DA POSSE E DO USO DE BENS NO CONTRATO DE PARCERIA RURAL
DA POSSE E DO USO DE BENS NO CONTRATO DE PARCERIA RURAL
Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx
Sumário
1 – Das razões do artigo
2 – Da origem dos contratos
3 – Da especificidade do contrato de parceria rural 4 – Da posse do parceiro-outorgante
5 – Do uso do parceiro-outorgado
1 – Das razões do artigo
Tenho pensado direito agrário há várias décadas e em decorrência disso, introjetei e depois lancei aos ventos das publicações verdades satisfativas que me pareceram fortalezas inexpugnáveis.
Mas o filósofo espanhol XXXXXX X XXXXXX já disse: eu sou eu e as minhas circunstâncias.
Pois bem. A circunstância tempo que separa o momento que escrevi e o agora e especialmente o isolamento social imposto pelo Governo como prevenção a corona vírus, me possibilitou revisitar as minhas verdades escritas e confrontá-las com os textos legais que serviram de base.
E de uma certa forma incrédulo e ao mesmo tempo excitado me deparei com uma dúvida: qual a razão que levou o legislador agrário ao nominar o capítulo IV, do Estatuto da Terra, que trata dos contratos agrários, de DO USO OU POSSE TEMPORÁRIA DA TERRA?1
1 Art. 92. A posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude de contrato expresso ou tácito, estabelecido entre o proprietário e os que nela exercem atividade agrícola ou pecuária, sob forma de arrendamento rural, de parceria agrícola, pecuária, agroindustrial e extrativa, nos termos desta Lei.
§ 1° O proprietário garantirá ao arrendatário ou parceiro o uso e gozo do imóvel arrendado ou cedido em parceria.
E Decreto nº 59.566/66, faz a mesma distinção:
Art. 1º O arrendamento e a parceria são contratos agrários que a lei reconhece, para o fim de posse ou uso temporário da terra, entre o proprietário, quem detenha a posse ou tenha a livre administração de um imóvel rural, e aquele que nela exerça qualquer atividade agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa ou mista
Por quê DO USO como instituto jurídico autônomo e por isso diferenciado da posse, se conceitualmente aquele é elemento integrante desta?
2 - Da origem dos contratos
Penso que para se entender bem a real dimensão do contrato de parceria rural é preciso que se reveja de forma rápida a teoria geral dos contratos porque a estrutura que o rege tem especificidades próprias calcadas no dirigismo legislativo, mas que, apesar disso, é incompleta e por isso mesmo há necessidade de aplicação das regras gerais afeitas à toda teoria contratual para enriquecê-los.
Dito isso, tem-se que durante muito tempo, o estudo sobre os contratos estruturou-se na visão exclusiva da ciência jurídica, e não poderia ser diferente, já que é um dos seus mais importantes institutos, embora resistente a mudanças. Dessa forma, a preocupação com sua origem romana sempre foi a base de iniciação de qualquer comentário que procurasse demonstrar uma teoria a seu respeito.
Mas, nos tempos modernos, diante da conclusão insuspeita de que o direito não é uma ilha, já que cresce e se moderniza através de influências externas, é que se buscou alargar o campo de sua abrangência através de estudos correlatos desenvolvidos por ciências propedêuticas importantes no desenvolvimento dessa típica ciência do comportamento, como a política e a sociologia jurídica. Portanto, detectou-se que o contrato, como todo direito, sofria influências e influenciava outros pensamentos catalogados. É dentro dessa nova visão que se traçaram linhas de investigação no sentido de estabelecer como questionamento fundamental, por exemplo, qual seria a verdadeira gênese da relação contratual.
Está demonstrado que a origem do instituto teria ocorrido no direito romano antigo, que o definia como o ato por meio do qual o credor atraía a si o devedor, submetendo-o ao seu jugo, como refém, garantindo com isso o adimplemento do débito assumido, segundo XXXXXX XXXXX XX XXXXX XXXXX0. Para este autor, a ideia romana do contrato surgia de uma obrigação nascida com estrutura essencialmente penal onde a pessoa, e não o patrimônio, é que constituía a responsabilidade pelo débito assumido e, de forma conclusiva, prossegue:
O contrato era o ato constitutivo da obligatio; o nexum, no seu aspecto de fonte da obrigação, ou aquele estado físico de prisão, em que o devedor passava a garantir com sua deditio, ato pelo qual o pai consignava a garantir com sua pessoa a própria dívida. Daí o seu paralelismo com a noxae deditio, ato pelo qual o pai consignava o filho ou o escravo delinquente ao prejudicado pelo ato delituoso. Só depois da responsabilidade transformar- se de pessoal em patrimonial, a princípio em relação a determinados débitos e depois aos de qualquer categoria, é que se começou por distinguir os contratos dos pacta e da conventio, sob o ponto de vista de que só os
2 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxx. Curso de Direito Civil, volume III, 4ª edição, Livraria Freitas Bastos, São Paul, 1964, pg. 18.
contratos pertencentes a uma daquelas categorias previstas no Direito Romano, eram protegidos pelas ações.
Para XXXXXXX XXXXX0, em contraponto à afirmação de XXXXX XXXXX, não estaria no direito romano a origem dos contratos, já que, citando XXXXXXXX, o que existia era um especial vínculo jurídico (vinculum juris) que resultava em uma obrigação (obligatio), dependendo esta, para ser criada, de atos solenes (nexum, sponsio, stipulatio). Embora reconheça que essa ideia tenha sofrido alterações e, romanistas, do porte de RICCOBONO, tenham sustentado que o contrato era acordo de vontades, gerador de obrigações e ações, foi na fase pós- clássica, que se sustentou que a origem das obrigações se encontravam as declarações de vontade das partes.
