CONTRATO EM MOEDA ESTRANGEIRA E ONEROSIDADE EXCESSIVA
DOI: 10.33242/rbdc.2020.03.011
CONTRATO EM MOEDA ESTRANGEIRA E ONEROSIDADE EXCESSIVA
Xxxx Xxxxxxx Xxxx e Tucci
Regente da disciplina Direito Processual Civil nos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP.
Palavras-chave: Contratos celebrados em moeda estrangeira. Partes contratantes domiciliadas no Brasil. Vedação legal. Inaplicação das exceções previstas no art. 2º do DL nº 857/69. Nulidade dos negócios. Construção pretoriana que admite a contratação em moeda estrangeira. Conversão da moe- da na data da celebração do negócio acrescida de correção monetária até o efetivo pagamento. Tese consolidada no STJ. Notória crise econômica. Manifesta vantagem de um contratante em detrimento do patrimônio do outro. Incidência da teoria da onerosidade excessiva. Possibilidade de revisão dos termos do contrato.
Sumário: 1 Consulta – 2 Parecer
1 Consulta
Honra-me a empresa XXX, por meio de seus ilustres advogados, formulando consulta acerca de questões de natureza material, emergentes de negócios pac- tuados com o Banco XXX.
Esclarecendo os fatos, embora sucinta, suficientemente, com a apresenta- ção de consulta e exibição de cópias dos principais documentos, submeteram-me as correspondentes indagações, do seguinte teor:
1. As previsões de pagamento em moeda estrangeira, previstas nos contra- tos de mútuo, acima referidos, são válidas considerando as vedações a este tipo de disposição em nosso ordenamento jurídico?
2. Estariam os contratos acima inseridos dentro de alguma das hipóteses previstas no Decreto-Lei nº 857-69?
3. Há alguma influência às respostas acima o fato do XXX Genebra ser agên- cia no exterior de instituição financeira brasileira (Banco XXX)?
4. É possível inserir os contratos no âmbito do entendimento firmado no julgamento do Recurso Especial nº 1.323.219-RJ, da relatoria da Ministra Nancy
Andrighi (obrigações em moeda estrangeiras devem ser convertidas para BRL con- siderando o câmbio do momento da contratação)?
5. Mesmo considerando a jurisprudência majoritária nos tribunais brasilei- ros, é possível inserir a variação cambial atual dentro do contexto de algum dos institutos de revisão contratual existentes em nosso Código Civil (teoria da impre- visão, onerosidade excessiva, caso fortuito/força maior)?
Desse modo, objetivas e específicas as questões formuladas pelos doutos patronos da Consulente, despiciendas tornam-se, à evidência, mais alentadas considerações preambulares, passando, por isso, a examiná-las, com as indis- pensáveis ponderação e efetividade, para, em sequente conclusão, responder os quesitos transcritos.
2 Parecer
2.1 Síntese do objeto da consulta
A presente consulta envolve três principais problemas: primeiro, deve ser enfrentada a questão da higidez jurídica e a natureza dos contratos de mútuo cele- brados pela Consulente; segundo, qual o momento de conversão da moeda estran- geira para a liquidação dos respectivos empréstimos; e, por fim, se tais avenças encontram-se expostas à crise econômica gerada pela pandemia do coronavírus.
São temas visivelmente entrelaçados e, portanto, devem ser examinados em sequência lógica.
Cumpre-me ressaltar, de logo, que, diante da proximidade das respectivas datas de liquidação dos contratos de empréstimos que tomou, considerando a abrupta variação da cotação das moedas estrangeiras, em nosso país, devido à superveniente eclosão de inequívoca e notória instabilidade do mercado financei- ro, a Consulente pretende, com o presente parecer, obter subsídios para nortear- se na oportunidade em que for exigido o cumprimento das obrigações então por ela assumidas.
Assim, o precípuo escopo desse parecer é o de aprofundar a análise da vali- dade e eficácia dos referidos contratos, firmados no Brasil, por partes brasileiras, que têm como objeto mútuo em moeda estrangeira.
2.2 Características genéricas dos contratos celebrados pela Consulente
O exame dos documentos submetidos à minha apreciação evidencia que a Consulente, no desempenho de suas atividades comerciais, firmou dois contratos
de mútuo, em valores fixados em moeda estrangeira, cujas características princi- pais de cada um são as seguintes:
(i) Cédula de Crédito para Financiamento à Importação nº XXX, celebrado, em 29.7.2019, com o Banco XXX, no valor de 4.500.000 dólares norte-ameri- canos, tendo como beneficiária a filial do Banco XXX, situada em Genebra, lugar da praça de pagamento, com vencimento em 23.7.2020; e
(ii) Cédula de Crédito Bancário nº LO-3005/20, celebrado, em 30.1.2020, com o Banco XXX, no valor de 5.000.000 euros, tendo como beneficiária a filial do Banco XXX, situada em Genebra, lugar da praça de pagamento, com vencimento em 25.1.2021.
A despeito de diferentes peculiaridades de cada um dos negócios, sobretudo no que concerne às garantias prestadas e à taxa de juros e encargos incidentes, dúvida não há de que as duas avenças foram formalizadas com entidade financei- ra brasileira, com praça de pagamento situada no exterior, e, ainda, na certeza de que o valor mutuado em ambos é representado por moeda corrente estrangeira.
Estes, em apertada síntese, os horizontes do objeto da consulta formulada que interessam ao desenvolvimento do presente parecer.
