger bei der Abtretung den Sachverhalt kannte oder kennen musste.” (o código civil alemão foi consultado na versão inglesa)
Com base nos regimes jurídicos destes Estados não pretendemos interpretar as normas de direito nacional que versam sobre a matéria, porquanto tal constituiria uma grave violação de princípios de hermenêutica jurídica, segundo o qual cada norma deve ser interpretada ao abrigo do sistema jurídico a que pertence. Mas, na presença de um regime jurídico que está longe de se esgotar (como se tentará demonstrar infra) nas normas previstas nos arts. 577º a 588º do CC, os dados fornecidos por ordenamentos jurídicos que influenciaram e continuam a influenciar as soluções preconizadas pelo ordenamento jurídico português constituem um importante elemento para a definição da problemática que abordamos.
Não ficará por essa via vinculado a certos deveres perante o novo titular do crédito (o
factor)?
Julgamos que sim. O devedor, ao emitir a sua declaração, deve proceder de modo honesto, correto e leal. A confiança justificada do factor no comportamento do devedor deve relevar juridicamente24 . A sua aceitação da cessão pode, por isso, conduzir a resultados bem diferentes do mero conhecimento.
Consequentemente, o devedor deve contar com a possibilidade da sua declaração valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu comportamento. A declaração do devedor pode constituir um elemento fulcral para a definição da amplitude do seu direito de oponibilidade de meios de defesa contra o factor, mas também para definir a intensidade dos deveres laterais ou de conduta perante este.
O devedor não pode ver a sua situação prejudicada por via da cessão de créditos efetuada pelo aderente ao factor, mas não pode deixar de cumprir com deveres perante o seu novo credor. Os deveres que o devedor cedido tinha de cumprir perante o aderente não terão a mesma amplitude perante o factor, agora seu credor, porquanto não houve cessão da posição contratual. No entanto, a sua declaração de aceitação gera uma vinculação mais densa do que o mero conhecimento.
A substituição do titular do direito de crédito (presente) opera-se por via do contrato celebrado entre o factor e o aderente, sem necessidade de qualquer manifestação de vontade por parte do devedor. Se o devedor opta por manifestar a sua vontade, então, isso deve significar que pretendeu substituir o conhecimento pela aceitação25 e deve, por isso, assumir todas as consequências da sua declaração. “A aceitação é eficaz logo que
«haja início de execução» e, em geral, logo que o ato concludente se torne cognoscível,
saindo da esfera de accão interna do aceitante”26.
Após a aceitação por parte do devedor, este fica vinculado ao cumprimento da obrigação de pagamento perante o factor, sob pena do pagamento efetuado ao aderente não se considerar liberatório. Pelo que, do mesmo modo, a partir desse momento o devedor fica vinculado ao cumprimento das suas obrigações perante o factor nos exatos termos em que se encontrava vinculado perante o aderente. Consequentemente, no momento em que emite a sua declaração de aceitação o devedor está vinculado ao cumprimento dos princípios gerais aplicáveis no domínio da celebração de negócios jurídicos, nomeadamente, ao dever de agir com boa-fé.
Este princípio da boa-fé não deve considerar-se, apenas, fundamental na celebração de negócios jurídicos, na sua formação e execução. Este princípio normativo deve imperar
24 DA XXXX XXXXX, C. A.: Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 4ª edição, Coimbra por: Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx e Xxxxx Xxxx Xxxxx, 2012, p. 124 ss.
25 XXXXXXXX XX XXXXXXX, X.: Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Vol. II, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, p. 790 (nota 95).
26 Idem, ibidem, p. 794.
quer “no cumprimento de todas e quaisquer obrigações, tanto contratuais como derivadas de outras fontes, e revela aqui um xxxxx xxxxx xx xxxxxxxxx”00. Xxxxxxx-xxx xxx xxxxxxxx xx XXXXXXX COSTA para, também aqui, considerarmos que o devedor, no momento em que emite declaração de aceitação da cessão deve atuar de boa-fé perante o factor. O princípio segundo o qual a posição devedor não pode ficar mais onerada em resultado da cessão do crédito, operada no âmbito do contrato de factoring, terá de ser conjugado com a necessidade de convocação do princípio da boa-fé, na sua vertente jurisgénica.