XXXXX XXXXXX XXXXXXXXX0 comenta que o direito romano não diferenciava a convenção (conventio, cum venire = vir juntos) do pacto (pactum ou pactio, pacis si, = estar de acordo) já que os dois conceitos significavam o acordo de duas ou mais pessoas sobre um objeto determinado, mas que não eram suficientes para criar uma obrigação exigível. No entanto, se a convenção fosse revestida de certas formalidades determinadas por lei, é que surgia o contrato (contractus = unir, estreitar, contrair), porém sempre de forma nominada, específica; não havia, portanto, uma teoria geral dos contratos. Observa ainda o tratadista argentino que o direito romano clássico não conhecia o elemento subjetivo
– acordo de vontades e que isto só foi assimilado mais tarde nos escritos de Xxxxxxxxxx por influência da escola grega. Os contratos eram classificados em quatro categorias: reais (re), verbais (verbis) escritos (litteris) e consensuais.5
Na época do império teriam sido reconhecidos como contratos várias convenções, especialmente aquelas que tinham como base uma prestação de dar ou de fazer a ser cumprida por qualquer das partes. Estes contratos, chamados de inominados, foram classificariam como: 1. do ut des - quando a prestação é um dar e a contraprestação também um dar; 2. do ut facias - quando a prestação é um dar e a contraprestação um fazer; 3. facio ut des - quando a prestação é um fazer e a contraprestação um dar e 4. facio ut fascias - quando a prestação e a contraprestação consistem em um fazer.
XXXX XXXXX0 também apresenta a mesma evolução histórica do contrato no direito romano, salientando que é na época de Xxxxxxxxxx que aparecem
3 GOMES, Orlando. Contratos, 14ª edição, Forense São Paulo, 1994, pg. 6.
4 ITURRASPE, Xxxxx Xxxxxx. Teoria General del Contrato, 2ª edição, Ediciones Jurídicas Orbir, Rosário, Argentina, 1976, pg., 22
5 Acrescenta ainda XXXXX XXXXXX ITURRASPE que os contratos reais eram aqueles em que o consentimento se integrava à tradição da coisa, que o credor efetuava a favor do devedor, ficando, quem a recebia, obrigado a sua restituição. Os contratos reais eram o mútuo, o comodato, o depósito e o empréstimo. Já os contratos verbais tinham palavras solenes que deviam ser pronunciadas pelas partes pare expressar seu consentimento. A estipulação ou stipulacio era contrato verbal por excelência. O contrato escrito se aperfeiçoava por meio de uma inscrição no registro do credor com o acordo do devedor – o nomem transcripticium era o contrato escrito clássico. E, por fim, o contrato consensual que era formado pelo acordo de vontades e tinham no contrato de compre a venda, na locação de coisas, na sociedade e no mandato seus exemplos típicos.
6 XXXXX, Xxxx. Teoria Xxxxxxx xxx Xxxxxxxx, Xxxxxxxx, Xxxxxx X Xxxxxxxxxxxx, Xxxxxx, 0000, pg. 6/11.
em Roma os contratos inominados e que estes constituíam uma categoria intermediária entre os contratos reais e os chamados consensuais
XXXXXX XX XXXXX XXXXX0, no estudo que faz da evolução do contrato como instituto jurídico, afirma que, na Idade Média, teria ele sofrido um duro golpe pela ação econômica e política dos senhores feudais, mas que, no entanto, caberia à Igreja, apesar de manter a estrutura clássica do contrato romano, nele introduzir o dogma da fé jurada. A clareza de seu texto merece reprodução:
A concepção romana de contrato, com essa separação entre contrato e a conventio, tomando a sua defesa por meio de ações dependentes do respeito a determinadas formas, recebeu golpe profundo na Idade-Média. O sistema feudal era econômico e político. O senhor feudal fazia com cessões, de onde a criação do instituto do precário, deferido a quem o suplicava. Entretanto a Igreja, através dos canonistas, conseguiu manter a noção de contrato, reforçando-a e dignificando-a de moda a polir a própria noção romana, mediante o afastamento da clássica distinção entre contrato e conventio. O contrato assumiu, na concepção cristã, o caráter de um instituto decorrente da fé jurada, fundado no cumprimento do que se prometera perante Deus e a Igreja. Não havia mais espaço para a distinção entre pactos nus e contrato; a obrigatoriedade deste se impunha, fosse qual fosse a natureza da convenção. Todavia, força é notar que nessa concepção canônica não pairava qualquer sintoma de futura ideia de autonomia da vontade, pois era inspirada no princípio da crença na palavra empenhada e na obrigação de evitar a mentira. Destarte, do ponto de vista do plano social, os canonistas chegaram ao mesmo objetivo mais tarde atingido pelos partidários da autonomia da vontade e da liberdade de contratar, e sem os pecados do excesso por estes cometidos.
XXXXXXX XXXX e XXXXX XXXXXXXX XXXXXXX0 comentam que
o contractus e a conventio romanos sofreram profundas alterações nas suas concepções originais e passaram a conceituar o mesmo instituto jurídico, mas ainda sem a estrutura conceitual moderna de embutir uma autonomia de vontade. O contractus na Idade Média passou a ser um instrumento de fé jurado perante Deus e a Igreja e embutia a clara ideia religiosa de se coibir a mentira com a prevaleça da palavra dada
XXXXX XXXXXX ITURRASPE9 diz que os glosadores, inicialmente, e os comentaristas ou pós-glosadores, depois, juntamente com os Padres da Igreja e os canonistas, ao reintroduzirem o estudo do direito romano, sustentaram uma nova concepção do pacto desprovido de forma, que, para os romanos, não produzia ação, para entender que verdadeiramente ele pressupunha uma obrigação jurídica vinculando-a, no entanto, a uma obrigação moral, imputando àquele que a descumprisse a pecha de mentiroso e, por consequência, pecador. Os costumes mercantis, ainda salienta o tratadista argentino, decorrente do tráfico cada vez mais intenso entre os países, também constituíram forte fator para transformar a
7 XXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx. Ob. cit. pág. 18.
8 XXXX, Orlando e XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx – Contratos, teoria, prática e jurisprudência, vol. 1, Edição Universitária de Direito, São Paulo, 1980, pág. 6.
9 Ob. citada, pag. 27.
exigência formal dos romanos e outorgar ao acordo a força de contrato. Mas que teria sido a Escola do Direito Natural, representada por GROCIO e PUFFENDORF, e a Escola Holandesa, de VOET, já no Século XVII, a outorgar obrigatoriedade aos pactos e às convenções, equiparando-as ao contrato.
