João António Rodrigues de Oliveira
Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxxx
O Contrato de Trabalho do Treinador Desportivo
Elementos para a determinação do regime jurídico aplicável
Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de mestre), na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Empresariais – Menção em Direito Laboral, sob a orientação do Sr. Prof. Doutor Xxxx Xxxx Xxxxx
Coimbra, 2014
Agradecimentos
Agradeço à cidade de Coimbra por me ter acolhido há seis anos atrás e à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra por ter sido alma mater de todas as minhas aspirações.
Dirijo os mais sinceros agradecimentos ao meu orientador e mentor, Xx. Doutor Xxxx Xxxx Xxxxx, por todo o apoio prestado ao longo destes dois anos de mestrado.
Pela pronta resposta a todas as minhas solicitações, agradeço à Associação Nacional de Treinadores de Futebol, na pessoa do presidente da direcção, Sr. Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx.
Não menos importantes para superar esta etapa foram aqueles que, incondicionalmente, me apoiaram. Xxxxxxxx aos meus avós, pais, irmão, aos verdadeiros amigos, por tudo.
À minha Soh devo esta aventura e a coragem de ir para além de mim próprio.
Por último, dedico este trabalho ao meu avô Xxxxxxxx, hoje e sempre, o meu grande
herói.
Índice
1.1. Apresentação do problema e coordenadas da investigação 7
II. A qualificação do contrato estabelecido pelos treinadores 15
2.1. Delimitação do objecto de estudo 15
2.2. As especificidades do modelo italiano 18
2.3. A “subordinação jurídica” no sector desportivo 21
III. O regime jurídico aplicável ao contrato de trabalho dos treinadores 30
3.1. A aplicação do regime legal da comissão de serviço 31
3.1.1. O “caso Xxxx Xxxxxx” e o treinador enquanto “alto directivo” 42
3.2. O regime laboral comum e a sua aplicação supletiva 52
3.2.1. A imposição do contrato a termo 58
3.2.2. A ruptura antecipada do vínculo laboral 72
3.3. A aplicação (analógica) do regime especial do praticante desportivo 87
3.3.1. O caso espanhol e o conceito amplo de “desportista profissional” 98
IV. Conclusões 102
Bibliografia 105
Referências Jurisprudenciais 114
Anexos 117
Resumo
Em Portugal, o contrato de trabalho dos treinadores desportivos não é objecto de regulamentação especial. Aplica-se, por isso, o regime laboral comum. Contudo, muitas das soluções consagradas pelo código do trabalho revelam-se inapropriadas à realidade dos treinadores, o que gera uma lacuna. Para superar a inércia legislativa, doutrina e jurisprudência têm defendido como principal alternativa a aplicação do regime especial dos praticantes desportivos, regulado pela Lei 28/98 de 26 de Junho. Não podemos dizer que esta solução é adequada para todos os casos concretos, mas em muitos deles constitui a única forma de conciliar a protecção do treinador com os interesses próprios da competição desportiva profissional.
Palavras Chave:
Contrato de trabalho; lacuna; treinador desportivo profissional; praticante desportivo; competição desportiva.
Abstract
In Portugal, the employment contract of sports coaches does not have an specific regulation. Applies so the the common labor regime. However, many of the solutions enshrined by the labor code show tehmselves inapropriate to the reality of coages, what genarates a gap. To overcome the inertia of the legislator, doctrine and jurisprudence have advocated as the primary alternative the application, by analogy, of the special regime for professional sportsmen. We cannot say that this solution is suitable in each individual cases, but in many of them is the only way to reconcilie the protection of coach with the interests of professional sports competition.
Key words:
Employment Contract; gap; professional sports coach; sportsmen; sports competition. (nota: o presente estudo não se encontra redigido ao abrigo do novo acordo ortográfico)
Siglas e Abreviaturas
ANTF – Associação Nacional de Treinadores de Futebol BMJ – Boletim do Ministério da Justiça
BTE – Boletim do Trabalho e do Emprego CC – Código Civil Português
CCT – Contrato Colectivo de Trabalho Cfr. – Conferir
Cit. Por. – Citado por
CJ – Colectânea de Jurisprudência
CLT – Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei n.º 5.452, de 1 de maio de 1943 – redacção em vigor)
CONI – Comitato Olimpico Nazionale Italiano CRP – Constituição da República Portuguesa CT – Código do Trabalho (redacção em vigor) DL – Decreto-Lei
DR - Diário da República Ed. – Edição
ET – “Ley del Estatuto de los Trabajadores” (Real Decreto Legislativo 1/1995 de 24 de Março – Versão Actualizada)
FIFA – Fédération Internationale de Football Association FPF – Federação Portuguesa de Futebol
IRCT – Instrumento de Regulamentação Colectiva de Trabalho
LBAFD – Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto (Lei n.º 5/2007 de 16 de Janeiro)
LBD – Lei de Bases do Desporto (Lei 30/2004, de 21 de Junho)
LBSD – Lei de Bases do Sistema Desportivo (Lei 1/90 de 13 de Janeiro)
LCCT – Regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho e da celebração e caducidade do contrato de trabalho a termo (Decreto Lei 64-A/89, DE 27 de Fevereiro - revogado)
LPFP – Liga Portuguesa de Futebol Profissional NCAA – National College Ahtletic Association NFL – National Futebol League
Ob. Cit. – Obra Citada
RBDD – Revista Brasileira de Direito Desportivo RD – Real Decreto
RDES – Revista de Direito e Estudos Sociais
REDD – Civitas: Revista Española de Derecho Deportivo REDT – Civitas: Revista Española de Derecho Del Trabajo RL – Relationes Laborales: Revista Crítica de teoria y prática RLJ – Revista de Legislação e Jurisprudência
SAD – Sociedade Anónima Desportiva STA – Supremo Tribunal Administrativo STS – Tribunal Supremo (Espanha)
TAS – Tribunal Arbitral do Desporto TC – Tribunal Constitucional
TRT – Tribunal Regional de Trabalho Brasileiro TSJ – Tribunal Superior de Justicia (Espanha) Vol. – Volume
WSLJ – Willamette Sports Law Jornal
I. Nótulas Introdutórias
1.1. Apresentação do problema e coordenadas da investigação
O presente estudo tem por base uma reflexão crítica acerca do estatuto jurídico- laboral do treinador desportivo profissional1, dando conta do debate doutrinal e jurisprudencial existente em Portugal. Procuraremos aferir qual o regime jurídico convocável pelo intérprete quando os termos da relação contratual estabelecida pelo treinador são omissos, relativamente à situação objecto de litígio. A problemática abordada emerge de um conflito de interesses entre trabalhador e entidade empregadora, influenciado pelas especificidades do sector desportivo e, em particular, da competição desportiva profissional.
O desenvolvimento crítico a que nos propomos pressupõe a existência de uma relação jurídica de subordinação entre o treinador desportivo e o clube/SAD ou federação desportiva2/3 contratante, sem menosprezar a diversidade de funções que caracteriza esta relação laboral4. Por outras palavras, integraremos o treinador na categoria dos
1 Tendo em conta a amplitude do conceito, seria demasiado redutor cingir o presente estudo ao contrato de trabalho dos treinadores de futebol. Porém, a aproximação a esta realidade torna-se inevitável pelo destaque que lhe é conferido na doutrina e jurisprudência portuguesa. Além disso, apenas estes treinadores dispõem de um IRCT aplicável. Falamos, concretamente, do CCT celebrado entre a ANTF e a FPF, publicado no BTE, 1.ª Série, n.º 27 de 22/07/1997, estendido “às entidades patronais (…) que exerçam a actividade económica abrangida pela convenção e trabalhadores ao serviço das profissões e categorias profissionais nele previstas”, em Portugal continental, através de portaria de extensão publicada no BTE, 1.ª Série, n.º 37, de 08/10/1997, e revisto globalmente em 2012, com publicação no BTE, n.º 20, Vol. 79 de 29/05/2012.
2 Nos termos do artigo 22.º n.º 3 da LBAFD, a participação numa competição desportiva profissional pode ser efectuada por duas entidades jurídicas distintas: o clube desportivo em regime especial de gestão (artigo 26.º da LBAFD) ou, em alternativa, a SAD (artigo 1.º do DL n.º 67/97) que se rege, subsidiariamente, pelo regime das sociedades anónimas. O treinador pode ainda celebrar contrato de trabalho com uma federação desportiva (artigo 14.º da LBAFD), a quem é reconhecido o estatuto de utilidade pública (artigos 19.º a 21.º da LBAFD e artigos 10º a 25.º do DL 248-B/2008 de 31 de Dezembro, alterado pelo DL 93/2014 de 23 de Junho).
3 Para simplificação do discurso utilizado, sempre que pretendermos referir-nos aos clubes, SAD´S e federações desportivas conjuntamente, utilizaremos em alternativa as expressões “clube ou entidade desportiva” e “entidade empregadora”.
4 Significará este dado apriorístico que em nenhuma circunstância o treinador desportivo se vincula a uma relação jurídica de trabalho autónomo? Começaremos pela abordagem deste problema.
trabalhadores subordinados, ainda que essa subordinação apresente diferentes graus de intensidade, destacando-se da generalidade das relações jurídico-laborais5.
Também por isso, estamos perante uma temática complexa e de difícil aferição. Não existe um modelo totalmente homogéneo de treinador desportivo que nos permita reconhecer um conjunto taxativo de funções, exercidas da mesma forma em cada caso concreto. Esta actividade profissional integra o treinador responsável pela preparação física e técnica dos atletas que compõem uma equipa, procurando alcançar os objectivos desportivos comuns, e o treinador dedicado à preparação individualizada de um atleta, focado na metodologia que lhe confira o máximo rendimento desportivo a nível individual6. Em geral, a relação laboral estabelecida entre clube ou entidade desportiva e treinador é marcada pela autonomia técnica deste último na preparação e direcção da actividade desenvolvida pelos praticantes desportivos.
Prima facie, apresentamos as escassas referências normativas que o legislador português dedicou aos treinadores desportivos. O artigo 35.º da LBAFD enquadra a categoria do “técnico desportivo”7, sem especificar quaisquer funções caracterizadoras da actividade. Nem tão pouco densifica o conceito de “técnico”, limitando-se a realçar no n.º
2 do mesmo preceito a necessidade de garantir certas habilitações académicas ou profissionais para o exercício da profissão8. Desta norma não podemos extrair qualquer outra ilação para além da integração da actividade dos treinadores profissionais na categoria dos “técnicos”, enquanto “agentes desportivos”9.
5 Afirma XXXXX XXXXX, Direito do Trabalho, 1.ª ed., Lisboa: Universidade Católica Editora, 1996, p. 113, que a existência de uma relação jurídica de subordinação varia entre manifestações “mais acentuadas” e “mais ténues” não podendo, contudo, retirar-se de manifestações mais ténues a qualificação como relação jurídica de trabalho autónomo.
7 De acordo com XXXX XXXXXX, Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto - Estudo, Notas e Comentários, 1.º ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pp. 252-253, o “técnico”, enquanto “agente desportivo” enquadra o “substrato subjectivo de uma federação desportiva” (artigo 14.º da LBAFD).
8 Existem duas outras disposições a destacar na LBAFD. Por um lado, o artigo 22.º n.º 4 que permite aos treinadores desportivos integrar a liga profissional enquanto “competição de natureza profissional”, na qualidade de “agentes desportivos” e, por outro, o artigo 44.º n.º 2 que prevê a extensão das medidas de apoio previstas para os praticantes desportivos aos próprios “técnicos”, englobando os treinadores (XXXX XXXXXX, Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto (…), Ob. Cit., 253).
9 De acordo com XXXXX XXXXXX XXXXXXXXX, “Treinador: profissionais sem lei?”, Estudos de Direito Desportivo em Homenagem a Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2010, pp. 284-285, era expectável que a LBAFD fosse mais longe do que a LBD e definisse as funções essenciais do treinador desportivo. Pelo contrário, a revisão de 2007 retrocedeu face à anterior que qualificava no seu artigo 36.º treinadores e entidades análogas (técnicos em sentido amplo) como aqueles que na competição executam “funções de decisão, consulta ou fiscalização, visando o cumprimento das regras técnicas da respectiva modalidade”.
No seguimento, destacamos o cuidado do legislador em fixar as qualificações exigidas para o exercício do cargo de treinador, com especial relevo para a obtenção do “título profissional”, regulada pela Lei 40/2012 de 28 de Agosto10/11.
Ainda neste âmbito, seguimos a reflexão de XXXXX XXXXXX XXXXXXXXX ao considerar que a noção mais precisa de treinador desportivo encontra-se explicitada, indirectamente, pelo D.L. n.º 407/99 de 15 de Outubro (regime jurídico da formação desportiva), diploma que no seu artigo 4.º n.º 6 faz referência aos “indivíduos que intervêm directamente na realização de actividades desportivas, a quem se exige domínio teórico- prático da respectiva área de intervenção”. Sendo assim, aos olhos da lei os treinadores “conduzem o treino dos praticantes com vista a desenvolver condições para a prática e reconhecimento da modalidade ou optimizar o seu rendimento desportivo (…)”12.
Esta última noção demonstra que a prestação laboral dos treinadores é destinada à preparação física e técnica dos praticantes desportivos, “agentes desportivos” para os quais o sistema positivo não poupou esforços de regulamentação. O estudo a que nos propomos não poderá alhear-se de um juízo de comparação entre estes dois agentes, tendo por base a relação laboral que ambos estabelecem com o mesmo clube ou entidade desportiva. Não será exagerado referir que desenvolvem a sua prestação laboral em conjunto e de forma complementar, tendo em vista um objectivo comum, alcançado com a participação na competição13: a obtenção de resultados desportivos satisfatórios14. Por essa razão,
10 As “cédulas” a que o DL 248-A/2008 de 31 de Dezembro fazia referência passam a “títulos profissionais” com a Lei 40/2012 de 28 de Agosto, sem alterações substantivas (artigo 28.º). No “regime de acesso e exercício da actividade de treinador de desporto” são quatro os graus que o título profissional pode conferir (artigo 10.º). Destacamos o quarto grau que habilita o treinador a coordenar e dirigir equipas técnicas no âmbito da competição desportiva profissional (artigo 14.º). A importância dos objectivos acautelados pela formação profissional, elencados no artigo 2.º do diploma, determina que o exercício da actividade sem a devida titulação gera uma contraordenação, passível de coima (artigo 19.º) e de ilícito disciplinar no caso do treinador se ter “inscrito na federação desportiva titular do estatuto de utilidade pública” (artigo 25.º). XXX XXX XXXXXXX, “Treinador desportivo: regime jurídico precisa-se!”, Ob. Cit., p. 201, acrescenta que para além da contraordenação e do ilícito disciplinar, a falta de titulação determina a nulidade do contrato de trabalho por força do artigo 117.º n.º 1 do CT, tratando-se de uma situação de impossibilidade jurídica.
11 Na mesma linha, o artigo 7.º da Carta Europeia do Desporto (7ª Conferência elaborada pelos ministros europeus responsáveis pelo desporto a 14 e 15 de Maio de 1992 em Rhodes), considera essencial para apoiar “a prática do desporto a um nível mais avançado”, “promover o treino numa base científica, formar os treinadores e as pessoas com responsabilidades de enquadramento”.
12 XXXXX XXXXXX XXXXXXXXX, “Treinador: profissionais sem lei?”, Ob. cit., pp. 285.
13 A ligação intrínseca entre treinador e praticante desportivo pode ser observada no direito comparado. Em França, a “Convention Collective Nationale du Sport – Arrêt du 21 Novembre 2006, portant extension de la convention collective nationale du sport (n.º 2511)” (Capítulo 12), define desporto profissional como actividade económica intimamente ligada aos imperativos e riscos da competição desportiva, cuja natureza e condições de exercício tem uma incidência necessária sobre as condições de emprego, trabalho e remuneração, e sobre as garantias sociais a definir para os trabalhadores abrangidos pelo presente capítulo: praticantes desportivos e treinadores. Este produto da negociação colectiva reconhece a
observaremos as especificidades do vínculo de subordinação a que o treinador se obriga, tendo por referência as normas especiais que regulam a actividade dos praticantes desportivos.
Procuraremos densificar as semelhanças e as diferenças entre as duas actividades descritas sem descurar a sua integração na estrutura empresarial do clube ou entidade desportiva. Será fundamental compreender a integração do contrato de trabalho do treinador desportivo no “genus contrato de trabalho desportivo”15 que se reveste, naturalmente, de uma maior amplitude quanto às actividades profissionais abarcadas16. Os particulares interesses da competição desportiva e do espectáculo associado, influenciam o conjunto de direitos e garantias estipulados pelo contrato de trabalho desportivo, ao mesmo tempo que impõem especiais deveres com o intuito de salvaguardar esses mesmos interesses17. Destaca-se a especial importância dos treinadores para a adequada preparação física e técnica dos atletas, reflectida no seu desempenho durante a competição. Logo, não é possível analisar a conformidade do regime laboral comum com a actividade desenvolvida pelos treinadores sem considerar a “tríade competição-espectáulo- profissão”18, densificando a influência prática destas componentes19.
A relação laboral constituída pelos treinadores é um dos exemplos tomados desde há muito pela doutrina portuguesa para retratar o carácter pluralista do direito do trabalho,
necessidade de fixar um capítulo com regras e princípios comuns aos dois “agentes desportivos” mencionados. Cfr. XXXXXX XXXXXXXXX, “Quelques observations sur la convention collective nationale du sport”, Revue juridique et economique du sport, n.º 78, 2006, pp. 12-13.
14 Para além do lucro que, naturalmente, é uma finalidade necessária para a subsistência dos clubes ou entidades desportivas, a obtenção de resultados e a concretização do “projecto desportivo” delineado suporta a actividade desenvolvida por treinadores e atletas.
15 XXXX XXXX XXXXX, Vinculação Versus Liberdade, O processo de Constituição e Extinção da relação laboral do praticante desportivo, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 59. Será este o ponto de partida para o nosso estudo.
16 Como esclarece XXXXX XXXXX, Direito do Trabalho, Ob. Cit., pp. 119-120, o direito do trabalho convive com a existência de contratos de trabalho especiais não previstos na lei e “subtipos” de contratos, pautados por uma “organização laboral com características diferentes, na sua finalidade, na sua funcionalidade, na sua racionalidade, nas suas condições específicas”. Ao inserirmos o contrato de trabalho do treinador desportivo numa espécie mais ampla de contrato de trabalho (desportivo), reconhecemo-lo como um “subtipo” não tipificado na lei.
17 XXXX XXXX XXXXX, Temas Laborais, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, pp. 170-171 destaca a necessidade de conciliar a protecção do trabalhador e a salvaguarda do “jogo/competição desportiva”, numa actividade ligada ao espectáculo e dependente dos seus espectadores.
18 XXXX XXXX XXXXX, Vinculação Versus Liberdade (…), Ob. Cit., p. 18.
19 O “espectáculo” subsiste da adesão do público e revela-se um elemento condicionador das relações laborais associadas. Tendo em conta que o legislador português, fora da óptica desportiva, reconheceu o carácter especial da actividade prestada pelos “profissionais de espectáculo”, através da Lei 4/2008 de 7 de Fevereiro, (alterada pela Lei 28/2011 de 16 de Junho), existem algumas pontes com a realidade dos treinadores desportivos que podem ser utilizadas para fundamentar a necessidade de afastamento do regime laboral comum.
fenómeno importante dentro da problemática que nos ocupa. Este entendimento contraria a imagem de um trabalhador subordinado “unitário”, abrangido pelo regime laboral comum de forma indiferenciada. O pluralismo que pode considerar-se, desde logo, em relação às fontes regulativas do direito do trabalho, acentua-se no plano dos “valores e interesses tuteláveis”20, desconstruindo a rigidez de um modelo de subordinação único21.
De facto, o carácter plural do direito do trabalho permite reconhecer a atipicidade de inúmeras relações laborais subordinadas e a inadequação das soluções previstas pelo CT, desafiando o legislador a intervir e acompanhar o surgimento de novas relações socialmente identificadas 22/23. Refere de forma expressiva XXXXXX XXXXXX BAPTISTA24 que o direito do trabalho “é suficientemente amplo e elástico para compreender novos tipos
contratuais”, ainda que se revelem atípicos face ao modelo postulado no regime geral. Ao longo da investigação determinaremos qual a influência do fenómeno desportivo na actividade desenvolvida pelos treinadores profissionais e em que medida essa influência impõe o afastamento de preceitos que integram o regime laboral comum, problematizando a solução que um direito do trabalho “aberto e dinâmico”25 deve consagrar.
Através do artigo 9.º do CT, norma que regula a interligação entre o regime laboral comum e os diversos regimes especiais, o legislador afastou uma concepção unitarista. Existem “contratos de trabalho especiais” que exigem a tutela de um regime, igualmente, especial, situado “no mesmo plano lógico”26 do regime laboral comum. O preceito define duas premissas fundamentais para a construção do sistema jurídico-laboral. Primeiramente,
20 Seguimos XXXX XXXXX XXXXXXX, “O novo código do trabalho e os “contratos de trabalho com regime especial”: pistas para o enquadramento do contrato de trabalho desportivo”, Separata da Revista do Ministério Público, N.º 95, 2003, p. 40.
22 De acordo com XXXXX XXXX XX XXXXXXXXXXX, Contratos atípicos, 2.ª ed., Coimbra: Xxxxxxxx, 0000, pp. 61-66, os tipos sociais de contrato emergem de uma realidade social e jurídica. Cabe ao legislador “descrever” essa mesma realidade na lei, ou tão só aproximá-la, sendo que “o poder regulativo do tipo” é limitado pela identidade do “tipo contratual social” que entretanto se formou.
25 XXXX XXXXX XXXXXXX, “O novo código do trabalho e os “contratos de trabalho com regime especial” (…), Ob. Cit., p. 42.
26 Utilizamos a expressão de XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “O artigo 9.º do código do trabalho e a situação laboral dos treinadores desportivos”, Revista de Desporto & Direito, n.º 25, 2011, p. 28, de acordo com a qual o sentido do pluralismo de regimes de direito de trabalho não se resume a uma “modalização interna” ou diferenciação em função da pessoa do trabalhador, mas antes no reconhecimento dos aspectos diferenciadores da relação jurídica constituída que justificam, por isso, uma tutela especial.
indica que às relações laborais especiais tipificadas na lei aplicam-se, subsidiariamente, as regras da legislação laboral comum, desde que verificada a necessária compatibilidade27. De seguida, permite concluir que, na ausência de regime especial aplicável, os trabalhadores subordinados são abrangidos pelo regime laboral comum28. Este raciocínio conduz-nos a um potencial resultado: na ausência de regime jurídico especial regulador da actividade do treinador desportivo aplica-se o disposto no CT29. Poderemos aceitar de bom grado esta solução lógico-dedutivamente retirada da legislação laboral?
No desenvolvimento desta questão, importa determinar se a função tutelar e proteccionista do direito do trabalho e a defesa dos direitos do trabalhador “economicamente dependente e juridicamente subordinado”30, subjacentes ao regime laboral comum, devem convocar-se na relação laboral do treinador desportivo, de acordo com os direitos e obrigações contratualmente estabelecidos. A confrontação entre a ratio das soluções legais adoptadas pelo CT e as exigências específicas da prestação laboral desportiva irá conduzir-nos, uma vez mais, à problematização do regime regulador desta actividade, considerando os poderes atribuídos no momento da celebração do contrato de trabalho, os termos da sua execução e, com importância decisiva, os efeitos resultantes da sua cessação31.
Para a determinação do regime jurídico aplicável, equacionaremos a existência de uma “lacuna de previsão”32 no ordenamento jurídico-laboral português, provocada pela
27 Compatibilidade, desde logo, com os valores que historicamente levaram à criação do regime especial (XXXX XXXXX XXXXXXX, “O novo código do trabalho e os “contratos de trabalho com regime especial” (…), Ob. Cit., p. 47).
28 Sobre este ponto, XXXX XXXX XXXXX, Contrato de Trabalho, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2014,
p. 96; XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx xx Xxxxxxxx, 0.x xx., XXX, Xxxxxxx: Almedina 2013, p. 669.
29 Assim afirmava XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX “É o regime laboral comum aplicável aos contratos entre clubes e treinadores profissionais?”, Revista do Ministério Público, n.º 80, 1999, pp. 131, na sua primeira abordagem ao tema.
30 Convocamos a exposição de XXXX XXXX XXXXX acerca do modelo paradigmático sobre o qual assenta o direito do trabalho in Temas Laborais 2, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pp. 9-10.
31 Para este ponto da reflexão, convocaremos a evolução jurisprudencial do problema, indagando sobre a liberdade de desvinculação do treinador desportivo e, ainda, sobre os efeitos que derivam da ruptura contratual. Deverá permitir-se ao treinador desportivo denunciar o contrato de trabalho a todo o tempo? Será o regime indemnizatório previsto no CT adequado à tutela dos legítimos interesses dos treinadores? A reflexão a que nos propomos terá em conta a particular “lógica empresarial” que comanda a “indústria desportiva” profissional e as competições associadas (XXXX XXXX XXXXX, Temas Laborais, Ob. Cit., ibidem; XXXXX XXXXXXXX, Limitações à liberdade contratual do praticante desportivo, Lisboa: Petrony, 2008, p. 84).
32 A existência de uma verdadeira “lacuna de previsão” foi apresentada no ordenamento jurídico português por XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “O pluralismo do direito do trabalho”, III Congresso Nacional de Direito do Trabalho – Memórias – Coord. de Xxxxxxx Xxxxxxx, Coimbra: Xxxxxxxx, 0000, pp. 288-289; “Ainda sobre a crise do contrato de trabalho”, II Congresso Nacional de Direito do Trabalho – Memórias – Coord. de Xxxxxxx Xxxxxxx, Coimbra: Almedina, 1999, p. 69, nota 74.
falta de regulamentação adequada ao contrato de trabalho do treinador desportivo33. De acordo com esta posição doutrinal, o legislador descurou a elaboração de uma norma legal adequada ao carácter especial daquele contrato, bem como a concretização, em momento subsequente, do regime especial aplicável. Neste contexto, avaliaremos a importância do CCT aplicável34 e das cláusulas contratuais usualmente fixadas para salvaguardar os interesses próprios do contrato de trabalho desportivo.
A identificação de uma “lacuna de previsão” tem levado a jurisprudência portuguesa a convocar os instrumentos de integração previstos no artigo 10.º do CC, minimizando os efeitos negativos da inércia legislativa35. Nos últimos anos, assistimos a um acréscimo das decisões que sustentam a aplicação analógica do regime especial dos praticantes desportivos, regulado pela Lei 28/98 de 26 de Junho36, afastando as disposições do CT consideradas incompatíveis com a actividade dos treinadores. Veremos em que medida esta solução pode ser convocada e quais as restantes alternativas que se colocam.
À guisa do prelúdio apresentamos, ainda, o enquadramento constitucional da matéria. O regime laboral comum promove uma articulação entre dois princípios fundamentais: a liberdade de trabalho (artigo 47.º da CRP) por um lado e a segurança no emprego (artigo 53.º da CRP), por outro. O trabalhador subordinado beneficia, assim, de liberdade para procurar ou escolher o seu emprego, atendendo às qualificações detidas, e para promover a ruptura da relação laboral que integra, sem necessidade de invocar uma justa causa para o efeito37. No sentido inverso, encontra-se protegido pela proibição do
33 Não sendo este o momento para analisar o problema, destacamos que a compensação devida ao treinador em caso de despedimento é um dos exemplos que melhor denota a referida “lacuna de previsão”. Como tem salientado a jurisprudência, o regime laboral comum não acautela o “período de inactividade”, quase certo, que o treinador de futebol despedido enfrenta no decurso da época desportiva. (XXXXX XXXXXXX XXXXXXX, “A crise do contrato de trabalho”, RDES, n.º 39 (n.º 4 da 2.º série), 1997, pp. 362-363, nota 31). 34 O CCT aplicável aos treinadores de futebol remete, no seu artigo 5.º n.º 1, para a aplicação subsidiária das disposições do CT, na medida da sua compatibilidade.
35 Desde cedo, XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “É o regime laboral comum aplicável aos contratos entre clubes e treinadores profissionais?”, Ob. Cit., p. 139, considerou a regulamentação do contrato de trabalho do treinador desportivo “o passo a dar” pelo legislador em Portugal, conclusão reforçada por diversos autores. XXXX XXXX XXXXX, “Treinador de voleibol: entre o regime laboral comum e o regime especial do praticante desportivo?”, Questões Laborais, n.º 28, Ano XIII – 2006, pp. 262-263, salienta a “conveniência”, ou mesmo “urgência”, de uma intervenção legislativa.
36 Neste âmbito, destacaremos a evolução da jurisprudência portuguesa, com destaque para a argumentação desenvolvida pelo Acórdão do STJ de 24 de Janeiro de 2007, processo n.º 06S1821, relator: Xxxxx Xxxxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx. Esta decisão constituiu um ponto de viragem, não só por reafirmar abertamente o carácter pluralista do direito do trabalho, mas por reconhecer as especificidades do sector desportivo e os seus reflexos no contrato de trabalho dos treinadores (XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX em anotação ao referido Acórdão, publicada na RDES, ano XLVIII – 2007, n.º 3 – 4, pp. 170-172).
37 Convocamos o pensamento de X.X. XXXXX XXXXXXXXX e XXXXX XXXXXXX, Constituição da República Portuguesa – Anotada, Volume I, 4.º ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pp. 706-707. Os
despedimento “livre ou discriminatório” efectuado pela entidade empregadora. Com esta solução, a lei fundamental confere ao trabalhador um patamar mínimo de protecção, contrapondo os poderes de direcção e autoridade exercidos pela entidade empregadora com um conjunto de limitações à liberdade de iniciativa económica (artigo 61.º da CRP), em defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais do primeiro.
Como fica introduzido, o treinador celebra um contrato de trabalho desportivo, sem regulamentação específica, na ausência da qual serão convocadas as normas do CT e os princípios constitucionais inerentes. Haverá necessidade de ir mais longe? Poderemos dizer que esta solução garante o ideal funcionamento da competição desportiva profissional?
Na busca de uma resposta adequada será necessário analisar a estrutura da relação laboral constituída pelos treinadores, assim como, os aspectos que a distinguem de qualquer outra relação laboral. Treinar a equipa principal de seniores de um clube desportivo, os seus escalões de formação ou uma selecção nacional acarreta diferenças quanto às funções exercidas, ainda que em todos estes casos possamos falar de um “agente desportivo que prepara e orienta praticantes desportivos, incidindo a sua acção nos aspectos físico, psicológico, técnico e táctico, tendo em vista a optimização do seu rendimento desportivo”38.
Autores retratam as dimensões “positiva” e “negativa” da liberdade de trabalho (pp. 653-654). Ainda sobre a matéria, XXXXX XXXXXXX, “Liberdade de Trabalho e Profissão”, Revista de Direito e Estudos Sociais, Nº 2, Ano XXX, Abril-Junho, 1988, pp. 154-160.
38 Cfr. XXXX XXXXXX, “Direito do Desporto”, Revista Sub Judice, n.º 8, Janeiro/Março, 1994, p. 135. Na construção desta noção o Autor não referiu a preparação dos atletas que integram a competição desportiva, o que lhe confere maior abrangência do que aquela que iremos considerar.
II. A qualificação do contrato estabelecido pelos treinadores
2.1. Delimitação do objecto de estudo
Iniciámos o capítulo introdutório com uma nota essencial para a delimitação da matéria objecto de estudo. Abordaremos a relação de subordinação estabelecida entre treinador desportivo profissional e clube ou entidade desportiva. Estamos perante uma matéria que levanta dúvidas, desde logo, porque o exercício desta actividade é compatível com algumas das características fundamentais do contrato de prestação de serviços39/40 (artigos 1154.º a 1156.º do CC). De acordo com estes preceitos, a autonomia técnica do profissional contratado a título de prestação de serviços permite-lhe realizar as suas funções sem a ingerência do contraente no modo de execução da prestação, desde que garantido um certo resultado contratualmente fixado41. A retribuição, enquanto contraprestação da actividade desenvolvida, não é elemento obrigatório do contrato, nos termos do citado artigo 1154.º .
Mutatis mutandis, ao equiparar o regime apresentado com a realidade dos treinadores, constatamos que um dos objectivos primordiais do contrato por estes celebrado reside na obtenção de resultados desportivos satisfatórios, de acordo com o “projecto” apresentado anteriormente à celebração do contrato. A entidade empregadora delimita as metas a alcançar, isto é, os títulos ou classificações que legitimamente espera obter, aos quais o treinador deve corresponder, empregando a sua experiência profissional e qualificações técnicas. Não obstante, será esta nota suficiente para afirmar que os
39 Não existe nenhuma “incompatibilidade congénita” ou “razão de ordem pública” que afaste liminarmente esta possibilidade, tal como indica XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos – duas maneiras simplistas de ver a mesma realidade?”, Estudos Dedicados ao Professor Doutor Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, Volume I, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2011, p. 57.
40 Em Espanha, destacam-se algumas decisões jurisprudenciais que qualificam o contrato celebrado pelo treinador desportivo como prestação de serviços, fundadas na ausência de “dependência jurídica” ou no facto daquele não se encontrar inserido no âmbito de “organização e direcção da empresa”. Para uma súmula destas decisões, vide XXXX XXX XXX, Los deportistas profesionales: Estudio de su régimen jurídico laboral y de seguridade social, Dir. Xxxx Xxxxxxx Xxxxx; Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx, Granada: Editorial Comares, 2010, pp. 82-83.
41 De acordo com XXXX XXXX XXXXX, Contrato de Trabalho, Ob. Cit., p. 78, a prestação de serviços visa “proporcionar ao credor certo resultado do trabalho”, ainda que existam “zonas cinzentas” entre este contrato e o contrato de trabalho, resultantes de uma noção flexível de subordinação jurídica e de “geometria variável”.
treinadores desempenham as suas funções sem “dependência jurídica”42? Valerá a mesma autonomia para o contrato de todo e qualquer treinador desportivo?43
Não são raros os casos em que a relação contratual estabelecida pelo treinador desportivo se situa numa linha de fronteira entre o trabalho autónomo e o trabalho subordinado. É o que acontece com os contratos destinados à participação num evento desportivo isolado44 e os contratos estabelecidos no âmbito dos desportos individuais45, onde é mais difícil identificar um vínculo de subordinação entre treinador e entidade empregadora. Em França, por exemplo, a jurisprudência dominante qualifica como contrato de trabalho aquele em que o treinador de futebol se obriga à preparação de uma equipa no decurso de uma ou mais épocas desportivas, levantando maiores dúvidas relativamente à qualificação do contrato dos “moniteurs” que, apesar de inseridos numa estrutura organizativa (“contrat d´entreprise”)46, podem não estar submetidos ao referido vínculo de subordinação47. Sem menosprezar estas especificidades, centraremos a presente
42 Na esteira de XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Trabalho subordinado e trabalho autónomo”, Separata de: Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, Vol. I, Coimbra: Xxxxxxxx, 2001, p. 275, ressalvamos que o trabalho autónomo é compatível com outras figuras contratuais, entre as quais a agência, a empreitada ou o mandato.
43 Os treinadores de escalões de formação são um exemplo claro de que a obtenção de resultados não é o único objectivo do contrato de trabalho desportivo. Neste caso, a participação em competições assume tanta importância como a tarefa de formar humana, cultural e desportivamente os atletas. Segundo XXXXX XXXXXX XXXXXXXXX, Diritto del lavoro sportivo, G. Giapicheli Editore – Torino, 2004, p. 12, o treinador profissional realiza, de acordo com as regras específicas de cada federação, o treino e selecção dos atletas, bem como a sua educação e formação através da experiência e conhecimentos detidos.
44 XXXX XXXXXX, “Direito do Desporto”, Ob. Cit., p 135, apresenta o exemplo dos treinadores “requisitados” para preparar os atletas que irão competir nos Jogos Olímpicos. As federações desportivas contratam com estes técnicos para que acompanhem um ou mais atletas ao longo da competição fixando, inclusivamente, prémios monetários atribuídos de acordo com as classificações obtidas.
45 Num estudo sobre os treinadores de golf contratados para ensinar a modalidade a sócios ou inscritos, XXXXX XXXXXX XXXXXXXXX, “La prestación de servicios realizada por los professores de golf ¿tienen un carácter laboral o no?, Aranzadi, Derecho de deporte y entretenimento, n.º 16, 2006-1, pp. 370-371, salienta que a “dependência jurídica” pode existir, ainda que o trabalhador não esteja estritamente submetido a ordens técnicas sob a forma como deve executar a sua prestação. É fundamental que a inserção na “organização empresarial” condicione o modo de execução daquela prestação e os períodos em que é executada. Para a Autora, sendo inquestionável a autonomia técnica do instrutor de golfe, não basta o uso das instalações do clube para qualificar, em concreto, o vínculo de subordinação.
47 J. XXXXXXXXX XXXXXXXX, XXXXX XXXXXXX, G. XXXXXXX – PAGÉS e X. PERRO KARAQUILO,
Code du Sport, Paris: Dalloz, 8ª ed., 2013, pp. 1620-1621, exemplificam a diversidade de soluções encontradas pela jurisprudência francesa nesta matéria. Entre vários exemplos, apresentam o caso de um “monitor” de Ski ligado contratualmente a determinado clube desportivo, considerado pelo Tribunal como trabalhador autónomo. Esta qualificação é reconhecida pelo próprio “code de la securité social”. Como situação dúbia, retratam o caso de um “monitor” de ténis que, apesar de se encontrar vinculado contratualmente a determinado clube, recebia dos seus clientes montantes estipulados com base em taxas variáveis e livremente fixadas por si. Paralelamente, estava obrigado a cumprir as actividades planeadas pelo clube, usufruindo das instalações e utilizando os materiais fornecidos. A decisão de 11/10/2000, n.º 98-
reflexão no contrato celebrado pelo treinador profissional, encarregue da preparação de um praticante ou de uma equipa desportiva com vista à participação na competição.
As funções técnicas desempenhadas não afectam a profissionalização do treinador pelo facto de serem exercidas de forma periódica e intercalada48, destinadas à preparação de um evento ou conjunto de eventos desportivos interligados. Tanto é assim, que a Lei 40/2012 de 28 de Agosto, no seu artigo 3.º, alínea b), estabelece os requisitos formativos para a profissionalização do “treinador de desporto” sem diferenciar o exercício da actividade com carácter “habitual, sazonal ou ocasional”. A mesma disposição contempla os treinadores que desenvolvem a sua actividade de forma não remunerada49.
Não abordaremos todas as formas de exercício da actividade neste estudo. Confrontando a abrangência da Lei 40/2012 de 28 de Agosto, com o âmbito de aplicação do CCT aplicável aos treinadores de futebol, por exemplo, destacam-se alguns dos elementos que o diploma convencional pressupõe para a existência do “contrato de trabalho desportivo”. Por um lado, foca-se no treinador remunerado, estabelecendo no seu artigo 6.º, n.º 2, alínea d) que o valor da retribuição é elemento indispensável do contrato celebrado. Esta indicação não é decisiva para sustentar a existência de uma relação jurídica de subordinação50, embora constitua uma primeira indicação. Por outro lado, impõe no seu artigo 21.º a exclusividade no exercício das funções, ou seja, aos treinadores de futebol
43941, do “Cour de Cassation”, Cit. Por., XXXXXX XXXXX [et. al.], Droit du Sport, ibidem, considerou que, por prestar os seus serviços, em exclusivo, para determinado clube e por usufruir das suas instalações para executar os treinos, o “monitor de ténis” estava vinculado a um verdadeiro contrato de trabalho. XXXXXXXX XXX, [et. al.], Droit du Sport, 3ª Ed., L.G.D.J, 2012, pp. 399-400, reforçam que no caso de desportos individuais como o ténis ou o golf, a qualificação do treinador como trabalhador autónomo ou dependente é bastante dúbia e condicionada pelo modo de exercício da prestação.
48 Os seleccionadores nacionais, por exemplo, exercem a sua prestação laboral com significativa independência e autonomia, ainda que o treino e preparação dos atletas seleccionados, cerne da sua actividade, seja efectuado esporadicamente, de acordo com o calendário competitivo. Como salienta XXXXXXXXX XXXXXX XXXXXX, “Peculiaridades en materia de seguridad social de los deportistas”, Revista del Ministerio del Trabajo y Asuntos Sociales, n.º 69, p.163, em comentário ao caso “Amunike”, esta é uma das principais diferenças que marca a relação laboral dos seleccionadores. (xxxx://xxx.xxxxxx.xxx.xx/xx/xxxxxxx/xxx_xxxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxx-00.xxx).
49 Seguindo XXXX XXXXXXX, A nova legislação do desporto comentada, AA.VV. – PMLJ, 1ª ed., Coimbra: Wolters Kluer Portugal – Coimbra Editora, 2010, pp. 33-34, resulta do artigo 3.º, alínea b) da Lei 40/2012 de 28 de Agosto (norma idêntica aquele que constava do DL n.º 248-A/2008 de 31 de Dezembro) que a actividade de treinador pode não ser exercida no âmbito de uma relação de trabalho subordinado.
50 Apesar de abordar a qualificação da relação jurídica estabelecida entre clube desportivo amador e treinador não remunerado, XXXXXX XXXXXXXX, “L´allenatore diletante non puo´essere lavoratore subordinato”, Nota a sentenza corte di apello di Venezia, Sez. Lavoro, 21 marzo 2006, n. 173, pp. 43-44, (xxx.xxxx.xx/XXXX_0_00.xxx), destaca que a remuneração, per si, não é um elemento idóneo para qualificar uma relação jurídica de trabalho subordinado, dado que é um elemento externo a essa relação, caindo na esfera dos efeitos.
abrangidos é vedada a hipótese de pluriemprego no sector desportivo51. Sem conferir a este elemento importância decisiva para a qualificação do contrato, abordaremos tão só a actividade do treinador profissional, contratados pelo clube/SAD ou federação desportiva52 e remunerado, tendo como objectivo a preparação de um atleta ou equipa profissional para competir.
