LEGIBUS
De
LEGIBUS
3
Julho de 2022
UMA ANÁLISE AO NOVO PODER DA ACT: O IMPEDIMENTO DA CESSAÇÃO
DO CONTRATO DE TRABALHO
Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx
Revista de Direito
Law Journal
Faculdade de Direito — Universidade Lusófona xxxxx://xxxxxxxx.xxxxxxxxx.xx/xxxxx.xxx/xxxxxxxxx
UMA ANÁLISE AO NOVO PODER DA ACT: O IMPEDIMENTO DA CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO*
___________________________________________________________________________________________________
Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx**
Sumário: 1. Introdução; 2. Breve enquadramento; 2.1. A norma em análise; 2.2. Os poderes jurisdicionais; 2.3. Auto (sempre) de notícia; 2.4. A primeira parte dos poderes administrativos; 2.5. A segunda parte dos poderes administrativos; 2.6. A inexistência do “chapéu” do estado de emergência; 3. Prazos normais de impugnação do despedimento; 4. A plenitude da manutenção dos direitos dos trabalhadores; 5. Outros mecanismos vigentes de proteção dos trabalhadores; 6. Conclusões.
Resumo: A garantia constitucional da segurança no emprego e da proibição dos despedimentos sem justa causa, consagrada no artigo 53º da CRP, não legitima a usurpação e a ofensa do poder dos tribunais por parte de entidades administrativas, o que a ocorrer poderá comportar a nulidade da sua atuação. Aqueles, enquanto órgãos de soberania e a quem compete a administração da justiça em nome do povo, nos termos do artigo 202º, n.ºs 1, 2 e 3 da CRP, estão incumbidos de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, ainda que coadjuvados por outras autoridades, conquanto que não seja desrespeitada a garantia da separação de poderes, estipulada no artigo 2º da CRP.
Palavras-Chave: Proteção do emprego; Cessação do contrato de trabalho; Tribunais; Autoridade para as Condições do Trabalho.
Abstract: The constitutional guarantee of job security and the prohibition of dismissals without just cause, provided by the 53th article of the Portuguese
Constitution, does not legitimize the usurpation and offense of the courts power by
* Texto desenvolvido no âmbito da disciplina de Direito e Processo do Trabalho, do curso Mestrado em Direito na Faculdade de Direito de Universidade Lusófona (ano letivo 2021/2022).
* * Advogado. Mestrando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Lusófona. Monitor Universitário da disciplina de Direito do Trabalho - Faculdade de Direito da Universidade Lusófona. Investigador Convidado do Centro de Estudos Avançados em Direito, Xxxxxxxxx Xxxxxx, da Facul- dade de Direito da Universidade Lusófona. Pós-Graduado em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Pós-Graduado em Direito do Urbanismo e Ambiente pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Lusíada.
administrative entities, which, if it occurs, may result in the nullity of their activity. Those, as organs of sovereignty with the responsibility to administrate justice on
behalf of the people, under the terms of paragraphs 1, 2 and 3 of 202nd article, of
the Portuguese Constitution, are responsible for ensuring the defense of legal and
protected rights and interests of the citizens, even if assisted by other authorities, as long as the guarantee of separation of powers, stipulated in the 2nd of the Portuguese
Constitution, is not disrespected.
Keywords: Employment protection; Employment contract ending; Courts; Authority for the Working Conditions.
1. Introdução
A presente análise tem a única e exclusiva intenção de contribuir para uma discussão que já vem sendo feita na doutrina – não exatamente no sentido que modestamente aqui iremos propor – a respeito do aumento da interven- ção inspetiva da ACT1 através dos poderes que, paulatinamente, lhe foram sendo reforçados ao longo dos anos.
Estamos cientes da cada vez maior complexidade das relações laborais e simultaneamente do acréscimo de dificuldade de deteção da violação de alguns direitos dos trabalhadores.
Por essa razão admitimos a necessidade de uma maior preparação dos técnicos que atuam no terreno diariamente, nas mais diversas intervenções inspetivas.
Exemplificativamente, com o advento do teletrabalho (muito recentemen- te alterado) e com o trabalho nas plataformas digitais, a intervenção daquela Autoridade implicará uma atenção especial, quiçá mais exigente em termos de meios e condições de atuação.
Poderá estar aqui um campo de atuação exploratório e que talvez deva merecer a respetiva atenção do legislador.
Ao invés, na situação em apreço poderemos estar perante uma nova missão de ingerência menos própria dos poderes administrativos nos quais a ACT foi investida, de modo aparentemente conflituante com os poderes jurisdicionais.
Para refletir esta visão, faremos um enquadramento do artigo 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março2, espelhando algumas inquietações sobre a sua sistematização e aparente colisão com a arquitetura do edifício reativo, por via contenciosa, à cessação do vínculo laboral.
Estruturalmente, não logramos percecionar em que local exato do puzz- le se poderá colocar esta nova peça, exceto se for intencionalmente pensada para ser um elemento fora do sistema.
O convívio profissional com a atuação inspetiva da ACT (outrora IDICT e IGT) motiva a presente análise, sem qualquer intenção persecutória
1 Autoridade para as Condições de Trabalho.
2 Introduzido pelo artigo 3º da Lei 14/2020, de 9 de maio.
contra aquela entidade, a quem se reconhece o esforço dos seus recursos humanos no abnegado desempenho das suas funções, desenvolvidas para o fim último da proteção das condições de trabalho, a fim de garantir a respetiva dignidade e segurança.
2. Breve enquadramento
A presente análise à intenção legislativa – presumivelmente bem-intencio- nada – de introduzir no ordenamento jurídico mais um poder3 a uma enti- dade administrativa pode ser perspetivada de um ponto de vista crítico, mas também por via construtiva, do referido instrumento legal, conforme tenta- remos atestar neste parco contributo.
A volatilidade das mutações decorrentes da pandemia4 não permi- tiu um elevado rigor e visão sistemática dos institutos jurídicos voraz- mente criados no âmbito do combate à covid-19, tantas foram as respe- tivas vicissitudes sociais e económicas que lhes serviram de base ou justificação.
Compreende-se a principal preocupação do legislador, no sentido de – ou pelo menos assim deveria ter sido – criar mecanismos de reação àquela cala- midade pública, procurando evitar desequilíbrios ainda mais severos a nível humano e financeiro, mormente nas relações de trabalho5.
Apesar de tudo, não se perceciona que o nível de emprego tenha sido catastroficamente afetado, cremos nós pela força das medidas financeiras de apoio extraordinário à manutenção dos contratos e postos de trabalho, essencialmente frutuosas por terem proporcionado às empresas um apoio
3 De impedir a cessação do contrato de trabalho.
4 Cfr. Classificação da OMS, em 30.01.2020, por força dos efeitos do vírus SARS-Cov-2, originador de uma situação de emergência de saúde pública de âmbito internacional.
5 Ao ponto de, por exemplo, o próprio Código dos Contratos Públicos – que não aparenta ter conexão com o direito laboral – ter passado a inscrever nos novos objetivos de políticas públicas a pro- mover por via da contratação pública, (i) a conciliação da vida profissional com a vida familiar e pessoal de todos os trabalhadores afetos à execução do contrato, (ii) a valorização da contratação coletiva e (iii) o combate ao trabalho precário. CP. artigo 42º, n.º 6, als. c), k) e l) do CCP, por força do artigo 21º da Lei n.º 30/2021 de 21 de maio, a vigor a partir de 20 de junho de 2021.
económico muito relevante6 no pagamento de parte substancial dos venci- mentos dos respetivos trabalhadores, apesar do seu generalizado encerramen- to provisório7.
Se estas medidas tivessem ficado apenas no papel, como infelizmente suce- de amiúde entre nós, certamente que, apesar de tudo, não estaríamos perante uma tão razoável paz laboral e social8.
Naquele contexto, foram publicados diversos diplomas legais, muitos deles preparados num tempo absolutamente record, pese embora sujeitos a frequentes alterações, aditamentos e retificações, impassíveis de assegurar a consolidação de novas realidades jurídicas e de aferir, em tempo útil, os seus efeitos e resultados práticos.
O esmero pode nem sempre ser um atributo da conduta humana e por isso surgiram alguns instrumentos legais de eficácia muito duvidosa, tendencial- mente imperfeitos e deficientemente redigidos, especialmente intrincados e imprecisos, passíveis de interpretações heterogéneas e até potenciadores de diferendos de aplicação temporal9.
6 Vide, entre outros, os DL n.ºs 10-A/2020, de 13 de março (parcialmente revogado pelo DL 66- A/2022, de 30 de setembro), 10-G/2020, de 26 de março, 46-A/2020, de 30 de julho e 6-E/2021, de 15 de janeiro (revogados pelo DL 66-A/2022, de 30 de setembro), e a Portaria 102-A/2021 de 14 de maio.
7 Por outras palavras, não terá sido à custa da iniciativa jurídica aqui analisada que os postos de tra- balho e as relações laborais lograram manter uma relevante perenidade. Exemplificativamente, a taxa de desemprego em Portugal, no 3.º trimestre de 2021, situou-se nos 6,1% (nível mais baixo da última década). Cfr. informação disponível em xxxxx://xxx.xx/xxxxxxx/xxxxx?xxxxxxxxx_xxxx&xxxxxXXX e em xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xx/xx00/xxxxxxxxxxx/xxxxxxx?xxxxxx-xx-xxxxxxxxxx-xx-xxxxx- mais-baixo-da-decada (ambos consultados em 31.01.2022).
