O CONTRATO DE INTERNAMENTO EM LARES DE IDOSOS
Xxxxx Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx
O CONTRATO DE INTERNAMENTO EM LARES DE IDOSOS
Tese de Mestrado em Direito, na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Forenses, orientada pela Prof. Doutora Xxxxx Xxxxxx Xxxxxx e apresentada à
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Coimbra, 2017
O contrato de internamento em lares de idosos Accommodations contract at home retirements
Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre), na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Forenses
Orientadora: Prof. Doutora Xxxxx Xxxxxx Xxxxxx
Coimbra, 2017
A apresentação da presente dissertação só foi possível graças à ajuda da minha mãe e do meu marido.
Muito devo, igualmente, à minha Irmã e ao meu cunhado Xxxxxx Xxxxxxx pela preciosa ajuda nos cuidados às minhas Filhas.
Seguem-se os agradecimentos à Professora Doutora Xxxxxx, minha Orientadora, pelo apoio, disponibilidade e paciência; e à minha amiga Xxxx Xxxx Xxxxxxxx pela motivação transmitida.
Dedico este meu trabalho ao meu Pai, que já partiu, a quem devo a minha vida académica e profissional; ao meu Marido que sempre acreditou em mim; e às minhas Filhas, que são a minha inspiração.
“a xxxxx morreu, pegaram em mim e puseram-me no lar com dois sacos de roupa e um álbum de fotografias. foi o que fizeram.”
Valter Xxxx Xxx, in “a máquina de fazer espanhóis”
Resumo: 1. A presente dissertação assenta na reflexão acerca dos problemas que o contrato que está na base do internamento em lares de idosos pode suscitar. Começa- se pela análise dos objetivos e dos requisitos legalmente estabelecidos para a abertura, organização e funcionamento de um lar, para depois se focarem as questões que o dito contrato implica, dada a inexistência de regulamentação legal deste tipo de vínculo contratual e a particular sensibilidade dos interesses dos utentes – idosos ou pessoas, com idade avançada ou não, mas com capacidade diminuída -, interesses intimamente relacionados com os seus direitos fundamentais. 2. Para tanto, são estudadas as principais questões que surgem em torno do contrato: por quem pode ser celebrado, o seu conteúdo e as obrigações daí advenientes para os contraentes; para, de seguida, e com apoio nestes elementos, se discutir a natureza deste tipo de contrato e o regime a que haverá de submeter-se. Abordam-se, ainda, hipóteses de incumprimento contratual. 3. Conclui-se mediante pronúncia acerca da qualificação jurídica do contrato e demonstração da necessidade da sua regulamentação legal, sugerindo-se possíveis soluções.
Palavras–chave: idosos, pessoas incapacitadas, lar de idosos, contrato de internamento em lares de idosos, incumprimento contratual.
Abstract: 1. This dissertation discusses the problems that may be caused by the contract on which admission to a retirement home is based. It begins by analysing the objectives and legally established requirements for the opening, organization and operation of a retirement home. It then addresses the questions involved in such a contract, given the lack of legal regulations applying to this type of contractual relationship and the particular sensitivity of the interests of the users - the elderly or the disabled people, whether or not they are elderly. These interests are intimately connected to their fundamental rights. 2. The study therefore addresses the key questions arising in relation to the contract: who can enter into it, its content and the obligations on the contracting parties. Based on these elements, it then discusses the nature of this type of contract and the regime to which it will be subject. It also addresses cases of breach of contract. 3. It concludes with a statement about the legal qualification of the contract and a demonstration of the need for it to be legally regulated, with some possible solutions suggested.
Keywords: elderly, disabled people, retirement home, accommodation contract at a rest home, breach of the contract.
Siglas e abreviaturas
Ac. - Acórdão Acs. – Acórdãos
AR – Assembleia da República al. - alínea
als. - alíneas art. - artigo arts. – artigos
CE – Comunidade Europeia CC - Código Civil
CJ – Coletânea de Jurisprudência
CRP - Constituição da República Portuguesa CPC - Código de Processo Civil
CN – Código do Notariado
CMEM - Comité dos Ministros dos Estados Membros Desp. – Despacho
Desp. Norm. – Despacho Normativo Desps. Norms. – Despachos Normativos
DUDH - Declaração Universal dos Direitos Humanos DL - Decreto-Lei
DR - Decreto Regulamentar Ed. - Editora
ed. - edição ex. – exemplo n.º - número
EM – Estado Membro
FDUC – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra G7 – Grupo dos Sete
ISS, I.P. – Instituto da Segurança Social, Instituto Público ONU – Organização das Nações Unidas
p. - página pp. - páginas
Proc. - Processo Procs. - Processos
RAU – Regime do Arrendamento Urbano RCM - Resolução do Conselho de Ministros RLJ – Revista de Legislação e Jurisprudência SS – Segurança Social
STJ - Supremo Tribunal de Justiça TC - Tribunal Constitucional
TRC - Tribunal da Relação de Coimbra TRE - Tribunal da Relação de Évora TRG - Tribunal da Relação de Guimarães TRL - Tribunal da Relação de Lisboa TRP - Tribunal da Relação do Porto
UE - União Europeia Vol. – Volume
Índice
Resumo 1
Siglas e abreviaturas 3
Introdução 6
CAPÍTULO I – O contrato de internamento em lares de idosos 8
1. Nota prévia acerca dos objetivos e dos requisitos legalmente estabelecidos para a organização, funcionamento e instalação de um lar 8
2. Análise do contrato que é habitualmente celebrado para o internamento em lar de idosos 14
2.1. Sujeitos contraentes 14
2.1.1. Capacidade das partes 15
2.1.2. Legitimidade 20
2.2. Conteúdo do contrato 20
3. Natureza e regime do contrato de internamento em lares de idosos 25
3.1. Aspetos gerais 25
3.1.1. Contrato de prestação de serviços 26
3.1.2. Contrato de mandato 27
3.1.3. O chamado "contrato de hospedagem" 30
3.1.4. Contrato de depósito 31
3.2. Reflexão sobre os tipos contratuais considerados e sua relação com o contrato de internamento em lares de idosos 33
4. Forma do contrato 43
CAPÍTULO II - Do incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato 44
1. Aspetos gerais 44
2. Hipóteses de incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato 46
Capítulo III - Necessidade de um estatuto legal próprio 55
Conclusão 57
Bibliografia 61
Jurisprudência 63
Revistas 64
Legislação 64
Introdução1
Numa sociedade cada vez mais constituída por pessoas idosas, emergem novas questões ligadas ao envelhecimento da população que constituem um novo desafio ao Direito.2
O envelhecimento populacional é, há muito, um tema de preocupação mundial, onde se inclui Portugal que, à semelhança de outros países da Europa do Sul, acelerou o processo de envelhecimento, como resultado da baixa fecundidade e do aumento da longevidade, decorrente da evolução da ciência médica e da progressiva melhoria generalizada das condições de vida. Com esse fenómeno arrasta-se um espectro de dificuldades relacionadas, por um lado, com o encargo dos idosos e, por outro lado, com os direitos fundamentais dos mesmos. 3 4
Ao tornar-se um problema social, este tema passou a mobilizar gente, meios, esforços e atenções, acabando por legitimar um campo de produção e gestão de bens especificamente orientados para este grupo de pessoas. Nunca afastando a ideia do envelhecimento ativo e saudável como fator da possibilidade de a pessoa idosa ou com limitações permanecer autónoma e capaz de se bastar a si própria, no seu meio natural de vida, ainda que com recurso a pequenas ajudas, a realidade foi mostrando um número cada vez mais considerável de pessoas em condições de acentuada dependência, que não
1 No presente trabalho o texto segue a novo Acordo Ortográfico.
2 Todavia, não se falará aqui apenas de pessoas com idades avançadas ou com idade superior à idade de 66 anos e 3 meses (atualmente a idade normal de acesso à pensão de velhice a partir de 03.01.2017, ex vi da Portaria nº 67/2016, de 01.04), que se encontrem ou não em situação de incapacidade, mas também de pessoas, até mais novas, cada vez em maior número, em situação de incapacidade, em resultado de limitações congénitas ou adquiridas e independentemente da sua causa; sendo as incapacidades derivadas de situações de demência as que mais se verificam.
3 A par destes problemas, surge a discriminação social baseada unicamente na idade em áreas como o trabalho, o acesso à habitação e a planos de saúde, entre outras. Estas são as realidades em crescendo na nossa sociedade, decorrentes, num primeiro plano, da condição do idoso na sociedade atual, marcada por uma desvalorização do seu papel na família e na sociedade; e, por outro lado, da escassez de legislação neste domínio que tem vindo a agravar este cenário.
4 A nível internacional, a ONU estabeleceu os “Princípios das Nações Unidas para as Pessoas Idosas” através da Resolução nº 46/91, de 16.12.1991. Na EU veja-se: a Diretiva Comunitária 2000/78/CE, de 27.11, que estabelece um quadro geral da igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional; a Decisão do Conselho de 27.11 (2000/750/CE), que estabelece um programa de luta contra a discriminação; a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, (Cimeira de Nice, 7-11/12/2000); a Recomendação nº R (99) 4 do Conselho da Europa relativa aos “princípios respeitantes à proteção jurídica dos maiores incapazes”; o Plano do Conselho da Europa, destacando a Recomendação CM/Rec (2014) 2 do CMEM. Em Portugal veja- se a RCM nº 63/2015, publicada no DR, Série I, nº 165, de 25.08.2015, que aprovou a Estratégia de Proteção do Idoso, na sequência da aprovação, por unanimidade, a 12.06.2015, pela AR, da recomendação ao Governo da criação do Estatuto do Idoso.
encontram resposta capaz nesse meio, por inexistência ou insuficiência de meios económicos e apoios, nomeadamente familiares. Os encargos com os idosos ou pessoas com limitações de ordem física ou psíquica, que anteriormente eram da responsabilidade da família ou de particulares, passaram, então, a ser uma preocupação de outras instâncias de gestão de problemas sociais e nesse âmbito foram criadas várias respostas.
Em função da vontade, das necessidades e/ou grau de autonomia da pessoa idosa ou da pessoa com problemas de saúde física ou psíquica que não lhe permite ser autossuficiente, existem hoje vários tipos de resposta como seja: o apoio domiciliário, centros de convívio, centros de dia, centros de noite, centros de férias e lazer, acolhimento familiar para pessoas idosas, residências e lar de idosos.
É nos vulgarmente designados lares de idosos, enquanto alojamentos coletivos, temporários ou permanentes, para pessoas de idade avançada ou de idade menos avançada mas com problemas de saúde que não lhes permite ser autossuficientes, e portanto em situação de risco de perda, ou já em situação de efetiva perda, da sua independência ou autonomia, que se foca o nosso estudo.
A abertura e funcionamento de lares de internamento estão sujeitos a tutela pública, mas são frequentes as denúncias de incumprimento dos requisitos legalmente estabelecidos; como também são frequentes os problemas que vão para além disso e que estão relacionados com o próprio contrato firmado entre as entidades que exercem tal atividade e o internando (que doravante chamaremos de utente) e/ou os seus familiares e/ou representante legal.
Aqui pretendemos traçar um panorama das questões que, como lhe chamamos, o contrato de internamento em lar de idosos pode suscitar, dada a inexistência de regulamentação legal específica deste tipo negocial. Assim é que iremos abordar quem pode ser parte no contrato, o seu conteúdo, as obrigações daí advenientes para os contraentes, para, seguidamente, com a ajuda de tais considerandos, discutir a natureza e regime aplicável a este tipo de vínculo contratual. Aventar-se-á, ainda, hipóteses de incumprimento contratual ou cumprimento defeituoso.
Em sede de conclusão, pronunciar-nos-emos acerca da qualificação jurídica do contrato e procuraremos demonstrar que se impõe uma regulamentação urgente, justa e equilibrada do contrato de internamento em lares de idosos, em que os interesses do utente
– pessoa fragilizada em razão da idade ou de doença - possam ser devidamente atendidos e
os seus direitos fundamentais assegurados. Afinal, contribuiremos com sugestões de possíveis soluções legais.
CAPÍTULO I – O contrato de internamento em lares de idosos
1. Nota prévia acerca dos objetivos e dos requisitos legalmente estabelecidos para a organização, funcionamento e instalação de um lar
Os lares de idosos podem ser instituições particulares de solidariedade social (designadas de IPSS) ou equiparada, instituições públicas geridas pela Segurança Social (SS), ou instituições privadas com fins lucrativos.
No âmbito do Programa de Emergência Social (PES) traçado pelo XIX Governo Constitucional, assumido como o lançamento de um modelo de inovação social, foi aprovada a Portaria nº 67/2012, de 21.03, publicada no DR, I-Série, n.º 58, de 21.03.2012,5
6 com vista a “uniformizar a legislação existente, integrando as respostas residenciais para pessoas idosas sob uma designação comum, e proceder ao ajustamento desta resposta social às exigências de uma gestão eficaz e eficiente dos recursos e a uma gestão da qualidade e segurança das estruturas físicas, prevendo diversas modalidades de alojamento, designadamente, o alojamento em tipologias habitacionais e ou em quartos”.7 Nos termos da mencionada Portaria, que, como vimos, tem por objeto a definição
das condições de organização, funcionamento e instalação a que devem obedecer as estruturas residenciais para pessoas idosas, enquanto estabelecimentos para alojamento coletivo, de utilização temporária ou permanente, em que sejam desenvolvidas atividades de apoio social e prestados cuidados de enfermagem (art. 1º, nºs 1 e 2), o seu âmbito de
5 Este diploma legal surgiu da necessidade de regulação normativa ajustada à crescente preocupação com a possibilidade de utilização máxima das capacidades instaladas em condições de qualidade e segurança, respostas que não eram suficientemente dadas pelo Desp. Norm. n.º 12/98, de 25.02, que definiu as normas reguladoras das condições de instalação e funcionamento dos lares para idosos, mas que sempre suscitou algumas questões, o que levava a que entidades promotoras desta resposta social continuassem a aplicar o Guião Técnico para o Lar de Idosos, aprovado por Desp. do Secretário de Estado da Inserção Social em 1996. Nem mesmo o Desp. Norm. n.º 30/2006, de 31.03, que pretendeu facilitar a apreciação de projetos de construção e de pedidos de licenciamento de estruturas residenciais que, embora com os mesmos objetivos dos lares para idosos, diferem destes no modelo de estrutura física, gestão, funcionamento e capacidade, não se mostrou capaz do propósito que lhe estava subjacente, forçando a adoção de soluções que não serviam, por sistema, como resposta aos pedidos das entidades promotoras.
6 Os Desps. Norms. nºs 12/98 e 30/2006, acima citados e o Desp. Norm. n.º 3/2011, de 16.02, que regia acerca da percentagem de quartos individuais dos lares para idosos e das estruturas residenciais para pessoas idosas, foram revogados pela Portaria nº 67/2012 (art. 21º), que, por sua vez, entrou em vigor a 13.03.2012 (art. 22º).
7 Preâmbulo da Portaria nº 67/2012.
aplicação visa as estruturas residenciais a implementar em edifícios a construir de raiz ou em edifícios já existentes a adaptar para o efeito; com processos, em curso, de licenciamento da construção ou da atividade ou de acordo de cooperação a celebrar com o ISS, I.P., à data da entrada em vigor da portaria; com licença de funcionamento ou autorização provisória de funcionamento ou, quando aplicável, acordo de cooperação celebrado com o ISS, I.P., (art. 2º, nº 1, als. a), b) e c)).
A dita “estrutura residencial”, que daqui em diante chamaremos de lar, pode assumir uma das seguintes modalidades de alojamento: tipologias habitacionais, designadamente apartamentos e ou moradias; quartos; tipologias habitacionais em conjunto com o alojamento em quartos – art. 7º.
Constituem objetivos do lar, designadamente, os seguintes: a) proporcionar serviços permanentes e adequados à problemática biopsicossocial das pessoas idosas; b) contribuir para a estimulação de um processo de envelhecimento ativo; c) criar condições que permitam preservar e incentivar a relação intrafamiliar; d) potenciar a integração social
– art. 3º. Objetivos enformados pelos seguintes princípios de atuação: a) qualidade, eficiência, humanização e respeito pela individualidade; b) interdisciplinaridade; c) avaliação integral das necessidades do residente; d) promoção e manutenção da funcionalidade e da autonomia; e) participação e corresponsabilização do residente ou representante legal ou familiares, na elaboração do plano individual de cuidados – art. 4º.
Os destinatários destes lares são pessoas com 65 ou mais anos que, por razões familiares, dependência, isolamento, solidão ou insegurança, não podem permanecer na sua residência. Os lares podem, também, destinar-se a pessoas adultas de idade inferior a
65 anos, em situações de exceção devidamente justificadas; e destinam-se, ainda, a proporcionar alojamento em situações pontuais, decorrentes da ausência, impedimento ou necessidade de descanso do cuidador – art. 5º, nºs 1, 2 e 3.