2.3 Regramento legal dos negócios pactuados em moeda estrangeira
Passando então a examinar os questionamentos que foram submetidos pela Consulente à minha apreciação, devo inicialmente esclarecer que no contexto do significativo intervencionismo estatal adotado pelo governo brasileiro na econo- mia, notadamente devido ao nosso histórico inflacionário, vigora na legislação pátria o curso forçado da moeda. Isso significa que, ex vi legis, é obrigatória a utilização de moeda corrente nacional nas operações que envolvem pagamento em dinheiro constituídas e realizadas em nosso território, como, v.g., aquelas formalizadas por meio de contratos e/ou de instrumento de cessão de créditos.
Realmente, a análise da legislação brasileira sobre a questão central a ser por mim interpretada revela que, em princípio, há vedação quanto à pactuação de obrigações em moeda estrangeira, de conformidade com o disposto no art. 1º do Decreto-Lei nº 857, de 11.9.1969, que consolidou e alterou a legislação sobre moeda de pagamento de obrigações constituídas no Brasil; na Lei nº 10.192, de 14.2.2001, que dispõe sobre medidas complementares ao Plano Real e dá outras providências; e nos arts. 315 e 318 do Código Civil.
Tendo em vista que, de um modo geral, aos contratos e aos instrumentos de cessão de crédito celebrados em território nacional e por partes domiciliadas no
Brasil, a estipulação de pagamento em moeda estrangeira é vedada, sob pena de declaração de nulidade do contrato. Conforme a literalidade dos aludidos textos legais, infere-se que (i) as dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal; e (ii) são nulas as convenções de paga- mento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como pactos para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional (indexação), excetuados os casos previstos na legislação especial.
Nota-se que essa proibição encontra fundamento na proteção e valorização da moeda corrente nacional, que, por tratar-se de matéria de ordem pública, em regra, não pode ser desconsiderada por convenções particulares, sob pena de nulidade.1
No entanto, já na segunda metade do século passado, o legislador nacional anteviu o fenômeno da globalização, ao relativizar, em algumas situações espe- cíficas, o óbice legal, autorizando, como exceção à regra, a pactuação em moeda estrangeira.
Com efeito, consoante a atual redação do disposto no art. 2º do suprarrefe- rido Decreto-Lei nº 857/69, textual:
Não se aplicam as disposições do artigo anterior:
I - aos contratos e títulos referentes a importação ou exportação de mercadorias;
II - aos contratos de financiamento ou de prestação de garantias re- lativos às operações de exportação de bens de produção nacional, vendidos a crédito para o exterior;
III - aos contratos de compra e venda de câmbio em geral;
IV - aos empréstimos e quaisquer outras obrigações cujo credor ou devedor seja pessoa residente e domiciliada no exterior, excetuados os contratos de locação de imóveis situados no território nacional;
V - aos contratos que tenham por objeto a cessão, transferência, de- legação, assunção ou modificação das obrigações referidas no item anterior, ainda que ambas as partes contratantes sejam pessoas residentes ou domiciliadas no país.
Desse modo, desde que o negócio celebrado observe as premissas acima traçadas, a estipulação em moeda estrangeira torna-se válida e eficaz, perante o
1 V., nesse sentido, XXXXXXX, Xxxxx xx Xxxxxxx. Validade de obrigações estipuladas em moeda estrangei- ra. São Paulo: [s.n.], 2013.
direito brasileiro, sendo certo que, em qualquer hipótese, o pagamento deverá ser feito em moeda corrente nacional.
Não é, contudo, o que se verifica com as contratações firmadas pela Consulente, visto que as duas foram pactuadas com entidade financeira sediada no Brasil, pouco importando, à evidência, a respectiva praça de pagamento.
Para se chegar a essa conclusão basta extrair dos respectivos instrumentos contratuais a sua própria literalidade, quanto à qualificação das partes contratantes:
I – Partes
BANCO XXX – GENEBRA BRANCH, com endereço na Rue XXX, doravan- te denominado XXX, uma agência no exterior do Banco XXX, institui- ção financeira com sede na Xxxxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxx Xxxx, XXX, Xxx Xxxxx, XX, Xxxxxx, inscrita no CNPJ sob o n. 00.000.000//0001-00.
Ademais, as duas avenças, celebradas no Brasil, entre contratantes sedia- dos em território brasileiro, e regidas pelas leis brasileiras, estão formalizadas em instrumentos redigidos em português, cujo foro de eleição é o da Capital do Estado de São Paulo.
Até mesmo o CNPJ da beneficiária, na qualidade de mera filial – branch –, ostenta idêntica numeração, alterando-se apenas os últimos algarismos, a de- monstrar que a respectiva matriz, sediada no Brasil, detém o controle e o integral poder de administração da filial, situada em Genebra. Em suma: os contratos sequer têm como beneficiária pessoa jurídica autônoma!
Infere-se, portanto, que os dois empréstimos tomados pela Consulente fo- ram contraídos com pessoa jurídica nacional, sendo absolutamente indiferente que a praça de pagamento em ambos esteja situada no exterior.
Cumpre-me, pois, asseverar que tais avenças têm a natureza de contratos bancários nacionais, sobretudo porque entre pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil, estipulando empréstimo em moeda estrangeira.
Desse modo, à luz da legislação vigente em nosso ordenamento jurídico, estes negócios, a rigor, deveriam ser considerados visceralmente nulos.
Observe-se, no entanto, que, diante da significativa incidência, no tráfico negocial de época contemporânea, de contratos nacionais em moeda estrangeira, diversas questões acabaram sendo submetidas à apreciação do Poder Judiciário. Daí porque a interpretação das normas supramencionadas gerou segura orientação jurisprudencial sobre os contratos em moeda estrangeira, que não se enquadram entre as exceções previstas no supratranscrito art. 2º do Decreto-Lei
nº 857/69, a ser analisada em imediata sequência.