Em uma visão mais histórica do que sociológica, porém falando sobre a origem dos contratos, diz XXXXXXX XXXX, que:
Na realidade, o contrato nasceu formalista e típico, no Direito Romano, para transformar-se num instrumento válido pelo fato de ser uma manifestação de vontade do indivíduo e, em consequência, um instrumento vinculatório, que fazia papel da lei entre as partes, na concepção dos enciclopedistas que inspiraram a Revolução Francesa.
Por longo tempo, entendeu-se que os pactos deviam ser respeitados (pacta sunt servanda), pois refletiam um ato de liberdade individual. O contratual, pela sua própria natureza, por decorrer de um acordo de vontades, devia ser considerado justo. Consequentemente, o contrato era intangível, devendo ser executado, custasse o que custasse, ressalvados tão-somente os casos excepcionais da força maior e do caso fortuito.
Podendo transferir a propriedade no sistema franco-italiano, ou não podendo fazê-lo no Direito alemão e na legislação brasileira, o contrato foi, certamente, o grande instrumento jurídico do capitalismo incipiente que dominou o mundo até o fim da Primeira Guerra Mundial.
Com o advento do comunismo, na Rússia, e a Constituição de Weimar, na Alemanha, o sopro do socialismo, sob as suas diversas formas e com densidades distintas, abalou, em parte, a mística contratual sedimentada pelo Código de Napoleão, sem que, todavia, o contrato perdesse sua função e utilidade.
Aos poucos, surgiram as limitações tanto à liberdade de contratar, ou de não contratar, quanto à liberdade contratual, ou seja, à fixação do conteúdo do contrato. Embora se mantivesse, como regra geral, a onipotência da vontade individual, com a possibilidade de criação dos mais variados contratos atípicos e mistos, o legislador, ampliando a área da ordem pública econômica, foi restringindo o conteúdo da autonomia da vontade.
Em decorrência do crescimento populacional nos dois últimos séculos de vida da humanidade, gerando uma iteração social muito intensa e, por via de consequência, novas formas de relações jurídicas, é que houve necessidade de criação de novos ramos do direito positivo para prevenir e acomodar os conflitos daí resultantes.
Dessa forma, no campo dos contratos, aquilo que vinha sendo pautado de maneira clássica e através de uma visão uniforme sedimentada na pregação de sistema único contratual de conteúdo imutável criado pelo direito romano, onde o predomínio da autonomia de vontade se alicerçava e excluía qualquer outra intervenção externa, ramificou-se com o surgimento de outros sistemas contratuais.
Isso ocorreu, primeiramente, pela constatação da necessidade de uma presença forte do Estado no gerenciamento das intensas relações sociais e, em segundo lugar, pela constatação de existência de fatores exógenos causadores de desequilíbrios econômicos, financeiros e sociais a influenciar a vontade de determinadas partes na formação de alguns contratos. Numa visão essencialmente jurídica, o contrato deixou o direito privado e passou a sofrer ingerência do direito público.
Em decorrência disso, aquilo que se inseria e se exauria como conteúdo de direito civil, e que por isso mesmo limitava-se em uma teoria contratual única, já que abrangia todos os tipos de contratos, passou a integrar, agora, estruturas jurídicas autônomas e diferenciadas, como são as de direito comercial, de direito do trabalho e de direito administrativo.
Essas modificações inicialmente ocorridas no direito europeu, embora de forma propositalmente retardada, também se verificam no direito brasileiro. O Código Civil de 1916, cartilha de direitos que pautou a vida de todo cidadão residente no território nacional por quase noventa anos, primou por tentar perpetuar, entre outros institutos, a ideia contratual clássica do direito romano.
Como a criação do direito positivo tem sempre como fato orientador o momento político anterior que o inocula e o dirige, é possível se afirmar que o processo legislativo que resultou no Código Civil revogado foi lastreado por um fator político importante: a quase totalidade do Congresso Nacional que o discutiu e o aprovou era constituída ou por senhores de terras ou seus representantes, todos defensores das ideias de proteção absoluta ao indivíduo, à sua propriedade e aos seus contratos. Essas ideias aqui admitidas como representativas da modernidade jurídica, na própria França, berço do nosso Código Civil, a lei civil idealizada por Xxxxxxxx e calcada na ideia romana, já sofria duras e veementes críticas, por desconsiderar fatores externos na formalização de institutos jurídicos, especialmente dos contratos.
É possível se afirmar com segurança, que os contratos da atualidade pouco conservam daqueles conhecidos pelo direito romano. A ingerência contratual feita pelo estado moderno na busca do bem-estar social criou princípios inovadores impossíveis de serem percebidos pelos juristas de Roma, que não dispunham do conceito de estado como atualmente é conhecido. A vontade, como elemento representativo e único do contrato, era o universo que limitava os seus pensamentos.
Função social dos contratos, da boa-fé objetiva e probidade são princípios modernos no campo das relações contratuais civis. No entanto, além delas, novas circunstâncias na vida moderna surgiram exigindo do direito regras específicas próprias, como é a necessidade de predomínio clausular da Administração Pública frente ao particular, possibilitando a inclusão com legitimidade de cláusulas exorbitantes, nas relações administrativas; da proteção ao trabalhador, nas relações de trabalho e agrária.
A ingerência de vários fatores externos, mesclada com a autonomia de vontade, criou estruturas jurídicas contratuais próprias a impor que, ao se trabalhar com elementos da uma teoria geral, mesmo no Brasil, se enfrente aquilo que é próprio de cada um deles.
Dois ramos do direito, direito civil e direito agrário, bem demonstram e evolução e a autonomia do pensamento jurídico diferenciado sobre os contratos.
No direito comparado é possível encontrar-se atualmente duas correntes que interpretam diferentemente o contrato civil.
A primeira delas, tem por base o Código Civil Francês (art. 1101) que, remontando à origem romana, distingue-o da convenção. Aquele é uma espécie partida do gênero-convenção e se destina a formar alguma obrigação. Já esta, tem por objeto formar entre duas ou mais pessoas alguma obrigação tendente a resolver ou modificar alguma outra pendente.