O princípio da não oneração da posição do devedor não deve significar um corte abrupto na dinâmica associada ao cumprimento das obrigações. A não se ter verificado qualquer cessão de créditos para o factor, o devedor continuaria vinculado ao cumprimento das suas obrigações perante o aderente, dentro dos ditames da boa-fé (lealdade e probidade)28. Pelo que, quanto ao cumprimento das suas obrigações, em nada se onera o devedor ao exigir-se-lhe que continue a pautar a sua conduta dentro dos referidos cânones, agora perante o factor.
A boa-fé, enquanto princípio normativo inerente ao cumprimento das obrigações, extravasa o campo regulatório de determinado contrato29, nomeadamente, do contrato de factoring. A margem concedida à aplicação os preceitos atinentes às obrigações em geral permitem uma delimitação do esforço exigível ao devedor no desempenho do seu papel30.
Sendo a declaração de aceitação expressa, a atividade interpretativa não fica dispensada, mas também não exige um “laborioso esforço mental”31. A aceitação expressa por parte do devedor há de ser feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio direto de manifestação de vontade (art. 217º CC) perante o aderente ou perante o factor, conforme se atribua a um ou a outro a obrigação de notificar o devedor ou conforme o devedor decida emitir a sua declaração de aceitação perante um ou outro.
A aceitação expressa da cessão de créditos por parte do devedor implica um prévio conhecimento da existência da cessão. Por isso, no momento em que aceita a cessão de créditos o devedor emite uma declaração na qual manifesta a sua conformação com a nova realidade: uma alteração subjetiva no âmbito do cumprimento das suas obrigações. Assim sendo, se o devedor aceitar expressamente a cessão de créditos, não é de excluir a possibilidade de responder perante o factor por uma conduta omissiva lesiva dos seus interesses legítimos32. Pense-se, por exemplo, na emissão simulada de faturas por parte do
27 DE XXXXXXX XXXXX, M. J.: Direito das Obrigações, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000 (xxxxx. 12ª edição, 2009), p. 995.
28 Idem, ibidem, p. 891.
29 MENEZES CORDEIRO, A.: Tratado de Direito Civil Português, IX, Direito das Obrigações, (reimp. da 1ª edição da parte II, Tomo IV, 2010, – cumprimento e não cumprimento, transmissão, modificação e extinção, garantias –, p. 31.
30 Idem, ibidem, p. 32.
31 XXXXXXXXX XX XXXXXXX, M. A.: Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, p. 134.
32 Neste domínio acompanhamos a posição defendida por XXXXXXX XXXXX que considera que por via da “autonomia privada, afigura-se razoável equiparar ao negócio jurídico certos casos porventura qualificáveis como relações contratuais de facto.” “Esta nova categoria dogmática tem como um dos principais alicerces a ideia de que, na contemporânea civilização de massas, segundo as conceções do tráfico jurídico,
aderente tendo em vista iludir o factor sobre a existência de créditos. Não ficará o devedor sujeito ao dever de agir, informando, devidamente, o factor sobre a inexistência de relação contratual de onde possa emergir o hipotético crédito?
A aceitação expressa comunicada ao factor é suscetível de fazer com que este adquira uma posição de confiança, a ser tutelada33. XXXXXXXX XXXXXXX parece guiar-nos por esse caminho ao estabelecer um carácter responsabilizante da declaração de vontade, ainda que perspetivada como um ato de comunicação. Ainda que no domínio do contrato de factoring a declaração do devedor não possa ser entendida como declaração negocial, posto que a cessão dos créditos produz efeitos relativamente a esse terceiro sem necessidade do seu consentimento, não será menos verdade que este não constitui um significante de declaração. Enquanto ato de comunicação, a declaração “representa um facto em face da ordem objetiva envolvente que rege a interação comunicativa 34 : o declarante é
«responsabilizado» pelo sentido que razoavelmente deva ser imputado à sua conduta declarativa (segundo critérios sociais-intersubjetivos de imputação), ou simplesmente à sua conduta integrada em certo contexto comunicativo.”35
Cabe, por isso, ao devedor tomar as devidas precauções quanto ao sentido que possa ser atribuído à sua declaração de aceitação, se puder razoavelmente contar com ele (art. 236º CC).