2.4 Posicionamento jurisprudencial relativo aos contratos celebrados pela Consulente
Como procurei frisar, inexiste qualquer dúvida de que os contratos bancários nacionais que emergem da consulta em apreço se subordinam à vedação prevista, em particular, no art. 1º do Decreto-Lei nº 857/69 e no art. 318 do Código Civil.
Todavia, com o tempo, os tribunais pátrios, em particular, o Superior Tribunal de Justiça, ponderaram que, caso o empréstimo fosse realmente declarado nulo, por ter sido tomado em moeda estrangeira, haveria, de fato, inequívoco enriqueci- mento sem causa de um dos contratantes – o mutuário –, visto que seria perfeita- mente possível a situação na qual uma parte tivesse obtido vantagem do negócio e, posteriormente, alegasse a sua nulidade para ficar desobrigada do pagamento da contraprestação devida.
Daí porque, por paradoxal que possa parecer, o negócio jurídico potencialmen- te ilegal tem os seus efeitos reconhecidos pela nossa jurisprudência, ou seja, o contrato celebrado no Brasil, entre partes sediadas em território nacional, com pre- visão em moeda estrangeira, vedada pela lei, tem a sua exigibilidade reconhecida.2 Atualmente, então, sobre essa temática, prevalecem duas orientações con- vergentes nos domínios do Superior Tribunal de Justiça, que podem ser sintetiza-
das da seguinte forma:
a) sendo hipótese de contrato internacional, inserido nas exceções previs- tas no art. 2º do Decreto-Lei nº 857/69, a indexação pela moeda estran- geira descortina-se legal, devendo ser convertida pela cotação da data do efetivo pagamento; e
b) sendo hipótese de contrato nacional, celebrado entre partes brasileiras, admite-se a estipulação em moeda estrangeira, devendo, no entanto, ser convertida pela cotação da data da celebração do negócio, atualizada pela correção monetária.
E, para esta derradeira situação, infere-se que o Superior Tribunal de Justiça sedimentou entendimento no sentido de que, a despeito de ser reputada válida a contratação em moeda estrangeira, a liquidação deve ser feita no valor da moeda nacional da data da cotação do momento do fechamento do contrato.
Segundo essa tese, prestigiada em inúmeros precedentes, os contratos, não excepcionados pelo indigitado art. 2º do Decreto-Lei nº 857/69, que atrelam valo- res em moeda estrangeira ou correção com base na variação cambial são válidos, mas as cláusulas que preveem o valor à moeda estrangeira são destituídas de
2 Cf., a propósito, SIQUEIRA, Xxxxxxx Xxxxxxx. Obrigação com conversão de pagamento em moeda estran- geira. Revista Direito GV, São Paulo, v. 7, jan./jun. 2008. p. 165 e ss.
qualquer efeito. Ao converter o preço para reais com base na cotação da moeda estrangeira na data da celebração do contrato, e atualizar o preço a partir de então pelo índice oficial de correção monetária, retira-se qualquer impacto que a moeda estrangeira poderia ter sobre o montante da operação celebrada no Brasil.
Com efeito, desde o leading case, representado pelo julgamento unânime da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 804.791-MG, com voto condutor da Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, esta tem sido a interpretação nor- teadora de sucessivos arestos.
Extrai-se, com efeito, desse importante precedente, in verbis:
O art. 1º do Dec. 23.501/33 proíbe a estipulação de pagamentos em moeda estrangeira, regra essa mantida pelo art. 1º do DL 857/69 e pelo art. 1º da Lei 10.192/01 e, mais recentemente, pelos arts. 315 e 318 do CC/02. A vedação aparece, ainda, em leis especiais, como no art. 17 da Lei 8.245/91, relativa à locação. A exceção a essa regra geral vem prevista no art. 2º do DL 857/69, que enumera hipóteses em que se admite o pagamento em moeda estrangeira.
A despeito disso, pacificou-se no Superior Tribunal de Justiça o en- tendimento de que são legítimos os contratos celebrados em moeda estrangeira, desde que o pagamento se efetive pela conversão em moeda nacional.
O entendimento supra, porém, não se confunde com a possibilidade de indexação de dívidas pela variação cambial de moeda estrangeira, vedada desde a entrada em vigor do Plano Real (Lei 8.880/94), ex- cepcionadas as hipóteses previstas no art. 2º do DL 857/69.
Quando não enquadradas nas exceções legais, as dívidas fixadas em moeda estrangeira não permitem indexação. Sendo assim, havendo previsão de pagamento futuro, tais dívidas deverão, no ato de quita- ção, ser convertidas para moeda nacional com base na cotação da data da contratação e, a partir daí, atualizadas com base em índice de correção monetária admitido pela legislação pátria. (Grifos nossos)
Em sequência temporal, mais incisivo ainda é o conhecido julgamento da 3ª Turma, do Recurso Especial nº 1.323.219-RJ, ainda uma vez, da relatoria da Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, ao decidir:
O art. 1º da Lei 10.192/01 proíbe a estipulação de pagamentos em moeda estrangeira para obrigações exequíveis no Brasil, regra essa encampada pelo art. 318 do CC/02 e excepcionada nas hipóteses previstas no art. 2º do DL 857/69. A despeito disso, pacificou-se no
Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que são legítimos os contratos celebrados em moeda estrangeira, desde que o pagamento se efetive pela conversão em moeda nacional.