Contrariando aqueles, como Xxxxxxxxx Xxxxxxxx, A desigualdade económica e a crise existencial do país”, Um olhar sociológico sobre a crise Covid-19 em livro, (Observatório das Desigualdades, 2020), 171, que defendem ter-se verificado um: “… aumento abrupto dos números do desemprego registado e a abrangência do regime simplificado de layoff são tremendos” (disponível em xxxxx://xxx.xxxxxxx- xxxxx-xxx-xxxxxxxxxxxxx.xxx/xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx/xx-xxxxxxx/xxxxxxx/0000/00/XxXxx arSociolo%CC%81gicoSobreaCriseCovid19emLivro.pages.pdf ) consultado em 31.01.2022.
8 Por vezes assombrada. Vide Xxxxx Xxxxx, “Direito do Trabalho, da cessação do contrato de trab- alho”, Revista Eletrónica de Direito, da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ad Perpetuam rei memoriam, (Centro de Investigação Jurídico Económica, 2017), 11: “Simplesmente o crescimento capitalista é, por razões internas ao seu próprio funcionamento, ciclicamente interrompido por crises de so breprodução com o consequente lançamento no desemprego de milhões de trabalhadores.”
9 Exemplificativamente, o artigo 7º n.º 1 da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março (na redação conferida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril), estabelecendo um regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais decorrente das medidas adotadas no âmbito da pandemia da doença covid-19, con- forme anotaremos mais adiante.
Em certa medida, esta realidade é compreensível, pois é indubitável que a pandemia gerou um conjunto de alterações diretas e indiretas na sociedade as quais originariam necessariamente uma enorme mutabili- dade de diversas normas e uma menor capacidade de antecipação e estu- do dos problemas por resolver, limitando uma reação atempada e mais preparada.
Por exemplo, o teletrabalho abandonou um lugar de relativo adorme- cimento em que se vinha apresentando, ocupando agora uma posição de maior preponderância, apesar da sua real dimensão ser ainda relativa- mente incerta, mas plenamente justificativa do aprimoramento dos seus conceitos10.
Salienta-se por isso que estas alterações foram acompanhadas da concretização prática do dever de abstenção de contacto11, premente na prestação laboral12.
Estas últimas modificações foram introduzidas diretamente no CT, enquanto a nova regra aqui analisada consta de legislação avulsa ao CT.
10 A Lei n.º 83/2021 de 6 de dezembro, modificou o regime do teletrabalho [altera o CT e a Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (Regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais) e institui um regime de direito ao desligamento] em vigor desde 1 de janeiro de 2022.
Para maior aprofundamento destas constatações, ler: Xxxxx Xxxxx Xxxxx, “O Teletrabalho e as condições de trabalho: desafios e problemas”, X.Xxx Yearbook AI & Robotics, XxxXxx (Research Centre for Justice and Governance School of Law, 2020), University of Minho, sob coordenação de Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx (documento disponível em xxxx://xxxxxxxxxxxx.xxxx.xxxxxx.xx/xxx- dle/1822/67361, consultado em 12-12-2021); Xxxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx, “O teletrabalho e o direito a teletrabalhar”, Questões Laborais, n.º 56, 2020), 81-123; Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, “Tele- trabalho em tempos de pandemia: algumas questões”, Revista Internacional de Direito do Trabalho (Ano 1, n.º 1, 2021), 1299-1329; Xxxxxx Xxxxxxxxx x Xxxxx, “O enquadramento legal do teletra- balho em Portugal”, Revista de Derecho Social y Empresa (n.º 6, 2016), 136-153; Xxxxxx Xxxxxxxxx e Sousa, “Breve viagem pelo regime de teletrabalho na ‘legislação COVID’, Covid-19 e o Trabalho: o dia seguinte”, Estudos Apodit 7, Associação Portuguesa de Direito do Trabalho, (AAFDL Editora, Lisboa, 2020), 49-64; Maria Xxxxxx Xxxxxxx, “Teletrabalho – anotação aos artigos 233º a 243º do CT de 2003”, disponível em xxxxx://xxxxxxxxxxx-xxxxxx.xx.xx/xxxxxxxxx/00000/00000/0/00000. pdf (consultado em 22.12.2021); Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, “Teletrabalho 2020 ou o encanto de Ja- nos”, Covid-19 e o Trabalho: o dia seguinte”, Estudos Apodit 7, Associação Portuguesa de Direito do Trabalho, (AAFDL Editora, Lisboa, 2020), 39-48; Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx, Direito do Trabalho
– Relação Individual, (Almedina, 2019), 480-485.
11 Cfr. artigo 199º-A do CT, introduzido pela Lei n.º 83/2021, de 6 de dezembro.
12 Segundo alguma doutrina, com especial ênfase no trabalho em plataformas digitais. Neste sen- tido, Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, “Algumas questões sobre o direito à desconexão dos trabalhadores”, Mi- nerva Revista de Estudos Laborais (Ano IX – I da 4.a série – n.º 2, 2019), 136.
Pese embora a subordinação não se desligue. Neste sentido, Xxxx-Xxxxxxxx Xxx, “Qualité de vie et travail de demain”, Droit Social, n.º 2, 2015, 148.
Neste caso, a opção do legislador – igualmente utilizada no denominado regime do Lay-off simplificado13 – reavivou a nossa memória relativamente à especial dificuldade que existia com a conjugação da diversidade de regi- mes laborais14.
Recordamos a LDT, a LCT15, ou a LHT, posteriormente de algum modo aglutinadas com a Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto16 num só diploma, efetu- ando ainda a transposição, parcial ou total, de dezassete diretivas comunitárias. Este modelo legislativo, como forma de reação aos diversos problemas colocados pelos efeitos da pandemia, trouxe no direito laboral o caso particular do artigo 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, conferin- do poderes à ACT com verdadeira índole jurisdicional.Poderes estes que de algum modo já vinham a ser reforçados com o incremento de faculda- des daquela Autoridade17 através do artigo 15º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro18, ainda que neste caso sem qualquer componente juris-
13 Vide nota 7.
14 Terá correspondido ao período da legislação concertada. A este respeito, ver Xxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxx, Direito do Trabalho, (3.a edição, Almedina, 2012), 49.
15 A qual, volvidos quase 20 anos do seu desaparecimento, ainda continua a ser usada para diri- mir determinados conflitos, mormente os relativos à presunção de laboralidade [vide, entre outros, a este respeito os Acórdãos do STJ de 04/07/2018, proc. n.º 1272/16.4T8SNT.L1.S1; do TRL de 26-10-2017, proc. n.º 1175/14.7TTLSB. L1.S1; do TRL de 21-09-2017, processo n.º 2011/13.7LSB. L2.S1; do TRL de 15-04-2015, proc. n.º 329/08.0TTCSC. L1.S1; do TRL de 18-09-2013, proc. n.º 2775/07.7TTLSB. L1.S1; do TRC de 08-01-2013, proc. n.º 176/10.9TTGRD. C1.S1; todos dis- poníveis em xxx.xxxx.xx (local de pesquisa de toda a jurisprudência citada no presente texto)].
16 CT de 2003.
17 De acordo com a OIT, em 2009, Portugal tinha cerca de 3% de pessoas (admitimos da popu- lação ativa) envolvidas em situação de trabalho não declarado (ver texto preparado pela equipa da LAB/ADMIN da OIT, no âmbito do programa da administração e da inspeção do trabalho, como documento de referência destinado a uma reunião realizada em Budapeste entre 29 e 30 de outubro de 2009, 42, disponível em xxxxx://xxx.xxx.xxx/xxxxx0/xxxxxx/xxxxxx/---xx_xxxxxxxx/---xxx_xxxxx/ documents/publication/wcms_144732.pdf (consultado em 14.11.2021).
Segundo os dados publicados em 2019 pela ACT [no seu relatório da atividade de inspeção do trabalho: ver tabela 68, 167 disponível em xxxxx://xxx.xxx.xxx.xx/(xxXX)/XxxxxXXX/Xxxxxxxxx- sOrientadores/RelatorioActividades/Documents/2019%20-%20Relat%C3%B3rio%20da%20Ativi- dade%20Inspetiva.pdf, (consultado em 14.11.2021)], no ano de 2015 fiscalizaram-se 3002 casos de trabalhadores em situação de trabalho não declarado, número significativamente reduzido para 794 em 2019, pese embora daqui não resulte necessariamente qualquer resultado diretamente relacionado com a AERECT.
18 No mesmo sentido, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, “A Ação especial de reconhec- imento da existência de contrato de trabalho – vinho velho em odres novos”, Revista Julgar n.º 25 (2015), 14: “… o regime desta nova ação não é, se quisermos ser eufemísticos, particularmente feliz, estando repleto de lacunas, incongruências e ambiguidades…”
dicional, tudo ficando dependente da promoção do MP junto dos Tribunais de Xxxxxxxx.
Fazendo aqui uma primeira nota crítica, não descortinamos como poderá a ACT, em caso algum, ser despida da sua veste administrativa.