Ademais, a verificação de aceitação tácita pode, do mesmo modo, ser considerada como uma manifestação de vontade suscetível de colocar o devedor perante uma situação idêntica. A sua declaração de aceitação tácita “existirá […] sempre que, conforme os usos da vida, haja quanto aos factos de que se trata toda a probabilidade de terem sido praticados com dada significação negocial (aquele grau de probabilidade que basta na prática para as pessoas sensatas tomarem decisões)”36.
Em última instância, o facto de o devedor ser um terceiro perante o contrato de factoring não lhe permite a invocação de que o princípio segundo o qual a sua posição não se pode tornar mais onerosa (do que a que se verificava previamente à cessão dos créditos) o protege contra a necessidade de adoção de determinadas condutas perante o factor. Se a aparência de uma determinada cessão de créditos aos olhos do devedor não deve ser suscetível de o dispensar de adotar uma determinada atitude mais ativa e se não pode
existem condutas geradoras de vínculos obrigacionais, fora da emissão de declarações de vontade que se dirijam à produção de tal efeito, antes derivadas de simples ofertas e aceitações de facto.” (Idem, ibidem,
p.560 e 222 ss)
33 XXXX XXXXX, P.: Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, p. 605.
34 Sublinhado nosso.
35 XXXXXXXX XXXXXXX, X.: A clausula do razoável, in Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx –Obra dispersa–, Scientia Xxxxxxxx, Xxxxx, 0000, p. 521. Pela relevância para a definição mais concreta do caminho deste nosso estudo permitimo-nos utilizar, com “veste de abuso de direito”, o discurso argumentativo do autor para afirmação do caracter responsabilizante da declaração. “Como acto de comunicação destinado por sua natureza à coordenação da interacção e destinado, portanto, a ser conhecido e entendido pelo declaratário, bem como a despertar neste a correspondente confiança, a declaração de vontade «responsabiliza» desde logo pela confiança que solicita e desperta”.
36 XXXXXXXXX XX XXXXXXX, M. A.: Teoria Geral…, cit., 1987, p. 132.
fazer-se valer da existência apenas de aparência para se remeter a uma posição passiva perante o factor, então, os seus deveres de cuidado e de atuação de acordo com os ditames da boa-fé perante o factor são ainda mais exigíveis nas situações de aceitação da cessão dos créditos37.
A diferença que marcamos entre o conhecimento e a aceitação parece resultar implicitamente do Ac. STJ, de 11 de Junho de 201238, no seguinte trecho: “a razão de ser da exigência do conhecimento da cessão decorre como bem se compreende, da necessidade a proteção do interesse do devedor em saber, a cada momento, quem é o seu credor pois que, em princípio, não admite a lei eficácia liberatória da prestação feita ao credor aparente, havendo, enfim, que proteger a boa-fé do devedor que confia na aparência de estabilidade subjetiva do contrato, frustrada pela omissão de informação do primitivo credor cedente. Se, nesse caso, cumpre perante este, cumpre perante quem crê ser ainda seu credor, não devendo, por isso, ser prejudicado”. Com a aceitação da cessão de créditos, o devedor não só demonstra conhecer a inexistência de estabilidade subjetiva no contrato, como se conforma com a alteração do status quo ante, pelo que deverá contar com as implicações da sua própria conduta.
V. A oponibilidade de meios de defesa por parte do devedor.
Conforme referido supra, a eficácia da cessão de créditos perante o terceiro devedor depende, fundamentalmente, da existência de conhecimento deste relativamente à verificação daquela. Tal conhecimento pode advir da notificação que lhe tenha sido efetuada por parte do aderente ou do factor (no âmbito do cumprimento do contrato de factoring), ou por outro modo devidamente comprovado por parte de quem pretende beneficiar da oponibilidade da cessão relativamente ao devedor, de acordo com as regras do ónus de prova. Esta afirmação exige mais alguns desenvolvimentos.
A cessão de créditos, enquanto instrumento para a execução do contrato de factoring, pode ser global ou parcial, relativa a créditos presentes ou futuros.