Aos lares de idosos geridos por privados é ainda aplicável o DL nº 33/2014, de 03.03, que alterou o regime de licenciamento e fiscalização da prestação de serviços e dos estabelecimentos de apoio social, regulado pelo DL nº 64/2007, de 14.038. Aquele diploma
8 O DL 64/2007, que aprovou o regime de instalação, funcionamento e fiscalização dos estabelecimentos de apoio social geridos por entidades privadas, já havia sido alterado e republicado pelo DL n.º 99/2011, de 28.09, cujo regime sancionatório aplicável às entidades que desenvolviam atividades e serviços de apoio social, estava previsto no capítulo IV do DL n.º 133-A/97, de 30.05, aplicável nos termos do n.º 1 do artigo 45º do DL nº 64/2007. Por se mostrar desajustado este regime da realidade atual, designadamente no que concerne aos limites mínimos e máximos das coimas aplicáveis, que se mantinham inalterados desde 1997, foi aprovado o cit. DL nº 33/2014.
legal define o regime de licenciamento e de fiscalização da prestação de serviços e dos estabelecimentos de apoio social, em que sejam exercidas atividades e serviços do âmbito da segurança social relativos a, além do mais, pessoas idosas ou pessoas com deficiência, bem como os destinados à prevenção e reparação das situações de carência, de disfunção e de marginalização social, estabelecendo ainda o respetivo regime sancionatório (art. 1º). O seu âmbito de aplicação abrange os estabelecimentos prestadores de serviços de apoio social estabelecidos em território nacional das seguintes entidades: sociedades ou empresários em nome individual; instituições particulares de solidariedade social ou instituições legalmente equiparadas; entidades privadas que desenvolvam atividades de apoio social; aos prestadores de serviços de apoio social legalmente estabelecidos noutro EM da UE ou do Espaço Económico Europeu que desenvolvam as atividades previstas no artigo 4.º, no cumprimento do estabelecido no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 92/2010, de
26.07. Mas não se aplica aos organismos da Administração Pública, central, regional e local, e aos estabelecimentos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (art. 2º).
Consideram-se de apoio social os estabelecimentos em que sejam prestados serviços de apoio às pessoas e às famílias, independentemente de estes serem prestados em equipamentos ou a partir de estruturas prestadoras de serviços que prossigam os objetivos do sistema de ação social definidos na Lei n.º 4/2007, de 16.01, que aprova as bases gerais do sistema de Segurança Social (art. 3º).
O estabelecimento deste tipo, como vimos sujeito a tutela pública, por força do que emerge da Portaria 67/2012 e do DL nº 33/2014, este que rege acerca das condições técnicas de instalação e funcionamento dos estabelecimentos de apoio social, em que sejam exercidas atividades e serviços do âmbito da segurança social relativos a, além do mais, pessoas idosas ou pessoas com deficiência, bem como os destinados à prevenção e reparação das situações de carência, de disfunção e de marginalização social, mas aos quais são aplicáveis, por força do disposto no seu art. 5º, as normas daquela portaria e demais diplomas específicos e instrumentos regulamentares aprovados pelo membro do Governo responsável pela área da SS, deve obedecer aos seguintes requisitos:
- a capacidade não deve ser inferior a 4, nem exceder as 120 pessoas por lar; sendo que este pode organizar-se por unidades funcionais e, neste caso, a capacidade máxima de cada unidade ascende a 60; e quando a capacidade do lar for até 80, é dispensada a obrigatoriedade de existência de unidades funcionais (art. 6º);
- cada estabelecimento tem de ter um regulamento interno onde constem designadamente: condições, critérios e procedimentos de admissão; direitos e deveres da estrutura residencial e do residente ou representante legal ou familiares; horário das visitas; critérios de determinação das comparticipações familiares, quando aplicável. Um exemplar do regulamento interno é entregue ao residente, familiar ou representante legal no ato de celebração do contrato de prestação de serviços e qualquer alteração ao regulamento interno deve ser comunicada ao ISS, I. P. - art. 14º;
- os proprietários ou titulares dos estabelecimentos são obrigados a afixar, em local bem visível, documentos como: licença de funcionamento ou autorização provisória de funcionamento, quando aplicável; identificação da direção técnica; horários de funcionamento das atividades e serviços; mapa semanal das ementas, incluindo dietas; preçário e ou tabela da comparticipação familiar; publicitação dos apoios financeiros da segurança social, quando aplicável; referência à existência de livro de reclamações – art. 13º;
- devem ser celebrados por escrito contratos de alojamento e prestação de serviço com os utentes ou seus familiares ou representante legal, onde constem os principais direitos e obrigações de ambas as partes; do contrato deve ser entregue um exemplar ao utente ou seus familiares ou representante legal e outro exemplar deve ser arquivado no respetivo processo individual – art. 10º;
- cada estabelecimento deve possuir um livro de registo de admissão dos utentes, atualizado, onde constem: identificação do residente; data de admissão; identificação do médico assistente; identificação e contato do representante legal ou dos familiares; identificação da situação social; exemplar do contrato de prestação de serviços; processo de saúde, que possa ser consultado de forma autónoma; plano individual de cuidados (PIC), o qual deve conter as atividades a desenvolver, o registo dos serviços prestados e a identificação dos responsáveis pela elaboração, avaliação e revisão do PIC; registo de períodos de ausência, bem como de ocorrências de situações anómalas; cessação do contrato de prestação de serviços com indicação da data e motivo. O processo individual deve estar atualizado e é de acesso restrito nos termos da legislação aplicável – art. 9º;
- o lar deve assegurar: alimentação adequada às necessidades dos residentes, respeitando as prescrições médicas; cuidados de higiene pessoal; tratamento de roupa; higiene dos espaços; atividades de animação sociocultural, lúdico-recreativas e
ocupacionais que visem contribuir para um clima de relacionamento saudável entre os residentes e para a estimulação e manutenção das suas capacidades físicas e psíquicas; apoio no desempenho das atividades da vida diária; cuidados de enfermagem, bem como o acesso a cuidados de saúde; administração de fármacos, quando prescritos – art. 8º, nº 1;
- deve permitir: a convivência social, através do relacionamento entre os residentes e destes com os familiares e amigos, com os cuidadores e com a própria comunidade, de acordo com os seus interesses; a participação dos familiares ou representante legal, no apoio ao residente sempre que possível e desde que este apoio contribua para um maior bem-estar e equilíbrio psicoafetivo do residente – art.º 8º, nº 2; a assistência religiosa, sempre que o residente o solicite, ou, na incapacidade deste, a pedido dos seus familiares ou representante legal – art. 8º, nº 4;
- pode disponibilizar outro tipo de serviços, visando a melhoria da qualidade de vida do residente, nomeadamente, fisioterapia, hidroterapia, cuidados de imagem e transporte – art. 8º, nº 3;
- a direção técnica deverá ser assegurada por um elemento com formação técnica e académica adequada, de preferência na área das ciências sociais e humanas, saúde ou serviços sociais – art. 11º;
- admissão e gestão de pessoal: o pessoal técnico e auxiliar deve ter formação adequada, devendo-lhe ser proporcionado e facultado o acesso à frequência de ações de formação – art. 11º;
- para assegurar níveis adequados de qualidade no funcionamento do lar é necessário que o mesmo disponha de pessoal que assegure a prestação dos serviços 24 horas por dia; e para além do diretor técnico, deve dispor no mínimo de: 1 animador sociocultural ou educador social ou técnico de geriatria, a tempo parcial por cada 40 residentes; 1 enfermeiro, por cada 40 residentes; 1 ajudante de ação direta, por cada 8 residentes; 1 ajudante de ação direta por cada 20 residentes, com vista ao reforço no período noturno; 1 encarregado(a) de serviços domésticos em estabelecimentos com capacidade igual ou superior a 40 residentes; 1 cozinheiro por estabelecimento; 1 ajudante de cozinheiro por cada 20 residentes; 1 empregado auxiliar por cada 20 residentes. Sempre que a estrutura residencial acolha idosos em situação de grande dependência, os rácios de pessoal de enfermagem, ajudante de ação direta e auxiliar são os seguintes: 1 enfermeiro para cada 20 residentes; 1 ajudante de ação direta por cada 5 residentes; 1 empregado
auxiliar por cada 15 residentes. Estes números podem ser adaptados nos casos em que determinados serviços são objeto de contratualização exterior ou haja voluntários – art. 12º;
- o lar deve funcionar em edifício autónomo ou num conjunto edificado autónomo, que deverá obedecer a determinadas características logísticas; estar próximo de outras entidades de apoio social ou de saúde, de modo a que a sua assistência seja rápida e adequada; estar inserido na comunidade de modo a permitir a integração social das pessoas idosas; e o local de implantação do edifício deve ser servido por transportes públicos e deve ser de fácil acesso a viaturas – arts. 15º, 16º e 17º;
- o lar deve ser composto pelas seguintes áreas funcionais: receção; direção, serviços técnicos e administrativos; instalações para o pessoal; convívio e atividades; refeições; alojamento; cozinha e lavandaria; serviços de enfermagem; serviços de apoio. As áreas funcionais devem obedecer a um conjunto de requisitos específicos que constam do anexo I à portaria, que dela faz parte integrante – art. 18º.
Vistos os requisitos de instalação a que devem obedecer os lares onde sejam desenvolvidas as referidas atividades, importa salientar que compete aos serviços do Instituto da Segurança Social, I.P., sem prejuízo da ação inspetiva dos organismos competentes, desenvolver ações de fiscalização dos estabelecimentos e desencadear os procedimentos respeitantes às atuações ilegais detetadas, bem como promover e acompanhar a execução das medidas propostas (art. 32º). E pode solicitar a colaboração de peritos e entidades especializadas do Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, da autoridade de saúde e de outros serviços competentes, tendo designadamente em consideração as condições de salubridade e segurança, acondicionamento dos géneros alimentícios e condições higiossanitárias (art. 33º).
2. Análise do contrato que é habitualmente celebrado para o internamento em lar de idosos
O nosso estudo aborda os vulgarmente designados lares de idosos, que, como vimos, configuram alojamentos coletivos, temporários ou permanentes, para pessoas de idade avançada ou menos avançada mas com problemas de saúde física ou psíquica que não lhes permite ser autossuficientes, e portanto em situação de risco de perda, ou já em situação de efetiva perda, da sua independência ou autonomia.
Sob o jugo da tutela pública estão definidos legalmente objetivos e requisitos para abertura e funcionamento de lares do tipo que vimos falando, mas inexiste regulamentação específica acerca do vínculo contratual firmado entre as entidades que exercem tal atividade e o utente. É precisamente esse vazio legal, numa matéria que bule com direitos fundamentais de pessoas mais vulneráveis, que se nos afigura justificada a presente reflexão que, necessariamente, terá de iniciar pelos elementos que nos parecem essenciais: capacidade e legitimidade das partes, o conteúdo do negócio, com as consequentes obrigações que daí advêm para os contraentes.
2.1. Sujeitos contraentes
O contrato que visa acolher um idoso ou pessoa que se encontre nas situações a que supra se aludiu tem, necessariamente, como uma das partes contraentes o lar, isto é, o proprietário da instituição privada com fins lucrativos ou a pessoa/entidade que gere a instituição particular de solidariedade social (IPSS) ou equiparada ou a instituição pública com o mesmo fim (neste caso a SS) e que tem, portanto, como atividade a prestação de assistência àquele setor da sociedade.
Mas quanto à outra parte contraente, a conclusão já não é imediata. À primeira vista, afirmaríamos que o outro sujeito do contrato é o idoso; mas, na verdade, se atentarmos no que se assiste na prática, é comum verificar que este tipo de contrato é celebrado com um familiar do utente ou até com terceiro que se arroga de direitos de representação por conviver com aquele ou lhe dar apoio de algum modo, sem que o utente figure como parte. Esta constatação leva-nos a questionar o motivo pelo qual não são raros
os casos em que o utente não figura como parte no contrato, pois que o conceito de relação jurídica, como relação jurídica de reconhecimento e de respeito recíprocos, pressupõe que todas as pessoas humanas têm personalidade jurídica,9 têm capacidade jurídica,10 e têm um círculo de direitos de personalidade.11
Este é, portanto, um dos primeiros problemas que, a nosso ver, este contrato suscita, ou seja, saber quem é o outro contraente: o próprio utente ou outrem, designadamente, os familiares daquele ou o terceiro que lhe presta apoio ou com ele convive e/ou o representante legal, nos casos em que o haja, o que nos remete para o campo da capacidade jurídica.
2.1.1. Capacidade das partes
De harmonia com o preceituado no art. 1º, da DUDH, “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.”
A CRP consagra, no seu art. 13º, que “1 - Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2 - Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”
E no seu art. 18º, estabelece-se que “1- Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2 - A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. 3 - As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir
9 Aptidão para ser sujeito de relações jurídicas – Xxxx Xxxxx, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., Coimbra Ed. 1992, p. 192.
10 Art. 67º, do CC. Nas palavras de Xxxx Xxxxx, ob. cit. p. 192, “À personalidade jurídica é inerente a capacidade jurídica ou capacidade de gozo de direitos”. E como tal podemos considerar a pessoa como “um ente capaz de direitos e obrigações.”
11 Traduzido em “certo número de poderes jurídicos pertencentes a todas as pessoas, por força do seu nascimento” – Xxxx Xxxxx, ob. cit, p. 206. Arts. 66º (Começo da personalidade jurídica); 68º (termo da personalidade jurídica); e 70º e ss (direitos de personalidade e sua tutela), todos do CC.
carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.”
Em particular, no que aqui nos interessa, a nossa Lei Fundamental, no art. 72º, dita ainda que “1 - As pessoas idosas têm direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamento ou a marginalização social. 2 - A política de terceira idade engloba medidas de carácter económico, social e cultural tendentes a proporcionar às pessoas idosas oportunidades de realização pessoal, através de uma participação activa na vida da comunidade.”
As pessoas idosas são, portanto, cidadãs com plena capacidade para reger a sua pessoa e os seus bens de forma livre e autónoma. Como tal, em qualquer circunstância, deve ser respeitada a sua autonomia na gestão da sua vida e património, não permitindo que, seja quem for, o/a substitua sem que lhe sejam autorizados poderes legais.
A decisão de contratar a ida para um lar de idosos, é um ato pessoal, e deve ser, desde logo, uma opção livre do próprio idoso, expressa, no sentido de ser uma autorização por escrito e informada, com conhecimento completo dos seus direitos e deveres e da instituição, assim como as regras de funcionamento e dos termos do contrato. Deve, portanto, ser uma escolha e decisão do próprio e como tal, neste negócio jurídico pessoal,12 pois que nele prevalece a vontade real do contratante sobrepondo-se às expectativas decorrentes dos termos gerais do contrato, é o idoso o outro sujeito contraente, capacidade que lhe advém, desde logo, da regra geral ínsita no art. 67º, do CC.13 O idoso tem capacidade jurídica ou capacidade de gozo de direitos, e tem capacidade de exercício de direitos, adveniente da idoneidade que detém para atuar juridicamente, exercendo os seus direitos ou cumprindo os seus deveres, adquirindo direitos ou assumindo obrigações, por ato próprio e exclusivo ou mediante um representante voluntário ou procurador, escolhido, livremente, pelo idoso.
Como disse Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxx “envelhecimento não é sinónimo de incapacidade ou incompetência (…).”.14
12 Sobre o critério distintivo de negócios patrimoniais e negócios pessoais, vide Xxxx Xxxxx, ob. cit., pp. 400-401.
13 Que versa sobre a capacidade jurídica entendida como a capacidade de gozo de direitos.
14 “A Proteção do Incapaz Adulto no Direito Português”, FDUC, Centro de Direito da Família, Coimbra Ed. 2010, p. 11.
O mesmo vale, a nosso ver, para as pessoas com idade avançada ou não mas, neste caso, com limitação física ou psíquica, temporária ou parcial, portanto, em situação de incapacidade de facto, ou como refere Xxxxx Xxxxxx Vítor com “capacidade diminuída”.15
A opção de viver num lar não retira à pessoa a capacidade de exercício de direitos. O acolhimento num lar não pode desrespeitar essa capacidade e correspondente autonomia da pessoa, nem a fragilidade que motiva tal opção deve diminuir o internando. Só a ele compete tomar as decisões que lhe respeitam.
Aliás, a própria legislação que versa acerca das condições de organização, funcionamento e instalação a que devem obedecer as estruturas residenciais para pessoas idosas, estipula no seu art. 10º, que devem ser celebrados por escrito contratos de alojamento e prestação de serviço com os utentes, onde constem os principais direitos e obrigações de ambas as partes; e que do contrato deve ser entregue um exemplar ao utente.
Salvo os casos de interdição/tutela (art. 152º e ss do CC), com consequências diretas sobre a capacidade de gozo dos interditos e, nomeadamente, na subtração da capacidade de exercício ao interdito (também) nos atos de natureza pessoal,16 em que é o tutor (representante legal) que assumirá o papel de contraente, pois que fica investido em poderes gerais sobre o interdito (além dos poderes sobre o património do incapacitado), existem outras situações em que o idoso, em virtude da idade avançada ou de doença degenerativa, encontra-se diminuído na sua capacidade, mas não totalmente incapacitado, pelo que nestes casos deve também ser o internando/utente o contraente, ainda que coadjuvado por familiar da sua confiança.