Do mesmo modo, o caminho a trilhar, independentemente do melhor dos propósitos potenciais, não apontará no sentido de poder vir a ocupar um lugar jurisdicional que não será o seu.
Cremos que não haverá um fundamento válido para este desiderato legis- lativo, mesmo em situações absolutamente excecionais.
Por enquanto não está fixado um limite temporal de vigência deste poder apesar de já estarmos completamente fora do Estado de Emergência19.
Procedendo as observações20 a seguir apontadas a esta norma, não se vislum- bram quaisquer prejuízos para os seus destinatários, os quais continuarão a merecer tutela legal adequada e bastante, perfeitamente capaz de zelar pelos seus direitos e legítimas expectativas de tutela jurisdicional efetiva.
2.1. A norma em análise
O artigo 8.º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março21, sob a epígrafe “Reforço dos meios e poderes da Autoridade para as Condições do Trabalho” consagra o seguinte: “1 - Durante a vigência da presente lei e de forma a
19 Declarado (por 15 vezes entre 2020 e 2021, num total de 218 dias, ou seja, ao longo de 365 dias estivemos 59% desse período ao abrigo daquele regime de exceção) essencialmente com fun- damento em calamidade pública. Com uma suspensão parcial do exercício de direitos, liberdades e garantias (através do significativo reforço dos poderes das autoridades administrativas civis, apoiadas pelas Forças Armadas), a qual se deve limitar, nomeadamente, quanto à sua extensão, à sua duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário e visando o pronto restabeleci- mento da normalidade. Competindo a sua declaração ao Presidente da República, sob a forma de decreto, dependendo da audição do Governo e da autorização da Assembleia da República.
20 Sendo concebível a intenção de este poder se tornar permanente: neste sentido, ver o Comu- nicado de Imprensa da O.A. de 22.07.2021, disponível em xxxxx://xxxxxx.xx.xx/xxxxxxxxxxx/xxx- rensa/2021/07/22/governo-quer-tornar-permanente-poder-da-act-de-suspender-despedimentos/ (consultado em 14.11.2021).
Tudo levando a crer que o indício de permanência tenha sido recentemente reforçado, já que o DL 66-A/2022, de 30 de setembro revogou vários diplomas publicados durante a pandemia, inexistindo qualquer outra manifestação, por meio próprio e em paralelo por parte do legislador competente em relação à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março .
21 Cfr. art.º 3º da Lei 14/2020, de 9 de maio.
reforçar os direitos e garantias dos trabalhadores, sempre que um inspetor do trabalho verifique a existência de indícios de um despedimento em violação dos artigos 381º, 382º, 383º, ou 384º 22 do CT 23, aprovado em anexo à Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, na sua redação atual, lavra um auto24 e notifica o empregador para regularizar a situação. 2 - Com a notificação ao empre- gador nos termos do número anterior e até à regularização da situação do trabalhador ou ao trânsito em julgado da decisão judicial, conforme os casos, o contrato de trabalho em causa não cessa, mantendo-se todos os direitos das partes, nomeadamente o direito à retribuição, bem como as inerentes obri- gações perante o regime geral de segurança social. 3 - A competência para a decisão judicial25 referida no número anterior é atribuída aos tribunais do trabalho.”
Como é bom de ver, através desta norma a ACT passou a poder deter-
xxxxx que um determinado contrato de trabalho não cessa, pressupondo a despectiva análise à licitude daquela desvinculação laboral.
Esta norma jurídica parece estar completa, exprimindo em termos gerais e abstratos a representação de uma situação cuja verificação ou preenchimento determine a emissão de uma valoração ou a necessidade de um comporta- mento, integrando claramente os dois elementos da previsãoe da estatuição. A problemática existente assentará antes na validade daquele poder, pese embora a doutrina dissonante considere que quando a ACT quiser agir com
22 Ilicitude do despedimento, ilicitude do despedimento por facto imputável ao trabalhador, ilici- tude do despedimento coletivo ou ilicitude do despedimento: extinção do posto de trabalho.
23 A respeito da omissão pelo legislador do despedimento por inadaptação naquela norma, no sen- tido de se tratar de uma modalidade de cessação do contrato de trabalho absolutamente irrelevante, veja-se Xxxxx Xxxxxxxxxxx, “A suspensão pela ACT do despedimento que repute ilícito: sentido, al- cance e limites de uma medida excecional”, CEJ - Covid-19 – Implicação na Jurisdição do Trabalho e da Empresa, (dezembro, 2020), 14 e 15, sem que, contudo, se esclareça qual a solução para aquela omissão. No sentido de resolver aquela lacuna, veja-se Xxxx Xxxx Xxxxx, “Emergência, calamidade e despedi- mento: o empoderamento da ACT”, Revista do Ministério Público, (número especial Covid-19, junho 2020), 98: “Assim sendo, é claro que o inspetor do trabalho, confrontado com um caso, por exemplo, de alegado despedimento por inadaptação, que, todavia, não tenha sido antecedido do respetivo pro-
cedimento, deve também lavrar o auto, pois a situação inscreve-se no art. 381.º e não no art. 385.º”
24 Com esta medida, entre maio e agosto de 2020, a ACT terá suspendido “… no total, 68 despedi- mentos…” Amado, “Xxxxxxxxxx, …”, 000.
25 Nas palavras de Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, “A Autoridade para as Condições do Trabalho, de Regulador Administrativo a Orgão Jurisdicional”, Revista Internacional de Direito do Trabalho, (Ano I, 2021, n.º 1), 26, trata-se de um caricato exercício tautológico.
aquela intenção, terá apenas de aferir se o prazo de impugnação judicial26 já se encontra ultrapassado e se o trabalhador devolveu a compensação paga pela empresa.
Segundo aquela posição, esta Autoridade deixará de poder intervir se ocor- rer uma resposta negativa àqueles quesitos, o mesmo ocorrendo – desta feita por inutilidade – se o trabalhador tiver, entretanto, requerido a suspensão preventiva do despedimento27.
Procuraremos então esmiuçar este novo poder numa perspetiva mais abrangente, desde logo tendo por base o fundamento da atuação e da nature- za da atividade daquela entidade.
2.2. Os poderes jurisdicionais
O n.º 3 do preceito em análise consagra a competência dos tribunais do trabalho para a decisão judicial referente à cessação do contrato de traba- lho, havendo assim uma aparente sustentação dos poderes administrativos da ACT na al. v) 28 do n.º 2 do artigo 2º do Decreto-Regulamentar n.º 47/2012, de 31 de julho29.
A Lei Orgânica, decretada ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 24º da Lei n.º 4/2004, de 15 de xxxxxxx00, consagra, em conformidade com as respe- tivas als. a), c) e d), que a criação, reestruturação, fusão e extinção dos serviços da administração direta do Estado são aprovados por decreto regulamentar e devem conter: a designação do novo serviço, a respetiva missão e a identifi- cação das respetivas atribuições.
26 60 dias, 6 meses ou 1 ano, conforme se aplique o processo especial para impugnação da regulari- dade e ilicitude do despedimento (Cfr. art.ºs 98º-B e ss. do CPT), o processo especial de impugnação do despedimento coletivo (Cfr. art.ºs 156º e ss. do CPT) ou o processo declarativo comum (Cfr. art.ºs
337º, n.º 1, 387º, n.º 2 e 388º, n.º 2 do CT).
27 Xxxxxxxxxxx, “A suspensão pela ACT…”, 17.
28 Prosseguir as demais atribuições que lhe forem (à ACT) conferidas por lei (deixando-se assim, aparentemente, num vazio legal tudo o que se quiser pressupor poder ser incumbível àquela entidade).
29 Lei Orgânica da Autoridade para as Condições do Trabalho.
30 Cfr. o seu preâmbulo.
Analisando o artigo 2º do Decreto-Regulamentar n.º 47/2012, de 31 de julho, constatamos a previsão – nada mais, nada menos – de um conjunto global de 2131 atribuições administrativas e taxativas da ACT.
Porém, não descortinamos em nenhuma daquelas incumbências legais de base a possibilidade de fiscalização ou verificação da existência de indícios de ilicitude num despedimento, mormente em violação de normas concretas do CT.
Nesse sentido, o legislador parece32 ter aproveitado a amplitude inexata da alínea v) do n.º 2 do artigo 2º do Decreto-Regulamentar n.º 47/2012, de 31 de julho, para conferir à ACT uma atribuição absolutamente inovadora, consagrando-a através do artigo 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.
Partimos por isso do pressuposto segundo o qual o legista33 teve em consi- deração e como preocupação a harmonia do sistema jurídico para, de algum modo, combater uma certa precariedade laboral.
Contudo, nada indica que em 201234, e atendendo à necessária unidade do sistema jurídico35, se tenha conjeturado ou admitido uma futura atribui- ção de poderes verdadeiramente jurisdicionais36 à referida Autoridade, como sucede agora com o n.º 1 do artigo 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, mediante a aparente tábua de salvação da alínea v) do n.º 2 do artigo 2º do Decreto-Regulamentar n.º 47/2012, de 31 de julho.