Segundo XXXXXX XXXXX XX XXXXX XXXXX0 o conceito francês de contrato inspirou-se em POTHIER que repeliu a noção de contrato dada pelos intérpretes do direito romano por considerar a regra ex nudo pacto actio non nascitur em oposição ao Direito Natural.
Essa foi também a distinção adotada por TEIXEIRA DE FREITAS no seu Esboço que, desprezado no Brasil, redundou no Código Civil Argentino, art. 1137.
A segunda corrente, liderada por XXXXXXX, já define o contrato como o concurso de mais de uma pessoa em uma concorde declaração de vontades pela qual se determinam as suas relações jurídicas. Com essa conceituação, a convenção é um contrato, não importando seja ela de direito internacional, direito público ou privado.
No entanto, nos últimos tempos, a tendência dos contratos civis é a de abrandar o princípio da autonomia de vontade, em que a vontade dos contratantes se constituía no único fator de criação do contrato, gerando tamanha obrigação entre os envolvidos que passava a existir uma verdadeira lei entre eles, para instituir, no mesmo pé de igualdade da vontade, princípios como o da função social, da boa-fé objetiva e da probidade.
O Código Civil Brasileiro de 2003, instituído pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, é o último exemplo conhecido dessa evolução contratual. Os contratos civis no Brasil deixaram o campo da liberdade contratual instituído pelo Código Civil de 1916 e ingressaram na nova era de mitigação da vontade pela coexistência de novos princípios.
O Direito Agrário é, por força constitucional (art. 22, inciso I, da CF de 1988), ramo autônomo do direito brasileiro. Essa autonomia surgiu com a Ementa Constitucional nº 10, de 10.11.1964, que outorgou, no art. 5º, inciso XV, letra “a”, da Constituição de 1946, competência à União para legislar, entre outros, sobre direito agrário.
E autonomia de um ramo do direito se explica pela presença de princípios e regras próprias. Portanto, ao regrar o direito agrário sobre contratos, o fez de forma a impor tais especificidades. E é por isso que os contratos agrários seguiram o mesmo caminho dos contratos de trabalho, já que buscaram intervir nas relações contratuais do campo de forte cogente e com o nítido propósito de praticar justiça social.
Aquilo que era pautado pelo Código Civil de 1916 passou a ter disposição específica através do Estatuto da Terra, pelos artigos 92 a 128, da Lei nº4.504, de 30 de novembro de 1964, e regulamentados pelo Decretoº 59.566, de 14 de novembro de 1966.
Dessa forma, o Estatuto da Terra trouxe uma ideia radical de mudanças na estrutura do campo. Assim, não se limitou ele tão-somente a distribuir terras pelo sistema de reforma agrária, a tributar mais rigorosamente as propriedades improdutivas ou a colonizar áreas inexploradas. Procurou também regrar as relações contratuais advindas com o uso ou posse dessas terras. A ideia política traduzida para o direito consistiu na imposição de um sistema fundiário.
Antes dele, repete-se, essas relações eram regidas pelo Código Civil, onde predominava a autonomia de vontade. Isso significa dizer que nenhum fator externo influência, direta ou indiretamente, a vontade de quem contrata. A liberdade individual de contratar na visão do código é circunstância soberana anterior e superior a qualquer outra. Tanto que duas vontades conjugadas num objetivo comum formam um vínculo tão forte que cria uma lei entre elas. Na atividade agrária, a aplicação desta plenitude de vontade consistia, por exemplo, no fato de o proprietário rural e o homem que alugasse suas terras poderem livremente pactuar um contrato de meação. Nesse sentido, era plenamente válido o que o proprietário entrasse apenas com a terra, e o locatário, com todo o trabalho e despesa com a lavoura e ao final da safra fosse o lucro repartido meio a meio. A vontade que ambos estabeleceram, os vinculava e o contrato tinha que ser cumprido.
Todavia, com a vigência do Estatuto da Terra, o Código Civil deixou de ter aplicação nas relações agrárias, pois a nova disposição legal retirou das partes muito daquilo que a lei civil pressupõe como liberdade de contratar. Substituiu, portanto, a autonomia de vontade pelo dirigismo estatal. Ou seja, o Estado passou a dirigir as vontades nos contratos que tivessem por objeto o uso ou posse temporária do imóvel rural. A ideia implantada pelo legislador residiu na admissão de que o proprietário rural impunha sua vontade ao homem que utilizasse suas terras de forma remunerada. E essa imposição sub-reptícia retirava deste último a liberdade de contratação, pois ele apenas aderia à vontade maior do proprietário. A figura interventora do Estado era, assim, necessária para desigualar essa desigualdade, com uma legislação imperativa, porém de cunho mais protetivo àquele naturalmente desprotegido.
É possível concluir do que foi acima dito, que os contratos agrários surgiram com uma conotação visível de justiça social e que na análise integrada de seus dispositivos nitidamente se observa a proteção contratual da maioria desprivilegiada, a detentora do trabalho e que vem possuir temporariamente a terra de forma onerosa, em detrimento da minoria privilegiada, os proprietários ou possuidores rurais permanentes.
O sistema contratual presente no direito agrário continua íntegro, embora o Código Civil de 2003 tenha abraçado como princípio norteador (art. 421) aquilo que foi de forma não expressa mais visível em várias de suas disposições uma constante na preocupação do legislador agrário – a função social dos contratos.
A se confirmar a tendência atual de retorno moderado ao princípio da autonomia de vontade, como ocorreu na reforma trabalhista ditada pela Lei nº 13.467, de 14 de julho de 2017, ter-se-á alterações na legislação agrária.
3 – Da especificidade do contrato de parceria rural
No capítulo anterior, procurei me deter com certa profundidade sobre a origem dos contratos com o intuito de demonstrar a perenidade deste instituto e que, salvo a inclusão de temas contemporâneos, ele continua tão presente na vida humana como antes.
Portanto, aquilo que não for elemento característico de sua existência, aplica-se ao contrato de parceria rural, a mesma teoria geral aplicável a todos os demais.