Mesmo no caso de inabilitação/curatela, cuja incapacitação não é total, e como tal a falta de capacidade de exercício de direitos é determinada pelo juiz na sentença (arts. 954º, nº 2, do CPC e 153º, nº 1, e 154º, do CC), mas cujo âmbito é limitado a atos de
15 Daí que se venha discutindo um regime para “adultos com capacidade diminuída”, como Xxxxx Xxxxxx Vítor, in “A Administração Do Património Das Pessoas Com Capacidade Diminuída”, FDUC, Centro de Direito da Família, Coimbra Ed. 2008 e Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxx, “A Proteção do Incapaz Adulto no Direito Português”, ob. cit. E ainda a mesma autora, numa abordagem de todos estes problemas, críticas ao regime em vigor e propostas de soluções legais em “Pessoas com Capacidade Diminuída: promoção e/ou protecção”, Atas do Congresso sobre o Direito da Infância, da Juventude e do Envelhecimento, realizado na FDUC, em 2 e 3 de abril de 2004, Coimbra Ed. 2005, pp. 175 a 201.
16 Xxxxx Xxxxxx Vítor, “A Administração Do Património…”, ob. cit., pp. 37-41, e “Pessoas com Capacidade Diminuída: promoção e/ou proteção”, Atas do Congresso, já cit., p.177, considera que até esta medida “funciona num «desequilíbrio de tudo-ou-nada», subtraindo a capacidade de exercício ao interdito, ao arrepio das novas conceções em sede psiquiátrica.”
disposição inter vivos, portanto respeitante à incapacidade de reger o património,17 defendemos que parte no contrato de internamento em lar deve ser o próprio utente, ainda que assistido pelo curador nomeado, e também ele parte no contrato ao lado do inabilitado. Porém, na prática, são incontáveis as situações em que a autonomia e plena capacidade das pessoas mais idosas ou em situação de incapacidade física ou psíquica mas temporária ou parcial não são respeitadas, daí a preocupação, de há muito, da ONU, que levou ao estabelecimento de Princípios das Nações Unidas para as Pessoas Idosas,18 que assentam na auto realização, independência, assistência, participação, viver com dignidade
e segurança e ser tratado com justiça.
Em Portugal, enquanto ainda se discute a criação do Estatuto do Idoso, com o intuito de reforçar direitos, impedir abusos e preservar a autonomia desta classe etária19, através da RCM nº 63/2015,20 foi aprovada a Estratégia de Proteção do Idoso, estabelecendo medidas com vista a reforçar, de um modo geral, os direitos das pessoas idosas, onde também se incluem as pessoas com deficiência, com vista à prossecução de vários objetivos de cariz protecionista, quer em matéria civil, quer em matéria penal, direito sucessório, reconhecimento de outros direitos, autonomia e dignidade, para reforçar direitos.21
Assim é que na dita Resolução, no aqui nos interessa, dá-se particular destaque à revisão do regime de suprimento das incapacidades, contido no Código Civil. No seu preâmbulo escreveu-se que “A idade avançada tem especificidades, designadamente no plano dos cuidados de saúde, do apoio social e do enquadramento familiar, bem como da tutela jurídica, que devem ser devidamente regulados, em ordem a garantir em todas as fases da vida o respeito pela dignidade da pessoa humana. Na verdade, os cidadãos idosos
17 Pese embora as opiniões controvertidas de Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxx, Xxxx Xxxxx e Xxxxx Xxxx xx Xxxxxxxxxxx, citados por Xxxxx Xxxxxx Xxxxx, in “A Administração Do Património …”, cit., pp. 41-42 e “Pessoas com Capacidade Diminuída: Promoção e/ou Proteção”, Atas do Congresso, cit., pp. 180 e ss; e não olvidando, ainda, que a incapacidade atinge também assuntos pessoais, quando a inabilitação tem como fundamento a anomalia psíquica.
18 Já cit. (not. 4).
19 Para o que a AR aprovou, por unanimidade, a 12.06.2015, a recomendação ao Governo da criação de tal estatuto.
20 Já cit. (not. 4).
21 Esta Resolução 63/2015, alude aos Princípios da ONU e fala também, no art. 25º, da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, onde se afirma que “A União reconhece e respeita o direito das pessoas idosas a uma existência condigna e independente e à sua participação na vida social e cultural”. Na mesma Resolução alude-se ao Plano do Conselho da Europa, destacando a Recomendação CM/Rec (2014) 2 do Comité dos Ministros dos Estados Membros sobre a promoção dos direitos humanos das pessoas idosas, onde se consagram algumas linhas de ação respeitantes às pessoas idosas.
estão amiúde expostos a práticas que atentam contra os seus direitos mais elementares, cuja defesa importa assegurar. Um dos aspetos que deve em particular ser objeto de atenção cuidada é aquele que respeita à saúde física e mental dos idosos, plano onde se revela essencial assegurar a manutenção do seu modo e qualidade de vida, especialmente a preservação da sua autonomia.”22
Todavia as metas ali traçadas, consubstanciam medidas a submeter ainda a debate público, e que, até hoje, não foram ainda aprovadas e regulamentadas.
Para além das tradicionais soluções legais traçadas pelo direito civil – interdição e inabilitação – não existem, hoje, outros mecanismos legais que, a nosso ver, protejam o idoso ou pessoa com capacidade diminuída, portanto em situação de incapacidade de facto, e promovam a sua autonomia, mormente na celebração de um contrato deste tipo que encerra em si um ato de natureza pessoal, que demanda que se respeite a vontade e a autonomia da pessoa a internar.23
Portanto se a incapacidade de que sofre o internando não é de molde a justificar uma interdição ou inabilitação, não existem na lei outros mecanismos que, em atos de natureza pessoal como este que nos ocupa, resolvam o problema. Nestes casos é comum que seja um familiar a atuar em nome do idoso, portanto sem autorização para tal, assumindo a direção dos interesses do internando.24
22Sob esta perspetiva foi assumida, “como missão prioritária, a revisão do Código Civil, no que tange ao regime das incapacidades e seu suprimento, em alinhamento com as tendências internacionais. Foi salientada a definição de incapacidades civis na limitação ou alteração das funções mentais e físicas de uma pessoa, da qual resulte a impossibilidade desta de, por forma esclarecida e autónoma, tomar decisões sobre a sua pessoa e bens, ou de adequadamente as exprimir ou lhes dar execução. Foi ressaltada a evidência que estas limitações de caráter físico não implicam necessariamente que uma pessoa não se encontre em condições de conduzir a sua própria vida, atenta inclusivamente a profunda evolução tecnológica, que tem permitido aumentar substancialmente a autonomia e qualidade de vida de quem apresenta tais limitações. Não obstante, verificando-se limitações de natureza física que impeçam uma pessoa de exercitar autonomamente os seus direitos, justificando-se que seja então ponderada a aplicação de medidas de proteção. Por outro lado, aludiu-se à circunstância de que uma pessoa padecer de uma enfermidade que limita as suas faculdades mentais e físicas não significa nem deve determinar que esta fique, por esse motivo, legalmente impossibilitada de exercer todos os direitos de que é titular, antes devendo a extensão da incapacidade ser fixada casuisticamente, em função das circunstâncias concretas. Deste modo, numa visão global e integrada da pessoa com capacidade diminuída como sujeito de direitos redesenha-se o instituto das incapacidades, devendo prever-se como nova figura de caráter geral as medidas de proteção de maiores em situação de incapacidade.”
23 Questões debatidas por Xxxxx Xxxxx e por Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxx nas obras citadas, que a seu ver demandam outras soluções que não a interdição ou a inabilitação. Vejam-se as Atas do Congresso sobre o Direito da Infância, da Juventude e do Envelhecimento, ob. cit. realizado na FDUC, pp. 165 e ss.
24 Xxxxx Xxxxx, em “A Administração do Património…”, ob. cit., aponta a “gestão de negócios” (art. 464º, do CC), como a solução de legitimação da intervenção de quem, sem autorização, pratica atos de administração do património da pessoa com capacidade diminuída, mas claro está no âmbito de atos patrimoniais, não pessoais, pp. 87 -106. E ainda a intervenção do Ministério Público, no âmbito da incumbência que lhe cabe de representação de incapazes (DL 272/2001, de 13.10), que segundo a autora
2.1.2. Legitimidade
A legitimidade supõe uma relação entre o sujeito e o conteúdo do ato e, por isso, é antes uma posição, um modo de ser para com os outros.
Têm legitimidade para um certo negócio os sujeitos dos interesses cuja modelação é visada pelo negócio e haverá carência de legitimidade sempre que se pretenda fazer derivar dum negócio efeitos que vinculem outras pessoas que não os intervenientes no negócio.
Na celebração de um contrato de internamento em lar, é parte legítima, por um lado, o proprietário da instituição privada com fins lucrativos ou a pessoa/entidade que gere a instituição particular de solidariedade social (IPSS) ou equiparada ou a instituição pública com o mesmo fim (SS); e, por outro lado, o utente do lar. É este que detém legitimidade para firmar o negócio, quem detém o poder de desencadear efeitos de direito na sua esfera jurídica, salvo, nos casos de representação legal ou voluntária, como vimos, em que a legitimidade pertence ao representante, porque investido de poder para desencadear efeitos na esfera jurídica do representando, no caso o utente do lar.
2.2. Conteúdo do contrato
Normalmente, no contrato de internamento de idosos em lar, a pessoa singular ou coletiva ou sociedade ou outra entidade com esse fim, obriga-se a prestar à pessoa internada, diversos serviços, como o fornecimento de um espaço para habitar/dormir, alimentação, higiene, assistência médica, serviços de enfermagem, que consubstanciam as obrigações decorrentes das condições gerais de funcionamento do lar e dos objetivos definidos fixados na Portaria nº 67/2012 e no DL 33/2014 citados, e eventualmente outro tipo de serviço ou objetivo contratado pelas partes na celebração do negócio. Por parte do utente há a obrigação de pagar a retribuição estipulada pelas partes, a título de custo pelo
abrange os incapazes de facto; mas uma vez mais no que respeita ao suprimento do consentimento de incapazes para a prática de atos de administração do património e nos casos taxativamente previstos na lei, onde não se insere a situação que aqui nos ocupa, pp. 107-113.
internamento e inerente prestação dos serviços que já enumerámos e eventualmente outros firmados pelas partes.25
Podemos assim afirmar que a prestação principal emergente de um contrato destes é, por parte do utente, o pagamento da retribuição fixada. Por parte do lar não há uma só prestação principal, mas várias, que compõem um conjunto de obrigações essenciais traduzidas no acolhimento do utente no lar, usufruindo dos espaços que compõem o lar e com um espaço próprio (quarto), e na execução de diversos serviços, atinentes a cuidados básicos que são prestados todos os dias da semana, durante 24 horas por dia, além de outros previstos na própria legislação em vigor e eventualmente outros convencionados pelas partes. Como vimos, o art. 8º da Portaria analisada impõe que o lar deve assegurar: alimentação adequada às necessidades dos residentes, respeitando as prescrições médicas; cuidados de higiene pessoal; tratamento de roupa; higiene dos espaços; atividades de animação sociocultural, lúdico-recreativas e ocupacionais que visem contribuir para um clima de relacionamento saudável entre os residentes e para a estimulação e manutenção das suas capacidades físicas e psíquicas; apoio no desempenho das atividades da vida diária; cuidados de enfermagem, bem como o acesso a cuidados de saúde; administração de fármacos, quando prescritos; deve, igualmente, permitir a convivência social, através do relacionamento entre os residentes e destes com os familiares e amigos, com os cuidadores e com a própria comunidade, de acordo com os seus interesses; a participação dos familiares ou representante legal, no apoio ao residente sempre que possível e desde que este apoio contribua para um maior bem-estar e equilíbrio psíquico e afetivo do residente; deve ainda permitir a assistência religiosa, sempre que o residente o solicite, ou, na incapacidade deste, a pedido dos seus familiares ou representante legal; e pode, ainda, disponibilizar outro tipo de serviços, visando a melhoria da qualidade de vida do residente, nomeadamente, fisioterapia, hidroterapia, cuidados de imagem e transporte.
Mas estas obrigações não ficam por aqui. Atentando nas inúmeras condições legalmente impostas em que aqueles serviços devem ser concretizados e, nomeadamente, nos objectivos ali traçados: proporcionar serviços permanentes e adequados à problemática
25 Atente-se, no entanto, que nos lares geridos pelo ISS o utente tem apoio social. Quanto às IPSS, que são instituições sem fins lucrativos podem ter, ou não, comparticipação da Segurança Social; o valor da mensalidade nunca pode ser superior ao Custo Real de Utente que consta nos estatutos e/ou regulamento interno da instituição, assim como os serviços incluídos na mensalidade. No caso das Misericórdias – instituição que pode acumular o estatuto de IPSS, deve consultar-se os estatutos e/ou regulamento interno da instituição onde deve constar, igualmente, os serviços incluídos na mensalidade.
biopsicossocial das pessoas idosas, contribuir para a estimulação de um processo de envelhecimento ativo, criar condições que permitam preservar e incentivar a relação intrafamiliar, potenciar a integração social (art. 3º da Portaria); objetivos estes enformados por princípios de atuação: qualidade, eficiência, humanização e respeito pela individualidade; interdisciplinaridade; avaliação integral das necessidades do residente; promoção e manutenção da funcionalidade e da autonomia; participação e corresponsabilização do residente ou representante legal ou familiares, na elaboração do plano individual de cuidados (art. 4º); a par das apontadas obrigações principais, podemos enunciar outras secundárias e/ou acessórias.
Xxxxxxx Xxxxxx distingue os “deveres principais, primários ou típicos dos deveres secundários (ou acidentais) de prestação e dentro desta categoria: os deveres acessórios da prestação principal (destinados a preparar o cumprimento ou a assegurar a perfeita execução da prestação), os deveres relativos às prestações substitutivas ou complementares da prestação principal (o dever de indemnizar os danos moratórios ou o prejuízo resultante do cumprimento defeituoso da obrigação) e os deveres compreendidos nas operações de liquidação (…)”; a par destes, alude aos “deveres acessórios de conduta, que não interessam directamente à prestação principal, nem dão origem a qualquer acção autónoma de cumprimento (cf. arts. 817º e segs.), mas são todavia essenciais ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra” . E prossegue dizendo que os “deveres acessórios de conduta estão hoje genericamente consagrados, na vastíssima área das obrigações, através do princípio geral proclamado no artigo 762.º, segundo o qual «no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé» e nas diversas disposições legais que completam o mesmo pensamento. São deveres mais frequentes no caso das relações obrigacionais duradouras (como o mandato, o depósito, a locação, o fornecimento continuado de coisas ou de serviços) do que nas obrigações de prestação instantânea. E avultam sobretudo nas relações obrigacionais que, como as provenientes do contrato de trabalho ou de sociedade por exemplo, comprometem especialmente a personalidade dos contraentes no correcto cumprimento seus deveres.”26
Por seu turno, o Prof. Xxxx Xxxxx refere que “além dos deveres principais de prestação e dos direitos correspectivos, que definem o tipo da relação contratual, existem
26 Direito das Obrigações em Geral, vol. I, 13ª reimp. da 10ª ed. de 2000, pp.121-127.
ou podem existir, também, deveres secundários de prestação”, cujas características se diversificam de modo a distinguir entre deveres secundários de prestação autónoma (trata- se de obrigações sucedâneas do dever primário de prestação) e os deveres secundários, acessórios da prestação principal, apelidados por Thiele de “deveres de prestação lateral ou auxiliar” (que não têm autonomia em relação a esta última). De acordo com a lição de Xxxx Xxxxx, estes deveres “caracterizam-se por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos dos danos concomitantes” e, citando Xxxxxx, “identificam-se com os deveres de adoptar o comportamento que se pode esperar entre contraentes honrados e leais”.27
Como ensina Xxxxxxx Xxxxx, “numa compreensão globalizante da situação jurídica creditícia, apontam-se, ao lado dos deveres de prestação – tanto deveres principais de prestação, como deveres secundários –, os deveres laterais (…), além de direitos potestativos, sujeições, ónus jurídicos, expectativas, etc. Todos os referidos elementos se coligam em atenção a uma identidade de fim e constituem o conteúdo de uma relação de carácter unitário e funcional: a relação complexa em sentido amplo ou, nos contratos, relação contratual.”28
Estes deveres laterais, ou acessórios, como prefere chamar-lhes Xxxxx Xxxx de Xxxxxxxxxxx (“o mais característico destes deveres não é a lateralidade em relação ao contrato, mas a acessoriedade em relação aos deveres principais dele emergentes”), não estão orientados para o interesse no cumprimento do dever principal da prestação, antes se caracterizam “por uma função auxiliar da realização positiva do fim do contratual e de protecção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes”.
Xxxxx Xxxx xx Xxxxxxxxxxx classifica estes deveres (acessórios) em deveres de proteção, de esclarecimento e de lealdade. Em relação aos primeiros, diz-nos que eles “vinculam as partes a evitar a ocorrência de danos, pessoais ou patrimoniais, para qualquer uma delas, no quadro da execução do contrato”, certo que “em caso de desrespeito dão lugar a responsabilidade civil por violação positiva do contrato”.29
Revertendo todos estes ensinamentos para o nosso estudo, podemos afirmar que o utente do lar tem também o dever de observar as regras decorrentes do regulamento interno do lar, de molde a não obstar ao exercício da atividade que cabe ao lar desempenhar.
27 Cessão da Posição Contratual, Almedina, 2003, p. 337 e nota 1, 339-340. 28 Direito das Obrigações, 9ª ed., revista e aumentada, Almedina, 2004, p. 63. 29 Contratos Atípicos, Almedina, 2009, 2ªed. pp. 404-408.