O n.º 3 do artigo 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, não corrigirá aquela ingerência de poderes jurisdicionais, porquanto a intervenção judicial
31 Adiante procuraremos demonstrar por que razão não será possível considerar como 22.a atri- buição da ACT (contemplável na al. s) do n.º 2.º do art.º 2º do Decreto-Regulamentar n.º 47/2012, de 31 de julho) o poder conferido pelo art.º 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.
32 Se é que se apercebeu dessa questão.
33 Criticado por Xxxxx Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, “Algumas reflexões sobre as alterações introduzidas no CT pela Lei n.º 23/2012 de 25 de junho”, ROA (n.º 72, 2012), 578: “foi o próprio legislador português que, pela sua inércia, ou mesmo complacência, deixou ao longo de anos, quando não de décadas, que se disseminassem fenómenos de trabalho precário e de falso trabalho autónomo”.
34 “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamen- to legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”. Cfr. artigo 9º, n.º 1 do CC.
35 As circunstâncias de elaboração daquele diploma e as condições específicas do momento de cria- ção do elenco de atribuições da ACT.
36 Como procuraremos demonstrar.
ali preconizada só ocorre no termo da intervenção da ACT e após terem sido concretizados os efeitos daquela atuação.
Num momento temporalmente próximo ao Decreto-Regulamentar n.º 47/2012, de 31 de julho, foi publicada e entrou em vigor a Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto37 na qual, por sua vez, o respetivo artigo 126º confere a competência dos tribunais de trabalho, nomeadamente, para conhecer de questões emergentes das relações de trabalho38.
Daquele modo e logo no ano seguinte o legislador manifestou, claramen- te, o seu entendimento no sentido de que a fiscalização/verificação da exis- tência de indícios de um despedimento em violação de normas concretas do CT, compete aos Tribunais de Trabalho e não à ACT.
Nem de outro modo poderá aparentemente ser. Ou seja, tudo aponta no sentido daquele poder não dever ser entregue a outra entidade que não seja uma instância judicial.
Somos levados a crer que naqueles casos estamos perante uma questão emergente das relações de trabalho, matéria esta da competência privativa judicial e não administrativa, como se verificará na atuação agora preconiza- da para a ACT39.
De então para cá, os Tribunais do Trabalho não perderam aquela compe- tência, mas por seu turno o artigo 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março contemplará dissimuladamente e com o recurso à figura do levantamento de um subtil40 e meramente denominado auto, uma manifestação de um poder jurisdicional que não poderá recair na ACT.
Ao invés, aquele poder é exercido apenas pelos Tribunais41, in casu, pelos Tribunais de Trabalho e não por uma entidade meramente administrativa.
Atento o disposto no artigo 202º, n.º 1 da CRP, sob a epígrafe “função
37 Lei da Organização do Sistema Judiciário.
38 Vide al. b) do n.º 1 daquela norma.
39 Não se confunda a inexistência do poder jurisdicional com a eventual e futura força executiva (de muito discutível validade jurídica) das decisões condenatórias da ACT. Cfr. Projeto de Lei 847/XIV/2 (com entrada na AR em 20.05.2021) visando a alteração do regime processual aplicável às contraorde- nações laborais e de segurança social, e pretendendo proceder à 3.a alteração à Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.
40 Dedicaremos um ponto específico a esta fineza jurídica.
41 Cfr. art.º 2º, n.º 2 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.
jurisdicional”, está constitucionalmente consagrado que os Tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo.
Entretanto, parece ser isso que verdadeiramente também se passa a confe- rir à ACT, nos termos do artigo 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.
Porém, a fiscalização e verificação da existência de indícios de um despedi- mento em violação de normas concretas do CT continuará a ser concebível como uma manifestação do poder de soberania de administrar a justiça em nome do povo, o qual cabe exclusivamente aos Tribunais e não à ACT.
Aliás, desta conclusão avulta a particularidade42 da norma em apreço conferir à ACT um poder jurisdicional que nem o próprio tribunal tem, ou seja, com a manifestação da desnecessidade de qualquer instrução e com total ausência de verdadeiro contraditório43.
De facto, no processo laboral e ao contrário de alguns casos excecionais do processo civil, existe sempre citação do réu (empregador) antes de qualquer decisão, mesmo no âmbito puramente cautelar44.
2.3. Auto (sempre) de notícia
O n.º 1 do artigo 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, refere-se apenas a um auto. Sucede que em nenhum campo de atuação da ACT se prevê a respetiva ação administrativa sem ser por via do levantamento de um “auto de notícia”, de um “auto de advertência”, ou de “um auto de infração”.
Na realidade, excetuando o caso desta nova norma, em nenhuma outra área de atuação a ACT atua por via de um mero “auto”.
Curiosamente, o artigo 3º da Lei 14/2020, de 9 de maio – que introdu- ziu a norma em causa – surgiu indubitavelmente fora do âmbito de aplica- ção do Estado de Emergência45, cuja última manifestação, na Primavera de
42 Procedendo a validade desta suspensão.
43 Xxxxxxxxxxx, “A suspensão…”, 20.
44 Cfr. n.º 1 do artigo 34º do CPT.
45 Também por este motivo não concordamos, com o devido respeito, com as seguintes afirmações: “… a intenção do legislador foi a de prever uma regularização da situação através da revogação retroativa
2020, ocorreu com o Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020, de 17 de abril, regulamentado pelo Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de abril e n.º 2-D/2020, de 30 de abril, ambos da Presidência do Conselho de Ministros.
Mais concretamente, nos termos da Lei n.º 107/2009, de 14 de setem-
bro46, a figura do auto é sempre: (a) um auto de notícia, (i) para efeitos da respetiva notificação47, (ii) relativamente a infrações constatadas no exsercí-
cio das respetivas competências48, (iii) nos termos dos artigos 13º, n.º 1, 2
e 3, 15º, n.º 1 (1.a parte), 15º-A, n.º 1 e 17º, n.º 1 (1.a parte)49; (b) um auto de advertência, (i) em caso de infrações classificadas como leves e das quais ainda não tenha resultado prejuízo grave para os trabalhadores, para a admi- nistração do trabalho ou para a segurança, conforme os casos50; ou (c) um auto de infração, (i) quando seja verificada por qualquer técnico no exercício das suas funções infração correspondente a contraordenação da segurança social51 e ainda (ii) nos termos dos artigos 15º, n.º 1 (2.a parte) e 17º, n.º 1 (2.a parte)52.
Na prática, isto significará que a ACT não atua, e nada indicará que possa atuar, nos termos da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro53 por via de um singelo auto, o qual54, tal como já exposto, mais não é aqui do que a mani- festação de um poder jurisdicional, obviamente excluído da atuação daque- la entidade administrativa, conforme se evidencia claramente pela simples leitura do n.º 1 do artigo 387º e do n.º 1 do artigo 388º, ambos do CT.
do despedimento por banda do empregador…” – na parte em que, numa situação prática, se pressupõe a possibilidade da ACT intervir em maio de 2020, relativamente a um despedimento ocorrido em abril, desde logo por força do disposto nos art.ºs 5º, n.º 1 e 12º, n.º 1, ambos do CC – nem com “… uma medida de urgência para uma situação de emergência…” Cfr. Amado, “Emergência, calamidade e despedimento…”, 102 e 106.
46 Regime processual aplicável às contraordenações laborais e de segurança social.
47 Cfr. artigo 8º, n.º 1 deste último diploma.
48 Cfr. art.º 10º, n.ºs 0, xx. x) x 0x, xx. x daquele último diploma.
49 Todos do mesmo diploma.
50 Cfr. art.º 10º, n.ºs 0, xx. x) x 0x, xx. x do mencionado diploma.
51 Cfr. art.º 14º, n.ºs 1, 2 e 3 daquele diploma.
52 Todos do mesmo diploma.
53 Regime processual aplicável às contraordenações laborais e de segurança social.
54 Na versão da redação do n.º 1 do art.º 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.
Nem se diga que neste caso específico – e no âmbito da norma em crise – a ACT está a agir com vista a um interesse público.55
2.4. A primeira parte dos poderes administrativos
Analisemos agora a génese da intervenção da ACT, pois tal como assina- xxx Xxxxx Xxxxx: “Importante é, ainda, saber qual a natureza do controlo exer- cido por estas entidades.”56
Qualquer órgão da administração pública deve atuar, sempre, em obediên- cia à lei e ao direito.57
Acresce ainda a necessidade de um órgão da administração pública ter de proceder dentro dos limites dos poderes que lhe forem conferidos e em confor- midade com os respetivos fins, i.e., nos termos do artigo 3º, n.º 1 do CPA.
Deste modo a intervenção de uma entidade administrativa está vinculada ao princípio da legalidade, tal como indubitavelmente tem de ser o caso da ACT.58
Aquela autoridade tem o poder de levantar autos (de notícia) e participações, relativamente a infrações constatadas59 e deste modo a lei faz depender a possi- bilidade de levantamento de um auto de notícia da verificação de infrações.
55 Relativo ao objeto da ARECT e à intervenção da ACT naquele âmbito, conforme salienta Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, Direito do Trabalho, 21a Edição, Almedina, 2022, 172, associando-o à circunstância da qualificação jurídica da relação contratual se encontrar subtraída à disponibilidade das partes.
