O CONTRATO ORIGINÁRIO NO DIREITO POLÍTICO DE KANT
O CONTRATO ORIGINÁRIO NO DIREITO POLÍTICO DE KANT
Tese submetida ao Programa de Pós- Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Doutor em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Xxxxxx Xxxxxxxx Durão.
Florianópolis 2018
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.
Pellizzaro, Nilmar
O contrato originário no Direito político de Xxxx
/ Xxxxxx Xxxxxxxxxx ; orientador, Dr. Xxxxxx, Xxxxxxxx Xxxxx, 2018.
195p.
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Florianópolis, 2018.
Inclui referências.
1. Filosofia. 2. Kant. 3. Contrato originário.
4. Vontade unida do povo. 5. República. I. Durão, Dr. Xxxxxx Xxxxxxxx. II. Universidade Federal de Santa
Xxxxxxxx. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. III. Título.
O CONTRATO ORIGINÁRIO NO DIREITO POLÍTICO DE KANT
Esta tese foi julgada adequada para obtenção do Título de “Doutor em Filosofia”, e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós- Graduação em Filosofia.
Florianópolis, 22 de fevereiro de 2018.
Prof. Xxxxxxx Xx, Dr.
Coordenador do Curso
Banca examinadora:
Prof. Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx, Dr.
Orientador
Universidade Federal de Santa Catarina
Prof.ª Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, Dr.ª Universidade Federal de Santa Catarina
Prof. Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxx, Dr.
Universidade Estadual de Londrina
Prof. Xxxxxxx Xxxxxxxx, Dr.
Universidade Estadual de Londrina
AGRADECIMENTOS
Ao concluir esta pesquisa, não poderia deixar de manifestar minha gratidão a todos aqueles (as) que colaboraram comigo e contribuíram para a realização deste trabalho. Ainda que indiretamente, todos ajudaram a colocar esta pequena pedra que está sendo acrescentada na grande obra - desafiadora e interminável - de análise e interpretação do pensamento de Xxxx.
Inicialmente agradeço à CAPES que me proporcionou os recursos financeiros durante todo o período da pesquisa. De modo especial agradeço ao meu orientador, professor Dr. Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx, por todo apoio dispendido. Com seu vasto conhecimento e visão acurada acerca do pensamento de Xxxx, ajudou-me a perceber várias nuances nas ideias do autor, de modo que muitos insights que tive durante a elaboração do trabalho surgiram após nossas longas conversas. Sou muito grato também ao amigo e ex-colega Dr. Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, com quem tive longos e proveitos diálogos sobre Xxxx ao longo desses quatro anos. Como incansável leitor de Xxxx que é, “iluminou- me” em momentos críticos, ajudando-me a perceber fluência na teoria do autor em situações em que parecia haver apenas rupturas. Não poderia deixar de mencionar também a importante contribuição que deram, já na finalização desta tese, os professores Dr. Xxxxxxxxxx Xxxxxxx e Dr.ª Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxx, os quais, por ocasião da qualificação, sugeriram significativos acréscimos e retificações ao texto. Sou grato também aos professores que aceitaram avaliar a versão final desta Tese e compuseram a banca de defesa: Dr. Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx; Dra. Milene Consenso Tonetto; Dr. Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxx; Dr. Xxxxxxx Xxxxxxxx. Sou grato, finalmente, à UFSC, a todos os demais professores (as) e colegas que me proporcionaram o ambiente para o debate e o aprendizado da Filosofia, tarefa esta que segue indefinidamente, ou, parafraseando Xxxx, até que dure nossa condição no mundo fenomênico.
RESUMO
O presente estudo investiga a função do contrato originário no pensamento de Xxxx. Enquanto seus antecessores contratualistas (Xxxxxx, Xxxxx, Xxxxxxxx) o concebiam como um fundamento constitutivo do Estado civil, nossa hipótese sugere que há uma mudança de perspectiva em Xxxx e o contrato passa a ser um fundamento regulador da ação política, pois ele é originário, uma ideia prático- normativa à qual os Estados devem adequar a sua legislação. Com isso, não há, por parte de Xxxx, um abandono do contratualismo, mas apenas uma mudança na função do contrato: ele deixa de referir-se ao ser do Estado e passa para o âmbito do dever ser. Como um desdobramento desta hipótese, veremos que a ideia de contrato originário está estritamente conectada à ideia de uma República pura. Afinal, a vontade unida do povo, a qual perpassa e conecta os princípios do Estado republicano, é também o núcleo essencial da ideia de contrato originário. Assim, um Estado fundado num contrato originário, só pode ser um estado republicano, já que, a lei que promana do legislativo, manifesta um querer comum, uma vontade omnilateral e assim não onera mais a uns do que a outros, e, por isso, todos os cidadãos podem considerar-se colegisladores.
Palavras-chave: Xxxx; Estado civil; vontade unida do povo; contrato originário; República.
ABSTRACT
This study investigates the function of the original contract in Xxxx‟s thinking. While his contractual predecessors (Xxxxxx, Xxxxx, Xxxxxxxx) conceived it as a constitutive foundation of the civil Sate, our hypothesis suggests that there is a change of perspective in Kant, and the contract becomes a basis for regulating political action, since it is original, a practical-normative idea to which States must adapt their legislation. Thus, on Xxxx'x part, there is no abandonment of contractualism, but only a change in the function of the contract: it no longer refers to the being of the State, but to the sphere of duty. As an unfolding of this hypothesis, we will see that the idea of an original contract is strictly connected to the idea of a pure Republic. After all, the united will of the people, which permeates and connects the principles of the republican State, is also the core of the idea of the original contract. Thus, a state founded on an original contract, can only be a republican state, since the law that proceeds from the legislative power manifests a common will, an universal will, and so, this state does not overload some more than others and all citizens can consider themselves as colegislators.
Keywords: Xxxx; civil State; united will of the people; original contract; Republic.
ABREVIATURAS DAS OBRAS DE XXXX
Citações conforme a Akademie-Ausgabe (AA)
Anth Anthropologie in pragmatischer Hinsicht (AA 07) Antropologia em sentido pragmático
IaG Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht (AA 08)
Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita
KpV Kritik der praktischen Vernunft (AA 05) Crítica da Razão prática
KrV Kritik der reinen Vernunft (A/B) Crítica da Razão pura
KU Kritik der Urteilskraft (AA 05) Crítica da faculdade do juízo
MAM Muthmaßlicher Anfang der Menschengeschichte
(AA 08)
Começo conjectural da História humana
MS Die Metaphysik der Sitten (AA 06) Metafísica dos costumes
Refl Reflexion (AA 14-19) Reflexões
RGV Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft (AA 06)
A religião nos limites da simples razão
SF Der Streit der Fakultäten (AA 07) O conflito das faculdades
TP Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis (AA 08)
Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática
V-Anth/Mron Vorlesungen Wintersemester - Xxxxxxxxxx (AA 25) Preleções de antropologia
WA Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? (AA 08) Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento?
ZeF Zum ewigen Frieden (AA 08) À paz perpétua
SUMÁRIO INTRODUÇÃO 15
1. O CONTRATUALISMO E SUA RELAÇÃO COM XXXX 21
1.1. As origens do contratualismo moderno 21
1.2. O contratualismo de Xxxxxx. 28
i. O estado de natureza 28
ii. Conectando os pontos. 32
1.3. O contratualismo de Xxxxx 35
i. O estado de natureza 35
ii. O Estado civil 39
iii. Conectando os pontos. 40
1.4. O contratualismo de Xxxxxxxx 45
i. O estado de natureza 45
ii. O contrato de união 51
iii. Conectando os pontos. 53
2. DA RELAÇÃO ENTRE ÉTICA E DIREITO E O FUNDAMENTO DO DIREITO 61
2.1. O contrato e seu fundamento no idealismo transcendental 61
2.2. Da relação entre Ética e Direito 66
i. As três teses: dependência, independência e complementariedade 67
ii.Uma análise da relação entre Ética e Direito na MS 77
2.3. A insuficiência da analiticidade no Direito 87
3. DO ESTADO DE NATUREZA AO ESTADO CIVIL 99
3.1. A descrição histórico-antropológica do estado de natureza 101
3.2. O estado de natureza como um estado racional 113
i. O estado de natureza como um estado de direito privado provisório 116
ii. O postulado do Direito público e a constituição do Estado civil 127
4. O CONTRATO ORIGINÁRIO: UMA IDEIA COM INDUBITÁVEL REALIDADE PRÁTICA 133
4.1. O contrato originário como uma ideia constitutiva 133
4.2. A ideia de contrato e sua perspectiva prático-reguladora 139
i. Breve análise dos textos de Xxxx 139
ii. A posição dos comentadores 145
iii. O sentido nuclear da ideia de contrato 152
4.3. O contrato e a ideia de uma República noumênica. 157
i. O princípio da divisão dos poderes. 159
ii. O princípio da representação e as formas de Estado
e governo 164
iii. Os princípios da liberdade civil, igualdade civil e
independência civil 170
iv. O contrato como ideia norteadora da República noumênica 176
CONCLUSÃO 179
REFERÊNCIAS 187
INTRODUÇÃO
Quando se começa a investigar o Direito político de Xxxx, logo se percebe o quão devedora é sua teoria daqueles contratualistas que o antecederam (tais como Xxxxxxx, Xxxxxxxxx, Xxxxxx, Xxxxx, Xxxxxxxx) e legaram-lhe um arcabouço de conceitos da Filosofia política moderna sem os quais seria impossível de se pensar uma teoria tal como a de Xxxx. Termos como Direito natural, soberania, pacto de união e submissão (pactum unionis e pactum subjectionis), direito de resistência, estado de natureza, Estado civil, etc., são a ordem do dia da Filosofia política moderna, os quais, com exceção do pactum subjectionis, são amplamente discutidos por Xxxx. Por isso, podemos presumir que, de alguma forma, Xxxx tem algum tipo de vínculo com o contratualismo, ainda que esta relação precise ser bem pontuada.
De fato, a teoria do contrato de Xxxx não é isenta de controvérsias. De acordo com uma primeira perspectiva, alguns intérpretes (Xxxxxx, Xxxxxxxx Xxxxx, Xxxxxxx, Xx Xxxxxxxxx) a alinham com aquelas teorias de seus antecessores (Xxxxxx, Xxxxx, Xxxxxxxx), concebendo o contrato, numa perspectiva teórica, como um fundamento constitutivo do Estado, sendo ele aquela ideia que marcaria a passagem do estado de natureza à nova ordem civil. Mas, dado que o contrato kantiano é originário, isto é, sua natureza é a priori (e por isso não compreende a soma das vontades particulares como em Hobbes e Xxxxx), ele seria compreendido como uma espécie de título racional, ou mesmo um símbolo de uma necessidade racional gerada no interior da própria razão (ainda no estado de natureza) para assegurar a efetivação do Direito e da justiça distributiva através da criação do Estado. Ou seja, o contrato significaria aquela união ideal de vontades cujo intuito seria justificar a origem da ordem civil.
Por sua vez, os intérpretes de uma segunda perspectiva (entre os principais deste grupo estão Xxxxxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxxx, Xxxxxxx, Xxxxxxxx, Xxxxx, Xxxxxxxx, Xxxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxxx-Xxxxxx) sugerem que o contrato em Xxxx não teria uma função constitutiva do Estado, mas reguladora da ação política (perspectiva prática). Por isso então que Xxxx teria afirmado que se trata de uma ideia da razão com indubitável realidade prática com poder coativo, obrigando todo legislador a adequar a Constituição a essa ideia, como se fosse o próprio povo (idealmente) legislando. Assim, as leis deveriam ser, na sua essência, a manifestação da própria vontade unida do povo, de tal forma que um Estado ideal teria suas leis em conformidade com a ideia de um contrato originário. Nesta perspectiva, o contrato é pensado como um princípio
de segunda ordem que julga a justiça das leis, servindo para regular a ação pública. Assim, ele poderá ser usado tanto negativamente, para corrigir aquelas leis e instituições que não se adequam à ideia de um consenso ideal de todo o povo, quanto positivamente, como um ideal que serve de horizonte inspirador aos legisladores na hora de elaborar as leis e fundar os Estados. Portanto, nesta perspectiva o contrato ainda assim figuraria como fundamento do Estado, embora não de forma constitutiva, mas enquanto um fundamento regulador das ações.
A questão então seria: em qual dessas leituras melhor se encaixaria o pensamento de Xxxx? Nossa hipótese é de que a segunda perspectiva seria mais coerente com o conjunto da teoria do Direito político kantiano. De fato, ao se investigar a obra de Xxxx, chega-se à conclusão de que a ideia de consenso já esta pressuposta no Estado de natureza através da ideia de uma vontade unificada a priori (omnilateral), devendo apenas os homens entrarem no Estado civil para efetivá-la, o que evidencia que o contrato fica sem função como uma ideia constitutiva, devendo constar como uma ideia reguladora apenas. Xxxx afirma que o Direito em geral deriva da razão prática, assim como o contrato originário é uma ideia com indubitável realidade prática que obriga o legislador a elaborar leis em sintonia com ele. Portanto, o tom do contrato em Xxxx é essencialmente prático. Sendo assim, é de natureza normativa, afirmando aquilo que deve ser e não aquilo que é, isto é, obriga os Estados adequarem a sua ação política ao conceito prático.
Ainda que as ideias reguladoras da filosofia prática modifiquem a realidade, elas o fazem indiretamente porque devem orientar as ações humanas. De qualquer forma, mesmo que nada seja modificado na realidade, as ideias reguladoras das ações ainda assim constituem um dever para os homens, o qual deve orientar as suas ações e a indubitável realidade prática provém deste caráter de dever, independentemente dos efeitos práticos no mundo real. Por isso, a primeira perspectiva não percebe este deslocamento que Xxxx opera no âmbito do contrato e o leem como uma questão ligada ao conhecimento e não à ação, como Xxxx claramente apresenta no seu texto. Os seus intérpretes partem de uma perspectiva meramente cognitiva, não se dando conta de que o fundamento para ideia de contrato é a razão prática e não a teórica, mesmo porque, em se tratando de ideias e não do mundo fenomênico, o ponto de vista teórico é sempre dependente do prático. Além de que, a perspectiva prática conta com um fundamento sólido, que é a própria lei moral, cuja consciência do dever se impõe como um factum, enquanto que a teórica não poderia “provar” o fundamento do seu objeto, visto ser
esta perspectiva limitada ao âmbito da experiência possível, ao âmbito dos fenômenos, lhe sendo negado o acesso à coisa em si.
Se esta hipótese puder ser demonstrada a partir dos textos de Xxxx, então, como seu desdobramento, buscaremos evidenciar uma segunda hipótese, a qual sugere que a ideia de contrato está estritamente conectada à ideia de uma República pura (noumência), a qual, assim como o contrato, é também uma ideia reguladora prático-jurídica, um horizonte normativo ao qual os Estados empíricos devem tender. Por isso, uma República “na ideia” (baseada nos princípios de liberdade, igualdade e independência, bem como na divisão de poderes e na representatividade) deve ter como fundamento constitutivo um contrato originário em que as leis provêm da vontade unida do povo e assim cada cidadão pode pensar-se como um colegislador de sua própria legislação. Ora, se puder ser provado que uma República pura não é senão a manifestação de um Estado em consonância com a ideia da vontade unida do povo e cujo interesse é o interesse comum de todo um povo; e se puder ser demonstrado que este conceito de vontade unida é o mesmo conceito que está no núcleo da ideia de contrato originário, então, poderemos concluir que há uma mútua implicação entre a ideia de uma República pura e a ideia de um contrato originário. E assim ficará evidenciado que, em relação à realidade histórica dos Estados, a ideia de um contrato originário seria sempre reguladora, ao passo que em relação à República noumênica seria uma ideia constitutiva, já que ambas seriam ideias provenientes da razão prática. Ou seja, uma República pura é aquela que tem no contrato originário o seu ponto de ancoragem, já que este vincula os cidadãos pelo interesse geral e assim não comete injustiça contra ninguém, não onerando mais a uns do que a outros .
Para realizar esses dois objetivos, dividiremos nossa pesquisa em quatro partes. No primeiro capítulo faremos uma introdução mostrando o contexto teórico do surgimento da Filosofia contratualista na modernidade. Em seguida, apresentaremos brevemente os principais elementos do contratualismo de Xxxxxx, Xxxxx e Xxxxxxxx num diálogo com Xxxx. Aqui não é nosso objetivo uma abordagem muito aprofundada ou mesmo crítica a respeito desses autores, mas visamos tão somente reunir os principais elementos de seus contratualismos a fim de estabelecer um diálogo com a teoria de Xxxx, para assim podermos perceber os pontos de contato, bem como as diferenças em relação a Xxxx.