2.2. As especificidades do modelo italiano
Mesmo no ordenamento jurídico italiano, onde a actividade dos treinadores é objecto de regulamentação especial, levantam-se dúvidas sobre o critério adequado para qualificar o contrato de trabalho desportivo. O artigo 2.º da lei n.º 91/1981 de 23 de Março, criada sobre a égide do CONI, integra a actividade dos atletas, treinadores e preparadores, bem como dos directores desportivos53. Com base neste preceito legal, o treinador profissional identifica-se, objectivamente, pelo desenvolvimento das suas funções a título oneroso e de forma contínua. O regime especial regula, de forma genérica, o contrato celebrado pelos treinadores profissionais, sem prejuízo de cada uma das federações desportivas regular, na especialidade54, os critérios de qualificação e as cláusulas
51 XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos – (…)”, Ob. Cit., pp. 104-106 apresenta algumas dúvidas sobre a razoabilidade do requisito da exclusividade, quando nem o regime laboral comum, nem o diploma que regula a actividade do praticante desportivo colocam limitação idêntica. Para o Autor, ainda que o artigo 21.º n.º 1 do CCT aplicável ressalve a convenção das partes em sentido contrário, esta solução não deixa de afastar, por exemplo, os professores de educação física que desenvolvem a actividade de treinador a “título complementar” e outros treinadores contratados por “colectividades desportivas” sob pressupostos não profissionais, para os quais seria defensável uma tutela nos mesmos termos conferidos pelo CCT.
52 Realçamos este aspecto, uma vez que a relação laboral estabelecida entre treinador de futebol e federação desportiva não é abrangida pelo CCT aplicável, de acordo com o seu artigo 2.º, tal como salienta XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “O artigo 9.º do código do trabalho e a situação laboral dos treinadores desportivos”, Ob. Cit., p. 44.
53 De acordo com XXXXXXXX XXXXXXXXXX, Il rapporto di lavoro sportivo, Milano: Giuffrè Editore, 2004, pp. 20-21, a lei 91/1981 abrange os profissionais “directamente” ligados à actividade desportiva, incluindo os que promovem a melhoria de desempenho dos atletas. Todas as outras relações “indirectas”, como por exemplo as relacionadas com serviços administrativos, encontram-se a coberto da legislação laboral comum.
contratuais admissíveis55. Destacamos, também, a importância da autonomia colectiva em cada uma das modalidades desportivas, quer pelas restrições impostas no exercício da actividade de treinador, quer pela formação de contratos-tipo que vinculam todos os que se encontram abrangidos pelo “accordo collettivo”56.
Contudo, ainda que a lei n.º 91/1981 se aplique, exclusivamente, ao “contratto di lavoro subordinato”57, elencando no artigo 3.º os elementos que identificam um “contratto di lavoro autonomo”, a dificuldade em qualificar o contrato estabelecido pelos treinadores mantém-se, já que o referido preceito individualiza a actividade do praticante desportivo58. Este último, celebra uma relação de trabalho autónomo sob três circunstâncias específicas: quando actua num evento desportivo isolado ou em vários eventos correlacionados, num curto espaço de tempo; quando o próprio contrato celebrado não o vincula a participar em sessões de treino ou de preparação e, finalmente, quando a prestação laboral, ainda que exercida de forma continuada, não exceda as oito horas semanais, cinco dias mensais ou trinta dias anuais. Atendendo a que a organização e participação nas sessões de treino integra o objecto fundamental da actividade desenvolvida pelo treinador, independentemente da qualificação do contrato, poderão o primeiro e terceiro critérios ser equacionados em sede qualificativa? Isto é, a curta duração temporal dos serviços prestados ou a sua realização esporádica serão elementos decisivos para qualificar o
55 Acrescenta XXXXX XXXXXXX, “Il contrato di lavoro sportivo”, Contratto e impresa, Anno 14, N.º 2, CEDAM – PADOVA, 1998, p. 748, que o direito desportivo italiano é marcado pela delegação de poder nos órgãos federativos para governar “a linha divisória” entre o amadorismo e profissionalismo.
56 A título exemplificativo, convocamos o “accordo collettivo” celebrado entre a “Federazione Italiana Giuoco Calcio (F.I.G.C)” e a “Associazione Italiana Allenatori Calcio” (A.I.A.C). No seu artigo 10.º, proíbe o treinador de tratar, directa ou indirectamente, da transferência de um jogador, sem prejuízo de poder aconselhar e contribuir com os seus conhecimentos técnicos para a concretização da mesma. O acordo estabelece ainda um modelo contratual “tipo”, onde consta a identificação da categoria profissional do treinador, compensações anuais e outros prémios, as obrigações e deveres de conduta, as sanções a que está sujeito, entre outros elementos. Cfr. XXXXXXXX XXXXXXXXXX, Il rapporto di lavoro sportivo, Ob. Cit., pp. 153-161. No ordenamento jurídico português, veja-se o modelo de contrato de trabalho disponibilizado pela ANTF (anexo 1.º).
57 Cfr. XXXXXX XXXXXXXX XXXXX [et. al], Regulación laboral del trabajo deportivo en europa y américa (guia básica), RJDE, N.º 1, Editoria Aranzadi, 2006, p. 24. Para XXXXXX XXXXXX, “Il contratto di lavoro, I”, Trattato di diritto civile e commerciale, XXVII, T.2, Milano: Giuffrè Editore, 2000, p. 350, importa salvaguardar que o legislador italiano optou por uma “noção especial” de subordinação, assente nas características da onerosidade e da continuidade, já referidas.
58 De acordo com XXXXX XXXXXXX, “Il contrato di lavoro sportivo”, ibidem, não existem dúvidas de que o legislador italiano pretendeu excluir do âmbito da norma em apreço os restantes “agentes desportivos” abarcados pela lei especial.
treinador como trabalhador independente? Parece-nos clara a insuficiência deste argumento59.
A generalidade da doutrina italiana debate os pressupostos da diferenciação entre relação laboral desportiva subordinada e autónoma de acordo com os critérios gerais (artigos 2094.º e seg. e 2222.º e seg. do codice civile, respectivamente). XXXXXXXX XXXXXXXXX, em comentário à decisão da “Cassazione” de 17 de Janeiro de 199660, reforça esta posição ao concluir que a vontade das partes no momento da celebração do contrato e as competências atribuídas ao treinador são fundamentais para considerar a existência de uma relação jurídica de natureza subordinada ou autónoma. A generalidade da doutrina evita, assim, partir de “tipos ou padrões abstractos”61 para efectuar a diferenciação, recorrendo a uma análise do acordo contratual, em confronto com os princípios gerais de direito do trabalho. Nessa análise, interessa aferir se a prestação desempenhada pelo treinador pode ser configurada como mera obrigação de resultado. Mesmo nos casos de fronteira já evidenciados temos dificuldade em considerar esta perspectiva62.
O problema da qualificação do contrato celebrado pelos treinadores assume especial importância no ordenamento jurídico português. Não é possível identificar, em concreto, uma “lacuna de previsão” do sistema jurídico-laboral sem tomar posição sobre a qualificação do contrato63. O afastamento do vínculo de subordinação jurídica e a recondução do contrato estabelecido pelos treinadores a uma mera prestação de serviços afasta a necessidade de conformar as cláusulas estabelecidas com os limites impostos pelo CT. Consequentemente, não será possível recorrer à tutela conferida por lei aos
59 Recuperando as palavras de XXXXX XXXXXXX, “Il contrato di lavoro sportivo”, Ob. Cit., p. 749, quer a onerosidade, quer a periodicidade da prestação laboral, são critérios “redutores” e “parciais” neste contexto. 60 A decisão em causa considerou a relação entre treinador desportivo e respectivo clube como subordinada, atendendo a que o treinador seria directamente responsável pelo desempenho da equipa e responderia perante a entidade empregadora em função dos resultados obtidos (Rivista Di Diritto Sportivo, Anno XLIX, N.º 2, Giufré Editore, 1997, pp. 233-234, nota 1-2).
00 XXXXX XXXXXXXXX, Xxxxxxx xxx xxxxxx, Xxxxxx: Giappichelli Editore, 2009, p. 625. Para a Autora cabe ao julgador efectuar uma apreciação em cada caso concreto, mesmo nos casos em que não se verifica uma situação de trabalho autónomo expressamente prevista na lei.
62 Recuperamos para o âmbito do contrato de trabalho do treinador desportivo as conclusões apresentadas por XXXX XXXX XXXXX, “Trabalho Desportivo, obrigação de meios e retribuição variável”, Questões laborais, n.º 32, ano XI, 2004, pp. 117-120, a propósito da prestação laboral do futebolista. Se este interveniente directo no jogo/competição apenas se vincula a uma obrigação de meios, e não de resultado, também a prestação laboral do treinador não pode resumir-se aos resultados desportivos obtidos, ainda que sejam um factor determinante para a manutenção do vínculo laboral.
63 XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos – (…)”, Ob. Cit., p. 57.
trabalhadores subordinados, sendo antes exigida uma conformação com os preceitos da legislação civil e comercial64.
2.3. A “subordinação jurídica” no sector desportivo
A “subordinação jurídica” é o elemento decisivo para qualificar a relação contratual estabelecida pelos treinadores65. Este conceito não se confunde com o poder de direcção que “funda a existência do próprio contrato de trabalho”66, ao qual se contrapõe o dever de obediência, em conformidade com os artigos 97.º e 128.º, alínea e) do CT67. A direcção do trabalho prestado é um dos elementos mais importantes para determinar o vínculo de subordinação68. Revela o controlo da actividade potencialmente exercido pelo empregador, num contexto organizativo vocacionado para a prossecução dos seus interesses económicos e, no caso, desportivos69/70.
De acordo com os ensinamentos de XXXXXXXX XXXXXXXXX, o poder de autoridade conferido ao empregador pelo contrato de trabalho desdobra-se em quatro dimensões que,
64 M.ª XXXX XXXXXXXXX XXXXX, Cessión de deportistas profesionales y otras manifestaciones lícitas de prestamismo laboral, Granada: Editorial Comares, 1997, p. 67; p. 73, explicita que ao considerarmos que o treinador não é um trabalhador e, por isso, não se rege pelo regime laboral (comum ou especial), ficam vedados mecanismos próprios da condição de trabalhador como, por exemplo, a cessão a outro clube, admitida pelo artigo 21.º da Federação Andaluza de Futebol e, entre nós, pelo artigo 10.º do CCT aplicável.
66 XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, Direito do Trabalho, Ob. Cit., p. 590.
67 Corolários do artigo 11.º do CT que indica como características do contrato de trabalho a actuação sobre a “autoridade e direcção de outrem”.
68 XXXXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX, “Las relaciones especiales de los deportistas y artistas”, Edición especial del número 100 de REDT, Civitas, 2000, p. 185, destaca que a aplicação do regime laboral comum ao treinador desportivo tem, sobretudo, em conta o facto deste último estar submetido ao poder de direcção exercido pelo clube ou entidade desportiva.
69 Para XXXXXXX XXXXXXXXX, Istituzioni Di Diritto de Lavoro, II – Il rapporto di lavoro, 6.ª ed. Padova: Cedam, 2008, pp. 248-251, o poder de direcção traduz-se no “controlo” do desempenho da actividade do trabalhador, vigilância e supervisão do cumprimento das directrizes efectuadas, assim como da diligência empregue. Em Portugal, o exercício do poder disciplinar encontra-se especificado pelo artigo 16.º do CCT aplicável, disposição que permite ao clube/SAD sancionar o treinador de futebol, desde a simples repreensão ao despedimento com justa causa.
70 No ordenamento jurídico espanhol, o poder de direcção encontra-se postulado nos artigos 1.º n.º 1 e 20.º n.º 1 do ET, dos quais se retira a faculdade de dar instruções gerais sobre a “organização e funcionamento da empresa”, entre as quais a definição do horário de trabalho, o sistema retributivo e as medidas disciplinares aplicáveis (XXXXXXX XXXXXXXX, XXXXXX XXXXXXXXX e XXXXXXX XXXXXX, Derecho del Trabajo, 18.º ed., Madrid: Tecnos, 2009, pp. 247-248).
naturalmente, não se evidenciam da mesma forma em cada relação jurídica de subordinação. São elas, um “poder determinativo da função”, um “poder conformativo da prestação”, “um poder regulamentar” e um “poder disciplinar”71. Na primeira dimensão, está em causa a definição das tarefas ou funções que o trabalhador exerce no seio da empresa, o objecto do contrato que não se confunde com o modo de execução da prestação laboral previsto no âmbito do “poder conformativo”. Colocando em contraposição as duas dimensões apresentadas, estabelecidas nos artigos 118.º n.º 1 e 128.º n.º 1, alínea e) do CT, constatamos que o clube ou entidade desportiva contratante intervém activamente na delimitação do núcleo de funções que cabem ao treinador, ainda que o modo de execução das mesmas seja uma tarefa submetida à autonomia técnica72 que este último detém73. Em termos exemplificativos, o clube desportivo determina o âmbito de actuação do treinador, desde a construção de uma equipa com a indicação dos atletas a contratar, até à preparação diária do(s) mesmo(s), passando pela coordenação entre a equipa treinada e os escalões de formação, a preparação de estágios e o acompanhamento permanente nas várias competições desportivas realizadas. Ao mesmo tempo, fornece o local de treino, infra- estruturas e equipamentos necessários, os meios de deslocação e toda a logística associada à participação na competição. Quanto à metodologia de treino, número de horas de trabalho, duração dos estágios, concessão de palestras, elaboração de convocatórias e prestação de indicações no decurso dos jogos ou provas realizadas (escolha do sistema de jogo, escolha do capitão de equipa, realização de substituições), constituem elementos relacionados com a autonomia técnica do treinador74.
71 Convocamos XXXXXXXX XXXXXXXXX, Direito do Trabalho, Ob. Cit., pp. 237-246.
73 Nas palavras de XXXXX XXXXXXX XXXXX (Poder de Direccion y Contrato de Trabajo, 1993), Cit. Por. XXX XX XXXXX, O poder de direcção do empregador – Configuração, Coimbra: Coimbra Editora, 2005,
p. 40-42, nem sempre se verifica a “superioridade técnica do empregador”. De acordo com este último Autor, hoje é generalizadamente aceite que uma relação de subordinação jurídica possa constituir-se sem qualquer dependência técnica. Os “graus” de intensidade da subordinação dependem das “aptidões profissionais do trabalhador” e do “carácter técnico” das funções desenvolvidas.
74 Partindo das categorias elencadas, XXXXXXXX XXXX XXXXXX, Manual de Direito do Trabalho, Lisboa: Verbo, 2011, pp. 319-321, salienta que o poder de direcção está limitado pelo “objecto da prestação contratualmente fixado”, mais concretamente, pela actividade profissional definida no contrato. Não pode o titular daquele poder exigir que o trabalhador desenvolva uma actividade para a qual não foi contratado, o que não se confunde com o jus variandi de que dispõe, isto é, a susceptibilidade de requerer ao trabalhador o exercício de funções diversas, atendendo a situações anómalas e temporárias da empresa. Como melhor veremos, no sector desportivo é muito frequente que um treinador adjunto ou de escalões de formação assuma o cargo de “treinador principal” em virtude do despedimento ou denúncia do contrato por iniciativa deste último.
Nenhum destes elementos invalida a sujeição do treinador a um regulamento interno no exercício das suas funções, a par dos atletas e outros profissionais como treinadores adjuntos ou preparadores físicos. Encontra-se sujeito à aplicação de sanções disciplinares75, ainda que partilhe com a entidade empregadora o poder de aplicar sanções da mesma natureza76. Também neste domínio não existe uma plena “igualdade de armas” entre treinador e entidade empregadora.
A actividade profissional em análise integra uma estrutura77 hierarquizada, destinada a garantir a execução da prática desportiva profissional e, consequentemente, os objectivos desportivos traçados. Não podemos deixar de referir a importância do “método indiciário”78 para determinar a qualificação do contrato celebrado como trabalho subordinado, assente num conjunto de elementos que, novamente, se reportam ao “momento organizatório da subordinação”79. Sendo certo que “a subordinação, enquanto elemento intrínseco à posição do trabalhador no contrato de trabalho”, não deve confundir- se com os seus próprios indícios, estes assumem especial importância na relação laboral dos treinadores. Neste caso, a posição subalternizada do trabalhador é menos visível e o poder de direcção do clube ou entidade desportiva menos intenso. Apesar da autonomia
75 O dever de obediência vincula o trabalhador a cumprir as normas internas da empresa e executar a prestação laboral de acordo com as directrizes da entidade empregadora. Destaca-se, ainda, um dever de diligência, quer na prossecução dos resultados pretendidos, quer na utilização dos equipamentos disponibilizados pela entidade desportiva. Segundo XXXXXX XXXXXXXXX, Diritto del lavoro sportivo, Ob. Cit., p. 96, ambos os deveres podem extrair-se do artigo 2094.º do codice civile italiano.
76 Esta dimensão comprova que o treinador assume uma posição intermédia na hierarquia estabelecida entre os órgãos dirigentes do clube ou entidade desportiva e os atletas contratados (ou convocados no caso das selecções nacionais). No futebol, por exemplo, é visível a delegação de poderes sancionatórios no treinador quando este último decide pela despromoção de um jogador do plantel principal à “equipa B” por violação dos seus deveres de conduta. O CCT aplicável, no seu artigo 13.º, alínea c), vincula o treinador a “cumprir e fazer cumprir ordens e instruções da entidade patronal e seus representantes em tudo o que respeite à execução e disciplina da actividade desportiva específica para que foi contratado”. Se podemos dizer que o treinador ocupa um cargo hierarquicamente superior ao dirigir a actividade do praticante desportivo, resta- nos aferir de que forma estas funções influenciam a determinação do regime jurídico aplicável.
77 Ao privilegiar o “elemento organizatório” na identificação do vínculo laboral, ou seja, a integração do trabalhador numa organização de trabalho alheia dirigida à obtenção de fins, também eles, alheios, o legislador português pretendeu ir além do exercício efectivo de um “poder de direcção” para qualificar o contrato de trabalho (XXXXXXXX XXXXXXXXX, Direito do Trabalho, Ob. Cit., pp. 123-124).
78 XXX XX XXXXX, O poder de direcção do empregador – Configuração, Ob. Cit., p. 44.
79 Para uma análise deste método, vide XXXXXXXX XXXXXXXXX, Direito do Trabalho, Ob. Cit., pp. 130-
134. Alguns dos indícios de subordinação propostos são profundamente afectados pelas especificidades do sector desportivo. É o caso da definição do horário de trabalho que, como melhor veremos, constitui uma das competências típicas do empregador delegadas no treinador desportivo. Destaca-se, ainda, a “a execução da prestação em local definido pelo empregador”, “a propriedade dos instrumentos de trabalho”, a “sujeição à disciplina da empresa”, a “modalidade de retribuição” e “indícios de carácter formal e externo, como a observância dos regimes fiscal e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem”.
técnica no exercício das suas funções, a linha de “fronteira” deve estabelecer-se pela “direcção final” do trabalho realizado80.
Por tudo o que fica dito, consideramos demasiado redutora a visão que reconduz a actividade desenvolvida pelos treinadores à obtenção de resultados desportivos satisfatórios, centrada no momento da competição. Para efeitos qualificativos não é possível desconsiderar o percurso de treino e preparação em que se identificam, com maior ou menor acuidade, os poderes de autoridade exercidos pela entidade empregadora81.
Estamos aptos a complementar o raciocínio inicialmente vertido neste capítulo. Sendo certo que não existe nenhuma incompatibilidade prévia que obste à qualificação do contrato celebrado pelos treinadores como contrato de prestação de serviços, é igualmente verdade que a autonomia técnica daqueles profissionais não afasta o exercício da actividade no “âmbito de organização e sob autoridade” do clube ou entidade desportiva. A intensidade do vínculo de subordinação varia consoante as funções assumidas pelo treinador e os poderes directivos que lhe são delegados. Desta forma, a curta duração do contrato, destinado à participação num evento ou conjunto de eventos desportivos82 como os jogos olímpicos ou um campeonato do mundo, não é elemento decisivo para afastar as conclusões apresentadas83. A dinâmica da competição desportiva profissional não consente com a longevidade do vínculo, afectada pela incerteza dos resultados e pelas alterações frequentes na gestão dos “projectos desportivos”. Seja como for, não podemos generalizar que o treinador se vincula a uma obrigação de resultado84.
A noção de contrato de trabalho prevista pelo artigo 11.º do CT não refere a dependência económica do trabalhador como elemento qualificativo, já que essa
80 Convocamos XXXXX XXXXXXX XXXXX (Poder de Direccion y Contrato de Trabajo, 1993), Cit. Por. XXX XX XXXXX, O poder de direcção do empregador – Configuração, Ob. Cit., pp. 45-46. Apesar de tudo, para este último Autor (p.47), “o quadro explicativo da subordinação jurídica” não pode deixar de “radicar” no próprio contrato de trabalho celebrado.
81 Sobre o relacionamento entre o “encaminhamento” da prestação do trabalhador e a sua autonomia técnica,
vide XXXXXXXX XXXX XXXXXX, Manual de Direito do Trabalho, Ob. Cit., pp. 422-426.
82 Neste sentido, o critério especial de “subordinação” convocado pela lei n.º 91/1981 poderia provocar equívocos na qualificação da relação jurídica constituída pelos treinadores. Por exemplo, ainda que fosse inequívoco o exercício de poderes de direcção pelo clube desportivo e inquestionável a subordinação jurídica que caracteriza o vínculo laboral, bastaria que o contrato se destinasse à participação num único evento desportivo para determinar a qualificação como trabalho autónomo. XXXXXX XXXXXX, “Il contratto di lavoro, I”, Ob. Cit., p. 354, reconhece os potenciais erros de qualificação causados pela lei italiana.
83 Salvaguardamos que CCT aplicável reconhece o carácter subordinado da relação jurídica estabelecida entre treinador de futebol e clube ou SAD contratante (artigo 1.º), com base no “carácter regular” da actividade.
84 O trabalho autónomo, cuja definição consta do artigo 2222.º do codice civile italiano, “esgota-se” na prestação de “obra ou serviço”. Entre quem contrata e quem é contratado não existe qualquer outra relação que possa indicar a subordinação na execução do objecto contratual (XXXXXXXX XXX XXXXX, Diritto del lavoro, 2.ª ed., Milan: Giuffré Editore, 2008, pp. 327-328).
característica pode existir nas relações de trabalho autónomo85. Sem prescindir, consideramos de suma importância a tutela conferida pelo sistema jurídico-laboral ao contrato celebrado pelos treinadores que têm na retribuição auferida ao serviço do clube ou entidade desportiva o seu principal ou exclusivo meio de subsistência.
Após um período de maior debate jurisprudencial acerca da qualificação do contrato celebrado pelos treinadores86, actualmente existe uma clara tendência para a integração desta actividade nos pressupostos do contrato de trabalho87. Também em Espanha, como salienta KOLDO IURZUN UGALDE88, a jurisprudência tem vindo a reconhecer
o vínculo de subordinação constituído pelos treinadores, baseando-se em duas notas essenciais: trabalho por conta de outrem e dependência. O Autor reforça que aqueles não suportam o “risco empresarial” associado à actividade que desenvolvem e actuam na qualidade de “empregados”. Encontram-se submetidos ao poder de direcção dos órgãos
85 XXXXXXXX XXXXXXXXX, Direito do Trabalho, Ob. Cit., p. 123.
86 Entre vários exemplos, destacamos o Acórdão do STA de 30 de Abril de 1963, Recurso n.º 5607 (Acórdãos Doutrinais do STA, Ano II, n.º 19, pp. 992-997) onde se pretendeu firmar a natureza do contrato celebrado pelo treinador de futebol. Para o clube contratante não estaria em causa um “serviço subordinado”, mesmo que as funções do treinador passassem pela orientação da equipa sénior em competição e a preparação física e atlética dos jogadores. Considerou o STA, ainda assim, a verificação de um vínculo de subordinação “económica” e “jurídica”, pois apesar da liberdade de actuação dos treinadores no aspecto técnico, o clube não estava privado de transmitir as “directerizes gerais para esse efeito”. A decisão seguiu a linha de orientação do Acórdão do STA de 20 de Junho de 1954, Recurso n.º 3141 (Secção do Contencioso do Trabalho e Previdência Social, Colecção de Acórdãos, Vol. XV, 1953), segundo o qual, ainda que o clube desportivo nunca tenha dado qualquer “orientação técnica” ao treinador, esse factor não prejudica o direito de o fazer, evidenciando a existência de um verdadeiro contrato de trabalho. A jurisprudência tem vindo a reconhecer as particularidades do contrato de trabalho dos treinadores. O Acórdão do STJ de 12 de Julho de 1985, processo n.º 975, 4.ª Secção, relator: Xxxx Xxxxxxx, BMJ, n.º 349, pp. 325-328, por exemplo, reconheceu que na relação contratual estabelecida pelos treinadores de futebol há que atender, essencialmente, a duas especificidades: a curta duração dos mesmos, referidos a épocas desportivas, e a fixação de uma indemnização mais vantajosa, comparativamente com o regime laboral comum. Na época, a jurisprudência destacava a importância desta qualificação para a submissão dos litígios existentes à jurisdição dos Tribunais do Trabalho (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12 de Outubro de 1994, Recurso n.º 9065, 4ª secção, BMJ, n.º 440, p. 553). Destacamos, ainda, uma decisão arbitral que, entre outros elementos, analisou a natureza do contrato celebrado entre um clube de basquetebol e o seu treinador principal. Estabeleceu que as partes não se tinham limitado a uma prestação de serviços ou obrigação de resultado, “ajustando que o trabalho do treinador seria prestado integrado na estrutura do clube”. Além disso, o treinador vinculou-se “à disciplina e instruções” do clube, a quem competia “criar as condições para a prestação do trabalho por parte do treinador”. Para além de fixar as condições remuneratórias, o contrato celebrado remetia para a aplicação subsidiaria do regime especial dos praticante desportivos. Por todos estes motivos reconheceu-se a celebração de um contrato de trabalho. Cfr. XXXXXXX XXXXX, “Acórdão do Tribunal Arbitral do Basquetebol, Processo n.º 1/2004”, Separata de Desporto & Direito – Revista Jurídica de Desporto, Ano III, n.º 7, Setembro / Dezembro, Coimbra Editora, 2005, pp. 117-119.
87 “É o regime laboral comum aplicável aos contratos entre clubes e treinadores profissionais?”, Ob. Cit., p. 131.
88 XXXXX XXXXXX XXXXXX,“La prestacion laboral del entrenador”, Civitas: REDD, n.º 4, 1994, pp. 225-226.
dirigentes do clube ou entidade desportiva que representam, ainda que exercido de forma particular, o que impede a convocação de um regime civilístico.
Apresentados os dados essenciais do problema, realçamos as palavras de XXX XXX XXXXXXX00, segundo o qual a conjugação entre a autonomia que o treinador desportivo possui e o “significativo afrouxamento dos traços essenciais da relação jurídico-laboral” pode, no caso concreto, demonstrar que não existe uma relação jurídica de subordinação. À
semelhança da doutrina italiana já convocada, o Autor destaca que no âmbito da actividade dos treinadores desportivos é imperiosa uma análise casuística dos contratos estabelecidos, por forma a identificar o regime mais adequado aos direitos e obrigações contratualmente estabelecidos. Exemplifica esta situação com a matéria vertida no Acórdão do STJ de 8 de Fevereiro de 201190, decisão que reconheceu a celebração de um contrato de “prestação de serviços na modalidade de avença” por parte de um treinador de futebol. Julgamos que as conclusões retiradas pelo Acórdão não invalidam a exposição tecida até aqui. Se não vejamos.
O treinador em causa foi contratado para prestar assessoria técnica à equipa principal do clube. As funções contratualmente estipuladas incluíam a observação de atletas potencialmente contratáveis, em especial jovens, o “acompanhamento, aconselhamento, apoio ou orientação” dos jogadores do clube, quando solicitado, e a colaboração na preparação dos diversos jogos da equipa, através da observação de jogadores e equipas adversárias (o denominado “scouting”)91. O litígio entre as partes surgiu durante a vigência do contrato de prestação de serviços92, após o treinador ter
89 XXX XXX XXXXXXX, “Treinador desportivo: regime jurídico precisa-se!”, Ob. Cit., p. 193.
90 Processo n.º 954/07.6TBVFX.L1.S, Relator: Fonseca Ramos, disponível em xxx.xxxx.xx.
91 O “scouting”, assume cada vez mais importância no computo das funções desempenhadas pelos treinadores. Vejam-se, por exemplo, as atribuições estabelecidas nos contratos dos treinadores da NFL norte americana, dos quais resulta, frequentemente, a vinculação contratual a tarefas deste tipo, para além das funções de aconselhamento e avaliação de potenciais talentos, susceptíveis de integrar uma operação de DRAF. Seguimos XXXXXX X. LATTINVILLE e XXXXXX X. BOLAND, “Coaching in the National Football League: a market survey and legal review”, Marquet Sports Law Review, Vol. 17, Fall 2006, n.º 1, pp. 147-148.
92 O Acórdão enquadrou o contrato de prestação de serviços no regime jurídico do mandato, em particular nas obrigações do mandante fixadas pelo artigo 1167.º do CC, por remissão do artigo 1156.º do CC. Da argumentação apresentada destaca-se que o treinador deixou de comparecer nas instalações do clube, omitindo a celebração de um contrato de trabalho, em regime de exclusividade, com novo clube. A sua conduta violou o dever de informação necessário à manutenção da relação de confiança entre as partes, por imposição do princípio geral da boa-fé (artigo 762.º do CC). Além disso, “exprimiu de forma concludente e tacitamente a sua vontade de pôr termo ao contrato” de prestação de serviços. O STJ declarou a resolução do mesmo contrato com base na impossibilidade “superveniente e culposa” do treinador para a realização da sua prestação, nos termos do artigo 1171.º do CC, e desonerou o clube do pagamento da indemnização fixada
celebrado um contrato de trabalho com outro clube para exercer, em regime de exclusividade, as funções de “treinador principal”, relacionadas com a preparação e acompanhamento de uma equipa de futebol em todas as competições ao longo da época desportiva. Na qualificação deste último contrato, o STJ não teve dúvidas em identificar um vínculo de subordinação jurídica.
Na apreciação do caso, começamos por inviabilizar a compatibilidade entre o contrato de prestação de serviços e o contrato de trabalho quando celebrados pelo mesmo treinador com dois clubes ou entidades desportivas concorrentes93. À margem desta questão, fica demonstrada a compatibilidade entre as funções exercidas pelo treinador e o contrato de prestação de serviços. Não estava em causa o núcleo de funções tipicamente associado a esta actividade, relacionadas com o treino diário dos atletas, o acompanhamento e a intervenção nos jogos e competições desportivas realizadas. Os serviços prestados pelo “treinador-assessor” dispensavam o cumprimento do mesmo horário de trabalho da equipa de futebol, o contacto permanente com esta e a utilização constante das instalações e equipamentos do clube, com vista à preparação dos atletas. A sua actuação era concertada com a equipa técnica do clube e apenas esta dispunha dos conhecimentos necessários para avaliar a qualidade dos serviços prestados. Além disso, a obtenção de resultados desportivos não constituía um dos objectivos do contrato celebrado. Não cabia ao treinador dirigir a equipa na prossecução desses resultados, tarefa que potencia a ingerência do clube ou entidade desportiva no exercício da prestação. Por todos estes factores, compreendemos a inexistência de um vínculo de subordinação jurídica.
Em síntese, quando esteja em causa o núcleo essencial de funções desempenhadas pelo treinador desportivo, entre as quais a preparação e o acompanhamento dos atletas durante a competição, não deve afastar-se a existência de uma relação jurídico-laboral
entre as partes para a cessação antecipada do contrato, concluindo pela sua “inexecução subjectiva” de acordo com a terminologia de Xxxxxxx Xxxxxxx.
93 Desta situação pode retirar-se o sentido útil da obrigação de exclusividade prevista no artigo 21.º do CCT aplicável, norma que salvaguarda a concorrência e a competitividade entre os clubes de futebol que integram a(s) mesma(s) competições desportivas. Não podemos conceber que o treinador preste serviços de assessoria técnica e “scouting” para um clube e seja “treinador principal” de outro, obtendo em cada um dos cargos informações privilegiadas, susceptíveis de influenciar os resultados desportivos obtidos no confronto directo entre as equipas. No caso relatado pelo Acórdão do STJ de 8 de Fevereiro de 2011, Cit., o problema estaria atenuado pelo facto do clube com o qual o treinador havia estabelecido o contrato de prestação de serviços ter sido impedido de “participar em competições profissionais de futebol” antes da celebração do segundo contrato.
apenas pela autonomia técnica que aquele detém94. O “objecto do contrato (prestação de uma actividade ou obtenção de um resultado)” e o modo de “relacionamento entre as partes (subordinação jurídica ou autonomia)”95 são determinantes para a qualificação atribuída96.
A qualificação do contrato celebrado pelos treinadores como prestação de serviços não pode (nem deve) estar excluída, ainda que contribua para a precarização dos seus direitos e garantias, num sector onde os maus resultados desportivos precipitam a cessação
94 Ainda que pudéssemos descriminar todas as funções exercidas pelo treinador que devem estar a coberto de um relação jurídico-laboral, essa qualificação estaria dependente da forma como as mesmas seriam exercidas em concreto. De acordo com REMEDIOS ROQUETA BUJ, Los Deportistas Profesionales, Régimen jurídico laboral y de seguridade social, Valencia: Tirant lo blanch, 2011, pp. 70-71, o técnico desportivo, enquanto profissional para o qual é defensável a aplicação de um regime laboral “especial”, participa activamente na dinâmica da actividade desportiva, preparando física e tecnicamente os desportistas, elegendo o sistema de jogo e designando os atletas que devem alinhar em cada partida, por forma a participar no “espectáculo profissional”. Problema diferente é saber que tipo de funções estão excluídas da actividade desenvolvida pelos treinadores. No ordenamento jurídico brasileiro, por exemplo, o Acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, Porto Alegre, de 11/01/1996, RO 95.001217 – 3, disponível em: xxx.xxxxxxxxx.xxx.xx, negou a qualificação de um preparador físico como “treinador de futebol” e a sua integração no âmbito do artigo n.º 2 da Lei 8.650/93, julgando improcedente o pedido de indemnização correspondente a 50% do valor salarial, num contrato presumido de dois anos, bem como o pagamento de repousos semanais remunerados e prémios remuneratórios contemplados nos contratos celebrados pelos treinadores do clube (“bichos” e “luvas”).
95 Citamos o Acórdão do STJ de 15 de Setembro de 2010, processo n.º 419/04.0TTLSB.S1, relator: Xxxxxxx Xxxxx, disponível em: xxx.xxxx.xx, o qual abordou a qualificação do contrato celebrado entre uma atleta de lançamento do peso e determinado clube desportivo. Concluiu o STJ que as partes quiseram a celebração de um verdadeiro contrato de trabalho (e não de uma prestação de serviços como haviam qualificado), dado que “sempre esteve presente a possibilidade do clube orientar e dirigir a actividade laboral da atleta, ainda que indirectamente através de um treinador por ele remunerado, ou de técnicos de medicina desportiva por ele designados, com sujeição a normas disciplinares contidas em regulamento do próprio clube (…)”. O caso contém algumas especificidades importantes para o objecto do nosso estudo, entre as quais o facto de o clube ter contratado um treinador fora dos seus quadros, a quem pagava “a recibos verdes” para que orientasse a preparação da atleta, uma vez que esta treinava fora das instalações do clube. Ficou provado que o treinador foi contratado com o único objectivo de acompanhar a preparação daquela. A sua “dispensa” após a cessação do contrato entre clube e atleta não foi abordada pelo Acórdão, ainda que esta cessação tenha sido considerada um “despedimento ilícito”.
96 A qualificação do contrato celebrado pelos treinadores é influenciada pelo seu enquadramento legal, como demonstra a decisão proferida no ordenamento jurídico brasileiro pelo TRT da 2ª Região – RO 2008031884 de 15/04/2008. Neste caso, o clube desportivo não formalizou o registo do contrato de trabalho a termo celebrado com o seu treinador de futebol, de acordo com as especificações exigidas pelo artigo 6.º da Lei 8.650/93, defendendo a celebração de um contrato de prestação de serviços pelo período de 90 dias, integralmente cumprido. Contrariamente, o Tribunal reconheceu o vínculo laboral entre as partes, com a duração de uma época desportiva, condenando o clube no pagamento das “verbas trabalhistas” devidas pela cessação antecipada do contrato. O ónus de provar a existência do contrato de prestação de serviços pelo período referido recaía sobre o clube, prova essa que não foi conseguida. Partindo desta decisão jurisprudencial, XXXXXXX XXXXX XX XXXXX, “TRT da 2ª região, Define relação empregatícia por prazo determinado entre treinador e equipe de futebol – contrato civil”, RBDD, Ano 10, n.º 19, 2011, pp. 296-300, destaca que a solução alcançada deriva da regra geral prevista no artigo 593.º do código civil brasileiro, segundo o qual “a prestação de serviços que não esteja sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial, reger-se-á” pelas disposições daquele código. Estando o treinador de futebol abrangido por lei especial e verificados os pressupostos essenciais da relação laboral: “subordinação, dependência do treinador, o trabalho não eventual e a remuneração” (artigo 3.º da CLT), não seria possível outra qualificação.
antecipada do vínculo. O “êxito é directamente proporcional à intolerância no fracasso”97 e todos os factores convocados requerem uma cautelosa ponderação, sem esquecer a “presunção de contrato de trabalho” a que se refere o artigo 12.º n.º 1 do CT98.
Identificados os pressupostos essenciais da relação laboral, cabe ao clube ou entidade desportiva demonstrar a existência de uma relação jurídica de trabalho autónomo. Prosseguiremos com o intuito de identificar o regime jurídico que melhor se adequa à actividade do treinador enquanto trabalhador subordinado.
97 XXXXX XXXXXX XXXXXX, “Contratação de treinadores de futebol, A natureza efémera como legitimação da ditadura do termo”, Revista de Desporto & Direito, Ano IV, n.º 12, 2007, p. 390.
98 Com excepção da alínea d), todas as outras alíneas do artigo 12.º n.º 1 do CT realçam o já referido “elemento organizatório da subordinação”. De acordo com XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “O artigo 9.º do código do trabalho e a situação laboral dos treinadores desportivos”, Ob. Cit., pp. 40-41, as partes podem optar pelo “modelo contratual” que melhor se adeque aos seus interesses e pelo regime legal correspondente, mas a qualificação do contrato celebrado não está na sua disponibilidade. Sendo possível argumentar no sentido da inexistência de um verdadeiro contrato de trabalho, “a especial utilidade que estes contratos geram para a entidade empregadora parecem consentir a qualificação como contrato de trabalho”. (“O pluralismo do direito do trabalho”, III Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Ob. Cit., pp. 288- 289).
III. O regime jurídico aplicável ao contrato de trabalho dos treinadores
Percorrido o trilho da qualificação do contrato, iniciamos um percurso igualmente ardiloso com o intuito de identificar o regime jurídico aplicável ao contrato de trabalho dos treinadores desportivos. Nesta matéria, Portugal e Espanha apresentam assinaláveis pontes, visto que o legislador não reconheceu em nenhum dos ordenamentos jurídicos a natureza especial daquela relação laboral. Importa, por isso, confrontar as alternativas assinaladas pela doutrina e jurisprudência nos dois países99. Em primeiro lugar abordaremos a comissão de serviço100, prevista no artigo 161.º e seguintes do CT, tecendo algumas comparações com o regime dos profissionais que ocupam cargos de “alta direcção” em Espanha (RD 1382/1985 de 1 de Agosto). Passaremos depois à apreciação da conformidade entre o regime laboral comum e a relação laboral dos treinadores desportivos e, finalmente, abordaremos a aplicabilidade do regime que regula a actividade do praticante desportivo, estabelecido no nosso país pela Lei 28/98 de 26 de Junho e em Espanha pelo RD 1006/1985 de 26 de Junho.
99 Para o reconhecimento de três alternativas no sistema espanhol, vide KOLDO IURZUN UGALDE, “La prestacion laboral del entrenador”, Ob. Cit., p. 226.
100 XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos (…), Ob. Cit., p. 59, considera que as “funções de direcção”, frequentemente desempenhadas pelos treinadores de clubes ou sociedades desportivas, aproximam-nos dos trabalhadores em comissão de serviço.
101 O diploma prevê como objecto essencial do contrato de trabalho dos treinadores de futebol o treino e preparação das equipas para competir. Além disso, deve ser celebrado por tempo determinado, com uma duração máxima de dois anos (artigo 6.º). Como salientou XXXXXXX XXXXX DA COSTA junto da Comissão de Direito Desportivo da 21ª Subsecção da Ordem dos Advogados Brasileira, Cit. Por. XXXXXXX XXXXXXXXX XXXXXX e ANDRÉ DE MELO RIBEIRO, “Aspectos trabalhistas do contrato de cessão do uso de imagem dos treinadores de futebol”, Direito do Trabalho Desportivo – Homenagem ao Professor Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, São Paulo - Brasil: Xxxxxxxx Xxxxx, 0000, pp. 249-255, embora a solução tenha pretendido criar uma certa estabilidade no vínculo contratual dos treinadores, a ausência de um período de duração mínimo para o contrato de trabalho acabou por gerar “conflitos e incertezas”. Pode questionar-se se findo o referido período de dois anos é exigível a celebração de um novo contrato para a manutenção do vínculo laboral e se esse novo vínculo deve apresentar o mesmo limite de duração ou estabelecer-se por tempo indeterminado.
vindo a reconhecer as especificidades do sector desportivo e a sua influência na relação laboral em análise102, assim como a insuficiência ou até desadequação da regulamentação existente, focada na realidade dos treinadores de futebol103.