A indexação de dívidas à variação cambial de moeda estrangeira é prática vedada desde a entrada em vigor do Plano Real, excepciona- das as hipóteses previstas no art. 2º do DL 857/69 e os contratos de arrendamento mercantil celebrados entre pessoas residentes e domiciliadas no País, com base em captação de recursos provenien- tes do exterior (art. 6º da Lei 8.880/94).
Quando não enquadradas nas exceções legais, as dívidas fixadas em moeda estrangeira deverão, no ato de quitação, ser convertidas para a moeda nacional, com base na cotação da data da contratação, e, a partir daí, atualizadas com base em índice oficial de correção mone- tária. (Grifos nossos)
Pouco tempo depois, a mesma 3ª Turma, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.447.291-RS, com voto condutor do Ministro Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, averbou:
[...] Do mesmo modo, o entendimento trazido nas razões recursais de que a conversão da dívida contraída em dólar somente se realizaria ao câmbio vigente na data do efetivo pagamento (REsp n. 647.672) encontra-se há muito tempo superado, conforme demonstrado na de- cisão agravada.
Em recente julgado (Resp. n. 1.323.219), firmou-se ainda orientação no sentido de que a dívida contraída em moeda estrangeira deverá ser convertida em moeda nacional com base na cotação da data de contratação, incidindo a partir daí correção monetária. (Grifos nossos)
A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, a seu turno, secundando essa mesma tese, teve oportunidade de pronunciar-se a respeito, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.325.603-SP, relatado pelo Ministro Xxxxx Xxxxx, ao assentar, repetindo os anteriores precedentes, in verbis:
Quando não enquadradas nas exceções legais, as dívidas fixadas em moeda estrangeira deverão, no ato de quitação, ser convertidas para a moeda nacional, com base na cotação da data da contratação, e, a par- tir daí, atualizadas com base em índice oficial de correção monetária.
Nesse idêntico sentido, de forma deveras didática, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao ensejo do julgamento do Agravo Interno do Agravo em
Recurso Especial nº 1.286.770-RJ, da relatoria do Ministro Xxxx Xxxxxx, procla- mou, in verbis:
As dívidas fixadas em moeda estrangeira deverão, no ato de quita- ção, ser convertidas para a moeda nacional, com base na cotação da data da contratação, e, a partir daí, atualizadas com base em índice oficial de correção monetária.
Nos casos em que a dívida é líquida e com vencimento certo, os juros de mora e a correção monetária devem incidir desde o vencimento da obrigação, mesmo nos casos de responsabilidade contratual.
Por fim, é o que também se extrai de precedente da 3ª Turma, no julga- mento do Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.342.000-PR, relatado pelo Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, ao deixar patenteado, textual:
O Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que, ‘as dívidas fixadas em moeda estrangeira deverão, no ato de quitação, ser convertidas para a moeda nacional, com base na cotação da data da contratação, e, a partir daí, atualizadas com base em índice oficial de correção monetária’ (REsp. 1.323.219/RJ, Rel. Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, DJe 26/9/2013).
Segundo esse entendimento, portanto, a despeito de a nossa legislação prever a nulidade da estipulação de valor ou cláusula de correção vinculada à moeda estrangeira, as mencionadas disposições legais, por força de construção pretoriana, acabam por produzir plena eficácia. Isso porque o valor do negócio, convertendo-se pela cotação na data de sua consumação, não será indexado pela variação cambial, sendo apenas atualizado pela correção monetária até o termo da obrigação.
Aduza-se, por outro lado, que, caso o negócio preencha uma das hipóteses excepcionais contempladas no já aludido art. 2º do Decreto-Lei nº 857/69, como acima ressaltado, a conversão da moeda se dará pelo valor da data do adimple- mento.
É esse, a propósito, como acima frisado, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, quando o contrato é aperfeiçoado com pessoa jurídica sedia- da no exterior, colhendo-se, por exemplo, no julgamento da 4ª Turma, no Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.299.460-SP, cujo acórdão é da lavra do Ministro Xxxxx Xxxxx, ao considerar contrato internacional de intermediação, atre- lado à moeda estrangeira, na respectiva ementa:
AÇÃO DE COBRANÇA – PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE INTERME- DIAÇÃO NA CONTRATAÇÃO DE JOGADOR DE FUTEBOL - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU SEGUIMENTO AO APELO EXTREMO - IN- SURGÊNCIA DA RÉ.
A jurisprudência do STJ entende que, em se tratando de obrigação constituída em moeda estrangeira, a sua conversão em moeda nacio- nal deve ocorrer na data do efetivo pagamento.
Importa outrossim salientar que o Tribunal de Justiça de São Paulo sufraga integralmente esse entendimento, reconhecendo que se a contratação se inserir nas exceções previstas no art. 2º do Decreto-Lei nº 857/69, é legítima a indexação por moeda estrangeira, devendo o valor do negócio ser convertido pela cotação da data de seu respectivo pagamento, extraindo essa tese, e.g., do julgamento da Apelação nº 1015885-68.2016.8.26.0554, pela 23ª Câmara de Direito Privado, de 12.12.2018, no qual discutido contrato em moeda estrangeira, celebrado com entidade financeira sediada no exterior, vale dizer, banco brasileiro registrado como pessoa jurídica autônoma em Tóquio, no Japão (v., ainda, TJSP, 38ª Câmara de Direito Privado. Apelação nº 1014504-45.2016.8.26.0224, j. 19.4.2018).