E quanto ao lar? A abertura, organização e funcionamento de um lar (privados, IPSS ou Misericórdias) impõe a observância de condicionalismos estabelecidos pela Portaria nº 67/2012 (e no caso dos lares privados também o que decorre do DL nº 33/2014). Mas além destes requisitos taxativamente fixados, constituem, ainda, objetivos do lar, designadamente, proporcionar serviços permanentes e adequados à problemática biopsicossocial das pessoas idosas, contribuir para a estimulação de um processo de envelhecimento ativo, criar condições que permitam preservar e incentivar a relação intrafamiliar e potenciar a integração social.
Ora, dependendo da concreta situação em que o utente se encontra a nível de saúde física ou psíquica ou daquilo que, para além do legalmente estipulado, foi convencionado pelas partes e, muito especialmente, na concretização daqueles enunciados objectivos, haverão de ser, necessariamente, observados deveres acessórios, deveres de cuidado ou, como diz Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxxx, deveres de protecção, de esclarecimento e de lealdade, traduzidos, por exemplo, no dever de vigilância permanente para que o utente, que sofre de demência ou que não esteja na posse das suas faculdades mentais ainda que a título temporário, não saía ou “fuja” do lar; o dever de não manter um utente no mesmo quarto que outro utente que revele comportamentos mais agressivos ou animosidade para com o primeiro, e que, por isso, lhe pode causar sofrimento físico ou psíquico ou até a morte; o dever de informar os familiares ou representantes do estado de saúde ou emocional do utente, como seja qualquer alteração que se verifique no seu comportamento, se deixou de comer, de conviver, a necessidade que o mesmo tem de outros tratamentos ou atividades ou até de sair do lar por lhe ser prejudicial aquele contexto; o dever de assegurar ao utente e seus bens condições de segurança no gozo dos espaços daquela unidade, com o que se visa a satisfação cabal do interesse do utente na prestação principal, uma vez que não tendo este o domínio do espaço onde está internado, tem o direito de exigir que o mesmo esteja dotado das condições de segurança que evitem a colocação em risco quer da sua integridade física, quer até do património que, eventualmente, o acompanha.
Com efeito, parece-nos existirem deveres de cuidado e de proteção independentemente dos deveres primários de prestação, impostos pela boa-fé, e que o lar deve observar, que se destinam a proteger a pessoa ou os seus bens, cuja violação originará incumprimento contratual ou o cumprimento defeituoso da prestação a que se obrigou. Neste tipo de relação jurídica devem ter-se por compreendidos no conteúdo da relação
contratual os deveres de cuidado necessários para evitar os danos pessoais ou patrimoniais suscetíveis de ser desencadeados ou pelas atividades que o lar está obrigado a executar ou legitimado para realizar ou pela simples permanência do utente naquele espaço.
3. Natureza e regime do contrato de internamento em lar de idosos
3.1. Aspetos gerais
Aqui chegados, questiona-se qual a natureza do contrato de internamento em lar de idosos e o regime a que o mesmo se haverá de submeter.
Este contrato surge frequentemente epigrafado de “contrato de alojamento e de prestação de serviços” ou apenas de “contrato de prestação de serviços”, sendo esta a terminologia mais frequente.
Na ausência de previsão legal específica atinente a este negócio e, bem assim, de doutrina que se haja debruçado concreta e profundamente acerca do mesmo, partiremos do que a (escassa) jurisprudência tem vindo a decidir neste campo, para a partir daí esboçarmos as questões que, a nosso ver, importa ter em atenção.
No Ac. da RL de 16.01.2007,30 escreveu-se o seguinte: “A apelante e a apelada celebraram entre elas um contrato nos termos do qual esta, que se dedica a prestar assistência a pessoas de terceira idade, prestaria assistência, na sua Mansão Geriátrica (vulgo, Lar) a Xxxxxxx (…), pai daquela, então com 88 anos de idade, contra o recebimento de uma quantia mensal (….) Esse contrato, nos seus próprios termos, configura-se como um contrato de prestação de serviços, nos termos em que vem definido no art.º 1154º, do C. Civil, o que se nos afigura pacífico.”
E mais adiante - e após esclarecer que “Não obstante convém, desde já acentuar que os “serviços” que a apelada se obrigou a prestar à apelada consistiam em prestar ao pai desta a assistência que esta, como filha, está legalmente obrigada a prestar-lhe, a saber, habitação, alimentação, cuidados de saúde e higiene, aliás, decorrente do denominado regime de internato referido sob o nº 5 da matéria de facto, sem prejuízo, de os deveres decorrentes da relação filial se manterem e não serem possíveis de delegação.
30 In xxx.xxxx.xx..
E tais serviços, não obstante na sua materialidade se dirigirem ao pai da apelante, contratualmente, são a esta prestados” - concluiu: “Tratando-se de um contrato de serviços atípico, nos termos do disposto no art. 1156º do C. Civil são-lhe aplicáveis as disposições sobre o mandato, entre elas, o disposto no art. 1181º, al. a), nos termos do qual o mandatário, além de outros deveres, é obrigado a praticar os actos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante.”
Pese embora o citado aresto nada mais haja expendido acerca da natureza jurídica do contrato, classificou o mesmo como um contrato de prestação de serviços atípico a que são aplicáveis as disposições sobre o mandato, parecendo ser este o entendimento maioritário da jurisprudência.31
Mas, analisando o conteúdo da maioria dos contratos de internamento em lares de idosos, e até a sua habitual denominação, perguntamo-nos se o mesmo não integrará também prestações de outros tipos contratuais, como seja o chamado “contrato de hospedagem” e também do contrato de depósito.
Façamos então uma breve incursão nos aspetos gerais daqueles invocados tipos negociais.
3.1.1. Contrato de prestação de serviço
Nos termos do art. 1154.º, do CC32, o contrato de prestação de serviços é “um contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.” Dito de outro modo, no contrato de prestação de serviços o trabalhador não se coloca numa situação de dependência ou subordinação. Aqui, o trabalhador só se obriga a proporcionar a outrem o resultado do seu trabalho, a ele pertencendo sempre a liberdade de organizar e tomar as estratégias que entender necessárias para a prossecução do mesmo.33
O contrato de prestação de serviços pode apresentar diferentes modalidades, desde logo as previstas no art. 1155º: mandato, depósito e empreitada.
31Também os Acs. da RL de 08.05.2003 e 27.01.2004, qualificaram o contrato de internamento de idoso em lar como contrato de prestação de serviços; ambos in xxx.xxxx.xx..
32 Nesta parte do estudo sempre que sejam citados artigos sem menção expressa ao diploma a que respeitam, faz-se consignar que fazem parte do Código Civil Português.
33A distinção com o contrato de trabalho (art. 1152º), faz-se pela inexistência de subordinação jurídica na prestação de serviços (onde existe autonomia), e pela possibilidade deste último ser gratuito.
Temos assim que o contrato de prestação de serviços “é um contrato atípico, que possui três modalidades típicas, as quais estão longe de esgotar o seu campo de aplicação.”34
Mas como emerge do art. 1156º, as disposições sobre o mandato são amplas e adaptáveis às formas do contrato de prestação de serviço que a lei não regularize especificamente, pelo que podem ser aditadas as cláusulas que as partes tiverem por convenientes aos seus interesses, desde que não contrariem normas imperativas.35
3.1.2. Contrato de mandato
A lei civil, no seu art. 1157º, estabelece que “Mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra.”
Trata-se, portanto, de um contrato típico e nominado, uma vez que a lei reconhece a sua categoria e estabelece o seu regime. Não está sujeito a qualquer forma solene, e como tal é um contrato consensual.36
O CC cindiu a procuração37 do mandato: a primeira promove a concessão de poderes de representação; o segundo dá lugar a uma prestação de serviço, tendo na sua base um negócio sinalagmático imperfeito e supletivamente gratuito38: no caso de ser gratuito, as prestações a que o mandante se encontre vinculado não equivalem às adstrições do mandatário, tendo por fundamento factos acidentais, distintos da obrigação de executar o mandato, apesar de gerar obrigações tanto para o mandante (art. 1167º, als. a) c) e d)) como para o mandatário (art. 1161º).
O mandato presume-se oneroso quando é exercido no âmbito da profissão do mandatário (arts. 1157º e 1158º, nº 1). Sendo o mandato oneroso, e como tal um contrato
34Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Contratos Em Especial, vol. III, 11ª ed., p. 423; e Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxxx, Contratos Atípicos, Almedina, 2ª ed., 2009, p. 169, a propósito deste contrato refere que não constitui um tipo contratual, mas sim uma classe de contratos; a remissão genérica para as regras do mandato significa a ausência de um modelo regulativo próprio e cita Menezes Cordeiro e Sinde Monteiro que admitem a existência de outros contratos atípicos de prestação de serviços, nota (322).
35Arts. 280º a 282º e 405º.
36Diferentemente do que sucede no mandato judicial (art.43º); e do mandato com representação associado à procuração (arts. 262º, nº 2, e 1178º e ss, e art. 116º, do CN); já o mandato sem representação (art. 1180º e ss) não é sujeito a forma especial.
37 Enquanto ato, a procuração é um negócio jurídico unilateral: reclama apenas um única declaração de vontade, não sendo necessária qualquer aceitação para que produza os seus efeitos – art. 262º e ss.
38 Menezes Leitão, ob. cit, pp.430-431.
sinalagmático na medida em que gera obrigações recíprocas para ambas as partes, ao mandatário assiste o direito à remuneração devida pela execução do mandato (arts. 1158º, nº 2, 1161º, al. a) e 1167º, al. b), 1ª parte).
O que é elemento essencial do contrato de mandato é que o mandatário esteja obrigado, por força do contrato, a praticar um ou mais atos jurídicos; implica, para o mandatário, uma prestação de facere: a prática de um ou mais atos jurídicos, por conta da outra. A natureza do seu objeto - prática de atos jurídicos - é, de resto, o que o mandato tem de específico em relação aos demais contratos de prestação de serviço. Significa isto que não é mandato, o contrato no qual a obrigação assumida tenha por conteúdo atos materiais ou intelectuais, mas antes uma prestação de serviços atípica, a coberto do já analisado art. 1154º, mas, frise-se, regida pelas normas do mandato (art. 1156º).
É igualmente elemento essencial do mandato que o mandatário atue por conta do mandante. Um negócio jurídico é praticado por conta de outrem, sempre que os seus efeitos ou parte deles se devam projetar ou repercutir na esfera jurídica de pessoa que nele não interveio. Por conta de outra, significa que os atos a praticar pelo mandatário se destinam à esfera do mandante e não do mandatário.39
São obrigações do mandante: fornecer os meios necessários à execução do mandato, se outra coisa não for convencionada (art. 1167º, al. a)), como a provisão para despesas; pagar a retribuição devida e fazer provisão por conta dela, consoante os usos (art. 1158º); reembolsar o mandatário das despesas feitas (art. 1167º, al. b)); indemnizar o mandatário do prejuízo sofrido em consequência do mandato (art. 1167º, al. d)).
Por outro lado, o mandatário tem a obrigação de executar o mandato com respeito pelas instruções recebidas, ou seja, praticar os atos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante - art. 1161º, al. a)40. Este dever, aliás obrigação principal do mandato, pode, no entanto, ser objeto de modificação no art. 1162º, que prevê que “o mandatário pode deixar de executar o mandato ou afastar-se das instruções recebidas,
39Art. 1161º; Menezes Leitão, in ob. cit, pp.428-429; e o mesmo autor em A responsabilidade do gestor perante o dono do negócio no Direito Civil Português, Lisboa, CEF, 1991, reed., Coimbra, Almedina, 2005, p. 199; Xxxxxx Xxxxx, O Mandato Sem Representação, Almedina pp. 192 e ss.
40 Disposição que tem paralelo no art. 465º, al. a), relativo à gestão de negócios e, como diz Xxxxxxx Xxxxxx, ob. cit., p. 441, que se compreende pelo fato de o mandatário praticar atos jurídicos alheios e, portanto, dever realizá-los em conformidade com a vontade do seu efetivo titular, ou seja, o mandante. Essa vontade é comunicada nas instruções, que o mandatário deve respeitar, não executando o mandato em desconformidade com a vontade do mandante. E acrescenta que considera que é característico do mandato o dever de o mandatário observar a vontade do mandante, independentemente da altura em que é comunicada, após citar Xxxxxxx Xxxxxxxx, Tratado, I, t. IV, p. 66, que defende que as instruções têm que resultar do contrato, sob pena de se estar perante um contrato de trabalho – nota (911).
quando seja razoável supor que o mandante aprovaria a sua conduta, se conhecesse certas circunstâncias que não foi possível comunicar-lhe em tempo útil”. A este propósito, Xxxxxxx Leitão alude, uma vez mais, ao dever de respeito pela vontade do mandante, que implica que, ocorrendo circunstâncias novas que tornem presumível a modificação das suas intenções, o mandatário deva tomar em consideração essa situação nova, deixando de executar o mandato ou afastando-se das instruções recebidas41. E quanto à diligência a observar na execução do mandato, não há qualquer regra especial, pelo que são aplicáveis os arts. 799º, nº 2 e 487º, nº 2, que impõem a “diligência do bom pai de família”, de acordo com as circunstâncias do caso, efetuando-se assim uma avaliação da culpa em abstrato.
São também obrigações do mandatário a obrigação de informar (art. 1161º, al. b)), executada a pedido do mandante com vista a mantê-lo ciente do estado da gestão; e de comunicar (art. 1161º, al. c)), obrigação a prestar espontaneamente, devendo o mandatário, com prontidão, informar o mandante da execução do mandato ou, se o não tiver executado, da razão porque assim procedeu (art. 1161º, al. c)). Ademais, deve o mandatário comunicar ao mandante quaisquer circunstâncias que possam obstar à execução do mandato ou levar o mandante a modificar as suas instruções – art. 1162º. Por seu turno, o art. 1163º, estipula que “comunicada a execução ou inexecução do mandato, o silêncio do mandante por tempo superior àquele em que teria de pronunciar-se, segundo os usos ou, na falta destes, de acordo com a natureza do assunto, vale como aprovação das condutas do mandatário, ainda que este haja excedido os limites do mandato ou desrespeitado as instruções do mandante, salvo acordo em contrário”. Como diz Xxxxxxx Leitão “temos aqui uma hipótese de relevância do silêncio como declaração negocial (art. 218º), ao qual é atribuído o significado de aprovação perante uma actuação do mandatário que extravase do âmbito do mandato ou desrespeite as instruções recebidas”, salientado, porém, “a permissão que, em atenção à vontade hipotética do mandatário, permite ao mandatário deixar de executar o mandato ou afastar-se das instruções recebidas. Neste caso, haverá, porém, uma extensão automática do mandato, pelo que não se estará perante uma hipótese de aplicação do art. 1163º.”42
41 Ob. cit. p. 441; vide, ainda, sobre esta disposição, e ali cit., Xxxxx xx Xxxxxxxxxxx, A Representação, pp. 919 e ss.
42 Neste sentido também Xxxxx xx Xxxxxxxxxxx, A Representação, pp. 924-925, nota (1449).
Ao mandatário é lícito, na execução do mandato, fazer-se substituir por outrem ou servir-se de auxiliares, nos mesmos termos que o procurador o pode fazer (art. 1165º). O exercício da faculdade de substituição só é admissível se o mandante o permitir ou se essa faculdade resultar do conteúdo do mandato ou da relação que o determina (art. 264º, nº 1, ex vi do art. 1165º), uma vez que o mandato é, em princípio, um contrato intuitu personae. Todavia, salvo indicação diversa do mandante ou do conteúdo do mandato, o mandante goza de inteira liberdade na escolha do substituto, sem prejuízo, obviamente, da sua responsabilidade por essa escolha, devendo notar-se que se a substituição foi autorizada, o mandatário só é responsável para com o mandante se agiu com culpa na escolha do substituto ou nas instruções que lhe deu – culpa in eligendo vel instruendo (art. 264º, nº 4, ex vi do art. 1165º), sendo que, em princípio, por força do disposto no art. 799º, nº 1, caberá ao mandatário o ónus de demonstrar que não incorreu em qualquer dessas situações.43
Já a utilização de auxiliares não implica que estes pratiquem os actos jurídicos de que o mandatário foi encarregado, limitando-se a dar-lhe colaboração nas suas tarefas, e daí que recaía sobre o mandatário uma responsabilidade objetiva por atos daqueles, por aplicação do disposto no art. 800º (também os arts. 264º, nº 4 e 1165º).
Dentre as obrigações do mandatário, temos, ainda, a obrigação de prestar contas (art. 1161º, al. d)) e a obrigação de entregar ao mandante tudo o que recebeu em execução ou no exercício do mandato (art. 1161º, al. e)).