Logo no início do segundo capítulo esclareceremos que a razão de se poder pensar o contrato de forma reguladora se deve ao fato de que o idealismo transcendental separa o mundo dos fenômenos da coisa em
si. Desse modo, sendo o contrato uma ideia com indubitável realidade prática e estando ele no âmbito da coisa em si, nunca poderá ser dado de forma plena na experiência, sendo antes aquele horizonte normativo que orienta nossas ações. Em seguida, faremos uma breve exposição da relação entre Ética e Direito, demonstrando que Xxxx estabelece um sistema moral do qual ambos descendem. Veremos que a compreensão desta relação terá implicações na definição do que se entende por Direito, bem como na compreensão do problema gerado em torno da analiticidade no Direito. Será possível esclarecer se o Direito faz parte ou não do sistema da metafísica, isto é, se ele descende ou não da razão prática. A conclusão a que chegaremos é a de que, mesmo Xxxx afirmando que o princípio do Direito é analítico, ele precisa de um complemento sintético, que é a vontade unificada do povo, a fim de não correr o risco de ficar fora do sistema da razão prática. E este complemento necessário ao Direito é uma nota essencial que contribui para que o Estado kantiano seja pensado numa perspectiva republicana.
No terceiro capítulo, inicialmente trataremos do estado de natureza numa dupla perspectiva: histórico-antropológica e racional. Em seguida, abordaremos a questão do Direito privado no estado de natureza racional, demonstrando que, ainda que a única posse efetiva neste estado seja a posse física, a razão prática nos impõe o dever de que toda a relação jurídica seja baseada na ideia de uma vontade geral. Assim, a posse inteligível deve ser presumida em toda a relação jurídica, a fim de que a posse física tenha pretensão de juridicidade quando do advento do Estado civil. Na última parte, mostraremos que a constituição do Estado é um dever que a razão nos impõe a fim de rumarmos em direção a um Estado republicano e a uma federação de Estados, momento este essencial para que haja o desenvolvimento de todos os potenciais ínsitos na natureza humana. Por isso, se permanecêssemos no estado de natureza “sem leis”, lesaríamos todo o Direito e assim impediríamos o progresso da humanidade para o melhor. No quarto e último capítulo mostraremos, num primeiro momento, por que a ideia do contrato não se sustenta se considerada de um ponto de vista teórico-constitutivo; num segundo momento, e num diálogo com outros comentadores, veremos que os principais excertos das obras de Direito político kantiano apontam para o caráter regulador da ideia de contrato, ainda que haja pequenas nuances no modo como cada comentador a interpreta. Finalmente, num terceiro estágio, será possível verificar que a ideia de contrato está estritamente conectada à ideia de uma República noumência, a qual, assim como o contrato, é também uma ideia reguladora prático-jurídica, um horizonte normativo
ao qual os Estados empíricos devem tender. Veremos que uma República “na ideia” deve estar fundada num contrato originário em que as leis provêm da vontade unida do povo e assim cada cidadão pode pensar-se como um colegislador de sua própria legislação. Tal república está fundada nos princípios de liberdade, igualdade e independência, bem como na divisão de poderes e na representatividade.
1. O CONTRATUALISMO E SUA RELAÇÃO COM XXXX
Este primeiro capítulo não tem por objetivo ser uma explanação abrangente e aprofundada, ou mesmo crítica acerca da natureza do contratualismo na modernidade. Nossa intenção é bem mais modesta. Trata-se de uma compreensão panorâmica, detendo-nos em alguns conceitos fundamentais e nos principais autores, metodologia essa que nos ajudará a situar o pensamento de Xxxx no contexto do contratualismo e relacioná-lo com os respectivos autores. Não podemos esquecer que Xxxx, ainda que autor de uma Filosofia idiossincrática como o idealismo transcendental, no que tange ao pensamento filosófico-político tem suas raízes entrelaçadas nos modernos. Temas como direito natural, soberania, pacto de união e submissão (pactum unionis e pactum subjectionis), direito de resistência, estado de natureza, etc., são a ordem do dia da Filosofia política moderna, os quais, com exceção do pactum subjectionis, são amplamente discutidos por Xxxx. Por isso, a partir de uma melhor compreensão desses temas, poderemos verificar se há realmente um contratualismo em Kant e em que termos ele é explanado em sua obra. Só assim teremos uma base mais sólida para verificarmos a natureza do seu contratualismo, bem como poderemos concluir se Xxxx rompe ou não com essa tradição.
Faz-se necessário ainda esclarecer que não visamos fazer uma reconstrução histórica do contratualismo, dado que isso tornaria o trabalho demasiado extenso. Assim, o recuo histórico de que partimos tem mais um caráter introdutório, servindo antes como contextualização do assunto.
1.1. As origens do contratualismo moderno
Grosso modo, havia no período medieval uma teoria da origem divina do poder civil, teoria esta sustentada por alguns discípulos de Xxxxxxxxx (posteriormente retomada por Xxxxxx, Xxxxxxx, entre outros). Segundo esta teoria, todo o poder civil instituído legalmente vem de Deus, é expressão da Sua vontade. Xxxxxxx, certamente, aos homens a escolha dos próprios governantes, mas a autoridade política dos escolhidos era legitimada pelo próprio Deus. Deus transfere a sua autoridade aos governantes diretamente, sem intermediários. Em última instância é Ele quem escolhe aquele que deve governar. O ato do pleito é apenas uma mediação de que Deus se serve para delegar o poder, mas por si só o ato não confere poder real ao povo. E qualquer que seja a forma de governo, inclusive a democracia, em tese seria compatível com
esta teoria. Disso decorre que a submissão deveria ser sempre absoluta ao governo estabelecido, qualquer que ele fosse, de modo que não haveria possibilidade de qualquer direito de resistência. Xxxxxx, o ato de resistir implicaria na não aceitação da vontade de Deus e assim romper- se-ia com a ordem divina, o que significaria atrair a condenação para os súditos. Isso significa que quem obedece ao soberano está indiretamente obedecendo ao próprio Deus1. É claro que a vontade de Deus passa também por aquilo que a Igreja determina. Como nos lembra Derathé, no pensamento medieval “a Igreja é o reino de Deus e o Estado, o reino da carne; marcado pelo pecado, ele só pode adquirir dignidade moral quando se faz o servidor da Igreja, empresta-lhe seu braço e executa suas ordens”2.
Além da negação do direito de resistência, esta doutrina também se opunha à ideia de soberania do povo3. Xxxxxx, se o povo fosse soberano, isso implicaria em negar a ideia fundamental de que somos apenas criaturas e, por isso, não podemos ocupar o lugar de Deus. No fundo, a preocupação consiste em mostrar que há uma ordem natural das coisas e que o homem não pode ultrapassar os limites que lhes são previamente estipulados. Basicamente, o homem não pode ser seu próprio senhor, se autogovernar. Portanto, nesta perspectiva o mundo moral e político é uma unidade indivisível e solidamente organizada em que o Estado, a Igreja, a arte e a ciência recebem das mãos do representante de cristo as leis morais que deverão reger a vida.
À medida que xxxxxxxxxx na modernidade esse tipo de pensamento começa a ser seriamente questionado, e Deus, representado pela figura da Igreja, vai sendo gradualmente destronado de seu posto e substituído pelo próprio homem. A modernidade nascente traz a marca do humanismo. Por sinal, todo o Renascimento pode ser visto como uma ascensão do homem aos novos cenários com novas formas de pensar o humano e suas relações. Entre os autores modernos, no âmbito jurídico Grotius e Pufendorf são os primeiros que tentam emancipar o Direito natural da Teologia, passando agora o Estado a ser uma entidade essencialmente laica, não mais tutelada pela igreja4. Da mesma forma, as leis naturais, que até então tinham uma legitimidade divina precisam de uma nova âncora.
1 DERATHÉ, 2009, 66-74.
2 DERATHÉ, 2009, 75.
3 Cf. DERATHÉ, 2009, 71.
4 Cf. TERREL, 2001, 27.
Em meio a uma diversidade de opiniões, entre as escolas de Direito natural modernas há algo que as une: o método racional demonstrativo. Este método vai permitir que o Direito, a moral, a política, sejam objetos de uma análise racional e não mais resultado de um conceito religioso prévio de mundo. Portanto, o movimento em seu conjunto é caracterizado pelo princípio metodológico e não tanto pelo conteúdo de suas análises5, de modo a ser possível encontrar princípios universais da conduta humana, uma suposta natureza humana, ou ainda, a natureza das coisas. Cabe ao jurista moderno justificar racionalmente as leis e não apenas interpretar regras já estabelecidas. De intérprete ele passa a ser um descobridor. Portanto, ele tem um trabalho bem mais árduo e de maior responsabilidade em relação ao trabalho de um jurista do medievo. É claro que, em última instância, os modernos veem em Deus a fonte última das leis naturais. Deus é apenas destronado, mas não está morto. Quem ainda vige na modernidade é o Deus criador, aquele que cria a ordem natural, mas fora destituído do seu posto de governante do mundo, já que a Igreja que o representa gradativamente vai perdendo sua força. Por isso, este posto é assumido pelo homem, o qual, por meio da razão, precisa justificar o que pode ser aceito como princípio racional da moral, do Direito e da política. Embora sendo a fonte da razão, Deus está fora, não faz mais parte do processo de gestão das “coisas” humanas.
Basicamente, juristas e filósofos passam a ter uma nova ferramenta para pensar a ordem política, não apenas interpretando e justificando um modelo político já estabelecido pela tradição, mas tendo a necessidade de pensar essa ordem a partir de uma elaboração fundamentada na razão. Não que houvesse, na prática, uma escancarada liberdade de pensamento, porém era preciso agora ousar pensar para construir a liberdade. É nesse espírito do novo método racional que se deve pensar o contratualismo moderno.
Embora, como nos lembra Xxxxxx, a teoria do contrato fosse já, de alguma forma, utilizada pelos legisladores medievais, é somente com os jusnaturalistas que ela se torna um tema fundamental da teoria política6. Porém, além desse rompimento com a tradição cristã, em termos filosóficos o contratualismo marca uma grande ruptura com um
5 Cf. XXXXXX, 1986, 15-16.
6 Cf. BOBBIO, 1986, 62.
modelo naturalista aristotélico7 de sociedade e traz implicações no modo de pensar a criação de uma ordem civil, seja na definição do que é o homem, seja no papel que ele desempenha nesta nova ordem.
Para Xxxxxxxxxxx, o homem é um ser político por natureza. Não precisa de um contrato que lhe permita participar de um Estado, já que ele não se define enquanto um indivíduo isolado, uma unidade individuada. “Ser” é “pertencer” a uma família, aldeia, cidade. Assim, a formação da cidade-estado (enquanto uma comunidade de cidadãos) é resultado de um processo natural. Por isso, é forte em Xxxxxxxxxxx a ideia de processos naturais. Em tudo há uma finalidade, uma ordem natural das coisas, já que a natureza não faz nada em vão, cabendo ao homem adequar-se a ela. Assim, desde uma perspectiva histórica, pode-se dizer que primeiro se é membro de uma família; por sua vez, um conjunto de famílias forma uma aldeia; um conjunto de aldeias constitui uma cidade, a qual contém o nível mais alto de autossuficiência8. Contudo, desde uma perspectiva não histórica, pode-se dizer que já nascemos numa cidade, uma vez a cidade é sempre anterior ao indivíduo e à sua casa. Como diz Xxxxxxxxxxx, “o todo é necessariamente anterior à parte”9.
Este modelo de pensamento histórico-naturalista, que pensa a ordem civil por meio da agregação de níveis diferentes de organização social, manteve-se ainda em autores como Xxxxxxxxxx, Xxxxx, Althusius10. E, de certa forma, o pensamento cristão está muito próximo do pensamento aristotélico11, na medida em que também fala de uma ordem natural prévia ao indivíduo. Porém, o ponto de vista cristão compreende tal ordem e a organiza a partir de um discurso religioso, justificando assim a estrutura política. Desta forma, a ordem natural passa a ser representada pelo Direito divino positivo, por aquilo que as
7 Em Xxxxxxxxxxx, o todo da natureza, nos seus diversos níveis, é pensado como uma ordem natural teleológica. Neste sentido, o homem é apenas um dos níveis a ser considerado, e não o elemento central em relação ao qual tudo converge.
8 Cf. XXXXXXXXXXX, 1988, I, 1252a e seguintes.
9 XXXXXXXXXXX, 1988, I, 1253a.
10 Cf. XXXXXX, 1986, 41-43.
11 Filosoficamente há grandes diferenças entre o pensamento aristotélico e o cristão no que tange à cosmologia e à antropologia. Falamos aqui de uma proximidade no sentido de que ambas se contrapõem ao contratualismo, já que afirmam algum tipo de ordem pré-estabelecida: Xxxxxxxxxxx afirmando o finalismo natural que se estende também à formação da cidade; o Cristianismo estabelecendo um sistema de controle, que se estende aos domínios político e moral, baseado na ideia de um governo de Deus no mundo.
leis efetivas da igreja determinam. Não esqueçamos que o período medieval é marcado pelo controle da Igreja. A castração de Xxxxxxxx, por exemplo, é um símbolo material do que acontecia na esfera do pensamento. Por isso que a Filosofia precisava sempre estar ao serviço da Teologia.
É justamente como alternativa ao pensamento cristão e à teoria aristotélica que a teoria contratualista se impõe, o que implica em profundas mudanças de perspectiva em termos filosóficos. A primeira delas tem a ver com a compreensão da natureza da ordem civil. Se no modelo aristotélico e cristão o Estado é produto de uma ordem natural, com o contratualismo ele se torna uma criação artificial do próprio homem, o qual deixa de ser apenas uma peça na engrenagem do todo. Esta artificialidade permite o rompimento com a tradição e a criação de novos modelos de organização política, através da ideia de uma unidade fundamental em que os indivíduos se organizam como povo e tornam-se autores dos processos políticos. Não se é mais uma criatura política por natureza, como dizia Xxxxxxxxxxx, mas é preciso tornar-se um ser político. Em segundo lugar, há o surgimento da noção de indivíduo. Se nos modelos naturalistas só se é alguém enquanto pertencente à polis, ou enquanto se é parte da grande cristandade (enquanto submetido ao domínio do sacro império), a teoria contratualista irá pensar o indivíduo como um ser pré-civil, desvinculado de tudo, uma unidade independente. E disso decorre que a criação do Estado ou a permanência no estado de natureza é de sua total responsabilidade. Não há mais uma ordem natural, politicamente falando, à qual o homem precisa adequar- se. Tudo pode ser artificialmente criado pela própria razão, embora, como já apontamos, a razão também tem leis. Porém cabe ao próprio homem a criação dos novos cenários políticos. É ele agora o grande autor e não mais Deus ou a natureza.
Alguns outros elementos essenciais norteiam o contratualismo, porém, é preciso deixar claro que os contratualistas são bastante heterogêneos, o que demanda certo cuidado ao se fazer afirmações generalizadas. Mas, dado o caráter introdutório da questão, achamos útil elencar alguns elementos que ajudarão contextualizar melhor o assunto. Um dos conceitos mais característicos dessas teorias é o conceito de estado de natureza. Haveria uma situação anterior ao Estado civil em que os humanos viviam livres, num estado de igualdade e independência. Para Xxxxxx, seria um estado dominado pelas paixões, a guerra e a insegurança; para Xxxxx, um estado positivo, em que predominam as leis naturais; para um autor como Xxxxxxxx, um estado primitivo, de total inocência e harmonia com a natureza, em que as
paixões ainda não estavam desenvolvidas. Porém, nos servindo do pensamento de Xxxxxxx, destacamos que a noção de estado de natureza permitiu aos contratualistas oporem-se à teoria de alguns pensadores católicos (os quais sustentavam uma subordinação natural entre os homens) ou mesmo à ideia de que os homens jamais foram independentes12. Portanto, a noção de independência e igualdade, em que nenhum indivíduo está naturalmente subordinado ao outro é um dos pilares que sustentam o conceito de estado de natureza e possibilitam um rompimento total com a tradição anterior.