2.5 Manifesta onerosidade excessiva decorrente da crise econômica gerada pela pandemia
Embora praticamente desnecessário, considerando o quanto exposto nos itens anteriores, para atender aos quesitos que me foram formulados, devo agora enfrentar a questão de saber se a eventual abrupta variação cambial pode ser enquadrada no contexto dos institutos que admitem a revisão dos contratos cele- brados pela Consulente.
Início a minha análise reportando-me às fontes do direito romano clássico para anotar que, àquela época, já se tinha noção do significado das expressões vis e vis maior, admitindo os romanos, dentro daquele espírito fatalista que tão bem os caracterizava, que havia forças muito superiores à compreensão do homem, capazes de levar para direções completamente diferentes seus fracos desígnios.
O jurista xxxxxx Xxxx, autor das célebres Institutas, afirmava que “vis maior est cui humana infirmitas non potest”, ou seja, força maior é aquela que a fraque- za humana não pode resistir.
Quando ocorria, ou quando, em consequência do fato do príncipe, o devedor se via impossibilitado de cumprir a palavra empenhada, proclamava-se-lhe, em caráter excepcional, a isenção de responsabilidade.
O conceito romano foi recepcionado pelo direito moderno, ao reconhecer na força maior um acontecimento relacionado a fatos externos, independentes da vontade humana, que impedem o cumprimento superveniente das obrigações. Esses fatos externos podem ser: ordem de autoridades (fato do príncipe), fe- nômenos naturais (raios, terremotos, inundações etc.) ou ocorrências políticas (guerras, revoluções etc.).
Em certas situações, são acontecimentos imprevistos, provindos da própria natureza: um raio que provoca o incêndio do armazém em que se encontrava a mercadoria que devia ser entregue em determinado prazo, uma inundação que submerge os teares de uma indústria, uma tempestade que rompe os fios do telégrafo, do telefone, um abalo sísmico que abre barrancos ou faz cair barreiras nas vias de comunicação.
Em outras ocasiões, trata-se de um fato imprevisto, proveniente de terceiros: uma guerra, uma revolução, a mudança repentina da orientação do governo em relação a determinado assunto, a colocação de uma mercadoria fora do comércio, a constatação de que determinada patente de invenção não pode ser explorada por haver outra similar registrada com anterioridade.3
Centra-se aí o problema que os legisladores de época atual inserem no texto legal sob a rubrica do caso fortuito ou força maior, geralmente, apontando como sinônimas ambas as expressões.
O Código Civil pátrio, no art. 393, secundando a mesma regra que discipli- na essa questão em muitos diplomas estrangeiros, depois de assinalar que o devedor responde por perdas e danos quando não cumprir a obrigação ou deixe de cumpri-la pelo modo e no tempo devidos, dispõe que ele “não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”.
Sem embargo da justificativa que apresenta, a lei obriga todo indivíduo a certo grau de previdência e de diligência, que são próprios do comportamento humano na regulamentação das suas relações contratuais.
Oportuno é referir que a doutrina mais abalizada ainda traça a distinção entre força maior ou caso fortuito interno e externo. Verifica-se a força maior ou o caso fortuito interno durante o processo de elaboração do produto ou execução do serviço, não eximindo a responsabilidade civil do produtor ou prestador do serviço. Já a força maior ou o caso fortuito externo é alheio ou estranho ao processo de elaboração do produto ou execução do serviço ou do cumprimento da obrigação, de forma a excluir a responsabilidade civil.
3 Cf. XXXXXX, Xxxxxxx. Caso fortuito ou de força maior. Revista da Faculdade de Direito da USP, 1965.
p. 56 e ss.
Há, a propósito, emblemático precedente da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 976.564-SP, da relatoria do Ministro Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, no qual restou decidido:
A força maior deve ser entendida, atualmente, como espécie do gê- nero fortuito externo, do qual faz parte também a culpa exclusiva de terceiros, os quais se contrapõem ao chamado fortuito interno. O roubo, mediante uso de arma de fogo, em regra é fato de terceiro equiparável a força maior, que deve excluir o dever de indenizar, mes- mo no sistema de responsabilidade civil objetiva.
Com o julgamento do REsp. 435.865-RJ, pela 2ª Seção, ficou paci- ficado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que, se não for demonstrado que a transportadora não adotou as cautelas que razoavelmente dela se poderia esperar, o roubo de carga constitui motivo de força maior a isentar a sua responsabilidade.
Perfilhando esse mesmo entendimento, a 3ª Turma do mesmo Sodalício fe- deral, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial nº 823.101-RJ, com voto condutor do Ministro Xxxxxxx Xxxxxx Xxxx Xxxxx, assentou, textual:
A 2ª Seção desta Corte Superior firmou entendimento de que, não obstante a habitualidade da ocorrência de assaltos em determinadas linhas, é de ser afastada a responsabilidade da empresa transporta- dora por se tratar de fato inteiramente estranho à atividade de trans- porte (fortuito externo), acobertado pelo caráter da inevitabilidade.
Ressalte-se, por outro lado, que a onerosidade excessiva se caracteriza quando um evento imprevisível dificultar extremamente o adimplemento do contra- to por uma das partes.
A excessiva onerosidade é gerada por ocorrências atípicas e determinan- tes de significativa alteração no estado de fato contemporâneo à celebração do contrato, implicando consequências de todo imprevisíveis que irão proporcionar enorme sacrifício a uma das partes para o cumprimento de sua obrigação.