3.1.3. O chamado “contrato de hospedagem”
A contratação de fornecimento de um quarto para dormir, associado à alimentação, limpeza do quarto, roupa lavada e eventualmente outro tipo de prestação de serviços, mediante certa retribuição, configura o que se pode chamar de contrato de hospedagem, que atualmente, não tem um regime específico no CC, mas que é totalmente admissível, face ao princípio da liberdade contratual estatuída no art. 405º do mesmo código.44 45
43 Menezes Leitão, in ob. cit. p. 447.
44 No âmbito do anterior CC de Seabra de 1867, era configurado como contrato de albergaria ou pousada, enquadrado no capítulo do contrato de prestação de serviços e definido no então art. 1419º como o contrato em que "alguém presta a outrem albergue e alimento, ou só albergue, mediante a retribuição ajustada ou costume", definição que subsistiu no art. 76º, nº 3, do RAU (revogado), ao considerar o hóspede como a
Mas para se configurar uma situação de hospedagem, o proprietário/explorador tem que residir na habitação para prestar os serviços associados à hospedagem, nomeadamente, cuidar das roupas, limpeza, refeições, entre outros; diferentemente do que sucede na locação,46 e em particular do que sucede no contrato de arrendamento,47 pois que neste âmbito apenas é proporcionado pelo dono do locado ao locatário o uso do locado, sempre a título temporário, sem que qualquer serviço seja prestado, apenas se limitando a pôr à disposição das pessoas com quem contrata o espaço, e, eventualmente, mobiliário e outros objetos, bem como o eventual fornecimento de água e luz, mediante a cobrança de uma mensalidade fixa.48
3.1.4. Contrato de depósito
No desenvolvimento das figuras negociais que vimos de estudar, afigura-se-nos que também podemos afirmar que o contrato de internamento em lares de idosos pode conter em si prestações do contrato de depósito.
Nos termos do art. 1185º “Xxxxxxxx é o contrato pelo qual uma das partes entrega à outra uma coisa, móvel ou imóvel, para que a guarde, e a restitua quando for exigida.”
O depósito constitui, portanto, um contrato nominado típico, regulado no citado art. 1185º e ss do CC. Considera-se um contrato não formal, por estar a coberto do princípio da liberdade de forma (art. 219º), mesmo no caso dos imóveis; e pode ser oneroso ou gratuito, presumindo-se a sua gratuitidade (art. 1186º).
pessoa a quem o arrendatário proporcionava habitação e prestava habitualmente serviços relacionados com esta, ou fornecia alimentos, mediante retribuição.
45 A defender que este contrato integra prestações do contrato de prestação de serviços, Dr. Xxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxx, in Revista “O Advogado”, nº 21, Maio de 2002; e, a título exemplificativo, os Acs. do STJ de 07.01.1992, in xxx.xxxx.xx; da RP de 09.05.1996 e de 20.06.2000, da RG de 04.12.2002. A defender que o contrato de hospedagem integra prestações dos contratos de locação e de prestação de serviços, vide o Ac. da RC de 21.03.2006; todos in xxxx.xx, internet; e a defender a estrutura mista do contrato formada por prestações do contrato de arrendamento, do contrato de aluguer e do contrato de prestação de serviços o Ac. da RL de 14.11.1991 CJ, ACTRL, tomo V, 1991, p. 130- 132.
46 Nos termos do art. 1022º, a locação “é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição”.
47 “A locação diz-se arrendamento quando versa sobre coisas imóveis, aluguer quando incide sobre coisa móvel” – art. 1023º.
48 À exceção da situação especial a que alude o art. 1093º, em que é permitido que no arrendamento para habitação habitem com o arrendatário, para além de todas as despesas que com ele vivam em economia comum, um máximo de três hóspedes, salvo cláusula em contrário, pelo que nestas situações não se considerará infringida a proibição do art. 1038º, al. f).
O depósito não está sujeito a regras específicas de formação do contrato, valendo aqui o regime geral previsto nos arts. 224º e ss, mas tratando-se de um contrato real quoad constitutionem, porquanto se exige a entrega da coisa pelo depositante ao depositário, ou seja, a traditio ou a acceptio da coisa a guardar, só assim se constitui o vínculo entre aqueles; no entanto, pode bastar uma tradição simbólica. Não está sujeito a qualquer forma especial, seja ad substantiam, seja ad probationem. E é de execução continuada, pois que a prestação principal e típica do depositário determina-se em função do seu tempo de duração, o que implica que o contrato possa ser sujeito a denúncia para o futuro (art. 1194º) e que a resolução por incumprimento não abranja as prestações já efectuadas (art. 434º, nº 2).
O objeto deste contrato é “a guarda (custódia) de uma coisa. É esta a obrigação dominante no negócio: o depositário recebe a coisa para a guardar”.49 Sendo certo que essa “obrigação de guarda pode surgir acessoriamente noutros contratos, como o mandato, (…), mas no depósito ela surge a título principal, constituindo o elemento essencial e distintivo deste contrato.”50
É certo que este tipo de negócio respeita a uma coisa móvel ou imóvel, não podendo ser objeto de depósito as coisas incorpóreas, como os créditos ou bens imateriais, e muito menos, claro está, a pessoa; mas se virmos as obrigações que decorrem deste tipo de acordo negocial no que à entidade que desempenha a atividade que importa neste estudo (o depositário), temos que tais obrigações referem como axial a de custodiar.
Assim, se por um lado, são obrigações do depositante pagar a retribuição devida, quando seja esse o caso (arts. 1199º, al. a) e 1200º), reembolsar as despesas feitas pelo depositário (art. 1199º, al. b)) e, eventualmente, indemnizar o depositário do prejuízo sofrido em consequência do depósito, salvo se o depositante houver procedido sem culpa (art. 1199º, al. c)); por outro lado, o depositário – além da obrigação de restituir a coisa com os seus frutos (art. 1187º, al. c)), que aqui não nos interessa – tem a obrigação de avisar imediatamente o depositante quando saiba que algum perigo ameaça a coisa ou que terceiro se arroga direitos em relação a ela, desde que o facto seja desconhecido do depositante (art. 1187º, al. b)) e tem, nomeadamente, a obrigação de guarda e de custódia da coisa depositada (art. 1187º, al. a)).
49 Pires de Lima e Xxxxxxx Xxxxxx, Código Civil Anotado, Vol. II, 4º ed., p. 832.
50 Menezes Leitão, ob. cit., p.471.
3.2. Reflexão sobre os tipos contratuais considerados e sua relação com o contrato de internamento em lares de idosos
No contrato de internamento de idosos em lar, a pessoa singular ou coletiva ou sociedade ou outra entidade com esse fim, obriga-se a prestar à pessoa internada, diversos serviços, como o fornecimento de um espaço para habitar/dormir, alimentação, higiene, assistência médica, entre outros serviços que podem ser contratados, mediante o pagamento de uma contraprestação por parte do internado e com vista à obtenção de um resultado que se traduz na concretização de todos as obrigações decorrentes das condições gerais de funcionamento do lar e dos objetivos fixados na citada Portaria nº 67/2012, e eventualmente outro tipo de serviço ou objetivo contratado pelas partes na celebração do negócio.
O mencionado Ac. da RL de 16.01.2007, concluiu que o contrato celebrado entre o lar privado de terceira idade e a filha do utente era um contrato de prestação de serviços, nos termos em que vem definido no art.º 1154º, submetido às regras do mandato. E o mesmo Ac. foi mais longe no que à obtenção de resultado diz respeito, porquanto conclui que o que estava em causa, além do assegurar de uma alimentação adequada, de bem-estar, higiene e tratamento de roupas, era “a manutenção da autonomia e independência” do internado, “a manutenção das suas capacidades físicas e psíquicas”.
Estando o lar obrigado a praticar aqueles atos a que está adstrito por força do regime que regula este tipo de atividade e do que se obrigou pelo contrato, segundo as instruções com quem contratou, afigura-se-nos defensável a qualificação jurídica que ali foi feita - um contrato de prestação de serviços atípico, a que são aplicáveis as regras do mandato. Com efeito, destacam-se as obrigações que recaem sobre o mandante de pagar a retribuição devida ao mandatário e de o reembolsar das despesas feitas e, em particular, as obrigações do mandatário no que concerne à obrigação de executar o mandato com respeito pelas instruções recebidas e à obrigação de informar e comunicar acerca da execução do mandato. São precisamente estas obrigações que se nos afiguram ser de considerar para efeitos de aplicação das regras relativas ao mandato ao contrato de prestação de serviços (art. 1156º) que caracteriza o contrato de internamento em lar de idosos.
Citando, novamente, o Ac. da RL, de 16.01.2007, que após qualificar o contrato de internamento de idoso como “contrato de prestação de serviços”, acrescentou que “Tratando-se de um contrato de prestação de serviços atípico, nos termos do disposto no art.º 1156º do C. Civil são-lhe aplicáveis as disposições sobre o mandato, entre elas, o disposto no art. 1181º, al. a), nos termos da qual o mandatário, além de outros deveres, é obrigado a praticar os actos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante. Os actos que a apelada se obrigou a praticar são referenciados no contrato verbal que celebrou de uma forma genérica, por: assistência médica permanente, em regime de internato e assistência parcial, como centro de dia e regime ambulatório, pessoas de terceira idade (…), cuidados permanentes, regime de internato (…), em regime de internato (…) sem que a repetição de tais termos nos elucide quanto à concreta configuração dos actos que a apelada se obrigou a praticar.”
As obrigações da pessoa singular ou coletiva ou sociedade ou outra entidade que desenvolve a atividade de lar na conceção que vimos de estudar, traduzidas na prestação de diversos serviços, mediante o pagamento de uma contraprestação por parte do internado, podem ser vistas à luz das obrigações fixadas no mandato, cujas normas que regem nesta matéria são aplicáveis ao contrato de prestação de serviços.
Mas, volvendo ao conjunto das prestações que compõem o objeto do contrato, também identificamos prestações dos contratos de hospedagem e de depósito que analisámos.
Na verdade, no internamento de idosos em lar, a entidade que o explora, obriga-se a ceder o gozo de um determinado espaço, durante um determinado período, temporário ou permanente, e a prestar um determinado número de serviços, contra o pagamento duma retribuição, tal como num contrato de hospedagem, mas diferentemente do que sucede na locação, e em particular do que sucede no contrato de arrendamento, pois que neste âmbito apenas é proporcionado pelo dono do locado ao locatário o uso do locado, sempre a título temporário, sem que qualquer serviço seja prestado, apenas se limitando a pôr à disposição das pessoas com quem contrata o espaço, e, eventualmente, mobiliário e outros objetos, bem como o eventual fornecimento de água e luz, mediante a cobrança de uma mensalidade fixa.
E no que ao contrato de depósito concerne, temos de ver, por um lado, as obrigações do depositante em pagar a retribuição devida, quando seja esse o caso (arts.
1199º, al. a) e 1200º), reembolsar as despesas feitas pelo depositário (art. 1199º, al. b)) e, eventualmente, indemnizar o depositário do prejuízo sofrido em consequência do depósito, salvo se o depositante houver procedido sem culpa (art. 1199º, al. c)); e, por outro lado, o depositário tem a obrigação de avisar imediatamente o depositante quando saiba que algum perigo ameaça a coisa ou que terceiro se arroga direitos em relação a ela, desde que o facto seja desconhecido do depositante (art. 1187º, al. b)) e tem, nomeadamente, a obrigação de guarda e de custódia da coisa depositada (art. 1187º, al. a)).
Ora, é nesta obrigação de custódia que está comportada a responsabilização pela prestação de serviços e demais diligências tendentes a evitar danos ou prejuízos. E é este o ponto essencial que pretendemos, portanto, destacar - a “custódia” - que segundo Pires de Lima e Xxxxxxx Xxxxxx constitui uma obrigação duradoura, pois que a sua exigibilidade abarca toda a vigência do contrato; sendo que, segundo os mesmos autores, a diligência exigida para esta obrigação reger-se-á pela diligência de um bom pai de família, segundo as circunstâncias do caso, nos termos do art. 487º, nº 2.51 E como refere Menezes Leitão “Entre essas circunstâncias do caso assumirá relevo especial o facto de se tratar de um depositário profissional, uma vez que nesse caso a diligência exigível será seguramente superior.”52
No seguimento do que vimos dizendo, ao lar incumbe uma obrigação de custódia relativamente aos seus internados; e nos casos em que exista representante legal do idoso ou da pessoa com capacidade diminuída, ou familiar deste ou outro que se apresente como responsável pelo internado (nos casos que acima aventámos de pessoa incapaz de facto ou com capacidade diminuída) que tenham celebrado o contrato, tal obrigação de custódia afigura-se-nos associada ao dever de avisar imediatamente o representante legal ou o sujeito contraente em representação ou por conta do utente quando saiba que algum perigo ameaça este ou que terceiro se arroga direitos em relação a ele (como por ex. direitos de representação).
A par deste prisma sob o contrato de depósito acerca do utente, temos, claro está, a possibilidade de o utente (ou seu representante) convencionar com o lar o depósito dos seus bens como dinheiro, valores ou objetos que o utente tenha em seu poder. É normal ver nos contratos de internamento uma cláusula que dispõe que a instituição ou o responsável
51 Pires de Lima e Xxxxxxx Xxxxxx, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª ed. revista e atualizada, Coimbra Ed. 1997, p. 838.
52 Ob. cit., p. 479.
pelo lar não se responsabiliza por dinheiros, valores ou objetos que o utente tenha em seu poder. Mas, não é raro, que as partes insiram uma cláusula contratual para depósito de bens do utente. Neste caso, cessando o contrato, todos os bens deverão ser restituídos ao utente; se o contrato cessar por morte do mesmo, os valores ficarão à guarda da instituição que se responsabilizará pela restituição aos herdeiros legalmente reconhecidos.
Em suma, ao lar incumbe uma obrigação de custódia relativamente aos seus internados; e nos casos em que exista representante legal do idoso ou da pessoa com capacidade diminuída ou familiar deste ou outro que se apresente como responsável pelo internado que tenham celebrado o contrato, tal obrigação de custódia afigura-se-nos associada ao dever de avisar imediatamente o representante legal ou o sujeito contraente em representação ou por conta do utente quando saiba que algum perigo ameaça este.53
Por outro lado, no contrato de internamento em lar, podem as partes contratantes inserir cláusula contratual mediante a qual seja convencionado contrato de depósito relativo aos dinheiros, valores ou outros objetos pertencentes ao utente e que os leve para o lar.
Como qualificar o contrato de internamento em lares de idosos, surgido fora dos modelos traçados e regulados na lei, mas que integra, como vimos, prestações de vários negócios, típicos e nominados e atípicos?54
A disposição legal que está na base da questão que ora se nos coloca é o art. 405º, que, sob a epígrafe “Princípio da liberdade contratual”, estabelece que:“ 1- Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver. 2 - As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei.”
53 Veja-se, aliás, o que acima deixámos acerca da teia de deveres secundários/acessórios a observar pelo lar, a fim de evitar a ocorrência de danos, pessoais ou patrimoniais, no quadro da execução do contrato.
54 Tradicionalmente diz-se que os contratos típicos seriam aqueles para os quais existe uma disciplina legal e os atípicos aqueles onde tal disciplina não existe. Os contratos típicos ou nominados abrangem as várias espécies contratuais que possuem nomen iuris e servem de base à fixação dos esquemas, modelos ou tipos de regulamentação específica da lei; estão previstos e regulados por norma jurídica, formando espécies legalmente definidas. Em contraposição, os contratos atípicos (ou inominados, mas esta designação não é a mais apropriada para os contratos atípicos pois que, muitas vezes, a espécie contratual possui nome e, portanto, é nominada, mas não se encontra regulamentada na lei), afastam-se dos modelos legais, não são disciplinados ou regulados por diploma legal, sendo, todavia, permitidos juridicamente, desde que não contrariem a lei, os bons costumes e os princípios gerais do direito, como por ex. o contrato de hospedagem que vimos.
O citado normativo permite a livre opção de escolha de qualquer tipo contratual, com submissão às suas regras imperativas (1ª parte do nº 1), a livre opção de celebrar contratos diferentes dos típicos, designados por contratos atípicos (2ª parte do nº 1), a possibilidade de introdução no tipo contratual de cláusulas defensivas dos interesses das partes, mas que não quebram a função sócio económica assumida pelo respetivo tipo (3ª parte do nº 1). E no nº 2, estão previstos os contratos mistos.
Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxxx lembra que “o juízo acerca da tipicidade ou atipicidade do contrato é importante para a determinação do seu regime jurídico”.55
Os contratos atípicos decorrem da necessidade das partes na atividade negocial já que impossível seria a regulamentação de todas as formas de relações jurídicas. Dentro dos contratos atípicos devem distinguir-se, então, os contratos atípicos puros, que são os contratos completamente diferentes dos tipos contratuais legais, e os contratos mistos, que resultam da combinação de formas contratuais típicas ou que “são construídos a partir de um ou mais tipos que são combinados ou modificados de modo a satisfazerem os interesses contratuais das partes”.56
Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxxx ensina que “a atipicidade dos contratos pode ser referida aos tipos contratuais legais ou simplesmente aos tipos contratuais sem restrição aos legais. A diferença é importante. No primeiro caso, são atípicos os contratos que não contêm na lei um modelo regulativo típico; no segundo, são atípicos aqueles que não têm um modelo regulativo típico, nem na lei, nem na prática. Quando se fala de contratos atípicos quase nunca se distingue e quase sempre se está, na verdade, a falar de contratos legalmente atípicos. No entanto, há muitos tipos contratuais que estão consagrados na prática e não na lei. Não são poucos os casos de contratos legalmente atípicos, que são socialmente típicos.”57
E por contrato socialmente típico entende o contrato que “tem de ter, na prática ou nos usos, um modelo de disciplina que seja também pelo menos tendencialmente completo. Este modelo regulativo, que é o tipo social propriamente dito, constitui a principal fonte e critério de integração da parte não estipulada dos contratos que lhe correspondam.”58
55 Ob. cit., p. 185.
56 Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxxx, Contratos Atípicos, ob. cit., p. 216-217. O mesmo autor dá exemplos de contratos atípicos puros: o leasing, o factoring, o franchising, entretanto já tipificados na lei.