37 BRANDÃO PROENÇA, J. C.: Xxxxxx, crédito, aparência e realidade, in Cadernos de Direito Privado, n.º 37, janeiro/março 2012, p. 20 (nota 17). O autor refere sobre a temática da aparência da existência de determinado credor aos olhos do devedor, que ao contrário do preconizado por Xxxxxxx Xxxxxx e
Xxxxxxx xx Xxxxxxxxxxx (no caso do pagamento feito pelo devedor ao cedente do crédito, sustentam a «oponibilidade» ao cessionário, se o devedor não tiver conhecimento da cessão (cf. o art. 583º CC) […] que “uma reclamação do pagamento por um novo credor ou a existência de diversas vozes a referir a cedência parecem pôr em causa uma aparência favorável ao devedor, reclamando deste, como pano de fundo da sua confiança, uma atitude mais ativa, de «cooperação» com «esse» cessionário, nos limites da razoabilidade”. Não obstante o argumento a fortiori que convocamos, a imposição ao devedor de uma atitude mais ativa devido à existência de várias vozes a referir a cedência, conforme refere Brandão Proença, há de sempre debater-se com a possibilidade de existirem “vozes” discordantes (nomeadamente, entre a do aderente e a do factor). Nestas situações a quem deve o devedor pagar? No Ac. STJ, de 08 de novembro de 2007, entendeu o tribunal que o devedor não violou qualquer regra de conduta imposta pela boa fé ao pagar ao aderente, dada a existência de informações contraditórias prestadas pelo aderente e pelo factor (in xxx.xxxx.xx).
A característica da globalidade marca de forma indelével a construção do contrato de factoring, mas não surge como condição necessária para a conformação deste vínculo. Aderente e factor podem perfeitamente convencionar a cedência de determinados créditos de curto prazo, tendo em conta o maior ou menor risco que possa ser assumido pelo factor, assim como os objetivos e/ou funções que pretendam atribuir ao vinculo contratual que estabelecem.
Concomitantemente, os créditos a ceder no âmbito do contrato de factoring podem encontrar-se na esfera jurídica do aderente (créditos presentes) ou podem ainda não existir ou não existir a sua titularidade39. A admissibilidade de cessão de créditos futuros não será questionável a partir do momento em que a lei admite a prestação de coisa futura (art. 399º CC)40, mas no domínio do contrato de factoring as questões envolventes podem adensar-se.
O contrato de factoring pode ser perspetivado em termos unitários ou duais, conforme se considere que por via da sua celebração se prevê a cessão dos créditos futuros do aderente para o factor ou, por outra banda, se considere que o contrato de factoring constitui um vínculo onde se prevê a celebração, no futuro, de múltiplos negócios translativos da titularidade dos créditos”41. Ora, quer se adote uma ou outra perspetiva, o negócio que serve de base à cessão há de ser o contrato de factoring que a prevê42.
Ademais, o negócio que serve de base à cessão dos créditos – o contrato de factoring –é marcado, na prática, pela exclusividade e pela globalidade43, ou seja, o aderente obriga-se a não celebrar o mesmo contrato com terceiros e a ceder ao factor todos (ou uma parte determinada) os seus créditos presentes e futuros.
Destarte, no domínio do contrato de factoring a aplicação do regime jurídico atinente à cessão de créditos parece-nos um recurso a ser utilizado com as devidas cautelas.
No contrato de factoring hão de as partes prever a cessão de créditos futuros, pelo que a cessão só será válida (e a transmissão operar-se-á para o factor) a partir do momento em que o crédito se constitua na esfera jurídica do aderente. Acresce que, há que considerar a existência da relação estabelecida entre o aderente e o devedor, que pode ser duradoura ou não. Se se tratar de uma relação duradoura (já existente à data da celebração do contrato de factoring) não restarão dúvidas em considerar que o crédito se constituirá imediatamente na esfera jurídica do factor, no momento em que nasça; mas se se tratar de crédito emergente de uma relação que ainda não exista no momento da celebração do contrato de factoring já se podem levantar dúvidas quanto à sua constituição imediata na
39 Acerca de coisa futura, vide DOS SANTOS JUSTO, A.: Direitos Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 142 e 143.
40 No entanto, a cessão de créditos futuros não pode ter por base um contrato de doação (art. 942º, n.º 1 CC).
41 XXXXX, X. x XXXXX XXXXXXXX, A.: Sobre o contrato…, cit., p. 39.
42 Idem, p. 40 e ss.
43 Idem, ibidem, p. 30 e ss.
esfera jurídica do factor44.