Outro elemento característico do contratualismo é que este permite pensar a possibilidade do direito de resistência, direito este inviável nos modelos aristotélico e cristão. Em sendo o Estado e a forma de governo uma criação dos próprios indivíduos, ao escolherem os próprios governantes eles podem munir-se de certas prerrogativas para que a razão de ser do Estado seja preservada. Isso implica que o povo pode resistir quando as condições do pacto não são atendidas por parte de quem governa. Outro aspecto e também não menos importante é a questão da legitimidade de poder. Talvez este seja o elemento mais forte entre os contratualistas. Ele traz a possibilidade de nos perguntarmos se o poder vigente fora instituído de forma legítima ou não, por meio do consenso de seus cidadãos (pactum unionis) ou se ele é resultado de algum tipo de violência, um direito divino ou direito de nascimento. Neste aspecto, para a grande maioria dos contratualistas é o contrato o que dá legitimidade ao Estado e confere ao governante o direito de exercer a violência de forma legítima, já que a ordem civil representa a vontade de todos os envolvidos no pacto, o que implica que os cidadãos possam exigir que a ação do governante se mantenha nos limites estabelecidos entre ele e os súditos.
A ideia do contrato social nos permite pensar também que toda a lei é proveniente, em última instância, de todos os que pactuam para criar o Estado, numa condição de liberdade e igualdade. Ao decidirem unir-se e pactuar, todos estabelecem uma ordem civil sem nenhuma condição jurídica prévia. A passagem do estado de natureza ao civil está isenta de pressupostos, até porque no estado de natureza, ainda que se admita um direito natural (ou um direito com pretensão de tornar-se jurídico, como diz Xxxx), este direito não pode ser garantido. Portanto, há uma horizontalidade entre os fundadores do Estado, a qual lhes
12 Cf. DERATHÉ, 2009, 196.
permite delimitar, já no pacto de união, grande parte dos processos políticos posteriores e instituições jurídicas.
O contrato pode ser visto também não apenas a partir da condição de sua criação (condição de igualdade e liberdade), mas a partir de sua finalidade. Neste sentido, normalmente se atribui a razão de ser do Estado à função de preservação e defesa de alguns direitos fundamentais como igualdade, liberdade, vida, propriedade, tidos como irrenunciáveis. Uma que vez tais direitos sejam lesados, já não há mais razão para se manter a ordem civil (modelo este muito claro entre os contratualistas denominados de liberais).
Esses elementos bastantes gerais acerca do contrato nos fornecem um mapa, cujo território vamos definir melhor no que segue. Permanecer no mapa é um risco, pois, como nos lembra Echeverri, o tema do contratualismo é uma estrutura vazia que pode ser preenchida com qualquer conteúdo, de modo que ele pode legitimar qualquer sistema político13. Sendo assim, vamos focar nossa análise em três dos grandes contratualistas: Xxxxxx, Xxxxx e Xxxxxxxx. Os séculos XVII e XVIII nos legaram outros grandes como Grotius e Xxxxxxxxx, porém, a nossa escolha por estes autores se deve basicamente por duas razões. A primeira delas tem a ver com a relevância filosófica de suas obras, uma vez que normalmente suas abordagens são consideradas de uma maior profundidade e coerência teóricas (embora haja sérias críticas ao modelo lockeano no tocante à coerência) que os demais. A segunda razão tem a ver com a forte influência que eles exerceram no pensamento de Xxxx. Resumidamente podemos dizer que Xxxx herda de Xxxxxx a ideia de um Estado forte, soberano, indivisível e indissolúvel (também Xxxxxxxx compactua desta ideia, só que a soberania está na vontade geral). De Xxxxxxxx, a ideia de vontade geral, além da forte influência do genebrino no pensamento moral kantiano. Xxxx também faz críticas diretas a Hobbes em Teoria e Praxis, e a Xxxxx na Metafísica dos costumes, quando trata da aquisição originária.
Nosso intuito não é fazer uma abordagem exaustiva, nem mesmo entraremos nos problemas internos dos modelos teóricos de cada autor, já que isso extrapolaria o objetivo deste estudo e tornaria o trabalho demasiado longo. Visamos apenas apresentar e discutir os elementos centrais de cada teoria, procurando ver como esses elementos ressoam no pensamento de Xxxx. Trata-se, portanto, de uma abordagem introdutória e de contextualização do assunto.
13 Cf. ECHEVERRI, 2010, 13-14.
1.2. O contratualismo de Hobbes14
i. O estado de natureza e o contrato
Xxxxxx pensa o estado natural como um estado não-político, no qual os indivíduos vivem isoladamente, sem nenhum tipo de associação. Basicamente neste estado os homens são dominados pelas paixões, cujas três principais delas (a competição, a desconfiança e a glória) são as principais causadoras de discórdias. Tratando-se de uma situação em que cada um pode contar apenas consigo próprio e com a sorte, a competição faz com que os homens ataquem uns aos outros para obter algum tipo de lucro, como a posse de bens, a submissão de outras pessoas, a honra. Ao mesmo tempo, a desconfiança generalizada os incita a defenderem-se atacando primeiro. Também usam da violência para obter reputação a qualquer preço15. Porém, o que mais os incita ao conflito é a busca incessante pelo poder, o qual só cessa com a morte, tratando-se de uma inclinação geral presente em todos os homens16. Em outros termos, o estado de natureza é um estado em que há o predomínio das paixões sem nenhum tipo de poder que as limite; um estado em que cada um busca sobrepor-se ao outro e ganhar vantagens em tudo, de modo que essa busca pelo poder torna-se a meta de cada indivíduo, além de que é a única forma de se manter aquilo que fora conquistado.
Num estado em que vigora o predomínio desenfreado das paixões e um ambiente de total insegurança e temor permanentes, torna- se inviável qualquer tipo de sociedade. Por haver uma igualdade natural17 entre os homens, a guerra torna-se infindável, pois ninguém pode sobrepor-se a todos ou à maioria, e assim cada um passa a querer conquistar o que o outro possui, aumentando ainda mais a situação de
14 Xxxxxx é considerado o fundador do contratualismo, pelo fato de ter criado uma doutrina jurídico-sistemática do contrato, mostrando que a soberania depende inteiramente das vontades individuais. Cf. TERREL, 2001, 135.
15 Cf. HOBBES, 1998, XIII, 5-7.
16 Cf. XXXXXX, 1998, XI, 2.
17 Esta igualdade pode ser compreendida em três categorias: igualdade de fato (igualdade das forças físicas, intelectuais, etc); igualdade de direito (o direito de cada um a todas as coisas); igualdade nas paixões. Cf. SANTILLÁN, 1988, 21. A desigualdade de riqueza, poder ou sangue é introduzida pela lei, pois naturalmente os seres humanos são iguais. Por isso, Xxxxxx tece críticas à posição de Xxxxxxxxxxx de que os humanos nascem naturalmente servos e senhores, uns para mandar e outros para obedecer. Cf. XXXXXX, 1983, III, 13.
conflito e levando a uma condição guerra de todos contra todos, em que um homem passa a ser inimigo permanente do outro. Conforme comenta Zarka, o estado de natureza não consiste tanto em igualdade de força, mas na igualdade de poder. E esta igualdade se transforma em igualdade de temor, uma vez que ninguém tem certeza acerca das intenções dos demais18. Embora nem sempre haja uma situação de guerra efetiva, vive-se numa virtual possibilidade de que a qualquer momento ela seja deflagrada, já que não existe um poder superior capaz de pôr fim ao conflito. Com isso, torna-se difícil o desenvolvimento da indústria, o cultivo da terra, as navegações, etc19. Nem mesmo pode-se falar de justiça ou injustiça, já que não há um poder comum que comande a todos, e onde este poder não existe, também não há lei20.
Este estado de insegurança permanente, em que a vida está em constante perigo, faz com que os homens busquem criar uma forma de organização civil, cuja finalidade é a preservação da vida, entendida esta fundamentalmente em termos biológicos. É claro que para Xxxxxx esta segurança do povo compreende um pouco mais que “a simples manutenção do corpo”, tratando-se de possibilitar que alguns direitos complementares sejam preservados, tais como o direito de governar o próprio corpo, desfrutar do ar, da água, ir de um lugar a outro e demais coisas básicas sem as quais não se pode viver21. Contudo, no momento em que o Estado já não cumpre mais com este papel, pondo a vida do súdito em risco, cessa o dever de obediência e já não há mais motivos para manter-se submisso ao soberano22. Por este motivo, o direito à vida não pode ser transferido em um pacto, uma vez que a perda gerada pelo covenant seria superior àquela situação do estado natural, o que tornaria o pacto nulo.
Em virtude da total insegurança e da guerra constante23 de todos contra todos, duas forças induzem os homens a saírem deste estado e
18 Cf. XXXXX, 1997, 205.
19 Cf. HOBBES, 1998, XIII, 9.
20 Cf. HOBBES, 1998, XIII, 13.
21 Cf. HOBBES, 1998, XV, 22; XVII, 1.
22 Cf. HOBBES, 1998, XXI, 21.
23 O estado de natureza, compreendido como um estado de guerra é tomado por Xxxxxx como uma construção da razão, embora ele acredite que, de fato, este estado tenha existido no passado, assim como era uma realidade presente em alguns lugares da terra também no seu tempo, porém não em todos, já que isso certamente levaria ao extermínio da humanidade. Além disso, o estado natural
buscar a paz: as paixões, como o medo da morte e o desejo de uma vida mais cômoda; a razão, que sugere a paz por meio das leis da natureza24. A razão é entendida por Xxxxxx como uma faculdade. É a capacidade de fazer cálculos, isto é, deduzir de certos princípios consequências lógicas, de modo a descobrir os melhores meios para se chegar ao resultado visado. Assim, sair do estado de natureza é o que nos aconselha a reta razão, a fim de buscarmos a paz e mantermos a vida25. Afinal, a reta razão nada mais é que a expressão das leis naturais, das quais a primeira nos orienta a buscar a paz e da qual derivam todas as demais, com o intuito de buscar a segurança para a vida. Por isso, criar o Estado civil é a melhor forma de se atingir este objetivo26.
Segundo o direito natural, no estado de natureza cada um tem a liberdade de usar o próprio poder e os meios disponíveis da maneira que lhe aprouver para manter a vida27. Porém, trata-se de um direito apenas subjetivo, que não gera obrigações recíprocas. Desse modo, em vez de possibilitar as condições para sair da guerra generalizada, este direito a reforça ainda mais, gerando assim uma contradição no interior do próprio direito, o qual acaba sendo reduzido e identificado com o poder. Por isso, a fim de se evitar esse tipo de contradição, a razão prescreve a
não se limita à relação entre os indivíduos, mas se estende também à relação entre os Estados. Cf. HOBBES, 1998, XIII, 11.
24 Cf. HOBBES, 1998, XIII, 14.
25 Cf. HOBBES, 1983, II, 1.
26 Uma das maiores críticas às circunstâncias teóricas da criação do pacto em Hobbes é feita por Xxxxxxxx. Segundo ele, o embate de interesses do estado de natureza não seria capaz de gerar uma ordem social. Em primeiro lugar porque, no estado natural, os sujeitos de direito privado, antes de qualquer socialização, não aprenderam a assumir a perspectiva do outro e a considerar a si mesmos na perspectiva de uma segunda pessoa, de modo que ainda não compreendem o princípio da reciprocidade. Assim, para estabelecer um contrato precisariam já dispor de uma conceituação cognitivo-social que possibilitasse esta mudança de perspectiva. Em segundo lugar, os sujeitos teriam que assumir a perspectiva de um “nós”, do consenso, a qual estaria vedada ao sujeito hobbesiano, tendo em vista que esta interpretação moral do estado natural está em contradição com os pressupostos naturalistas do sistema de Hobbes, o qual se fundamenta num egoísmo bem ordenado a partir do autointeresse dos indivíduos. Cf. XXXXXXXX, 0000, 124-5.
27 Cf. HOBBES, 1998, XIV, 1.
cada um a lei natural28 a fim de que se busque a paz no intuito de preservar o direito à autoconservação, e assim sacrifique-se algo incerto no estado natural, por um bem muito mais seguro no Estado civil29.
Por se aplicarem somente ao foro interno, as leis da natureza são insuficientes para assegurar a paz, não passando de regras de prudência. Como diz Xxxxxx, “os pactos sem a espada não passam de palavras”30, de modo que é preciso um poder que obrigue os súditos a respeitá-las. Assim, a construção deste poder comum ocorre por meio de um pacto, em que cada um, voluntariamente, pactua com cada um dos demais, submetendo-se e transferindo seus direitos e todo seu poder (com exceção do direito de defender a própria vida) a um homem ou a uma assembleia de homens, autorizando ao mesmo tempo todas as suas ações31. Cada um se obriga a uma obediência absoluta ao novo soberano e às suas leis, o qual se torna a fonte legítima daquilo que é legal e justo. Portanto, com exceção da vida, todos os demais direitos são transferidos ao soberano, que passa a ter poderes absolutos sobre o conjunto dos súditos. Observemos, porém, que este pacto acaba gerando uma dupla obrigação: uma, em relação aos iguais; outra, em relação ao soberano32, do que podemos concluir que o duplo pacto contemplado pela tradição contratualista (pactum unionis e pactum subjectionis), acaba sendo concebido num só movimento em Hobbes, um pacto bilateral.
Essa transferência de direitos feita ao soberano é o que acaba gerando obrigações no súdito, afinal, o soberano passa a agir em nome do súdito, de modo que suas ações representam a vontade de cada um. Por isso, tem razão Xxxxx ao comentar que, no Leviatã, temos bem mais que uma transferência de direitos sobre as coisas, mas, acima de tudo, uma autorização concedida ao soberano para agir em nome dos súditos, de modo que a teoria da representação possibilita os meios jurídicos necessários para se pensar a passagem da multidão disforme para a unidade da pessoa jurídica, dotada de uma vontade única33. Desse modo,
28 Em Hobbes a lei natural tem a ver com obrigação. Trata-se dos preceitos da razão, os quais só obrigam no foro interno; Já o direito tem a ver com liberdade de usar o próprio poder da maneira que lhe aprouver para a autopreservação.
29 Cf. XXXXX, 1997, 215-16.
30 Cf. HOBBES, 1998, XVII, 2.
31 Cf. HOBBES, 1998, XVII, 13.
32 “[...] para a segurança dos homens foi exigido não apenas o seu consentimento, mas também a submissão de suas vontades nas coisas necessárias à paz e à defesa”. Cf. XXXXXX, 1983, VI, 3. (Tradução nossa).
33 Cf. ZARKA, 1997, 235.
todos os atos do soberano passam a ser legitimamente autorizados pelos súditos e a obediência torna-se uma obrigação, afinal, a unidade do representante é um efeito do livre consentimento. Por isso, o soberano nem mesmo pode ser punido34. Portanto, a nova ordem civil, artificial, legitimamente construída e fundada na razão, vem superar o estado de incerteza, de guerra e as paixões desenfreadas do estado de natureza.