57 Ob. cit., p. 211.
58 Ob. cit, p. 215.
O mesmo autor refere que na “prática quase todos os contratos atípicos são mistos. Os contratos mistos não são um “tertium genus” em relação aos contratos típicos e aos atípicos, nem uma categoria intermédia; os contratos mistos são atípicos, embora estejam mais próximos dos típicos do que os contratos atípicos puros. Quando são frequentemente celebrados, os contratos mistos acabam, por vezes, por tornar-se típicos na prática e por ser tipificados na lei.”59
Há quem defenda que o contrato surgido da junção de dois ou mais contratos típicos completos seria de considerar como contrato de duplo tipo, cuja natureza continuaria a ser a de um contrato típico. Mas outros defendem o contrário, porque as prestações desses dois elementos mesclam-se em um todo, sem possibilidade de separação, ou seja, todas as obrigações assumidas formam um único contrato, daí que se deve distinguir os contratos atípicos mistos dos contratos coligados. Em suma, o contrato misto resulta da combinação de elementos de diferentes contratos, formando uma nova espécie contratual não esquematizada na lei, caracterizando-os a unidade da causa (nos contratos coligados há combinação de contratos completos).60 61 62
59 Ob. cit, p. 217.
60 Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxxx, ob. cit., p. 218-229, com citação das opiniões de Xxx Xxxxx, Xxxxxxx Xxxxxx, Xxxxxx Xxxxx e Menezes Cordeiro.
61 Xxxxxxx Xxxxxx define o contrato misto como aquele que reúne elementos de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei – Das Obrigações Em Geral, ob. cit, p. 279. Existem autores que dão um conceito amplo de contrato misto, outros definem um conceito mais restrito. Assim há quem defenda que os contratos mistos são os resultantes da fusão de dois ou mais contratos ou de partes de contratos distintos, ou da inclusão num contrato de aspetos próprios de outros negócios jurídicos, enunciando que em qualquer dos casos há fusão e não simples cúmulo; o contrato misto é um contrato só não se identificando com a união de contratos (Inocêncio Xxxxxx Xxxxxx, Direito das Obrigações, 7ª ed., Coimbra Editora, 1997, p. 86). Os contratos mistos surgem por autonomia da vontade das pessoas, que providos de capacidade para serem partes em negócio jurídico podem, através de prerrogativas especiais, que são concedidas pelo direito civil, como a natureza supletiva das normas, as partes afastar demais regulamentações que não esteja em conformidade com o seu interesse negocial, podendo então mesclar num negócio jurídico normas de um ou mais contratos típicos ou atípicos (Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, vol. I, reimpressão da edição de 1980, Associação Académica da FDUL, Lisboa, 1986, p. 424).
62 A Doutrina aponta três modalidades de contratos mistos: contratos combinados, entendidos como aqueles aos quais uma das partes fica adstrita a duas ou mais prestações principais respeitantes a diversos tipos de contratos e a contraparte se vincula a uma contraprestação única; contratos acoplados ou de tipo duplo que se caracterizam por, à prestação única de cada uma das partes, corresponde, uma contraprestação característica de contrato de tipo diferente o que significa que o conteúdo, total do negócio, se revela como sendo ao mesmo tempo de dois contratos nominados; mistos em sentido estrito que são aqueles em que se utiliza um certo tipo de contrato como meio ou instrumento para a prossecução de um fim diferente daquilo que lhe é próprio. Para a disciplina dos contratos mistos regem três conceções: a) teoria da absorção, segundo a qual alguns autores analisam o negócio jurídico, dissecando-o, para através da separação dos elementos do contrato constatarem quais os elementos que preponderam, assim definindo qual a prestação principal; assim faz-se a opção pela aplicação de um regime jurídico em que maioria de elementos relativos a um negócio absorve os restantes elementos na qualificação e disciplina do negócio. b) Teoria da combinação: outra parte da doutrina configura, que nem sempre será possível dissecar o negócio jurídico, e nem mesmo, considerar quais os elementos preponderantes no contrato, nomeadamente nos contratos
Ainda a este propósito há que convocar os ensinamentos de Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx acerca da categoria do “negócio complexo” que encontra sentido nas “formações negociais mistas, ou atípicas”, ou “compostas”. Aludindo a duas formas de negócios complexos: “aqueles cuja complexidade decorre da circunstância de convocarem a aplicação de regimes legais correspondentes a diversos negócios típicos embora se trate de estruturas negociais aparentemente unitárias, e aqueles cuja complexidade decorre da aparente existência de diversas estruturas negociais dentro da mesma formação negocial complexa”. O mesmo Prof. dentro da primeira forma apontada, destaca os contratos mistos, por respeitarem a uma mesma formação contratual que convoca a aplicação de diversos regimes legais típicos, circunstância que vê, de forma expressiva, nos chamados contratos combinados, “uma das modalidades de contratos mistos destacados pela doutrina – quer dizer, espécies contratuais em que uma das partes se obriga não apenas a determinada ou determinadas prestações correspondentes a um único tipo contratual (quer se trate da prestação principal quer de prestações secundárias que lhe andem tipicamente associadas), mas a diversas prestações reguladas tipicamente dentro de regimes contratuais diversos. É o que sucede, por exemplo, com os contratos de prestação de refeição em restaurante, de alojamento em hotel (…), ou de alojamento noutro tipo de locais, como lares de terceira idade (…)”, fazendo referência, contudo, aos problemas específicos que surgem neste âmbito.63
Volvendo ao contrato em apreço, a cedência de um espaço no lar de idosos ao utente, por período de tempo determinado ou indeterminado, mediante contrapartida pecuniária, é, à primeira vista, elemento típico do contrato de locação (art 1022º), mas como vimos no contrato de internamento o lar obriga-se a prestar, em simultâneo, um determinado número de serviços, tal como num contrato de hospedagem (alimentação, higiene, etc.), e portanto diferentemente do que sucede na locação, e em particular do que
complexos, e portanto a solução que determinam, passa por harmonizar (combinar) os vários elementos entre si, ou seja harmonizar os componentes na regulamentação do contrato. c) Teoria da aplicação analógica: em primeiro lugar apela para o poder de integração das lacunas do negócio jurídico que o sistema confere ao juiz, cabendo a este, e depois de integração das mesmas, recorrendo aos casos análogos, fixar o regime próprio de cada espécie. Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxxx, ob. cit. pp 230 e ss, e Xxxxxxx Xxxxxx, ob. cit, pp. 287-290.
63 Xxxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx, “Contratos complexos e complexos contratuais: necessidade de um tratamento unitário”, Coimbra Ed. 2008, pp. 11-14 e notas (13) e (804), sendo que esta remete para a nota (700), onde citando Xxxxxx e a partir de alguns exemplos de contratos de combinação de tipos cuja concreta situação de interesses deve levar ao recurso ao método da absorção, porquanto nos casos ali apontados uma das prestações do contrato – locação do espaço para tomar uma refeição ou para assistir ao um espetáculo, como cinema ou concerto – não é suficiente para determinar a aplicação das normas sobre a responsabilidade do locador por defeitos na coisa locada, defendendo mesmo que se trata de “uma prestação em clara posição de subordinação que só se dá para permitir a execução da prestação principal.”
sucede no contrato de arrendamento, pois que neste âmbito apenas é proporcionado pelo dono do locado ao locatário o uso do locado, sempre a título temporário, sem que qualquer serviço seja prestado, apenas se limitando a pôr à disposição das pessoas com quem contrata o espaço, e, eventualmente, mobiliário e outros objetos, bem como o eventual fornecimento de água e luz, mediante a cobrança de uma mensalidade fixa.
Além disso, o utente pode ainda contratar outros serviços, por ex. tratamentos terapêuticos, que podem ter retribuição própria, específica e variável, para além da “renda”.
No mesmo contrato o dono do lar obriga-se, ainda, perante o utente e/ou seu familiar, representante legal ou de facto, a proporcionar àquele uma multiplicidade de serviços atinentes a cuidados básicos que são prestados todos os dias da semana, durante 24 horas por dia, além de outros previstos na própria legislação em vigor, e eventualmente outros convencionados pelas partes.
Associadas a estas prestações, vislumbrámos outras que são indispensáveis à boa execução daquelas e com vista a alcançar os objetivos que decorrem da própria regulamentação legal que rege acerca do funcionamento do próprio lar: proporcionar serviços permanentes e adequados à problemática biopsicossocial das pessoas idosas, contribuir para a estimulação de um processo de envelhecimento ativo, criar condições que permitam preservar e incentivar a relação intrafamiliar, e potenciar a integração social (art. 3º da cit. Portaria).
Parece-nos, pois, que não se pode falar de união ou junção de contratos, dado que no contrato de internamento em lar as partes fazem depender as obrigações relativas àqueles serviços prestados da manutenção e validade do contrato no seu todo. Na união, como vimos, há uma pluralidade de contratos, mantendo cada negócio jurídico a sua autonomia, que não tem cabimento aqui, pois que a vontade negocial não parece apontar nesse sentido.
No contrato misto, pelo contrário, há uma unidade contratual: um só negócio jurídico, cujos elementos essenciais respeitam a tipos contratuais distintos, como já assinalámos. "Se o relacionamento entre os tipos for tal que ambos possam subsistir e vigorar como contratos completos e separados, não obstante o vínculo que os liga, a
classificação é de união de contratos. Se o relacionamento entre os tipos não permitir a separação, o contrato é classificado como misto.”64
Mas como defende Xxxxxxx Xxxxxx, “nem sempre, no entanto, o contrato misto se traduz numa simples justaposição, contraposição ou sobreposição de elementos pertencentes a matrizes distintas. Por vezes sucede que há antes uma verdadeira fusão desses elementos num todo orgânico, unitário, complexo que é substancialmente diferente da soma aritmética deles; e outras ainda em que há uma real assimilação de um dos contratos (compreendidos no negócio misto) pelo outro. Saber quando qualquer dos fenómenos se verifica é problema que depende essencialmente da análise da causa do contrato misto, ou seja, da função económico-social que ele visa preencher, e do confronto dela com a causa dos contratos típicos ou nominados.” Na primeira variante inclui, por exemplo, o contrato de hospedagem, que aqui já vimos, salientando que neste caso não existe uma prestação principal, ao lado de outras acessórias, mas antes um conjunto de prestações que têm, na sua unidade, um sentido inteiramente distinto do que reveste cada uma das prestações isoladas em que ele se desdobra.65
Olhando para o contrato que aqui temos não se vislumbram elementos que permitam estabelecer qualquer prevalência entre as prestações que, como vimos, não são só de contratos típicos, isto é, previstos e regulados na lei. Claro está que tudo dependerá do que for convencionado pelas partes em cada caso, mas atendendo ao que normalmente é estipulado neste tipo de relação jurídica, ao que está legalmente definido quanto aos requisitos de abertura, funcionamento e organização de um lar, aos objectivos que deve prosseguir e atingir, e ao quadro de interesses em jogo, não se vislumbra que haja intenção de destacar, de considerar uma ou outra prestação como a principal de entre as várias prestações componentes do contrato em apreço.
O que temos é que o conjunto de todas as prestações do lar adquire uma identidade própria que não se pode decompor num conjunto de prestações típicas de outros contratos, como aconteceria se fosse considerado um contrato misto combinado66. Na verdade, existe uma finalidade comum, em que os contratos se completam na obtenção
64 Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxxx, ob. cit. p. 225.
65 Ob. cit., pp.291-294. Como ex. de contrato que integra a segunda variante, aponta a doação mista, p. 295.
66 Veja-se Xxxxxxx Xxxxxx acerca dos “shopping centers”, Das Obrigações, ob. cit., p. 297 e ss; e Centros Comerciais (Shopping Centers), Natureza Jurídica dos Contratos de Instalação dos Lojistas, Coimbra Editora 1995.
desse fim, e uma subordinação que implica que as vicissitudes de uns se repercutem nos outros, sem exceção. Daí a nossa dificuldade na aplicabilidade da teoria da absorção para discipliná-lo, de modo a submetê-lo às normas legais concernentes ao que pode ser apontado como o tipo dominante; e o mesmo se diga quanto a aplicar a cada um deles o regime próprio correspondente à matriz, através da teoria da combinação.
O conteúdo do contrato composto por aquele núcleo diversificado de obrigações por parte do lar, mas que não se podem decompor, leva-nos a inferir que, no contrato em apreço, a sua causa, a função económico-social que visa preencher, afasta-se das causas que tipificam os contratos de prestação de serviços, mandato alojamento e depósito.
No imediato, o que apreendemos é a presença de um contrato unitário, complexo e atípico. E tendo presentes os ensinamentos que acima fomos expendendo, temos um contrato socialmente típico, mas legalmente atípico: contrato efectivamente não tipificado na lei, mas que é na realidade social típico.67 O que as partes parecem querer é a celebração de um contrato de alojamento (acolhimento propriamente dito) e de prestação de serviços (consubstanciados numa multiplicidade de deveres atinentes a cuidados básicos e outros que vão muito para além disso), e com objetivos traçados que contendem com um núcleo de interesses particularmente sensíveis e mais do que isso, com os direitos fundamentais dos utentes, enquanto cidadãos e, em especial, enquanto pessoas vulneráveis, modelo que tem vindo a autonomizar-se na prática.
Enquanto contrato atípico é válido ante o princípio da autonomia da vontade, desde que não contrarie a lei, a ordem pública, os bons costumes e os princípios gerais do direito, e como tal haverá de ser regulado pelas cláusulas contratuais e pelas disposições gerais dos contratos e, na sua insuficiência, pelas normas aplicáveis aos casos análogos (art. 10º, CC), ou seja, pelas normas que regulam o contrato ou os contratos que lhe sejam mais próximas.68 69 Acresce que este tipo de contrato terá sempre de ter na sua base as
67 A tipicidade social supõe "a consciência de que os tipos assim criados venham a adquirir validade geral e justifica-se pela importância que os tipos em causa revistam na realidade social, atendendo à sua difusão e à função económico-social que desempenham". A tipicidade social "remetendo para as valorações económicas ou éticas de consciência social, só pode justificar-se se existirem, subjacentes aos contratos realizados e modo típico, interesses merecedores de tutela, segundo a ordem jurídica" – Xxxxx Xxxxxx Xxxxx, Contrato Concessão Comercial, 1990, pp. 168 e 169, e Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxxx, ob. cit. e mencionado já este propósito, p. 321.
68 Xxxxx Xxxx Xxxxxxxxxxx refere que a “disciplina concreta do contrato resulta da conjugação dos contributos de setores variados da Ordem Jurídica. A estipulação, a Lei, a Moral, a Justiça, a Equidade, a Boa fé, contribuem para a disciplina do contrato, para a resolução das questões suscitadas, em medida e com intensidade relativa que não é sempre a mesma em todos os casos. O contributo da vontade negocial das partes, isto é, da autonomia privada, é fundamental. É ele que dá ao contrato a sua natureza negocial e que o
normas próprias que regulamentam este tipo de atividade, como vimos, a Portaria nº 67/2012 e o DL nº 33/2014.
4. Forma do contrato
A qualificação jurídica do contrato de internamento em lar de idosos, que, a nosso ver, parece configurar um contrato atípico, que integra prestações de outros contratos (atípicos ou inominados e típicos e nominados), pode suscitar dúvidas quanto à sua forma.
As diversas modalidades contratuais analisadas, e para os efeitos que aqui estudamos, regem-se pelo princípio da liberdade de forma (art. 219º). Não estão, portanto, sujeitos a qualquer forma em especial (ressalvados os casos que não têm aplicação ao contrato que aqui nos interessa).
Mas a Portaria nº 67/2012 de 21.03, que define as condições de organização, funcionamento e instalação a que devem obedecer os lares, estabelece, no seu art. 10º, que “Devem ser celebrados por escrito contratos de alojamento e prestação de serviços com os residentes ou seus familiares e, quando exista, com o representante legal, donde constem os direitos e obrigações das partes.”
Daqui decorre a obrigatoriedade de reduzir a escrito a celebração deste tipo de
contrato.
distingue dos simples fatos jurídicos. No entanto, a estipulação das partes cede perante a força jurídica superior dos preceitos injuntivos da Lei e da Moral.”, ob. cit., p. 323.
69 Sobre a hierarquia das fontes de regulamentação contratual dos contratos socialmente típicos, mas legalmente atípicos e ainda quanto aos contratos atípicos, vide Xxxxx Xxxxxxxxxxx, ob. cit., p. 327 e ss, citando Xxxxxx Xxxxx, Concessão Comercial, cit., pp. 218-220 e 169.
CAPÍTULO II - Do incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato
1. Aspetos gerais
Partindo de uma relação jurídica válida e eficazmente constituída resultante da celebração de um contrato, independentemente do cumprimento das respetivas prestações, o contrato de internamento em lar de idosos pode extinguir-se por resolução, revogação e denúncia, a que se acrescenta a forma de extinção do vínculo contratual por causa de facto superveniente, a caducidade.70 Portanto, para falarmos de cessação do contrato, teremos que estar face a situações supervenientes, surgidas após a celebração de um negócio jurídico, que terá que ser válido e eficaz.71
Assim é que, ao contrato em causa aplicam-se necessariamente, e desde logo, as causas gerais de extinção dos contratos, como seja: revogação, denúncia, caducidade, resolução por alteração das circunstâncias, resolução por acordo das partes e resolução por incumprimento.