O que já não nos parece verificar-se com a fiscalização à cessação do vínculo pela ACT, período no qual as partes recuperam a sua liberdade integral, ainda que se possam sujeitar às repercussões legal- mente previstas para a eventual violação dessas regras.
Em sentido contrário à existência de interesse público na ARECT, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, “Es- tudos dedicados ao Professor Doutor Xxxxxxxx xx Xxxx Xxxx Xxxxxx”, da Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa (Vol. III, 2015), 70, segundo a qual: “… não está em causa, como interesse principal ou preponderante, o interesse público ou da coletividade, mas antes o inter- esse próprio (e, em consequência, o direito) de uma das partes da relação jurídica beneficiar da tutela proporcionada pela lei à situação, cuja eventual laboralidade decorre do modo como cumpre a presta- ção a que se obrigou.”
56 Leite, “Direito do Trabalho…”, 27.
57 Em conformidade com o art.º 266º, n.ºs 1 e 2 da CRP.
58 Xxxxxxx Xxxxxxxx, “A Autoridade…”, 10: “… A ACT é um serviço da administração direta do Estado, dotado de autonomia administrativa, que tem uma função inspetiva com vista à prevenção do incumprimento de regras jurídico-laborais…”
59 Cfr. al. d) do n.º 1 do art.º 10º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.
Assim sendo e em conformidade com o mencionado princípio da legalidade, a existência de uma infração será a condição sine qua non para o levantamento de um auto (“de notícia”) pela ACT.
Relativamente ao pendor contraordenacional desta nova intervenção da ACT, Xxxxx Xxxxxxxxxxx00 defende que: “… tudo isto se evidencia, com efeito, que esta singularíssima ‘suspensão’ do despedimento é decretada na fase admi- nistrativa do procedimento contra-ordenacional regulado nos artigos 13º e seguintes da Lei n.º 10/2009, de 14-9, ou seja, ocorre à margem de qualquer intervenção judicial…”.
Acolhendo este entendimento, a exigência da supra mencionada condição indispensável decorrerá do próprio conceito de auto61 de notícia (previsto no artigo 3º, n.º 1 do DL n.º 17/91, de 10 de janeiro62) e assim sendo quando qual- quer autoridade, agente da autoridade ou funcionário público, no exercício das suas funções, presenciar ou verificar contravenção ou transgressão, levantará ou mandará levantar um auto de notícia.
Sem prejuízo do exposto e em conclusão preliminar, um auto de notícia fica- rá dependente da constatação de uma infração, ou seja, estará subordinado à verificação de contravenção ou transgressão, em síntese de um ilícito de âmbito contraordenacional.
Assim sendo, questionamos: inexistindo contravenção ou transgressão de base, haverá matéria infracional e nessa medida existirá substrato passível de intervenção fiscalizadora, tal como ela se encontra configurada?
E, intrinsecamente, manifestar-se-á alguma possibilidade de atuação admi- nistrativa da ACT nas situações contempladas no artigo 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março?
Tal como já referido, a ACT63 só terá64 poder para levantar os seguintes autos: “de notícia”; “de advertência”; “de infração”.
60 Xxxxxxxxxxx, “A suspensão …”, 13.
61 Não vislumbramos, pelas razões já aduzidas anteriormente, qualquer possibilidade de se conside- rar que um auto (da ACT) não seja, sempre, um auto de notícia e não somente um auto.
62 Processamento e Julgamento das Contravenções e Transgressões.
63 Que nem sequer está enquadrada como entidade reguladora (vide, Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto: Lei-Quadro das Entidades Reguladoras).
64 Segundo a Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro (Regime processual aplicável às contraordena- ções laborais e de segurança social).
Será que este novo poder da ACT, quando colocado em prática, não confi- gurará um ato nulo sem produção de quaisquer efeitos jurídicos, indepen- dentemente da declaração de nulidade65?
Sendo certo que os Tribunais têm direito à coadjuvação das outras auto- xxxxxxx00, como até é o caso da própria ACT, não estaremos nesta situação
– auto levantado nos termos do artigo 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março – perante a extrapolação das competências administrativas da referida autoridade, criando-se67 uma norma ad hoc para composição não jurisdicio- nal de litígios68?
Em concreto, será que aquela norma não levará as instâncias judiciais a considerar aquele ato como nulo?
Em decurso do já mencionado princípio da separação de poderes, admi- timos que os Tribunais de Trabalho poderão votar aquele auto ao vício da nulidade, acompanhando aqui o entendimento de Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx e de Xxxxx Xxxxxxx de Matos69, para os quais a dimensão negativa daquele poder “… impõe que, quando no exercício de uma função do Estado para o qual estejam constitucionalmente habilitados, os órgãos do poder político não possam praticar actos que se reconduzam a outra função do Estado… Segundo a contemporânea concepção positiva de separação de poderes enquanto princípio organizativo de optimização do exercício das funções do Estado, esta exige uma estrutura orgânica funcionalmente correcta do aparelho público, aferida por referência às ideias de aptidão, responsabi- lidade e legitimação: as funções do Estado devem ser distribuídas pelos órgãos mais adequados em função da sua natureza e da dos seus serviços, da forma e dos procedimentos da sua actuação e da sua legitimação, de modo
65 Cfr. art.º 162º, n.º 1 e n.º 2, als. a) e b) do CPA (este último porque a ACT é, nos termos do artigo 1º do Decreto-Regulamentar n.º 47/2012, de 31 de julho, um serviço central da administração direta do Estado, dotado de autonomia administrativa, sendo por isso parte integrante da Administração Pública, de acordo com a al. c) do n.º 4 do art.º 2º do CPA).
66 Cfr. art.º 202º, n.º 3 da CRP.
67 Ao atribuir competência jurisdicional a uma entidade com competência meramente administra- tiva.
68 Cfr. art.º 202º, n.º 3 da CRP.
69 Direito Administrativo Geral – Introdução e princípios fundamentais, Xxxx X, (3.a edição, D. Quixote, 2010), 136-137.
a que decidam de forma responsável e que pelas suas decisões possam ser responsabilizados.”
Adiantam ainda aqueles mesmos autores que:
“Em conformidade, o art. 202.º, 1 CRP estabelece que ‘os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo’ daqui decorrendo uma reserva de função jurisdi- cional em favor dos tribunais (= reserva de jurisdição): estes não são apenas órgãos de soberania que administram a justiça em nome do povo; são os órgãos de soberania que administram a justiça em nome do povo. Contudo, existe uma zona cinzenta em que o exercicío de uma função materialmente jurisdicional surge em ligação estreita com o exercício da função administrativa. Pense-se, por exemplo, no julga- mento em primeira instância de processos de contra-ordenacionais (…). É relativamente consensual na doutrina e na jurisprudência que aqui não funciona uma reserva absoluta de jurisdição no âmbito da qual se admite que a lei permita aos órgãos administrativos que exerçam em primeiro grau poderes materialmente jurisdicionais 70, com sujeição a posterior controlo jurisdicional, necessariamente de plena jurisdição (…). Fora destas situações, é inconstitucional, por violação do princí- pio a separação de poderes, qualquer lei que invista a administração do exercício da função jurisdicional (…).”
Ora, o que se passa no caso da norma sob crítica é algo distinto da
intervenção da ACT em matéria contraordenacional, sendo antes uma intervenção aparentemente jurisdicional71 e por esse motivo nula.
2.5. A segunda parte dos poderes administrativos
Seguindo aquela linha de raciocínio, esta nulidade advirá do disposto nas als. a) e b) do n.º 2 do artigo 161º do CPA, por estar em causa um ato viciado de usurpação de poder, in casu do poder jurisdicional, conforme já exposto
70 Apenas nos processos de contraordenação, o que não é aqui o caso.
71 Não administrativa.
e mais aprofundadamente por desvio de poder72. Esta forma de atuação será estranha às competências da ACT.
Este vício, salvo melhor opinião, já de si patente parece-nos ser ainda mais visível perante a ausência de uma inclusão do conceito de ilícito contra-
-ordenacional73 em qualquer um dos artigos do CT mencionados no n.º 1 do artigo 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, a saber: 381º, 382º, 383º e 384º.
Ou seja, e conforme já aflorado, se nenhuma daquelas situações de despe- dimento, ainda que potencialmente ilícitas, compreende matéria contraor- denacional, a que título se justificará – validamente – a intervenção daquela Autoridade ao abrigo deste novo poder?
O conceito de ilicitude que a ACT74 parece poder combater validamente, na sua atividade, estará eminentemente subjacente às contraordenações labo- rais, por contraposição à ilicitude perante a qual os Tribunais de Trabalho são confrontados, quando apreciam a (in)validade de um despedimento.
Realidade que nos parece particularmente relevante para o enquadra- mento sistematizado da nossa análise, justificando a leitura completa do teor daquelas normas, para as quais remetemos diretamente, com dispensa da respetiva transcrição por razões de mera economia de redação.
Conforme expressamente determina o artigo 548º do CT, (só) constitui contraordenação laboral o facto típico, ilícito e censurável que consubstancie a violação de uma norma consagradora de direitos ou impositiva de deveres a
72 Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx, Direito Administrativo, (Volume III 1989), 296: “Em nossa opinião, a usurpação de poder comporta, por conseguinte, duas modalidades: (…) – a segunda é a usurpação do poder jurisdicional: a administração pratica um acto que pertence às atribuições dos tribunais.”