3.1. A aplicação do regime legal da comissão de serviço
A reflexão sobre o regime que melhor se adequa à prestação laboral dos treinadores desportivos requer uma análise das competências atribuídas com a celebração do contrato de trabalho e da forma como o seu exercício condiciona a prestação laboral dos demais trabalhadores contratados pela entidade empregadora, em especial os praticantes desportivos.
Como ficou introduzido, sendo certo que as disposições do regime laboral comum devem aplicar-se na ausência de um regime especial regulador do contrato de trabalho dos treinadores desportivos, algumas dessas soluções não acompanham as especificidades do sector desportivo. Desta forma, justifica-se a apreciação de outros regimes especiais como alternativa para a falta de previsão específica do legislador104. Por agora, trazemos à colação o enquadramento da actividade desenvolvida pelos treinadores numa modalidade de contrato de trabalho que pressupõe a particular relação de confiança estabelecida entre trabalhador e entidade empregadora105.
102 XXXXXXX XXXXXXXXX XXXXXX e ANDRÉ DE MELO RIBEIRO, “Aspectos trabalhistas do contrato de cessão do uso de imagem dos treinadores de futebol”, Ob. Cit., p. 252, reconhecem que o treinador se submete ao poder de direcção da sua entidade empregadora, ainda que de forma diversa do trabalhador comum, especialmente pela forma como os dirigentes do clube interferem nas actividades quotidianas.
103 Por esta razão XXXXXX XXXXXXXX XXXXX, Direito Desportivo Trabalhista – A Influência do ordenamento do desporto na relação laboral desportiva e os seus poderes disciplinares, São Paulo - Brasil: Quartier Latin, 2010, p. 138, reivindica uma lei específica do trabalho desportivo no Brasil que consiga abarcar “o máximo de modalidades desportivas”.
104 Teremos como base a noção “material de contrato de trabalho especial” avançada por XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “O artigo 9.º do código do trabalho e a situação laboral dos treinadores desportivos”, Ob. Cit., p. 30-31, determinada pela sua “fattispecie”, ou seja, pelas “circunstâncias que assumem nessas situações carácter essencial, com necessária repercussão na disciplina jurídica”. Apesar da manifestação de dois elementos essenciais: subordinação jurídica e retribuição, aquelas circunstâncias implicam uma “valoração jurídica” diferenciada.
105 Trataremos de integrar a prestação laboral dos treinadores no âmbito da comissão de serviço enquanto “modalidade do contrato de trabalho comum” com especificidades de regime em relação ao quadro “genericamente aplicável” (XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “O artigo 9.º do código do trabalho e a situação laboral dos treinadores desportivos”, Ob. Cit., pp. 26-27).
Começamos por salientar que não existe uma plena equivalência entre o regime da comissão de serviço adoptado em Portugal e aquele que regulamenta os cargos de alta direcção em Espanha106. Reforçadas as necessárias diferenças, realçamos que a relação contratual estabelecida pelo trabalhador que ocupa cargos de direcção “não deixa materialmente de se subsumir nos elementos do tipo contrato de trabalho”107, verificados três elementos fundamentais: a existência de uma prestação laboral, a retribuição do trabalhador e a sujeição ao exercício do poder disciplinar por parte da entidade empregadora. De acordo com XXXXX XXXXX, no ordenamento jurídico português verifica-se um “princípio de equiparação do regime jurídico das situações de comissão de serviço ao regime geral do contrato de trabalho”108.
No seguimento, pressupondo que a aceitação de um cargo em comissão de serviço não afasta a “matriz” do contrato de trabalho, de que forma poderá o regime previsto para aquela modalidade regulamentar a actividade dos treinadores desportivos e quais as vantagens dessa solução?
O artigo 161.º do CT109 permite a celebração de um contrato em comissão de serviço para o exercício de funções de “direcção ou chefia directamente dependente da administração ou de director-geral ou equivalente” ou relativamente a funções cuja natureza pressuponha uma “especial relação de confiança”, quando o IRCT aplicável o preveja expressamente. Neste sentido, existirão razões para equipar a actividade do
106 Em Espanha, a qualificação do “alto directivo” como trabalhador não resulta de qualquer disposição legal, mas antes da verificação, em concreto, dos elementos integrantes da estrutura do contrato de trabalho (voluntariedade, trabalho por conta de outrem, dependência e retribuição), tal como indica XXXX XXXXXXXXX XXXXXX, “Calificación de la relación del personal técnico de un club o sociedad anónima deportiva” (xxxx://xxx.xxxxxxx.xxx/). XXXXXX XXXX x XXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx xxx xxxxxxx, 00.x xx., Xxxxxx: Civitas, 2001, p. 82, salvaguardam que, na realidade, o “alto directivo” não é um trabalhador, ainda que a relação jurídica que estabelece seja qualificada como laboral especial. Além disso, ao contrário do disposto para a comissão de serviço, o artigo 3.º do RD 1382/1985 de 1 de Agosto define como regimes subsidiários a legislação civil e mercantil (e respectivos princípios gerais), aplicáveis em todos os domínios que não tenham sido especificamente regulados pelas partes. A aplicação da legislação laboral comum como “fonte reguladora” depende de “remissão expressa do contrato laboral”. Para uma leitura destas nuances, cfr. ÉFREN BORRADO DA CRUZ, “El personal de alta dirección en la empresa”, REDT, n.º 22 (Abr./Jun.), 1985, pp. 161-162.
107 XXXXX XXXXX XXXXX, “Principais aspectos do regime jurídico do trabalho exercido em comissão de serviço”, Estudos de Direito em Homenagem ao Professor Xxxxxx Xxxxxx Xxxx, Coimbra: Almedina, 2004, pp.243-244, nota 2.
108 XXXXX XXXXX, “Comissão de Serviço”, Questões Laborais n.º 16, Ano VII, 2000, p. 159.
109 Para XXXXXXXX XXXXXXXXX, Direito do Trabalho, Ob. Cit., pp. 205-206, com a reforma promovida pela Lei 23/2012, de 25 de Junho, o artigo 161.º do CT alargou significativamente o conjunto de actividades que podem ser exercidas em comissão de serviço, abrangendo “todos os níveis de hierarquia das organizações”, entre os quais as “funções de chefia” que podem, no entendimento do Autor, dispensar uma “especial relação de confiança”.
treinador desportivo a um cargo desta natureza? No caso concreto dos treinadores de futebol, deveria o CCT prever a aplicação do regime da comissão de serviço aos casos omissos, em alternativa à remissão para o regime laboral comum (artigo 5.º n.º 1 e 2 do CCT aplicável), de tal modo que se tornaria numa solução mais adequada à “natureza específica daquele contrato”? A resposta exige uma análise dos elementos que distinguem esta modalidade contratual.
Em sentido estrito ou técnico110 a comissão de serviço não é mais do que um expediente utilizado por uma organização empresarial com o objectivo de mover o trabalhador do seu posto de trabalho111, atribuindo-lhe uma categoria profissional que, pela sua natureza112, apresenta superiores responsabilidades e pressupõe o desenvolvimento de uma especial relação de confiança entre trabalhador e entidade empregadora. Constitui, assim, uma modificação da relação contratual existente, temporária na sua essência e remunerada.
Retido o conceito, constatamos que a prestação laboral dos treinadores é fundamental para a realização da prática desportiva, sendo estes que, em regra, coordenam e dirigem a actividade dos atletas profissionais, para além de todas as funções já referidas a propósito da sua autonomia técnica. Quando falamos de uma equipa técnica, as funções de direcção são mais facilmente reconhecidas no treinador dito principal do que nos treinadores adjuntos. Facilmente concluímos que aquelas funções exigem uma particular relação de confiança entre o clube ou entidade desportiva e o treinador contratado, no qual são depositadas as expectativas quanto ao sucesso desportivo do atleta ou equipa treinada.
Porém, a utilização da referida noção “estrita” ficaria adstrita a situações residuais. Considerando a aquisição de novas funções no seio da empresa que caracteriza o instituto, somente aquando da cessação antecipada do contrato celebrado pelo treinador poderia equacionar-se que um profissional do mesmo clube ou entidade desportiva viesse a assumir o cargo. Trata-se de uma situação usual nos desportos colectivos, em que o clube desportivo opta por promover um treinador adjunto ou de escalões de formação a
110 Quanto às várias modalidades da comissão de serviço, convocaremos a terminologia de XXXXX XXXXX,
“Comissão de Serviço”, Ob. Cit. pp. 153-154; 156-159.
111 XXXX XXXX XXXXX, Contrato de Trabalho, Ob. Cit., p. 155, define a comissão de serviço como “cláusula acessória” que pode ser aposta ao contrato de trabalho quando em causa esteja o desempenho de determinadas funções, marcadas “por uma especial relação de confiança interpessoal”.
112 ÉFREN BORRADO DA CRUZ, “El personal de alta dirección en la empresa”, Ob. Cit., pp. 163-164, considera que a índole das funções desempenhadas (aconselhamento, governo e direcção) permite identificar uma relação de alta direcção.
“treinador principal” para evitar a contratação de um trabalhador “externo” no decurso da época desportiva ou, simplesmente, para dar oportunidade a um profissional já adaptado à realidade e estrutura organizativa do clube.
Sem prejuízo, a comissão de serviço pode desdobrar-se em diferentes modalidades, reconhecidas pelo artigo 162.º n.º 1 e 2 do CT. Quando o trabalhador for contratado para exercer funções que implicam uma especial relação de confiança, a cessação das mesmas pode implicar uma de duas soluções: a manutenção do contrato de trabalho no exercício de outra categoria profissional (comissão de serviço com garantia de emprego), desde que contratualmente estipulada pelas partes, ou a ruptura definitiva do vínculo laboral (comissão de serviço sem garantia de emprego)113. Relativamente a esta última modalidade, muitas dúvidas se colocam quanto à conformidade constitucional, na medida em que concretiza uma forma encapotada de despedimento ad nutum, ou seja, abdica da necessária justa causa para o despedimento, imposta pelo artigo 53.º da CRP114.
Ainda que não possamos abdicar das dúvidas quanto à constitucionalidade da modalidade de comissão de serviço sem garantia de emprego, sempre diremos que uma análise detalhada do funcionamento do sector desportivo nos leva a concluir que esta é a modalidade que melhor se adequa à realidade dos treinadores. Estamos perante uma profissão onde, em regra, o sucesso advém dos resultados desportivos obtidos, essenciais para a manutenção de uma relação de confiança com os dirigentes do clube ou entidade desportiva e do apoio manifestado por sócios, adeptos e outros investidores. O prestígio destes profissionais é construído a partir das vitórias ou das classificações obtidas pelos
113 XXXXX XXXXX, “Comissão de Serviço”, Ob. Cit. p. 157.
114 Como bem salienta XXXX XXXX XXXXX, “Comissão de Serviço e segurança no emprego: uma dupla inconciliável?”, RLJ, Ano 140.º, n.º 3966, 2011, p. 175, “a comissão de serviço pode e deve ser transitória, mas o emprego não tem de ser (nem deveria poder ser) precário”. Para o Autor, a modalidade de comissão de serviço (“externa”) que não garanta a subsistência do vínculo laboral após a cessação dessas funções é incompatível com a exigência constitucional do despedimento com justa causa. Ainda que a natureza da modalidade contratual exija uma flexibilização da forma de cessação, tendo em conta a especial relação de confiança que a constitui, essa agilização não deve acarretar, necessariamente, a extinção do contrato de trabalho. Contrariamente, o Acórdão do TC n.º 338/2010, processo n.º 175/09, disponível em xxx.xxxxx.xxx.xx, realçou o carácter fiduciário da comissão de serviço, sustentando que a quebra da confiança nessa relação fiduciária torna inexigível a manutenção da relação laboral, ou seja, “não vale o princípio da segurança no emprego”. Na mesma linha, XXXXX XXXXX XXXXXXX, Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 2010, p. 328, afirma que a comissão de serviço constitui um “importante desvio constitucional da segurança no emprego”, dado que é inexigível a manutenção do vínculo “esgotada a relação de confiança pessoal entre as partes”. Também XXXXX XXXXXXX e XXX XXXXXXXX, Constituição portuguesa anotada, Tomo I, 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pp. 1050–1053 admitem que “a garantia da segurança no emprego não pode ser absolutizada”. “Ponderada a natureza da comissão de serviço, existe fundamento para admitir mais amplamente a cessação da relação de trabalho ou a restrição dos direitos fundamentais dos trabalhadores”.
atletas115, valorizando-os e permitindo-lhes auferir um estatuto de qualidade e eficácia no mercado desportivo116. Por todas estas razões, a cessação do contrato é, quase sempre, associada aos maus resultados117 e à quebra na relação de confiança estabelecida, acrescida do descontentamento de todos os apoiantes. A manutenção do vínculo laboral no exercício de outras funções consagraria uma solução danosa para a imagem e para o progresso da carreira profissional do treinador.
Indo mais longe, perante o circunstancialismo descrito, a quebra da relação de confiança torna insustentável a imposição de algumas garantias contratuais associadas ao princípio da estabilidade no emprego, entre as quais o regresso do trabalhador ao cargo desempenhado após a suspensão do contrato118 e a reintegração no seguimento de um processo de despedimento sem justa causa119. Ainda que ilegítima, a actuação do clube ou
115 Teremos oportunidade de analisar a relação laboral dos treinadores de camadas jovens que excepciona, no nosso entendimento, o que acabámos de afirmar.
116 O treinador português Xxxx Xxxxxxxx é um exemplo de sucesso profissional no sector, fundado nos resultados obtidos, mas também na mediatização da imagem e na forma como se relaciona com dirigentes desportivos, adeptos e meios de comunicação social (XXXXXXX XXXX, “«Anjos de todos nós?» Os treinadores de futebol, a globalização e as políticas de celeridade”, Análise Social, vol. XLI (179), 2006, tradução de Xxx Xxxxxx, pp. 352-359).
117 Existem, naturalmente, situações excepcionais em que a longevidade no exercício do cargo resiste a resultados insatisfatórios e alterações nos órgãos dirigentes do clube ou entidade desportiva. Veja-se o exemplo de Xxxx Xxxxxxxx, ex-treinador do Manchester United F.C que se reformou ao fim de 26 anos no exercício do cargo.
118 Resulta directamente do artigo 295.º n.º 4 e 5 do CT que o empregador não pode impedir o trabalhador de retomar a sua actividade após o período de suspensão do contrato. Para XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “O artigo 9.º do código do trabalho e a situação laboral dos treinadores desportivos”, Ob. Cit., p. 47, a norma assume natureza imperativa por via da “conexão” com o artigo 53.º da CRP. Não obstante, o artigo 29.º n.º 6 do CCT aplicável admite que o clube/SAD opte pela cessação da relação laboral, mesmo que o facto que originou a suspensão do contrato não seja imputável ao treinador de futebol e sem prejuízo da indemnização aferida nos termos do artigo 41.º do mesmo diploma. Este é apenas um de vários casos apresentados pelo citado Autor para demonstrar que o CCT aplicável derroga normas legais de carácter imperativo (artigo 3.º n.º 1 do CT). Questiona também (p. 31), se os “regimes especiais” a que faz referência o artigo 9.º do CT poderão ter como fonte a própria “autonomia colectiva”. Na observação que faremos ao longo deste estudo manter-se-á a dúvida acerca da validade das disposições convencionais que derrogam normas imperativas provenientes de fonte hierarquicamente superior. Sem menosprezar o problema, procuraremos indagar sobre o mérito das soluções alcançadas, tendo em conta que “a convenção colectiva goza da presunção de validade (de legalidade) pelo que os seus destinatários se não poderão furtar à sua observância enquanto não for judicialmente declarada nula por inconstitucionalidade ou ilegalidade pelo tribunal competente” (XXXXX XXXXX, “Subsídios para uma leitura constitucional da convenção colectiva”, Estudos de direito em homenagem ao Prof. Xxxxxx Xxxxxx Xxxx, Coimbra: Almedina, 2004, p. 407).
119 Um dos benefícios inequívocos da equiparação entre o cargo de um treinador desportivo e um cargo de “direcção ou administração”, resulta da possibilidade de aplicar o artigo 392.º n.º 1 do CT, norma que permite ao empregador afastar unilateralmente a reintegração do trabalhador ilicitamente despedido. Como refere XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos (…)”, Ob. Cit., pp. 98-99, sem prejuízo da necessidade de criar regras próprias sobre o “sistema reintegratório”, faz mais sentido integrar a lacuna existente com recurso àquela norma do CT do que aplicar analogicamente o artigo 27.º n.º 2 da Lei 28/98 de 26 de Junho, cuja adequação ao contrato de trabalho do praticante desportivo não está isenta de críticas (vide, XXXX XXXX XXXXX, Vinculação Versus Liberdade (…), Ob. Cit., p. 307). Em síntese, o afastamento da reintegração deve ser uma
entidade desportiva demonstra a perda da confiança nas capacidades do treinador para liderar ou participar na execução do “projecto desportivo”, sendo a indemnização a única opção adequada.
Não nos restam dúvidas de que a convocação da modalidade de comissão de serviço com garantia de emprego seria inadequada às especificidades apresentadas. Ao mesmo tempo, estaríamos envolvidos num difícil problema interpretativo, relacionado com a identificação das funções que um treinador profissional poderia assumir (ou seria expectável que assumisse), finda a comissão de serviço, que não implicariam uma especial relação de confiança com os dirigentes dessa entidade120.
Diferentemente da realidade descrita, os treinadores de equipas universitárias norte- americanas são frequentemente destituídos do cargo sem que essa ocorrência provoque a cessação do contrato de trabalho. Para o efeito, os contratos que celebram incluem uma cláusula que permite à entidade empregadora proceder à referida destituição, reservando o direito à manutenção da relação laboral no exercício de funções diversas como as de formador e professor121. Ressalvamos o distanciamento desta realidade, até pelo carácter não profissional das ligas universitárias122.
Retomando o exemplo que nos é mais próximo e que se coaduna com a normalidade dos desportos praticados em Portugal, se para um treinador adjunto é verdadeiramente prestigiante ocupar um cargo superior e liderar a preparação técnica da
faculdade concedida a ambas as partes e não apenas ao treinador, por força da especial relação de confiança que integra e da importância do cargo para a execução dos objectivos desportivos pretendidos. Como veremos, o CCT aplicável admite o despedimento sem justa causa do treinador de futebol (artigo 37.º, alínea d)), através do pagamento de uma indemnização, o que a contrario afasta a possibilidade de reintegração prevista pelo regime geral.
120 Por exemplo, passar de treinador principal ou adjunto a treinador de escalões de formação demonstraria o fim de uma prestação laboral em comissão de serviço?
121 A cláusula contratual que valida a manutenção de um contrato de trabalho, findas as funções de treinador principal, pode salvaguardar que as novas tarefas assumidas devem ser compatíveis com a formação e experiência do treinador. De qualquer modo, o “coach” tem a faculdade de recusar a manutenção do contrato de trabalho com a Universidade contratante e o direito à provisão acordada para a cessação do vínculo laboral. A este propósito, XXXXXX X. CHAMPION JR., Sports law cases, documents and materials, New York: Aspen Publishers, 2005, pp. 67-69.
122 Apesar de se encontrarem sobre a alçada da NCAA, organismo que regulamenta os critérios de elegibilidade dos atletas em competição, as competições interuniversitárias são necessariamente amadoras pela proibição da remuneração directa dos praticantes desportivos, os quais beneficiam, apenas, de bolsas escolares. Em relação aos treinadores não existem particularidades a destacar. Os contratos estabelecidos prevêem remuneração mensal, acrescida das habituais compensações suplementares relacionadas com prémios, markting e publicidade, em moldes muito semelhantes aos contratos celebrados por treinadores que actuam em competições profissionais. Para uma visão detalhada, XXXXXX X. XXXXXXXXX e XXXXX X. Gray, Sports law practice, 2ª ed., Vol. I, Charlosttesville, Virginia: Lexis Law Publishing, 1998, pp. 534-540; XXXXXX XXXXXXXX XXXXX [et. al], Regulación laboral del trabajo deportivo en europa y américa, Ob. Cit., pp. 104-108.
equipa, o mesmo não se verifica em sentido inverso. Deparamo-nos, portanto, com o primeiro dilema da aplicação do regime da comissão de serviço. A modalidade que melhor se adequa à realidade dos treinadores é, simultaneamente, a que maiores dúvidas levanta quanto à conformidade constitucional.
Observado o enquadramento dogmático da modalidade, falta-nos indagar sobre os elementos que a diferenciam no âmbito do regime laboral comum. De acordo com o artigo 162.º n.º 3, alínea b) e n.º 4 do CT, para além de obrigatoriamente reduzido a escrito, o contrato deve incluir o “cargo ou funções a desempenhar”, fazendo menção ao seu exercício em regime de comissão de serviço. O legislador terá pretendido assegurar que as partes indicam expressamente esta modalidade contratual, tendo em conta que é significativamente mais flexível na forma de cessação123. Neste plano, não retiramos nenhum elemento decisivo que justifique a aplicação daquele regime ao contrato de trabalho dos treinadores.
O mesmo já não pode dizer-se do disposto no artigo 112.º n.º 3 do CT. Esta norma exige o acordo expresso das partes para que exista um período experimental na comissão de serviço. Num sector de actividade onde a estabilidade do vínculo laboral é fundamental para garantir o sucesso desportivo, faz todo o sentido que a ausência de estipulação contratual em sentido contrário dispense o período experimental. Não restam dúvidas de que a solução consagrada para a comissão de serviço é mais adequada à realidade dos treinadores, comparativamente com a regra geral do artigo 111.º n.º 3 do CT. Todavia, parece-nos que o artigo 11.º do CCT aplicável estabelece a solução mais adequada à realidade em apreço, independentemente da modalidade desportiva considerada, pois consagra um período experimental máximo de 15 dias impedindo, ao mesmo tempo, que este se prolongue para além do início da competição desportiva. Só com esta garantia, igualmente estabelecida pelo artigo 11.º n.º 3, alínea a) da Lei 28/98 de 26 de Junho, é possível evitar, por exemplo, que a denúncia realizada pelo treinador ao abrigo do período experimental surpreenda a entidade empregadora e afecte negativamente o rendimento desportivo dos atletas em competição. Nesta matéria o regime da comissão de serviço
123 Ressalvamos que esta descriminação pode ser decisiva para a qualificação do contrato. Em França, por exemplo, a cláusula 12.3.2.1. da já aludida “Convention Collective Nationale du Sport”, estabelece que o contrato “deve especificar as funções e atribuições do treinador, correspondentes à sua qualificação”.
apresenta vantagens sobre a aplicação da disciplina comum, mas não acautela devidamente as especificidades da prestação laboral desportiva124.
Outra questão importante diz respeito à duração do contrato. Da alínea b) do artigo 6.º e do artigo 8.º do CCT aplicável resulta a obrigatória fixação do termo no contrato de trabalho dos treinadores de futebol, requisito que não se encontra claramente estabelecido pelos preceitos da comissão de serviço125. A generalidade dos contratos de trabalho celebrados pelos treinadores estabelece um termo, já que a relação contratual por tempo indeterminado não se adequada às especificidades do sector desportivo126. Existem, no nosso entender, excepções a este princípio, mas neste momento basta-nos afirmar que o regime da comissão de serviço não acrescenta nenhum aspecto decisivo ao que já se encontra estabelecido pelo regime laboral comum.
Por último, o regime da comissão de serviço estabelece regras específicas sobre as formas de extinção do contrato e respectivos efeitos. Qualquer das partes pode pôr termo à relação contratual, cumprindo um aviso prévio que varia entre 30 a 60 dias (artigo 163.º do CT), sendo certo, como elucida XXXXX XXXXX XXXXX, que a livre denúncia não poderá fundar-se em razões discriminatórias127. Retomando o que ficou dito a propósito do tipo de comissão de serviço mais adequado à realidade dos treinadores, quando não exista garantia de emprego e a entidade empregadora denuncie o contrato de trabalho resta ao
124 XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos (…)”, Ob. Cit., pp. 88-89, reforça a existência de uma “lacuna” relativamente ao período experimental. Salienta que “o mais natural é a contratação de um treinador ser precedida de acompanhamento prévio e de estudo do respectivo perfil”, diminuindo a necessidade de acautelar um período de livre desvinculação. Sendo certo que esta faculdade deve sofrer restrições no âmbito da competição desportiva, não nos parece que a comissão de serviço confira uma tutela adequada para o efeito. No caso dos treinadores não abrangidos pelo CCT aplicável, sempre será preferível a aplicação analógica do artigo 11.º, n.º 3, alínea a) da Lei 28/98 de 26 de Junho que garante a extinção do período experimental com o início da competição. De igual modo, deve ser tido em conta que o limite máximo de 180 dias consagrado pelo artigo 112.º n.º 3 do CT é excessivo e permitiria que o período experimental alcançasse uma parte significativa da época desportiva. O limite de 30 dias estabelecido para o contrato a termo no artigo 112.º n.º 2 , alínea a) do CT e no artigo 11.º n.º 1 da Lei 28/98 de 26 de Junho é, sem dúvida, mais adequado à realidade desportiva.
125 Como vimos, este instituto jurídico possui uma natureza transitória ou temporária, tendo o legislador assegurado a subsistência de uma relação laboral nos termos gerais quando o contrato pretendido em comissão de serviço não respeite as exigências legais (artigo 162.º n.º 4 do CT). Ainda assim, não é claramente exigida a fixação de um termo de vigência.
126 Sem nos travarmos de imediato com estas especificidades, devemos indagar se as razões que levaram o legislador a impor a contratação a termo dos praticantes desportivos fundamentam a inversão do princípio no caso dos treinadores.
127 XXXXX XXXXX XXXXX, “Principais aspectos do regime jurídico do trabalho exercido em comissão de serviço”, Ob. Cit., p. 263. No mesmo sentido, o Acórdão do STJ de 22 de Outubro de 2003, processo n.º 02S2771, relator: Xxxxxxxxx Xxxxxxx, disponível em: xxx.xxxx.xx, defende uma interpretação conforme a CRP do (actual) artigo 163.º do CT, proibindo que a cessação da comissão de serviço tenha por base razões de natureza discriminatória, em cumprimento do princípio da igualdade (artigo 13.º n.º 1 da CRP).
trabalhador exigir a competente indemnização, fixada no valor correspondente a 12 dias de retribuição base e diuturnidades (se aplicável) por cada ano completo de antiguidade, ou a devida proporção no caso de fracção de ano (artigo 164.º, alínea c) do CT, com remissão para o artigo 366.º do CT). É com base no alargamento da “margem de desvinculação das partes” que RUX XXX XXXXXXX000 xefende, de iure constituendo, “a aproximação da relação laboral dos treinadores desportivos à figura da comissão de serviço”. Temos dúvidas sobre
os benefícios para o sector desportivo de um regime que permite a denúncia do contrato de trabalho com o aviso prévio descrito, próximo da regime geral do CT (artigo 400.º n.º 1 e 3)129 e o despedimento do treinador sem justa causa, mediante o pagamento da compensação indicada130.
Perante a exposição realizada, estamos aptos a efectuar um comentário mais alargado sobre a comissão de serviço enquanto regime potencialmente aplicável ao contrato celebrado pelos treinadores. De acordo com o pensamento de XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “a intensidade e as implicações da relação de confiança que tem de existir entre empregador e treinador não têm paralelo em qualquer outra relação”131. O treinador pode concentrar em si um conjunto de poderes de gestão que lhe permitem elaborar “listas de dispensas”, propor a contratação dos membros que compõem a sua equipa técnica e de novos atletas. De forma mais ou menos vincada assume-se como uma figura de autoridade, com a responsabilidade de coordenar ou dirigir a preparação dos praticantes desportivos. Não há dúvidas de que estas funções pressupõem a especial relação de confiança que funda a comissão de serviço.
Todavia, existem várias reservas a equacionar. Não podemos aceitar que a modalidade de comissão de serviço sem garantia de emprego vigore para todo e qualquer trabalhador dependente que assuma funções de administração, direcção, ou chefia, porque contorna a garantia constitucional do despedimento com justa causa. Esta modalidade adequa-se, de facto, à “especialidade” da prestação laboral do treinador desportivo. A
128 XXX XXX XXXXXXX, “Treinador desportivo: regime jurídico precisa-se!”, Ob. Cit., p. 221. O Autor reforça que a aplicabilidade da comissão de serviço aos treinadores foi defendida, entre nós, por XXXXX XXXXX nas 0.xx Jornadas de Direito do Trabalho em 2010.
129 Em relação ao prazo de aviso prévio, julgamos existir uma clara inadequação do regime geral e da modalidade de contrato de trabalho em comissão de serviço. Novamente, é o CCT aplicável que nos parece consagrar a solução mais razoável para a generalidade dos treinadores profissionais, exigindo um aviso prévio em “metade do prazo pelo qual o contrato de trabalho foi celebrado” (artigo 46.º do CCT).
130 Salvaguardamos que o valor da indemnização pode ser alterado por IRCT nos termos do artigo 164.º n.º 2 do CT. Neste caso, apenas os treinadores de futebol estão salvaguardados.
131 XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos (…)”, Ob. Cit., p. 60.
quebra da relação de confiança estabelecida com o clube ou entidade desportiva, influenciada pelos resultados negativos, provoca a “dispensa” do treinador, com prejuízo imediato no que concerne ao seu prestígio e imagem. Para a generalidade dos trabalhadores abrangidos pelo regime da comissão de serviço não valem os mesmos argumentos132.
Além disso, os contributos positivos do regime da comissão de serviço para a regulamentação do contrato de trabalho dos treinadores ficam aquém dos que seriam inicialmente expectáveis. Não desconsideramos que o legislador permitiu à entidade empregadora resolver a comissão de serviço sem invocação de justa causa. Também o clube ou entidade desportiva é forçado, em nome do “projecto desportivo” desenvolvido, a despedir o treinador por motivos que não consubstanciam uma justa causa. Pensamos, novamente, nos maus resultados desportivos, associados ao descontentamento dos espectadores, essenciais à realização do “espectáculo desportivo”133. Contudo, a extrema facilidade com que o vínculo laboral pode ser dissolvido na comissão de serviço, o prazo de aviso prévio estabelecido e a compensação devida pela entidade empregadora não proporcionam uma conjuntura adequada às características do contrato de trabalho desportivo. Basta que pensemos nos efeitos práticos que estariam associados.
132 A natureza transitória da comissão de serviço permite à entidade empregadora, por razões de estratégia empresarial, considerar que o cargo assumido pelo trabalhador não é mais necessário. O trabalhador despromovido poderá, sendo também sua vontade, optar por manter-se no exercício de outras funções, enquadráveis nos pressupostos do regime laboral comum ou optar por resolver o contrato, nos termos do artigo 164.º n.º 1, alínea b) do CT. Cfr. XXXX XXXX XXXXX, Contrato de Trabalho, Ob. Cit., pp. 158-159; XXXXX XXXXX XXXXX, “Principais aspectos do regime jurídico do trabalho exercido em comissão de serviço”, Ob. Cit., p. 265.
133 Tal como para a comissão de serviço sem garantia de emprego, o CCT aplicável permite ao clube/SAD despedir o treinador de futebol sem justa causa (artigos 37.º, alínea d) e 45.º), mediante o pagamento da respectiva compensação (artigo 43.º, com remissão para o artigo 41.º do mesmo diploma). A separação entre despedimento ilícito e despedimento com justa causa é uma das questões mais complexas que o contrato celebrado pelos treinadores desportivos coloca. Enquanto garantia fundamental (artigo 53.º da CRP), concretizada pelo artigo 351.º do CT, a justa causa define-se como o “comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torna imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho”. A conduta disciplinarmente sancionável coloca o vínculo laboral “de tal modo em crise” que não é exigível ao empregador mantê-lo (MENEZES CORDEIRO, Manual de direito do trabalho, Coimbra: Almedina, 1997, p. 820). Não é de estranhar, por isso, que o artigo 44.º n.º 1 do CCT aplicável elenque como justa causa de despedimento do treinador de futebol situações em que este viola de forma grave os seus deveres gerais e estatutários, através de um comportamento “culposo”. Destacamos a desobediência indevida às “ordens” da entidade empregadora ou representantes, reveladoras de um poder de direcção exercido sobre o treinador. Com efeito, os maus resultados desportivos não podem fundamentar a justa causa de despedimento do treinador. Para adequar as causas de cessação e os efeitos do “despedimento ilícito” a este contrato de trabalho, o regime convencional afastou uma das garantias fundamentais do sistema jurídico- laboral português. Nas palavras de XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “O artigo 9.º do código do trabalho e a situação laboral dos treinadores desportivos”, Ob. Cit., p. 52, “a possibilidade de despedimento sem justa causa parece ter subjacente a existência de um especial substracto fiduciário” que, relacionado com a “dinâmica específica da indústria do desporto”, contraria o “princípio geral de tutela da estabilidade do vínculo”.
O clube ou entidade desportiva teria um curto espaço de tempo para encontrar um substituto do treinador cessante (30 dias nos contratos com duração inferior a dois anos), de forma a minimizar os efeitos negativos no rendimento desportivo do atleta ou equipa treinada. Já o treinador “dispensado” no decurso da época desportiva enfrentaria um período de inactividade quase certo, tendo como única garantia o pagamento da indemnização aferida nos termos do artigo 164.º n.º 1, alínea c) do CT. Esta norma consagra um valor indemnizatório que não nos parece conferir uma tutela adequada dos legítimos interesses do treinador. A “antiguidade” do contrato134 é um critério desajustado, atendendo a que neste sector de actividade as partes celebram, em geral, contratos a termo por uma ou mais épocas desportivas, cujo cumprimento integral é tão incerto quanto a incerteza dos resultados que se visam obter. Contrariamente, o CCT aplicável permite ao clube/SAD “despedir sem justa causa”, acautelando aquele período de paragem nessas circunstâncias e no caso de resolução do contrato com justa causa promovida pelo treinador135. O regime convencional adequa-se aos interesses dos treinadores “dependentes” dos resultados desportivos obtidos para a manutenção do vínculo laboral. Assim, tendo em conta que a flexibilização contratual conferida pelo regime da comissão
134 Também o artigo 11.º do RD 1382/1985 de 1 de Agosto, prevê, na falta de convenção prévia entre as partes, que pela cessação do contrato de trabalho em regime de alta direcção por iniciativa do empregador, o trabalhador terá direito a uma indemnização correspondente a sete dias de salário por ano de antiguidade, não podendo ultrapassar o valor correspondente a seis meses.
135 Voltaremos a esta questão mais à frente. No ordenamento jurídico espanhol, o artigo 162.º n.º 1 e 2 do “Reglamento General de la Real Federación Española de Fútbol” estabelece que o treinador despedido não pode exercer funções ao serviço de um novo clube durante a mesma temporada desportiva, salvo quando o novo contrato estabeleça o exercício de funções numa “categoria e grupo” diversa, como é o caso dos escalões jovens, ou quando o clube se retire da competição. A actualização de 2014 criou a possibilidade de uma autorização excepcional da RFEF para que o treinador possa ser inscrito na federação ao serviço de novo clube durante a mesma temporada. Esta restrição pretende, sobretudo, evitar que o treinador utilize informação privilegiada sobre a equipa anteriormente treinada para obter vantagens ilegítimas no confronto directo entre aquela e o novo clube. Neste sentido, a doutrina espanhola tem defendido que a cessação do contrato de trabalho que seja do exclusivo interesse do clube e promovida unilateralmente por este, deve obrigá-lo a indemnizar o treinador no valor das retribuições que viria a receber com o cumprimento integral do mesmo (XXXXXXX X. XXXXXX XXXXXXX e XXXXXX XXXXXXXX XXXXX, “Contratos laborales y federativos de los entrenadores de fútbol: validez y extinción”, Derecho Deportivo, n.º 3-4, 2003, p. 58-60, (xxxx://xxxxxxx.xxxxxxxx.xx/). Em comentário à decisão do TSJ do País Basco de 18/06/2006, XXXX XXXXXXX, “La determinación de las cantidades indemnizatorias en el caso de cesse de un entrenador profesional”, Aranzadi, Derecho de deporte y entretenimento, n.º 18, 2006-3, p. 374-377, salienta que a compensação devida não pode deixar de atender ao “dano efectivamente causado” com o despedimento, em especial o período de inactividade em que o treinador se encontra impedido de contratar com outro clube. No caso apreciado pelo Acórdão, o treinador de futebol, contratado por duas épocas desportivas, havia sido despedido ao fim de seis meses com fundamento nos maus resultados obtidos, tendo a decisão de 1ª instância fixado o montante indemnizatório em dois meses de retribuição, por aplicação do limite mínimo consagrado pelo regime especial dos praticantes desportivos (artigo 15.º n.º 1 do RD 1006/1985 de 26 de Julho).
de serviço poderá até ser prejudicial para os interesses das partes envolvidas136, não nos parece suficiente ou mesmo razoável para a resolução do problema enunciado equacionar a aplicação deste regime.
3.1.1. O “caso Xxxx Xxxxxx” e o treinador enquanto “alto directivo”
Em Espanha, a aplicação do RD 1832/1985 de 1 de Agosto ao contrato de trabalho dos treinadores desportivos resulta de uma posição doutrinal e jurisprudencial consolidada137, contrariamente ao que se verifica com a comissão de serviço em Portugal. De acordo com o artigo 1.º n.º 2 do referido diploma, as funções inerentes a um cargo de alta direcção traduzem-se no exercício de poderes inerentes à titularidade jurídica da empresa, relativos ao objecto geral da mesma, com plena autonomia e responsabilidade, limitados apenas pelos critérios e instruções directas emanados dos órgãos superiores de governo e administração da referida entidade. Não está em causa a mera representação da entidade empregadora ou a prossecução de um objectivo específico no contexto da actividade produtiva. Pela sua amplitude, o “alto directivo” abrange as diversas áreas de actuação da empresa, no plano industrial, laboral, comercial e até financeiro, manifestando-se através de actos de disposição, administração e gestão, como é o caso da decisão de contratar novos trabalhadores138. Não basta o exercício de funções de direcção, é preciso que a direcção efectiva da empresa afecte o “núcleo da organização produtiva”139. Tal como observámos para a comissão de serviço, o cargo de alta direcção é caracterizado
136 Numa sintética apreciação desta matéria, XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “O artigo 9.º do código do trabalho e a situação laboral dos treinadores desportivos”, Ob. Cit., p. 53, prefere comparar o treinador a um maestro, pela proximidade com o executante da prática desportiva, do que a um “quadro dirigente”, negando que a comissão de serviço permite uma adequada “valoração jurídica” deste contrato. O regime descrito não “permite dar expressão à componente especificamente desportiva nem à dimensão estabilizadora do termo resolutivo ou à partilha do risco”.
137 Entendimento que predominou durante a década de setenta, como indica XXXX XXX XXX, El deportista profissional ante la extinción del contrato de trabajo desportivo, La Xxx, 0000, p. 77.
138 Seguimos X.x XXXX XXXXXXXXX XXXXX, Cessión de deportistas profesionales y otras manifestaciones lícitas de prestamismo laboral, Ob. Cit., pp. 68-69. Para ÉFREN BORRADO DA CRUZ, “El personal de alta dirección en la empresa”, Ob. Cit., pp. 164-165, o profissional contratado para estas funções encontra-se na dependência directa do titular activo do negócio/empresa.
139 XXXXXXX XXXXXXXX, XXXXXX XXXXXXXXX e XXXXXXX XXXXXX, Derecho del Trabajo, Ob. Cit., p. 45.
pela particular relação de confiança estabelecida entre empregador e trabalhador, fundada na “plena autonomia e exclusiva competência” 140 do segundo.
Com efeito, torna-se difícil enquadrar a actividade desenvolvida pelos treinadores no conceito legal apresentado. Não nos parece que a autonomia técnica de que dispõem satisfaça o alargado conjunto de pressupostos para o exercício de um cargo de alta direcção. Maiores dúvidas nos surgem se considerarmos as competências do director desportivo141, profissional que não intervém directamente na preparação dos atletas mas condiciona a autonomia técnica do treinador, retirando-lhe poderes exclusivos em matérias como a decisão sobre os atletas a contratar. Apesar de não podermos estabelecer como princípio que o treinador se encontra na dependência directa de um director desportivo, este último condiciona a autonomia de actuação do primeiro, enquanto intermediário na relação hierárquica estabelecida com os órgãos dirigentes do clube ou entidade desportiva.
Sem prejuízo, parte da doutrina espanhola tem vindo a reforçar a importância do RD 1382/1985 de 1 de Agosto como alternativa à aplicação do regime laboral comum, indicando os factores que impedem a aplicação do regime especial dos praticantes desportivos ao contrato celebrado pelos treinadores.
Em primeiro lugar, o RD 1006/1985 de 26 de Junho, estabelece no seu artigo 1.º n.º
2 que preenchem o conceito de desportista profissional aqueles que se dedicam voluntariamente à “prática do desporto”142. Ora, tendo em conta que os treinadores não praticam, directamente, uma modalidade desportiva, ainda que detenham um papel preponderante nos resultados obtidos com a sua prática, é necessário interpretar este conceito para evitar a exclusão apriorística de todos aqueles que não sejam praticantes desportivos. Por razões de sistematização, abordaremos a questão aquando da análise dos diplomas legais que regulam a actividade do praticante desportivo em Portugal e Espanha.