Falamos de resolução quando um ato levado a cabo por uma das partes do contrato, durante a vigência do mesmo, tem em vista a dissolução do vínculo contratual. Este instituto é aplicável tanto aos contratos de execução instantânea como aos duradouros e está previsto no art. 432º.
Desde logo, o direito de resolver o contrato pode resultar de uma convenção entre as partes, à luz do art. 432º. Como referem Xxxxxxx Xxxxxx e Pires de Lima esta “convenção pode coincidir com o próprio contrato. Normalmente é mesmo uma cláusula dele. Mas nada impede que seja objecto de um acordo posterior.”72
Mas o direito de resolver o contrato pertence ao contraente que esteja em condições de restituir o que tiver recebido do outro, exceto quando a impossibilidade resulte de circunstâncias a este imputáveis (art. 432º, n.º 2)73. Este tipo de resolução
70 Estas figuras distinguem-se de outras, como a inexistência, a invalidade (nulidade e anulabilidade) e a ineficácia, que atingem o negócio em si, impedindo que produzam os efeitos normais.
71 Xxxxxx Xxxxxxxx, Da Cessação do Contrato, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2006, pp. 19-34, e 105 e ss, Oliveira Ascensão, Direito Civil Teoria Geral – Relações e Situações Jurídicas, vol. III, Coimbra Ed., 2002, p. 329 e ss.
72 Ob. cit., anot. 1, p. 409.
73 Segundo Xxxxxxx Xxxxxx e Pires de Lima a dita restrição funciona também na resolução contratual, que a este propósito, afirmam “é importante notar que a restrição não funciona, se a
convencional não parece suscitar problemas no contrato em estudo, em face da existência de acordo entre as partes em dissolver o anteriormente estipulado.
Além desta modalidade de resolução, o mesmo art. 432º consagra a resolução legal, que pode resultar da alteração das circunstâncias que fundaram a decisão de contratar, dos casos de impossibilidade do cumprimento ou do não cumprimento da obrigação.
A resolução por alteração das circunstâncias encontra sustento legal no art. 437º, aludindo a lei a determinados requisitos: uma alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, a anormalidade dessa alteração, uma lesão para uma das partes provocada por essa alteração, que a lesão seja tal que se apresente como contrária à boa-fé na exigência do cumprimento das obrigações assumidas, e que não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato.74 Situação que poderemos enquadrar na resolução por alteração das circunstâncias, será aquela em que, por exemplo, o edifício em que iria funcionar o lar, já devidamente licenciado para funcionar ou já a funcionar, com observância de todo o condicionalismo imposto pela legislação em vigor, é, entretanto, objeto de vinculação a interesses públicos, como por exemplo destinado a monumento nacional, proteção ambiental, construção de vias de comunicação, ou outros.
Por seu turno, a impossibilidade objetiva no cumprimento do contrato, consagrada no art. 790º, nº 1, abarcará situações de impossibilidade por parte do lar de acolher o utente e/ou prestar-lhe os serviços decorrente da natureza das coisas, por exemplo por o lar deixar de existir por ser atingido por catástrofe (art. 790º, nº 1). Esta impossibilidade objetiva aqui relevante é apenas a impossibilidade superveniente; a impossibilidade originária nada tem de específico e segue o regime geral do artigo 401.º do Código Civil.
Finalmente, o contrato pode extinguir-se por iniciativa de qualquer um dos contraentes por incumprimento dos deveres consignados no contrato.75 Pelo lar, por
impossibilidade de restituição for imputável à parte contrária, como resulta do mesmo número. Mas funciona, ainda que a parte interessada na resolução invoque para o efeito o não cumprimento do contrato por causa imputável ao outro contraente.”, ob. cit, anot. 2, p. 409.
74A alteração das circunstâncias não se confunde com a inexistência ab initio de circunstâncias que constituem a base do negócio; neste caso estamos perante o erro previsto no art. 252º, nº 2. No caso de erro, as partes no momento de celebração do contrato dão como certas determinadas circunstâncias que não existem ou diferem das que foram tomadas como certas – Xxxxxxx Xxxxxx e Pires de Lima, in ob. cit., anot.1,
p. 413. Na figura do erro, o vício respeita à própria formação do contrato, traduz-se numa inexata representação ou na ignorância de certa circunstância de facto ou de direito determinante para a celebração do negócio, e como tal, deve gerar uma invalidade.
75Arts. 801º, nº 2, 802º e 808º (impossibilidade de cumprimento da obrigação). Outros exs. arts.
1047º e 1050º (locação), 1150º (mútuo).
incumprimento dos deveres consignados no contrato ou no regulamento interno do lar; e pelo utente ou terceiro outorgante por incumprimento dos deveres consignados no contrato ou na legislação específica que rege acerca da abertura, organização e funcionamento deste tipo de estabelecimentos e/ou sempre que estejam insatisfeitos com os serviços prestados ou estes sejam inadequados às suas necessidades.
No nosso estudo focar-nos-emos nas situações de incumprimento ou cumprimento do contrato por parte do lar, face à particular sensibilidade dos interesses do utente, sobre os quais vimos discorrendo.
2. Hipóteses de incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato
Do vínculo contratual estabelecido entre o lar e o utente (ou seu representante legal, familiar ou outro), não há dúvidas de que por parte do utente há a obrigação de pagar a retribuição estipulada pelas partes, a título de custo pelo internamento e inerente prestação dos serviços que já enumerámos e eventualmente outros firmados pelas partes, bem como de observar as regras decorrentes do regulamento interno do lar.
Mas debrucemo-nos sobre o incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato por parte do lar.
As obrigações emergentes de um contrato destes traduzem-se no acolhimento e na execução de diversos serviços, atinentes a cuidados básicos que são prestados todos os dias da semana, durante 24 horas por dia, além de outros previstos na própria legislação em vigor e eventualmente outros convencionados pelas partes.
Também já sabemos que a abertura, organização e funcionamento de um lar (privados, IPSS ou Misericórdias), enquanto alojamento coletivo, de utilização temporária ou permanente, impõe a observância de condicionalismos estabelecidos pela Portaria nº 67/2012 (e no caso dos lares privados também o que decorre do DL nº 33/2014).
Em caso de incumprimento de qualquer um desses requisitos, o utente ou seu familiar/responsável pode, desde logo, reclamar junto do diretor técnico ou da pessoa responsável pelo lar; e caso as queixas não sejam atendidas deve reclamar por escrito para o Instituto da Segurança Social, I. P. (ISS), entidade que, segundo o art. 19º, da Portaria mencionada, tem a seu cargo o acompanhamento, avaliação e fiscalização dos lares (nº 1); e, para tanto, a entidade responsável pelo lar deve facultar o acesso às instalações e à
documentação tida por conveniente (nº 2). A reclamação pode, ainda, ser dirigida à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE): autoridade administrativa nacional no âmbito da segurança alimentar e da fiscalização económica.76
Além daqueles requisitos taxativamente fixados, constituem, ainda, objetivos do lar, designadamente, proporcionar serviços permanentes e adequados à problemática biopsicossocial das pessoas idosas, contribuir para a estimulação de um processo de envelhecimento ativo, criar condições que permitam preservar e incentivar a relação intrafamiliar e potenciar a integração social (art. 3º, da Portaria nº 67/2012).
Seguindo de perto aqueles requisitos e objetivos, configuram, a nosso ver e a título meramente exemplificativo, casos de incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato por parte do lar os seguintes:
- alimentação: não oferecer variedade na comida e bebida; usar restrição de alimentos como forma de castigo; servir comida mal cozinhada ou sem estar na temperatura adequada; fraca higiene dos suportes alimentares; não respeitar as dietas alimentares ou necessidades dietéticas; misturar bebidas sem atentar aos gostos de cada utente;
- vestuário: vestir os utentes com vestuário em más condições ou inadequado; não vestir os utentes sem justificação aparente;
- confinamento: fechar os idosos fora ou dentro dos quartos; uso injustificado de objectos imobilizadores (correias, ligaduras, etc.); amarrar idosos à cama sem justificação aparente;
- a nível de restrição sensorial: deixar pessoas de mobilidade reduzida durante longos períodos de tempo, sentadas ou deitadas, não procedendo à sua mobilização, salutar à sua independência e dignidade humana; não permitir a privacidade dos idosos; não promover espaços e actividades de estímulo ajustadas às necessidades dos idosos;
- quanto à saúde: não procurar ajuda médica caso os utentes necessitem; não informar os clínicos de eventuais mudanças de estado clínico principalmente em casos de quedas; não assistir os utentes a nível de cuidados preventivos; ignorar os utentes quando
76 As reclamações podem ser realizadas no “Livro de Reclamações” ou por escrito dirigidos àquelas entidades ou, ainda, através dos sites informáticos do ISS - xxxx://xxx0.xxx-xxxxxx.xx/ -, e da ASAE - xxx.xxxx.xx - que disponibilizam formulários específicos para apresentar queixas, bem como ajuda no preenchimento do livro de reclamações.
estes se queixam de dores; não respeitar as medicações de cada utente, descurar a higiene de cada utente;
- não providenciar pessoal suficiente e com formação adequada, empregar pessoal não qualificado;
- em relação ao espaço físico: divisões com temperatura desadequada (demasiado quentes ou frias); divisões sem arejamento suficiente; iluminação deficiente ou inadequada; permitir que os idosos durmam em colchões sujos, molhados ou em mau estado; não fornecer roupa de cama em condições de higiene e conforto para o idoso;
- não assegurar a privacidade dos utentes: quartos com várias camas ou sem biombos de proteção; apressar o doente durante a satisfação das suas necessidades fisiológicas; não lavar os doentes acamados;
- agressão aos utentes; prestação de cuidados de forma violenta;
- maus tratos verbais contra os utentes, gritar e/ou ameaçar os mesmos;
- reter o dinheiro dos utentes sem a sua autorização: cobrar dinheiro extra por bens alimentícios; retirar dinheiro ou valores sem consentimento dos residentes no lar; ser cúmplice quando a família se apodera das economias ou bens do idoso;
- administrar sedativos sem ordem superior médica; não dar medicação adequada ao utente; não dar medicação a horas e nas doses certas.
Deste elenco meramente exemplificativo, que constituem violação contratual e que derivam da própria legislação que rege acerca desta matéria, podem configurar-se outras situações de violação de cláusula(s) contratual(ais) que, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, foram estabelecidas pelas partes contraentes.
Com muito interesse na parte que agora estudamos, no Ac. da RL de 16.01.2007, já citado, que abarca diversas circunstâncias que foram vistas como objetivos e condições a observar pelo lar, considerou-se que houve incumprimento contratual por parte do lar (sociedade que geria um lar particular), por não ter assegurado ao utente “autonomia, independência, manutenção das capacidades físicas, alimentação adequada, bem estar, higiene e tratamento de roupas”; o que se lhe impunha de acordo com o regime legal aplicável à data e contratual. Tendo-se provado que: o utente foi ali internado, portanto, em regime de internato em instituição privada adequada, por necessitar de cuidados permanentes, sendo que aquando da sua admissão e no início do internamento, apesar de ter alguns problemas do foro psicológico, o utente ainda se deslocava pelo seu próprio pé,
comia sozinho e conversava; quando deu entrada nas instalações do lar já sofria de problemas de foro psicológico, nomeadamente demência senil em estado avançado, o que implicava alterações de comportamento, incoerência do discurso e um cada vez mais acentuado desfasamento da realidade que o rodeava; que, por alguns períodos, tinha contenção; a partir de dado momento, passou a ter contenção, com conhecimento da autora (filha do utente, contraente no contrato), pois caso contrário podia cair e magoar-se, mesmo estando presentes pessoas; o utente permanecia muitas vezes descalço; a partir de certa altura passou a permanecer muito tempo sentado; pelo menos um dia, o utente encontrava-se sentado numa cadeira sem almofada; encontrava-se em estado de mutismo e apatia, pouco falando; começou a emagrecer rapidamente; ao lanche, por vezes, era dado ao utente café com leite e pão esmagado; a partir de certa altura, o utente começou a apresentar dificuldades motoras e, por isso, é que lhe fora ministrada fisioterapia adequada à sua idade e estado físico, com a finalidade de impedir o agravamento do seu estado; a dada altura, o estado físico do utente era de desidratação e apresentava a roupa suja, a barba por fazer e com as unhas repletas de sujidade; e nesse dia, a filha do utente decidiu transferir o seu pai para outro lar; concluiu o Tribunal que ocorreu incumprimento contratual por parte do lar, pois que os atos a que o lar se obrigou, por contrato verbal (não obstante o Norma VII do Desp. Norm. nº 47/98, a que faz menção o Ac., e anteriormente aplicável, já dispor que os contratos deviam ser celebrados por escrito, como impõe agora a Portaria nº 67/2012 e o DL 33/2014) e de forma genérica traduziam-se em: “assistência médica permanente, em regime de internato e assistência parcial, como centro de dia e regime ambulatório, pessoas de terceira idade, cuidados permanentes, regime de internato, assistência em regime de internato, sem que a repetição de tais termos nos elucide quanto à concreta configuração dos actos que a apelada se obrigou a praticar”.
Acrescentou o dito Ac. que “atenta a crescente importância e relevância social desta actividade, aliás, exercida profissionalmente por pessoas singulares, colectivas e sociedades comerciais, e mediante tutela pública (concessão de alvará, etc.) a concretização dos actos a praticar pode encontrar-se não só nos actos legislativos que a essa actividade respeitam como nas próprias «legis artis» entretanto estabelecidas por equiparação às actividades parcelares que engloba, como sejam a alimentação, o alojamento, a limpeza pessoal e de instalações, os cuidados de enfermagem, actos médicos e outros. Quanto a actos legislativos importa, desde logo, referir, o Despacho Normativo
nº 12/98, in DR nº 47/98, Série I-B, pág. 766 a 774, relativo às condições de instalação e de funcionamento dos lares, que na sua “Xxxxx XX” define “Os objectivos dos lares” e na sua “Norma III” define as “Condições gerais de funcionamento” (…)”.77
Com base nesses objetivos e nas condições gerais de funcionamento do lar, que permitiram aquilatar relativamente aos factos ali em discussão quais os concretos atos a que se obrigou o lar e da conformidade ou desconformidade entre eles e os atos praticados, foi entendido que a “prestação de cuidados tendo em vista a manutenção da sua autonomia e independência (…) impunha à apelada que estimulasse, ou pelo menos não retraísse, as idas do assistido à casa de banho, até independentemente de ter de usar fralda, que incentivasse o assistido a deslocar-se pelo seu próprio pé, pelo menos em ordem a não perder a mobilidade com que entrou, e a proporcionar-lhe uma cadeira com condições de descanso adequadas à sua idade (almofadas ou com almofada móvel), actos que a apelada não praticou. Quanto à manutenção das suas capacidades físicas e psíquicas (…), o assistido encontrava-se em estado de mutismo e apatia, pouco falando (…) pelo que a R, pelo menos, omitiu os seus deveres contratuais a esse respeito. Quanto a uma alimentação adequada (…), sabemos que ao lanche, por vezes, era dado a Xxxxxxx (…) café com leite e pão esmagado (…), que começou a emagrecer rapidamente (…) e que em 1 de Junho de 2000 se encontrava desidratado (…), o que só resulta compreensível em face da indisponibilidade das empregadas da apelada para acompanhar os idosos, entre eles o assistido (…), e para lhes dar a assistência devida (…), pelo que também nesta matéria a apelada omitiu os seus deveres contratuais. Quanto ao bem-estar do assistido, em especial higiene e tratamento (limpeza) de roupas (…), sabemos que as empregadas da apelada não tinham tempo para acompanhar os idosos, entre eles o assistido, e para lhes dar a assistência devida, dado que faziam todo o tipo de serviço, limpeza, alimentação, tratamento de roupa, higiene dos utentes (…) e que, no dia 1 de Junho de 2000, o assistido apresentava a roupa suja, a barba por fazer e com as unhas repletas de sujidade (…), situação esta que terá sido determinante da decisão da apelante em transferir o seu pai para outro lar de idosos (…), pelo que também nesta matéria a apelada omitiu os seus deveres contratuais.”
No seguimento desta linha de raciocínio, o douto Ac. concluiu que “relativamente aos citados itens de: manutenção de autonomia e independência; manutenção das
77 Desp. Norm. que como já vimos foi revogado pela Portaria nº 67/2012 (art. 21º).
capacidades físicas e psíquicas; alimentação adequada e de bem-estar, higiene e tratamento de roupas, a apelada não cumpriu o seu dever contratual (art. 406º do C. Civil) de praticar os actos a que se obrigou ao contratar com a apelante, sendo certo que recebeu a respectiva remuneração.”