Dito isso, embora o contrato de parceria rural mantenha a estrutura clássica da bilateralidade, os contratantes titulam direitos diferenciados sobre os bens que constituem o objeto desse contrato.
O parceiro-outorgante detém a posse dos bens que cede para a
parceria!
E o parceiro-outorgado, apenas os usa!
Isso é bem perceptível na Lei nº 11.443, de 05 de janeiro de 2007,
que redefiniu o conceito de parceria rural, modificando o art. 4º do Decreto nº 59.566, de 12.11.66, para adaptá-lo à realidade moderna, bem demonstra esta coexistência, com a seguinte redação:
Art. 96 -
§ 1º - Parceria rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso específico de imóvel rural, de parte ou partes dele, incluindo, ou não, benfeitorias, outros bens e/ou facilidades, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa vegetal ou mista; e/ou lhe entrega animais para cria, recria, invernagem, engorda ou extração de matérias-primas de origem animal, mediante partilha, isolada ou cumulativamente, dos seguintes riscos:
I – Caso fortuito e de força maior do empreendimento rural;
II – Dos frutos, produtos ou lucros havidos nas proporções que estipularem, observados os limites percentuais estabelecidos no inciso VI do caput deste artigo;
III – variações de preço dos frutos obtidos na exploração do empreendimento rural.
§ 2º - As partes contratantes poderão estabelecer a prefixação, em quantidade ou volume, do montante da participação do proprietário, desde que, ao final do contrato, seja realizado o ajustamento do percentual pertencente ao proprietário, de acordo com a produção.
Ou seja, o parceiro-outorgante entrega o imóvel rural ou parte deles para uso específico do parceiro-outorgado consistente na exploração agrícola, pecuária, agroindustrial.
A entrega animais para cria, recria, invernagem, engorda ou extração de matérias primas de origem animal caracterizam espécies tópicas de uso, já que o parceiro-outorgado não vai poder obter ganhos dessas atividades ou deles dispor.
Ora, se o parceiro-outorgado vai apenas usar o imóvel rural para explorar a agricultura, a pecuária ou a agroindústria ou vai criar, recriar, invernar, engordar ou extrair matérias primas de origem animais, ele não tem a posse de tais bens.
contrato!
Esta continua com o parceiro-outorgante.
Portanto, são dois direitos bem distintos existentes dentro desse
4 – Da posse do parceiro-outorgante
Para procurar fixar o que significa a posse dos bens do parceiro- outorgante cede para objetivar o contrato de parceria ruralo, penso que é preciso se fazer uma retrospecção sobre este instituto.
Sabe-se que, tanto quanto o contrato, a posse é um também um clássico tema de direito. E não é em vão. Ela é a realidade da vida tornada direito: o homem precisa de determinado objeto por necessidade ou por puro prazer.
E a história tem demonstrado isso. Muitas são as descobertas arqueológicas de fósseis humanos de centenas e até milhares de anos, onde se evidencia claramente uma vinculação de posse destes indivíduos em relação a objetos e áreas.
Quem primeiro se manifestou de forma escrita sobra a posse e sua diferença da propriedade foram os romanos com a promulgação da Lei das XII Tábuas: propriedade é o ius utendi, fruendi et abutendi, isto é, o direito de usar, gozar e tirar o máximo proveito da coisa. É na proteção destes direitos com os interditos que surge a figura da posse. Hoje, não se tem mais dúvida que posse é a exteriorização da propriedade e que o possuidor é aquele que age como se fosse
proprietário. O Código Civil trata da posse no art. 1.19610 quando afirma que possuidor é aquele que exerce, de fato ou não, algum (qualquer um) dos poderes inerentes à propriedade. Já o art. 1.228 11diz que proprietário é aquele que pode usar, gozar, dispor ou pode reaver a coisa.
Em outras palavras: usar é servir-se das utilidades da coisa; gozar a coisa é receber os frutos; dispor é o direito de se desfazer da coisa, como vender, doar, destruir, abandonar, dar em garantia ou pagamento e reaver é o direito de ir atrás, o direito de retomar a coisa.
A propriedade imóvel precisa de ato solene para existir como bem jurídico, consistente na escritura pública e seu registro no Registro de Imóveis; a posse é mera situação de fato.
Para bem caracterizar: a propriedade pode se apresentar de várias formas. É chamada de plena ou alodial a propriedade em que o proprietário concentra em suas mãos todos os poderes inerentes; limitada ou restrita, em que algum dos poderes inerentes a propriedade não está nas mãos do proprietário em razão de um ônus ou de um direito real sobre coisa alheia. É exemplo o usufruto em que o nu- proprietário não pode usar e gozar ou o titular de direito de habitação, que só poderá usar para moradia; a propriedade resolúvel está sujeita à termo ou à condição resolutiva, art. 1.359 do Código Civil. Como exemplo a cláusula de retrovenda, doação com cláusula de reversão e alienação fiduciária. A retrovenda, pelo art. 505, tem que coisa imóvel pode recobrá-la no prazo máximo de decadência de 3 anos.
Questão importante é a distinção entre posse e detenção. O detentor não tem posse, ou seja, ele não pode se valer da defesa possessória. Falta-lhe legitimidade e não vai conseguir adquirir a propriedade pela usucapião. O exemplo clássico da detenção é o caseiro, ou legalmente chamado de fâmulos da posse pelo art. 1.198, que ainda menciona os atos de mera permissão ou tolerância e os atos violentos ou clandestinos, como formas que não são possíveis adquirir a propriedade pela usucapião.
Sendo assim, o primeiro caso mostra uma relação de dependência em nome de outro, ele recebe ordens e instruções de outras pessoas, fâmulos da posse são os servos da posse aquele que conserva a posse em nome de outro, podem se valer da nomeação em autoria. A permissão pressupõe uma autorização enquanto que a tolerância ocorre sem autorização, mas ciente que está sendo tolerada.
Situação interessante está em se definir se o ato violento e o clandestino geram posse. Ora, ato violento é o uso da força e ato clandestino, entende-se como ocultos, as escusas. Mas, cessada a violência ou a
10 Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.