Desde a concepção medieval da cláusula rebus sic stantibus admite-se que a modificação superveniente do status quo ante pode colocar em crise o adimple- mento das obrigações assumidas. Na verdade, durante o século XX, sobretudo após a I Guerra Mundial, a teoria da excessiva onerosidade, mesmo antes da edi- ção da famosa Loi Failliot, de 1918, em França, a Itália já havia baixado, três anos
antes, alguns textos legais que flexibilizavam o princípio do pacta sunt servanda, em atenção aos efeitos do conflito bélico.4
A partir desse momento referida teoria foi sendo aperfeiçoada pelos civilis- tas italianos, a ponto de ser finalmente consagrada nos arts. 1.467 e 1.468 do Codice Civile de 1942.5
No âmbito do sistema jurídico brasileiro, a teoria da excessiva onerosidade foi adotada, com certos temperamentos, no art. 478 do Código Civil, ao prever que a resolução de um contrato de execução continuada ou de duração, oneroso e comu- tativo, pode ser pleiteada na hipótese da ocorrência de eventos imprevisíveis que tenham, de um lado, tornado a respectiva obrigação muito mais onerosa do que havia sido avençado, e, de outro, ocasionado desmedida vantagem à outra parte.
É dizer: a onerosidade excessiva se caracteriza pela existência de fato su- perveniente à celebração do contrato, imprevisível para as partes, tornando a obrigação extremamente desvantajosa para uma delas ao mesmo tempo em que se constata benefício exagerado do outro contratante.
Em síntese, são os seguintes os pressupostos da chamada teoria da onero- sidade excessiva:
(i) superveniência de circunstância fática imprevisível; e
(ii) verificação de desproporção quantitativamente relevante entre a pres- tação e a contraprestação, implicativa de excessiva onerosidade a uma das prestações e extrema vantagem ao outro contratante.
Tenha-se presente que a consequência da aplicação da teoria da onerosida- de excessiva a um contrato em execução é a possibilidade de sua resolução ou da revisão de seus termos.
Examinando-se os contratos celebrados pela Consulente, com entidade fi- nanceira, tem-se que são eles padronizados, sem qualquer alusão ao art. 393 do Código Civil.
Como exorta Xxxx Xxxxxxx,6 no item sob a rubrica Os termos do contrato são essenciais, na interpretação de um instrumento comete-se geralmente um equívoco, na esfera de direitos disponíveis, quando se conclui que os termos do contrato escrito livremente pactuado entre as partes são irrelevantes para a solução de determinada questão, porque “vários tipos de cláusulas contratuais se
4 V., a propósito, XXXXXX, Xxxxxxxx. La giustizia contrattuale – Itinerari della giurisprudenza italiana tra otto e novecento. Milano: Giuffrè, 2009. p. 23-24.
5 V., a propósito, XXXXX, X. Risoluzione per impossibilità sopravvenuta. Digesto delle discipline privatistiche
– sezione civile, Torino, 18, 1998. p. 53; XXXXXXXXX, Xxxxx. L’eccessiva onerosità nei contratti. In: SCHLESINGER-BUSNELLI (Coord.). Codice Civile – Commentario. Milano: Giuffrè, 1995. p. 123.
6 XXXXXXX, Xxxx. Coronavírus e disputas contratuais de desempenho – Uma pandemia justifica o desem- penho de obrigações contratuais? Dorsey & Whitney LLP, 10 mar. 2020. p. 3
tornam fundamentais nesses casos. Primeiro, quando o acordo escrito das par- tes manifestar a intenção de abordar esses tipos de contingência, esses termos prevalecerão”. Assim, uma dessas disposições, que podem ser delimitadas pela mútua vontade dos contratantes, é exatamente a extensão ou abrangência da cláusula de força maior!
Ademais, ainda que não contenha tal ressalva nos apontados contratos, o caso fortuito ou a força maior poderá evidentemente ser suscitado como funda- mento visando à revisão ou à rescisão daqueles, uma vez que, na hipótese da consulta, a crise gerada pela indigitada pandemia acabou tornando a obrigação extremamente vantajosa para o mutuante, em detrimento do patrimônio da mu- tuária, ora Consulente.
A rigor, como bem esclarece Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx,7 para que a respon- sabilidade não seja imputada ao devedor, o cumprimento da prestação dever ser realmente oneroso.
Assim, se a prestação é viável, porém de forma substancialmente mais one- rosa ao obrigado, configura-se força maior!
Assevera, a respeito, Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx, assinalando:
que se a impossibilidade é passageira, a força maior não tem aplica- ção. É fato que vivemos uma pandemia passageira. Conforme leciona Pontes de Miranda, “Se é de prever-se que a impossibilidade pode passar, a extinção da dívida não se dá. Enquanto tal mudança é de esperar-se, de jeito que se consiga a finalidade do negócio jurídico, nem incorre em mora o devedor, nem, a fortiori, se extingue a dívida. Mas, ainda aí, é de advertir-se que a duração da impossibilidade passageira, ou de se supor passageira, pode ser tal que se tenha de considerar ofendida a finalidade, dando ensejo a direito de resolu- ção” [ou, ainda – permito-me acrescentar –, de revisão do contrato].8
Assim sendo, torna-se inequívoco que, na hipótese de o adimplemento da obrigação ser possível, todavia bem mais custoso do que previamente alvitrado, poder-se-ia entrever onerosidade excessiva, em particular, nas relações contra- tuais sujeitas à variação da cotação de moeda estrangeira.
7 XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx. Alterações imprevisíveis das circunstâncias: impactos contratuais. Conjur, 1º abr. 2020.