Atualmente, os objetivos dos lares estão corporizados no art. 3º, da Portaria 67/2012, e são enformados pelos princípios enunciados no art. 4º do mesmo texto legal. E na mesma Portaria (e no DL 33/2014, que rege acerca de lares geridos por entidades privadas) estão fixadas as condições gerais de organização e funcionamento de um lar, designadamente, no art. 8º no que neste caso nos interessa, ou seja, a prestação de cuidados a nível: de alimentação; higiene pessoal e dos espaços; tratamento de roupa; atividades de animação sociocultural, lúdico-recreativas e ocupacionais que visem contribuir para um clima de relacionamento saudável entre os residentes e para a estimulação e manutenção das suas capacidades físicas e psíquicas; apoio no desempenho das atividades da vida diária; cuidados de enfermagem, bem como o acesso a cuidados de saúde administração de fármacos, quando prescritos; a convivência social, através do relacionamento entre os residentes e destes com os familiares e amigos, com os cuidadores e com a própria comunidade, de acordo com os seus interesses; a participação dos familiares ou representante legal, no apoio ao residente sempre que possível e desde que este apoio contribua para um maior bem-estar e equilíbrio psicológico e afetivo do residente; permitir a assistência religiosa, sempre que o residente o solicite, ou, na incapacidade deste, a pedido dos seus familiares ou representante legal; disponibilizar outro tipo de serviços, visando a melhoria da qualidade de vida do residente, nomeadamente, fisioterapia, hidroterapia, cuidados de imagem e transporte.
Um contrato de internamento em lares de idosos, para além da regulamentação legal e/ou do estipulado pelas partes no contrato, envolve, igualmente, variados deveres, entre os quais se encontra o dever de assegurar aos utentes e seus bens condições de segurança no gozo dos espaços daquela unidade, com o que se visa a satisfação cabal do interesse do utente na prestação principal, uma vez que não tendo este o domínio do espaço onde está internado, tem o direito de exigir que o mesmo esteja dotado das condições de segurança que evitem a colocação em risco quer da sua integridade física, quer até do património que, eventualmente, o acompanha.
No Ac. da RL de 08.05.2003, também já citado, decidiu-se que “cabe aos responsáveis pelos lares de idosos desenvolver as tarefas necessárias à sua protecção e segurança, designadamente quando não possam viver autonomamente. Existe responsabilidade civil se a entidade responsável pelo lar não tomou as cautelas necessárias para obstar a que uma pessoa internada viesse para o exterior, onde foi atropelada.”
No caso, apurou-se que a idosa foi internada em lar por sofrer de insuficiência vascular cerebral, o que impunha vigilância permanente. Foi por não ter sido vigiada com o cuidado que se impunha, e que o lar devia assegurar, que a utente saiu para o exterior do lar e acabasse por ser atropelada por veículo em estrada, daí resultando ferimentos e dores, e consequente incapacidade para se locomover.
O Xxxxxx em análise ditou que “embora os diplomas que regem a actividade da ré não consagrem expressamente qualquer dever legal de particular vigilância pelos lares de idosos relativamente a estes, é, entre outros, objectivo específico daqueles estabelecimentos “proporcionar serviços permanentes e adequados à problemática biopsicossocial das pessoas idosas” (Xxxxx XX, nº 1, al. a) do Despacho Normativo nº 67/89, de 26 de Julho), pelo que, para além de deverem proporcionar alojamento por forma a garantir aos seus utentes uma “vida confortável, respeitando, tanto quanto possível, a sua independência, constitui obrigação dos lares de idosos garantir-lhes “a prestação de todos os cuidados adequados à satisfação das necessidades dos idosos, designadamente, alimentação, cuidados de higiene e conforto, de ocupação, médicos e de enfermagem, tendo em vista a manutenção da sua autonomia (…)”. Daqui deriva que, sem prejuízo da independência e autonomia dos idosos quanto possível, cabe aos lares desenvolver um conjunto de tarefas necessárias à protecção e segurança dos seus internandos, encontrando-se entre estas, necessariamente, a obrigação de controlarem as respectivas saídas, particularmente à noite e de inverno, dada a notória perigosidade que tal acto reveste para pessoas internadas precisamente por não poderem viver autonomamente. Essa obrigação existe relativamente a todos os idosos e impõem-se particularmente em relação àqueles que, como a autora, tenham evidenciado “comportamentos desajustados” da realidade.”
E embora se tivesse apurado que após a admissão da idosa no lar e constatação das alterações comportamentais daquela, a que o lar não estava a conseguir dar resposta
por isso tendo solicitado à filha da utente que diligenciasse pela saída da mãe, o que não fez, o Ac. decidiu que tal facto não afastou a obrigação do lar de cuidar e de vigiar devidamente a utente, enquanto esta se mantivesse ao seu cuidado, já que a mesma não curou de resolver o contrato, antes deixando que a situação permanecesse inalterada. Assim é que se considerou que o lar tinha a obrigação derivada do contrato de prestação de serviços de assistência que celebrou (no caso com a filha da utente), de cuidar e vigiar a idosa, particularmente durante a noite, obrigação que não cumpriu já que não tomou as cautelas necessárias para obstar a que aquela viesse para o exterior, correndo vários riscos, inclusive o de ser atropelada, como veio a acontecer.78
Não há dúvidas de que os lares devem permitir aos utentes a maior liberdade de movimentação e respeitar a sua individualidade, independência e privacidade dos seus utentes, mas o problema de saúde que limitava a utente impunha vigilância permanente, razão pela qual foi a mesma colocada em lar em regime de internamento, sendo este, ao que tudo indica, a vontade das partes. Além disso, como acima se deixou, nos termos do art. 3º, da Portaria 67/2012, é objetivo do lar proporcionar serviços permanentes e adequados à problemática biopsicossocial das pessoas idosas.
Veja-se ainda um outro exemplo como a ocorrência de uma inundação de grandes proporções no lar. Se por essa inundação forem atingidos os utentes, a nosso ver, existe violação do dever acessório de garantia das condições de segurança daqueles, caso se apure que o lar provocou essa inundação ou que, tratando-se de uma intempérie, que era previsível, não adotou quaisquer medidas preventivas que evitassem o sucedido, por exemplo deslocando os utentes para outro local ou chamando os seus familiares para que pudessem adotar medidas quantos aos mesmos (claro está que a provar-se que a inundação teve origem numa intempérie caracterizada pela queda torrencial, imprevista e absolutamente anormal de precipitação, já se terá por ilidida a presunção de culpa que recairia sobre o lar, baseada em “caso fortuito”, o que excluiria a culpa do lar e, consequente, o dever de responder pelos danos sofridos pelo utente, na sua pessoa e bens (e quanto aos bens do utente, no caso de terem sido objeto de contrato), provocados pela intempérie.
78 A propósito de idêntica situação veja-se o Ac. da RC de 23.02.2011, in pesquisa Google.
Xxxxxxx Xxxxxx avisa para o facto de a violação destes deveres poder dar azo não só à resolução do contrato, mas também obrigar à indemnização dos danos causados à outra parte.79
O incumprimento ou cumprimento defeituoso derivado da inobservância dos requisitos e objetivos definidos na legislação que rege acerca desta matéria, ou da violação de cláusula(s) contratual(ais) que, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, foram estabelecidas pelas partes contraentes, bem como a violação dos deveres acessórios ou laterais da prestação principal do lar, que defendemos, gera responsabilidade civil, a nosso ver contratual, e que, neste âmbito, cobre os danos patrimoniais e não patrimoniais.
Cabe salientar que existirá sempre o reconhecimento do direito a indemnização ao utente/internado, quando seja a parte contratante; e ao mesmo, nos casos em que este não celebrou o contrato, antes um seu representante legal ou familiar do mesmo; porém, nesta hipótese, defendemos que o direito a indemnização situar-se-á no âmbito da responsabilidade extracontratual.
79 Das Obrigações, ob. cit. p. 129.
Capítulo III - Necessidade de um estatuto legal próprio
Vistos os problemas que o contrato de internamento em lar de idosos suscita, atenta a responsabilidade social que temos para com os idosos ou pessoas mais vulneráveis, a sua importância e a própria subsistência da sociedade, é de defender, neste campo, a existência de um direito próprio.
As especificidades da relação jurídica estabelecida entre o lar e o idoso solicitam respostas específicas do ordenamento jurídico que as disposições gerais dos contratos e as cláusulas contratuais não se revelam capazes de responder de forma adequada, tornando necessária a procura por soluções justas e equilibradas para resolver os litígios.
Como contrato atípico, portanto não correspondendo a nenhum contrato que esteja especificamente previsto e regulado na lei, o seu regime haverá de ser regulado pelas cláusulas contratuais e pelas disposições gerais dos contratos e na sua insuficiência pelas normas aplicáveis aos casos análogos, ou seja, pelas normas que regulam os contratos que lhes sejam mais próximos.
Neste campo parece-nos, porém, excessiva a liberdade conferida às partes, mostrando-se insuficientes os mencionados requisitos e objetivos legalmente fixados para a abertura, funcionamento e organização do lar para limitar o conteúdo deste contrato, oferecendo, por isso, desvantagem para o idoso ou pessoa com capacidade diminuída, pois favorece quem age de má-fé e negligencia a proteção dos direitos fundamentais daqueles.
Com efeito, não existe no direito constituído um regime capaz de regulamentar aquela relação. O acanhamento da nossa legislação numa área tão sensível e que se transformou, há muito, numa realidade que reclama alterações e soluções, choca com a sensibilidade dos interesses e direitos fundamentais destas pessoas mais vulneráveis e em crescendo.
Sem a existência sequer de uma teoria geral dos contratos atípicos para, desta forma, a liberdade das partes na contratação não se manifestar sem limites, deveria, por isso, equacionar-se, de uma forma rápida e destemida, a contemplação deste contrato, já socialmente típico, na lei e a regulamentação justa e equilibrada, em que os interesses do utente possam ser devidamente atendidos, portanto, sem negligenciar a proteção dos seus direitos fundamentais. Algumas das normas imperativas essenciais a fixar passariam, em
nossa opinião, pela: redução a escrito da celebração deste contrato; salvo os casos de interdição/tutela, seria o internando/utente o contraente, ainda que coadjuvado por familiar da sua confiança; a enumeração das obrigações principais de cada uma das partes, a enunciação de princípios orientados para a salvaguarda dos direitos fundamentais dos utentes a observar pelo lar na concretização das suas prestações, a consagração expressa de deveres de cuidado e de proteção por parte do lar e as causas de cessação do contrato.
Conclusão
1. O número cada vez mais elevado de pessoas com idades avançadas, que se encontram ou não em situação de incapacidade, e de pessoas até mais novas em situação de incapacidade, em resultado de limitações congénitas ou adquiridas, nomeadamente que padecem de demência, vem constituindo um problema social, que encontrou resposta no acolhimento das mesmas nos vulgarmente designados lares de idosos.
2. É indiscutível que o direito dos idosos tem grande importância, mas apesar das preocupações, continua a assistir-se a uma decadência dos valores fundamentais destas pessoas mais vulneráveis em razão da idade ou de doença, face à desvalorização do seu papel na sociedade e a encarar-se a sua ingressão num lar de idosos como sinónimo de incapacidade da pessoa e inutilidade para a sociedade que acaba por se alhear dos direitos fundamentais dessas pessoas que não só existem como devem ser concretizados para o que não há ainda instrumentos suficientes e necessários.
3. Legalmente só estão fixados, através da Portaria nº 67/2012 de 21.03 e do DL nº 33/2014 de 03.03, os requisitos de abertura, organização e funcionamento de lares, e traçados objetivos gerais, a atingir no exercício da atividade do lar e enformados pela mera enunciação de princípios orientados para a promoção e proteção de direitos.
4. Daí que sejam frequentemente conhecidos casos de incumprimento dos requisitos e obrigações ali estabelecidos; como também os problemas que vão para além disso e que estão relacionados com o próprio contrato, que não goza de regulamentação legal específica.
5. O idoso tem capacidade de gozo de direitos e tem capacidade de exercício de direitos, adveniente da idoneidade que detém para atuar juridicamente, exercendo os seus direitos ou cumprindo os seus deveres, adquirindo direitos ou assumindo obrigações, por ato próprio e exclusivo ou mediante um representante voluntário ou procurador, escolhido, livremente, pelo idoso. O mesmo valendo, a nosso ver, para as pessoas com idade avançada ou não mas, neste caso, com “capacidade diminuída”.
6. Porém, na prática, são incontáveis as situações em que a autonomia e plena capacidade das pessoas mais idosas ou em situação de capacidade diminuída, não são respeitadas, daí que consideramos que as propostas já avançadas pela doutrina e em especial as enunciadas através da RCM nº 63/2015, que aprovou a Estratégia de Proteção
do Idoso, são pertinentes e resolveriam estes problemas, nomeadamente, ao fixar casuisticamente, em função das concretas circunstâncias, a extensão da incapacidade de exercício que afete uma determinada pessoa e em face disso adotar medidas de proteção de maiores em situação de incapacidade, recorrendo ao mandato e à gestão de negócios, nos moldes ali consignados, e sempre sob apertado controle do Ministério Público; estabelecer- se, neste âmbito, a distinção clara entre os direitos de natureza pessoal e os direitos de natureza patrimonial, salientando-se que quanto aos primeiros a regra é a de que devem ser exercidos pelo próprio titular; reconfigurar, em conformidade, a figura do tutor, aproximando-a do curador quanto ao exercício dos direitos de natureza pessoal que continuem a competir ao incapaz; e reforçar o controlo judicial sobre o tutor, em ordem a garantir o bem-estar do incapaz.
7. Podemos afirmar que a prestação principal emergente do contrato em estudo é, por parte do utente, o pagamento da retribuição fixada. Mas por parte do lar não há uma só prestação principal, mas várias, que compõem um conjunto de obrigações essenciais traduzidas no acolhimento do utente no lar, usufruindo dos espaços que compõem a unidade residencial e com um espaço próprio (quarto) e na execução de diversos serviços, atinentes a cuidados básicos que são prestados todos os dias da semana, durante 24 horas por dia, além de outros previstos na própria legislação em vigor, e eventualmente outros convencionados pelas partes.
8. O lar está igualmente obrigado a proporcionar serviços permanentes e adequados à problemática biopsicossocial das pessoas idosas, contribuir para a estimulação de um processo de envelhecimento ativo, criar condições que permitam preservar e incentivar a relação intrafamiliar, potenciar a integração social; objetivos estes enformados por princípios de atuação: qualidade, eficiência, humanização e respeito pela individualidade; interdisciplinaridade; avaliação integral das necessidades do residente; promoção e manutenção da funcionalidade e da autonomia; participação e corresponsabilização do residente ou representante legal ou familiares, na elaboração do plano individual de cuidados.
9. Dependendo da concreta situação em que o utente se encontra a nível de saúde física ou psíquica, ou daquilo que, para além do legalmente estipulado, foi convencionado pelas partes e, muito especialmente, na concretização daqueles enunciados objetivos,
haverão de ser, necessariamente, observados deveres acessórios, deveres de cuidado ou de proteção, de esclarecimento e de lealdade, independentemente dos deveres primários de prestação, impostos pela boa-fé, que se destinam a proteger a pessoa ou os seus bens, cuja violação originará incumprimento contratual ou cumprimento defeituoso do contrato.
10. O contrato de internamento em lares de idosos não possui regulamentação própria no ordenamento jurídico português, mas tem sido tratado a nível jurisprudencial como um contrato atípico (inominado).
11. Analisado o vínculo normalmente estabelecido, podemos afirmar a integração de prestações do contrato de “hospedagem” e do contrato de depósito.
12. O conteúdo do contrato composto por aquele núcleo diversificado de obrigações por parte do lar, mas que não se podem decompor, leva-nos a inferir que a sua causa, a função económico-social que visa preencher, afasta-se das causas que tipificam os contratos de prestação de serviços, mandato, alojamento e depósito. E visto o conjunto de todas as prestações do “dono do lar”, o mesmo adquire uma identidade própria que não nos parece que se possa decompor num conjunto de prestações típicas de outros contratos, como aconteceria se fosse considerado um contrato misto combinado, daí que a tese do contrato atípico nos pareça mais viável.
13. O contrato em causa pode ser resolvido por iniciativa de qualquer um dos contraentes por incumprimento dos deveres consignados no contrato, sendo de destacar as situações de incumprimento ou cumprimento do contrato por parte do lar, face à particular sensibilidade dos interesses do utente.
14. O incumprimento ou cumprimento defeituoso derivado da inobservância dos requisitos e objetivos definidos na legislação que rege acerca desta matéria, ou da violação de cláusula(s) contratual(ais), bem como a violação dos deveres acessórios ou laterais da prestação principal do lar, gera responsabilidade civil.
15. Sem a existência sequer de uma teoria geral dos contratos atípicos para, desta forma, a liberdade das partes na contratação não se manifestar sem limites e tendo em conta a sua função social, este contrato é, de iure constituendo, defensável face aos valores fundamentais que envolve.
16. Algumas das normas imperativas essenciais a fixar passariam, em nossa opinião, pela: redução a escrito da celebração deste contrato; salvo os casos de interdição/tutela, seria o internando/utente o contraente, ainda que coadjuvado por familiar da sua confiança; a enumeração das obrigações principais de cada uma das partes, a enunciação de princípios orientados para a salvaguarda dos direitos fundamentais dos utentes a observar pelo lar na concretização das suas prestações, a consagração expressa de deveres de cuidado e de proteção por parte do lar e as causas de cessação do contrato.
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Código de Processo Civil Código do Notariado
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