Uma teoria da instituição do Estado nos termos de uma quase total transferência de direitos acaba dando margens à criação de um Estado absoluto. Contanto que não se atente contra a vida dos súditos, tudo o mais pode ser possível, uma vez que o soberano é a fonte da legalidade e da justiça. Aliás, em Hobbes o que é legal é justo. Além disso, desde que o soberano não atente contra a vida, seu poder é irrevogável. E isso por duas razões, no entender de Xxxxxxxxx: uma razão de fato, já que para revogar o pacto seria indispensável a unanimidade e não apenas uma decisão por maioria, o que dificilmente ocorreria, dado que, para Xxxxxx, haveria a dificuldade de se chegar a um acordo entre todos os indivíduos; há também uma razão de direito, segundo a qual o pacto envolve também um terceiro (o soberano), sem o consentimento do qual o pacto não poderia ser desfeito35. De nosso ponto de vista, o argumento da irrevogabilidade está subentendido já no momento em que os direitos são transferidos ao soberano, ficando assim o indivíduo privado de meios legais para lhe fazer frente, já que cedera todos os direitos. Finalmente, além de absoluto e irrevogável, o Estado hobbesiano é ainda indivisível. Para Xxxxxx, dividir o governo significa abrir espaço para as dissenções e assim pôr em risco a paz, além de que, isso implicaria em consentir que há mais de um soberano, o que seria impensável num modelo de soberania exclusiva.
ii. Conectando os pontos
Com esses elementos em mãos, passaremos a analisar alguns aspectos do contratualismo de Xxxxxx num diálogo com Xxxx. No tocante ao estado de natureza, assim como Hobbes, Xxxx ressalta o predomínio da insegurança. Embora admita a guerra, o tipo de insegurança criada é muito mais jurídica que empírica. Isso se deve ao fato de que, para Xxxx, no estado de natureza já vigora o Direito privado que atribui o seu de cada um, embora este Direito não possa ser
34 Cf. HOBBES, 1998, XVIII, 7.
35 Cf. SANTILLÁN, 1988, 36-7. Ver também HOBBES, 1983, VI, 20.
garantido. Assim, criar o Estado é, acima de tudo, um dever36 que a razão prática exige, tendo em vista que o fim da razão no âmbito jurídico é a Constituição republicana e a paz perpétua entre os Estados. Ao permanecerem na insegurança do estado de natureza, os humanos não são injustos uns com os outros, uma vez que a violência que vale para um vale também para o outro, mas são injustos em sumo grau37, já que permanecendo neste estado sem garantias, tornam inseguros os direitos dos homens. Com isso, constatamos que a insegurança do estado de natureza em Kant é gerada no interior da própria razão, já que sua finalidade é a criação de uma República perfeita e a paz entre os Estados. E, na medida em que o estado natural não permite a realização do Direito, há uma espécie de contradição entre aquilo que a razão ordena e a insegurança jurídica do estado de natureza, já que não há neste último uma justiça distributiva que emita a sentença para um caso particular, e assim garanta o seu de cada um. Daí a necessidade de se criar o Estado.
Já em Hobbes a insegurança tem relação com a empiria. Ainda que o Estado de natureza seja uma hipótese racional, ele existira no passado e em alguns lugares existia ainda no seu tempo. Além disso, ao observar a natureza humana, Xxxxxx se dá conta de quão negativa ela é, podendo deduzir daí que, antes da formação dos Estados, os humanos devem ter vivido numa condição de guerra de todos contra todos. Portanto, é da própria antropologia que Hobbes deduz o estado de natureza. Xxxx também parte de uma natureza humana negativa: “[...] o homem é um animal que, quando vive entre outros de sua espécie, tem necessidade de um senhor”38; E ainda: “de uma madeira tão retorcida, da qual o homem é feito, não se pode fazer nada reto”39. Porém, a lei moral presente na sua consciência e que se impõe como dever, é um potencial ínsito em seu interior que o obriga a endireitar este lenho ao longo de gerações. E caso o homem resista à evolução pelo dever, a própria natureza se encarrega de desenvolver as disposições originais humanas, utilizando-se do mecanismo da insociável sociabilidade40. Isto evidencia que, embora Xxxx parta de uma natureza humana limitada, em virtude de
36 “Deves, numa relação de coexistência inevitável com todos os outros, sair do estado de natureza para entrar num estado jurídico, quer dizer, num estado de justiça distributiva”. MS, AA 06: 307.
37 Cf. MS, AA 06: 307.
38 IaG, AA 08: 23.
39 IaG, AA 08: 23.
40 Cf. IaG, AA 08: 24.
que há uma razão prática presente nela torna-se provável que essa limitação será algum dia transcendida, ou, pelo menos, deve-se caminhar nesta direção. Já para Hobbes, como a razão é utilitária, permanece no âmbito primário da sobrevivência, estando ela desprovida de qualquer potencial que transcenda a condição humana.
Disso conclui-se que Xxxx parte da razão para pensar o estado de natureza. Sua questão é resolver uma contradição interna à própria razão. Já Xxxxxx parte da natureza humana pensada empiricamente, cuja questão a ser solucionada é a autopreservação. De certa forma, em Hobbes o direito natural também gera uma contradição no estado de natureza, porém trata-se de um direito empírico, com o fim apenas de preservar a vida humana, cuja resolução possibilita a criação de um Estado a partir da vontade empírica dos indivíduos, ou seja, um Estado tendo em vista a utilidade. Um Estado, portanto, que não é fim em si mesmo, mas um meio para outro fim. Por sua vez, Xxxx postula o Estado enquanto fim em si, de modo que a sua criação é um dever incondicionado,41 o que independe do acordo das vontades particulares.
O contrato cumpre também funções distintas em cada autor. Em Hobbes é ele quem funda e dá legitimidade ao Estado, estando assim na origem da ordem civil. Trata-se de um contrato que une a vontade de todos (tomados individualmente) visando à autopreservação. Por sua vez em Xxxx o contrato é pensado como uma simples ideia da razão, a qual possui uma indubitável realidade prática, isto é, “obriga a todo legislador a fornecer as leis como se elas pudessem emanar da vontade coletiva de um povo inteiro”42. Desse modo, não se trata de um princípio fundador; não está na origem do Estado, como em Hobbes, mas é uma ideia prática da razão, isto é, trata-se de um conceito regulador da ação e não um conceito constitutivo. Lembremos que, em Xxxx, as ideias práticas são conceitos reguladores, uma vez que são ideais da razão, os quais, dado seu caráter noumênico, jamais podem ser encontradas plenamente no mundo empírico. Se isto acontecesse, teríamos uma fusão do real com o ideal, e, neste caso, já estaríamos vivendo numa República perfeita, em que as leis são expressão plena da vontade unida do povo. Sendo a ideia do contrato um horizonte normativo, é um dever que todo legislador adeque suas leis gradativamente a esta ideia, de modo que a legislação de um Estado se aproxime cada vez mais das exigências da razão prático-jurídica.
41 Cf. TP, AA 08: 289.
42 TP, AA 08: 297.
Entenda-se que os conceitos de povo e vontade unida são conceitos ideias, de modo que não se trata do povo empírico como em Hobbes. Portanto, quando Xxxx fala de contrato, vontade unida, povo, não quer expressar uma maximização de vontades particulares, mas uma vontade comum, um princípio prático regulador da ação. Portanto, diferente de Xxxxxx, o contrato em Xxxx se mantém no plano normativo.
1.3. O contratualismo de Xxxxx
i. O estado de natureza
Diferente de Hobbes, para Xxxxx o estado de natureza não é um estado de guerra, de um conflito infindável com a prevalência da força, ou, pelo menos, com a intenção declarada de força sobre o outro. Por outro lado, não é também um estado paradisíaco em que o mal está ausente, como na ideia de estado primitivo de Xxxxxxxx, em que o homem não havia ainda se contaminado com os vícios da civilização. Trata-se, acima de estudo, de um estado de liberdade, em que os humanos são livres para exercer suas ações, dispor de sua pessoa como bem entenderem, sem estarem na dependência da vontade do outro, porém dentro dos limites do direito natural. É este também um estado de igualdade e reciprocidade, sem subordinação ou sujeição43, em que todos possuem faculdades similares e podem desfrutar das vantagens comuns que a natureza dispõe44.
Contudo, a liberdade do estado de natureza tem seus limites, e o homem não pode destruir sua própria pessoa, ou a vida de outra criatura que se encontra sob seu domínio, salvo se assim exigisse um objetivo mais nobre que a conservação desta criatura. Desse modo, já no estado de natureza vigora o direito natural45, segundo o qual todos são iguais e
43 “[...] não se pode conceber que exista entre nós uma hierarquia que nos autorizaria a nos destruir uns aos outros, como se tivéssemos sido feitos para servir de instrumento às necessidades uns dos outros [...]”. XXXXX, 1994, II, 6. 44 Cf. XXXXX, 1994, II, 4.
45 A questão do direito natural é bastante controvertida em Xxxxx, já que, segundo os pesquisadores, haveria certa contradição entre o que afirma o Ensaio sobre o entendimento humano e o Segundo tratado no tocante ao conceito de leis naturais. No Segundo tratado Xxxxx afirma que seria possível obter um conhecimento dedutivo das leis naturais, inscritas no coração humano, através da razão; por sua vez, no Ensaio, parece inviabilizar a possibilidade da existência de tais leis, uma vez que não poderíamos ter conhecimento inato das
independentes, e por isso ninguém deve lesar o outro em sua vida, saúde, liberdade, e bens, direitos estes inalienáveis, que devem ser preservados quando da entrada no Estado civil. Além de não causar dano ao outro, pelo direito de natureza cada um deve ainda velar pela conservação da humanidade, a não ser que ao assim proceder se coloque em risco a conservação do próprio indivíduo46.
Diante disso, coloca-se a questão da garantia desses direitos. Para Xxxxxx e Xxxx não é possível a garantia do Direito no estado de natureza, já que não existe um poder legitimamente constituído que garanta o seu de cada um. Além disso, diferente de Xxxxx, no estado de natureza hobbesiano todos têm direito a tudo, inclusive aos corpos dos outros, evidenciando assim a condição de guerra natural. A solução de Xxxxx é a seguinte: cabe a cada pessoa assegurar a execução da lei da natureza, de modo que a punição aos transgressores da lei natural seja feita por cada pessoa individualmente. A pena deve ser proporcional à transgressão e deve ser imposta na medida da consciência de cada um, de modo a reparar o dano e ainda proporcionar a prevenção a possíveis danos futuros. Mas, deve-se ter o cuidado para que esse poder que um homem adquire sobre o outro não se torne arbitrário ou absoluto47. Além do direito de punir, a vítima pode exigir o direito de reparação; além disso, qualquer pessoa que ache isso justo pode juntar-se a ela para inquirir o ofensor, a fim de que ele repare o dano causado à vítima48. Inclusive, pela lei da natureza todo homem pode matar um assassino, impedindo assim que futuros crimes sejam cometidos pela mesma pessoa, ao mesmo tempo em que coíbe uma ação futura similar intencionada por outros49. Portanto, qualquer pessoa pode julgar e punir, enquanto que somente a vítima pode exigir o direito de reparação no que fora lesada.
Diferente de Hobbes, no estado de natureza lockeano já existem autênticas sociedades50, sendo o estado de guerra uma exceção e não a
mesmas, tendo em vista que, para Xxxxx, não existem ideias inatas, surgindo assim um conflito entre os pressupostos de sua teoria do conhecimento e sua Filosofia política. Cf. VÁRNAGY, 2006, 58.
46 Cf. XXXXX, 0000, II, 6.
47 Cf. XXXXX, 1994, II, 8.
48 Cf. XXXXX, 1994, II, 9.
49 Cf. XXXXX, 1994, II, 11.
50 O estado natural é um estado de paz, boa vontade, assistência mútua, sem um superior comum na terra. Contraposto a ele está o estado de guerra, marcado pela violência, inimizade, destruição mútua através da força, ou apenas a
regra, podendo este ocorrer também no Estado civil, toda vez que se usa da força para manter o outro sob seu poder51. Por isso, Xxxxx pode afirmar que há já uma sociabilidade natural que antecede o Estado civil. O indivíduo lockeano já está inserido em contextos socializadores (família, aldeias), em que o direito natural é o que permite a coesão interna e a estabilidade dos sistemas. Porém esses contextos estão aquém da sociedade política, uma vez que o pater famílias não tem poder legislativo de vida e morte sobre seus membros, tratando-se de um poder bem limitado, além de ser compartilhado com a mãe de família52. Por isso, a crítica feita por Xxxxxxxxx a Xxxxxx, de que os contratantes não dispõem de uma conceituação cognitivo-social para assumir a perspectiva de uma segunda pessoa e de um nós, não se aplica a Xxxxx, já que o seu sujeito contratante já está socializado, e por isso possui a perspectiva do outro e da coletividade.
Isso também é visível em Kant, quando este afirma que no estado de natureza já existem autênticas sociedades, tais como a conjugal, familiar, doméstica, etc., embora seja um estado injusto porque não se pode garantir o seu de cada um. Contudo, em Kant há somente um direito inato, a saber, a liberdade, compreendida como independência em relação ao arbítrio compulsivo de outrem, direito que corresponde a todo homem em virtude de sua humanidade53. Trata-se da liberdade compreendida negativamente, a qual não é a mesma liberdade positiva ou jurídica54 pertencente à ordem civil, pois, no Estado civil ela
intenção declarada de força, no intuito de subjugar o outro. Cf. XXXXX, 1994, III, 21.
51 Cf. XXXXX, 1994, III, 17-19.
52 Cf. XXXXX, 1994, VI, 86.
53 Cf. MS, AA 06: 237.
54 Em À paz perpétua Xxxx menciona a liberdade externa como sinônimo de liberdade jurídica e aponta que não se trata da liberdade negativa (faculdade de fazer tudo o que se quer, sempre que não se prejudique ninguém), definição essa que não passa de uma tautologia, já que não elucida nada, pois dizer que liberdade é agir desde que não prejudique ninguém não diz nada da liberdade em si mesma. A liberdade, em sendo uma faculdade, consiste na possibilidade de realizar uma ação positivamente, podendo-se assim reconhecer seus traços nesta ação. Portanto, a liberdade externa jurídica deve ser definida como a faculdade de não obedecer a quaisquer leis externas senão àquelas que eu puder dar meu consentimento. Cf. ZeF, AA 08:350 nota 4. Este mesmo conceito é reafirmado na Metafísica dos Costumes, no parágrafo 46, onde Xxxx afirma que faz parte dos atributos jurídicos dos cidadãos a “ [...] liberdade legal de não
é um produto da vontade legisladora universal. Portanto, quando se entra no Estado, abandona-se completamente a liberdade negativa e sem leis do estado de natureza para recuperá-la como uma liberdade regulada pela lei. Assim, a independência do arbítrio do estado natural, passa a ser, no Estado civil, uma dependência da lei.
Segundo Xxxxx, no estado de natureza o homem nasce livre e politicamente independente, podendo desfrutar da vida, dos bens, da liberdade. Porém esta liberdade está sujeita às leis naturais dadas pela razão, cujo objetivo não é tanto limitar, mas direcionar o indivíduo visando o seu próprio interesse. Por isso, se por um lado a liberdade natural consiste em não estar sujeito à restrição e à violência por parte das outras pessoas, por outro ela está limitada pelas leis da razão55. Não se trata, portanto, de uma liberdade sem limites. Essa questão é muito importante porque, de certa forma, complementa o aspecto da sociabilidade recém abordado. Se houvesse uma liberdade sem parâmetros no estado natural, certamente que os processos de socialização seriam comprometidos, já que faltaria o elemento moral que une os indivíduos e lhes possibilita desenvolver um senso de pertencimento, embora esse tipo de raciocínio possa parecer um pouco problemático em Xxxxx, tendo em vista sua postura liberal, segundo a qual os indivíduos contratam isoladamente e com a finalidade de obter um benefício próprio. Porém, o que se está sugerindo não é transformar o indivíduo lockeano em um sujeito altruísta, afinal ele é conduzido à criação do Estado pelo autointeresse. Mas, tendo em vista a sociabilidade natural possibilitada pelas leis da natureza, o indivíduo pode pensar a partir da perspectiva de uma segunda pessoa e da coletividade, e com isso chegar à conclusão de que celebrar o pacto é vantajoso para ele. Ele terá vantagens pessoais em sair do estado de natureza e pertencer a uma ordem civil. Por sinal, essa falta de sociabilidade no estado de natureza faz com que o contratualismo de Xxxxxx perca sua força, como bem observou Habermas.
obedecer a nenhuma outra lei senão aquela a que deram o seu consentimento”.
MS, AA 06:314.
55 “Ela se define como a liberdade, para cada um, de dispor e ordenar sobre sua própria pessoa, ações, possessões e tudo aquilo que lhe pertence, dentro da permissão das leis às quais está submetida, e, por isso, não estar sujeito à vontade arbitrária de outra pessoa, mas seguir livremente a sua própria vontade”. LOCK, 1994, VI, 57.
ii. O Estado civil
Xxxxx está ciente de que, embora o estado de natureza não seja uma condição de guerra, a natureza humana é suscetível de interesses ocultos e às mais diversas paixões, como a vingança. Estes fatores poderiam conduzir os crimes a uma punição recíproca infindável, de modo que a garantia do direito do outro tornar-se-ia uma tarefa difícil de equacionar, afinal, os homens nem sempre são bons juízes em causa própria ou quando as causas dos amigos estão em questão. Essa situação poderia levar a uma insegurança generalizada, de onde adviria ainda mais confusão e desordem. Por isso, prevendo que o estado de natureza possa chegar a tal situação de incerteza, Xxxxx afirma ser necessária a criação do Estado civil, porém não de um Estado absoluto56.