Ainda que a doutrina se divida entre a inevitável aplicação do regime laboral comum e a possível convocação do regime especial dos desportistas profissionais, a aplicação do RD 1382/1985 de 1 de Agosto é aceite por autores de ambas as facções, desde
140 Convocamos as palavras de REMEDIOS XXXXXXX XXX, “Deportistas, entrenadores y técnicos deportivos: régimen jurídico aplicable”, REDD, n.º 9, 1998, pp. 48-49. A Autora destaca o artigo 9.º n.º 2 do RD 1382/1985 de 1 de Agosto, segundo o qual a relação jurídica de alta direcção não pode ser exercida, em simultâneo, com outra relação de trabalho.
141 Vimos já que artigo 2.º da lei n.º 91/1981 engloba estes profissionais na regulamentação especial.
142 Estabelece o artigo 1.º n.º 2 do RD 1006/1985 de 26 de Junho que “son deportistas profesionales quines, en virtud de una relación establecida com carácter regular, se dediquen voxxxxxxxxxxxxx x xx xxxxxxx xxx xxxxxxx xxx xxxxxx x xxxxxx xxx xxxxxx xx xxxxxxxxxxxx x dirección de un club o entidad deportiva a cambio de una retribución”.
que o treinador desempenhe funções que extravasam a autonomia técnica e o exercício de poderes disciplinares143. Pela importância dessas funções na prossecução dos objectivos gerais do clube ou entidade desportiva, entendem que o treinador pode ser equiparado a um profissional que ocupa cargo de alta direcção. À semelhança da doutrina, a jurisprudência espanhola divide-se. Algumas decisões reconhecem a “natureza mista” do contrato celebrado pelos treinadores, reforçando a necessidade de uma análise funcional dos poderes em que se encontram investidos para determinar o regime jurídico aplicável no caso concreto144.
Um segundo problema resulta do teor do artigo 1.º n.º 6 do RD 1006/1985 de 26 de Junho. Ainda que a interpretação do conceito de desportista profissional permita a integração da actividade desenvolvida pelo treinador, a referida norma exclui as relações jurídicas estabelecidas entre desportistas profissionais e federações desportivas, disposição que não encontra paralelo no regime especial português. Como tal, será o RD 1382/1985 de 1 de Agosto a única alternativa à aplicação do regime laboral comum quando o treinador estabeleça a sua relação laboral com uma federação desportiva?
Partimos da sentença da secção social do TSJ de Madrid de 16 de Março de 1992 que opôs o então seleccionador nacional de futebol, Xxxx Xxxxxx, à Federação Espanhola de Futebol, com o intuito de apreciar as funções atribuídas ao seleccionador e a sua influência na determinação do regime jurídico aplicável.
A supradita federação resolveu o contrato de trabalho com fundamento na quebra irreversível da confiança depositada no seleccionador, potenciada pelo desacatamento
143 Esclarece XXXXXXXXX XXXXX XXXXXXX, El contrato de trabajo de los deportistas profesionales, Madrid: Xxxxxxxx, 2005, p. 142, que a solução inevitável passa por analisar a natureza jurídica de cada vínculo estabelecido e as competências concretamente atribuídas ao treinador para, excepcionalmente, recorrer à qualificação como cargo de alta direcção, verificados os pressupostos legais. Quanto a KOLDO IURZUN UGALDE, “La prestacion laboral del entrenador”, Ob. Cit., p. 234, rejeita a classificação apriorística do treinador como profissional que ocupa um cargo de alta direcção, pelo que somente a análise das funções desempenhadas pode conduzir a essa qualificação. Apesar de defender a inclusão dos treinadores desportivos no âmbito de aplicação do RD 1006/1985 de 26 de Junho, contrariamente aos dois Autores citados, REMEDIOS XXXXXXX XXX, Los Deportistas Profesionales, Régimen jurídico laboral y de seguridade social, Ob. Cit., p. 65, sustenta a mesma ideia.
144 Falamos, concretamente, da decisão do “Juzgado de lo Social num. 87 de Barcelona” de 18/11/1996, Cit. Por. XXXX XXX XXX, Los deportistas profesionales: Estudio de su régimen jurídico laboral y de seguridade social, Ob. Cit., p. 84, que entendeu estarem verificados os pressupostos de aplicação do RD 1382/1985 de 1 de Agosto, uma vez que o treinador de futebol Xxxxx Xxxxxx acumulava as funções de treinador e “director- técnico” desportivo do F.C Barcelona. A decisão reforçou que o treinador não se limitava a treinar e coordenar os seus atletas, tendo o poder de decisão sobre a formação da equipa, desde a contratação de jogadores, renovação e cessação de contratos, até à intervenção na fixação dos salários e outros prémios atribuídos. Veremos, mais à frente, que a decisão acabou por ser revogada pelo TSJ da Catalunha na decisão de 08/01/1998.
reiterado das ordens e directrizes emitidas, ao abrigo do artigo 11.º do RD 1382/1985 de 1 de Agosto. Esta norma dispensa uma justa causa para o efeito.
Na apreciação do caso, o TSJ rejeitou a aplicação do regime especial dos praticantes desportivos ao contrato de trabalho do seleccionador nacional, por força da exclusão consagrada no artigo 1.º n.º 6 do RD 1006/1985 de 26 de Junho. Sustentou, por isso, a qualificação de um cargo de alta direcção145, através dos elementos que diferenciavam aquela prestação laboral da generalidade dos treinadores, tais como a especial relação de confiança estabelecida com os órgãos dirigentes da federação desportiva, associada à particular autonomia técnica no exercício das suas funções e a responsabilidade de representação do futebol espanhol no estrangeiro.
Diga-se em abono da verdade que as diferenças existem. Contrariamente ao que acontece com os demais treinadores de equipas profissionais, o seleccionador nacional actua permanentemente como representante da modalidade desportiva no estrangeiro, dispondo de total liberdade de escolha em relação aos atletas nacionais que integram as diversas convocatórias146. Neste domínio existe uma vincada autonomia e independência, pois não está em causa a contratação ou dispensa de atletas que requer, normalmente, a pronúncia dos órgãos dirigentes da entidade empregadora, depois de ponderados os custos financeiros, entre outros factores. Para além da escolha dos praticantes desportivos em melhores condições para representar o seu país147, acrescem outras funções típicas da actividade como a escolha dos locais de treino, centros de estágio e jogos de preparação. Também a duração do vínculo apresenta especificidades no caso dos seleccionadores. Ainda que a manutenção do contrato seja fortemente influenciada pelos resultados obtidos, o funcionamento das competições internacionais que envolvem selecções nacionais (provas olímpicas ou campeonatos do mundo, por exemplo), leva a que os resultados sejam
145 Para um enquadramento do caso, vide M.ª XXXX XXXXXX XXXXXXXXXX, “La relacion que une al entrenador de futebol com la federacion nacional: calification y efectos jurídicos”, REDD, n.º 2, 1993, pp. 99-102. A Autora reforça que, implicitamente, a decisão proferida pelo TSJ de Madrid aceitou a inclusão do treinador desportivo no conceito de desportista profissional.
146 Esta realidade não é extensível a todos os desportos, em particular os individuais, onde a participação dos atletas nas competições internacionais em representação do seu país depende das classificações obtidas nas provas nacionais. Veja-se, por exemplo, o conjunto de tempos “mínimos” de qualificação estabelecidos em 2013 pela Federação Portuguesa de Atletismo, disponíveis em: xxxx://xxx.xxx.xx/xxxxx/00/0000.xxx.
147 Nas assertivas palavras de REMEDIOS ROQUETA BUJ, Los Deportistas Profesionales, Ob. Cit., p. 84, o seleccionador nacional tem um “poder absoluto” e exclusiva competência para designar os atletas que compõem a selecção, mutável a cada convocatória. Por seu turno, o praticante desportivo encontra-se obrigado a comparecer nas “concentrações” da sua selecção, sob pena de incorrer em infracção desportiva. Em Portugal, o artigo 113.º do regulamento disciplinar da FPF pune com três meses de suspensão o atleta convocado que não compareça ou abandone o treino, jogo ou actividade da selecção nacional.
apreciados não em função da época desportiva realizada, mas atendendo a um ciclo de qualificação que culmina com a participação numa prova internacional. No caso do futebol, as competições decorrem em ciclos de dois anos148. O vínculo laboral do seleccionador nacional tende a manter-se, pelo menos, durante o ciclo de qualificação. Portanto, a especial autonomia técnica no exercício das suas funções, a tarefa de representação de uma modalidade desportiva no estrangeiro e a maior estabilidade do vínculo a curto prazo, são as três notas que distinguem a actividade desenvolvida pelo seleccionador nacional. Serão suficientes para influenciar a determinação do regime jurídico aplicável?
A sentença do TSJ de Madrid considerou que as diferenças entre o seleccionador e o treinador ao serviço de um clube/SAD justificavam, per si, a aplicação de regimes jurídicos distintos. No entanto, dos motivos convocados pelo Tribunal para considerar o cargo em apreço como de alta direcção, apenas a exclusão promovida pelo artigo 1.º n.º 6 do RD 1006/1985 de 26 de Junho merece a devida ponderação. Embora esta norma vede a aplicação do regime especial na relação jurídica estabelecida entre desportistas profissionais e federações desportivas, essa exclusão não ditará, sem mais, a aplicação de outro regime especial previsto no artigo 2.º do ET149. Por outras palavras, não é possível negar a aplicação do regime laboral comum a uma relação de trabalho subordinado sem antes estarem preenchidos os pressupostos para aplicação de um regime especial.
148 XXXX XXX XXX, El deportista profissional ante la extinción del contrato de trabajo desportivo, Ob. cit.,
p. 95, considera que este factor confere maior estabilidade ao seleccionador nacional no desempenho das suas funções.
149 XXXXXX XXXXXXXX XXXXX (Deporte y Derecho. Las relaciones laborales en el deporte profesional, 1996), Cit. Por. REMEDIOS ROQUETA BUJ, Los Deportistas Profesionales, Ob. Cit., pp. 81-82, salienta que não existe uma diferença substancial entre o treinador contratado por um clube e por uma federação desportiva. Para o Autor, o artigo 1.º n.º 6 do RD 1006/1985 de 26 de Junho pretendeu apenas excluir o contrato celebrado entre praticante desportivo e a respectiva federação, na media em que o primeiro mantém um vínculo laboral com o seu clube de origem, sendo cedido para integrar “equipas, representações ou selecções” organizadas pela segunda. A diferença essencial está na “fenomenologia do vínculo”, isto é, contrariamente aos atletas convocados, cujo vínculo estabelecido é esporádico e exercido através de uma participação obrigatória após convocação, o seleccionador nacional estabelece um vínculo laboral exclusivo com a federação, de forma permanente e plenamente voluntária. A selecção existe sempre e os seus jogadores renovam-se a cada convocatória, contrariamente ao cargo de seleccionador que “não integra a representação nacional, mas antes faz parte dela”. Também XXXXXXX XXXXXXX XXXXXX e XXXXX XXXXX XXXXX, El deporte professional, 1.ª ed., Madrid: Xxxx, 0000, p. 524, salientam a diferença entre seleccionador e jogador selecionado com base no aludido caso “Amunike”, onde se reconheceu que a cedência de um atleta à sua selecção como extensão do contrato estabelecido com o clube, ou seja, como forma de cessão legal, não é comparável ao contrato de trabalho estabelecido pelo seleccionador nacional. Parece-nos clara e frutífera esta argumentação.
Seguimos a opinião de CARDENAL CARRO150 quando afirma que a aplicação do regime dos profissionais que ocupam cargos de alta direcção não deve ser determinada pela exclusão de outros regimes (juízo negativo), mas antes por um juízo positivo de verificação dos seus pressupostos.
Todavia, a decisão judicial em apreço não se bastou com um juízo negativo e considerou estarem preenchidos os critérios funcional, objectivo e hierárquico exigidos pelo artigo 1.º n.º 2 do RD 1382/1985 de 1 de Agosto, aos quais acrescia uma relação de especial confiança, inerente “à titularidade jurídica da empresa”. Relativamente a esta conclusão renovam-se as dúvidas anteriormente tecidas. Se considerarmos apenas o plano das funções exercidas, constatamos que o cargo de seleccionador nacional aproxima-se do conceito de alta direcção, estando sujeito a um controlo muito menos intenso do que o seu homólogo contratado por um clube/SAD. Ainda assim, é de autonomia técnica que falamos, seja ela mais ou menos visível151. Os poderes atribuídos no âmbito de um cargo de alta direcção são direccionados para a generalidade dos fins e objectivos prosseguidos pela empresa, o que nos obriga a concluir que a actuação do seleccionador, enquanto trabalhador contratado pela federação desportiva, não abrange a totalidade dos fins de índole económica, desportiva e regulamentar que esta prossegue, ficando muito aquém da amplitude pressuposta pelo RD 1382/1985 de 1 de Agosto. Nesta perspectiva, os poderes atribuídos aos restantes treinadores encontram-se mais facilmente integrados nos objectivos de natureza essencial e estratégica prosseguidos pela sua entidade empregadora.
A decisão do “caso Xxxx Xxxxxx” mereceu a crítica de se ter cingido aos “poderes absolutos e exclusivos” que o seleccionador detém na escolha e preparação da equipa nacional para qualificar um cargo de alta direcção. Mesmo que esses poderes assumam grande importância no contexto das atribuições da federação desportiva, encontram-se sempre confinados a uma das suas áreas de actuação.
150 XXXXXX XXXXXXXX XXXXX, “El entrenador de un equipo de fútbol ¿es alto cargo? (Al hilo delo caso Cruyff)”, RL, n.º 2, 1998, p. 771.
151 Por essa razão, vários autores rejeitam uma separação estanque entre seleccionador e treinador, preferindo antes a análise casuística dos poderes conferidos para determinar o regime jurídico aplicável (XXXXXX XXXXXXXX, “Breves Apuentes sobre el regimen de los entrenadores en España”, Lecturas: educación física y deportes, n.º 29, 2001, (xxxx://xxx.xxxxxxxxxx.xxx/xxx00/xxxxxxx.xxx)).
Destarte, subscrevemos a posição de XXXXX-XXXXXXXX XXXXXXX000, segundo a qual as especiais características da relação laboral dos seleccionadores nacionais não são suficientes para os equiparar aos profissionais que ocupam cargos de alta direcção. Referem-se a aspectos técnicos de selecção e preparação dos desportistas profissionais (“aspectos estritamente desportivos”) e não diferem, substancialmente, das funções atribuídas aos demais treinadores desportivos. Além disso, o vasto leque de atribuições das federações desportivas engloba tarefas de natureza pública como a “defesa e promoção geral do desporto no âmbito estatal”153, as quais não dependem da intervenção dos seleccionadores. Nestas matérias a sua ingerência é muito reduzida, ou mesmo inexistente.
Acrescentamos que a faculdade concedida ao clube ou entidade desportiva para resolver o contrato de trabalho com base no RD 1382/1985 de 1 de Agosto, mediante o pagamento da compensação por “antiguidade” prevista no artigo 11.º n.º 1 do mesmo diploma, precariza significativamente a relação laboral dos treinadores desportivos. Este regime especial favorece os interesses da entidade empregadora154 mas, tal como observámos para a comissão de serviço, não garante a adequada compensação do treinador ilicitamente despedido ou forçado a denunciar o contrato de trabalho155.
152 XXXXX-XXXXXXXX XXXXXXX, “Consideraciones críticas sobre la ampliación jurispruidencial del concepto de deportista profesional a entrenadores y técnicos: Ámbito de aplicación del R.D. 1006/1985, de 26 de junio, por el que se regula la relación laboral especial de los deportistas profesionales, Revista de la Faculdad de derecho de la universidade complutense, n.º 23, 1999, pp. 415-418.
153 Atribuição que resulta do artigo 1.3 do RD 1835/1991, cujo preâmbulo atribui às federações desportivas espanholas “o exercício de funções públicas de carácter administrativo”. Em Portugal, o “estatuto de utilidade pública” confere às federações desportivas (artigo 19.º n.º 1 da LBAFD e 10.º do DL n.º 248- B/2008) “o exercício, em exclusivo, por modalidade ou conjunto de modalidades, de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública, bem como a titularidade dos direitos e poderes especialmente previstos na lei” (XXXXXX XXXXXXXX DE BRITO, “O novo regime das federações desportivas”, 10 anos de Desporto & Direito, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, pp. 160-161). Facilmente compreendemos que não cabe ao treinador assegurar todas estas tarefas.
154 Tal como vimos para o regime da comissão de serviço, também o RD 1382/1985 de 1 de Agosto prevê uma compensação em caso de resolução do contrato promovida pelo empregador (“desistimiento”) que não atende, nem à curta duração do contrato celebrado pelos treinadores, nem ao facto destes enfrentarem um período quase certo de inactividade, quando “dispensados” no decurso da competição desportiva. A indemnização fixa-se num valor correspondente a sete dias de trabalho por ano de antiguidade, sem exceder seis meses no total, salvo convenção em contrário. X.x XXXX XXXXXX XXXXXXXXXX, “La relacion que une xx xxxxxxxxxx xx xxxxxxx xxx xx xxxxxxxxxx xxxxxxxx (…) Ob. Cit., p. 105, ressalva que a admissibilidade desta solução pode originar situações de verdadeira injustiça. Torna-se economicamente mais vantajoso para o clube clausular que a cessação do contrato de trabalho fica sujeita às regras do regime especial dos “altos directivos”, em comparação com os custos da instauração de um processo disciplinar e respectivo despedimento, integrado pelo regime laboral comum.
155 Neste contexto, a sentença do “Juzgado de lo Social núm. 16. Madrid”, datada de 22/08/1997 (AS 1997, 95), Justicia Deportiva, Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx, 0000, pp. 211-213 qualificou o cargo exercido pelo seleccionador nacional de hóquei feminino como de alta direcção, ainda que tenha entendido que a relação laboral estabelecida entre o seleccionador e a federação estaria submetida ao regime dos desportistas profissionais no que concerne às “condições económicas da cessação”.
A jurisprudência espanhola corrobora esta ideia através de múltiplas decisões que negam a equiparação entre treinadores e profissionais que ocupam cargos de alta direcção. Existe uma posição consolidada que contraria as conclusões tecidas pelo TSJ de Madrid no caso “Xxxx Xxxxxx”156, para além das inúmeras decisões que têm vindo a recusar a aplicação do RD 1398/1985 de 1 de Agosto, ainda que o treinador desportivo acumule funções de grande importância na organização da actividade desenvolvida pelo clube ou entidade desportiva157. Uma das decisões mais expressivas opôs o treinador de futebol Xxxxx Xxxxxx ao F.C Barcelona, (sentença da secção social do TSJ da Catalunha de 08/01/1998)158. Apesar do contrato celebrado pelas partes ter estabelecido a aplicação subsidiária do RD 1006/1985 de 26 de Junho e do RD 1382/1985 de 1 de Agosto, o TSJ entendeu que as funções de “treinador e director técnico-desportivo” não correspondiam à “titularidade jurídica da empresa”, muito menos ao seu âmbito geral de actuação. O treinador não detinha poderes para obrigar o clube em seu nome, nem participava de forma absoluta nas decisões relativas à gestão do património do clube, limitando-se à coordenação de toda a actividade da secção de futebol. Neste contexto, a relação laboral acabou por ser enquadrada no regime especial dos desportistas profissionais.
156 Entre várias, a decisão do TSJ de Castilla y León (Valladollid) de 23/05/1995 consagrou a aplicação do regime especial dos praticantes desportivos ao seleccionador nacional de ciclismo e a decisão do TSJ de Madrid de 30/01/2006 (o mesmo Tribunal que firmou a solução do caso “Xxxx Xxxxxx”) contemplou solução idêntica para a relação contratual estabelecida entre a federação espanhola de triatlo e um dos seus treinadores, Cit. Por. XXXX XXX XXX, El deportista profissional ante la extinción del contrato de trabajo desportivo, Ob. Cit., p. 91-93. Este Autor critica as referidas decisões pelo facto de não indagarem, sequer, acerca da exclusão promovida pelo artigo 1.º n.º 6 do RD 1006/1985 de 26 de Junho. Subscreve, por isso, a sentença do TSJ de Madrid de 19/02/1998 que integrou o contrato de trabalho do seleccionador nacional de andebol no regime laboral comum, demonstrando que a actividade dos seleccionadores não apresenta um padrão homogéneo. A federação espanhola de andebol conservava funções de planificação técnica e de ratificação das escolhas do seleccionador quanto aos atletas a seleccionar. Este último cumpria um horário de trabalho e um plano de trabalhos pré-estabelecido pelos órgãos dirigentes da federação desportiva. Contrariamente, XXXXXX XXXXXXXX XXXXX, “Las relaciones laborales en el deporte profesional”, Curso de direito desportivo sistêmico, Vol. II, São Paulo: Xxxxxxxx Xxxxx, 0000, pp. 93-94, aprova as decisões jurisprudenciais inicialmente referidas, pois “a continuidade, o desempenho e a exclusividade, juntamente com a vinculação a um projecto desportivo levam a que a actividade do treinador compartilhe os atributos próprios” do regime especial dos praticantes desportivos. Em nenhuma das decisões apresentadas se aceita a equiparação do treinador contratado pela federação desportiva a um cargo de alta direção.
157 No litígio que opôs a Federação Catalã de Natação a um dos seus treinadores, o TSJ da mesma região considerou que o primeiro não exercia poderes inerentes à titularidade jurídica da empresa, nem tão pouco participava no âmbito de administração económica e nas decisões fundamentais de gestão da federação desportiva. Cfr. XXXXXX XXXXXXXX XXXXX e XXXXX XXXXXXX XXXXXX, “Sobre se tiene cobertura legal la precarización del empleo xx xx xxxxxx xxx xxxx x xxx xxxxxxx x xxxxxx xx xx xxxxxxxxx del artículo 1.6 RD 1006/1985 y su aplicación a los entrenadores”, Aranzadi, Derecho de deporte y entretenimento, n.º 7, 2002-1, pp. 77-78.
158 (AS 1998, 50), Justicia deportiva, n.º 3, Aranzandi Editorial, 1998, , pp. 80-83.
Bem podemos dizer que as funções de direcção desempenhadas pelo treinador não deixam de estar adstritas à realização de finalidades desportivas, o que influencia a determinação do regime jurídico aplicável. Ainda que sejam particularmente amplas as funções adquiridas com a cumulação dos cargos de treinador e director desportivo, deverá prevalecer o regime com o qual “apresentam uma conexão mais estreita”, tendo em conta que as funções de gestão atribuídas visam o sucesso no plano desportivo159. Por outro lado, vários autores salientam que a delegação de poderes de direcção sobre outros trabalhadores do clube ou entidade desportiva, entre os quais o exercício do poder disciplinar, não influencia a natureza do vínculo contratual se não estiverem preenchidos, uma vez mais, os pressupostos de aplicação do RD 1382/1985 de 1 de Agosto160. Além disso, é erróneo diferenciar a relação laboral estabelecida entre treinador e federação desportiva para efeitos de regulamentação aplicável, porque a autonomia e responsabilidade atribuída aos seleccionadores nacionais de futebol, semelhante noutros desportos colectivos, não se repercute em todas as modalidades161.
Voltando ao caso português, salvaguardamos que o regime de cessação da comissão de serviço adequa-se mais facilmente ao contrato de trabalho dos seleccionadores nacionais. Os jogos e competições entre “selecções” realizam-se com menor regularidade e maior espaçamento temporal entre si, circunstâncias que diminuem a influência do seleccionador no rendimento desportivo dos atletas e permitem à federação desportiva encontrar, atempadamente, um substituto para o cargo em caso de denúncia antecipada do contrato.
Assim sendo, que conclusões podemos retirar? Em primeiro lugar, comissão de serviço e cargo de alta direcção são institutos pensados sob pressupostos diversos e com a
159 No conflito entre a aplicação de dois regimes de carácter especial, XXXXXX XXXXXXXX XXXXX, “El entrenador de un equipo de fútbol ¿es alto cargo? (…)”, Ob. Cit., pp. 783-784, considera que a aplicação da lei mais favorável ao trabalhador só pode ocorrer quando não concorram outros fins adicionais ao próprio direito do trabalho. Só existe concorrência de normas que justifique a aplicação do tratamento mais favorável quando não se verifiquem, em concreto, finalidades excepcionais que justificam a convocação de um determinado regime especial, em particular o RD 1006/1985 de 26 de Junho. Para o Autor, no caso dos treinadores estão preenchidas as razões que fundam a prevalência deste regime especial sobre a aplicação do regime laboral comum.
160 XXXXXXXXX XXXXX XXXXXXX, El contrato de trabajo de los deportistas profesionales, Ob. Cit., p. 137.
161 Neste sentido, KOLDO IURZUN UGALDE,“La prestacion laboral del entrenador”, Ob. Cit., p. 231, critica a decisão proferida pelo TCT a 14/10/1986, por ter considerado o cargo de um treinador contratado pela Federação Espanhola de Ginástica como de alta direcção quando as suas funções essenciais se cingiam a “dirigir os treinos e a preparação física dos ginastas que o centro técnico da federação colocava às suas ordens”, não tendo poderes para escolher os atletas a treinar.
importante dissemelhança de que o primeiro remete subsidiariamente para o regime laboral comum, enquanto o segundo tem por base a aplicação subsidiária da legislação civil e mercantil.
A especial relação de confiança entre as partes constitui um pressuposto basilar para ambos os diplomas legais, assim como a dispensa de justa causa para a cessação do vínculo, particularidades que julgamos insuficientes para garantir uma adequada regulamentação da actividade dos treinadores. Observámos que em Portugal a comissão de serviço diverge do regime laboral comum em vários aspectos que não beneficiam, necessariamente, os interesses da competição desportiva profissional. Também à luz do ordenamento jurídico espanhol concluímos que não basta equiparar o treinador a um cargo de alta direcção. A corrente jurisprudencial que defende esta solução não apresenta argumentos decisivos para a sua aceitação. Nem sequer podemos acolher a exclusão da relação laboral entre treinadores e federações desportivas, retirada do artigo 1.º n.º 6 do RD 1006/1985 de 26 de Junho, tendo em conta a intenção do legislador na formulação deste preceito.
Perante a insuficiência das soluções encontradas, em que medida a relação laboral em análise, dotada de um carácter intuitu personae, pode aproximar-se do contrato celebrado pelo praticante desportivo? Será que a diferença de funções entre estes dois agentes desportivos justifica um tratamento jurídico diferenciado?162.
162 Sem prejuízo dos desenvolvimentos subsequentes, destacamos a proximidade entre treinador e praticante desportivo no que respeita ao momento da sua contratação. Ainda que menos intensa, existe uma disputa pelos serviços dos treinadores, especialmente se estiverem associados a uma imagem de sucesso. Integram, portanto, a lógica de funcionamento do mercado desportivo, como salienta XXXXXX XXXXXXXX XXXXX, Deporte y Derecho. Las relaciones laborales en el deporte profesional, Universidad de Murcia, 1996, p. 159, disponível em Google ebooks.
3.2. O regime laboral comum e a sua aplicação supletiva
A primeira abordagem da jurisprudência portuguesa ao problema da falta de regulamentação adequada para o contrato de trabalho dos treinadores desportivos resultou na forçosa aplicação da lei geral de trabalho. Esta posição veio a ser reforçada pelo conteúdo do DL 305/95 de 18 de Novembro, do qual resultava a intenção do legislador em restringir o âmbito de aplicação daquele regime especial à actividade do praticante desportivo, por exclusão dos demais agentes desportivos163. Em conformidade, XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX destacava que, embora a tarefa do jurista consista na busca das soluções mais adequadas às especificidades das realidades sociais que se vão formando, esse “esforço interpretativo que obste à adopção de soluções absurdas” não pode levar o intérprete a substituir-se ao legislador164. Mantendo reservas sobre a compatibilidade do regime laboral comum com a “natureza específica” da prestação laboral dos treinadores, o Autor acabaria por assentir com a ideia de que “um treinador de futebol não pode ser considerado agente desportivo praticante, sendo-lhe, por isso, aplicável o regime laboral comum”165.
Na mesma linha, o artigo 1.º da Lei 28/98 de 26 de Junho manteve a regulamentação especial adstrita ao “regime jurídico do contrato do praticante desportivo e do contrato de formação desportiva”, omitindo a referência a qualquer outro agente desportivo. Com a entrada em vigor do novo regime, a jurisprudência conservou a equiparação entre o treinador e demais trabalhadores dependentes, apesar dos inúmeros factores que justificavam, e continuam a justificar, a convocação das normas aplicáveis ao praticante desportivo166.
163 Seguindo XXXX XXXX XXXXX, Contrato de trabalho desportivo anotado: Decreto-Lei 303/95 de 18 de Novembro, Coimbra: Coimbra Editora, 1995, pp. 12-13, o DL 303/95 de 18 de Novembro excluiu os restantes “agentes” reconhecidos pelo artigo 4.º n.º 4 da LBSD, entre os quais os treinadores. Neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 27 de Março de 2000, Recurso n.º 0040164, BMJ, n.º 495, p. 36, considerou que ao treinador de futebol não seria “aplicável o contrato de trabalho desportivo, previsto no DL n.º 305/95, de 18 de Novembro, mas apenas o regime geral do contrato de trabalho”.
164 “É o regime laboral comum aplicável aos contratos entre clubes e treinadores profissionais?”, Ob. Cit., pp. 131-132.
165 Citamos o Acórdão do STJ de 07 de Outubro de 1998, processo n.º 98S166, relator: Xxxx Xxxxxxxx (XXXX XXXXXX, O desporto nos tribunais, Lisboa: Centros de Estudo e Formação Desportiva, 2002, pp. 235-240).
166 A título de exemplo, apreciamos o disposto no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social – Lei 110/2009 de 16 de Setembro, na redacção em vigor. Apenas o praticante desportivo consta das categorias especiais consagradas pelo diploma (artigos 74.º a 79.º). No entanto, alguns elementos daquele regime contributivo especial adequam-se à actividade desenvolvida pelos treinadores. É o que acontece com o conceito de “remuneração mensal efectiva” (artigo 76.º), que no caso do
A questão coloca-se de igual forma no ordenamento jurídico espanhol. Os defensores da aplicabilidade do regime laboral comum referem que o legislador pretendeu excluir treinadores e outros técnicos do âmbito de aplicação do RD 1006/1985 de 26 de Junho. O termo “prática do desporto”, constante do artigo 1.º n.º 2 do mesmo diploma, não deixa grandes dúvidas de que o seu alcance circunscreve a actividade do praticante desportivo. Excluem-se aqueles que desenvolvem actividades relacionadas com a prática desportiva profissional mas não praticam, efectivamente, uma modalidade, apesar de enquadrados “no âmbito de direcção e organização de um clube ou entidade desportiva”167. Esta redacção aproxima-se do artigo 2.º, alínea b) da lei 28/98 de 26 de Junho, norma que fixa como destinatário do regime especial “aquele que pratica uma modalidade desportiva”. A interpretação literal de ambos diplomas, aliada ao conceito estrito de “prática desportiva”, invalida o enquadramento da actividade dos treinadores no regime especial dos praticantes desportivos168.
praticante desportivo abrange “os montantes pagos a título de prémios de assinatura dos contratos (…) e os atribuídos por força do regulamento interno do clube ou contrato em vigor”. De qualquer modo, o contrato de trabalho celebrado pelos treinadores integra o âmbito do artigo 24.º do mesmo diploma e, por isso, as regras do “regime geral dos trabalhadores por conta de outrem”. Tal como em Espanha, não beneficiam de um regime especial em matéria de segurança social (XXXXX XXXXXX, Manual básico del sistema de la seguridade social, La Ley/Wolters Kluwer Espãna, 2010, p. 153-155). Mas será que não existem razões para englobar treinadores e praticantes numa mesma categoria especial? A jurisprudência portuguesa tem reconhecido a aproximação entre estes dois agentes em matéria contributiva. Entre vários, o Acórdão do STA de 09 de Dezembro de 2009, processo n.º 0739/09, relator: Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx, debateu se os “prémios de classificação, permanência e jogo” atribuídos ao treinador, isto é, prémios dependentes da obtenção de certos resultados e objectivos, integrariam a “base objectiva de contribuições para a segurança social”. A decisão equiparou as duas relações contratuais ao considerar que as cláusulas contratuais que qualificavam os referidos prémios como “retribuição extraordinária”, e não como “retribuição”, não eram oponíveis à segurança social por violação de “normas imperativas sobre incidência objectiva”. O próprio artigo 33.º do CCT aplicável salvaguarda que a retribuição dos treinadores de futebol engloba os “prémios de jogo ou de classificação” atribuídos de forma “regular ou periódica”.
167 Xxxxxxxx XXXXX-XXXXXXXX XXXXXXX, “Consideraciones críticas sobre la ampliación jurispruidencial del concepto de deportista profesional a entrenadores y técnicos (…), Ob. Cit., pp. 411- 412, que a interpretação restritiva do termo “prática do desporto” vem confirmada pelo simples exame dos elementos essenciais previstos pelo RD 1006/1985 de 26 de Junho, diploma que tem por referência as pessoas que “intervêm de maneira directa na actividade desportiva”. Por esta razão ficam excluídos os técnicos e treinadores, ainda que considerados colaboradores “necessários e imprescindíveis” para a prática desportiva. Também XXXX XXX XXX, El deportista profissional ante la extinción del contrato de trabajo desportivo, Ob. Cit., p. 72, salienta que a terminologia aplicada no artigo 1.º, n.º 2 da mencionada lei está pensada em todas as suas vertentes para aqueles que, efectivamente, praticam uma modalidade desportiva com carácter profissional e não para os que se dedicam à “formação ou direcção técnica” do desporto.
168 Como melhor veremos, em Portugal só é admitida a aplicação do regime especial dos praticantes desportivos ao contrato de trabalho celebrado pelos treinadores por via da analogia. Diferentemente, parte da doutrina e jurisprudência espanhola tem adoptado um critério “teleológico e sistemático” para integrar o treinador no conceito de “desportista profissional” (XXXXXXX XXXXXXXXX XXXXXXXXX, “La prestacion de servicios de arbitros y entrenadores”, Aranzadi, Derecho de deporte y entretenimento, n.º 19, 2007-1, p. 109). Exemplo disso mesmo é a sentença do TSJ de Madrid de 30/10/1996 que aplicou o artigo 13.º b) do RD 1006/1985 de 26 de Julho ao contrato celebrado entre a federação espanhola de triatlo e o seu
A respeito da delimitação subjectiva, autores como XXXXXXXX XXXXXXXXXX entendem que os treinadores devem ser abrangidos pelo regime laboral comum, pois “o desempenho de actividades conexas com a prática do desporto não possui a natureza de prática desportiva, no sentido do «entretenimento-competição»”169. Esta corrente doutrinal sustenta que, apesar de contribuir decisivamente para realização da prática desportiva, o treinador não é um interveniente directo no espectáculo proporcionado através da competição, elemento essencial para a aplicação do regime especial. Tal conclusão é reforçada pelas diversas normas exclusivamente adequadas à realidade dos praticantes desportivos. Desde logo, o artigo 9.º nº 1 do RD 1006/1985 de 26 de Junho descrimina a jornada de trabalho do praticante desportivo incluindo “a prestação efectiva dos seus serviços diante do público”, para além dos períodos em que se encontra sob treino e preparação física e técnica. Afirmam os citados Autores170 que o treinador não presta a sua actividade diante do público e actua enquanto representante da entidade empregadora no treino e preparação dos atletas, pelo que seria uma subversão da própria realidade integrá- lo nesta norma.
Dentro das normas especiais que revelam a intenção do legislador em abranger, apenas, os praticantes desportivos, destacam-se os direitos e obrigações das partes regulados pelo artigo 7.º do RD 1006/1985 de 26 de Junho171 e a compensação a que o clube ou entidade desportiva tem direito pela formação do praticante desportivo, quando este celebra um contrato de trabalho com novo clube, nos termos do artigo 14.º n.º 1 do RD
director técnico/treinador, legitimando a caducidade automática do mesmo. Em comentário, XXXX XXX XXX, “La calificatión jurídica del contrato suscrito entre un entrenador y la federación para la que presta servicios: un nuevo cambio en la doctrina de la Sala de lo Social del TSJ de Madrid (Comentario a la sentencia de la sala de lo social del tribunal superior de justicia de Madrid de 30 de enero de 2006)”, Aranzadi, Derecho de deporte y entretenimiento, n.º 20, 2007-2, pp. 250-251, critica a interpretação extensiva do conceito de “desportista profissional”, quando o legislador se referiu “à prática desportiva”, para além de não ter sido dada a devida importância à exclusão efectuada pelo artigo 1.º n.º 6 do RD 1006/1985 de 26 de Julho, já referido.
169 Na esteira de XXXX XXXXXX e CARCELLER, vide XXXX XXXXXXXX XXXXXXXXXX e XXXX XXXXXXXX XXXXXXXX, El contrato de trabajo del deportista professional, Madrid: Editoria Civitas, 1991, pp. 44-45.
170 XXXX XXXXXXXX XXXXXXXXXX e XXXX XXXXXXXX XXXXXXXX, El contrato de trabajo del deportista professional, ibidem.
171 XXXXX-XXXXXXXX XXXXXXX, “Consideraciones críticas sobre la ampliación jurispruidencial del concepto de deportista profesional a entrenadores y técnicos (…), Ob. Cit., p. 413, salienta que o dever de acatamento das instruções dos representantes do clube, o dever de diligência do atleta na manutenção das suas condições físicas e técnicas (artigo 7.º n.º 1) e o direito de ocupação efectiva (artigo 7.º n.º 4), ou seja, o direito do atleta em participar nas sessões de treino e preparação, ainda que a sua utilização no momento da competição seja uma opção do treinador, são manifestações inequívocas de que apenas os praticantes desportivos se podem enquadrar no regime especial.
1006/1985 de 26 de Junho, previsão igualmente estabelecida no ordenamento jurídico português pela conjugação dos artigos 38.º e 18.º da Lei 28/98 de 26 de Junho.
Em síntese, os defensores da posição convocada reconhecem que as limitações criadas pelo regime especial dos desportistas profissionais impedem a sua aplicação ao contrato de trabalho dos treinadores, rejeitando que a importância desta actividade para o desenvolvimento da prática desportiva possa influenciar a determinação do regime jurídico aplicável. Por conseguinte, o treinador submetido ao poder de direcção e integrado na estrutura organizativa do clube ou entidade desportiva está sujeito à aplicação do regime laboral comum, a menos que as funções exercidas possam enquadrar-se num cargo de alta direcção, verificados os pressupostos anteriormente descritos172.
Uma vez mais, salientamos que em Espanha a aplicação da legislação laboral comum aos treinadores não resulta de um juízo de adequação e compatibilidade entre aquela actividade e tais preceitos, mas antes de um raciocínio de exclusão, considerando a inaplicabilidade do diploma que regula a actividade dos desportistas profissionais. Para a corrente doutrinal apresentada, a noção de desportista só pode ser interpretada restritivamente, em conformidade com os elementos positivados no RD 1006/1985 de 26 de Junho173. Da mesma forma, o “Cour de Cassation” francês tem vindo a estabelecer que o contrato de trabalho dos treinadores desportivos deve submeter-se às normas laborais comuns, à semelhança dos restantes trabalhadores dependentes, mostrando-se especialmente conservador na flexibilização das causas de extinção do contrato de trabalho desportivo174.
172 São inúmeras as decisões jurisprudenciais espanholas que reforçam a aplicabilidade do regime laboral comum ao contrato de trabalho dos treinadores. Neste sentido, a sentença do SSTS de 27 de Fevereiro de 1976 submeteu o despedimento de um treinador de basquetebol às regras gerais, pelo facto deste último estar sujeito à disciplina e direcção do clube, limitando os seus serviços à direcção técnica da equipa (KOLDO IURZUN UGALDE,“La prestacion laboral del entrenador”, Ob. Cit., p. 237). Para XXXX XXX XXX, El deportista profissional ante la extinción del contrato de trabajo desportivo, Ob. Cit., p. 91, esta posição só fica enfraquecida no caso dos treinadores contratados por federações desportivas.
173 Remetemos para as conclusões de XXXXXXXXX XXXXX XXXXXXX, El contrato de trabajo de los deportistas profesionales, Ob. Cit., p. 142.
174 Salvaguardamos que o ordenamento jurídico francês não consagra um regime laboral especial para os praticantes desportivos, capaz de constituir uma alternativa à aplicação do regime laboral comum. As normas especificamente aplicáveis constam do código do trabalho francês, dos preceitos do “Code du Sport” (livro II
– “acteurs du sport”), dos IRCT aplicáveis ao sector desportivo e da regulamentação federativa para cada modalidade, como é o caso da “Charte do football professionnel”. Apesar de tudo, a jurisprudência francesa tem reconhecido que o regime laboral comum não confere sempre uma resposta adequada às especificidades do desporto profissional. De acordo com XXXXXX XXXXX [et. al.], Droit du Sport, Ob. Cit., p. 270, a generalidade dos tribunais franceses reconhece que a modalidade de contrato a termo é aquela que melhor se adequa à realidade dos treinadores, procurando ajustar certos conceitos como “falha grave do trabalhador” às especificidades da mesma actividade.
Antes de colocarmos a dicotomia regime laboral comum, versus, regime especial dos praticantes desportivos sob a análise de aspectos particulares do contrato de trabalho desportivo, vejamos a argumentação de CARDENAL CARRO175 para desconstruir a doutrina anteriormente apresentada.
O Autor começa por evidenciar que nem todos os preceitos de um diploma legal têm de ser aplicados à totalidade dos sujeitos a ele submetidos, isto é, poderão existir normas direccionados apenas a um ou alguns dos destinatários de uma lei. Este argumento fundamenta a aplicação do regime especial dos praticantes desportivos ao contrato de trabalho dos treinadores na estrita medida da sua compatibilidade. De seguida, rejeita as conclusões tradicionalmente retiradas dos artigos 9.º n.º 1 e 14.º n.º 1 do RD 1006/1985 de
26 de Julho. Em relação à primeira destas normas, salienta que não são apenas os praticantes desportivos que desenvolvem a sua actividade perante o público. Também a prestação laboral do treinador é executada no momento da competição176, sendo este o primeiro a merecer as críticas e a censura daqueles que assistem e financiam o “espectáculo desportivo”. Voltamos a depararmos com a importância dos adeptos e outros investidores neste sector, pela sua capacidade de influenciar a permanência do treinador no exercício do cargo. O mesmo Autor acrescenta que a forma como o treinador participa nos treinos faz com que seja o “único sujeito necessário para que tal actividade possa ser levada a cabo”.