8 PONTES DE MIRANDA, Xxxxxxxxx Xxxxxxxxxx. Tratado de direito privado. São Paulo: XX, 0000. t. 25. p. 289 apud XXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. “O contrato nos tempos da Covid-19”. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Migalhas, 3 abr. 2020. V., ainda, em senso convergente, XXXXXXXX, Xxxxxxx. Covid-19
– Coronavirus et force majeure: quels impacts sur vos contrats? Deprez Guignot Associés, 2 mar. 2020.
Não obstante, merece ser esclarecido que nem sempre foi tarefa simples e tampouco será, no cenário atual, delinear, com antecedência, o que poderia ou não ser considerado “imprevisível” para ensejar resolução ou revisão do contrato, mesmo levando-se em conta a expressiva tradição jurisprudencial contrária ao reconhecimento da imprevisibilidade por eventos puramente macroeconômicos, como “mudança de moeda, inflação, variação cambial, maxidesvalorização, crise econômica aumento do déficit público, majoração de alíquotas”.9
Mas não é só.
Bem examinado o problema concreto que foi submetido à minha apreciação, verifica-se até com certa facilidade que, considerado o objeto do contrato celebra- do entre as partes, apenas a devedora, tomadora dos empréstimos, é que sofrerá sensível ônus financeiro.
Sim, porque, tratando-se de moeda estrangeira, no momento em que ce- lebrados os contratos, o próprio mercado econômico, dentro de parâmetros de normalidade, fornecia previsibilidade à possível variação cambial. Nenhum contra- tante, pautado pela boa-fé, poderia imaginar a abrupta e inesperada desvaloriza- ção do real em relação ao dólar norte-americano e ao euro!
Diante dessa constatação, há que se reconhecer, na situação concreta sub examine, excessiva onerosidade, visto que a Consulente, em decorrência da no- tória instabilidade econômica gerada pela pandemia do Covid-19, está exposta a evidente desiquilíbrio da relação negocial.
Na verdade, quem extrairá benefício de toda essa inusitada situação será, com inequívoca probabilidade, a entidade financeira com quem a Consulente contratou. E, sendo assim, é de concluir-se que pode ela invocar, nessa circunstância, excessiva onerosidade visando à renegociação dos apontados contratos de em-
préstimo.
2.6 Repercussões de eventos imprevisíveis nos negócios jurídicos: quebra da base objetiva do contrato
Assinale-se, outrossim, que para abordar as repercussões de acontecimen- tos inesperados ou imprevisíveis no programa de execução dos contratos tam- bém é possível partir da perda da base do negócio, teoria que foi retomada, na
9 Cf. XXXXXXXXX XXXXXX, Xxxxxx Xxxx. Revisão judicial dos contratos e seus problemas contemporâneos.
Conjur, 2 fev. 2015.
Alemanha, por Xxxx Xxxxxxxx, na clássica monografia Die Geschäfstgrundlage
– Ein neuer Rechtsbegriff. Para Xxxxxxxx, a base do negócio consistiria na
representação mental de uma das partes no momento da conclusão do negócio jurídico, conhecida em sua totalidade e não rechaçada pela outra parte, ou a comum representação das diferentes partes sobre a existência ou surgimento de certas circunstâncias nas quais se baseia a vontade negocial.10
Se tais circunstâncias não existem ou desaparecem posteriormente, sem que se tenha assumido o risco do seu desaparecimento, o contratante prejudica- do poderia resolver o contrato ou pleitear a sua revisão.
A origem da denominada teoria da base do negócio, como anota Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx, encontra-se na velha cláusula medieval rebus sic stantibus.
Com efeito, coube à Xxxxxxx Xx Xxxxxxxxxxxx, jurista pós-glosador do século XIV, comentando um fragmento do Digesto, extrair a fórmula que se tornaria tão famosa e invocada até hoje: “contractus que habent dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur” (os contratos em que haja dependência de fatos futuros devem ser compreendidos estando assim as coisas).
A cláusula, de inspiração canônica, nasce como forma de relativizar, abran- dar, o princípio pacta sunt servanda, ou seja, o princípio pelo qual todos os acor- dos devem ser cumpridos.
É uma ideia lógica e precisa: se o contrato nasceu com certa base objetiva, ou seja, determinadas circunstâncias circundantes, e tais circunstâncias se alte- ram por um fato imprevisível, o contrato pode ser resolvido ou revisto.11
Xxxxxxx, a propósito, Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx:
por base do negócio entendem-se as representações dos interes- sados, ao tempo da conclusão do contrato, sobre a existência de certas circunstâncias básicas para sua decisão, no caso de serem estas representações encaradas por ambas as partes como base do acordo contratual (Geschäftsgrundlage), incluindo-se, assim, em prin- cípio, entre elas, v. g., a equivalência de valor entre a prestação e a contraprestação, considerada tacitamente querida; a permanência aproximada do preço convencionado, etc. Quando, em consequência
10 Xxxx XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. 2. tir. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 142.
11 Cf. XXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. “O contrato nos tempos da Covid-19”. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Migalhas, 3 abr. 2020.
de fatos sobrevindos depois da conclusão do contrato, a base do negócio desaparece, perturbando-se o equilíbrio inicial, o contrato não corresponderia mais à vontade das partes e o juiz deveria, por sua intervenção, readaptá-lo a essa vontade, fosse resilindo-o, fosse modificando-o, para que ele correspondesse ao que as partes teriam querido, se previssem os acontecimentos.12
Constata-se, no entanto, que essa teoria, que se imbrica a aspecto objeti- vo, descortina-se absolutamente despicienda para o exercício do direito à revisão contratual, decorrente de imprevisibilidade das circunstâncias supervenientes. É a regra do art. 317 do Código Civil: “Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.