Sendo assim, a comunidade política nasce para a preservação da vida, liberdade e bens, conceitos esses que Xxxxx resume no termo propriedade57. O novo Estado dará fim às inconveniências do estado de natureza, havendo assim, por parte de cada um, uma renúncia à comunidade civil ao seu poder de punir as ofensas contra a lei da natureza58. O pacto deve ser livremente consentido, pois ninguém está obrigado a sair do estado de natureza se não o quiser. Todos os que pactuam entre si, para criar uma comunidade, objetivam uma vida segura, confortável e pacífica, em que possam desfrutar de sua propriedade e estar protegidos dos que não são da comunidade, e também se submetem à decisão da maioria no novo corpo civil59. Portanto, o ponto de partida para qualquer Constituição civil, e a única união possível de todos os governos legais do mundo, é a união de um número qualquer de homens livres que se submetem ao critério de decisão por maioria60. Poderá ocorrer que alguém não deseje pactuar.
56 Cf. XXXXX, 1994, II, 13.
57 Cf. XXXXX, 1994, IX, 123-4.
58 Cf. XXXXX, 0000, VII, 89-90.
59 Cf. XXXXX, 1994, VIII, 95; 97.
60 Cf. XXXXX, 1994, VIII, 99. Curiosamente, embora Xxxxx afirme que não há registro anterior aos governos a respeito de sua origem, do ponto de vista histórico parece advogar uma origem contratual para sociedades, especialmente para aqueles Estados pacíficos, de modo que o contrato não seria apenas um fundamento teórico, mas estaria também na origem histórica das sociedades. Daí que faz sentido a ideia de que em Xxxxx o estado de natureza não é apenas uma hipótese racional, tratando-se também de um conceito que poderia ser verificado na experiência histórica. Cf. XXXXX, 1994, VIII, 104; 112.
Contudo, quando um homem possui terras ou desfruta de qualquer parte dos domínios de um governo, este homem é obrigado a obedecer às leis do país, e assim se diz que, tacitamente, ele consente com este governo, embora, se não concordar, esteja livre para viver em outro lugar61.
Após o contrato de união, cria-se o legislativo, encarregado de representar toda a comunidade. É este quem passa a deter o poder supremo e todos os demais poderes derivam dele. Porém, a criação do legislativo não ocorre através de um pacto de submissão, mas por meio do trust, isto é, uma transmissão de confiança, tratando-se de um poder fiduciário. Embora ele detenha o poder supremo, quando trai a confiança do povo e desvia-se dos propósitos a que fora instituído, pode ser destituído pelo povo e recriado novamente, ficando assim o povo com uma “reserva de poder” em suas mãos62.
iii. Conectando os pontos
Há, por parte de Xxxxx, uma grande preocupação com os limites do poder. Diferente de Hobbes, seu intuito não é a criação de um Estado absoluto, mas um que venha proteger a propriedade. Por isso, em última instância, o poder deve residir nas mãos do próprio povo. É por isso que a lei deve aplicar-se a todos indistintamente, tanto aos súditos quanto aos legisladores, pois, na medida em que estão sob as leis, os últimos possivelmente as instituirão de modo que favoreçam a todos. Neste sentido, afastando-se de Xxxxxx, Xxxxx mostra que quem faz a lei também está submetido a ela.
Além disso, o legislativo ou a autoridade suprema, não podem governar por decretos arbitrários, mas devem amparar toda a justiça em leis promulgadas publicamente e estas devem estar fundadas nas leis naturais, afinal, as leis do estado de natureza continuam em vigor no Estado civil, de modo que as leis civis apenas reforçam as naturais e lhes atribuem uma sanção63. Curiosamente, neste aspecto Xxxx está bem mais próximo de Xxxxx que de Xxxxxx, já que em Kant o Direito positivado deve estar fundamentado no Direito natural racional. Xxxx afirma que as leis vinculativas, para as quais é possível uma legislação externa, são denominadas de leis externas. Dentre estas, algumas nos vinculam de maneira a priori, mediante a razão, as quais são
61 Cf. XXXXX, 1994, VIII, 119.
62 Cf. XXXXX, 1994, XIII, 149.
63 Cf. XXXXX, 1994, XI, 135.
denominadas também de naturais. Outras, que dependem de uma legislação externa efetiva, chamam-se positivas. Estas últimas precisam sempre ser precedidas de uma lei natural que fundamente a autoridade do legislador64. Isso quer dizer que a legislação externa da razão prática a priori é a fonte de toda a lei positiva, e é dever de todo legislador fazer as leis de modo a aproximá-las cada vez mais dos princípios de uma legislação externa a priori, e assim poder-se-ia concluir que tais leis são originadas da própria vontade unida de todo o povo. Esta é a forma como o idealismo transcendental pensa a realidade, considerando-a sempre a partir de uma dupla perspectiva, em que, de um lado, está o elemento a priori e regulador; de doutro, a realidade dos Estados que precisa adequar-se à ideia. Neste sentido, ainda que façamos algumas aproximações de Xxxxx e Xxxxxx com Xxxx, elas nem sempre serão precisas, tendo em vista os diferentes pressupostos de cada teoria.
Há elementos que unem as teorias de Xxxxx e Xxxxxx, como é o caso do caráter utilitário de seus contratualismos. Em primeiro lugar, ambos advogam o contrato como uma unidade de vontades individuais com vistas a promover interesses de ordem individual: em Hobbes, a autoconservação; em Locke, a propriedade. Disso resulta em diferenças na antropologia de cada um. Em Hobbes o homem pode ser descrito como uma unidade biológica em busca da sobrevivência, enquanto que, em Xxxxx, pode ser referido como um ser econômico. Xxxxxx admite dois contratos num só, enquanto que Xxxxx somente um contrato de união. Em segundo lugar e diferente de Xxxx, em ambos o contrato é posto tanto como fundamento quanto origem do Estado. Neste sentido, afirma Xxxxxxx que o problema do fundamento nesses autores às vezes pode ser confundindo com o da origem da ordem civil, resultando que o estado de natureza pode ser considerado mais que um conceito racional, tratando-se também de um fato que existe ou existiu verdadeiramente65.
Já em Kant, como ressaltamos, o contrato é uma ideia da razão imbuída de realidade prática e que deve regular a ação dos governantes. Neste sentido, a vontade pública não é originária da soma das vontades particulares, mas é uma ideia originária da razão, uma ideia a priori. Mesmo porque, do ponto de vista empírico, normalmente os Estados são constituídos pela violência, através da força de um usurpador, sendo, a origem do poder supremo, uma questão imperscrutável, a ponto de ser considerado crime colocar em dúvida a legitimidade da autoridade
64 Cf. MS, AA 06: 224.
65 Cf. DERATHÉ, 2009, 195.
constituída66. Portanto, empiricamente a força precede o Direito. De certa forma também Hobbes admite que a força precede o Direito. Porém estende essa ideia para uma situação de conquista ou vitória militar, em que, para não perder a vida, os vencidos fazem um pacto de submissão, tornando-se servos do novo senhor67. Xxxx diverge de Xxxxxx nesse último caso, tendo em vista que, para ele, numa guerra o Estado vencedor não pode subjugar os vencidos e torná-los servos68. Portanto, para Xxxx a força precede o Direito somente na fundação do Estado e não na incorporação de um Estado por outros através do mecanismo da guerra.
Ao dizermos que em Kant a força precede o Direito, é conveniente fazermos menção a Xxxx, o qual está bem próximo de Kant nesse aspecto. Crítico do contratualismo, Xxxx afirma que, primitivamente, é muito provável que os governos tenham nascido de
66 Cf. MS, AA 06: 318-19. Em Kant, toda mudança na constituição deve ocorrer por um processo de reformas graduais, promovidas pelo próprio soberano e nunca por revolução. Colocar em questão a origem do poder significaria tocar na questão da legitimidade, e assim abrir espaço para possíveis descontentamentos e revoltas, o que ocasionaria, fatalmente, a dissolução do Estado. Portanto, ainda que os Estados de seu tempo fossem despóticos em sua maioria, devia-se esperar que o soberano fizesse as reformas necessárias em direção à Constituição republicana, cabendo ao súdito, como único direito, a liberdade de pluma, isto é, a liberdade de manifestar publicamente sua opinião sobre o que nos decretos do soberano lhe parecesse uma injustiça a respeito da comunidade, mas devendo esta liberdade ser expressa apenas com a autorização do próprio soberano. Cf. TP, AA 08: 304.
67 Cf. HOBBES, 1998, XX, 1-15.
68 O Estado vencido numa guerra não deve ser rebaixado à colônia, nem seu povo à condição de servo, pois isso tornaria a guerra um evento punitivo, o que seria contraditório no estado de natureza, já que para isso precisaria haver um superior e um subordinado. Ao mesmo tempo, não pode ser uma guerra de extermínio ou subjugação, porque a ideia do direito das gentes envolve tão- somente o direito de um antagonismo para conservar o que é seu, segundo os princípios da liberdade externa, mas não envolve um modo de aquisição cujo resultado gere um acréscimo de poder, aumentando assim a ameaça para outros Estados. É permitido impor, ao inimigo vencido, fornecimentos e contribuições, mas não saquear o povo (o que constituiria um roubo, já que não foi o povo vencido quem fez a guerra, mas o Estado sob cuja autoridade o povo se encontrava), devendo-se emitir recibo de tudo o que fora requisitado. Portanto, após a guerra um povo deve manter sua soberania, já que ele tem sua própria Constituição e território e os que pertencem a outro Estado são estrangeiros. Cf. MS, AA 06: 347-49.
certo consentimento, já que as sociedades permaneciam pequenas. Assim, aquele que conseguia sobressair-se ao liderar uma guerra acabava sendo escolhido para governar, porém seu governo era regido mais pela persuasão que pela força, tendo em vista que havia certa igualdade de forças entre os homens, já que não haviam ainda desenvolvido as frotas e os grandes exércitos que derivam da autoridade do governo civil69. Contudo, ao olhar para os governos civilmente constituídos de seu tempo, Xxxx constata que, em sua grande maioria, foram originados pela violência, tal como a usurpação ou a conquista. Nos casos raros em que parece ter havido consentimento, fora um evento deveras limitado e mesclado com fraude e violência, que dificilmente se poderia falar em livre consentimento. E mesmo após a criação do Estado sua administração seguia sendo sustentada pelo poder e pela violência e era aceita pelo povo por uma questão de sobrevivência. Xxxxxx, não havia, por parte do povo, qualquer consciência de que a autoridade estivesse fundada no seu consentimento70. Portanto, a crítica de Xxxx ao contratualismo é uma crítica a partir do facto e não do Direito, isto é, parte da experiência para daí deduzir que a noção de contrato não passa de uma ilusão, tendo em vista o desenvolvimento da história. A história mostra que normalmente o poder é instituído e mantido pela violência, estando o povo basicamente alheio a todo esse processo.
Sua crítica faz sentido se consideramos a tese de Derathé de que haveria em Hobbes e Xxxxx certa confusão entre o contrato sendo tomado como fundamento e como origem do Estado. Contudo, observando atentamente, o objetivo desses autores não é descrever a história, pois estão tratando de teorias filosóficas. Assim, o fato de que tenha havido ou haja, de facto, um estado de natureza, em nada diminui a exigência de uma fundamentação racional para a criação do Estado. Portanto, ainda que a teoria tenha ligações com a história, sua validade não depende desta. Ela tem relevância teórica por si própria. Assim, a partir da teoria, pode-se criticar a história e verificar se as bases que criam e sustentam o Estado são racionalmente legítimas ou não, como transparece claramente na teoria de Xxxxx no tocante ao direito de resistência, que é considerado legítimo sempre que o Estado se afasta do objetivo a que fora instituído e age de forma arbitrária sobre o povo.
69 Cf. XXXX, 1987, 254.
70 Cf. XXXX, 1987, 255-58.
Porém este não é um problema para Xxxx e Xxxxxx já que ambos não contemplam tal direito em suas teorias.
Embora a questão origem do Estado não seja um problema para Xxxx, para Xxxxx é um elemento central do seu contratualismo, afinal, é o contrato o único meio que dá legitimidade ao Estado. Abrir mão dele significaria tornar factível a violação dos direitos fundamentais. Por isso, o Estado lockeano é um Estado mínimo que precisa estar legitimado pela vontade dos próprios indivíduos, já que ele existe como um meio para os fins particulares. Ele deve possuir o poder mínimo e suficiente para preservar a vida, liberdade e bens. Daí que faz todo sentido que o direito de resistência seja um direito fundamental assegurado por Xxxxx. Como observamos, quando o Estado não cumpre sua função e apossa-se da propriedade do povo, ou mesmo utiliza-se do poder arbitrariamente, coloca-se num estado de guerra contra o próprio povo, ficando este dispensado de qualquer obediência71. Por isso, diferentemente de Xxxxxx e Xxxx, em Xxxxx a soberania é do indivíduo e não do Estado, de modo que, o poder que este último detém, deve ser apenas suficiente para proteger os direitos naturais inalienáveis.
Portanto, o que mede o poder de um soberano é o grau de liberdade que renunciamos em favor dele. Em Xxxx e em Hobbes esta renúncia é total, não sobrando praticamente nada ao indivíduo, a não ser, no caso de Xxxxxx, o direito de defesa da própria vida. Já em Xxxxx o âmbito da liberdade é bem maior, tratando-se de salvaguardar os bens, a vida e a liberdade, além de que, o soberano é o próprio povo, representado pelo legislativo. Aliás, conforme comenta Xxxxxx, a propriedade é a condição para que o indivíduo manifeste a sua liberdade e assim não seja impedido em suas iniciativas. Contudo, na interpretação de Xxxxxx, o indivíduo lockeano acaba reduzindo-se a um ser econômico, e a função do Estado centra-se em restabelecer, por meio da força, o equilíbrio entre as liberdades, de modo que o fim do Estado se resolve no fim do indivíduo e não subordina este à finalidade daquele. Deste modo, o liberalismo de Xxxxx não pode transcender o empirismo de sua promessa psicológica e condena a vida política a permanecer numa condição permanente de instabilidade e precariedade72. Em outros termos, faltaria ao Estado lockeano um sentido de unidade que transcendesse a simples junção dos interesses particulares, isto é, a ideia de um todo que represente mais que a soma das partes. Mas, para se
71 Cf. XXXXX, 1994, XIX, 222.
72 Cf. SOLARI, 1988, 54-56.
chegar a esta concepção, é preciso desviar-se das pegadas do liberalismo e pegar a rota do republicanismo, onde encontramos, no Estado rousseauniano, a expressão desta unidade, que é política e também moral.
1.4. O contratualismo de Xxxxxxxx
Xxxxxxxx não desenvolve sua teoria do contrato à maneira clássica dicotômica (estado de natureza - Estado civil), mas de forma tricotômica (estado de natureza - sociedade civil - República), tendo em vista que na sociedade civil já existe poder legalmente constituído, ainda que seja oriundo de um contrato espúrio, forjado pelos ricos para sedimentar seu jugo sobre os pobres. Porém, esta ordem civil acabará por entrar em colapso devido aos vícios, às paixões e às desigualdades artificiais, tornando assim necessário o surgimento de uma nova ordem (a República), com instituições que visem ao bem comum e um humano moralmente regenerado.
i. O estado de natureza
Por estado de natureza Xxxxxxxx entende aquela condição de pureza original, em que o humano vivia em completa união com toda a natureza, isolado dos demais (com relações esporádicas), independente e autossuficiente (autarquia). Não havia ainda desenvolvido a razão, paixões e nem vícios, de modo que não possuía ainda um senso moral de bem ou mal, assim como suas necessidades permaneciam num nível biológico fundamental.73 Nesse estágio primário da humanidade, aquilo que na sociedade moderna é conhecido por direito natural74 é representado pela piedade, um sentimento natural que nos faz ir ao socorro dos demais, ao mesmo tempo em que modera o amor de si,
73 Cf. XXXXXXXX, 1999a, 75.
74 Xxxxxxx Xxxxxxx, há duas espécies de direito natural em Rousseau: o primeiro é o direito natural primitivo do estado de natureza, anterior à razão, do qual os animais também participam na qualidade de seres sensíveis e que está fundado nos impulsos primitivos, que são o instinto de autoconservação e a piedade; o segundo manifesta-se no homem socializado, que tem a razão desenvolvida, e é compreendido como direito racional. Cf. DERATHÉ, 2009, 250-53.
sentimento este que nos impele a buscar a autoconservação75 sem que precisemos causar dano aos outros. Além disso, o homem natural é também dotado da perfectibilidade, isto é, a faculdade de autoaperfeiçoamento, a qual é responsável por tirar-lhe da condição original, fazendo com que, através dos séculos, desabrochem suas luzes e erros, vícios e virtudes, sendo ela a principal fonte dos males76.