Tendo em conta os argumentos apresentados, reforçamos que a exposição ao público é uma característica essencial da prestação laboral do treinador e praticante desportivo, ainda que se manifeste de formas diferentes. O primeiro realiza grande parte das suas funções no momento do treino e preparação, acompanhando e dirigindo os praticantes desportivos no decurso da competição177, enquanto que o segundo executa a
175 Convocamos os argumentos de XXXXXX XXXXXXXX XXXXX (XXXXXX XXXXXXXX XXXXX, Deporte y Derecho. Las relaciones laborales en el deporte profesional, 1996), Cit. Por. XXXX XXX XXX, El deportista profissional ante la extinción del contrato de trabajo desportivo, Ob. Cit., pp. 73-74, nota 122; Los deportistas profesionales: Estudio de su régimen jurídico laboral y de seguridade social, Ob. Cit., pp. 77-78. Este último afasta os treinadores do âmbito de aplicação do RD 1006/1985 de 26 de Junho com base no conteúdo dos artigos 7.º, 9.º n.º 1 e 14.º n.º1 daquele diploma, concluindo que o regime especial em causa “assume a sua verdadeira dimensão relativamente aos trabalhadores que participam de maneira directa ou em sentido estrito na prática desportiva”. Xxxxxxxxxxx, porém, que o direito de “ocupação efectiva”, (artigo 7.º n.º 4 da mesma lei) pode estender-se à actividade desenvolvida pelos treinadores.
177 Nos desportos colectivos, em particular, é o treinador que toma a fundamental decisão de escolher os atletas que competem em cada partida, decidindo quem realiza a prestação laboral diante do público.
parte determinante da sua prestação laboral neste último momento, sem menosprezar a importância da sua preparação física e técnica para um bom desempenho desportivo. Independentemente do prisma sobre o qual nos debruçamos, uma e outra actividade profissional interferem no desenrolar do “espectáculo desportivo”.
Em relação à segunda norma evidenciada, o citado Autor considera que o exercício de direitos formativos por parte do clube ou entidade desportiva não se encontra vedado ao contrato de trabalho dos treinadores. Mesmo que a sua formação profissional exija outras habilitações para além da aquisição de experiência178, essa experiência possibilita um progresso na carreira profissional.
A interpretação descrita levanta-nos maiores reservas. Para todos os efeitos, o treinador contratado preenche os requisitos habilitacionais mínimos. Ainda que aceitássemos a compensação da entidade empregadora pela experiência e conhecimentos de natureza prática proporcionados, continuaria a não existir um critério objectivo capaz de determinar que tipo de experiência profissional adquirida pelo treinador desportivo seria equiparável a formação susceptível de ressarcimento179.
178 Para compreender os requisitos formativos desta actividade voltamos a remeter para o artigo 6.º da Lei 40/2012 de Agosto que estabelece as qualificações mínimas para obtenção do título profissional de treinador em Portugal, bem como os quatro graus que podem ser obtidos e as diversas funções associadas (artigos 10.º a 14.º da mesma lei). Tais requisitos demonstram que o exercício da profissão de treinador assume “um certo grau de preparação científica” (XXXX XXXXXXX, A nova legislação do desporto comentada, Ob. Cit., p. 37). No mesmo sentido avança o artigo 212.º do “Code du sport” francês, norma que exige autorização administrativa especial para habilitar o treinador de desportos que exigem medidas de segurança especiais (mergulho, paraquedismo ou ski, por exemplo). No caso das artes marciais, exige-se a obtenção do grau de “dan”, emitido por comissão especializada da federação desportiva associada à modalidade (XXXXXXXX XXX, [et. al.], Droit du Sport, Ob. Cit., p. 397-398).
179 Concordamos com a análise de XXXXX-XXXXXXXX XXXXXXX, “Consideraciones críticas sobre la ampliación jurispruidencial del concepto de deportista profesional a entrenadores y técnicos (…), Ob. Cit.,
p. 412, segundo a qual o contrato de formação profissional e a compensação devida (artigos 4.º e 14.º n.º 1 do RD 1006/1985 de 26 de Junho) só podem aplicar-se no âmbito da actividade desenvolvida pelos desportistas profissionais. O treinador é contratado para colocar a formação adquirida e a sua experiência ao serviço do clube ou entidade desportiva, através da preparação e formação dos atletas, e não para receber essa mesma habilitação. Não nos parece adequado, por exemplo, que o primeiro clube onde o treinador exerça funções seja considerado clube formador, apto a clausular direitos de natureza económica sobre a formação profissional. Porém, existem casos excepcionais em que a preparação do treinador para o exercício da profissão começa a fazer-se na estrutura do clube em que já exercia (outras) funções. É o caso do “treinador- jogador”, cargo geralmente exercido como solução de recurso e que funciona como “antecâmara” para o exercício futuro da profissão por parte do, ainda, atleta. Nesta situação não vislumbramos com tanta facilidade a incompatibilidade entre a preparação do treinador para o exercício da actividade e o regime compensatório associado ao contrato de formação desportiva. Para uma leitura sobre o “contrato misto” do treinador-jogador e o potencial conflito de interesses entre as funções exercidas, vide XXX XXX XXXXXXX, “Treinador desportivo: regime jurídico precisa-se!”, Ob. Cit., pp. 207- 211.
Feitas as considerações gerais sobre a aplicação do regime laboral comum à relação laboral estabelecida pelos treinadores, passemos à apreciação de elementos estruturantes desta relação, confrontando a prática contratual com as soluções previstas no CT.
3.2.1. A imposição do contrato a termo
Como tivemos oportunidade de referir, o contrato a termo é a modalidade mais adequada às particularidades da relação laboral constituída pelos treinadores desportivos. Esta realidade é traduzida pelo artigo 8.º n.º 1 do CCT180 aplicável, norma que exige a “duração determinada” do contrato celebrado pelos treinadores de futebol abrangidos. Na abordagem desta matéria trataremos de comparar o regime convencional com o “termo estabilizador”181 que vigora na relação laboral dos praticantes desportivos, de acordo com os artigos 5.º n.º 2, alínea e) e 26.º da Lei 28/98 de 26 de Junho.
A aposição de um termo ao contrato de trabalho dos treinadores é um princípio comum a diversos ordenamentos jurídicos. Recuperamos o exemplo dos treinadores da NFL norte-americana que, em regra, estabelecem um contrato de trabalho com duração igual ou inferior a três épocas, sem prejuízo da cláusula de opção que permite o prolongamento do vínculo quando atingidos certos objectivos pré-fixados, como é o caso
180 O referido CCT limita-se a exigir a fixação do termo (artigo 6.º, n.º 1, alínea b) e 8.º n.º 1) e a cessação automática na ausência de acordo de renovação entre as partes (artigo 8.º n.º 1 e 2), afastando a renovação tácita prevista no artigo 149.º n.º 2 do CT. Noutros ordenamentos jurídicos, os IRCT aplicáveis procuram fixar limites máximos de duração do contrato. É o que acontece em Itália com o artigo 2.º do “accordo collettivo” celebrado entre a F.I.G.C e a A.I.A.C, do qual resulta um limite máximo de 5 anos para o contrato a termo celebrado pelos treinadores de futebol (XXXXXXXX XXXXXXXXXX, Il rapporto di lavoro sportivo, Ob. Cit., p. 153). Em França, a cláusula 12.3.2.3 da “Convention Collective Nationale du Sport” estabelece o mesmo limite. Além disso, este regime convencional reconhece que os treinadores e praticantes desportivos ocupam cargos que exigem a contratação a termo, fundada na “natureza temporária” das suas profissões (cláusula 12.3.2.1).
181 Seguindo os ensinamentos de XXXX XXXX XXXXX, Vinculação Versus Liberdade (…), Ob. Cit., pp. 109-113, o “termo estabilizador” imposto ao praticante desportivo pretende salvaguardar os interesses do desporto e da competição profissional, restringindo a concorrência entre os clubes. O praticante desportivo sabe que não poderá promover a denúncia do contrato mediante simples aviso prévio, durante o período de execução do mesmo, mas que findo o prazo estipulado readquire a plena liberdade para se vincular a um novo clube. Tal limitação é fundamental para a gestão de uma carreira de curta duração, afectada pelo desgaste físico intenso. Esta solução permite à entidade empregadora obter estabilidade a curto prazo, evitando o assédio permanente de outros clubes sobre os seus atletas. Paralelamente, facilita as necessárias “renovações dos planteis”, com saídas de atletas e novas contratações. Como explicita LIMÓN LUQUE, “La demisión del deportista profesional y la indemnización en favor de la entidade deportiva”, RDET n.º 101, 2000, p. 215, a imperatividade do termo evita que o empregador fique indefinidamente vinculado a um atleta que não obteve o desempenho desportivo esperado.
da vitória no campeonato ou do apuramento para o playoff de acesso a determinada competição182. Todavia, observar a prática contratual não basta para justificar a necessidade imperativa do termo. A determinação do regime jurídico-laboral mais adequado nesta matéria exige a consideração de duas questões prévias: primeiro, saber as razões que fundamentam a aposição do termo no contrato de trabalho dos treinadores e, segundo, determinar se a variedade de funções desempenhadas pelos treinadores permite, ou não, conceber excepções compatíveis com a duração indeterminada do contrato.
Na esteira de XXXXX XXXXXX, começamos por referir que “não basta (…) acenar freneticamente a bandeira da especificidade do fenómeno desportivo” para justificar a contratação a termo dos treinadores. Se no sistema jurídico-laboral português esta modalidade reveste carácter de excepção, por imposição do basilar princípio da estabilidade no emprego183, é necessário fundamentar a inversão do princípio na relação laboral desportiva.
Um dos domínios onde a definição do regime jurídico aplicável tem maiores implicações é, justamente, a fundamentação do contrato por tempo determinado. A aplicação do regime laboral comum obriga a verificação dos requisitos legais que fundamentam o termo184, em particular a satisfação de necessidades temporárias da
182 Convocamos XXXXXX X. LATTINVILLE e XXXXXX X. BOLAND, “Coaching in the National Football League (…)”, Ob. Cit., p. 145. Merecem, ainda, destaque os contratos celebrados pelos treinadores adjuntos no ordenamento jurídico americano, dada a flexibilização promovida na sua relação laboral. Num estudo sobre os contratos dos “assistant coaches”, XXXXXX X. XXXXXXXXX e XXX X. XXXXX, “A study of division I assistant football na men´s baskletball coaches contrats”, Marquet sports law review, Vol. 18, Fall 2007, n.º 1, pp. 65-66, salientam que estes treinadores operam, normalmente, um verdadeiro modelo de “employee «at will»”, podendo abandonar o cargo ocupado a qualquer momento, através da livre denúncia do contrato de trabalho. Em geral, celebram contratos a termo com a duração de uma só época desportiva. A ratio do sistema americano pretende facilitar aos “assistant coaches” a obtenção de um novo contrato, mais favorável em termos económicos e profissionais. A mesma realidade é verificada nos contratos dos “collegiate coaches”, uma vez que admitem a movimentação “from job to job”, sem prejuízo de outras obrigações contratualmente estabelecidas (XXXXXX X. SIEVERT ESQ. “Coaching changes and NCAA tranfer rules: is the current system leaving athlets abandoned?”, WLSJ, Fall 2011, p. 51).
183 XXXXX XXXXXX XXXXXX, “Contratação de treinadores de futebol, A natureza efémera como legitimação da ditadura do termo”, Ob. Cit., p. 388. O Autor apresenta também a posição do TC no Acórdão n.º 581/95, DR n.º 18/96, Série I-A, disponível em: xxx.xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.xx, de acordo com a qual “a garantia constitucional da segurança no emprego significa, pois que a relação de trabalho temporalmente indeterminada é a regra e o contrato a termo a excepção”. O mesmo princípio reflecte-se no regime laboral comum através dos requisitos impostos à contratação a termo pelo artigo 140.º do CT. Contudo, não é unânime a extracção deste princípio do artigo 53.º da CRP, como elucida XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “É o regime laboral comum aplicável aos contratos entre clubes e treinadores profissionais?”, p. 133.
184 Em Espanha, XXXXXX XXXXXXXX, “Breves Apuentes sobre el regimen de los entrenadores en España”, Ob. Cit., afirma categoricamente que “hoje a relação laboral dos treinadores não tem cabimento em nenhuma das causas que possibilitam um contrato de trabalho de duração determinada no regime laboral comum”.
entidade empregadora185. Diversamente, se considerarmos a aplicação (analógica) do diploma que regula a actividade dos praticantes desportivos, o contrato a termo constitui uma modalidade imperativa e não uma opcção carecida de especial fundamentação186. Antes de indagarmos sobre as razões objectivas para a fixação de um terminus no contrato de trabalho do treinador, vejamos duas decisões jurisprudenciais que demonstram a importância da posição tomada.
Começamos pelo Acórdão do STJ de 07 de Outubro de 1998, já referenciado. Em síntese, a decisão apreciou se o contrato de um treinador cujo termo não havia sido reduzido a escrito poderia considerar-se a termo187, quando da prova produzida resultava,
185 Para XXXXXXX XXXXX XX XXXXX, “TRT da 2ª região, Define relação empregatícia por prazo determinado entre treinador e equipe de futebol – contrato civil”, Ob. Cit., p. 299, a relação laboral do treinador de futebol não pode ser considerada trabalho temporário, apesar de muitas vezes se confundir com ele em função da “rotatividade e dos reduzidíssimos períodos de trabalho”, provocados pela instabilidade dos resultados. Por essa razão, o contrato de prestação de serviços celebrado entre clube e treinador de futebol através de “empresa entreposta” é ilícito, já que apenas o trabalho temporário pode sujeitar-se à relação triangular que o caracteriza.
186 Também não é consensual o entendimento de que o contrato a termo tem de fundar-se, exclusivamente, nas necessidades temporárias da empresa. XXXX XXXXXX XXXXXXXX e XXXXX XXXXXXX DE BRITO, Código do Trabalho Anotado, 8ª Ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 381, salientam que “só há contratação lícita”, ao abrigo da cláusula geral do artigo 140.º do CT, se reportada a “necessidades de trabalho subordinado limitadas no tempo, sem prejuízo das excepções (à excepção) enunciadas nas alíneas a) e b) do n.º 4 do mesmo artigo, das quais resulta a admissibilidade da contratação a termo para a satisfação de necessidades permanentes da empresa. Apesar de tudo, como salienta XXXX XXXX XXXXX, Contrato de trabalho, Ob. Cit., p. 109-110, a contratação a termo é hoje um “desvio que se banaliza e é uma excepção que se multiplica”. Diversamente, XXXXX XXXXXX XXXXXXXXX, “Treinador: profissionais sem lei?”, Ob. Cit., p. 304, nega que o texto constitucional consagre ”uma inevitável inseparabilidade entre a contratação a termo e a temporaneidade ou transitoriedade das necessidades empresariais”, suportando-se nas excepções consagradas pelo regime laboral comum. Na mesma linha, XXXXX XXXXXX XXXXXX, “Contratação de treinadores de futebol, A natureza efémera como legitimação da ditadura do termo”, Ob. Cit., p. 384-387 e XXX XXX XXXXXXX, “Treinador desportivo: regime jurídico precisa-se!”, Ob. Cit., p. 216, defendem que as necessidades temporárias do empregador não são fundamento indispensável da contratação a termo, tal como demonstra o n.º 4 do artigo 140.º do CT e outros regimes especiais como a Lei 28/98 de 26 de Junho. Não cremos que os desvios consagrados para relações laborais “especiais” possam fundamentar esta posição, já que afastam os preceitos gerais sobre a contratação a termo por manifesta incompatibilidade. Para justificar actuação semelhante no contrato de trabalho dos treinadores desportivos é necessário verificar essa mesma incompatibilidade. Seja qual a for a posição tomada nesta matéria, é inquestionável que a conjugação entre o artigo 3.º e o artigo 139 .º do CT permite concluir pelo “carácter colectivo-dispositivo” de grande parte do regime geral da contratação a termo, em particular a “fundamentação objectiva do contrato” (XXXX XXXX XXXXX, Contrato de trabalho, Ob. Cit., p. 111-112), o que legitima o disposto no artigo 8.º do CCT aplicável e a contratação a termo dos treinadores de futebol abrangidos.
187 Partindo de uma decisão jurisprudencial francesa de segunda instância, datada de 10/06/2002, XXXX- XXXXXX XXXXXXXXXX, “L´application desdispositions du code de travail du sportif professionnel”, Revue de droit du travail, 2010, p. 2 (xxxx://xxxx.xxxxxx-xxxxxxxx.xx), demonstra a tendência inequívoca para legitimar a modalidade de contrato a termo na relação laboral dos treinadores. Numa interpretação inovadora do artigo L. 122-3-1.º do “code du travail”, o Tribunal considerou que o treinador em causa havia feito prova da celebração de um contrato a termo, embora o desrespeito pelo requisito legal da redução a escrito tivesse como consequência legal a duração indeterminada da relação laboral. Como veremos, o Acórdão do STJ de 24 de Janeiro de 2007, Cit., reconheceu de forma contundente a impossibilidade de conversão do contrato de trabalho a termo não reduzido a escrito em contrato por tempo indeterminado.
inequivocamente, que essa teria sido a intenção das partes e a irregularidade formal fora a posteriori superada188. Tal como ficou dito, o Xxxxxxx defendeu a aplicação subsidiária do regime laboral comum ao contrato celebrado pelos treinadores de futebol. Nessa media, para além de reconhecer a fundamentação do termo aposto, o STJ considerou que na ausência de comunicação da denúncia por qualquer uma das partes o contrato seria renovado, automaticamente, por igual período189. Este entendimento conduziu à rejeição da alegada cessação do contrato por caducidade e ao reconhecimento de um despedimento ilícito, com base na ausência dos procedimentos exigidos pelo regime laboral comum. A lógica da imperatividade do termo que vigora para a relação laboral do praticante desportivo foi totalmente afastada, ainda que nenhum impedimento tenha sido colocado à celebração de um contrato com duração determinada entre clube e treinador de futebol. Portanto, desta decisão resultou que a contratação a termo não é hipótese única na relação laboral dos treinadores, dependendo da verificação dos pressupostos gerais no caso concreto.
A segunda decisão jurisprudencial selecionada consta do Acórdão do STJ de 10 de Julho de 2008190 e diverge da primeira por ter considerado, na senda da jurisprudência actualmente maioritária, que os treinadores celebram um contrato de trabalho desportivo, ao qual deve ser aplicado, analogicamente, o regime especial dos praticantes desportivos.
188 No caso concreto, o treinador adjunto de futebol foi contratado verbalmente para exercer funções de treinador principal no mesmo clube durante a época 1994/1995, após a “dispensa” do “treinador principal” em funções. O contrato veio a ser reduzido a escrito mas acabou por cessar após a mudança de direcção ocorrida no clube. É neste momento que a aplicação do regime laboral comum merece destaque. O STJ determinou que a relação laboral deveria ter subsistido por renovação automática do contrato, desrespeitado que fora o prazo de aviso prévio para accionar a caducidade, nos termos do artigo 46.º n.º 2 da LCT (actual artigo 149.º n.º 2 do CT), vigente à data dos factos.
189 Num caso com contornos semelhantes, o Acórdão do STJ de 11 de Março de 1997, processo n.º 98S166, relator: Xxxx Xxxxxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx, considerou que ao contrato de trabalho de um treinador adjunto de futebol só podia ser aplicado o regime laboral comum, rejeitando a sua qualificação como “agente desportivo praticante”. Assim, mesmo que a comprovada intenção das partes tivesse sido a fixação de um termo no contrato (regularizada com a celebração por escrito), a falta de denúncia conduziria à renovação automática do mesmo e não à caducidade prevista pelas regras especiais.
190 Processo n.º 07S3660, relator: Xxxxx Xxxxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx. Neste caso, o treinador adjunto de futebol celebrou um contrato a termo, fundamentado na alínea d) da LCCT (“tarefa ocasional, precisamente definida e não duradoura”) e válido para a época desportiva 2004/2005. Tendo sido “dispensado” no final dessa época, o treinador veio propor acção judicial alegando, em suma, que a ausência de motivo justificativo para a contratação invalidava o termo aposto e a inerente cessação por caducidade, tendo antes ocorrido um despedimento sem justa causa. Não há dúvidas de que o autor da acção sustentou a posição defendida pelo Acórdão anteriormente analisado, segundo a qual o termo incluído no contrato dos treinadores deve respeitar os pressupostos do regime laboral comum. De seguida, reivindicou os meios de ressarcimento associados ao despedimento ilícito, nomeadamente os salários intercalares e a reintegração ou, em alternativa, a indemnização por antiguidade. Neste caso, o STJ entendeu que o CCT aplicável já não se encontrava em vigor, por não ter sido renovado após o período de vigência estabelecido pelo seu artigo 4.º.
O STJ afastou a necessidade de um “motivo justificativo” para a contratação do treinador de futebol por tempo determinado, aplicando analogicamente o regime do contrato a termo previsto pela Lei 28/98 de 26 de Junho. Desta forma, concluiu que a ausência de denúncia “em tempo e pela forma adequada” só podia determinar a cessação do contrato por caducidade, e não a renovação tácita, rejeitando a existência de um despedimento ilícito com as inerentes consequências legais.
Os Acórdãos apresentados permitem-nos compreender a preponderância do regime jurídico aplicável na resolução de litígios, levando o julgador a decidir de formas opostas em situações materialmente idênticas. A primeira decisão considerou ter existido um despedimento ilícito, enquanto que a segunda validou a cessação do contrato a termo por caducidade.
Sem mais delongas, passamos à apreciação das razões objectivas que fundamentam a limitação temporal do contrato celebrado pelos treinadores. Demonstrada que está a lógica do “termo estabilizador”, compreendemos que o legislador não sacrificou a liberdade de trabalho do praticante desportivo191 sem garantir a sua recuperação a médio prazo, decorrido o período de duração contratualmente estabelecido192. O regime especial garante, simultaneamente, a adequada gestão da curta carreira do atleta profissional e a estabilidade imprescindível ao bom funcionamento da competição desportiva. Ora, estes benefícios não podem ser transpostos da mesma forma para a relação laboral em apreço.
191 Pode dizer-se que a liberdade de trabalho “negativa”, enquanto direito do trabalhador a desvincular-se do contrato de trabalho sem justa causa, é restringida por certo período de tempo com o intuito de salvaguardar a liberdade “positiva” futura, através da escolha de uma nova entidade empregadora findo o prazo contratualmente estipulado. Convocamos a terminologia utilizada por J.J. XXXXX XXXXXXXXX e XXXXX XXXXXXX, Constituição da República Portuguesa, anotada, Ob. Cit., pp. 653-654, Autores que consideram a liberdade de trabalho uma “componente” do 47.º da CRP, direito fundamental que deriva do princípio de Estado de Direito Democrático (artigo 2.º da CRP).
192 A fixação do limite máximo de duração do contrato de trabalho dos praticantes desportivos em oito épocas desportivas (artigo 8.º n.º 1 da Lei 28/98 de 26 de Junho), merece a crítica de XXXX XXXX XXXXX, Vinculação Versus Liberdade (…), Ob. Cit., pp. 114-115. Na verdade, se o legislador reconheceu que a curta duração da carreira do praticante desportivo, provocada pelo natural desgaste físico, impõe a celebração de contratos de duração determinada, facilitando a desvinculação e a aceitação de propostas mais vantajosas findo esse período, não faz sentido que o limite legal máximo admita a vinculação ao mesmo contrato a termo “aproximadamente ⅔ da vida profissional”. A solução adquire maior razoabilidade quando convocada, analogicamente, para o contrato de trabalho dos treinadores desportivos, já que a sua carreira profissional apresenta maior longevidade. Sobre este limite, XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos – (…)”, Ob. Cit., p. 66-67, não levanta objecções a que uma cláusula contratual possa elevar a duração do contrato do treinador para um período superior a oito épocas desportivas. Em conformidade com esta ideia, o CCT aplicável não fixa limites de duração para o contrato celebrado pelos treinadores de futebol, tal como ficou referido.
Aos treinadores portugueses é concedida a possibilidade de denunciar o contrato de trabalho através de comunicação prévia à entidade empregadora, garantia estabelecida pelo regime laboral comum (artigo 400.º n.º 1 do CT) e pelo CCT aplicável, no caso dos treinadores de futebol193. Consequentemente, o termo não apresenta a mesma eficácia na esperada estabilização do vínculo laboral194. Não é, também, a gestão de uma carreira de curta duração que exige a fixação de limites temporais. A verdadeira razão encontra-se na importância das funções assumidas, mormente na tarefa de preparação de um atleta ou de uma equipa profissional para competir. O cargo assumido implica a execução do “projecto desportivo” traçado pelo clube ou entidade desportiva, mantendo-se enquanto as funções atribuídas forem cabalmente cumpridas e os resultados obtidos satisfatórios. A equação que inviabiliza a contratação por tempo indeterminado de um treinador desportivo apresenta três vectores essenciais: execução de um “projecto desportivo” por um período mais ou menos longo, mas sempre associado à participação em competições desportivas; a dependência dos resultados desportivos obtidos para o sucesso no desempenho da prestação laboral e o carácter fiduciário da relação jurídica em causa que precipita a quebra do vínculo laboral quando a entidade empregadora perde a confiança nas capacidades do treinador para atingir os resultados pretendidos195. Assim, faz todo o sentido que este contrato de trabalho sofra uma limitação temporal correspondente a determinado número de épocas desportivas, ou a um ciclo mais amplo no caso das competições que não obedecem a esta lógica sazonal, podendo ser celebrado por período inferior num momento em que a época já se encontra em curso196. Findo o período de duração contratualmente
193 Voltaremos a apreciar o teor dos artigos 37.º, alínea c) e 46.º do CCT aplicável.
194 Temos nesta situação um termo puramente “limitativo” e não “estabilizador”, terminologia utilizada por XXXX XXXX XXXXX Xxxxxxxxxx Versus Liberdade (…), Ob. Cit., pp. 254-255.
195 Debruçado sobre a realidade dos treinadores de futebol, XXXXX XXXXXX XXXXXX, “Contratação de treinadores de futebol, A natureza efémera como legitimação da ditadura do termo”, Ob. Cit., p. 390, salienta que a profissão “não é vocacionada para assegurar indeterminadamente a satisfação” das necessidades “permanentes” da entidade empregadora. Segue a mesma ideia, o Acórdão da Relação do Porto de 03 de Novembro de 1997, processo n.º 9740325, relator: Xxxx Xxxxxxxx, disponível em: xxx.xxxx.xx. Em sentido totalmente divergente, XXXXX XXXXXX XXXXXXX, “ O treinador nos tribunais”, Revista de Desporto & Direito, Ano IV, n.º 12, 2007, p. 413-314, considera que a actividade do treinador de futebol não impõe a contratação a termo, devendo submeter-se aos requisitos exigidos pelo regime laboral comum. Apesar das inúmeras decisões jurisprudenciais em sentido contrário, a Autora subscreve a posição firmada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de Março de 2000, Cit., p. 361, segundo o qual na ausência de motivo justificativo o contrato dos treinadores deve considerar-se sem termo.
196 Esta hipótese é contemplada pelo artigo 8.º n.º 2, alínea a) da Lei 28/98 de 26 de Junho, que permite a contratação do praticante desportivo no decurso da época desportiva (delimitada pelo n.º 5 do mesmo artigo), e até ao final da mesma. Tal como refere XXXX XXXX XXXXX, Vinculação Versus Liberdade (…), Ob. Cit., p. 100, nota 180, com a alínea b) do artigo 8.º, o legislador admitiu a contratação a termo incerto do praticante desportivo. Não tendo o CCT aplicável previsto esta opção, será que se justifica a aplicação
estipulado, a entidade empregadora pode reavaliar a idoneidade do treinador para permanecer no exercício do cargo.
No ordenamento jurídico francês, doutrina e jurisprudência tendem a legitimar a contratação a termo dos treinadores desportivos, colocando maiores interrogações acerca da validade das “cláusulas contratuais resolutivas” que operam, automaticamente, a cessação do contrato após a ocorrência de determinado evento futuro197. A este propósito, o “Cour d´Appel de Metz”, em decisão de 22 de Março de 2005, invalidou a cláusula segundo a qual a manutenção da relação laboral entre clube e treinador adjunto estava subordinada à permanência do treinador principal da mesma equipa no exercício das suas funções198. Ainda que este tipo de cláusulas possa adequar-se à realidade de algumas
analógica daquele preceito? De facto, a mencionada alínea a) acautela os casos em que os clubes necessitam de contratar um novo treinador para ocupar o cargo na época desportiva em curso. A aplicabilidade da alínea
b) parece-nos equacionável, por exemplo, nos contratos celebrados entre treinadores e federações desportivas. A duração deste vínculo laboral não é estabelecida com base na duração de uma ou mais épocas desportivas, mas de acordo com a duração das fases de apuramento e das competições internacionais que delas resultam. O objecto daquele contrato poderá, assim, restringir-se à preparação, qualificação e participação numa competição internacional. Em Espanha, XXXXX XXXXXXX XXXXXX e XXXXXX XXXXXXXX XXXXX, “Sobre se tiene cobertura legal la precarización del empleo xx xx xxxxxx xxx xxxx x xxx xxxxxxx x xxxxxx xx xx xxxxxxxxx del artículo 1.6 RD 1006/1985 y su aplicación a los entrenadores”, Ob. Cit., pp. 79-81, salvaguardam que não deve ser imperativa a contratação a termo (certo ou incerto) destes treinadores. O importante será estipular o contrato a termo de acordo com necessidades, também elas temporárias, da federação desportiva. Por isso, ao analisar o caso de um treinador contratado para coordenar o centro de treinos das seleccões de natação da Catalunha e preparar os atletas para competir nos Jogos Olímpicos, os Autores não tiveram dúvidas em considerar que aquele prosseguia a actividade normal e permanente da federação desportiva, compatível com a natureza indeterminada do contrato. Em sentido inverso, o TSJ da Catalunha entendeu existir um “contrato de duración determinada de obra o servicio”, próprio das actividades federativas, fixado “por tempo limitado mas com duração incerta”, como exige o artigo 15.1 a) do ET. Curiosamente, o contrato em causa estabelecia como termo a participação do treinador desportivo nos Jogos Olímpicos de Sydney acrescentando, simultaneamente, uma data concreta para operar a cessação.
197 De acordo com XXXXXXXX XXX, [et. al.], Droit du Sport, Ob. Cit., pp. 320-322, existem razões de “ordem pública social” que impedem as partes de derrogar o disposto no artigo L. 1243-1.º do “code de travail”, isto é, de convencionar outras causas para a ruptura antecipada do contrato a termo que não as expressamente previstas na lei. Neste sentido, o “Cour de Cassation” tem sustentado a interpretação restritiva do artigo L. 122-3-8.º, impondo o princípio da proibição da ruptra unilateral do contrato a termo, salvo quando esteja em causa uma “falta grave” cometida por qualquer uma das partes ou um caso de “força maior”. Por isso, as cláusulas de ruptura antecipada (cláusulas resolutivas, condições resolutivas, cláusulas de rescisão unilateral, entre outras) são consideradas nulas, mesmo que previstas por IRCT aplicável. Os Autores citados referem, ainda, as dificuldades na qualificação destas cláusulas quando fixam, simultaneamente, a “contrapartida financeira” pela ruptura antecipada do contrato, funcionando como verdadeiras cláusulas penais, onde o que se pretende é convencionar previamente o “preço” a pagar pela desvinculação.
198 Apesar da rigidez enunciada, no sector desportivo, onde a importância dos resultados é decisiva para a manutenção da relação laboral, a doutrina francesa tem debatido o alargamento dos motivos admissíveis para a cessação antecipada do contrato a termo, e até uma interpretação extensiva dos conceitos de “falta grave” e “força maior”. Porém, ainda que reconheça a natureza especial dos contratos de trabalho associados à prática desportiva (“contrat à durée détérminée dit d´usage”), a jurisprudência continua a privilegiar uma interpretação restritiva das causas de ruptura do contrato a termo. Por esta razão, muitos contratos de trabalho desportivos escudam-se nas referidas “cláusulas resolutivas” que operam a cessação antecipada do contrato
“equipas técnicas”, compostas por profissionais que desenvolvem a sua actividade em conjunto ao longo dos anos, não podemos ignorar que fazer depender de um terceiro a subsistência da relação laboral é um factor de significativa instabilidade e precarização que afasta, em toda a linha, a essência do direito do trabalho199.
Se ficássemos por aqui, concluiríamos sem mais pela aplicação analógica do artigo 8.º da Lei n.º 28/98 de 26 de Junho ao contrato de trabalho dos treinadores200. A contratação a termo destes profissionais não pode assumir carácter excepcional porque constitui um elemento indispensável para a gestão desportiva, integrada na actividade permanente dos clubes ou entidades desportivas. XXXXX XXXXXX XXXXXXXXX rejeita este entendimento a partir da análise do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Novembro de 2009201, concluindo pela “impossibilidade de celebração de contratos a termo
quando, por exemplo, o clube desça de divisão no final da época desportiva ou perante uma série de maus resultados que comprometam os objectivos para a época desportiva em curso e para a época seguinte (condições resolutivas). A decisão do Tribunal de Metz acabou por estabelecer que devem ter-se por não escritas todas as cláusulas que legitimam a resolução de pleno direito com base em eventos que nãos integram os dois conceitos estabelecidos na lei. Ressalvamos a posição doutrinal minoritária que retira do citado artigo L. 122-3-8.º a exclusiva protecção dos interesses dos trabalhadores, e não da entidade empregadora, sobrepondo-se aos interesses de “ordem pública social”. Esta concepção valida as “cláusulas resolutivas” estabelecidas em benefício do trabalhador. Seguimos o comentário de XXXX-XXXXXX XXXXXXXXXX em Revue Juridique et économique du Sport, n.º 80, 2006, pp. 78-82.
199 A “cláusula resolutiva” apreciada perderia o sentido útil se em França fosse criada uma figura próxima do “contrato de equipa técnica” espanhol, apresentado por XXX XXX XXXXXXX, “Treinador desportivo: regime jurídico precisa-se!”, Ob. Cit., p. 194. Neste último, todos os membros da “equipa técnica” apresentam “condições idênticas e globais” no que respeita à duração do vínculo laboral, sem prejuízo das diferenças no plano remuneratório, exercendo a sua prestação como um todo e de forma complementar. O ordenamento jurídico português conhece solução aproximada no regime especial dos profissionais de espectáculo que admite uma relação contratual de grupo, nos termos do artigo 9.º da Lei 4/2008 de 7 de Fevereiro. De acordo com XXXXX XXXXX, “Da fábrica dos sonhos – primeiras reflexões sobre o regime dos contratos de trabalho dos profissionais de espectáculos”, Novos estudos de direito de trabalho, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 218-219, ao contrário do regime homólogo em Espanha este contrato gera tantos vínculos laborais quantos membros que o integram. Ao mesmo tempo, o n.º 7 do citado artigo 9.º determina que a impossibilidade de um dos membros do grupo para exercer a sua prestação laboral não obriga a extinção do contrato com o grupo, a menos que se torne impossível manter o exercício da actividade. Se transportarmos a figura para o âmbito da actividade desenvolvida pelos treinadores, coloca-se o problema de saber se o treinador dito principal é o único elemento “necessário” para assegurar o desempenho da prestação laboral, desenvolvida em conjunto pela “equipa técnica”, e se todos os membros dessa equipa responderão de forma solidária pela infracção disciplinar cometida por um deles. Para a construção desta figura no sector desportivo será necessário determinar de que forma a “equipa técnica” pode manter-se em funções quando a relação laboral de um dos seus membros cesse antecipadamente.
200 XXX XXX XXXXXXX, “Treinador desportivo: regime jurídico precisa-se!”, Ob. Cit., p. 220, é categórico ao afirmar que “perante o actual quadro legislativo (ou a ausência dele)”, a contratação de todo o tipo de treinadores, e não apenas dos treinadores de futebol, deverá ser (sempre) efectuada por tempo determinado, em analogia com o artigo 8.º da Lei 28/98 de 26 de Junho.
201 Processo n.º 3987/03.8TTLSL.1-4, relator: Xxxxxx Xxxxxxxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx. O Xxxxxxx debruçou-se sobre o contrato de trabalho de um treinador de escalões de formação que tinha a seu cargo a responsabilidade pela contratação de todas as “equipas técnicas” dos mesmos escalões. Chamado a pronunciar-se sobre a validade dos 11 contratos a termo celebrados desde 1989 e, em particular, sobre a cessação do último contrato celebrado no final da época 2002/2003, o Tribunal da Relação sustentou a
com os treinadores por recurso à analogia” com o regime especial dos praticantes desportivos. O Autor nega que as especificidades da prestação laboral dos treinadores permitam o afastamento do regime laboral comum, na medida em que os fundamentos utilizados pelo Tribunal da Relação202 em nada se aproximam das razões que levaram o legislador a criar “um regime especial da contratação a termo para os praticantes desportivos”. Será realmente assim? As razões que fundamentam a contratação a termo dos treinadores são totalmente díspares daquelas que sustentam o regime especial dos praticantes desportivos?
Não devemos desconsiderar a existência de uma lacuna nesta matéria, provocada pela inadequação dos preceitos do CT. Os limites impostos pela necessidade de fundamentação da contratação a termo203, a forma como opera a caducidade204, ou as
aplicação analógica do artigo 8.º da Lei 28/98 de 26 de Junho, validando a caducidade com base na impossibilidade de conversão do contrato a termo em contrato por tempo indeterminado. No seguimento, julgou improcedente a argumentação do treinador “dispensado”, baseada na existência de uma relação laboral por tempo indeterminado, de acordo com as regras de conversão previstas no regime laboral comum (actual artigo 147.º n.º 2 do CT), e de um despedimento sem justa causa nos termos gerais.
202 Nesta decisão, o Tribunal da Relação recuperou a argumentação do Acórdão do STJ de 24 de Janeiro de 2007, Cit., que teremos oportunidade de apreciar em sede própria. Ainda assim, adiantamos a crítica de XXXXX XXXXXX XXXXXXXXX, “Treinador: profissionais sem lei?”, Ob. Cit., pp. 301-303, segundo o qual os argumentos utilizados não podem fundamentar o contrato a termo dos treinadores desportivos por três razões fundamentais. Em primeiro lugar, rejeita que a obtenção de resultados desportivos, para além dos económicos, divirja da obtenção de resultados pretendida por qualquer empresa no desenvolvimento da sua actividade produtiva, ou seja, considera que os objectivos prosseguidos pelo treinador não são substancialmente diferentes dos objectivos traçados para a generalidade dos trabalhadores subordinados. Em segundo lugar, ainda que a área do desporto profissional seja influenciada por “factores e conjunturas que se vão alterando”, como a variação da capacidade financeira dos clubes e o sucesso ou insucesso desportivo, impondo a necessidade de adaptar “a qualidade dos plantéis”, o Autor nega que o aumento da capacidade financeira do clube e a alteração dos objectivos desportivos pretendidos legitimem a “dispensa” do treinador. Finalmente, entre as razões que levaram o legislador a criar um regime especial para o contrato a termo do praticante desportivo está o reconhecimento da curta duração da sua carreira profissional, ditada pelo rápido desgaste físico, factor que não é verificado na “realidade social dos treinadores”.
203 Vejamos a breve trecho a experiência do regime especial dos profissionais de espectáculo, criado pela Lei 4/2008 de 7 de Fevereiro, onde o contrato a termo foi introduzido como modalidade não excepcional. Afirma XXXXX XXXXX, “Da fábrica dos sonhos – primeiras reflexões sobre o regime dos contratos de trabalho dos profissionais de espectáculos”, Ob. Cit., p. 214-215 que através do artigo 5.º (entretanto revogado), o legislador permitiu a contratação a termo dos profissionais de espectáculo para satisfação de “todas as necessidades das entidades produtoras ou organizadoras dos espectáculos públicos”. Para o Autor, o legislador considerou que todas as actividades associadas à produção de espectáculos públicos têm natureza temporária ou efémera, admitindo de forma generalizada a contratação a termo, mesmo nos espectáculos tendencialmente permanentes, como aqueles que são concedidos pelas orquestras sinfónicas. Intencionalmente, o regime especial afastou a dupla condição do artigo 140.º do CT, que vincula a celebração do contrato a termo à satisfação “de necessidade temporária da empresa e pelo período estritamente necessário à celebração dessa necessidade”. Por isso, bem salienta XXXXXXXXX XXXXX, A participação de menor em espectáculo ou outra actividade de natureza cultural, artística e publicitária: análise das especificidades do regime legal, Coimbra: Xxxxxxxx, 0000, pp. 110-111, que ao impor unicamente um limite máximo de seis anos de duração do contrato a termo (artigo 7.º n.º 3 da Lei n.º 4/2008 de 7 de Fevereiro, actualizado), afastando os demais requisitos impostos pelo CT, o legislador passou a admitir que o contrato de trabalho dos profissionais de espectáculo possa durar para além do período “estritamente necessário à
limitações à renovação do contrato205, são alguns dos exemplos invocados pela jurisprudência para o demonstrar. O contrato de trabalho desportivo lato sensu utiliza, e necessita de utilizar, o termo resolutivo como forma de acautelar interesses próprios,
duração do motivo que o levou a contratar”, satisfazendo através de um contrato temporalmente limitado necessidades que não são, em si, temporárias. As partes têm plena liberdade de escolha na matéria, como comprova a redacção do referido artigo 7.º. Posto isto, também no caso dos treinadores desportivos é extremamente complexo diferenciar o que são necessidades temporárias ou permanentes do clube ou entidade desportiva. A participação na competição, enquanto actividade permanente, requer alterações periódicas no exercício do cargo de treinador, influenciadas pelo “projecto desportivo” pretendido e pelos resultados desportivos obtidos e sempre com o objectivo de garantir o “espectáculo desportivo”. Esse espectáculo, que se mantém época após época, requer periodicamente uma alteração dos seus protagonistas, entre os quais o treinador. Por outro lado, o sucesso desportivo dá, quase sempre, lugar a um prolongamento do vínculo laboral. Nesta actividade, tal como para os profissionais de espectáculos, não se adequa a restrição da contratação a termo às ”necessidades temporárias” da empresa. A este propósito, XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “O artigo 9.º do código do trabalho e a situação laboral dos treinadores desportivos”, Ob. Cit., p. 45, esclarece que o artigo 8.º do CCT aplicável “envolve a qualificação da actividade” dos treinadores de futebol “como transitória, tendo em conta a sua especial natureza, pelo que não existe, verdadeiramente, uma ultrapassagem do âmbito definido pelo artigo 139.º do CT”.