É por essa razão que atualmente tem sido ela relegada a segundo plano pela literatura especializada, como bem refere Xxxxxxx Xxxxxxx Cordeiro, ao explicar que “a base do negócio tornou-se uma fórmula vazia, que ‘traduz, apenas, um es- paço de discussão: ela corresponde, no fundo, ao próprio fenômeno da alteração das circunstâncias, seja qual for a solução para ele encontrada’”.13
Não há dúvida de que inexiste propriamente nexo de causalidade entre a desmedida extensão da pandemia do coronavírus e a execução programada dos negócios jurídicos, em especial, dos contratos de financiamento em moeda es- trangeira.
No entanto, igualmente inegável é que as medidas governamentais de con- tenção da disseminação da grave doença acabam impossibilitando ou, no mínimo, comprometendo o normal cumprimento da avença anteriormente celebrada entre as partes.
Assim, o nexo que pode então existir não decorre da pandemia, mas, sim, do intervencionismo estatal, em menor ou maior grau, dependendo da natureza e/ ou do objeto do contrato.
Esse tema, aliás, não é novo na casuística de inúmeras experiências jurí- dicas, mormente no âmbito do Velho Continente. Num pioneiro ensaio, escrito por E. Xxxxxxx Xxxx, intitulado Impossibility of performance of contracts due to war-time regulations e publicado na Harvard Law Review,14 destaca-se a questão
12 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx da. Caso fortuito e teoria da imprevisão. Rio de Janeiro: Forense, 1943. p. 115.
13 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. Contratos públicos. Coimbra: Xxxxxxxx, 0000. p. 62. V., ainda, em senso análogo, XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. Comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. 5. t. 1. p. 228-231.
14 XXXX, X. Merrick. Impossibility of performance of contracts due to war-time regulations. Harvard Law Review, v. 32, p. 789-805, 1919.
da influência da legislação emergencial superveniente implicativa da impossibili- dade do cumprimento do contrato, acarretando como consequência a necessária revisão dos termos do contrato.
2.7 Respostas aos quesitos formulados
Diante do exposto, atendo-me estritamente aos quesitos que me foram sub- metidos pelos ilustres colegas advogados da Consulente, devo concluir reafirman- do que:
1. As previsões de pagamento em moeda estrangeira, previstas nos contra- tos de mútuo, acima referidos, são válidas considerando as vedações a este tipo de disposição em nosso ordenamento jurídico?
Resposta: Como procurei elucidar, há expressa vedação legal para a cele- bração de contrato em moeda estrangeira, autorizando-se apenas e exclusivamen- te em situações excepcionais catalogadas, em numerus clausus, no art. 2º do Decreto-Lei nº 857/69.
Todavia, por várias razões, o Superior Tribunal de Justiça orienta-se no senti- do de admitir a contratação em moeda estrangeira, mesmo no âmbito de contra- tos nacionais, convertendo o débito para reais na data da celebração do negócio, com atualização monetária até o termo da obrigação.
2. Estariam os contratos acima inseridos dentro de alguma das hipóteses previstas no Decreto-Lei nº 857-69?
Resposta: A resposta é negativa.
Os dois contratos por mim examinados foram pactuados entre pessoas ju- rídicas sediadas no Brasil, regidos pela lei brasileira, tendo sido eleito o foro da comarca da Capital do Estado de São Paulo.
Assim, dúvida não tenho em afirmar que as duas avenças não se inserem em qualquer uma das hipóteses alinhadas no indigitado art. 2º do Decreto-Lei nº 857/69.
3. Há alguma influência às respostas acima o fato do XXX Genebra ser agên- cia no exterior de instituição financeira brasileira (Banco XXX)?
Resposta: Como também expliquei, não há qualquer fundamento jurídico para modificar a minha convicção.
A beneficiária do pagamento é mera filial – branch – juridicamente subordina- da, em todos os sentidos, à sua respectiva matriz sediada no Brasil.
4. É possível inserir os contratos no âmbito do entendimento firmado no julga- mento do Recurso Especial nº 1.323.219-RJ, da relatoria da Ministra Xxxxx Xxxxxxxx
(obrigações em moeda estrangeiras devem ser convertidas para BRL considerando o câmbio do momento da contratação)?
Resposta: Sem dúvida alguma!
O entendimento assentado no Superior Tribunal de Justiça, não apenas no precedente aludido nesse quesito, mas em muitos outros anteriores e posterio- res, aplica-se integralmente aos contratos celebrados pela Consulente.
É dizer: as obrigações assumidas pela XXX devem ser adimplidas, na data fixada para pagamento, pelo valor da cotação da moeda estrangeira na data da celebração do negócio, atualizada pela correção monetária.
5. Mesmo considerando a jurisprudência majoritária nos tribunais brasilei- ros, é possível inserir a variação cambial atual dentro do contexto de algum dos institutos de revisão contratual existentes em nosso Código Civil (teoria da impre- visão, onerosidade excessiva, caso fortuito/força maior)?
Resposta: A resposta é positiva.
Na verdade, diante da abrupta crise econômica proporcionada pela pandemia do coronavírus, que ocasionou sensível desequilíbrio no sinalagma convencionado pela Consulente, impõe-se a revisão contratual baseada na excessiva onerosida- de, visto que somente uma das partes – o credor – é que obterá enorme vantagem!
Esse o meu parecer, s. m. j. São Paulo, 16 de junho de 2020.
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2018 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):
XXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxx x. Contrato em moeda estrangeira e onerosidade excessiva. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 25, p. 237-255, jul./set. 2020. Parecer.