Partindo deste humano no estado puro até chegarmos à sociedade moderna, marcada pelo desenvolvimento da razão, vícios e desigualdades, há um longo processo. Em sendo os humanos naturalmente desprovidos de inclinação social e vivendo dispersivamente, não tinham necessidade uns dos outros. Era preciso então que as circunstâncias os coagisse a se reunirem. A providência, através das catástrofes naturais, alterações climáticas, esterilidade do solo, obrigou-os a abandonarem seus lugares de origem e a reunirem-se em lugares mais favoráveis a fim de auxiliarem-se mutuamente para sobreviver77. Portanto, foi a necessidade que tornou os humanos sociáveis e desenvolveu a sociabilidade que era apenas um potencial no estado de natureza.
Resumidamente, entre o estado primitivo e o social decorreram centenas de séculos, cuja etapa intermediária é a idade de ouro, na qual os homens gradativamente passaram a viver juntos, a desenvolver certa noção de propriedade, o comércio, os sentimentos, um idioma comum, as primeiras desigualdades naturais, a noção de civilidade78. Mas, com a invenção da metalurgia e da agricultura, produziu-se uma grande revolução, e, desde então, a desigualdade natural empregada no trabalho gerou a desigualdade artificial representada pela propriedade, e com ela todas as novas necessidades e vícios das sociedades civilizadas que foram intensificados pelo amor próprio. Com as desigualdades acentuadas, houve uma cisão entre ricos e pobres e com ela todo tipo de desordens e usurpações e a sociedade foi tomada por um estado de guerra, cujas paixões tornaram-se desenfreadas e os homens avarentos, ambiciosos e maus79.
75 Cf. XXXXXXXX, 1999a, 78-9. Contraposto ao amor de si está o amor próprio, um sentimento desenvolvido na sociedade e que é a causa de muitos males, já que leva cada um a dar mais apreço para si mesmo que aos outros.
76 Cf. XXXXXXXX, 1999a, 65.
77 Cf. XXXXXXXX, 1999c, IX, 294-5.
78 Cf. XXXXXXXX, 1999a, 92-3.
79 Cf. XXXXXXXX, 1999a, 94-8.
É nessas circunstâncias que os ricos propõem um pacto a fim de criarem um governo e colocar fim à situação de guerra generalizada. No entanto, a intenção subjacente era proteger suas propriedades e perpetuar a dominação sobre os mais pobres. E conseguiram ludibriá-los. Convenceram-nos de que seria conveniente que pactuassem e formassem uma sociedade política, de modo que os bens e a liberdade de cada um seriam preservados e todos teriam segurança. Contudo, os ricos foram os melhores beneficiados, já que privaram os pobres da única coisa que lhes restava: a liberdade. Nos termos de Xxxxxxxx,
[...] destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria80.
Este foi um contrato ilegítimo, criado para justificar o domínio dos ricos, tornando a desigualdade legitimada pela lei, e a liberdade natural, tão apreciada no estado de natureza, vê-se agora nos grilhões da nova sociedade. O sonho de que a igualdade e a liberdade seriam garantidas pela lei sucumbe ao gradativo despotismo e ao domínio da força, na medida em que a lei injusta e corrompida em sua origem, passa a ser um instrumento a serviço dos ricos.
Seja qual for a forma que assuma esse estado corrompido (monárquico, aristocrático ou democrático), ele irá degenerar, devido às instituições formadas por homens corruptos e ambiciosos, que buscam apenas poder, reconhecimento e riqueza (esta, para comprar todo o resto)81. E a degeneração chegará a tal ponto em que se cairá definitivamente no despotismo, sendo o povo, as leis e os costumes, esmagados sob os pés do tirano. Chegados a este ponto, estaremos no último degrau da desigualdade, não restando ao povo senão a mais cega obediência a um soberano guiado apenas por suas paixões. Assim, desfaz-se o contrato e cai-se num novo estado de natureza, porém agora diverso daquele primitivo e puro, já que será marcado pela força e pela violência82. Embora Xxxxxxxx não dê muitos detalhes deste estado de natureza, no entender de Xxxxxxxxx trata-se de um estado que surge no final de um processo degenerativo da sociedade, marcado pela
80 XXXXXXXX, 1999a, 100.
81 Cf. XXXXXXXX, 1999a, 110-11.
82 Cf. XXXXXXXX, 1999a, 113.
corrupção, luta por poder, guerra, amor próprio exacerbado e por um perfil de ser humano que se deixou dominar pelas mais diversas paixões. Um estado em que o homem se aproxima muito da condição do estado de natureza hobbesiano83.
Em síntese, a hipótese de Xxxxxxxx é a de que, se não houver uma regeneração no âmbito pessoal e institucional, fatalmente a sociedade cairá nesse estado de degeneração novamente. Daí a necessidade de se estabelecer um novo contrato para uma nova sociedade, que será habitada por um novo homem, o qual, por estar imbuído da virtude cidadã, não cairá nos velhos vícios. Por isso, segundo Xxxxxxxx, a república que o Contrato social visa criar, precisa ser compreendida em unidade com o Xxxxxx, de modo que o cidadão que dela fará parte ainda está para nascer. Ambas são realidades idealizadas por Rousseau84. De fato, se atentamos para o conceito de vontade geral, fica evidente que o cidadão que escolhe o bem comum precisa ser virtuoso e colocar o bem público acima do privado, o que em tese contraria nossas intuições mais imediatas de como normalmente ocorrem as escolhas na política.
Faremos agora umas breves considerações acerca do estado de natureza em Rousseau. Em primeiro lugar, é importante notar que Xxxxxxxx trabalha em dois níveis: o histórico e o teórico. Esta descrição que acabamos de fazer é uma história hipotética, segundo a qual se pensa uma mudança gradual e quantitativa do estado natural ao social, culminando com o contrato espúrio. Já no plano teórico há uma mudança imediata e qualitativa da sociedade corrompida à verdadeira República por meio do contrato85. Contudo, divergindo dos demais contratualistas, aquilo que em Xxxxxxxx gera a necessidade da República não é o estado natural, mas a sociedade corrompida. A crise que pede uma resolução para que haja justiça distributiva é a crise da sociedade civilmente constituída. Não obstante, embora Xxxxxxxx chegue a falar na possiblidade de se cair num estado de natureza degenerado posterior ao contrato espúrio, não chega a teorizar sobre tal estado, afinal o problema que Xxxxxxxx precisa resolver é criado pela própria sociedade já civilizada. Ainda que após o contrato espúrio se chegue a um estado de injustiça generalizada e se caia num estado de natureza bélico, tal estado é apenas expressão de uma sociedade decaída
83 Cf. SANTILLÁN, 1988, 80.
84 Cf. XXXXXXXX, 2007, 149.
85 Cf. SANTILLÁN, 1988, 69-70.
moralmente. Portanto, se houvesse um novo pacto, muito provavelmente os erros se repetiriam. Em outros termos (e ratificando Xxxxxxxx), Xxxxxxxx deixa subentendido que só haverá uma nova sociedade se houver um novo homem, um necessita do outro para poder concretizar- se.
Curiosamente, assim como Xxxxxxxx, Xxxx também trabalha em dois níveis. Numa perspectiva histórico-antropológica86 Xxxx praticamente repete Xxxxxxxx em muitos aspectos, mostrando que o desenvolvimento de nossas disposições originárias decorre de um longo processo evolutivo, passando por três estágios, sendo que, no primeiro deles, o homem vivia em unidade com a natureza, num estado de inocência, em que era guiado apenas pelo instinto. Num determinado momento (segundo estágio), abandona a tutela da natureza e passa a desenvolver a razão, e com ela surge a liberdade e a queda, gerando assim, além da cultura, muitos vícios e as mais diversas paixões, havendo assim uma corrupção na natureza humana. Desse modo, surge uma contradição entre uma natureza pura originária e os males da sociedade desenvolvida. Finalmente (terceiro estágio) há uma reconciliação entre sociedade e natureza, já que as condições jurídicas do estado Republicano permitem que o homem tenha confiança nas leis e gradativamente possa desenvolver também a virtude na observância das mesmas, embora esta última não lhe possa ser exigida pelo Direito. E assim, o homem poderá expressar uma natureza humana reconciliada e em consonância com a razão prática, podendo desenvolver mais plenamente as disposições originárias que estavam ínsitas em sua natureza desde o estágio primitivo87. Portanto, a caracterização do homem natural, bem como o desenvolvimento de suas disposições originárias culminando com a socialização, demonstra um processo muito similar entre os dois autores. Em ambos há uma contraposição entre o estado primitivo e a corrupção da sociedade. Contudo, há uma diferença fundamental entre as duas teorias: enquanto que Xxxxxxxx explica a passagem do estado de natureza ao civil por meio de um contrato espúrio, Xxxx não faz referência a qualquer contrato. O Estado surge pela violência, em que um usurpador se estabelece como soberano no momento em que une uma multidão selvagem em um povo88. Por outro lado, numa perspectiva racional (prática), veremos que há uma
86 Faremos uma descrição mais completa desta perspectiva no capítulo terceiro.
87 Cf. MAM, AA 08: 109-123.
88 Cf. ZeF, AA 08: 371.
diferença entre Xxxx e Xxxxxxxx, tendo em vista que o contrato para Xxxx é um conceito regulador, já em Xxxxxxxx é constitutivo.
Em segundo lugar, o estado natural em Rousseau não pode ser confundido com o estado de guerra ou com o Estado civilizado. De fato, Xxxxxxxx acusa Xxxxxx e os filósofos89 de terem transferido para o homem natural uma gama de paixões que são próprias do Estado civilizado. O homem natural não é mau, diz Xxxxxxxx, porque não sabe o que é ser bom, já que vive na tranquilidade das paixões e ainda não desenvolveu as luzes da razão90. Ele não tem necessidade da guerra, pois o outro não constitui uma ameaça, seja porque a natureza dispõe de recursos fundamentais para todos, seja porque, desprovido de paixões, vive uma profunda indiferença, almejando apenas o repouso e a ociosidade91. A este respeito, com precisão Bovero aponta que o conceito de homem natural não representa a vida primitiva dos selvagens, mas um tipo ideal, a ideia de uma humanidade incorrupta e contraposta à corrupção presente na sociedade civil92.
Como terceiro ponto ressaltamos que, com perda da inocência primitiva e o desenvolvimento das paixões, houve uma degeneração no homem. Não obstante ele obteve ganhos com isso, como é o caso do desenvolvimento da razão e da consciência moral, disposições essas que estavam potencialmente presentes em sua natureza. Desse desenvolvimento decorre que não é mais possível voltar àquele estado primordial, já que o homem perdera a inocência originária, além de que isso implicaria uma regressão na natureza humana, o que seria improvável em termos antropológicos. Por isso, a saída para Xxxxxxxx será regenerar o humano de acordo com certa ordem natural tornando-o assim tão feliz quanto era no estado originário; ao mesmo tempo, transformar a injustiça da sociedade em justiça por meio de um novo contrato.
89 A respeito dos filósofos (supostamente os contratualistas) ele diz: “Enfim, todos, falando incessantemente da necessidade, avidez, opressão, desejo e orgulho, transportam para o estado de natureza ideias que tinham adquirido em sociedade; falavam do homem selvagem e descreviam o homem civil”. XXXXXXXX, 1999a, 52.
90 Cf. XXXXXXXX, 1999a, 76.
91 Cf. XXXXXXXX, 1999a, 114.
92 Cf. XXXXXX, 0000, 131-32.
ii. O contrato de união
O contrato visa restabelecer a condição de igualdade e liberdade que havia sido perdida. Como observa Xxxxxxxx, “o objetivo do contrato social, é, ao contrário, dar sentido a uma associação que não seja fundada nem sobre a força nem sobre a astúcia, mas sobre um interesse verdadeiramente comum”93. Trata-se de um pacto em que cada um faz com todos a fim de criarem uma forma de associação que defenda a pessoa e os bens de cada associado, de modo que “[...] cada um, unindo- se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes”94. Assim, continua Xxxxxxxx, “[...] cada um dando-se a todos não se dá a ninguém [...]”95. A alienação da força e bens de cada membro é total à comunidade, porém como a condição é igual para todos, ninguém a torna onerosa aos demais, havendo assim uma igualdade jurídica em direitos e deveres entre todos os cidadãos.
A nova República é considerada justa porque está fundada na ideia de autonomia, segundo a qual a lei provém da vontade geral de cada cidadão. Em sendo seu próprio legislador, ninguém faria injustiça consigo. Neste sentido, cada um seria, ao mesmo tempo, soberano e súdito. Isso quer dizer que “[...] cada indivíduo, contratando, por assim dizer, consigo mesmo, se compromete numa dupla relação: como membro do soberano em relação aos particulares, e como membro do Estado em relação ao soberano”96. Disso decorre que a liberdade consistirá em seguir a lei que cada um se dá enquanto cidadão. Ao mesmo tempo, todos serão iguais perante a lei, já que, para o novo corpo coletivo, cada um vale tanto quanto qualquer outro, independente de quaisquer condições. Portanto, o ganho que se tem com o contrato é uma liberdade fundada na autonomia e uma igualdade entre todos, seja enquanto súditos, seja enquanto cidadãos, já que a lei provém da vontade autônoma (vontade geral) e é aplicada a todos indistintamente, sem exceções.
Com o pacto, a soberania permanece de posse do corpo de cidadãos que vota para aprovar as leis, as quais devem expressar um interesse comum, uma vez que são “atos da vontade geral97” e não mais
93 FOISNEAU, 2009, 144.
94 XXXXXXXX, 0000x, X, XX, 00-00.
00 XXXXXXXX, 0000x, X, XX, 00.
96 XXXXXXXX, 1999b, I, VII, 73.
97 Acerca da vontade geral gostaríamos de apontar duas breves questões: a primeira é que Xxxxxxxx pensa ser possível encontrar uma vontade comum
atos das vontades arbitrárias de indivíduos ou grupos. Por isso, as leis devem ser sempre gerais e abstratas, no sentido de que não se dirigem a indivíduos específicos, nem prescrevem ações particulares98. Xxxxxxxx contrapõe esta vontade à vontade particular de cada um e à vontade de todos, já que ambas estariam ligadas ao interesse privado. Notemos, porém, que o interesse comum não se refere a um interesse altruísta em que cada um pensaria no bem do outro; nem mesmo a um interesse egoísta que levaria à exclusão do outro, mas a um interesse que beneficia cada indivíduo em particular, perpassando assim todos os concernidos. Todos são beneficiados quando as leis são elaboradas em concordância com o interesse comum. Derathé ressalta que devemos ter o cuidado para não considerar a vontade geral como uma consciência coletiva que exerce pressão desde fora no sujeito. Trata-se muito mais de um interesse que pertence a todo cidadão, de modo que, consagrando-se ao bem público, estará ajudando no bem de si próprio. Dessa forma, o interesse público não pode ser interpretado no sentido de ser diferente do interesse individual99.
Assim como em Xxxxx, em Xxxxxxxx só há o contrato de união e a assembleia é soberana em todas as questões. Como em Hobbes, seu poder é absoluto, indivisível e intransferível. Porém, diferente de Xxxxxx a soberania pertence ao corpo dos cidadãos e não a um soberano a quem se delega o poder, de modo que Xxxxxxxx não admite nenhum pacto de submissão, já que alienar a vontade pública significaria alienar a própria liberdade. Portanto, a única forma válida de Estado é a República, que corresponde à democracia direta, não sendo aceitável nenhuma forma de representação. Quanto ao executivo, ele é estabelecido pela vontade geral, sendo um corpo intermediário entre o soberano e os súditos. Ele é expressão da força pública e nada faz sem o concurso do legislativo100. Seus atos são sempre particulares e tratam da
mesmo quando interesses tão antagônicos como os de ordem econômica e social estão em questão, o que parece ter-se provado falso em nosso sistema capitalista, o qual conduz cada vez mais à polarização entre ricos e pobres. A segunda é que, mesmo se isso fosse possível, a operacionalização do processo é bastante limitada, uma vez que Xxxxxxxx não admite nenhuma forma de debate, devendo uma lei ser apenas consentida ou rejeitada pela assembleia.