204 De acordo com o artigo 39.º, alínea a) do CCT aplicável, o contrato de trabalho do treinador de futebol caduca automaticamente com o decurso do prazo quando não haja acordo de renovação. A “gestão desportiva” e a transitoriedade do cargo impõem esta solução. Nos termos da alínea b) do mesmo preceito, a caducidade opera perante a “impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva” de o treinador prestar o seu trabalho ou do clube o receber”. Fica excluída a caducidade pela reforma (artigo 343.º, alínea c) do CT), solução que se justifica pelo facto do treinador de futebol não se reformar durante a execução de um vínculo de natureza indeterminada, mas após a decisão de pôr termo a sucessivos contratos de duração determinada (XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “O artigo 9.º do código do trabalho e a situação laboral dos treinadores desportivos”, Ob. Cit., p. 50). Ainda assim, é possível englobar na referida alínea b) a reforma antecipada por invalidez. No entanto, o regime convencional contraria preceito legal imperativo ao afastar a compensação devida ao trabalhador com a caducidade do contrato (artigos 339.º n.º 2 e 344.º do CT). Estamos perante uma solução que pretende facilitar a desvinculação do clube ou entidade desportiva, diminuindo os custos associados à substituição do treinador. Perante os factores apresentados, XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos – (…)”, Ob. Cit., pp. 78-79, conclui que no contrato de trabalho dos treinadores de futebol a caducidade pode ser adequadamente determinada através da aplicação directa do CCT, tornando desnecessária a aplicação analógica da Lei 28/98 de 26 de Junho. Em relação aos treinadores de outras modalidades já não será assim. Desde que o exercício da sua relação laboral seja afectado pelos factores de instabilidade já enunciados, valerá a analogia, conjugada com a leitura de XXXX XXXX XXXXX, Vinculação Versus Liberdade (…), Ob. Cit., p. 221-223, segundo o qual a inadmissibilidade do contrato por tempo indeterminado e os interesses que se visam acautelar com a fixação do termo no contrato de trabalho do praticante desportivo exigem a caducidade automática na ausência de acordo, ainda que a Lei 28/98 de 26 de Junho nada diga a esse respeito e o seu artigo 3.º remeta, indiscriminadamente, para a aplicação subsidiária do regime laboral comum.
205 Como não prevê a possibilidade de conversão do contrato a termo celebrado pelo treinador em contrato por tempo indeterminado, o CCT aplicável não impõe limites ao número de renovações, bastando-se com o acordo das partes para que estas ocorram. Porém, os limites previstos no artigo 148.º n.º 1, 4 e 5 do CT, conjugados com a renovação extraordinária prevista pela Lei 76/2013 de 7 de Novembro, são imperativos, por remissão do artigo 139.º do CT. Coloca-se, novamente, o problema da derrogação de um regime legal imperativo por fonte hierarquicamente inferior. Alheada desta questão, a jurisprudência portuguesa tem considerado que o disposto no CT não é aplicável à relação laboral dos treinadores, reforçando a “especificidade do fenómeno desportivo” para promover a aplicação analógica do artigo 8.º da Lei 28/98 de 26 de Junho. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Outubro de 1994, Recurso n.º 9065, 4ª Secção, BMJ n.º 440, p. 533, por exemplo, considerou os contratos a termo consecutivamente celebrados por um treinador durante cinco anos como autónomos entre si, não constituindo para o efeito renovações e sendo, todos eles, susceptíveis de caducar na data prevista para o termo.
relacionados com a competitividade no plano desportivo. As alterações frequentes nos planteis e as mudanças de “equipa técnica”, fazem parte de uma dinâmica que pretende corresponder às expectativas daqueles que acompanham e financiam o “espectáculo desportivo”206. O problema surge quando indagamos sobre as razões que levaram ao afastamento da contratação por tempo indeterminado no artigo 8.º da Lei n.º 28/98 de 26 de Junho. Aqui não encontramos motivações comuns às duas actividades profissionais. O legislador pretendeu assegurar a melhor gestão possível da curta carreira do praticante desportivo, condicionada pela proibição da livre denúncia do contrato. Como ficou explicitado, só com a imperatividade do termo foi possível assegurar a recuperação da liberdade de desvinculação do atleta207. Mesmo com esta diferença entre a ratio legislativa e o caso particular dos treinadores, a jurisprudência tem reconhecido o “conflito de interesses paralelo” que permite invocar, analogicamente, o “critério valorativo”208 adoptado pela norma especial.
Segundo XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, treinador e entidade empregadora podem optar pela celebração de um contrato por tempo indeterminado, fazendo prevalecer a sua liberdade contratual sobre a aplicação analógica do diploma que regula a actividade dos praticantes desportivos. Subscrevemos esta posição, não pelos variados exemplos de treinadores com grande longevidade no exercício do mesmo cargo, mas porque existem “treinadores menos ligados a projectos desportivos e menos dependentes dos resultados competitivos”209, para os quais faz todo o sentido legitimar a contratação por tempo indeterminado. De facto, a obtenção de resultados desportivos satisfatórios durante a época desportiva ou determinado ciclo competitivo pode não constituir o objectivo fulcral da relação laboral em análise210. É o que acontece com o treinador de camadas jovens, cuja
206 Como veremos, evitando generalizar a imposição do termo no contrato de trabalho dos treinadores desportivos, o Acórdão do STJ de 24 de Janeiro de 2007, Cit., sustenta o “perfil, qualidades e aptidões técnicas” do treinador como condições essenciais para a execução do “projecto desportivo pretendido”. A aplicação analógica do artigo 8.º da Lei 28/98 de 26 de Junho acautela esta necessidade de adaptação.
207 Em Espanha, XXXXX-XXXXXXXX XXXXXXX, “Consideraciones críticas sobre la ampliación jurispruidencial del concepto de deportista profesional a entrenadores y técnicos (…), Ob. Cit., pp. 412-413, reforça que os argumentos em torno da natureza temporária do contrato celebrado pelos treinadores, não podem ser extraídos da relação especial dos desportistas profissionais (artigo 6.º do RD 1006/1985 de 26 de Junho), nem são suficientes para “desvirtuar a noção legal de desportista profissional”.
208 XXXX XXXXXXXX XXXXXXX, Introdução ao direito e ao discurso legitimador, 13ª reimpressão, Coimbra: Almedina, 2002, p. 202.
209 XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos – (…)”, Ob. Cit., p. 66.
210 XXXXXX XXXXX [et. al.], Droit du Sport, Ob. Cit., pp. 274-276, salientam que a fixação do termo no contrato dos treinadores resulta da própria missão que lhes é incumbida. De acordo com estes Autores, a
tarefa de formação e educação se sobrepõe à exigência de vitórias e classificações finais211. Nestes casos, a influência de factores externos à estrutura organizativa do clube ou entidade desportiva, como a pressão dos adeptos, patrocinadores e outros investidores para a obtenção de resultados satisfatórios, é praticamente nula. Tudo se resume à confiança depositada pela entidade empregadora no treinador contratado e à forma como aquela avalia o exercício das suas funções212. Resulta por demais evidente que a função educacional e formativa que subjaz à celebração do contrato de trabalho pode coexistir com a duração indeterminada do mesmo.
A apreciação do direito vigente demonstra a necessidade de uma regulamentação específica nesta matéria. Não existe, a nosso ver, uma razão determinante para impor o contrato a termo nos moldes estabelecidos pelo CCT aplicável aos treinadores de futebol213. São as circunstâncias do caso concreto e as funções assumidas que ditam se esta
jurisprudência francesa integra treinador e praticante desportivo no lote de profissões sujeitas à lógica e vicissitudes do sector desportivo, cujos particularismos impõem uma maior precarização da relação laboral. Destacam, ainda, os Acórdãos do “Cour de Cassation” de 20/06/2001, proc. n.º 99 – 43311, 26/10/1999, n.º 98 – 41465 e 28/06/2008, proc. n.º 10-18994 que, em conformidade com a directiva n.º 1999/70/CE, consideram fundamental a verificação, no caso concreto, dos elementos que comprovam a existência de uma relação de emprego com carácter temporário, mesmo estando em causa a celebração de sucessivos contratos a termo. A propósito do requisito da “natureza temporária” do contrato a termo integrado no artigo L. 122-1.º do “code de travail”, XXXX-XXXXXX XXXXXXXXXX, “Le contrat de travail du sportif ou de l´éducateur sportif rémunéré”(Essai de compréhension de la jurisprudence de la chambre sociale de la Cour de cassation à la lecture d´arrêts rendus de novembre 1997 à octobre 1999), Recueil Dalloz, n.º 20, 2000, p. 314, considera que a actividade de desportistas e treinadores está sujeita às “flutuações naturais” e riscos próprios da actividade desportiva. Para o Autor, é a necessidade de proteger os “trabalhadores desportivos” que fundamenta o contrato a termo.
211 O reconhecimento de que não existe homogeneidade na actividade dos treinadores profissionais tem levado a jurisprudência francesa a determinar que o treinador responsável pelos escalões de formação desempenha funções relacionadas com a actividade normal e permanente dos clubes, as quais se compadecem com a celebração de um contrato por tempo indeterminado. É o caso da decisão do “Cour d´appel” de Paris de 25/10/2001, Cit. Por. XXXXXX XXXX, “Les contrats des sportifs, L´example du football professionel”, Dir. Xxxxxx Xxxxx, Paris: Puf, 2003, pp. 82-86, que requalificou como contrato sem termo o vínculo de um treinador de camadas jovens em funções há mais de dez anos.
212 A maior estabilidade do vínculo laboral das “equipas técnicas” responsáveis pela formação é visível quando estas resistem às mudanças na direcção dos clubes ou entidades desportivas, tal como demonstrou o caso sub judice no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Novembro de 2009, Cit.
213 Ressalvamos que os argumentos apresentados para sustentar a contratação a termo dos treinadores adequam-se, sobretudo, à realidade dos desportos colectivos (futebol, basquetebol, andebol, voleibol, …), onde o sucesso ou insucesso desportivo dos atletas é imputado à “equipa técnica” responsável pela preparação dos jogadores e pelas decisões estratégicas tomadas no decurso dos jogos realizados (por exemplo na escolha dos jogadores titulares e nas substituições durante o jogo). Durante o “espectáculo desportivo” e aos olhos dos adeptos, o treinador é visto como interveniente directo nos resultados obtidos. A realidade dos desportos individuais (atletismo, natação, ciclismo, …) é diversa. A pressão do sucesso ou insucesso desportivo tende a recair sobre o atleta e não tanto sobre o treinador. Consequentemente, a pressão dos adeptos tem menos influência na manutenção do contrato de trabalho deste último. Nesse caso, o afastamento das regras gerais em matéria de duração do contrato perde alguns dos seus fundamentos.
é ou não uma profissão de “natureza efémera”214. Actualmente, a maioria da doutrina sustenta o contrato de trabalho por tempo determinado como única modalidade admissível, baseando-se na especial relação de confiança entre clube ou entidade desportiva e treinador e, por inerência, na forma como este último se relaciona com os praticantes desportivos treinados. A contratação a termo é o mecanismo facilitador da extinção do contrato após a quebra dessa confiança215.
De iure constituendo, será necessário encontrar um critério objectivo capaz de conciliar as duas modalidades contratuais enunciadas. Pelo menos nos casos em que a tarefa formativa e educacional se sobrepõe à necessidade de vitórias e classificações no âmbito da competição desportiva (“treinador-formador”), faz todo o sentido a contratação por tempo indeterminado216, ou a conversão do contrato a termo celebrado de acordo com as regras gerais previstas no CT217. Esta abertura salvaguardaria as especificidades do caso concreto e evitaria decisões inflexíveis como aquela que resultou do Acórdão do STJ de 16 de Novembro de 2010218, do qual resultou a aplicação do artigo 8.º da Lei 28/98 de 26 de Junho ao contrato de trabalho de um treinador de escalões jovens que durante onze anos se dedicou à mesma actividade formativa219. Apesar das tarefas assumidas e da longevidade do vínculo laboral, o STJ optou por privilegiar “a natureza profissional da actividade
214 XXXXX XXXXXX XXXXXX, “Contratação de treinadores de futebol, A natureza efémera como legitimação da ditadura do termo”, Ob. Cit., p. 390.
215 XXXXXX XXXXXXXX, “Breves Apuentes sobre el regimen de los entrenadores en España”, Ob. Cit.
216 Esta posição permitiria submeter as restrições impostas ao princípio da estabilidade do emprego, enquanto direito fundamental previsto no catálogo da CRP, a um juízo de proporcionalidade na sua tríplice dimensão: adequação ou idoneidade das medias restritivas para atingir o fim visado na lei, necessidade dessas medidas para atingir os fins visados, porque não existiriam meios menos onerosos, e proporcionalidade em sentido estrito que impõe uma “justa medida” entre os “meios legais restritivos” e os “fins obtidos” (artigo 18.º da CRP. Cfr. J.J. XXXXX XXXXXXXXX e XXXXX XXXXXXX, Constituição da República Portuguesa – Anotada, Ob. Cit., pp. 392-393.
218 Processo n.º 3987/03.8TTLSB.l1.S1, relator: Xxxxx Xxxxxxx, disponível em: xxx.xxxx.xx. Este Xxxxxxx confirmou a posição recorrida, proferida pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Novembro de 2009, Cit.. Entre os argumentos apresentados pelo treinador, centrados na conversão do contrato a termo em contrato por tempo indeterminado, nos termos gerais, e a posição do clube que invocou a autonomia e a validade dos sucessivos contratos a termo certo, o STJ privilegiou a segunda posição e a aplicação analógica do artigo 8.º da Lei 28/98 de 26 de Junho.
219 No caso dos treinadores com tarefas exclusivamente formativas, XXXXXX XXXXXXXX XXXXX, “El entrenador de un equipo de fútbol ¿es alto cargo? (…)”, Ob. Cit., p. 779, considera inevitável a aplicação do regime laboral comum, pois falta a competição como elemento que define a “especialidade” da relação laboral.
desempenhada pelo treinador”, desconsiderando, ainda, o “estatuto dos praticantes que o mesmo treinava”220.
Deparamo-nos com a impossibilidade de estabelecer verdades absolutas nesta matéria. É certo que a maioria dos litígios emergentes do contrato de trabalho dos treinadores desportivos justificam o afastamento do CT. A aplicação directa do CCT, no caso dos treinadores de futebol, ou a analogia com o artigo 8.º da Lei 28/98 de 26 de Junho, são as soluções mais adequadas para integrar a lacuna. Porém, só uma intervenção legislativa poderá resolver adequadamente o problema. O novo regime deverá compatibilizar, na medida do possível, o contrato de trabalho dos treinadores com os princípios e normas que integram o regime laboral comum. Para além do afastamento das normas gerais sobre o motivo justificativo da contratação a termo e dos limites máximos de duração do contrato, existem outras matérias que reclamam uma reflexão aprofundada, com destaque para os limites de renovação do contrato a termo e os requisitos para a sua conversão em contrato por tempo indeterminado. Ao mesmo tempo, será necessário conformar outros aspectos do regime com a aceitação da contratação por tempo indeterminado, entre os quais a compensação devida pela ruptura ilícita do contrato. Esta matéria, como veremos de seguida, encontra-se estabelecida pelo CCT aplicável no pressuposto de que o contrato a termo é a única modalidade contratual admissível. Em todo o caso, não cremos que a contratação dos treinadores por tempo indeterminado venha a ser fomentada pelos clubes ou entidades desportivas, mesmo que restringida ao exercício de tarefas formativas. Escudados nas especificidades do sector desportivo, continuarão a privilegiar o contrato a termo a fim de, periodicamente, reavaliarem o interesse nos serviços do treinador e a sua idoneidade para prosseguir no exercício do cargo.
220 Seguimos o pensamento de XXXX XXXX XXXXX, “É o regime laboral comum aplicável aos contratos entre clubes e treinadores profissionais? (Comentário ao Ac. stj, de 16-11-2010)”, Prontuário de direito do trabalho, n.º 87, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pp. 336-340. No plano do direito vigente, não encontramos razões para que os “treinadores-formadores” não possam beneficiar da “dialéctica dicotómica” em que assenta o sistema jurídico-laboral português, ou seja, da aplicação do regime laboral comum pela ausência de regime especial aplicável.
3.2.2. A ruptura antecipada do vínculo laboral
Um dos elementos mais importantes a considerar no regime jurídico aplicável aos treinadores desportivos diz respeito à cessação do contrato de trabalho. Como tivemos oportunidade de referir221, a quebra antecipada do vínculo laboral encontra-se, quase sempre, associada aos maus resultados desportivos222. Dizemos quase, porque também as vitórias e o sucesso obtido influenciam o mercado desportivo e aumentam o interesse de clubes ou entidades desportivas concorrentes na contratação do treinador. Este, por seu turno, é livre para denunciar o contrato no decurso da competição desportiva, de acordo com as regras gerais ou com o CCT aplicável, no caso dos treinadores de futebol. Nesta conjuntura, importa compreender as implicações do regime da cessação do contrato de trabalho nos interesses desportivos e financeiros do clube ou entidade desportiva afectado pela saída antecipada do treinador223, assim como, as garantias deste último aquando do despedimento ilícito ou da resolução do contrato com justa causa.
Atendendo a que as normas convencionais sobre a ruptura do contrato de trabalho dos treinadores de futebol consagram soluções adequadas a outros desportos, em especial os desportos colectivos integrados em competições desportivas profissionais, vejamos de que forma o CCT aplicável se afasta do regime laboral comum no tratamento desta matéria.
Como ficou estabelecido, ao contrário do que acontece com o “termo estabilizador” imposto aos praticantes desportivos, os artigos 37.º alínea c) e 46.º do CCT aplicável admitem a denúncia do contrato, cumprido o aviso prévio fixado com base na “antecedência mínima de metade do prazo pelo qual o contrato de trabalho foi celebrado”. Embora a compensação devida pelo incumprimento do aviso prévio siga o mesmo critério adoptado pelo regime laboral comum, o regime convencional exige uma antecedência na
221 Supra, ponto 3.1.
222 Na gíria desportiva utiliza-se frequentemente a expressão “chicotada psicológica” para descrever o despedimento do treinador após um série de maus resultados, com o intuito de provocar uma reacção na equipa e quebrar a série negativa.
223 Impacto naturalmente atenuado quando falamos de um treinador adjunto, por exemplo, já que não assume uma tão marcada função de liderança na execução do “projecto desportivo”. Note-se que os efeitos da concorrência entre clubes podem ser atenuados através de regulamentação federativa, como demonstra o artigo 162.º do “Reglamento General de la Real Federación Española de Fútbol”, já citado. Não encontramos disposição semelhante em Portugal. As alterações no comando técnico das equipas de futebol encontram-se facilitadas pelo artigo 56.º n.º 1 e 3 do “Regulamento das competições organizadas pela liga portuguesa de futebol” (actualizado para a época desportiva 2013/2014), o qual permite a inscrição de um novo quadro técnico, devidamente qualificado, no prazo de 15 dias a contar do primeiro jogo oficial sem a equipa técnica cessante.
comunicação da “demissão” que permite ao clube/SAD encontrar alternativas e minimizar os efeitos negativos da saída do treinador no rendimento desportivo dos atletas em competição224. Contudo, será que esta solução restringe de forma adequada e proporcional a liberdade de trabalho do treinador de futebol225?
Por outro lado, a resolução do contrato por iniciativa do treinador que se funde numa justa causa considerada “insubsistente”, nos termos do artigo 40.º n.º 1 e 2 do CCT aplicável, obriga-o a compensar a entidade empregadora num montante “não inferior a metade do valor das retribuições vincendas”, ao qual pode acrescer o ressarcimento de todos os danos comprovados226. Principalmente se ocorrer no decurso da época desportiva, a livre denúncia do contrato por parte do treinador inviabiliza a tão desejada estabilidade dos praticantes desportivos durante a competição. Não é de estranhar, por isso, que os
224 Tanto o artigo 401.º do CT como o artigo 47.º do CCT aplicável sancionam o incumprimento do aviso prévio no valor da retribuição devida no período em falta. Porém, enquanto que num contrato a termo com a duração de um ano, por exemplo, o trabalhador abrangido pelo regime laboral comum procede à denúncia com um pré-aviso de 30 dias (artigo 400.º n.º 3 do CT), o treinador de futebol contratado por uma época desportiva e abrangido pelo mesmo CCT deve respeitar um período equivalente a metade dessa época, diferença com efeitos práticos muito importantes.
225 Diferentemente da solução actual, a redacção originária do artigo 47.º do CCT aplicável estabelecia um período de “seis meses de antecedência” para a comunicação da denúncia do contrato de trabalho. O preceito garantia o equilíbrio entre a necessária estabilidade competitiva dos clubes e a liberdade de desvinculação dos treinadores. Tal equilíbrio é posto em causa pela nova redacção. Pense-se, por exemplo, no facto de um treinador contratado por quatro épocas desportivas ter de comunicar a denúncia do contrato de trabalho à sua entidade empregadora com uma antecedência de duas épocas desportivas, obrigação tão irrazoável quanto impraticável. Se não podemos alegar a razoabilidade do artigo 46.º n.º 1 do CCT no contexto da actividade desportiva, torna-se inevitável questionar a nulidade do preceito, nos termos do artigo 294.º do CC, e a sua inconstitucionalidade, articulando os artigos 18.º e 47.º da CRP.
226 Não é apenas em caso de despedimento lícito do treinador (artigo 44.º n.º 2) que o CCT aplicável prevê a possibilidade da entidade empregadora reivindicar o ressarcimento de todos os danos causados nos termos gerais da responsabilidade civil. Essa hipótese é admitida, quer no caso de denúncia do contrato sem invocação de justa causa, quer no caso de resolução por justa causa considerada “insubsistente” (artigo 47.º e 42.º n.º 2, respectivamente). Uma vez que cabe a quem alega fazer prova dos factos constitutivos do seu direito (artigo 342.º do CC), recai sobre o clube/SAD a prova de todos os danos causados com a resolução contratual promovida pelo treinador. Ainda que abrangido pela presunção de culpa no âmbito da responsabilidade civil contratual (artigo 799.º do CC), tem a seu cargo a difícil tarefa de provar danos emergentes e lucros cessantes (artigo 564.º n.º 1 do CC), num sector de actividade pautado pela imprevisibilidade dos resultados desportivos obtidos. Acresce o estabelecimento do nexo causal entre o despedimento com justa causa ou a “demissão ilícita” do treinador e os efeitos negativos na performance do atleta ou equipa treinada, comprometedores das metas desportivas e financeiras expectáveis. A título de exemplo, cabe ao clube demonstrar que o apuramento da equipa para determinada competição internacional e a percepção dos fundos associados à participação na prova foram impossibilitados pela saída inesperada do treinador. O dano patrimonial, enquanto “reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado” (XXXXXXX XXXXXX, Das Obrigações em geral, Vol. I, 10ª ed. Revista e actualizada, 2013, p. 598) é muito difícil de aferir nestas circunstâncias, especialmente se tivermos em conta que o nosso CC acolheu a teoria da causalidade adequada, segundo a qual não basta que certo evento danoso tenha produzido determinado efeito, é preciso que o mesmo evento seja uma causa provável e adequada desse efeito. Este entendimento condiciona, significativamente, a “responsabilidade pela perda de chance”, tal como esclarece
o Acórdão do STJ de 18 de Outubro de 2012, processo n.º 5817/09.8TVLSB.L1.S1, relator: Xxxxx Xxxxxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx.
clubes ou entidades desportivas procurem acautelar os prejuízos da livre “demissão” do treinador através da “blindagem”227 do contrato de trabalho com as chamadas “cláusulas de rescisão”228, tal como ocorre nos contratos celebrados pelos praticantes desportivos.
Antes de nos concentramos nesta problemática, atentemos nas consequências da resolução contratual imputável à entidade empregadora. Quando o treinador promove a resolução do contrato de trabalho com justa causa, elencada no artigo 40.º n.º 1 do CCT aplicável, a compensação que lhe é devida corresponde ao montante das retribuições que estariam em falta até ao termo do contrato celebrado, deduzidas as que, eventualmente, venham a ser auferidas com o exercício da actividade no mesmo período. Este montante permite acautelar a inactividade do treinador enquanto seria expectável a manutenção da relação laboral229, sem impedir o ressarcimento de todos os danos causados nos termos gerais da responsabilidade civil230 (artigo 41.º n.º 1 e 3 do CCT aplicável)231. Como seria
227 XXXX XXXX AMADO Vinculação Versus Liberdade (…), Ob. Cit., p. 315.
228 Um dos casos mais sonantes envolveu a contratação de Xxxxx Xxxxx Xxxx pelo Chelsea F.C., concretizada após o pagamento da “cláusula de rescisão” estabelecida entre o treinador e o F.C. Porto, no valor de 15 milhões de euros. Casos como este demonstram que é cada vez menos descabido falar de um “passe do treinador” de futebol (XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “O artigo 9.º do código do trabalho e a situação laboral dos treinadores desportivos”, Ob. Cit., p. 50), e cada vez mais importante a “definição do termo e das formas de cessação de um contrato de trabalho celebrado entre um treinador e um clube / SAD” (XXXXXXXXX XXXXXX, “Quique, Xxxxx e a Lei”, Desporto e Direito, Preto no Branco, UAL, 2010, p. 121).
229 Salientamos que o desejável acautelamento do período de inactividade do treinador é afastado quando a resolução com justa causa se funda na “falta não culposa de pagamento pontual da retribuição” (artigo 40.º, n.º 2, alínea c) do CCT aplicável), situação cada vez mais frequente na conjuntura económica actual. Contudo, XXXXX XXXXXX XXXXXXX, “O treinador nos tribunais”, Ob. Cit., p. 408, entende que “não é claro, e não pode ser tomado como regra, que o treinador vai ter dificuldade em encontrar um novo emprego durante a já iniciada época desportiva”.
230 Cabe ao treinador fazer prova de outros danos causados com a ruptura do vínculo laboral, para além das retribuições que deixou de perceber. Questão interessante é saber se, e quais, os danos não patrimoniais que devem ser atendidos no apuramento do montante indemnizatório. De acordo com o artigo 496.º n.º 1 do CC, devem ser ressarcidos os danos não patrimoniais que pela sua gravidade “justificam a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado”. O “juízo de equidade realizado em concreto” deve ter especialmente em conta a “situação económica do agente e do lesado” (XXXXXXX XXXXXX, Das Obrigações em geral, Ob. Cit., pp. 606-607). Sendo assim, será que os efeitos negativos do despedimento na imagem, reputação e bom nome do treinador devem repercutir-se num aumento do valor indemnizatório? Em Espanha, a decisão do TSJ do País Basco de 18/06/2006, Cit. Por. XXXX XXXXXXX, “La determinación de las cantidades indemnizatorias en el caso de cesse de un entrenador profesional”, Ob. Cit., pp. 371-374, rejeitou esta possibilidade ao apreciar o valor da indemnização devida a um treinador de futebol, despedido com fundamento nos maus resultados obtidos. Entre os vários argumentos apresentados, o TSJ considerou que o referido montante não podia ser inflacionado pelos efeitos negativos do despedimento na imagem pública do treinador. Destacou ainda que esta é uma prática habitual no sector desportivo, da qual não pode retirar-se um prejuízo directo na celebração de futuros contratos de trabalho. Parece-nos uma argumentação atendível. Neste sector é do conhecimento geral que as circunstâncias que envolvem o insucesso desportivo do treinador ao serviço de um clube (por exemplo, a escassez de meios financeiros para construir uma equipa competitiva) não implicam, necessariamente, o insucesso noutros “projectos desportivos”. Ainda assim, só as circunstâncias associadas ao despedimento podem afastar o ressarcimento de danos não patrimoniais.
expectável, as mesmas regras valem para o ressarcimento do treinador em caso de despedimento ilícito, por remissão do artigo 44.º n.º 3 do mesmo CCT. Realçamos, novamente, que a compensação devida não tem por base o critério da antiguidade, privilegiado pelo CT, o que se compreende pela manifesta inadequação à realidade do sector desportivo, onde predomina a contratação a termo232. Em todo o caso, se as diferenças entre “os critérios de definição da indemnização” previstos no regime laboral comum e nas normas do CCT aplicável obtêm legitimação a partir do artigo 339.º n.º 2 do CT, a validade do regime convencional quando permite o despedimento sem justa causa não segue o mesmo raciocínio. Contraria a “imperatividade absoluta” das causas de cessação do contrato de trabalho233 e afasta uma das dimensões fundamentais da garantia constitucional da segurança no emprego234.
231 O anterior artigo 40.º do CCT aplicável (actual artigo 41.º) foi já submetido à apreciação do TC no Acórdão n.º 518/09 de 17 de Novembro de 2009, disponível em: xxx.xxxxxxxxx.xx, com fundamento na violação do princípio da igualdade entre trabalhadores. Do recurso constava que a indemnização prevista no preceito convencional e a faculdade dedutiva associada violavam o artigo 443.º do CT de 2003, noma legal com natureza imperativa. Porém, a apreciação do TC reforçou o entendimento do Acórdão recorrido ao considerar o regime laboral comum inaplicável ao contrato de trabalho do treinador de futebol, sendo antes convocável, por analogia, o artigo 27.º n.º 1 da Lei 28/98 de 26 de Junho “em face de uma lacuna do contrato”. Esta “ratio decidendi” validou a aplicação da noma convencional no cálculo da indemnização devida pela resolução do contrato com justa causa, por não ser menos favorável ao treinador do que o referido artigo 27.º. Neste conspecto, o TC entendeu que a pronúncia sobre a inconstitucionalidade apenas poderia incidir sobre o limite máximo indemnizatório contemplado no artigo 27.º n.º 1 da Lei 28/98 de 26 de Junho pois, em momento processual oportuno, o recorrente não colocou em causa a “validade e aplicabilidade” do artigo 40.º do CCT, ou seja, a constitucionalidade da norma não foi sequer confrontada com as garantias indemnizatórias estabelecidas pelo regime laboral comum.
232 Tendo em conta que o contrato por tempo indeterminado é o modelo estrutural subjacente ao regime laboral comum, não é de estranhar que a indemnização no caso de despedimento ilícito (artigo 391.º do CT, cuja aplicação se encontra condicionada pela Lei 69/2013 de 30 de Agosto, com carácter transitório) e de resolução com justa causa promovida pelo trabalhador (artigo 396.º do CT) varie entre “15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo, ou fracção de antiguidade (…)”. No sector desportivo o princípio inverte-se. O contrato a termo é aquele que melhor se adequa à necessidade de alterações frequentes na titularidade do cargo de treinador. Porém, se não podemos aceitar a imperatividade do termo para o contrato de trabalho dos treinadores, também não podemos admitir a compensação no valor das retribuições vincendas como único critério de fixação da indemnização.
233 XXXX XXXX XXXXX, Contrato de trabalho, Ob. Cit., p. 354.
234 Já tivemos oportunidade de referir as dificuldades geradas pela admissibilidade do despedimento do treinador de futebol sem justa causa, atendendo ao enquadramento constitucional desta figura (supra, ponto 3.1; nota 133). É notório que existem factores que extravasam o conceito de justa causa proposto pelo CT, capazes de precipitar a cessação do contrato de trabalho desportivo. Perante os maus resultados obtidos e a necessidade de encontrar um substituto capaz de atingir os objectivos desportivos traçados, os clubes ou entidades desportivas procuram, frequentemente, um “acordo de revogação” para “dispensar” o treinador do cargo assumido. A propósito, destacamos o Acórdão do STJ de 9 de Junho de 2004, Recurso n.º 3689/03, CJ, Tomo II, 2004, pp. 271-273, que considerou nulo um acordo desta natureza por falta de redução a escrito, nos termos do (actual) artigo 349.º n.º 2 do CT. Diferentemente, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03 de Fevereiro de 2003, processo n.º 0212443, relator: Xxxxx Xxxxxxx, disponível em: xxx.xxxx.xx. validou o “acordo revogatório” realizado entre um clube de futebol e o treinador adjunto da sua equipa principal, através do qual o primeiro se obrigava ao pagamento dos salários que seriam devidos se o contrato fosse integralmente cumprido, cessando a obrigação com a celebração de um novo contrato de trabalho desportivo
Cumpre-nos agora debater os requisitos de validade das cláusulas contratuais que estabelecem o montante indemnizatório devido em caso de cessação antecipada do contrato. Dentro deste grupo abordaremos a “cláusula de rescisão” propriamente dita, através da qual as partes determinam o valor da “desvinculação” do trabalhador antes do termo previsto, e as demais cláusulas que fixam a indemnização devida pela entidade empregadora em caso de ruptura ilícita do contrato. Num e noutro caso coloca-se um problema de enquadramento legal, ou seja, é necessário determinar os limites inderrogáveis pelo contrato individual de trabalho, uma vez que não encontram enquadramento normativo específico. Estaremos inevitavelmente no âmbito da famigerada “lacuna de previsão”?
As “cláusulas de rescisão” são prática recorrente no contrato de trabalho dos praticantes desportivos, devendo ser apreciadas em conjunto com a proibição da denúncia mediante simples aviso prévio. A entidade empregadora procura salvaguardar as suas expectativas económicas e desportivas determinando, em simultâneo, o valor da “libertação” do atleta. A doutrina tem debatido se estas cláusulas devem ou não estar submetidas ao limite estabelecido pelo artigo 27.º n.º 1 da Lei 28/98 de 26 de Junho, norma que restringe a responsabilidade civil “da parte que der causa à cessação ou que a haja promovido indevidamente” ao limite máximo das retribuições que lhe “seriam devidas se o contrato tivesse cessado no seu termo”. De notar que esta limitação tem sido muito criticada pela doutrina portuguesa235 e já mereceu, inclusive, a censura do TC236, para além
durante esse período. O Tribunal da Relação considerou que o auxílio prestado pelo treinador adjunto noutro clube de futebol a pedido de uma amigo, assim como a “gratificação recebida” pela colaboração, não determinava a celebração de um novo contrato, mantendo-se a obrigação fixada no “acordo de revogação”. De salientar que o valor fixado no referido acordo correspondia ao que se encontra previsto no CCT aplicável para a fixação da indemnização em caso de “despedimento ilícito” (artigo 44.º n.º 3).
235 Destacamos a crítica avançada por XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Indemnização pela ruptura ilícita do contrato de trabalho, artigo 27.º da Lei do Contrato de Trabalho desportivo e o Acórdão da Relação do Porto de 22 de Setembro de 2008”, Revista do Ministério Público, n.º 116, 2008, pp. 29-56, para quem o artigo em causa não atende minimamente à “especificidade do desporto”. Entre os factores (exemplificativos) que considera essenciais para fixar a indemnização devida pelo praticante desportivo, destacam-se o momento da competição desportiva em que o clube está envolvido, as implicações no desempenho colectivo e a afectação da imagem do clube, elementos igualmente convocáveis no caso dos treinadores desportivos. Além disso, considera inconstitucional o limite fixado pelo artigo 27.º n.º 1 da Lei 28/98 de 26 de Junho, por violação do direito à justa indemnização, garantida pelos princípios da Dignidade da Pessoa Humana e do Estado de Direito Democrático (artigos 1.º e 2.º da CRP). Consequentemente, o princípio da igualdade entre trabalhadores subordinados é violado pelas limitações impostas ao quantum indemnizatório devido ao praticante desportivo, o que evidencia, para o mesmo Autor, uma solução “insensata, desrazoável, desproporcionada e inconstitucional” (“The compensation for the ilicit breach of sports contract in the portuguese law – na unwise, unreasoning, unbalanced and unconstitucional solution”, Sports Law Boletin, 04, 2009, pp. 42-45).
de não encontrar similitude noutros ordenamentos jurídicos que enquadram a relação laboral dos praticantes desportivos237.
Sem nos alongarmos em demasia acerca da validade daquele limite e da sua imposição nas “cláusulas de rescisão”, destacamos a diferença entre as leituras de XXXX XXXX XXXXX, para quem a equiparação entre o montante a pagar pelo praticante desportivo “que se demita ilicitamente” e o valor pago pelo clube que despede ilicitamente é “sensata, razoável, equilibrada”, ainda que pouco eficaz no objectivo de restringir a concorrência no mercado desportivo238, e de XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX, segundo o qual a limitação do artigo 27.º n.º 1 não deve ser aplicada às “cláusulas de rescisão”, enquanto mecanismo que “concede ao jogador o direito de se libertar do seu vínculo contratual antes do prazo, pelo que não praticará nenhum facto ilícito se sair do clube, não estando dependente do consentimento deste nem de justa causa para tal efeito”239. A divergência entre os Autores
236 O Acórdão do TC n.º 199/2009, processo n.º 910/08, relator: Conselheiro Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx, disponível em xxx.xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.xx, confirmou a posição anteriormente descrita e declarou a inconstitucionalidade do artigo 27.º n.º 1 da Lei 28/98 de 26 de Junho por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), pois nas regras de cálculo da indemnização “o legislador está obrigado a assegurar, ao praticante desportivo, o mesmo grau de protecção que dispensa ao trabalhador comum, (…)”.
237 São vários os exemplos desta dissonância. Em Espanha, o artigo 16.º n.º 1 e 2 do RD 1006/1985 de 26 de Junho estabelece que a extinção da relação laboral do desportista profissional por vontade do mesmo e sem causa imputável ao clube dá lugar a uma indemnização, apurada de acordo com as regras gerais na ausência de acordo (artigos 1101.º e 1124.º do CC espanhol) e sem descurar as circunstâncias próprias do sector desportivo. XXXXX XXXXX, “La demisión del deportista profesional y la indemnización en favor de la entidade deportiva”, Ob. Cit., p. 208, salienta que o conteúdo desta norma salvaguarda a indemnização pelo incumprimento parcial da obrigação contratual. A restrição à liberdade de demissão do desportista não impede que este se “liberte” do contrato, ressarcidos todos os danos causados à entidade empregadora. Já em Itália, a conjugação da Lei 91/1981 com as convenções colectivas de trabalho aplicáveis (particularmente no basquetebol e no futebol), determina que os colégios arbitrais poderão aplicar as regras gerais sobre o apuramento da indemnização em caso da cessação antecipada do contrato do praticante desportivo. No ordenamento jurídico francês, a ausência de norma específica no “code du travail” permite concluir que o incumprimento do contrato imputável ao praticante desportivo dará lugar ao ressarcimento de todos os danos e prejuízos causados. Convocamos a síntese de XXXXXX XXXXXXXX XXXXX [et. al], Regulación laboral del trabajo deportivo en europa y américa, Ob. Cit., pp. 54-63.
238 Citamos XXXX XXXX XXXXX, Vinculação Versus Liberdade (…), Ob. Cit., p. 323-325. Na mesma obra (pp. 315-316), o Autor considera que as “cláusulas de rescisão” actuam como cláusulas penais em sentido estrito (utilizando a terminologia de XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxx e Indemnização, Coimbra: Almedina, 1990, p. 601 e seg.), destinadas a “compelir o devedor ao cumprimento” e a sancionar o incumprimento com uma “pena convencional”, alternativa à prestação inicialmente devida. Destaca, ainda, o uso abusivo que os clubes fazem destas cláusulas, ao fixarem montantes desproporcionados que eliminam a possibilidade de o praticante desportivo se “demitir”. Nestes casos, não existe uma verdadeira intenção de liquidar o dano causado com a denúncia antecipada do contrato, mas antes o objectivo de garantir um benefício financeiro significativo com a “transferência do praticante desportivo”, provocando um “encarceramento contratual” indevido.