A Convenção do UNIDROIT aplicável ao factoring internacional estabelece que nas relações entre as partes intervenientes no negócio não há necessidade de qualquer ato de transferência para o factor, do crédito tido como futuro no contrato de factoring, a partir do momento em que ele surja. Mas, mesmo no domínio do factoring internacional, não há qualquer norma que regulamente a eficácia da cessão global de créditos (presentes e futuros) relativamente ao devedor, pelo que esta questão deve ser resolvida por recurso ao direito material competente, designado pelas respetivas normas de conflito do foro45.
Posto isto, versando o contrato de factoring sobre créditos futuros, deve considerar-se de relevante importância, no domínio definição da posição do devedor, a determinação do momento em que a cessão dos créditos se operará. Quer se trate de um contrato duradouro, cujo crédito assente numa relação já existente, quer se trate de um contrato a celebrar que originará um crédito, deve equacionar-se se o contrato de factoring, em si mesmo, permite determinar quando se opera a transmissão dos créditos para o factor. Se o momento da realização da cessão se determina por via da celebração do contrato de factoring, o devedor poderá perder, durante todo o período de vigência do contrato celebrado entre o factor e o aderente, a possibilidade de lançar mão de meios de defesa perante aquele (nomeadamente, a questão controvertida ligada à compensação46), o que não se nos afigura razoável. Se a cessão opera no momento do nascimento do crédito na esfera jurídica do aderente com transmissão automática para o factor, então, ainda que o contrato de factoring tenha sido notificado ao devedor deveria este conservar até este momento todos os meios de defesa, nomeadamente, a possibilidade de compensar o crédito cedido com outro crédito de que seja titular sobre o aderente (ainda que possa emergir de facto posterior à notificação do contrato de factoring)47.
Pelo que, não se devendo confundir o negócio que serve de base à cessão de créditos futuros com a cessão em si mesma, o conhecimento por parte do devedor, suscetível de obstar à oponibilidade de meios de defesa ao factor, só pode verificar-se após a determinação do momento do surgimento do próprio crédito. Com o surgimento do crédito na esfera jurídica do aderente e com transmissão automática para o factor inicia-se o período a partir do qual o conhecimento da cessão por parte do devedor se pode verificar. Até este momento, mais ou menos longo (conforme demore mais ou menos
44 BRITO, M. H., O «factoring» internacional e a Convenção do UNIDROIT, Edições Cosmos, Lisboa, 1998, p. 56.
45 Idem, ibidem, p. 57. Há, no entanto, no domínio dos Principles Of European Contract Law (PECL) a consagração de uma via para a determinação do momento de produção de efeitos da cessão de créditos futuros (“An assignment of a future claim is dependent upon the assigned claim coming into existence but thereupon takes effect from the time of the agreement to assign or such later time as the assignor and assignee agree” art. 11:202, §(2)).
00 Xx. XXX, de 04 de maio de 2010; Ac. STJ de 27 de maio de 2004; Ac. STJ de 08 de março de 2007; in xxx.xxxx.xx.
47 Neste domínio aderimos à teoria da transmissão, pelo que “a perfeição do contrato não se atinge no momento da sua outorga, mas apenas aquando do nascimento do crédito cedido e caso se tenham verificado as condições de transferência” na pessoa do cedente (vide Ac. TRC, de 06 de março de 2001, in xxx.xxxx.xx.
tempo a surgir o crédito futuro cedido no domínio do contrato de factoring) poderá o devedor “adquirir” meios de defesa perante o aderente, que poderão ser mobilizados no momento em que o factor lhe exija o pagamento.
Aliás, se assim não for, várias outras exceções que o devedor pode opor ao devedor (nomeadamente, a de que o crédito é simulado ou nulo por outra causa) poderão ser colocadas em causa, porquanto estamos perante exceções que obstam ao nascimento do crédito48. Se a simulação do crédito se verificar após a celebração do contrato de factoring o devedor deve, ainda assim, poder convoca-la para se opor ao pedido de pagamento por parte do factor.
Esta perspetiva parece-nos, de iure constituto, a mais conforme com a ideia que subjaz a toda a construção do regime jurídico da cessão de créditos no que à posição jurídica do devedor diz respeito, ou seja, a sua posição jurídica só deverá sofrer alterações nas situações em que é ele mesmo a dar causa à necessidade de tutela de outros interesses que o Direito visa salvaguardar.