11 Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
clandestinidade surgirá a posse que se tornar velha depois de ano e dia. Exemplo típico é a usucapião, já que, cessada a violência e a clandestinidade, começa a contar o prazo a sua configuração. Vale mencionar que como bem público não pode ser objeto de usucapião, a invasão de bem público não vai caracterizar posse.
No direito moderno, a posse ganha importância quase igual à propriedade, especialmente quando se trata da posse sobre bem imóvel, basta que se verifique que a posse aquisitiva da propriedade, a usucapião, já foi de 30 (trinta) anos como previa a redação originária do CC de 1.916, e hoje, especialmente para a posse pro labore ela está reduzida a meros 5 (cinco) anos, como dispõe o art. 191 da Constituição Federal. Naturalmente que isso se deve à influência do princípio da função social da propriedade. Assim, se a propriedade tem obrigação, a posse, como estrutura decorrente, também o terá.
Mas, até por razões de ordem histórica como é a reforma agrária, é a posse agrária a que mais tem sofrido modificações quer como forma aquisitiva de propriedade, quer, simplesmente, pelo seu uso.
A posse regrada pelo direito civil se legitima apenas ficando à mercê do possuidor, desde que com isso ela exerça a vontade de verdadeiro dono. Não exige efetividade.
Tome-se, por exemplo, a posse para fins de usucapião regida pelo art. 1.238 do Código Civil, quer seja de imóvel rural ou urbano. No dispositivo não há a exigência de que o possuidor deva residir no imóvel urbano ou, na posse de um imóvel rural, explore uma atividade rural.
O texto citado está assim redigido:
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Assim, basta possuir como seu um imóvel que o possuidor se legitima para adquirir a propriedade.
Mas, na posse agrária há necessidade que o possuidor demonstre que (a) - explora uma atividade tipicamente rural; (b) - de forma racional e adequada e que (c) - respeita o meio ambiente e às relações de trabalho.
Somente assim se cataloga como titular de uma boa posse agrária.
Dessa forma, a posse do parceiro-outorgante se reveste destas
características
Ficou demonstrado que a posse agrária tem um plus. Não basta o
ânimo de dono do possuidor para se dizer tipificada. Ela exige efetividade que se consubstancia na exploração de uma atividade rural de forma racional e adequada e desde que respeite o meio ambiente e as relações de trabalho.
Mas a posse é um instituto umbilicalmente atrelado à propriedade. Ou ela, como estrutura autônoma, a substitui, como no caso da posse originária da usucapião, ou ela é uma decorrência derivada, como no caso do arrendamento e da parceria rural e da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária.
O certo é que, se a propriedade imóvel no Brasil tem uma função social, ou uma obrigação ínsita, como bem definiu a Constituição Alemã de Weimar, em 1919 ao dizer que a propriedade obriga, tudo dela decorrente estará afetado por este princípio.
Portanto, não é difícil concluir que a posse agrária no Brasil está vinculada à função social da propriedade, de onde é possível se afirmar que a posse agrária tem uma função social a ser respeitada, quer ela seja criadora da propriedade, como na posse chamada de, quer ela seja derivada.
O ter e não usar no campo vem cedendo espaço para o usar sem
ter.
Especificamente quanto à posse na parceria rural o parceiro-
outorgante tem o direito de posse direta sobre os bens que entregar ao usuário parceiro-outorgado, já que nesse contrato ele não é um mero expectador. É um parceiro, um sócio, e, portanto, parte presente na relação contratual, inclusive podendo fiscalizar o trabalho do parceiro-outorgado, exigindo que ele se pauta nos termos do contrato. Dessa forma, querer saber o que seus bens produziram é direito inerente a essa posse. E em decorrência dele pode até pedir que o parceiro- outorgado lhe preste contas.
Mas ele precisa atender as obrigações do art. 40, do Decreto nº 59.566/66, aplicáveis por subsidiariedade do caput do art. 48 do mesmo decreto, para ser titular da posse de boa fé.
Os dispositivos legais estão assim postos:
Art. 48. Aplicam-se à parceria, nas formas e tipos previstos no Estatuto da Terra e neste Regulamento, as normas estatuídas na Seção I deste Capítulo, e as relativas à sociedade, no que couber (art. 96, VII do Estatuto da Terra).
Art. 40. O arrendador é obrigado:
I - a entregar ao arrendatário o imóvel rural objeto do contrato, na data estabelecida ou segundo os usos e costumes da região;
II - a garantir ao arrendatário o uso e gozo do imóvel arrendado, durante todo o prazo do contrato (artigo 92, § 1º do Estatuto da Terra);
III - a fazer no imóvel, durante a vigência do contrato, as obras e reparos necessários;
IV - a pagar as taxas, impostos, foros e toda e qualquer contribuição que incida ou venha incidir sobre o imóvel rural arrendado, se de outro modo não houver convencionado.
Havendo esbulho sobre os bens praticado por terceiro, o parceiro- outorgante tem o direito de se utilizar dos interditos possessórios. O parceiro- outorgado, como mero usuário, não tem essa legitimidade.
A previsão do uso dos interditos está no art. 1.210 do Código Civil,
nestes termos:
Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado.
E o art. 567, do CPC, estabelece a forma:
Art. 567. O possuidor direto ou indireto que tenha justo receio de ser molestado na posse poderá requerer ao juiz que o segure da turbação ou
esbulho iminente, mediante mandado proibitório em que se comine ao réu determinada pena pecuniária caso transgrida o preceito.
De outro lado, em decorrência da posse dos bens, o parceiro- outorgante pode opor contra o parceiro-outorgado, não só as questões vinculadas ao próprio contrato de parceria rural, como também aquelas decorrentes do mau uso dos bens cedidos ao parceiro-outorgado, sem que nesse caso importe na discussão do contrato em si.
Observe-se a seguinte situação: o parceiro-outorgado cede à terceiro a título oneroso ou não bens que o parceiro-outorgante cedeu como objeto do contrato de parceria, sem previsão contratual. O parceiro-outorgante pode considerar esse fato como passível de rescisão contratual. Todavia, em decorrência de continuar titular da posse de tais bens, pode ele tão só interpor contra o terceiro interdito possessório para reaver tais bens, buscando ou não indenização do parceiro-outorgado por esse fato.