239 Cfr. XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX, “Sobre as “cláusulas de rescisão” dos jogadores de futebol”, Boletim da Faculdade de Direito, STVDIA IVRIDICA, 96, p. 254. Neste estudo (pp. 245-260), o Autor realça que a intenção do legislador com o artigo 27.º n.º 1 da Lei 28/98 de 26 de Junho terá sido evitar que qualquer uma das partes fosse apanhada de surpresa com uma indemnização avultada, “fora das suas provisões”. Esta situação é acautelada pela “cláusula de rescisão”, vantajosa num sector de actividade onde a
não se centra, verdadeiramente, na natureza da figura: cláusula penal em sentido estrito, na sua dupla função, ou multa penitencial, enquanto “preço” da demissão lícita do trabalhador240, mas antes nas diferentes concepções sobre o limite imposto pelo citado artigo 27.º n.º 1. Para o primeiro trata-se de uma norma de natureza imperativa que não pode ser afastada por contrato individual de trabalho num sentido menos favorável ao trabalhador, ou seja, o atleta responderá apenas até ao “plafond” indicado pela norma241. Em sentido inverso, o segundo considera que esta norma admite convenção em contrário, podendo a “cláusula de rescisão” estabelecer uma indemnização superior ao valor das retribuições vincendas242, submetido ao controlo das cláusulas penais “manifestamente excessivas”. Mesmo que o controlo efectuado a posteriori pelo julgador seja insuficiente para conter a inclusão de cláusulas manifestamente abusivas no contrato, parece-nos um risco tolerável com o intuito de salvaguardar a estabilidade no comando técnico dos clubes/SAD´S nacionais, em especial durante a competição243.
prova dos danos causados com a ruptura do contrato é extremamente complexa. Assim, a referida cláusula opera não como uma verdadeira cláusula penal em sentido estrito, mas antes como uma multa penitencial, pois o que se pretende é atribuir um direito de desvinculação antecipada através da compensação pecuniária do clube e não a sanção do incumprimento contratual. Trata-se de uma verdadeira “revogação do contrato por mútuo acordo das partes” previamente negociada. Embora não seja de aplicar o limite do artigo 27.º n.º 1, o controlo das cláusulas “manifestamente excessivas” pode ser feito, segundo o mesmo Autor, através da “redução equitativa” consagrada pelo artigo 812.º do CC. No mesmo sentido, XXXXX XXXXXXXX, Limitações à liberdade contratual do praticante desportivo, Ob. Cit., p. 277, esclarece que “não se logra alcançar uma situação materialmente justa, para ambas as partes, caso se opte por uma aplicação formalisticamente apegada ao teor do n.º 1 do artigo 27.º do RJCTD, que (…) não pode ser aplicado, relativamente às cláusulas liberatórias, vulgarmente denominadas de rescisão”.
240 Tanto é assim que na mesma obra em que associa a “cláusula de rescisão” à cláusula penal em sentido estrito, XXXX XXXX XXXXX, Vinculação Versus Liberdade (…), Ob. Cit., pp. 341-346, reconhece que aquela pode funcionar como verdadeira “cláusula liberatória” ou “multa penitencial”. O valor pago pelo jogador permite o registo do novo contrato de trabalho celebrado, diligência que estaria vedada no caso de “rescisão” sem justa causa (vide, por exemplo, o “Acordo CE-FIFA/UEFA”, e o artigo 17.º do Regulamento FIFA). Para o mesmo Autor trata-se de uma “justa causa negociada” ou “buy-out clause” que compensa a entidade empregadora, “libertando” o praticante desportivo para a celebração de um novo contrato de trabalho.
241 XXXX XXXX XXXXX, “Futebol, Trabalho desportivo e a comissão arbitral paritária. Um Acórdão histórico sobre as “cláusulas de rescisão”, Separata da obra “Estudos do Instituto de Direito do Trabalho – Vol. IV”, Almedina, 2005, p. 199.
242 Apesar de defender a inconstitucionalidade do limite máximo fixado no citado artigo 27.º n.º 1, XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos – (…)”, Ob. Cit., p. 95, discorda que o legislador tenha conferido liberdade contratual às partes para afastar o limite máximo indemnizatório nele fixado.
243 XXXXX XXXXXXXX, Limitações à liberdade contratual do praticante desportivo, Ob. Cit., p. 278, refere que o “plafond” fixado no valor das retribuições vincendas contribui para a “vulnerabilidade financeiro- desportiva” dos clubes nacionais no mercado desportivo internacional, ideia que se aplica aos praticantes e aos próprios treinadores desportivos, aliciados pelo maior poderio financeiro dos clubes ou entidades desportivas estrangeiras.
Após uma breve incursão sobre as “cláusulas de rescisão” no contrato de trabalho dos praticantes desportivos, percebemos que a sua apreciação na relação laboral dos treinadores requer uma abordagem diferente. A liberdade de denúncia, largamente reconhecida pela jurisprudência portuguesa, exige uma ponderação diversa244. Partindo desse pressuposto, não é o direito a uma “demissão lícita” que leva as partes a convencionar este tipo de cláusula, mas antes a previsibilidade e segurança jurídica que acautela, através da fixação de um montante capaz de incitar o cumprimento do contrato e salvaguardar os interesses económicos e desportivos do clube ou entidade desportiva. Esta significativa limitação da liberdade de trabalho do treinador justifica-se, uma vez mais, em função dos interesses próprios da competição desportiva profissional. Pode mesmo dizer-se que o clube ou entidade desportiva retira um duplo benefício da “cláusula de rescisão”: por uma lado, dispensa a difícil prova dos danos efectivamente causados245 e, por outro, condiciona o assédio de outras entidades interessadas na contratação do treinador, garantindo maior estabilidade na execução da prestação laboral. Posto isto, arriscamos dizer que o regime da cláusula penal em sentido estrito246 adequa-se de tal modo no caso concreto que não existe uma lacuna legislativa na matéria247, nem tão pouco a necessidade de convocar analogicamente o artigo 27.º n.º 1 da Lei 28/98 de 26 de Junho.
244 Como ilustra XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos – (…)”, Ob. Cit., pp. 102-104, esta é uma das mais complexas questões emergentes da relação laboral dos treinadores desportivos. Em abstracto, faria sentido que os treinadores contratados por clubes ou entidades desportivas “tendo por referência épocas desportivas” e a participação na competição desportiva profissional (acrescentamos nós), vissem o seu direito a denunciar o contrato restringido, por um período sempre limitado, em nome da mesma estabilidade que fundamenta a proibição da livre denúncia por parte dos praticantes desportivos. Ficamos, então, num difícil impasse: devemos privilegiar a lógica descrita e impedir os treinadores de denunciar o contrato por aplicação analógica do artigo 26.º da lei 28/98 de 26 de Junho? Ou devemos aproximar-nos do regime laboral comum e do disposto no artigo 46.º do CCT aplicável, convocando “directamente” estas normas e rejeitando, por isso, a existência de uma “lacuna de previsão” na matéria? Não arriscamos uma solução definitiva. A especial relação de confiança que caracteriza o contrato em apreço não condiz com a impossibilidade de denúncia do mesmo, embora o aviso prévio estabelecido no regime laboral comum para a denúncia do contrato a termo, conjugado com a ausência de uma “cláusula de rescisão” seja uma perigosa combinação para a desejada estabilidade do vínculo laboral constituído pelos treinadores.
245 Danos esses que, no caso de denúncia sem justa causa, só seriam ressarcidos se o aviso prévio não tivesse sido cumprido pelo treinador (recordamos o conteúdo do artigo 47.º do CCT aplicável).
246 De acordo com os ensinamentos de XXXXXXX XXXXX XXXXXXXX, “Sobre as “cláusulas de rescisão” dos jogadores de futebol”, Ob. Cit., pp. 251-252, embora o modelo de cláusula penal contemplado pelo CC português preveja, exclusivamente, a liquidação antecipada do dano futuro (cláusula de fixação antecipada da indemnização), à cláusula penal em sentido estrito aplicam-se algumas das normas constantes daquele regime, designadamente o artigo 812.º do CC.
247 Ainda que a referida qualificação não seja aceite, existem outras alternativas que garantem o controlo das “cláusulas de rescisão” no contrato de trabalho desportivo. XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Para uma leitura serena e atenta do “Caso Webster”, RDES, n.º 1-2, 2009, pp. 34-37, por exemplo, rejeita a remissão para o regime da cláusula penal, recorrendo antes ao instituto do abuso de direito como “mecanismo de
Centremo-nos agora nas cláusulas que convencionam antecipadamente o montante indemnizatório devido pelo clube ou entidade desportiva248 em caso de despedimento (ilícito)249 ou resolução com justa causa promovida pelo treinador250. A jurisprudência portuguesa tem admitido a convenção entre as partes de um montante superior ao limite legal, muito por força da posição firmada pelo Acórdão do STJ de 12 de Julho de 1985251.
redução” das cláusulas que comportem uma limitação indevida da “liberdade de trabalho e livre circulação de trabalhadores”, garantindo a “adequação” e “proporcionalidade” do montante fixado.
248 No sistema brasileiro, o artigo 28.º da “Lei Pelé” (Lei 9.615/1998, alterada pela lei 12.395/2011) obriga à inclusão de uma “cláusula indemnizatória desportiva” no contrato de trabalho dos atletas, cujo valor mínimo é fixado na soma das retribuições vincendas. Esta pode ser invocada perante “a simples dispensa imotivada do atleta” (XXXXX XXXXXXXX XXXXXX, “Xxxxxxxx Xxxxx no contrato de trabalho do atleta profissional de futebol”, RBDD, n.º 22, 2012, pp. 126-127). A inexistência de um regime especial para os treinadores desportivos naquele país, leva-nos a questionar se não seria vantajosa a imposição de uma “cláusula indemnizatória” no contrato de trabalho por eles celebrado.
249 No que respeita às cláusulas contratuais que fixam a indemnização devida aquando do despedimento, fundado em razões de “gestão desportiva”, destacamos o litígio que opôs o treinador de futebol Xxxxxxx Xxx Xxxxxx ao clube Besiktas J. K., apreciado pelo TAS. As partes estabeleceram um contrato para as épocas desportivas 2004/2005 e 2005/2006, apurando o valor indemnizatório em duas cláusulas: a primeira determinava que o clube poderia resolver o contrato antes do termo previsto, mediante o pagamento de uma indemnização equivalente a “tudo o que restasse receber” com o cumprimento integral do mesmo; a segunda, salvaguardava que a decisão do clube em resolver o contrato com efeitos para a segunda época desportiva, desde que notificada ao treinador durante a primeira, desobrigaria o pagamento de qualquer compensação. O Besiktas J.K. procedeu ao despedimento a 25/01/2005, durante a primeira época de contrato, invocando para o efeito a segunda cláusula enunciada. Diversamente, o TAS considerou que a carta de despedimento demonstrava, inequivocamente, a intenção de “prescindir dos serviços do treinador durante a temporada em curso”, dando provimento à indemnização requerida pelo treinador no valor estabelecido pela primeira cláusula. XXXXX XXXXXXX SEGUÍ, “El caso «Del Bosque», Comentarios al laudo arbitral CAS 2006/0/2005 (Assunto «Xxx Xxxxxx, Grande, Xxxxxx, Xxxxx & Xxxxxxx vs. Besiktas), Aranzadi, Derecho de deporte y entretenimiento, n.º 21, 2007-3, pp. 418-425, destaca o mérito da decisão, sem deixar de questionar a validade de uma cláusula que confere ao clube empregador a “opção unilateral” de cessar o contrato para a segunda temporada, enquanto o treinador (trabalhador) se mantém obrigado ao cumprimento integral do contrato. A mesma dúvida é levantada pela doutrina e jurisprudência portuguesa relativamente ao “pacto de opcção” aposto ao contrato de trabalho desportivo. Apenas uma das partes se “vincula à respectiva declaração de vontade negocial, correspondente ao negócio visado e a outra tem a faculdade de aceitá-la ou não, considerando-se essa declaração da primeira uma proposta irrevogável”, ou seja, falta apenas a aceitação do destinatário (o clube desportivo) para concluir o contrato (vide, o Acórdão do STJ de 18 de Dezembro de 2012, processo n.º 9035/03.0TVLSB.L1.S1, relator: Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx).
250 Em geral, as partes fixam o valor da “rescisão” unilateralmente promovida pelo clube ou entidade desportiva no valor das retribuições que seriam devidas até ao termo do contrato. Disso mesmo dá conta o Acórdão do STJ de 20 de Março de 2014, processo n.º 396/2000.L1.S1, relator: Xxxxxxx xx Xxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx. Nesta decisão, não só foi reconhecida a legitimidade da cláusula contratual que obrigava a federação de futebol dos Emirados Árabes Unidos a compensar o seleccionador despedido no valor das retribuições vincendas, como se impôs o pagamento da comissão contratualmente estabelecida para o empresário desportivo, apurada de acordo com o valor anual dos salários devidos ao treinador.
251 Processo n.º 975, 4ª Secção, Cit., pp. 325-328. O Xxxxxxx abordou a relação laboral de um treinador de futebol, forçado a promover a denúncia do contrato após ter sido suspenso por ordem do clube, sem razão justificativa. Como tal, reivindicou o montante estabelecido na “cláusula X” do contrato de trabalho, equivalente a “todas as prestações vincendas no contrato, incluindo prémios condicionados a determinados eventos (prémios de jogo, qualificação e outros)”. Ao STJ foi colocado o problema da validade da cláusula, uma vez que o valor obtido ultrapassava o limite legal máximo previsto para a compensação no contrato a termo (artigo 20.º do DL 375-A/75). Começando por referir as particularidades da relação laboral dos treinadores de futebol, a decisão destacou que, em regra, quando estes são despedidos ou forçados a despedir- se só no início da época desportiva seguinte conseguem estabelecer um novo contrato. Por isso, quando da
No entanto, esta admissibilidade debate-se com um significativo obstáculo, imposto pela “imperatividade absoluta” do regime de cessação do contrato de trabalho, nos termos do artigo 339.º n.º 1 do CT. A margem de conformação atribuída aos IRCT nos n.os 2 e 3 do mesmo artigo é retirada ao contrato individual de trabalho, ainda que o montante indemnizatório clausulado pelas partes seja mais favorável ao trabalhador.
Diferentemente do que acontece com as “cláusulas de rescisão”, este tipo de cláusulas harmoniza-se com os princípios estruturantes do ordenamento jurídico-laboral português. Não consagram qualquer limitação à liberdade de trabalho “negativa” do treinador e ainda reforçam a estabilidade do vínculo laboral, respeitando o princípio do tratamento mais favorável252 com a fixação de um montante indemnizatório superior ao estabelecido pelo CT, ou no CCT aplicável. Além disso, a atribuição da globalidade do montante indemnizatório não depende da prova dos danos efectivamente causados. Como tal, não existem razões de ordem pública que impeçam o julgador de validar este produto da liberdade contratual. Também aqui, o regime jurídico da cláusula penal permite um controlo da validade, exigibilidade e proporcionalidade do montante estabelecido253. À luz dos princípios gerais de direito do trabalho, estão reunidas as condições para afirmar, na senda do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4 de Março de 2003254, que “nada impede as partes de, no contrato de trabalho celebrado estipularem uma indemnização por rescisão diferente da fixada no CCT aplicável, desde que não haja prejuízo para o trabalhador”. Os factores apresentados, aleados à precarização que o
livre vontade das partes resulta uma cláusula com valor indemnizatório superior ao previsto na lei, não se vislumbra “nenhum interesse público que a contrarie”, devendo ser cumprida, “até em homenagem e em defesa do princípio da boa fé contratual”. A referida cláusula foi considerada válida e enquadrada no regime jurídico da cláusula penal.
252 Neste sentido, ao abrigo do CT de 2003, o Acórdão do STJ de 09 de Outubro de 1996, processo n.º 4404 – 4ª secção, relator: Xxxxxxxx Xxxx, disponível em: xxxx://xxx.xxx.xx/xxxxxxxxx/xxxxxx- sumarios/social/social1996.pdf, considerou “válida a fixação em cláusula de contrato de trabalho de montantes indemnizatórios superiores aos previstos”.
253 Veja-se o parecer de XXXX XXXXXXX XXXXXXXX, “Contrato de trabalho a prazo – treinador de futebol”, Colectânea do Tribunal de Justiça, n.º V (I e II, 1985 – 86), pp. 13-14, no âmbito do Acórdão do STJ 12 de Julho de 1985, Cit.. O (à data) Procurador-Geral Adjunto, salientava que a estipulação em causa funcionaria como cláusula penal, vantajosa na “prevenção de litígios futuros”, no “incentivo ao cumprimento” e na “conversão a valor patrimonial de valores ou interesses que alguma resistência oferecem à redução a dinheiro e, portanto, de apuramento difícil, complexo e delicado”.
254 Recurso n.º 409/03, CJ, Tomo II, 2003, pp. 52-54. Neste caso, o treinador de futebol promoveu a resolução do contrato com justa causa, fundada na falta culposa do pagamento pontual da retribuição. Considerou o Tribunal da Relação que apesar do (actual) artigo 41.º do CCT aplicável consagrar o direito a uma indemnização correspondente às retribuições vincendas, no “direito substantivo vigora o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador que deve prevalecer por emanação de uma fonte hierarquicamente superior. Assim, considerou válida a cláusula 8ª do contrato que incluía no montante indemnizatório os “prémios condicionados à realização de determinados eventos”.
vínculo laboral do treinador sofre em nome de interesses desportivos sustentam, ainda hoje, a posição jurisprudencial apresentada255.
Em relação aos treinadores não abrangidos pelo CCT aplicável, é mais difícil determinar o regime legal adequado para regular os efeitos da cessação do contrato de trabalho. Quando não exista convenção prévia do montante indemnizatório devido, o afastamento do regime laboral comum depende da inadequação verificada em concreto, trazendo à consideração do julgador a possibilidade de aplicar, analogicamente, o artigo 27.º da Lei 28/98 de 26 de Junho e o tecto máximo que comporta.
Apreciados os efeitos da cessação antecipada da relação laboral e as cláusulas contratuais que convencionam o montante indemnizatório devido, rejeitamos que a aplicação analógica da Lei 28/98 de 26 de Junho ao contrato de trabalho dos treinadores constitua uma solução inevitável para a adequada resolução dos litígios emergentes. Exemplo disso é o Acórdão do STJ de 20 de Maio de 2009, que se debruçou sobre os efeitos da resolução do contrato com justa causa256. Para determinar o montante indemnizatório devido pelo clube de futebol ao treinador de guarda-redes cessante, a decisão confrontou a aplicação directa do (actual) artigo 41.º do CCT com a aplicação analógica do artigo 27.º n.º 1 da Lei 28/98 de 26 de Junho, acabando por determinar a “aplicação da norma convencional”.
No caso, a opção tomada não era determinante porque ambas as soluções garantiam o mesmo resultado prático. A aplicação do artigo 41.º n.º 1 do CCT conferiu ao treinador o
255 Assumidamente crítico da “imperatividade absoluta” do artigo 339.º do CT, XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos – (…)”, Ob. Cit., pp. 100-101, salienta que a validação destas cláusulas decorre, em primeiro lugar, do “princípio da adequação”, pois compensam os contratos de curta duração, dependentes dos resultados desportivos obtidos pelo treinador. Ao mesmo tempo, permitem acautelar a posição do treinador despedido com base nos resultados desportivos insatisfatórios, motivo que não será enquadrável na justa causa de despedimento. Por último, reforça que não faz sentido invocar “o princípio da igualdade dos trabalhadores na empresa” para sustentar a imperatividade do regime geral, ou seja, rejeitar as cláusulas em apreço para evitar que trabalhadores com maior poder negocial obtenham indemnizações superiores em relação aos restantes. O treinador é, muitas vezes, o único trabalhador no exercício daquelas funções e, não o sendo, diferencia-se dos demais técnicos pelas responsabilidades assumidas e pela retribuição auferida. Admite-se a fixação de diferentes valores indemnizatórios neste contexto.
256 Processo n.º 08S3445, relator: Xxxxx Xxxxxxx, disponível em: xxx.xxxx.xx. A 18/08/2004, durante a vigência do contrato outorgado a 1/10/2003 e com termo previsto para 30/06/2005, o treinador em causa promoveu a resolução do contrato com fundamento na “falta culposa de pagamento da retribuição de Julho de 2004, na violação de garantias legais e convencionais, na lesão de interesses patrimoniais e na ofensa à sua integridade moral, honra e dignidade”. As retribuições acordadas para os 21 meses de duração do contrato, fixavam-se em 174.300,00 €. Posteriormente à resolução, celebrou um contrato de trabalho para exercer as funções de treinador adjunto numa outra equipa de futebol, com início previsto para 19/08/2004 e termo em 30/06/2006, e uma retribuição correspondente a 120.000,00 € por época. Do contrato resolvido constava apenas a remissão para o CCT aplicável, não havendo convenção prévia do montante indemnizatório.
direito a uma indemnização correspondente ao valor das retribuições vincendas, deduzido o montante das retribuições auferidas ao serviço do novo clube no mesmo período. Dado que este último montante ultrapassava o primeiro valor e não foi feita prova de outros danos patrimoniais ou não patrimoniais causados, o pedido indemnizatório foi considerado improcedente. Relativamente à aplicação do citado artigo 27.º, entendeu o STJ que a semelhança entre “as situações factuais que suportam um despedimento ilícito e uma resolução com justa causa”, ancoradas num “comportamento infraccional do empregador” inviabilizam a limitação da faculdade dedutiva do n.º 3 do mesmo artigo às situações de despedimento. Ao montante indemnizatório fixado para a resolução devem, também, deduzir-se as retribuições auferidas ao serviço do novo clube durante o período em que seria expectável a manutenção do contrato257, cumprindo o princípio compensatio lucri cum dano258. Com base nesta interpretação, a compensação do treinador dependeria da comprovação dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, sendo fixada no limite máximo das retribuições vincendas e sujeita à mencionada dedução. Por esta via, a pretensão indemnizatória teria sido, igualmente, improcedente.
Por conseguinte, estamos em total acordo com XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX quando questiona se o STJ necessitava realmente de desenvolver a sua argumentação em torno de um “pêndulo argumentativo”, reconhecendo as duas vias anteriormente descritas para alcançar a adequada resolução do litígio259. Não questionamos a interpretação corretiva do
257 Tivemos já oportunidade de referir a posição de XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos – (…)”, Ob. Cit., pp. 94-95, a propósito do artigo 27.º n.º 1 da Lei 28/98 de 26 de Junho e da sua “imperatividade absoluta”. O Autor sustenta o mesmo raciocínio para a restrição da faculdade dedutiva às situações de despedimento ilícito consagrada no n.º 3 do mesmo artigo. Embora não se compreendam as razões que levaram o legislador a excluir a referida dedução no caso de resolução do contrato com justa causa, nada indica que tenha deixado margem à liberdade contratual para dispor em sentido diverso.
258 Como refere XXXX XXXX XXXXX, Vinculação Versus Liberdade (…), Ob. Cit., p. 305, a partir do citado artigo 27.º n.º 1 somos remetidos para a “obrigação de indemnização” regulada pelos artigos 562.º e seg. do CC, devendo o empregador colocar o trabalhador “na situação em que se encontraria se o contrato fosse exactamente cumprido”. Assim, os lucros cessantes ressarcidos circunscrevem-se, basicamente, ao valor das retribuições vincendas. A mesma lógica está subjacente ao artigo 41.º do CCT aplicável, como reforça o Xxxxxxx convocado.
259 Cfr. XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos – (…)”, Ob. Cit., pp. 95-97. O mesmo Autor (“Para uma leitura serena e atenta do “Caso Webster”, Ob. Cit., p. 25), ressalva que o artigo 27.º n.º 1 da Lei 28/98 de 26 de Junho é menos vantajoso para o treinador do que o artigo 41.º n.º 1 do CCT aplicável, visto que nem sequer consagra uma “presunção de dano”, tornando “a indemnização inteiramente dependente da prova dos danos causados”. De facto, apesar de nenhuma destas normas garantir em absoluto um valor indemnizatório mínimo, o artigo 41.º n.º 1 do CCT garante o ressarcimento do treinador no valor das retribuições vincendas quando não existam retribuições auferidas no mesmo período com o exercício da actividade, ressalvada a prova dos restantes danos. Já o citado artigo 27.º n.º 1fixa, exclusivamente, um quantum indemnizatório máximo, totalmente dependente da prova dos danos causados com a ruptura ilícita do contrato. Não nos
artigo 27.º n.º 3 da Lei 28/98 de 26 de Junho por nos parecer a solução materialmente mais justa. Contudo, a aplicabilidade do CCT e a sua adequação em concreto tornavam desnecessária a convocação do regime especial dos praticantes desportivos. Através do “nexo indissociável entre o esquema contratual de exercício da actividade de treinador e as especificidades do ordenamento desportivo”260, em especial as exigências impostas pela competição desportiva profissional, concluímos que a indemnização devida pelo despedimento do treinador de futebol foi, no caso, devidamente enquadrada pelo IRCT aplicável261.
Uma última nota a propósito do tratamento desta matéria no ordenamento jurídico espanhol. Tal como referimos para o caso português, os maus resultados obtidos não consubstanciam justa causa de despedimento nos termos elencados pelo artigo 54.º do ET, ou seja, o despedimento com base em razões exclusivamente desportivas é considerado “improcedente”. Com efeito, aqueles que aceitam a integração dos treinadores no âmbito do regime especial dos desportistas profissionais realçam a inadequação da indemnização por antiguidade estipulada no regime geral (artigo 56.º n.º 1 do ET), e a importância do critério previsto no artigo 15.º n.º 1 do RD 1006/1985 de 26 de Junho para a adequada resolução dos litígios emergentes do contrato de trabalho dos treinadores desportivos. O valor mínimo apurado através desta norma fixa-se em “dois salários base” e outros complementos262, podendo ser aumentado de acordo com as especificidades do caso, em especial “as retribuições que o treinador deixou de auferir com a cessação antecipada do contrato”. REMEDIOS ROQUETA BUJ salienta que o afastamento das regras gerais sobre a indemnização por despedimento é essencial para evitar o arbítrio das partes no cumprimento do contrato, pois “paradoxalmente, os custos da extinção seriam menores
parece que estas diferenças tenham efeitos significativos no plano do ressarcimento, já que a prova da perda de retribuições vincendas se encontra facilitada pela obrigatoriedade de redução a escrito do contrato de trabalho do praticante desportivo (artigo 5.º n.º 2, alíneas c) a e) da Lei 28/98 de 26 de Junho), igualmente exigida pelo artigo 6.º do CCT aplicável aos treinadores de futebol.
260 XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “O artigo 9.º do código do trabalho e a situação laboral dos treinadores desportivos”, Ob. Cit., p. 48.
261 No que respeita à aplicação analógica da Lei 28/98 de 26 de Junho, o Acórdão do STJ de 20 de Maio de 2009, Cit., segue a posição firmada pelo Acórdão do STJ de 24 de Janeiro de 2007, Cit., que reconhece dois domínios em relação aos quais se revela essencial aquela aplicação: “a temporalidade do vínculo” e os “critérios de reparação no quadro da cessação do contrato”. Como fica demonstrado, nem sempre podemos alcançar esta conclusão.
262 Dispõe o mencionado artigo que o praticante desportivo tem direito à “parte proporcional correspondiente de los complementos de calidad y cantidad de trabajo percebidos durante el último ano, prorrateándose por meses los períodos de tiempo inferiores a um año, por año de servicio”.
quanto maior fosse o tempo que restasse de contrato”263. Apesar do regime especial não obrigar ao ressarcimento do treinador no montante das retribuições vincendas, nalguns casos esse montante é essencial para compensar os danos necessariamente causados. É o que acontece com os treinadores de futebol. Apesar de não lhes ser aplicável um CCT como no caso português, a articulação entre regimes laboral e federativo264 impõe especiais limitações no exercício da profissão, como exemplifica a disposição que impede o treinador de integrar a competição ao serviço de outro clube no decurso da mesma época desportiva265.
Em suma, quanto aos efeitos da cessação do contrato de trabalho, as soluções consagradas pelo CCT aplicável aos treinadores de futebol permitem a resolução de grande parte dos problemas colocados pela cessação antecipada do contrato de trabalho desportivo. Não podemos dar-nos por totalmente satisfeitos com esta solução, pois basta a
263 REMEDIOS ROQUETA BUJ, Los Deportistas Profesionales, Régimen jurídico laboral y de seguridade social, Ob. Cit., p. 64. A Autora destaca, também, que quanto maiores forem os salários deixados de receber, maiores serão os prejuízos do treinador, aos quais uma indemnização com base na antiguidade não consegue corresponder.
264 XXXXXXX X. XXXXXX XXXXXXX / XXXXXX XXXXXXXX XXXXX, “Contratos laborales y federativos de los entrenadores de fútbol: validez y extinción”, Ob. Cit., pp. 52-64, destacam que o contrato de trabalho e o contrato federativo apresentam uma relação de complementaridade, embora se assumam como autónomos. Consideram que o RD 1006/1985 de 26 de Junho regula a prestação laboral de praticantes e treinadores desportivos com carácter geral, ainda que o contrato federativo possa impor “requisitos adicionais e regulações próprias” para o exercício das funções. É possível a contratação de um treinador de futebol sem a sua inscrição/licença federativa (artigo 152.º do “Reglamento General de la Real Federación Española de Fútbol”), embora o clube esteja obrigado à inscrição de um treinador para integrar a competição desportiva. Muitas vezes, os clubes utilizam verdadeiros “testas de ferro” para obter a inscrição federativa exigida, quando o treinador contratado não reúne as condições de inscrição. Destacamos, também, a separação entre a cessação do contrato de trabalho e a suspensão ou revogação da licença federativa. Como vimos, o artigo 162.º do mesmo “Reglamento General (…)” condiciona a liberdade contratual do treinador porque associa à quebra do vínculo laboral a impossibilidade de inscrição federativa ao serviço de um novo clube durante a mesma época.
265 A articulação entre o contrato de trabalho e o contrato federativo pode colocar algumas incertezas no apuramento da indemnização devida ao treinador em caso de “despido improcedente”, tal como demonstra a decisão do TSJ do País Basco de 23/08/2008, Cit. Por. XXX XXXXXXX XXXXXX, “Comentario a la sentencia del Tribunal superior de justicia del País Vasco de 23 de septiembre de 2008, relativa al despido de entrenador de futebol vinculado al club por un contrato de trabajo especial”, Aranzadi, Derecho de deporte y entretenimento, n.º 26, 2009-2, pp. 219-225. Durante a época 2006/2007 o clube em causa comunicou ao treinador principal da equipa de futebol a rescisão do contrato, justificada pelos maus resultados obtidos. Não se vislumbrando qualquer incumprimento contratual da parte do treinador, o TSJ considerou o despedimento ilícito, enquadrando-o no artigo 13.º, alínea h) do RD 1006/1985 de 26 de Junho. O problema surgiu no apuramento da retribuição do treinador para efeitos indemnizatórios. O montante estipulado pelo contrato de trabalho celebrado era significativamente superior aquele que constava do contrato inscrito na federação espanhola de futebol. Neste contexto, o TSJ aplicou a presunção iuris tantum do artigo 26.º do ET, englobando na retribuição todas as prestações económicas recebidas pelo trabalhador em função do trabalho prestado. A indemnização, apurada de acordo com o critério previsto no artigo 15.º do RD 1006/1985 de 25 de Junho fixou-se no total das retribuições vincendas previstas pelo contrato de trabalho, ponderada, novamente, a impossibilidade do treinador obter nova inscrição federativa na mesma época.
aceitação de um esquema contratual diverso, como defendemos para o caso dos treinadores de escalões de formação, para tornar o critério de fixação da indemnização no valor das retribuições vincendas desadequado. Em relação aos treinadores não abrangidos pelas normas convencionais só uma análise casuística poderá ditar a aplicação do regime laboral comum ou o seu afastamento, por manifesta inadequação, através da aplicação analógica do artigo 27.º da Lei 28/98 de 26 de Junho. Principalmente nestes casos é aconselhável a convenção prévia do montante indemnizatório, por forma a evitar as incertezas na apreciação do regime jurídico aplicável. Ressalvamos que, para além da responsabilidade civil fundada na ruptura ilícita do contrato de trabalho, o treinador pode responder civilmente pelos danos causados no exercício da actividade e dos poderes de direcção em que se encontra investido266.
266 Não daremos a este ponto o desenvolvimento que seria exido. No entanto, destacamos que “as situações de aprendizagem desportiva conduzem a uma afirmação possível da responsabilidade civil” dos treinadores (XXXXX XXXX XXXXXXX, “Responsabilidade civil em eventos desportivos”, Separata: Desporto & Direito, Ano V, n.º 14, Coimbra Editora, 2008, pp. 252-255). Trata-se, sobretudo, de uma responsabilidade gerada pela falta do cuidado exigível no acompanhamento e preparação dos atletas. Na doutrina Italiana, XXXXXXXX XXXXXXXXXX, Cit. Por. XXXXX XXXXXXX, La responsabilitá sportiva, Milano: Giuffré Editore, 2002, p. 188, destaca que a responsabilidade civil do treinador deriva do seu poder de direcção, baseado no controlo técnico e disciplinar exercido sobre os praticantes desportivos. Tanto pode derivar da omissão de instruções no exercício do poder directivo, como da tomada de decisões que desconsideram as precauções exigidas. Como exemplo, apresenta uma decisão clássica da jurisprudência italiana em que um treinador de boxe foi alvo de condenação por ter consentido que o pugilista que treinava combatesse com um pugilista de categoria e peso superior, sem o uso de capacete de protecção. A atitude negligente e imprudente do treinador desportivo pode originar a sua responsabilização pelos danos causados, quer o lesado seja um aluno, quer seja um atleta em competição, e a responsabilização da própria entidade empregadora. A este propósito, XXXXXXXXXX XXXXXXXX, Diritto dello sport: il sistema delle responsabilità nell´analisi giurisprudenziali, Milano: Giuffré Editore, 2010, pp. 18-21, apresenta o caso de um jogador de hockey da categoria sub-18 que ficou impedido de competir após uma grave lesão ocular provocada no balneário por um colega de equipa, enquanto utilizavam os stiks para jogar com uma bola de ténis. Considerou o Tribunal de Milão no Acórdão de 17/02/2007 que a falta de supervisão dos jovens atletas no balneário havia potenciado o acidente, condenando o autor da lesão por conduta negligente e, solidariamente, o clube desportivo por culpa in vigilando (artigo 2048, n.º 2 do codice civile italiano), devido à falta de supervisão que cabia, em primeira linha, ao treinador da equipa. No mesmo sentido, o Acórdão do STJ de 11 de Setembro de 2012, processo n.º 8937/09.5T2SNT.L1.S1, relator: Xxxxxxxxx do Vale, disponível em xxx.xxxx.xx, consagrou a prática de hóquei em patins como actividade perigosa (artigo 498.º n.º 2 do CC), responsabilizando o clube desportivo em causa pela grave lesão provocada por um jovem praticante num colega durante o treino da equipa, potenciada pela falta de vigilância do treinador e pelo equipamento inadequado para a idade dos atletas. A responsabilidade com base no dever de vigilância, cuja culpa se presume nos termos do artigo 491.º do CC, facilita a responsabilização dos treinadores pelos danos que os praticantes desportivos treinados causem em terceiros, tal como salienta XXXXX XXXX XXXXXXX no texto supra identificado. Finalmente, destacamos a posição firmada na jurisprudência norte-americana, de acordo com a qual recai sobre o treinador um dever legal de advertir os atletas (ou alunos) para os perigos associados ao desporto praticado, sob pena de responsabilização pelos danos causados durante a sua prática. Para tal, deve utilizar exercícios adequados ao desenvolvimento das capacidades do atleta e ajustar as instruções à sua idade e experiência (caso Xxxxxxxx v. Seatle Public School District (1982), XXXXXX XXXXXXXXXX, “The coach´s legal duty to properly instruct and to warn athlets of the inherent dangers in sport”, Sports and the law. Major legal cases, Edited by Xxxxxxx X. Quirk, New York & London, Garland Publishing Inc., 1996, pp. 14-17). A “coach liability” deriva, também, de condutas de risco, como a utilização de um atleta
3.3. A aplicação (analógica) do regime especial do praticante desportivo
Durante o presente estudo fomos antecipando algumas conclusões a respeito da aplicação analógica da Lei 28/98 de 26 de Junho ao contrato de trabalho celebrado pelos treinadores. Como ficou demonstrado, ainda que o CCT aplicável, indiscutivelmente em vigor após a revisão de 2012267, resolva muitos dos problemas provocados pela falta de regulamentação especial, nos restantes desportos, individuais ou colectivos, as dificuldades mantêm-se. Continua válida a ideia de que esta realidade “socialmente diferenciada, e que tem vindo a ser regulada nos termos da prática contratual generalizada no respectivo meio social”268 apresenta especificidades únicas às quais o legislador não soube corresponder.
A duração e organização do tempo do trabalho é um dos domínios onde a singularidade da prestação laboral dos treinadores volta a destacar-se. Ao estabelecerem o número de sessões de treino/formação e respectiva duração, os estágios e jogos de preparação realizados, assim como os períodos de descanso que medeiam entre os treinos e a competição269, gerem o seu próprio tempo de trabalho e o tempo de trabalho dos praticantes desportivos treinados. Assim sendo, inverte-se a lógica subjacente às relações de trabalho subordinado, em que a entidade empregadora comunica aos trabalhadores o horário de trabalho, estabelecido de acordo com os limites impostos pelo CT270. Tal como refere o artigo 23.º do CCT aplicável, é o treinador de futebol que procede à comunicação
lesionado durante a competição, ou a não utilização de todos os meios à disposição para assistir um atleta que se lesione no decurso da mesma (caso Xxxxxxxxxx v. Millard School District (1979), XXXXXX X. CHAMPION JR., Sports law cases, documents and materials, Ob. Cit., p. 322).
267 A revisão do CCT solucionou o problema de falta de vigência levantado pela redacção originária do artigo 4.º, norma que estabelecia um período de dois anos de vigência, mais seis meses para a necessária renovação (XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos – (…)”, Ob. Cit., p. 98).
268 XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “Ainda sobre a crise do contrato de trabalho, Ob. Cit., pp. 68-69. 269 O artigo 24.º n.º 1 do CCT aplicável determina um dia e meio de descanso semanal obrigatório, sendo que apenas um dia tem de ser gozado de forma contínua. Já o artigo 16.º da Lei 28/98 de 26 de Junho prevê um dia de descanso semanal para o praticante desportivo, sem prejuízo de disposição mais favorável estabelecida por IRCT. É precisamente neste sentido que aponta o artigo 24.º n.º 1 do CCT celebrado entre a Liga Portuguesa de Futebol e o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (BTE, 1ª Série, n.º 33, 8/9/1999), colocando treinador e jogador de futebol em posição de igualdade.
270 Nos termos do artigo 212.º n.º 1 do CT cabe ao empregador definir o horário de trabalho, bem com as suas alterações, com a limitação imposta por lei das 8 horas diárias e 40 horas semanais para o “período normal de trabalho” (artigo 203.º do CT). Tem, ainda, o dever de comunicar aos trabalhadores o horário estabelecido e de assegurar os períodos de descanso (artigos 213.º e 214.º do CT). No entanto, o legislador assegurou alguma flexibilidade nesta matéria, admitindo a isenção de horário de trabalho por acordo escrito, relativamente ao “exercício de cargo de administração ou direcção, ou de funções de confiança, fiscalização ou apoio a titulares desses cargos” (artigo 218.º n.º 1, alínea a) do CT). Este é mais um exemplo de que a actividade do treinador desportivo pode enquadrar-se nas normas do CT que pressupõem uma especial relação de confiança entre as partes.
do plano de trabalho à entidade empregadora271. Se ao período de preparação somarmos o tempo despendido com as deslocações e o acompanhamento permanente dos atletas em todos os jogos ou competições realizadas, percebemos que o “período normal de trabalho” estabelecido pelo regime laboral comum não tem cabimento no sector desportivo.
Desta feita, a exclusão efectuada pelo artigo 22.º n.º 2 do CCT aplicável justifica-se para a generalidade dos treinadores, sempre que exista a necessidade de moldar o exercício da prestação laboral ao funcionamento da própria competição desportiva. A articulação entre os períodos de treino e o período de duração das competições desportivas coloca em perspectiva a analogia com o artigo 15.º n.º 1, alínea c) e n.º 2 da Lei 28/98 de 26 de Junho, dado que o critério normativo utilizado para a qualificação do “período normal de trabalho” do praticante desportivo é o mesmo que deve ser convocado para o treinador272. A impossibilidade de fixar um horário de trabalho de acordo com os limites gerais é uma das particularidades da actividade desportiva, mesmo que o treinador não tenha competência exclusiva para o seu estabelecimento. Os treinos e outras actividades realizadas têm um enquadramento específico no calendário competitivo, influenciando elementos essenciais da relação laboral como o regime das faltas273, o descanso nos feriados e o gozo das férias274.
271 A competência exclusiva para a “preparação, elaboração e tomada de decisões em toda a matéria respeitante a assuntos de natureza técnica”, determinada no artigo 14.º do CCT aplicável, não pode ser generalizada. Esta autonomia varia em função das funções atribuídas no caso concreto (pense-se na diferença entre a autonomia técnica de um treinador principal e de um treinador adjunto) e da maior ou menor ingerência do clube ou entidade desportiva nos aspectos técnicos relacionados com a preparação dos atletas. Já referimos a interferência do director desportivo nas decisões tomadas pelo treinador. Também nos desportos individuais é frequente que a federação desportiva de determinada modalidade contrate treinadores para executar um plano de trabalhos elaborado (total ou parcialmente) por outro treinador, com responsabilidades de coordenação na estrutura federativa.
272 XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos – (…)”, Ob. Cit., p. 86, afirma mesmo que a “invocação dos limites impostos ao período normal de trabalho previstos na lei geral, actuaria, muito provavelmente, em abuso de direito”.
273 Quanto aos motivos justificativos das faltas, o artigo 250.º do CT não permite aos IRCT dispor em sentido diverso. Em colisão com este preceito, o artigo 28.º n.º 1 do CCT aplicável apresenta um elenco justificativo significativamente mais restrito do que aquele que resulta do artigo 249.º do CT, ainda que possamos identificar algumas alíneas que não se adequam à realidade dos treinadores. A norma convencional denota o objectivo claro de reforçar a presença do treinador na preparação dos praticantes desportivos e, em especial, na competição desportiva, restringindo o elenco de faltas justificáveis dada a essencialidade das suas funções para garantir a prática desportiva.