Destarte, propendemos para considerar que, independentemente da conceção que se possa ter sobre a natureza unitária ou dual do contrato de factoring, o devedor poderá opor todos os meios de defesa que emerjam de factos anteriores ao surgimento do crédito futuro. Ainda que a transmissão do crédito tenha como causa o contrato de factoring, será de admitir que um determinado facto suscetível de fazer nascer na esfera jurídica do devedor determinado crédito sobre o aderente, antes do surgimento do crédito cedido na esfera jurídica do factor, possa ser invocado perante este para efeitos de compensação.
VI. A renúncia do devedor aos meios de defesa.
Que o principio segundo o qual o devedor não pode ficar numa posição mais onerosa do que aquela em que se encontrava antes da cessão do crédito, no âmbito do contrato de factoring celebrado entre aderente e factor, possa impedir que aquele fique “onerado” com deveres perante o factor é uma questão a exigir prudente resposta, conforme referido supra. Mas, a esta questão pode associar-se outras.
Poderá o silêncio do devedor perante a cessão de créditos operada por via do contrato de factoring ter algum significado juridicamente relevante no domínio dos meios de defesa oponíveis do factor? E a sua declaração de aceitação?
Mediante a notificação do factor (se a este competir fazê-la), o devedor pode optar por não se pronunciar, aguardar a exigência do crédito por parte daquele e nesse momento defender-se. O seu silêncio só xxxxxxx como declaração negocial se tal valor lhe fosse atribuído por lei, uso ou convenção (art. 218º CC). Xxxxxxxx não é, por isso, declaração; pode, apenas, valer como declaração49. A solução legal está em perfeita concordância com
48 XXXXXX, XXXXXXX e XXXX, PIRES DE, Código Civil, cit., p. 600.
49 MENEZES CORDEIRO, A.: Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo 1, Almedina, Coimbra, 2011, p. 545
o princípio da autonomia da vontade das pessoas50. Não seria admissível que perante uma determinada proposta negocial o destinatário tivesse de adotar uma determinada conduta. Pelo que, por maioria de razão, no domínio do contrato de factoring, o devedor não pode ser onerado com qualquer conduta que não provenha da sua autodeterminação, perante a mudança de titularidade de um crédito que nem sequer necessita do seu consentimento.
Questão de maior densidade será a determinação do sentido de uma eventual declaração de aceitação da cessão de créditos operada no domínio do contrato de factoring. Para além dos deveres que possam ser imputáveis ao terceiro devedor51, há que determinar se da declaração de aceitação não podem resultar outras consequências, nomeadamente, uma renúncia ao exercício do direito de oponibilidade de meios de defesa perante o factor.
A renúncia abdicativa não necessita de assentar num determinado negócio jurídico, pois a declaração unilateral é o modo normal de se exprimir uma determinada vontade abdicativa52. Se a considerarmos também unilateral e irrevogável53, a posição do devedor face ao factor poderá não permanecer imutável, pois que já não se trata daquele ficar onerado por via de uma cessão de crédito que não necessitou do seu consentimento. Trata-se, agora, de extrair determinados efeitos da sua atuação (da sua autodeterminação), nomeadamente, a perda de direitos, tendo em conta os moldes em que declarou aceitar a cessão do crédito.
Se da sua declaração de aceitação resultar uma renúncia expressa à invocação de determinados direitos de defesa perante o factor, tal circunstância implicará uma alteração da sua posição jurídica por via de declaração emitida por palavras, documento ou qualquer outro meio direto de manifestação de vontade (art. 217º CC).
Da mesma forma, o devedor poderá renunciar tacitamente ao exercício dos seus direitos de defesa perante o factor. A determinação desta renúncia depende de um processo dedutivo, pelo que a resposta sobre se o devedor renunciou ao exercício desses direitos perante o factor mostra-se tarefa que só pode ser levada a cabo por parte do julgador, atendendo às circunstâncias do caso concreto. O julgador terá de determinar se no âmbito da declaração de aceitação se verificou algum facto que com toda a probabilidade revele a referida renúncia abdicativa.
Essa, eventual, renúncia tácita por parte do devedor terá sempre de se sujeitar ao escrutínio de uma “eventual verificação de erro-vicio – na medida em que o declarante poderá
ss. “[…] a declaração negocial é algo ontologicamente autónomo, que existe ou não existe; não pode qualquer lei fazer mais do que aproximar regimes, sem criar algo de inexistente. Quando o silêncio tenha, pois, tal alcance, não é de uma declaração que se trata, mas antes de uma transposição de regimes – sempre na medida do possível e com as necessárias adaptações”.