Repetindo o que foi dito no parágrafo anterior.
A entrega animais para cria, recria, invernagem, engorda ou extração de matérias primas de origem animal caracterizam espécies tópicas de uso, já que o parceiro-outorgado não vai poder obter ganhos dessas atividades ou deles dispor.
Ora, se o parceiro-outorgado vai apenas usar o imóvel rural para explorar a agricultura, a pecuária ou a agroindústria ou vai criar, recriar, invernar, engordar ou extrair matérias primas de origem animais, ele não tem a posse de tais bens.
Esta continua com o parceiro-outorgante.
5 – Do uso do parceiro-outorgado
Relembrando, na parceria rural coexistem dois institutos jurídicos distintos quanto aos bens que integram esse contrato: a posse do parceiro- outorgante e o uso do parceiro-outorgado.
Mas o que é o uso agrário?
O uso tem origem antiquíssima e sua gênese remonta ao Direito Romano, cuja grafia original era usus, ou fructus sine usus, sendo derivado do usufruto.
Como instituto jurídico em seus primórdios, o usus significava a possibilidade de usar uma res sem receber os frutos, motivo pelo qual era empregado em coisas que não produziam qualquer tipo de fruto.
Segundo a doutrina, o usus, em seu significado originário, era o direito de usar uma coisa sem receber os frutos. Era dirigido a coisas que não o produziam, não se levando em conta a possibilidade de auferir qualquer fruto civil. Podia ser constituído sobre uma biblioteca ou escravo, por exemplo, e, se constituído sobre uma casa, dele estava excluído o direito de locação. A jurisprudência admitiu que, sendo constituído sobre fundo rústico, o beneficiário pudesse ali estabelecer pequena horta e pomar, utilizando-se da lenha dentro de certos limites.
Desse entendimento fica que do fructus sine usus, ou literalmente “uso sem fruição”, o exercente do ius utendi, ou usuário, poderia utilizar-se da coisa no que assim fosse suscetível, por exemplo, extrair frutos naturais da coisa, mas não poderia alugar esta coisa, pois o preço advindo da locação seria fruto nascido desta coisa, ou seja, o usuário, com a locação, iria fruir da coisa o que não é permitido no regramento deste instituto.
À título de informação, conquanto a historiografia jurídica ainda considere objeto de controvérsia, no fructus sine usus, ocorria a cessão de uso a uma pessoa e o gozo dos frutos era destinado a outrem.
Nosso Código Civil de 1916 em seu art. 742 manteve o instituto do uso com a mesma utilidade e características que previa a lex romana:
Art. 742 - O usuário fruirá a utilidade dada em uso, quanto o exigirem as necessidades pessoais suas e de sua família.
O atual Código Civil manteve em relação ao direito real de uso a mesma redação que o Código de Beviláqua com exceção do termo “fruirá” que foi substituído por “usará”, como se observa nos artigos 1.412 e 1413.
O uso, em verdade é um usufruto de menor âmbito ou também chamado um usufruto anão, reduzido ou restrito. Enquanto o usufrutuário tem o ius utendi et fruendi, o usuário tem apenas o ius utendi, ou seja, o simples direito de usar da coisa alheia.
É bom se ter presente que o direito real de propriedade liga um determinado sujeito de direito a uma coisa ou bem, e esta ligação é justamente chamada de direito real, sendo a espinha dorsal do direito privado.
Mas, há muito tempo o direito percebeu que seria possível duas ou mais pessoas titularem no mesmo grau, o mesmo direito real de propriedade, quando então surgiu a noção de condomínio. Mas o direito foi além, e percebeu que seria útil, vantajoso, valioso e completamente lícito que as faculdades que o direito real de propriedade conferem normalmente a uma pessoa poderiam ser distribuídas para demais sujeitos de direito em qualidades jurídicas diferenciadas, portanto não mais como condôminos, mas sim na existência de um sujeito na qualidade de proprietário e de outro sujeito na qualidade de exercente de um direito real sobre a coisa que não lhe pertence (alheia).
Não custa lembrar que as faculdades que o direito real de propriedade oferece ao seu titular são a possibilidade deste usar, gozar e dispor da coisa além de poder reaver esta das mãos de quem quer que injustamente a detenha (direito de sequela) e é justamente a divisão dessas faculdades, na figura de mais de um sujeito, que surge o direito real sobre coisa alheia.
Como o uso não foi regrado pelo legislador agrário, aplica-se de forma subsidiária o que dispuser a lei civil, conforme previsão do art. § 9º, do art. 92 do Estatuto da Terra, e art. 88, de Decreto nº 59.566/66, que diz:
§ 9º Para solução dos casos omissos na presente Lei, prevalecerá o disposto no Código Civil.
Art. 88. No que forem omissas as Leis nº 4.504/64, 4.947/66 e o presente Regulamento, aplicar-se-ão as disposições do Código Civil, no que couber.
E na lei civil tem-se a figura do usuário que detém a faculdade de usar da coisa, mas os frutos advindos daquele bem não lhe pertencerão, mas, sim, ao legítimo proprietário da coisa que lhe cedeu o bem. Somente remanescerá ao usuário os frutos necessários para sua mantença e os de sua família.
Dispõe o art. 1.412 do Código Civil:
Art. 1.412 - O usuário usará da coisa e perceberá os seus frutos, quanto o exigirem as necessidades suas e de sua família.
§ 1º Avaliar-se-ão as necessidades pessoais do usuário conforme a sua condição social e o lugar onde viver.
§ 2º As necessidades da família do usuário compreendem as de seu cônjuge, dos filhos solteiros e das pessoas de seu serviço doméstico.
As necessidades pessoais aludidas pelo legislador na cabeça do dispositivo deverão ser avaliadas em conformidade com a condição social ostentada pelo usuário e o lugar em que ele vive, por isso é correto afirmar que o uso é
mutável, podendo ser alargado ou estreitado caso haja o aumento ou diminuição das necessidades pessoais do usuário. Como a norma jurídica fala em necessidades pessoais, estão excluídas quaisquer outras.