73 Do qual poderia assim depender a competência para a intervenção daquela Autoridade nos refe- ridos casos concretos.
74 Não se confunda com o poder administrativo de uma outra entidade administrativa, in casu, a CITE, numa situação de despedimento, no âmbito do art.º 63º do CT, pois neste caso esta última entidade (na veste dos seus poderes administrativos) não classifica/comina de ilícita uma determinada conduta (de despedimento de uma trabalhadora grávida, puérpera ou lactante, bem como de trabalha- dor no gozo de licença parental), emitindo tão-só um parecer, o qual sendo desfavorável (como se veri- fica na esmagadora maioria – para não dizer em todos – dos casos) é passível de ser objeto de decisão judicial que reconheça a existência de motivo justificativo (Cfr. n.º 6 do art.º 63º do CT).
Só existirá ilicitude de despedimento (unicamente validada pelo tribunal) naquele contexto, se o mesmo decorrer sem a prévia solicitação do referido parecer da CITE (Cfr. art.º 381º, al. d) do CT), caso em que os tribunais o comunicam à CITE, após trânsito em julgado. Cfr. art.º 2º, n.º 1, da Lei n.º 133/2015, de 07 de setembro.
qualquer sujeito no âmbito de relação laboral e que seja punível com coima. Nenhuma destas realidades ocorre em qualquer dos referidos artigos do CT e assim sendo, aceitando-se a competência exclusiva para a decisão juris- dicional sobre a ilicitude de um despedimento, de modo absolutamente indiscutível aos Tribunais do Trabalho –conforme o próprio n.º 3 do artigo 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março reconhece – não se concebe como não poderá deixar de ser reconhecida a nulidade da intervenção da ACT
neste âmbito, pelas razões supra expostas.
Coloca-se ainda assim uma questão final: se o tribunal acolher este enten- dimento, o trabalhador ficará processualmente prejudicado, nomeadamente quanto ao prazo de reação do seu direito?
A nossa resposta continuará a ser negativa, pois permanecem em vigor os prazos respetivos de reação do trabalhador: 60 dias, 6 meses ou 1 ano, confor- me se aplique o processo especial para impugnação da regularidade e ilicitu- de do despedimento75, o processo especial de impugnação do despedimento coletivo76 ou o processo declarativo comum77.
Aqui chegados, apenas conseguimos contemplar a eventual pertinência de uma intervenção inovadora da ACT, na matéria identificada no n.º 1 do arti- go 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março – mas a ser unicamente concre- tizada por via de alteração ao próprio CT – exclusivamente no sentido de fiscalizar, com a correspondente cominação de ilicitude contra-ordenacional, a concreta colocação à disposição do trabalhador, da compensação prevista na al. d) do artigo 384º do CT. Estaríamos até em condições de elogiar esta solução.
Nesta hipótese, tratar-se-ia de um poder eminentemente administrativo que poderia reforçar legitimamente os direitos dos trabalhadores, sem melin- drar o poder jurisdicional e sem beliscar a capacidade jurídica e processual dos beneficiados.
75 Cfr. arts. 98º-B e ss. do CPT.
76 Cfr. arts. 156º e ss. do CPT.
77 Cfr. arts. 337º, n.º 1, 387º, n.º 2 e 388º, n.º 2 do CT.
2.6. A inexistência do “chapéu” do estado de emergência
Conforme já mencionado, a Lei 14/2020 de 9 de maio78 surgiu fora do estado de emergência79, em mero estado de calamidade, implicando a inad- missibilidade de suspensão do exercício de direitos, liberdades e garantias.
Destacamos este pormenor porque fora daquela salvaguarda constitucio- nal, do estado de emergência80/81, não é legalmente admissível suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias.
Esta constatação, que não é o foco da nossa análise, impõe ainda assim uma breve nota para a concomitante verificação da ausência de um pata- mar de força jurídica, potencialmente indispensável para justificar mais este reforço de poderes82 da ACT, desta feita em sobreposição ao poder jurisdicional.
Assim sendo, mediante a ausência daquele degrau de solidez jurídico-
-constitucional, admitimos existir aqui mais argumento de injustificabilida- de deste reforço83 dos poderes da ACT, passível de ferir o poder jurisdicional. Diremos mais, impõe-se de permeio a invocação dos n.ºs 4 e 7 do artigo 19º da CRP, segundo os quais a opção pelo estado de sítio ou pelo estado de emergência, bem como as respetivas declaração e execução, devem respeitar o princípio da proporcionalidade, limitando-se, quanto às suas extensão e duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabe-
lecimento da normalidade constitucional.
78 Do qual resulta, nos termos do respetivo art.º 3, a introdução da norma em causa.
79 A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência só pode alterar a regularidade cons- titucional nos termos previstos na Constituição e na lei, mas não pode, nomeadamente, afetar a apli- cação das regras constitucionais de competência e funcionamento dos órgãos de soberania (leia-se no que aqui nos interessa: dos Tribunais).
O estritamente necessário e a não afetação do funcionamento dos órgãos de soberania, devem, na nossa conceção, ser entendidos neste caso como o conjunto de medidas aptas à contenção da pandemia, nas quais se incluem (naturalmente) a limitação à circulação de pessoas (por exemplo, nos Tribunais), mas já não a paragem (no tempo) dos prazos substantivos para o exercício de direito constitucionais funda- mentais, como o da já citada tutela jurisdicional efetiva, implicitamente fixada nos art.ºs 98º-B e ss. do CPT, 156º e ss. do CPT e 337º, n.º 1, 387º, n.º 2 e 388º, n.º 2 do CT.
80 Ou de sítio.
81 Publicado durante um mero estado de calamidade. Cfr. RCM n.º 33-A/2020, de 30 de abril.
82 Amado, “Emergência, …”, 107.
83 Ibidem.
Como alguns defendem, estaremos perante mais uma manifestação de “…verdadeira desorientação dos poderes constituídos em que foram feridas praticamente todas as balizas constitucionais”.84
Sem prejuízo do exposto e independentemente da potencial máxima censura jurídica85 ao normativo em discussão, o mesmo não encontrará justi- ficação mesmo uma lógica de excecionalidade de funcionamento da socieda- de no período histórico-temporal de implementação da regra em causa.
Deresto, nãoteráaquelanormaumoutroproblemadeconstitucionalidade? Temos aqui em consideração o disposto no artigo 112º, n.º 5 da CRP pois: “Nenhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos ou conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar,
modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.”
Do mesmo modo, aquela norma não infringirá o disposto na CRP e os princípios nela consignados86, desde logo o da separação de xxxxxxx00?
Nem se invoque o pretexto do receio de que com a pandemia os trabalha- dores ficariam com menos capacidade de se deslocarem, por exemplo, aos escritórios dos advogados para junto dos mesmos solicitarem o respetivo patrocínio forense de litígios judiciais em matéria laboral.
Aquela ideia será totalmente contrariada pela existência de meios de comunicação à distância, superando-se essa barreira física e fomentando até o incremento de uma incessante atividade contenciosa da mais diversa ordem, mormente por uma falange de novos casos surgidos no advento desta nova modalidade de prestação de serviços jurídicos.88
84 Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx, “Sobre os poderes normativos do Presidente da República e do Gover- no em estado de excepção”, ROA (III/IV, 2021), 770.
85 Inconstitucionalidade daquela norma, como defende Xxxxxxxx, “A Autoridade…”, 25 e 28.
86 Atenta a previsão do n.º 1 do art.º 277º da CRP.
87 Por força do disposto no art.º 2º da CRP, conjugado com os art.ºs 202º e 203º do mesmo di- ploma, atenta a independência da função jurisdicional (exclusiva dos Tribunais).
88 Do mesmo modo que a intervenção em tribunal passou a ser possível à distância e sem quaisquer constrangimentos (já o era no regime de videoconferência para inquirição de testemunhas), desta feita para os advogados, via Webex, e demais intervenientes processuais. Cfr. actual art.º 6º-E, n.º 5 da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março (na versão introduzida pela Lei n.º 13-B/2021, de 05 de abril) e informação do CSM de 21 de abril de 2020.
3. Prazos normais de impugnação do despedimento
Consideramos poder conter alguma utilidade acrescentar nesta nossa breve exposição – principalmente pela relevância concreta da respetiva arti- culação com outros diplomas provisórios do espectro do “combate à covid-
-19” – uma singela abordagem ao percurso que reputamos poder continuar a ser trilhado pelos trabalhadores, face à inadequação do artigo 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.
Permaneceram à inteira disposição os mecanismos de reação jurisdicio- nal supra identificados. Ou seja, continuaram a vigorar os prazos de 1 ano previsto no artigo 337º, n.º 1 do CT89 90 para reclamar créditos laborais ou o período de 60 dias consagrado no artigo 387º, n.º 2 do CT91, para oposição ao despedimento.
Aliás, antes da vigência do normativo em análise e atendendo ao disposto no artigo 7º n.º 1 da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março92, terá sido preconiza- da a suspensão dos prazos para instaurar ações judiciais, mormente de impug- nação de despedimento93.