98 “Quando digo que o objeto das leis é sempre geral, por isso entendo que a lei considera os súditos como corpo e as ações como abstratas, e jamais um homem como um indivíduo ou uma ação particular”. XXXXXXXX, 1999b, II, VI, 107. 99 Cf. DERATHÉ, 2009, 349.
100 Cf. XXXXXXXX, 1999b, I, III, 135.
aplicação da lei. Em outros termos, para Xxxxxxxx o executivo é apenas um órgão de aplicação da lei (já que o legislativo trata somente de objetos gerais); é escolhido pelo legislativo101; possui a força, mas não a vontade e por isso está totalmente sob a orientação da assembleia, de tal forma que sempre no início de cada reunião o legislativo indaga os cidadãos acerca de duas questões: a primeira é se apraz ou não ao povo manter aquela forma de governo; a segunda é se apraz ao povo deixar a administração aos que se encontram atualmente encarregados dela102. Em outros termos, Xxxxxxxx constrói um sistema que permite ao povo ter o controle da lei, bem como da sua execução, de forma que o resultado final do processo político esteja o máximo possível em consonância com o interesse comum.
iii. Conectando os pontos
Notemos que na teoria de Xxxxxxxx há uma grande novidade em relação a Xxxxx e Xxxxxx, que é a ideia e um eu comum, uma unidade coletiva de vontades, expressa pela ideia de vontade geral e que representa o homem enquanto cidadão. Ao mesmo tempo, enquanto vontade particular este homem é considerado como súdito. Curiosamente, se prestamos atenção à formulação do contrato, percebemos que o pacto não é feito em forma de agregação103 entre os indivíduos particulares, em que cada um pactua com cada um individualmente (como em Locke e Hobbes), mas em forma de associação (convenção) entre o indivíduo e o corpo coletivo, corpo este que manifesta o lado cidadão de cada membro da república. Em última
101 A instituição do executivo pelo legislativo é um problema que a teoria de Xxxxxxxx enfrenta, pois o legislativo não poderia instituir o governo, já que este seria um ato particular e o legislativo não realiza atos particulares. A saída de Xxxxxxxx é dizer que, no momento da criação do governo, faz-se uma súbita conversão da soberania em democracia (o povo torna-se magistrado, príncipe), e assim o povo pode escolher o governo por maioria, passando da lei à exceção. Xxxxxxxx cita como exemplo o caso do parlamento na Inglaterra em que a baixa câmara em certas ocasiões se transforma numa grande comissão para discutir os negócios do Estado, passando, provisoriamente, de corte soberana a simples comissão. Cf. XXXXXXXX, 1999b, III, XVII, 193.
102 Cf. XXXXXXXX, 1999b, III, XVIII, 196.
103 Cf. XXXXXXXX, 0000x, X, X, 00-0.
instância, o pacto seria do indivíduo consigo mesmo104, de modo que, não haveria alienação da vontade, tendo em vista que o indivíduo, compreendido enquanto cidadão é parte do corpo soberano de cidadãos. Neste sentido, o pacto pressupõe que já existe uma união de vontades anterior à sua realização, o que pareceria contraditório, já que é este quem dá origem à vontade geral. Desse modo, para que a vontade particular pudesse contratar com o corpo coletivo, seria preciso que este já estivesse formado antecipadamente, o que é logicamente improcedente.
Contudo, o contrato em Xxxxxxxx não é agregativo (cada um com cada um), mas associativo, (cada um com todos). Isso significa que a formação de uma vontade comum, assim como a própria fundação do Estado, são atos simultâneos. Embora isso possa acarretar problemas lógicos, na prática Xxxxxxxx visa criar um artifício para evitar os absurdos da tirania e a perda da liberdade por parte do povo, já que, ao pactuar consigo mesmo, o indivíduo não transfere a ninguém o próprio poder e torna-se autor da própria lei. Não obstante, a liberdade está sob a coordenação da vontade geral, de modo que quem se recusar a obedecer- lhe será constrangido por todo o corpo político105.
De forma correta observa De Federicis que, embora a condição do pacto em Xxxxxxxx pareça similar à de Xxxxx e Xxxxxx, há uma mudança no conteúdo, já que não se trata de uma simples agregação de vontades particulares, mas da formação de um bem público, o qual tem o primado sobre a dimensão privada, garantindo assim a estabilidade do Estado106. Por isso, pode-se dizer que a união criada pelo contrato é qualitativamente superior à soma das partes, tendo em vista que o que as une é o sentido de bem público. Um pacto baseado em interesses privados perde facilmente a estabilidade, pois, quando o motivo pelo qual o Estado fora instituído é suprimido, já não existem mais razões para se manter a ordem civil. Não obstante, quando os pactos são norteados por um interesse comum, tornam-se mais sólidos, já que todos os concernidos tem razões comuns para mantê-los. Este sentido de coisa
104 “[...] o ato de associação compreende um compromisso recíproco entre o público e os particulares, e que cada indivíduo, contratando, por assim dizer, consigo mesmo, se compromete numa dupla relação: como membro do soberano em relação aos particulares, e como membro do Estado em relação ao soberano”. XXXXXXXX, 1999b, I, VII, 73. Conferir também DERATHÉ, 2009, 330.
105 Cf. XXXXXXXX, 1999b, I, VII, 75.
106 Cf. DE FEDERICIS, 2005, 55.
pública é o que permite à ordem civil superar o aspecto utilitário presente nas teorias de Xxxxx e Xxxxxx, pois não visa a uma maximização dos interesses particulares, mas constrói uma ordem política conforme às exigências da justiça e da razão.
Embora o interesse comum deva nortear a República, quando indagamos: por que existe o Estado?, juntamente com esta questão surge aquela da utilidade. Num olhar atento ao texto, percebe-se que o indivíduo em Xxxxxxxx tem interesses em criar o Estado tal como em Xxxxx e Xxxxxx. De fato Xxxxxxxx afirma que a República visa “[...] proteger a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes”107. Na introdução do primeiro livro, ao indagar se pode haver uma regra legítima e segura de administração civil ele diz: “esforçar-me-ei, sempre, nessa procura, para unir o que o Direito permite ao que o interesse prescreve, a fim de que não fiquem separadas a justiça e a utilidade108. Em outros termos, Xxxxxxxx parece estar propondo que só a justiça ou só a utilidade separadas não bastam, mas é preciso haver uma união das duas. E a forma de equacionar isso é a partir da autonomia, fundando o Estado na lei da vontade geral, a qual é sempre justa. Estando bem fundado o Direito, certamente que a utilidade também estará garantida, isto é, os bens, a vida e a liberdade. Desse modo, a utilidade é sempre dependente do Direito (vontade geral). É a soberania do povo que constitui a garantia dos direitos individuais, pois, conforme Xxxxxxxx, “[...] só a força do Estado faz a liberdade de seus membros”109. Em outros termos, os interesses particulares só podem ser mantidos na medida em que estão submetidos à vontade geral, a qual é qualitativamente superior à soma das partes. Xxxxxxxx aponta que ela seria uma vontade justa, pois sendo o seu objeto geral, não oneraria mais a uns do que a outros. Assim, se o indivíduo estiver sincronizado com o todo, certamente não lhe faltará nada. Este é o espírito de seu republicanismo, o qual exige certo grau de civismo, distinguindo-se assim dos modelos liberais que buscam fazer do Estado apenas um meio para a realização de fins particulares110.
107 XXXXXXXX, 1999b, I, VI, 69.
108 Cf. XXXXXXXX, 1999b, I, Preâmbulo, 51.
109 XXXXXXXX, 1999b, II, XII, 131.
110 Há uma ampla discussão se a teoria de Xxxxxxxx sacrifica ou não os direitos individuais em favor do absolutismo do Estado. Muitos o acusaram de ser o iniciador de uma doutrina tirânica, em que a liberdade estaria ameaçada pelo
Se olharmos agora para o modelo de Estado kantiano, perceberemos que nem mais a utilidade permanece, restando apenas o Direito. É no tocante a este aspecto que Xxxx e Xxxxxxxx se aproximam, já que, para ambos, a ideia de uma vontade pública permite pensar o Estado fundado na razão. Porém, em Kant o Direito racional que já está presente no estado de natureza é o direito enquanto ideia111, o qual terá
poder absoluto da assembleia, como é o caso de B. Constant entre os primeiros. Por outro lado, Xxxxxxx mostra que em Xxxxxxxx não haveria uma verdadeira alienação dos direitos, mas uma conversão dos direitos naturais em civis. O soberano rousseauniano seria um juiz razoável e equitativo, procurando onerar o mínimo e dar o máximo de liberdade aos súditos. Cf. DERATHÉ, 2009, 498-
501. Nesta mesma linha, Xxxxxx sugere que haveria em Xxxxxxxx um liberalismo ético e não um absolutismo democrático. Ele reconhece que há a formação de um corpo moral público distinto da vontade dos indivíduos, porém esta vontade pública estaria a favor e não contra os indivíduos. Por meio da vontade geral, os direitos do homem se purificariam do particularismo e do naturalismo para adquirirem uma forma mais perfeita. Neste sentido, o absolutismo seria apenas a condição para o liberalismo. Cf. SOLARI, 1988, 65-6. De nosso ponto de vista não haveria uma simples conversão de direitos de naturais em civis, já que a vontade geral detém poderes absolutos para estabelecer direitos e deveres, mas também seria forçoso afirmar que ela se tornaria necessariamente tirânica, tendo em vista que a lei provém da autonomia dos próprios cidadãos. Teoricamente Xxxxxxxx tenta munir-se contra a tirania da assembleia por meio do conteúdo comum das leis. Contudo, na prática política há sempre o risco de que ela se torne tirânica. Tudo depende de como esta vontade é respaldada nas leis. Considerando que as classes econômicas e sociais têm interesses distintos, é provável que poucas leis manifestem um interesse comum. Isso seria mais provável de verificar-se em pequenos Estados, com baixos níveis de desigualdades socioeconômicas, mas mais difícil em sociedades complexas ou com acentuadas desigualdades. Além disso, sob o ponto de vista da formação das leis, há sempre o risco de que interesses de grupos privados acabem se impondo sobre vontade geral, até porque, a assembleia não discute as leis, apenas vota. O fato também de não haver lei fundamental que não possa ser revogada pela assembleia, dá a esta poderes absolutos, tornando assim o Estado constitucionalmente inseguro, podendo a qualquer momento ser corrompido pelo calor das paixões ou pelos interesses privados.
111 O Direito enquanto expressão dos princípios racionais a priori não se confunde com a experiência, configurando-se como o ideal de um Estado republicano que está fundado na ideia de um contrato originário, cujas leis são reguladas pela ideia de uma vontade unida do povo a priori. Porém, para que esta ideia de Estado se manifeste empiricamente, ela precisa de uma vontade enquanto ato (Direito positivado), isto é, uma Constituição que dê unidade ao
um caráter normativo. Assim, a Constituição republicana está baseada em princípios a priori do Direito externo, tais como a liberdade jurídica, a igualdade jurídica e a independência civil, Constituição essa que é a única que deriva da ideia do contrato originário, o qual deve ser fundamento para toda legislação jurídica112, já que a lei deste estado ideal deve proceder da vontade unida do povo. Esta, por ser um conceito regulador, nunca é expressa plenamente numa lei positivada. Assim também, a criação do Estado, não visa nenhuma utilidade, já que toda construção Kantiana intenta resolver um problema interno da razão gerado pela falta de um poder coercitivo no estado de natureza113. Portanto, com Xxxx temos um afastamento definitivo da utilidade, enquanto que Xxxxxxxx fica a meio caminho, embora submetendo a utilidade ao Direito. Por isso que a razão em Xxxxxxxx não é pura.
Mas qual seria o limite para o poder do Estado? Em Xxxxxxxx trata-se de um Estado absoluto. Contudo, segundo Xxxxxxx, precisamos ter cuidado para não confundir soberania absoluta com poderes ilimitados. A primeira significa apenas que não existem limites constitucionais para a soberania, porém isso não quer dizer que não haja limites para o poder do Estado114. De fato, investigando o texto de Xxxxxxxx, ele menciona dois critérios que limitariam o poder. O primeiro são as convenções gerais115, ou seja, trata-se do poder da vontade geral, promulgada em assembleia, a qual possui um objeto geral e abstrato, não devendo suposta assembleia legislar sobre questões particulares para não onerar mais a uns do que a outros e assim não ser injusta com ninguém. O segundo limite é a utilidade pública116, isto é, os súditos devem prestar contas de suas opiniões somente enquanto interessam à comunidade, como é o caso da religião civil. Aquelas que se referem à esfera pessoal, cada um pode mantê-las para si, já que se trata de questões puramente pessoais. Xxxxxxxx complementa dizendo que os cidadãos têm o dever de prestar serviços ao Estado desde que o soberano solicite, mas ele não pode onerar os súditos com qualquer coisa inútil, já que não se deve fazer nada sem motivos.
Estado e um poder efetivo com capacidades coercitivas. Cf. MS AA 06: 229;
311. Ver também COLOMER XXXXXX-XXXXXX, 1995, 203.
112 Cf. MS, AA 06: 314; Cf. ZeF, AA 08:349-50.
113 Cf. MS, AA 06: 307.
114 Cf. DERATHÉ, 2009, 489.
115 Cf. XXXXXXXX, 0000x, XX, XX, 00.
000 Cf. XXXXXXXX, 1999b, II, IV, 96.
Diferente de Xxxxxx em que o poder absoluto descansa nas mãos de um terceiro a quem os contratantes cedem, em Xxxxxxxx o poder permanece de posse dos cidadãos. Como observa Xxxxxxxxx, é a igualdade entre os cidadãos que justifica o caráter absoluto do poder117, de modo que ninguém está submetido senão à sua própria lei, o que permite a Xxxxxxxx acreditar que não haverá abusos na soberania, não sendo necessário um direito de resistência, já que ninguém, enquanto legislador faria injustiça consigo enquanto súdito.
Neste sentido, a república possibilitaria aos indivíduos viverem livremente numa condição de igualdade, sem a dependência da vontade de outrem, de modo que a lei seria proveniente de sua própria autonomia, a qual estaria fundada no princípio da vontade geral. Mas, para isso, diferente de Xxxxx e Xxxxxx em que a alienação é parcial, aliena-se tudo à comunidade: poder, vida, liberdade, bens. Contudo, ganha-se de volta o equivalente daquilo que se alienou, pois a comunidade fica somente com a parte que é comum, embora esta importância seja julgada pelo soberano, que é a própria assembleia. Por sinal, comenta Derathé, “[...] a alienação só é legítima porque ela se faz em benefício da comunidade inteira”118.
Critica-se comumente Xxxxxxxx por seu contratualismo afirmar apenas uma igualdade jurídica. Em sua defesa usa-se normalmente uma famosa citação em que ele afirma: “quanto à riqueza, que nenhum cidadão seja suficientemente opulento para poder comprar um outro e não haja nenhum tão pobre que se veja constrangido a vender-se”119. Poderíamos pensar que Xxxxxxxx julgava o processo político como ferramenta suficiente para reduzir as desigualdades econômicas. Contudo, no entender de Xxxxxxxx, a desigualdade econômica tem um papel secundário, já que a tarefa fundamental do Estado é substituir a desigualdade física pela igualdade jurídica e moral. Xxxxxx, a desigualdade na propriedade é um fato que o homem precisa aceitar, tal como a desigualdade das forças físicas. O Estado não é feito para promover o bem-estar, a felicidade (e nisso Xxxx repete Xxxxxxxx), mas garantir a mesma proporção em direitos e deveres a todos, de modo que ele só irá intervir na propriedade quando a desigualdade patrimonial colocar em risco a igualdade moral e jurídica dos súditos. Por isso, o que Xxxxxxxx combate não é a pobreza diretamente, mas a privação moral e
117 Cf. SANTILLÁN, 1988, 93.
118 DERATHÉ, 2009, 340.
119 XXXXXXXX, 1999b, II, XI, 127.
jurídica de direitos às pessoas distintamente tratadas em função de sua condição econômica ou social120. E isto já seria um grande avanço para uma época marcada por estamentos sociais e por uma aplicação diferenciada da lei entre ricos e pobres. Esse tipo de questão também está na pauta de Xxxx, o qual fora por vezes considerado representante da classe burguesa, ao afirmar que a igualdade jurídica seria compatível com a desigualdade na propriedade121. Mas Xxxx entende que as questões econômicas são questões ligadas ao âmbito privado, à felicidade e não ao âmbito do Direito, o qual se encarrega de regular apenas a forma da relação entre os arbítrios. Ao legislar sobre questões privadas, o Estado poderia até ser benevolente, mas seria um Estado paternalista, o qual é o mais despótico de todos, já que não permite que cada um busque a própria felicidade como lhe aprouver, desde que não cause danos à liberdade do outro122.