O art. 1.412, §2º, restringe o conceito de família do usuário a: seu cônjuge, seus filhos solteiros e às pessoas de seu serviço doméstico. Entretanto, deve-se, levando-se em conta a mais moderna visão do Direito Civil - Constitucional, considerar o rol deste parágrafo como sendo exemplificativo e não taxativo.
Aliás, em uma interpretação civil-constitucional, a família a que alude o art. 1.412 do Código Civil não mais será restrita à família nuclear patrimonializada do casamento, assumindo todas as outras formas de relações humanas pautadas pela afetividade e estabilidade. Para além do casamento, da união estável e da família monoparental.
E o Decreto nº 59.566/66, no § 1º, do art. 40, especificou que o parceiro-outorgante deverá assegurar ao parceiro-outorgado que residir no imóvel, e para atender o uso exclusivo de sua família, casa de moradia higiênica e área suficiente para horta e criação de animais de pequeno porte.
O artigo tem esta redação:
Art. 48.
§ 1º Além das obrigações enumeradas no art. 40, o parceiro-outorgante assegurará ao parceiro-outorgado que residir no imóvel rural, e para atender ao uso exclusivo da família deste, casa de moradia higiênica e área suficiente para horta e criação de animais de pequeno porte (art. 96, IV, do Estatuto da Terra ).
Ao se analisar o instituto do uso no direito civil, se observa que, como direito real sobre coisa alheia, ele impõe alguma restrição ao sujeito proprietário da coisa em benefício do usuário, durante a vigência do título que constitui o uso.
O direito real de uso pode recair tanto sobre res móveis como imóveis, se for móvel a maioria da doutrina entende não poder ser fungível, nem consumível.
O direito real de uso pode ter como objeto tanto as coisas móveis como imóveis. Se recair sobre móvel, diz a doutrina, não poderá ser fungível nem consumível.
Todavia, há também o consenso de que são aplicáveis ao uso, no que não for contrário à sua natureza, “as disposições relativas ao usufruto”, como expressamente estatui o art. 1.413 do Código Civil. Por essa razão, alguns autores admitem a incidência do uso sobre bens móveis consumíveis, caracterizando o quase-uso, a exemplo do quase-usufruto. O usuário adquiriria a propriedade da coisa cujo uso importa consumo e restituiria coisa equivalente.
Enumeram-se, dentre os direitos do usuário, a fruição e utilização da coisa com a finalidade de atender as necessidades do usuário e de sua família, não podendo perceber da coisa qualquer fruto. Por decorrência do direito ora aduzido, pode o usuário praticar todos os atos imprescindíveis à satisfação de suas necessidades e às de sua família, mas nunca comprometendo a substância e a destinação do bem. O usuário ainda pode melhorar a coisa, efetuando benfeitorias, tal como administrar o bem onerado.
De outro modo, computam-se dentre os deveres do usuário a conservação da coisa como se fosse sua, agindo com diligência e zelo, para que possa restituí-la como recebeu. É defeso ao usuário engendrar obstáculos que dificultem ou impeçam o exercício dos direitos do proprietário. Operado o lapso temporal concedido, incumbirá ao usuário restituir a coisa, uma vez que o usuário é caracterizado por sua temporalidade. A posse precária do usuário acarretará sua responsabilidade por perdas e danos a que sua mora der ensejo.
O uso dos bens pelo parceiro-outorgado no contrato de parceria rural, tem especificidades diferentes daqueles dispostas no Código Civil.
Isso porque não se pode esquecer que esse uso tem origem em contrato com características próprias.
Inicialmente o uso é específico. Ou seja, ele se destina a uma
atividade rural.
Não tendo a posse dos bens objeto da parceria rural, como já foi dito
no tópico anterior, o parceiro-outorgado não tem direito aos interditos possessório. E se os bens que usa sofrer qualquer esbulho, deverá comunicar esse fato ao parceiro-outorgante, o titular da posse dos bens.
Embora o parceiro-outorgado não possa usar dos interditos possessórios contra terceiros ou contra o parceiro-outorgante já que não detém a posse dos bens, havendo por parte deste ato atentatório ao uso dos bens pelo parceiro-outorgado, poderá este ou buscar rescindir o contrato de parceria rural por infração contratual cumulando tal pedido com indenização pelos prejuízos sofridos ou se utilizar de ação cominatória ou ordinária de obrigação de não-fazer cumulando com multa e pedido de tutela antecipada, no caso de o parceiro-outorgante não respeitar o direito de uso previsto no contrato do parceiro-outorgado.
Se o obstáculo ao seu uso é praticado por terceiro, embora não possa se utilizar dos interditos possessórios, pode também se utilizar da ação cominatória ou ordinária de obrigação de não-fazer cumulada com multa e pedido de tutela antecipada.
O ajuizamento de ação possessória pelo parceiro-outorgado contra o parceiro-outorgante ou terceiro caracteriza ausência de legitimidade ou de interesse processual, com base no art. 485, inciso VI, do CPC, possibilitando que o juiz extinga o processo sem resolução de mérito.
1 – Advogado e sócio fundador do XXXXXXXXXX XXXXXX Advogados Associados e inscrito na OAB/RS nº 6.103, que foi reativada com a aposentadoria do autor na condição de desembargador do TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, depois do exercício de 33 anos de magistratura; 2 – Professor universitário de pós-graduação nas cadeiras de direito agrário, ambiental e administrativo em várias instituições de direito, entre elas a ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA e FUNDAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO; 3 – Especialista e mestre em direito; 4
– Conferencista e palestrante em mais de 160 eventos nacionais e internacionais; 5 – Autor de mais de 100 artigos jurídicos; 6 – Autor de 55 (cinquenta e cinco) livros jurídicos entre eles CURSO DE DIREITO AGRÁRIO (Livraria do Advogado Editora, 9º edição, Porto Alegre) e CURSO DE DIREITO AMBIENTAL (Editora ATLAS, 2008, São Paulo); 7 – Comendador da UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA – RS; 8 – Membro da Comissão Científica da União Brasileira dos Agraristas Universitários (UBAU).