89 Em sentido crítico quanto à duração deste prazo, Xxxx Xxxx Xxxxx, Contrato de Trabalho, noções básicas, (3.a edição, Almedina, 2021), 319 e ss.
90 Resultante da 1.a parte do n.º 1 do art.º 8.º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.
91 A iniciar mediante as formalidades consagradas no art.º 98º-C do CPT.
92 Na redação conferida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril.
93 Sobre esta matéria, vide o Ac. TRL de 24.03.2021, proferido no proc. 2072/20.2T8CSC.L1-4, do qual foi Relator o Juiz Desembargador Xxxxxxxx Xxxxxx, com o seguinte sumário: “I – A suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade contemplada nos nºs 3 e 4 do artigo 7º da Lei n.º 1-A/2020, de 2020-03-19, que ocorreu entre 9 de março de 2020 e 3 de junho do mesmo ano, aplica-se ao prazo prescricional contemplado no nº 1 do artigo 337º do Código de Trabalho/2009”.
O nosso entendimento é contrário àquela jurisprudência. Vejamos: aquela norma estabeleceu mera- mente a suspensão de todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais praticáveis no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais, demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, ministério público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal.
Assim sendo, parece que só ficaram sujeitos àquela suspensão os atos processuais e procedimentais que praticáveis (se já estivesse em curso um processo judicial: é esta a nossa interpretação) nas diversas ju- risdições, ao regime das férias judiciais (n.º 1 do artigo 137º do CPC, prevê que: “Sem prejuízo de atos realizados de forma automática, não se praticam atos processuais nos dias em que os tribunais estiverem encerrados, nem durante o período de férias judiciais”).
A aplicação do regime das férias judiciais para a suspensão de prazos no âmbito do art.º 7º n.º 1 da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março (na redacção conferida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril) só aparenta significar a necessidade daquela regra abranger (apenas) os processos judiciais já em curso: instaurados em juízo. A não ser assim, um prazo não judicial (prazo substantivo) ficaria suspenso, antes mesmo
Ainda assim, não nos parece que os prazos consagrados no processo espe- cial para impugnação da regularidade e ilicitude do despedimento (Cfr. arti- gos 98º-B e segs. do CPT), no processo especial de impugnação do despedi- mento coletivo (Cfr. artigos 156º e segs. do CPT) ou no processo declara- tivo comum (Cfr. artigos 337º, n.º 1, 387º, n.º 2 e 388º, n.º 2 do CT) sejam prazos para a prática de atos processuais no sentido em que não pressupõem a existência de um processo judicial. Aqueles preceitos estabelecem unica- mente um limite temporal para a instauração de uma ação em juízo, não se vislumbrando assim a possibilidade de aplicação do regime das férias judi- ciais, o qual depende da existência de um processo judicial em curso, aparen- tando por isso estar fora do âmbito de aplicação do artigo 7º n.º 1 da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março 94, nem este último para aqueles outros diplomas, i.e., o regime das férias judiciais (vide artigo 137º, n.º 1 do CPC e artigo 26º, n.º 2 do CPT) é eminentemente um sistema do direito adjetivo/processual, não se aplicando a qualquer prazo fixado no direito substantivo, como é o caso das regras temporais de reação aos despedimentos previstas no CT.
Deste modo, os trabalhadores continuaram, em qualquer momento, a
conseguir reagir contra um eventual despedimento.
de existir uma ação em tribunal, ficando sujeito a um regime (das férias judiciais) que pressupõe a existência de um processo judicial, o que não nos parece, com o devido respeito, fazer qualquer sen- tido. A intenção do legislador (como já acontece no regime das férias judiciais) terá sido apenas a de reduzir o peso da pendência da tramitação judicial dos diversos intervenientes profissionais do foro (magistrados, funcionários judiciais, advogados, agentes de execução, administradores de insolvência, entre outros) evitando deslocações físicas aos Tribunais, reduzindo assim a circulação de pessoas e o respetivo risco de contágio.
94 De resto, sempre pareceria legítimo indagar, à luz de um entendimento distinto do que acabá- mos de expor e porque a sua sustentação só poderia advir (na sua génese) de considerar que uma nor- ma do CT (como por exemplo o art.º 337º) é influenciável pelo regime das férias judiciais, se (assim sendo, em contrário da tese que perfilhamos) as demais dezenas de prazos fixados no CT [ex: art.ºs 5º, n.º 0, xx. x), 0x, x.x 0, xx. b), 8º, n.º 2, 18º, n.º 4, 21º, n.º 4, 36º, n.º 1, al. b) 37º, n.º 2, 37º-A, n.º 2, 38º, n.º 1, 40º, n.ºs 1, 2, 3, 5, 7, 8 e 10, 41º, n.ºs 1 e 3, 42º, n.ºs 3 e 4, entre muitos outros] também estivessem suspensos e sujeitos ao regime das férias judiciais (?) e se a resposta fosse afirmativa, sem conceder, com que sentido se justificaria tal interpretação já que também são prazos substantivos do CT? A nossa resposta é negativa, até porque existiram disposições especiais que estabeleceram, objetiva e indubitavelmente, a suspensão de prazos substantivos (o que não se verificou com as re- gras/prazos do CT), tais como o art.º 8º da Lei n.º 1-A/2020 (na redação da Lei n.º 4-A/2020, de 16 de abril que suspendeu os efeitos da caducidade e da revogação, denúncia e oposição à renovação efetuadas pelo senhorio: manifestamente, prazos não adjetivos) e também o artigo 4º do DL n.º 10-J/2020, de 26 de março (revogado pelo DL 66-A/2022, de 30 de setembro) que consagrou mo- ratórias em relação a certos créditos.
4. A plenitude da manutenção dos direitos dos trabalhadores
Feitas estas apreciações e enquadrado o destino a uma norma que aparenta estar desalinhada, este desfecho é passível de colocar algumas dúvidas peran- te uma eventual decisão judicial que não reconheça qualquer poder da ACT, mormente por via de um auto, para suspender um despedimento.
Vejamos se o artigo 8º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março acrescenta algo ao regime dos artigos 381º a 384º do CT.
A resposta parece ser negativa. Os trabalhadores continuaram, como até aqui e dentro dos respetivos prazos em vigor, a conseguir reagir judicialmen- te contra um despedimento, desde logo nos termos dos artigos 381º, 382º, 383º, 384º, todos do CT, e mesmo de acordo com o artigo 386º daquele diploma legal, sem prejuízo ainda da própria providência cautelar95, porém, como e para qual morada?; (ii) se o trabalhador não tiver interesse96?; (iii) será que caminhamos para um estádio jurídico em que os interessados nem sequer possuem autonomia da vontade sobre a medida dos direitos de que são suscetíveis de ser titulares e de discernir livremente sobre a ação e exer- cício dos mesmos?; (iv) a ser assim, não valerá mais a pena abdicarmos dos conceitos de capacidade jurídica e judiciária, quiçá da própria personalidade jurídica e judiciária?
Indo mais longe, esta suspensão – pela ACT do despedimento por esta
reputado de ilícito – na esteira do já ocorrido com o artigo 15º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, não poderá até conflituar e restringir o exercí- cio da própria capacidade jurídica do trabalhador visado, manifestando uma
95 Xxxxxxxxxxx, “A suspensão…”, 18.
96 Por já ter encontrado emprego alternativo (até com condições mais vantajosas) e por isso só pre- tender reclamar créditos laborais e não a respetiva reintegração (e até mesmo só pretendendo a simples reclamação daqueles créditos por ter deixado de conceber trabalhar para aquele empregador, por mo- tivos que o trabalhador muitas vezes nem pretende revelar ou aprofundar), por encarar a cessação do contrato como uma oportunidade (para se estabelecer por conta própria, para procurar um novo rumo profissional, para prosseguir ou aprofundar a sua formação académica, profissional ou pessoal), ou por apesar de tudo não pretender litigar com a sua antiga entidade empregadora (já fomos confrontados, por diversas vezes, com qualquer uma destas hipóteses na nossa atividade profissional).
E ainda por considerar que o despedimento nem sequer é ilícito (menos frequente, mas ainda assim também já observada).
intromissão da administração na liberdade e no discernimento de cada um97 de suspensão do despedimento.
De resto, o artigo 8º-C da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março parece ser até desnecessário face ao disposto no n.º 1 do artigo 387º e com o n.º 1 do artigo 388º, ambos do CT, segundo os quais, respetivamente, a regularidade e lici- tude do despedimento individual e coletivo é apreciada por tribunal judicial, mas nunca pela ACT, sublinharemos nós.
Acresce ainda que a suspensão pela ACT do despedimento que esta repute de ilícito motiva algumas perplexidades, tais como: (i) se o trabalhador já não estiver na empresa, o mesmo será notificado98, porém, como e para qual morada?; (ii) se o trabalhador não tiver interesse99 em impugnar a ilicitude do despedimento100?