50 DA XXXX XXXXX, C. A.: Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 3ª edição, 1996, p. 427.
51 Cf. supra ponto IV.
52 DE XXXXX XXXXXXX XXXXXX, F. M.: A renúncia abdicativa no Direito Civil, BFDUC, Stvdia Ivridica 8, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 104.
53 Idem, ibidem, p. 124 ss.
desconhecer a existência de certas exceções e não pretender que a renúncia valesse quanto a elas – ou mesmo de uma falta de consciência da declaração”54.
Ainda que o tratamento da questão da renúncia se debata com questões de nebulosa resposta, a declaração de aceitação por parte do devedor pode levantar questões de abuso de direito, na vertente de venire contra factum proprium. Se a declaração de aceitação por parte do devedor for capaz de gerar no factor uma convicção de que aquele procederá ao pagamento do crédito nos exatos termos da notificação que lhe foi efetuada, haverá espaço para a proteção da confiança. A contradição entre um comportamento anterior do devedor e a sua posterior manifestação de vontade de opor ao factor um meio de defesa será suficiente para que a ordem jurídica impeça o exercício abusivo do direito de oponibilidade55.
Abreviaturas
Ac.: Xxxxxxx
BFDUC: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra BGB: Bürgerliches Gesetzbuch (Código civil alemão)
CC / CCiv: Código Civil português
54 XXXXX, X.: Contrato de factoring e gestão do risco: análise de alguns mecanismos jurídicos – a renúncia a meios de defesa e as cláusulas de incedibilidade, in “O contrato na gestão do risco e na garantia da equidade” (Coord. Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx), Instituto Jurídico – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2015, p. 242. As reservas levantadas por Xxxxxxxx Xxxxx, neste desenvolvido trabalho sobre o factoring, quanto à renúncia, por parte do devedor, “à faculdade, conferida pelo art. 585º CCiv., de opor como meio de defesa ao novo credor as consequências do respetivo exercício” (p. 222), têm uma pertinência inquestionável. Não obstante, tendemos a considerar que, no domínio da aceitação da cessão de créditos baseada num contrato de factoring, o comportamento do devedor pode adquirir contornos que não poderá reconduzir-se, apenas, a “um acto praticado pelo devedor atestando que teve conhecimento da cessão” (p. 239). Julgamos que o calcorrear do terreno específico onde se situa a cessão de créditos, derivada de contrato de factoring, permite que se equacione se as soluções legais previstas (no código civil português), para cessão isolada de créditos, podem ser aplicadas no domínio de um contrato que, conforme se referiu, é caracterizado por uma “pluralidade funcional” e que coloca o devedor em constante, e permanente, interação com o factor. Por seu turno, a aceitação por parte do devedor poderá não significar, apenas, atestação do conhecimento da cessão; a aceitação poderá, à imagem do que sucede nos negócios jurídicos (art. 233º, ex vi o disposto no art. 295º do CC), ser uma manifestação de vontade de apresentação de uma proposta tendente a regular as futuras interações com o factor.
55 XXXXXXXX XXXXXXX, X.: Tutela da confiança e “Venire Contra Factum Proprium”, in Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx – Obra dispersa –, Vol. I, Scientia Ivridica, Braga, 1991, p. 404. Considera o autor que para a perda/paralisação do exercício de um direito “bastaria o facto de a conduta que o exercita representar um
«venire contra factum proprium», seja, o entrar em contradição com uma conduta anterior em que se originou uma situação de risco de dano para outrem, sendo que a conduta actual do mesmo agente viria justamente concretizar esse risco, cuja criação lhe deve ser imputada. Apenas fica vedado ao agente concretizar tal risco provocando os correspondentes danos. Ora, compreende-se que a protecção da confiança seja, nestes termos fundamento bastante para inibir o agente de exercer o direito que causaria os referidos danos, embora o não fosse para o vincular juridicamente a qualquer obrigação stricto sensu”.
PECL: Principles Of European Contract Law STJ: Supremo Tribunal de Justiça português
TRC: Tribunal da Relação de Coimbra (tribunal de 2ª instância em Portugal) TRP: Tribunal da Relação do Porto (tribunal de 2ª instância em Portugal) UNIDROIT: International Institute for the Unification of Private Law
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