274 Os limites do período normal de trabalho e a fixação dos períodos de repouso, incluindo férias, gozam de uma imperativamente mínima (artigo 3.º, n.º 3, alíneas g) e h) do CT), alterável pelos IRCT num sentido mais favorável ao trabalhador. Contudo, encontramos nesta matéria normas que não admitem derrogação, como é o caso dos feriados obrigatórios definidos pelo artigo 236.º n.º 2 do CT. Tendo em conta que o calendário dos jogos de futebol engloba domingos e feriados, seria impossível exigir o descanso do treinador nestes dias. Impõe-se que a paragem se restrinja aos três feriados em que não há competição (artigo 24.º n.º 2 do CCT).
Deste modo, que espaço deve ser concedido à analogia quando o regime laboral comum se manifesta incompatível com as especificidades da relação laboral constituída pelos treinadores? É chegado o momento de analisar o Acórdão do STJ de 24 de Janeiro de 2007275, a partir do qual a jurisprudência portuguesa inverteu o paradigma da forçosa aplicação do regime laboral comum na ausência de um regime especial aplicável aos treinadores.
Chamado a pronunciar-se sobre os efeitos da falta de redução a escrito do contrato celebrado entre um clube desportivo e o seu treinador de voleibol, o STJ começou por considerar verificadas naquela relação laboral as mesmas “razões justificativas” que levaram o legislador a regulamentar de forma especial a relação laboral dos praticantes desportivos276.
A argumentação utilizada começou por excluir a actividade dos treinadores do âmbito de aplicação da Lei 28/98 de 26 de Junho, posição unânime na doutrina e jurisprudência portuguesa a que já aludimos neste estudo277/278. A grande diferença em
No que respeita às férias, o enquadramento realizado pelos artigos 25.º e 26.º do CCT não retira nenhuma garantia assinalável ao treinador de futebol face ao que se encontra estabelecido pelo regime laboral comum. Logicamente, o gozo das mesmas não poderá coincidir com o decurso da competição desportiva.
275 O Acórdão debruçou-se sobre a actividade do treinador de uma equipa sénior de voleibol. Ao contrário do que acontecera nas épocas 2000/2001 e 2001/2002, o contrato para a época 2002/2003 não foi reduzido a escrito por causa imputável ao clube que atravessava uma “crise directiva”. No entanto, após ter assumido compromisso verbal com a direcção do clube para a celebração de um novo contrato, o treinador continuou a desempenhar as suas funções, tendo sido inscrito na Federação Portuguesa de Voleibol como “treinador principal” para a nova época desportiva, entre 1/10/2002 e 30/06/2003. A 21/11/2002, já com a época em curso e depois de uma nova direcção ter tomado posse, o treinador foi “dispensado” do exercício das suas funções, tendo sido contratado, imediatamente, um substituto. Inconformado com a “dispensa”, intentou a competente acção judicial, alegando o despedimento ilícito por não ter sido precedido de processo disciplinar, e reclamando uma indemnização com base nos critérios estabelecidos pelo regime laboral comum. Na defesa apresentada, a direcção do clube alegou que a actividade do treinador na época 2002/2003 havia sido efectuada sem o seu consentimento e que, a existir um vínculo laboral válido, a falta de redução a escrito determinaria a conversão em contrato por tempo indeterminado. Nessa perspectiva, a cessação teria ocorrido no decurso do período experimental de 180 dias legalmente previsto (artigos 42.º n.º 1 e 3; 55.º n.º 2, alínea b) da LCCT).
276 Dentro destas “razões justificativas”, o STJ destacou “a natureza e fisionomia próprias” da actividade desportiva, “em que os empregadores visam a obtenção de resultados não apenas económicos mas também desportivos, não raramente interligados entre si, objectivos definidos por factores e conjunturas que se vão alterando (…) o que reclama a possibilidade de alterar a qualidade dos plantéis, isto é, o grupo de praticantes desportivos disponíveis, a esses objectivos, sem esquecer, por outro lado, a necessidade de estabilização desses plantéis, com a impossibilidade de o praticante desportivo operar a rescisão do contrato de trabalho por sua vontade, mediante pré-aviso”. Tivemos já oportunidade de debater em que medida podem estes argumentos valer para a contratação a termo dos treinadores desportivos, sem esquecer a posição crítica de XXXXX XXXXXX XXXXXXXXX, “Treinador: profissionais sem lei?”, Ob. Cit., pp. 301- 303 (supra, ponto 3.2.1, nota 202), que rejeita a sua utilização para fundamentar a aplicação analógica do artigo 8.º da Lei 28/98 de 26 de Junho.
277 Para uma síntese da jurisprudência a este respeito, XXXXX XXXXXX XXXXXXX, “O treinador nos tribunais”, Ob. Cit., pp. 396-398.
relação à posição tradicionalmente adoptada pelos tribunais surgiu posteriormente, na determinação do regime jurídico aplicável ao contrato celebrado pelo treinador de voleibol. O reconhecimento das especificidades da relação laboral em causa e “a manifesta dificuldade do regime geral do contrato de trabalho para dar cabal resposta a essas especificidades”, conduziu à invocação dos princípios gerais sobre integração de lacunas (artigo 10.º do CC) e, dessa forma, à analogia com o regime especial dos praticantes desportivos.
Assinalamos que o recurso à analogia não teve por referência todo o regime especial, mas apenas a norma que impede o efeito jurídico consagrado no regime laboral comum para a falta de redução a escrito do contrato a termo. Mais concretamente, o Acórdão concluiu pela aplicação do artigo 42.º n.º 1 da LCCT (actual artigo 141.º n.º 1 do CT), exigindo a redução a escrito do contrato a termo, e a aplicação analógica do n.º 2 do artigo 5.º da lei n.º 28/98 de 26 de Junho, determinando a invalidade do contrato por inobservância de forma, em vez da sua conversão em contrato por tempo indeterminado.
Para a concertação entre regime geral e regime especial contribuiu a comprovada vontade das partes em celebrar um contrato “necessariamente a termo” para a época desportiva de 2002/2003279. De acordo com XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, este não é um argumento viável, pois “aquilo que as partes querem nem sempre releva, bastando para o efeito que o regime legal seja imperativo”280. No entendimento do Autor, as
278 O Acórdão em análise destacou que no artigo 41.º, n.º 1, alínea i) da LBSD de 1990, o próprio legislador estabeleceu um prazo de dois anos para que o Governo fizesse publicar “o regime contratual dos praticantes desportivos profissionais e equiparados”. Não só foi desrespeitado o prazo estabelecido, como o diploma criado cingiu o seu âmbito de aplicação ao “contrato de trabalho do praticante desportivo”.
279 No apuramento desta vontade, o STJ relevou decisivamente os “antecedentes contratuais”, ou seja, a celebração de dois contratos a termo autónomos nas três épocas desportivas anteriores aquela em que ocorreu a “dispensa”. O primeiro, com termo previsto para o final da época 1999/2000, prolongou-se por mais uma época, atingidos os objectivos desportivos traçados. Atendendo ao histórico contratual e à alteração promovida na sua retribuição, o treinador acabou por “perspectivar um novo contrato a termo” para a época desportiva 2002/2003.
280 XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos – (…)”, Ob. Cit., pp. 72-73, salienta que a falta de redução a escrito imposta pelo artigo 5.º n.º 2 da Lei 28/98 de 26 de Junho determina a nulidade do contrato, ainda que a vontade declarada das partes tenha sido a celebração de um contrato de trabalho desportivo. Adverte, também, que o STJ não atribuiu a devida valoração ao facto do clube “se ter recusado a reduzir o contrato a escrito”. Bem sabemos que as alterações directivas nos clubes acarretam, quase sempre, um novo “projecto desportivo”, o que precipita a “dispensa” do treinador ou equipa técnica em funções e a contratação de um substituto com o perfil pretendido. Contudo, para o citado Autor, a desconsideração deste facto conjugada com a aplicação analógica do artigo 5.º n.º 2 da Lei 28/98 de 26 de Junho permite uma perigosa “petição de princípio”, através da qual os clubes poderão cessar a todo o tempo o contrato de trabalho celebrado (artigo 286.º do CC), invocando a nulidade por falta de redução a escrito. Mais complexo se torna o problema quando as partes celebram um “contrato amador” ou “um falso contrato de prestação de serviços”. Em prognose, o mesmo Autor questiona se os Tribunais se bastarão com a declaração de nulidade por vício de
incongruências da decisão não se ficam por aqui. Também a aplicação de um “segmento” da regra sobre a forma do contrato a termo merece reparos. A forma exigida e os efeitos da sua inobservância devem constituir um “bloco incindível”, traduzindo de forma adequada a ponderação efectuada pelo legislador. Além disso, se a regra em matéria de formação dos contratos é a liberdade de forma (artigo 219.º do CC)281, as normas que impõe forma especial assumem carácter excepcional e não são, por isso, susceptíveis de aplicação analógica282.
As críticas invocadas merecem-nos alguns reparos. Devemos salientar a extrema cautela com que o STJ sustentou a aplicação analógica da Lei 28/98 de 26 de Junho ao contrato de trabalho dos treinadores desportivos. Numa adequada compreensão do cânone metodológico subjacente ao artigo 10.º n.º 2 do CC, a decisão demonstrou que, para além das razões genéricas que aproximam a realidade dos treinadores da realidade dos praticantes desportivos, apenas e só no caso concreto é possível determinar a legitimidade da analogia com cada uma das normas daquele regime, individualmente consideradas. Por seu turno, a conversão do contrato a termo em contrato por tempo indeterminado, prevista no regime comum, não deve estar excluída a priori. A aplicação analógica não pode ser determinada a partir de uma análise “em bloco” do regime especial, nem deve consistir numa remissão indiferenciada para as suas disposições, mesmo que, em geral, consagrem soluções adequadas às especificidades da prestação laboral dos treinadores desportivos283.
forma, seguindo a aplicação analógica do artigo suprarreferido. À luz do direito constituído, nenhum dos casos apresentados encontra uma resposta adequada. Se nesta última situação está excluída a hipótese de aplicação do artigo 123.º n.º 3 do CT, já quando o clube ou entidade desportiva “dispensa” o treinador invocando a nulidade do contrato com base num vício de forma por si incentivado, parece-nos verificada a “má fé” que obriga à indemnização do trabalhador nos termos previstos para o despedimento ilícito, tal como indicia o preceito. Ainda assim, por tudo o que já dissemos a propósito da inadequação da indemnização por antiguidade, permanece uma contradição insolúvel: existem razões relacionadas com a competitividade e gestão desportiva que inviabilizam a conversão do contrato a termo celebrado pelos treinadores em contrato por tempo indeterminado, mas invocar a nulidade do contrato com fundamento num vício de forma não imputável ao treinador constitui uma solução demasiado onerosa para os seus interesses e legítimas expectativas. Julgamos que esta controvérsia terá sido determinante para que XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX tenha equacionado, de iure constituendo, “a hipótese de este contrato ser tratado como válido, quando se prove que a não redução a escrito se deveu a facto imputável ao clube/sociedade desportiva”.
281 Regra, essa, acolhida pelo artigo 110.º do CT.
282 XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos – (…)”, Ob. Cit., pp. 74-75.
283 De acordo com XXXXXXXXX XXXXXX XXXXXX, Introdução ao estudo do direito, Vol. I, 11ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 262, a analogia tem como princípio imanente “ubi eadem ratio legis, ubi eadem eius disposito”, ou seja, pressupõe uma semelhança entre o caso e as “razões justificativas” da solução regulada. Essa análise entre o “caso regulado” e o “caso omisso”, deve partir dos “elementos estruturais” de cada um deles. Como esclarece XXXXX XXXXXX XXXXXXXXX, “Treinador: profissionais sem lei?”, Ob. Cit., pp. 293-295, na prática esta solução permite que uma determinada lei possa ser aplicada analogicamente, mas algumas das normas que a compõem já não, pois a “razão” e a “natureza” com que
O complexo “exercício jurídico” tomado pela decisão procurou salvaguardar as especificidades do caso concreto, sem estabelecer uma solução de princípio284. A vontade das partes não teria sido decisivamente atendida se o contrato a termo não fosse considerado a única modalidade admissível. Ainda que possamos criticar a forma como o julgador fraccionou dois regimes jurídicos, separando os requisitos formais do contrato de trabalho dos efeitos da sua inobservância, ressalta a intenção de integrar a relação contratual do treinador de voleibol na excepção à liberdade de forma285. Daí que o Acórdão tenha promovido a aplicação directa do (actual) artigo 147.º n.º 1 do CT, reservando a analogia para as consequências legais do vício de forma286. Embora não valham os mesmos
foram criadas não encontra semelhança no caso concreto. Neste sentido, o Autor reforça que cada norma da Lei 28/98 de 26 de Junho requer “uma análise na especialidade”, muito embora existam “semelhanças entre as razões justificativas que originam a regulamentação da realidade social em que se inserem os praticantes desportivos (…) e a realidade social diferenciada e plenamente aceite em que se inserem os treinadores”.
284 Não podemos concordar com o entendimento de XXX XXX XXXXXXX, “Treinador desportivo: regime jurídico precisa-se!”, Ob. Cit., p. 211, segundo o qual a aplicação do artigo 110.º do CT aos treinadores se fica a dever à obrigatoriedade da contratação a termo nesta actividade.
285 Não há dúvidas de que as normas que contrariam o disposto no artigo 219.º do CC, ou seja, que impõem formalidades especiais como requisito de validade do contrato celebrado, são normas excepcionais. Abrangem “um sector restrito”, que por “razões privativas dele” se opõe ao “regime regra” (XXXX XXXXXXXX XXXXXXX, Introdução ao direito e ao discurso legitimador, Ob. Cit., p. 95-96).
286 Temos vindo a demonstrar que a vinculação a uma relação laboral por tempo indeterminado é demasiado onerosa para o clube e para os seus interesses no plano competitivo. Não é possível salvaguardar o vínculo laboral do treinador sem condicionar o clube na gestão do “projecto desportivo”. Neste sentido, merece destaque a argumentação do STJ quando refere que “a previsão do artigo 5.º n.º 2 da Lei 28/98, na parte em que, desviando-se do regime geral do contrato a termo, estabelece a invalidade do CTPD não reduzido a escrito – e não a sua conversão em contrato sem termo nem sequer a sua conversão em contrato a termo pela duração máxima prevista (de 8 anos) – radica na já acima referida especificidade do fenómeno desportivo, designadamente, no âmbito da actividade desportiva profissional”. Todavia, se considerarmos que a falta de regulamentação especial para a actividade dos treinadores impõe a validade do contrato por tempo indeterminado não reduzido a escrito, com base na regra geral da liberdade de forma, então a analogia com uma norma que aplica a excepção, ou seja, que provoca a nulidade do contrato não reduzido a escrito, viola o disposto no artigo 11.º do CC. Sendo inquestionável o alcance desta última norma (proibir a analogia de normas excepcionais), é também inevitável concluir que o contrato de trabalho dos treinadores desportivos apresenta mais semelhanças com os “casos regulados de modo especial”, ou seja, com o contrato de trabalho do praticante desportivo, do que com os constantes da regra geral (OLIVEIRA ASCENSÃO, “O direito, introdução e teoria geral, uma perspectiva luso-brasileira”, 11ª ed., Coimbra: Xxxxxxxx, 2001, p. 434). Torna-se errónea a ideia de que a norma excepcional não tem “elasticidade” suficiente para abranger novas situações. Não podemos deixar de acompanhar o pensamento de XXXXXXXXXXX XXXXX, Metodologia: problemas fundamentais, 1ª ed. reimpressa, STVIA IVRIDICA, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, pp. 260- 276, segundo o qual “o que justifica a analogia em geral, justificará igualmente a aplicação analógica de normas excepcionais”. Tudo passa pela verificação de dois momentos fundamentais: a “determinação da analogia dos casos relevantes” e o momento da “analogia judicativa ou analogia da solução desses casos”. Para além de serem juridicamente análogos nos seus “sentidos problemático-jurídicos”, o caso tema e o caso foro apresentam uma “conexão justificada pela intenção fundamental de juridicidade que os constitui na sua especificidade jurídica”. No caso, as especificidades do sector desportivo influenciam, decisivamente, a necessidade de limitar temporalmente a relação laboral do praticante e do treinador desportivo. Ambas as relações laborais integram “a circularidade dialéctica” que garante um “juízo autónomo de prudencial ponderação normativo-argumentativamente justificada”. A analogia encontra-se legitimada sempre que a “eadem ratio da norma excepcional se puder afirmar quanto a outros casos não expressamente previstos nessa norma”.
argumentos que justificam a inadmissibilidade da contratação por tempo indeterminado dos praticantes desportivos, existem semelhanças inequívocas que sustentam a analogia, numa actividade em que o “perfil, qualidades e aptidões técnicas”, assim como a confiança depositada no treinador, são essenciais “para a consecução dos concretos projectos desportivos e objectivos fixados pelo clube empregador”287.
Pelo exposto, cabe ao julgador determinar in casu quais os efeitos jurídicos previstos no CT que são compatíveis com a actividade desenvolvida pelo treinador. A lacuna legislativa existente encontra-se “oculta” e a sua identificação está dependente dessa mesma ponderação288. Justamente por isso, o STJ associou à nulidade do contrato de trabalho, declarada nos termos do artigo 220.º do CC, a aplicação do artigo 15.º da LCT (actual artigo 122.º n.º 1 do CT). Esta norma assegura que o contrato nulo produz efeitos como válido em relação ao período da sua execução, o que nos parece indispensável para tutelar as legítimas expectativas do treinador. Nenhuma razão associada à gestão desportiva deve opor-se a este grau de protecção mínimo do trabalhador subordinado289.
287 O Xxxxxxx xx XXX xx 00 xx Xxxxxxx de 2007, Cit. aproxima, desta forma, treinadores e praticantes desportivos, apesar da “perda de aptidões físicas” não valer para justificar a obrigatoriedade do contrato a termo em relação aos primeiros.
288 O conceito de “lacuna oculta” pressupõe a existência de uma norma legal no sistema jurídico vigente aplicável ao caso concreto. É nesse sentido que actuam as disposições do regime laboral comum, abarcando vínculos jurídico-laborais a que está subjacente a subordinação jurídica. Porém, como ensina XXXX XXXXXX, Metodologia da ciência do direito, 3.º ed., Lisboa: Fundação Xxxxxxxx Xxxxxxxxxx, 1997, p. 535, a lei aplicável a um conjunto de casos da mesma espécie, pode de acordo com o seu “sentido e fim”, não ser ajustada a determinado grupo, “porque não atende à sua especificidade, relevante para a valoração”. Consideramos, ainda, o pensamento de XXXX XXXXXXXX XXXXXXX, Introdução ao direito e ao discurso legitimador, Ob. Cit., pp. 196-197, ao referir que quando a categoria fixada na lei “abrange um subcategoria cuja particularidade ou especialidade, valorativamente relevante, não foi considerada”, então existe uma lacuna por falta de regulamentação especial para essa mesma sub-categoria. No mesmo sentido, XXXXXX XXXXX, Introdução ao direito, 6.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 349. Esta é uma questão que permanentemente se coloca no contrato de trabalho dos treinadores desportivos. Como indica XXXX XXXX XXXXX, “Treinador de voleibol: entre o regime laboral comum e o regime especial do praticante desportivo?”, Ob. Cit., p. 262, “a lei regula o tipo «contrato de trabalho», mas esse tipo abrange um sub-tipo («contrato de trabalho do treinador desportivo») cujas peculiaridades, particularidades ou especificidades, sendo valorativamente relevantes, não foram atendidas pelo legislador em sede regimental”.
289 O Acórdão da Relação do Porto de 18 de Abril de 2005, processo n.º 0417324, relator: Xxxxxxx xx Xxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx, alcançou a mesma solução através da articulação entre o CCT aplicável e as normas do regime laboral comum compatíveis. No caso, o contrato de trabalho celebrado entre um clube de futebol e o seu treinador principal cessou a 30 de Junho de 2002, data contratualmente estipulada para o efeito. Perante vários meses de salários em atraso, o treinador intentou a competente acção judicial, reivindicando o montante em dívida. Na oposição, o clube alegou a nulidade do contrato por falta das assinaturas exigidas, formalidade “ad substantium” nos termos da Lei 28/98 de 26 de Junho. Quer em 1ª Instância, quer em sede de recurso, não houve dúvidas quanto à impossibilidade de aplicar o regime especial dos praticantes desportivos ao contrato de trabalho celebrado pelo treinador. Porém, enquanto que a decisão recorrida concluiu pela conversão do contrato a termo em contrato por tempo indeterminado, nos termos gerais, o Tribunal da Relação declarou a nulidade do mesmo, por força do artigo 6.º do CCT aplicável. No seguimento, salvaguardou a produção dos seus efeitos até à declaração de nulidade, de acordo com o artigo
A este propósito, o artigo 6.º do CCT aplicável refere que os contratos de trabalho dos treinadores de futebol são obrigatoriamente reduzidos a escrito, assinados pelas partes, lavrados em quintuplicado e distribuídos pela LPFP, FPF e ANTF, “sob pena de não produzirem efeitos perante essas mesmas entidades”290. A revisão de 2012 veio acrescentar que o contrato que padeça de vício de forma não produz efeitos perante as entidades acima referidas. Mesmo com esta alteração, nenhum elemento daquele regime aponta para que o artigo 122.º n.º 1 do CT seja incompatível com esta disposição. Os efeitos jurídico-laborais do contrato celebrado devem salvaguardar, desde logo, o direito à retribuição e demais créditos salariais vencidos.
O STJ voltou a desviar-se do procedimento tipicamente previsto no regime laboral comum para apreciar os efeitos do despedimento do treinador de voleibol, tal como havia feito para declarar a nulidade do contrato de trabalho por vício de forma. Previamente, manifestou dúvidas compreensíveis acerca da legítima inclusão do período experimental no segundo contrato celebrado entre as partes com o mesmo objecto, pretensão invocada pelo clube desportivo291. Porém, a imposição do contrato a termo tornou indiferente uma tomada de posição na matéria quando, por força do (actual) artigo 112.º n.º 2, alínea a) do CT ou do artigo 11.º n.º 1 da Lei 28/98 de 26 de Junho, o período experimental já teria decorrido à data da cessação do contrato292. O despedimento foi considerado ilícito nos termos gerais, “por não ter sido precedido de processo disciplinar e de invocação de justa causa”.
O desencadeamento natural da posição adoptada seria a aplicação do (actual) artigo 123.º n.º 1 do CT, segundo o qual o facto extintivo ocorrido antes da declaração de
15.º da LCT, reconhecendo a compatibilidade desta norma com o regime convencional (artigo 5.º do CCT aplicável). O clube desportivo acabou por ser condenado no pagamento das retribuições em dívida.
290 XXXXXX XXXXXX XXXXXXXX, “Treinadores profissionais: Aplicação do regime laboral comum ou do regime dos praticantes desportivos – (…)”, Ob. Cit., p.75, entende que o artigo 6.º do CCT aplicável “não tem vocação para estabelecer regras em matéria de forma das declarações negociais”, ou seja, não pode determinar a nulidade do contrato celebrado pelos treinadores de futebol que sofra de vício de forma, “já que as razões de ordem pública subjacentes só podem ser definidas pelo legislador”. Voltamos a deparar-nos com uma matéria em que o CCT derroga o disposto em norma legal imperativa.
291 Tivemos oportunidade de reconhecer os benefícios da solução alcançada pelo artigo 11.º n.º 1 do CCT aplicável. Esta norma limita o período experimental ao primeiro contrato de trabalho celebrado entre as partes, ainda que os contratos celebrados nas épocas seguintes venham a ser considerados autónomos entre si. A continuidade do treinador no exercício das mesmas funções afasta a necessidade deste período, utilizado pelo empregador para avaliar o desempenho do trabalhador “recém-contratado”, ou seja, “para ver como é que este se insere no novo ambiente de trabalho” e se “possui ou não as qualidades requeridas para o desempenho do cargo para o qual foi contratado” (XXXX XXXX XXXXX, Contrato de trabalho, Ob. Cit., pp. 201-202).
292 No caso, o treinador iniciou a execução do novo contrato a 01/10/2002, tendo sido dispensado a 21/11/2009, ultrapassando os 30 dias de período experimental previstos pelas normas citadas.
nulidade deve ser regido pelas “normas sobre a cessação do contrato” dispostas no regime laboral comum. Em sentido diverso, o STJ considerou aplicável o regime da cessação do contrato de trabalho previsto na Lei 28/98 de 26 de Junho, designadamente o seu artigo 27.º n.º 1 e 3, identificando as necessárias “razões justificativas” para aplicar analogicamente a norma ao contrato de trabalho do treinador de voleibol. Chegado a este ponto, condenou o clube no pagamento de uma indemnização correspondente ao valor das retribuições vincendas, em substituição da indemnização por antiguidade que corresponderia aos três meses de trabalho prestado ao abrigo do novo contrato.
Apesar das divergências enunciadas a propósito da legitimidade jurídico- constitucional do artigo 27.º da lei 28/98 de 26 de Junho, estamos perante um exemplo, inequívoco, de que a aplicação analógica deste preceito pode constituir a única alternativa viável para a adequada resolução do litígio que opõe treinador e entidade empregadora. Essa inevitabilidade levou o STJ a reconhecer o despedimento ilícito nos termos xxxxxx000 e a determinar, ao mesmo tempo, a analogia com o critério de fixação da indemnização previsto no regime especial dos praticantes desportivos. O “critério reparador diferente” adoptado pelo legislador foi considerado o “mais adequado à especificidade do contrato com os treinadores desportivos”, em particular com o treinador de voleibol.
Novamente, reforçamos que o raciocínio analógico efectuado pelo Acórdão apresentado ambicionou afastar os efeitos jurídicos disciplinados no CT manifestamente incompatíveis com a actividade desenvolvida pelo treinador de voleibol “dispensado”. Para melhor compreender as especificidades do sector desportivo, interessa referir que esta “dispensa” ocorreu no seguimento de um processo eleitoral do qual resultou a mudança de direcção no clube. A importância do cargo de treinador para a prossecução dos objectivos desportivos e financeiros traçados pelo “projecto desportivo” da nova direcção obstou, e obstaria em qualquer caso semelhante, a que a cessação do contrato pudesse ser revertida do ponto de vista jurídico. Não seria razoável impor a subsistência do contrato por tempo indeterminado, retirada toda a confiança no treinador para dirigir a equipa na época desportiva em curso. Neste e em muitos outros casos, a maior dificuldade colocada ao julgador consiste na determinação do ponto de equilíbrio entre os interesses de gestão desportiva e a tutela do treinador enquanto trabalhador.
293 Ainda assim, os artigos 17.º n.º 1, alínea e) e n.º 4, e 26.º, n.º 1, alínea c) da Lei 28/98 de 26 de Junho, aplicados analogicamente, permitiriam concluir pela ilicitude do despedimento.
Assim, quando o vício de forma que afecta o contrato for imputável ao empregador e sempre que a cessação por este promovida não se funde num comportamento ilícito do treinador, isto é, sempre que a violação de um dos deveres específicos catalogados pelo artigo 128.º do CT294 não for a causa do despedimento, nem tão pouco haja um processo disciplinar antecedente, deve a indemnização apurada atender à legítima expectativa do treinador no cumprimento pontual do contrato a termo295. No caso apreciado, a adequada compensação do treinador de voleibol não podia ser alcançada sem a analogia com o artigo 27.º n.º 1 da Lei 29/98, expediente legal que permitiu a compensação do lucro cessante baseado, essencialmente, na “perda das retribuições no período que medeia entre a data do despedimento e a data prevista para a caducidade do contrato”, como elucida o Acórdão.
Em suma, retiramos das conclusões apresentadas por XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX000 todo o mérito do Acórdão do STJ de 24 de Janeiro de 2007. A adopção da “noção material de relação laboral especial” rompeu com a ideia de que uma relação jurídica de subordinação é regulada necessariamente pela “disciplina legal comum” em
todos os aspectos não abrangidos por lei especial. O julgador deve enquadrar a relação laboral dos treinadores no regime mais adequado às especificidades do caso concreto, ainda que não disponha de regulamentação especial directamente aplicável297.
294 Ou, em especial, pelo artigo 13.º do CCT aplicável.
295 Tivemos oportunidade de observar que o contrato a termo é a modalidade que genericamente se impõe na relação contratual estabelecida pelos treinadores desportivos e não deve estar condicionada pelos motivos justificativos exigidos no CT, em analogia com o artigo 8.º da Lei 28/98 de 26 de Junho. A mesma inadequação do regime laboral comum deve ser tida em conta na fixação da indemnização pelo despedimento ilícito. Se à celebração de sucessivos contratos a termo, autonomamente considerados entre si, somarmos a inexistência de um regime convencional específico (como acontece com os treinadores de voleibol), somos forçados a constatar que o artigo 27.º n.º 1 e 3 da Lei 28/98 de 26 de Junho é a única norma legal capaz de acautelar as legítimas expectativas do treinador no cumprimento integral do contrato e o período de inactividade que possa vir a enfrentar, enquanto seria expectável que a relação contratual se mantivesse. Já tivemos oportunidade de referir que para os treinadores de futebol abrangidos pelo artigo 41.º do CCT não se justifica a analogia com aquele artigo, visto que a norma convencional permite a indemnização no valor das retribuições vincendas sem coibir o ressarcimento de outros danos eventualmente causados e, necessariamente, provados pelo treinador. Sempre que possível, o CCT deve ser convocado para o preenchimento da lacuna que afecta a actividade “substancialmente” diversa dos treinadores desportivos, tal como elucida XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “O artigo 9.º do código do trabalho e a situação laboral dos treinadores desportivos”, Ob. Cit., p. 57.
296 Comentário ao Acórdão do STJ de 24 de Janeiro de 2007, RDES, Ob. Cit., p. 173-174.
297 Em Portugal a doutrina, seguida pela jurisprudência maioritária, tem vindo a sedimentar esta solução que, apesar de provocar maior instabilidade e incerteza quanto à definição do regime jurídico aplicável aos treinadores, é a única capaz de atender às especificidades da relação laboral por eles constituída. Como ficou demonstrado, em Espanha existe uma maior divisão doutrinal. Vários autores defendem a necessária aplicação do regime laboral comum, excepto quando o treinador assuma funções de direcção que influenciam a trajectória desportiva e económica do clube e se afastam do plano estritamente técnico, equiparáveis a um cargo de alta direcção (XXXXXXXXX XXXXX XXXXXXX, El contrato de trabajo de los deportistas profesionales, Ob. Cit., p. 141-142).
Principalmente quando não exista um CCT aplicável, a “noção substancial de contrato de trabalho especial” invocada pelo Acórdão permite explorar todas as dimensões do artigo 9.º do CT e providenciar a solução materialmente mais justa, através da analogia com o regime especial dos praticantes desportivos298.
As considerações tecidas não afastam a necessidade de averiguar quais os princípios e normas do CT “que exprimem regras de aplicação necessária a todas as situações de trabalho subordinado”299.
298 De acordo com XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “O artigo 9.º do código do trabalho e a situação laboral dos treinadores desportivos”, Ob. Cit., pp. 56-57, os regimes especiais como a lei 28/98 de 26 de Junho garantem a “modulação ou restrição” de certos princípios estruturantes em função das especificidades da actividade desenvolvida. Por isso, a aplicação analógica daquele diploma aos treinadores depende da “adequada ponderação das circunstâncias essenciais e diferenciadoras da situação em causa e do seu reflexo em cada problema”.
299 XXXXXXX XXXXX XX XXXXXXXX, “O artigo 9.º do código do trabalho e a situação laboral dos treinadores desportivos”, Ob. Cit., p. 57-58, apresenta três exemplos de regras com “aplicação necessária”. Desde logo, a “matriz do direito colectivo” e o “esquema de fontes”, elementos estruturantes que nos remetem para o problema da validade das disposições do CCT aplicável que derrogam normas legais com natureza imperativa. Para além destes elementos, o Autor indica a matéria dos direitos de personalidade. Entre estes, destacamos a importância do direito à imagem (artigo 79.º do CC) no âmbito da actividade desportiva profissional. A exposição ao público a que se submetem praticantes desportivos e treinadores condiciona o exercício deste direito, ainda que seja “irrenunciável e inalienável” nos termos do artigo 81.º do CC. Não está vedada a cedência temporária do direito à imagem a um terceiro com o intuito de exploração comercial, ou seja, é possível constatar uma interligação entre o contrato de trabalho propriamente dito e o contrato de cedência de imagem. O Acórdão do STJ de 12 de Setembro de 2007, processo n.º 06S4107, relator: Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx, disponível em xxx.xxxx.xx, salienta esta ideia, tendo reconhecido a “união ou coligação” entre o contrato de trabalho e o contrato de cedência de imagem, celebrados com o mesmo período de duração. Parte do “valor remuneratório” acordado foi “titulado” pelo segundo contrato, através do qual o treinador cedeu à entidade empregadora “em regime de exclusividade, os direitos de exploração comercial, em conjunto ou individualmente, da sua imagem de treinador profissional de futebol podendo esta expor, reproduzir, lançar no comércio ou ceder a terceiros o retrato daquele”. Nestes termos, após ter confirmado o despedimento sem justa causa e declarado a aplicação analógica do artigo 27.º da Lei 28/98 de
26 de Junho, o STJ determinou que o “valor remuneratório global” a contabilizar no apuramento da indemnização incluía a remuneração acordada no contrato de cedência de imagem. Estamos perante um exemplo inequívoco de que o exercício de direitos inalienáveis da condição de trabalhador e de pessoa é condicionado pelas especificidades do sector desportivo e pela exposição pública que este, inevitavelmente, propicia.
3.3.1. O caso espanhol e o conceito amplo de “desportista profissional”
Os argumentos utilizados pela doutrina e jurisprudência portuguesa para fundamentar a aplicação do regime especial dos praticantes desportivos ao contrato celebrado pelos treinadores não coincidem com aqueles que sustentam o mesmo raciocínio no ordenamento jurídico espanhol. Neste último, não existe consenso sobre o âmbito subjectivo de aplicação do RD 1006/1985 de 26 de Junho. Uma parte significativa da doutrina espanhola interpreta aquele regime especial com base num critério “teleológico e sistemático”, por oposição ao critério “hermenêutico literal”300. Assentes na intenção historicamente declarada do legislador espanhol301, os autores que sustentam esta posição retiram da ratio legis do artigo 1.º n.º 2 do RD 1006/1985 de 26 de Junho uma acepção ampla de desportista profissional, da qual resulta a inclusão dos treinadores desportivos. Indo mais longe, suportam-se na ausência de estipulação em sentido contrário para integrar no mesmo regime todos os trabalhadores do clube ou entidade desportiva sem os quais não seria possível a realização da “prestação materialmente desportiva”302. O critério utilizado
300 Recuperamos XXXXXXX XXXXXXXXX XXXXXXXXX, “La prestacion de servicios de arbitros y entrenadores”, Ob. Cit., pp. 109.
301 São fundamentalmente duas as manifestações da vontade legislativa apresentadas pela doutrina espanhola. O artigo 8.º da revogada “Ley 13/1980 de 31 de Marzo, General da cultura física y del deporte”, mencionava os treinadores e praticantes desportivos conjuntamente para salvaguardar que ambas as prestações laborais deveriam estar submetidas a um regime especial em matéria de segurança social (REMEDIOS ROQUETA BUJ, Los Deportistas Profesionales, Régimen jurídico laboral y de seguridade social, Ob. Cit., p. 62). Também do preâmbulo da proposta de lei que antecedeu o RD 318/1981 de 5 de Fevereiro, primeiro regime especial criado para os desportistas profissionais, constava a intenção de abranger os “técnicos ao serviço dos clubes desportivos”, mas o artigo 2.º daquele diploma acabou por restringir o seu âmbito subjectivo aqueles “que se dediquem à prática do desporto (…)” Cfr. XXXXXX XXXXXXXX XXXXX, “El entrenador de un equipo de fútbol ¿es alto cargo? (…)”, Ob. Cit., pp. 771-772.
302 Assim afirma, expressamente, o STSJ da Catalunha na decisão de 11/07/2005 (Rec. 538/2004), Cit. Por. XXXXXXX XXXXXXXXX XXXXXXXXX, “La prestacion de servicios de arbitros y entrenadores”, Ob. Cit., p. 110. Dentro das decisões jurisprudenciais que sustentam este alargamento, destacamos a proferida pelo STS a 14/05/1985 (RJ 1985,2710), considerada pela doutrina espanhola como um verdadeiro “ponto de inflexão”. A decisão integrou a actividade de um preparador físico do Real de Madrid C.F no âmbito do regime especial dos praticantes desportivos, reconhecendo a preponderância das suas funções para que os jogadores do mesmo clube pudessem desempenhar a actividade desportiva. Destacou, ainda, um conjunto de elementos “análogos” à relação laboral dos praticantes desportivos, com destaque para a especial relação de confiança estabelecida com os órgãos dirigentes do clube, incompatível com a natureza indeterminada do contrato, e a retribuição distribuída em salários mensais e outras quantias acordadas por “ano ou temporada”, destinadas a compensar a instabilidade do vínculo laboral no sector desportivo. Vários autores espanhóis criticam estes argumentos por desconsiderarem, uma vez mais, o pressuposto fundamental da “prática desportiva”, subjacente ao artigo 1.º n.º 2 do RD 1006/1985 de 26 de Junho. Por todos, vide XXXX XXX XXX, Los deportistas profesionales: Estudio de su régimen jurídico laboral y de seguridade social, Ob. Cit., pp. 92-94.
engloba o conjunto de prestações laborais “conexas com o resultado desportivo”303, aptas a influenciar o rendimento físico e técnico dos desportistas em sentido estrito e, consequentemente, os resultados desportivos alcançados pelo clube ou entidade desportiva. Por outro lado, o carácter intuitu personae que marca a relação laboral de todos estes profissionais e a sua influência no “projecto desportivo” desenvolvido304, são elementos suficientes para fundamentar a aplicação do RD 1006/1985 de 26 de Junho, diploma legal que acompanha a necessidade de “adaptação e integração”305 imposta pela competição desportiva306.
REMEDIOS ROQUETA BUJ sustenta uma “interpretação sistemática” do artigo 1.º n.º 2 do RD 1006/1985 de 26 de Junho, segundo a qual a expressão “prática do desporto” compreende a participação directa na competição desportiva e a preparação física e técnica necessária para garantir essa participação307. Considera que os treinadores são “sujeitos da relação especial” porque integram o “espectáculo desportivo” dirigido ao público, ou seja,
303 Convocamos a expressão de XXXXXX XXXXXXXX XXXXX, Cit. Por. XXXX XXXXXXXXX XXXXXX “Calificación de la relación del personal técnico de un club o sociedad anónima deportiva”, Ob. Cit.
304 Tal como sustentou a decisão do STSJ de Navarra de 20/10/2004, o RD 1006/1985 de 26 de Junho considera-se aplicável a todas as profissões marcadas por um “particular carácter intuitu personae em função dos resultados desportivos perseguidos”, excluindo deste âmbito as funções desempenhadas pelos massagistas dos clubes (XXXX XXXXXXX XXXXX / XXXX XXXXXXXXX XXXXXX, Los deportistas profesionales: Estudio de su régimen jurídico laboral y de seguridade social, Ob. Cit., p. 16). XXXXXX XXXXXXXX XXXXX, “El entrenador de un equipo de fútbol ¿es alto cargo? (…)”, Ob. Cit., pp. 774-778, acompanha a jurisprudência espanhola que, progressivamente, tem vindo a aceitar a aplicação do regime especial dos praticantes desportivos, permitindo adaptar a relação laboral dos treinadores ao “efeito natural da competição que precipita a extinção da relação contratual por perda de confiança”. No entendimento do Autor, não existe uma “diferença substancial entre um jogador de futebol, um treinador de basquetebol, um médico especialista no rendimento de ciclistas e um engenheiro perito em motores de alta competição”. Todos eles desenvolvem uma actividade determinante para a obtenção dos resultados desportivos pretendidos e são alvo de disputa no “mercado desportivo”. Deste âmbito excluem-se os profissionais cujo trabalho é indiferente para o exercício da competição, sendo os “serviços administrativos” um exemplo inquestionável. 305 REMEDIOS ROQUETA BUJ, Los Deportistas Profesionales, Régimen jurídico laboral y de seguridade social, Ob. Cit., p. 64.
306 Por esta ordem de razões, a jurisprudência espanhola tem excluído do âmbito do RD 1006/1985 de 26 de Junho os treinadores que não participam na competição. A decisão do STSJ da Andaluzia de 04/11/1996 (AS 1996, 4508), Cit. Por. XXXX XXXXXXX XXXXX / XXXX XXXXXXXXX XXXXXX, Los deportistas
profesionales: Estudio de su régimen jurídico laboral y de seguridade social, Ob. Cit., p. 16, por exemplo, considerou um monitor de ténis como trabalhador ordinário por se limitar ao ensino da modalidade aos sócios do clube e à intervenção como árbitro nos torneios por ele realizados.
307 A Autora contraria a posição tradicionalmente seguida pela doutrina espanhola, segundo a qual o objecto da prestação laboral dos treinadores desportivos não pode ser definido como “prática do desporto”, uma vez que o espírito da norma especial pretendeu responder às necessidades daqueles que realizam uma “actividade física profissionalmente”, com exclusão de todos os outros (KOLDO IURZUN UGALDE,“La prestacion laboral del entrenador”, Ob. Cit., pp. 236-237). Como salienta XXXXXXX XXXXXXXX (El deportista profissional. Aspectos laborales y fisclaes), Cit. Por. XXXX XXX XXX, El deportista profissional ante la extinción del contrato de trabajo desportivo, Ob. Cit., p. 75, nota 129, a prática do desporto não pode aferir- se por “aspectos quantitativos”, isto é, pelo número de funções associadas, mas somente por “aspectos qualitativos”. Logo, as concretas aptidões e qualificações que o cargo de treinador exige, acompanhadas de outros elementos específicos da sua prestação laboral, não permitem a sua integração naquele conceito.