5. Outros mecanismos vigentes de proteção dos trabalhadores
Por exemplo, na já aludida ARECT101, quer a autonomia da vontade, quer o princípio do dispositivo102 – sendo o processo de trabalho um processo
97 Certamente bem mais célere do que a intervenção e decisão da ACT, não se concordando por isso com Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, “Direito ao trabalho em tempos de pandemia” (A Universidade do Minho em tempos de pandemia – Projeções, 2020), 12, disponível em xxxxx://xxxxxxxxxxxx.xxxx. xxxxxx.xx/xxxxxxxxx/0000/00000/0/0.%00Xxxxxxx%00xx%00xxxxxxxx%00xx%00xxxxxx%00 de%20pandemia.pdf (consultado em 28.12.2021): “O que se pretendeu com esta norma, parece-nos, é dar um procedimento mais célere no caso dos despedimentos ilícitos”.
98 Já com o art.º 15º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, poderá ter havido um aparente esquecimento sobre essa possibilidade, neste caso ao ponto de o trabalhador nem sequer ser parte na ação. Será que o tribunal pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes? Cfr. art.º 3º, n.º 1 do CPC.
Contudo, a favor do interesse público protegido pela ARECT, vide, exemplificativamente, o Xx.
XXX, xx 00.00.0000, proferido no âmbito do proc. n.º 1673/14.2T8MTS.P1.
99 Já com o art.º 15º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, poderá ter havido um aparente esquecimento sobre essa possibilidade, neste caso ao ponto de o trabalhador nem sequer ser parte na ação. Será que o tribunal pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes? Cfr. art.º 3º, n.º 1 do CPC.
Contudo, a favor do interesse público protegido pela ARECT, vide, exemplificativamente, o Xx.
XXX, xx 00.00.0000, proferido no âmbito do proc. n.º 1673/14.2T8MTS.P1.
100 Cfr. arts. 9º, al. b), 18º, nº 2, 19º, n.º 1 (desde logo porque a norma em análise vigora indepen- dentemente do estado de emergência), 20º, n.º 2, 26º, n.º 1 da CRP.
101 Neste sentido, Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx, “Da acção de reconhecimento da existência de con- trato de trabalho: Breves comentários”, Revista da Ordem dos Advogados, 2014, IV, 1423 e ss.
102 Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, em comunicação na Universidade Nova de Lisboa - Campus
especial que se socorre, nos casos omissos, da legislação processual comum, da regulamentação dos casos análogos previstos na legislação processual comum e dos princípios gerais do direito processual comum, atento o artigo 1º, n.º 2, als. a), c) e e) do CPT – podem não ter sido suficientemente preconizados (numa população ativa103 de 5 165 100104) atenta a ponderação do contra- ditório105 ínsito no processo civil como sua pedra angular106.
Seguindo a legislação processual comum, o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição (Cfr. artigo 3º, n.º 1 do CPC).
Ou seja, será que os n.ºs 3 e 4 do artigo 15º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro não subtraem – logo à partida – a uma das partes (talvez a parte mais importante neste tipo de ações: o trabalhador) o direito e a liberdade de agir, ou de não agir, contra o empregador?
A própria possibilidade de juízo sobre o interesse em agir não será subtraída à parte, tudo sem prejuízo da cumulativa consideração do conceito e medida da personalidade judiciária (Cfr. artigo 11º do CPC), do conceito e medida da capacidade judiciária (Cfr. artigo 15º do CPC) e do próprio conceito de legitimidade (Cfr. artigo 30º do CPC)?
Não será motivo de perplexidade que o trabalhador esteja forçado à classi- ficação que a ACT faz a uma determinada cessação do contrato de trabalho, por mais bem-intencionada e benévola que esta intervenção possa ser?
Paulatinamente, no âmbito laboral, parecem estar a ser introduzidos mecanismos que – sob a premissa da posição de inferioridade ou do temor
de Campolide, Lisboa, no âmbito da formação do CEJ “Balanço do Novo Processo Civil” a 10.03.2016.
103 Segundo dados de 2019, em Portugal 3 641 758 de pessoas possuía acesso à Internet, quando
– comparativamente – em 1997 só 88.670 pessoas estavam conectadas. xxxxx://xxx.xxxxxxx.xx/Xxx- tugal/Assinantes+do+acesso+à+Internet-2093 (consultado em 15.12.2021)
104 Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, em comunicação na Universidade Nova de Lisboa - Campus de Cam- polide, Lisboa, no âmbito da formação do CEJ “Balanço do Novo Processo Civil” a 10.03.2016.
105 Bem como pelo ónus de alegação das partes (vide art.º 5º do CPC) a quem compete, em ex- clusivo (diremos nós) alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
106 Concedendo-se que os art.ºs 186º-K e ss. do CPT (em conjunto com a al. c) do art.º 5º-A daquele diploma) possam resolver o problema dos casos omissos, levantado pelo n.º 2 do art.º 1º do CPT.
reverencial dos trabalhadores – acabam por lhes retirar a simples faculdade de decidir sobre se querem, ou não, exercer ou invocar um determinado direi- to processualmente invocável.
O pretenso aperfeiçoamento dos mecanismos de controlo das relações laborais, ainda que sob o cotejo do combate à pandemia de covid-19 e seus efeitos, aparenta caminhar a passos largos para um extremo em que chega a ser intrigante constatar que o legislador continua, em plena segunda década do século XXI, a considerar que o trabalhador é um ser frágil e incapaz de se aconselhar, de discernir ou de zelar pelos seus interesses.
Este entendimento será um tanto ou quanto contraditório, principalmen- te quando se atingiu uma elevada taxa de acesso à internet107 numa população ativa de 5 165 100108 pessoas.
Deste modo, 70% da população ativa tem hoje acesso pleno à possibilida- de permanente de estar informada, podendo nomeadamente conhecer os seus direitos e até aceder a aconselhamento e patrocínio jurídico por essa mesma via. E quid iuris se o trabalhador, desconhecendo a atuação da ACT aqui em perspetiva, apresentar uma providência cautelar sem que aquela entidade
conheça essa reação ao despedimento?
Esta eventualidade não se resolveria com a cominação processual de absol- vição da instância por litispendência, desde logo porque o procedimento da ACT, ao abrigo da norma em causa, não é judicial.
Ainda mais complicada ficaria a análise desta questão se, porventura, a providência cautelar não suspendesse o despedimento, mas a ACT por seu turno determinasse a suspensão do despedimento.
Significaria isto que a decisão da ACT, meramente administrativa, preva- leceria perante a decisão judicial? Tudo isto parece padecer de um enorme contrassenso jurídico.
Aliás, configuremos ainda uma outra contingência: e se a empresa não acatar a decisão consagrada no n.º 2 da norma examinada, em que confusão se coloca o trabalhador?
107 Segundo dados de 2019, em Portugal 3 641 758 de pessoas possuía acesso à Internet, quando
– comparativamente – em 1997 só 88.670 pessoas estavam conectadas. xxxxx://xxx.xxxxxxx.xx/Xxx- tugal/Assinantes+do+acesso+à+Internet-2093 (consultado em 15.12.2021)
108 xxxxx://xxx.xxxxxxx.xx/Xxxxxxxx/Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx-00 (consultado em 15.12.2021)
A retoma da execução do contrato de trabalho implica a reintegração do trabalhador, mas em que clima se promove um reingresso de alguém por via de uma decisão administrativa?
Ademais, em inúmeras vezes a única intenção do trabalhador é a indem- nização, ao invés da reintegração, opção que pode tomar até à sentença (Cfr. artigo 391º do CT.)
O legislador terá aqui progredido num percurso de desjudicialização e de secundarização da autoridade dos Tribunais.
6. Conclusões
Sublinhando a meritória atividade da ACT109, os direitos dos trabalhado- res ficarão potencialmente muito mais defendidos e salvaguardados se aquela Autoridade tiver meios humanos e administrativos indispensáveis ao desempe- nho da sua missão e não tanto por via de um poder eminentemente jurisdicional. O nosso sistema jurídico deve ser pensado para funcionar de uma forma articulada e equilibrada face à independência entre o poder judicial perante o
poder legislativo e vice-versa.
Reconhecendo a desenvolvida capacidade do foro laboral para dirimir litígios, nomeadamente apreciando a validade e subsistência de contratos de trabalho, garantindo o respeito permanente pelo contraditório pleno, bem como pela liberdade do exercício dos direitos dos trabalhadores, almejar-se-á um eficaz combate à ilegalidade/ilicitude.
A vinda para o campo jurisdicional de um novo agente sem legitimidade de intervenção jurisdicional, sem a independência necessária e potencialmente afastado do conhecimento e traquejo indispensável à classificação, gestão e resolução de um litígio jurídico, poderá contribuir inclusivamente para um desfecho mais prejudicial do que vantajoso.
Concluímos como os sábios nos ensinam e “… veremos o que o futuro nos reserva, com a convicção de que, nisto como em tudo, os planos e as previsões
109 Desde logo na fiscalização do cumprimento das regras de saúde e segurança no local de trabalho, bem como na sindicância do respeito pelos limites de duração do trabalho.
de pouco servem”110, parecendo-nos que os tribunais111 serão a sede mais adequada para a administração de justiça, por muitas vicissitudes apontáveis a uma tramitação por vezes menos eficiente, cuja responsabilidade poderá ser acometida, em última instância, a uma legislação mais prolixa do que o necessário, menos assertiva e menos capaz de olhar para a floresta e respetiva hierarquia, fixando-se numa pequena planta isolada.
110 Amado, “Emergência,…”, 105.
111 Judiciais ou arbitrais.