Quanto à liberdade, Xxxxxxxx e Xxxx também são convergentes. Para ambos, perde-se com o Estado a liberdade natural e sem lei, mas ganha-se a liberdade jurídica, proveniente da vontade pública e assim se obedece à sua própria lei. Em Xxxxxxxx, esta é a vontade geral, que se manifesta em cada lei geral aprovada pela assembleia. Em Kant, a vontade unida do povo, a qual é a priori, reguladora das ações e núcleo do contrato originário123. Em ambos a lei serve a um interesse comum e não a um privado.
Um aspecto que une Xxxxxxxx e os demais contratualistas é o aspecto constitutivo do contrato, o qual fundamenta e constitui a ordem civil. Já em Kant ele possui apenas a função de fundamento. Não está na origem do Estado, sendo antes uma ideia reguladora prática. À ideia de contrato cabe a orientação para que o Estado se constitua de acordo com os princípios do Direito e as leis expressem a vontade legisladora de todo o povo.
120 Cf. CASSIRER, 2007, 77-8.
121 Cf. TP, AA 08: 291.
122 Cf. TP, AA 08: 290-91; MS AA 06: 316-17.
123 Cf. TP, AA 08: 295.
2. DA RELAÇÃO ENTRE ÉTICA E DIREITO E O FUNDAMENTO DO DIREITO
Neste segundo capítulo, vamos esclarecer, num primeiro momento e no contexto do idealismo transcendental, o sentido da afirmação de Xxxx de que o contrato originário é uma ideia reguladora prática. Veremos que a assertiva de Xxxx funda-se num conceito de normatividade jurídica que precisa ser compreendido como parte da metafísica, pois, do contrário, o contrato poderia até mesmo expressar um ideal de consenso, mas não teria a força normativa (dever) que só a razão prática é capaz de impor. Isso requer ainda que esclareçamos, num segundo momento, como Xxxx pensa a relação entre Ética e Direito, já que a suposta relação tem implicações na definição do Direito e, consequentemente, na questão de sua analiticidade (terceiro momento). Será possível esclarecer se o Direito faz parte ou não do sistema da metafísica, isto é, se ele descende ou não da razão prática. A conclusão a que chegaremos é a de que, mesmo Xxxx afirmando que o princípio do Direito é analítico, ele precisa de um complemento sintético (a vontade unificada do povo), a fim de não correr o risco de ficar fora do sistema crítico, o que aponta para o caráter republicano do pensamento de Xxxx, o qual tem na vontade geral a fonte da qual emana todo o Direito.
2.1. O contrato e seu fundamento no idealismo transcendental
Em Teoria e práxis, Xxxx afirma que o contrato
[...] é uma simples ideia da razão, a qual tem no entanto a sua realidade (prática) indubitável: a saber, obriga todo o legislador a fornecer as suas leis como se elas pudessem emanar da vontade coletiva de um povo inteiro e a considerar todo o súdito, enquanto quer ser cidadão, como se ele tivesse assentido pelo seu sufrágio a semelhante vontade124.
Para uma melhor compreensão do sentido da afirmação de que o contrato é uma ideia com indubitável realidade prática é preciso fazer referência ao contexto do idealismo transcendental e verificar o uso das ideias, seja no aspecto teórico, seja no prático. No âmbito teórico, a partir da Primeira Crítica, com a sua “revolução copernicana” Xxxx reduziu todo o conhecimento à experiência possível, isto é, ao âmbito
124 TP, AA 08: 297.
fenomênico, evidenciando que nosso conhecimento só chega até onde as categorias do entendimento podem determinar um múltiplo de representações fornecido pela sensibilidade. Através das formas puras da sensibilidade (espaço e tempo), intuímos conteúdos (Erscheinung) que são submetidos às categorias do entendimento, e, através da espontaneidade deste, chegamos ao conhecimento dos fenômenos (Phaenomena), mas não à coisa em si. Esta última deve ser apenas pressuposta, mas nunca objeto de conhecimento, tendo em vista que dos objetos só temos acesso àquilo que aparece no fenômeno125.
Não obstante, quanto à razão, Xxxx admite um uso mais amplo que o do entendimento. Segundo ele, “[...] a razão é a faculdade da unidade das regras do entendimento sob princípios”126. De um ponto de vista geral, ela é a mais abrangente das faculdades, regulando e dando unidade ao entendimento. Ela é “a faculdade que dá as leis e regras que devem governar nossa conduta prática e nossas pesquisas teóricas”127. Por isso, aqui no âmbito teórico, cabe a ela sistematizar o conhecimento a partir de princípios (homogeneidade, especificação e continuidade), a fim de torná-lo inteligível, dando-lhe uma ordem que nos permita estabelecer relações entre os múltiplos objetos, a fim de que não tenhamos um agregado de informações sem sentido. Sua função é orientar o entendimento reguladoramente, dando aos seus conhecimentos uma unidade sistemática128. Por regulador entende-se aqui aquela função da ideia de ser uma regra de unidade da experiência. Isso significa que este é um uso apenas hipotético da razão, jamais podendo ser deduzido, a partir dele, um objeto que lhe corresponda no mundo dos fenômenos.
Mas Xxxx também se refere na razão teórica às ideias enquanto um sistema de ideias transcendentais a priori, as quais são unicamente três: alma, mundo e Deus. Elas são geradas pela própria razão ao tentar pensar a completude da série das condições dos objetos, a fim de atribuir um incondicionado a esta mesma série. Porém, considerando que todo conhecimento está limitado à experiência possível, uma totalidade absoluta das condições do fenômeno jamais pode ser dada enquanto um objeto de conhecimento. Desse modo, apresenta-se a nós um grande problema no âmbito teórico, já que a totalidade absoluta dos fenômenos
125 Cf. KrV, B75.
126 KrV, B359.
127 WOOD, 2008, p. 101.
128 Cf. XxX, X000.
é apenas uma ideia que a razão cria, mas da qual não é possível termos nenhuma intuição, não sendo possível determinar o seu objeto129. Tal realidade só poderá ser determinada no âmbito prático da razão.
Embora as ideias não possam ser deduzidas, como as categorias, por não ser possível atribuir-lhes qualquer objeto na experiência, elas precisam de algum tipo de justificação, a fim de não passarem de uma quimera. Por isso, o uso regulador cumpre esta função, pois possibilita que todo nosso conhecimento e nossa ação sejam realizados levando em consideração o condicional como se, isto é, como se o mundo fosse uma totalidade orgânica (mundo), como se houvesse uma razão originária criadora (Deus), como se houvesse uma substância pensante simples (alma). Em outros termos, as ideias nos impulsionam a procurar pelo incondicionado da série, mas sem que possamos ir além do que o regresso empírico nos permite, sendo muito mais um conceito regulador em direção ao qual nossa investigação tende no regresso empírico, mas sem que, em definitivo, possamos chegar ao conhecimento de seus respectivos objetos.
No sistema das ideias cosmológicas (mundo), Xxxx chega à conclusão de que, do ponto de vista teórico, seria pelo menos possível pensarmos a liberdade transcendental como um conceito não- contraditório, uma possibilidade lógica. Sendo nossa liberdade um conceito que pertence ao âmbito inteligível (coisa em si), nossas ações não teriam qualquer influência de causa empírica anterior no tempo, e dariam início a uma nova série a partir da espontaneidade absoluta de nossa razão. Esta liberdade não entraria em conflito com a causalidade natural, pois ela atua no plano inteligível, enquanto que, a natural, no fenomênico. Seriam dois planos correndo em paralelo, num mesmo fenômeno, sem que um interfira no outro. Assim, a causalidade da causa pensada a partir da liberdade seria considerada como absoluta, porém a ação deveria ser possível e incluída no encadeamento natural do mundo dos sentidos130.
Da liberdade transcendental, Xxxx deriva a liberdade prática, afirmando que esta última funda-se na primeira, de modo que “[...] a supressão da liberdade transcendental aniquilaria, concomitantemente, toda a liberdade prática”131, já que a transcendental nos permite pensar uma espontaneidade absoluta para as ações. Além de que, se houver
129 Cf. KrV, B383-4.
130 Cf. XxX, X000.
131 XxX, X000.
uma liberdade prática e se ela puder ser provada, será evidenciado que há no ser humano uma capacidade de sobrepor-se à lei natural e determinar-se pela própria razão. Isso porque, o ser humano possui um arbitrium liberum, o que nos permite pensar que, ao agir, pode sobrepor-se à coerção dos impulsos sensíveis. Este arbítrio é influenciado, mas não determinado pela sensibilidade, como é o caso dos animais que possuem um arbitrium brutum, o qual é patologicamente necessitado132.
É evidente que Xxxx não tem a pretensão de provar a liberdade aqui no âmbito teórico, devido aos limites da razão pura teórica, mas apenas afirmar sua possibilidade lógica, já que a “prova” definitiva só seria possível no âmbito prático. Por isso, quando Xxxx fala da liberdade prática na KrV, toma-a apenas como um postulado, tendo em vista a probabilidade da existência do dever e dos imperativos, os quais se sobrepõem à natureza e geram uma ordem própria. Embora Xxxx ensaie a “prova” no Cânon e na GMS, é somente na Segunda Crítica que ele faz a dedução e confirma a liberdade mediante a consciência da lei moral como se fosse um factum133, evidenciando que a razão prática obtém, por si só e independente da teórica, um conteúdo para a liberdade. Assim, a liberdade prática não é mais um conceito vazio, já que o factum, diferente do fato (Tatsache), é um elemento imediato a priori que expressa o mundo inteligível. Ele é a própria lei moral quando manifestada à consciência.
Assim, a liberdade é a ratio essendi da lei moral. É para nos tornar livres em relação aos impulsos da sensibilidade que a lei moral se impõe através da consciência do dever; por sua vez, a lei moral é a ratio cognoscendi da liberdade, ou seja, só reconhecemos que somos livres porque a lei moral se impõe à nossa consciência134. É por isso que mais adiante Xxxx afirma que, embora seja afetado pelas inclinações e tente muitas desculpas para o seu comportamento ilegal, ainda assim a consciência da lei moral não pode ser eliminada do homem, e o advogado que fala em seu favor jamais consegue calar seu acusador interno. Assim, no momento em que praticava a injustiça, o sujeito estava de posse de seu juízo, e, portanto, tinha consciência da lei135.
132 Cf. KrV, B562.
133 Cf. KpV, AA 05: 06.
134 Cf. KpV, AA 05: 4 (nota 4).
135 Cf. KpV, AA 05: 98.
Com isso, percebemos que o idealismo transcendental abre as portas para a razão prática e nos permite pensar, a partir do livre- arbítrio, o humano como um ser de dois mundos: vivendo na empiria, mas voltado para o inteligível. Por um lado, o mundo empírico exerce atração sobre a sensibilidade, a qual é afetada pelos mais diversos impulsos e paixões. Por outro, a lei da razão se impõe coercitivamente como um dever, humilhando a sensibilidade e possibilitando que o homem eleve a sua natureza ainda mais quando cumpre o dever.
Do exposto podemos perceber que, no âmbito teórico, as ideias servem para regular o conhecimento, dando ordem e finalidade aos conteúdos elaborados pelo entendimento. Ao mesmo tempo, possibilitam que, no regresso empírico, sempre se busque as causas primeiras, a ideia de totalidade. E mesmo no âmbito da liberdade é apenas possível pensar uma ação livre no tempo, mas jamais deduzir que se é livre. Portanto, na razão teórica, ainda que se considere a importância das ideias, elas não passam de uma hipótese a priori, sem que o seu objeto possa ser determinado na experiência, já que o conhecimento teórico está limitado ao mundo fenomênico, à experiência possível.
Contudo, quando adentramos na razão prática há uma ampliação do conhecimento (apenas prático) e o mundo inteligível se revela como um dado imediato à consciência. E aqui as ideias também podem assumir uma função reguladora, porém de forma diversa da teórica, pois, no âmbito prático, a razão tem a ver com o agir e não com o conhecer. A razão prática é imperativa e sua função é coagir o arbítrio no cumprimento do dever. Internamente a vontade coage a máxima do arbítrio para que ele haja motivado pelo dever, produzindo assim a liberdade interna. Já externamente a razão prática se expressa como vontade unida do povo, cuja lei coage apenas a forma do arbítrio, produzindo assim a liberdade externa. Por isso, esta vontade é também o núcleo normativo da ideia de contrato originário, uma vez que o contrato deve ser expressão de uma vontade comum e não de acordos privados. Ele é a expressão de um acordo ideal que deve ser fundamento para toda a República fenomênica. Mas, pelo fato desta ideia prática de contrato ser apenas um ideal, ela não delimita conteúdos específicos, atuando muito mais como um princípio de segunda ordem, um horizonte normativo, de modo que toda legislação empírica será normalmente uma expressão limitada deste ideal.
Deste modo, quando dizemos que as ideias práticas regulam a ação, seja na legislação interna, seja na externa, estamos expressando que elas são tipos ideais em direção aos quais a realidade deve tender
gradualmente, mas cuja realização da ideia dificilmente se dará de forma plena na empiria, tendo em vista que, para tornar a ideia plenamente efetiva, teríamos que, no âmbito da legislação interna, superar a condição humana e seguir sempre a lei moral por dever, havendo assim uma coincidência da “vontade de cada um” com a razão prática; já no âmbito da legislação externa, teríamos uma plena coincidência das leis positivas com os princípios do Direito externo e assim uma República perfeita, não importando a figura do governante, já que as leis governariam por si só.
Assim, quando Xxxx afirma que o contrato é uma ideia prática reguladora, está expressando o fundamento de uma República ideal, mas, dado que os governos de seu tempo eram consideravelmente despóticos, era preciso que tomassem a ideia de contrato como um horizonte norteador de sua administração e gradativamente fizessem as reformas que conduziriam a uma República cada vez mais de acordo com a ideia. Aquilo que inicialmente era apenas conforme ao espírito, no futuro deveria ser também conforme a letra. Esta forma de pensar as ideias práticas se fez possível graças à teoria do idealismo transcendental, segundo a qual a razão prática, embora dando a conhecer a lei moral de forma imediata, para realizar as ideias no âmbito da ação esbarra em nossa condição humana que sempre reluta em cumprir o dever. Assim, a partir do idealismo, o ser humano tem as ideias práticas como horizonte ao qual deve tender, tanto externa quanto internamente, pelo menos até que dure a condição humana.
2.2. Da relação entre Ética e Direito
A questão da relação entre Ética e Direito está longe de ser um assunto de consenso entre os kantianos. Apesar disso, embora fuja do alcance do presente estudo uma abordagem exaustiva a esse respeito, precisamos delinear e defender uma posição, porque ela gera implicações na ideia norteadora desta tese, bem como no entendimento do republicanismo de Xxxx. Até onde pesquisamos, foi possível detectar três teses acerca desta relação, quais sejam: (1) tese da dependência do Direito em relação à Ética; (2) tese da independência daquele em relação a esta; (3) uma terceira tese que pode ser caracterizada como uma relação de complementariedade (por falta de um termo mais adequado) entre ambos. Procederemos partindo de uma breve apresentação e análise dos principais argumentos de cada uma delas. Chegaremos à conclusão de que a última tese (complementariedade) parece ser a mais defensável a partir dos pressupostos da MS, embora
devamos fazer um pequeno ajuste no que ela entende por liberdade externa. A partir dela será possível verificar que Direito e Ética, enquanto dois ramos da metafísica dos costumes, são sistemas complementares e manifestam o domínio total da razão prática no contexto da ação humana, seja no âmbito interno da liberdade, seja no externo. E, por isso, o Direito não pode ser dissolvido ou estar submetido à Ética, ao mesmo tempo que não poderá ser visto como um sistema desconexo da normatividade prático-jurídica da razão. Não obstante, veremos que esta tese também traz problemas quando da divisão dos deveres éticos e jurídicos na MS.
i. As três teses: dependência, independência e complementariedade
Como o próprio nome já indica, a tese da independência defende que o sistema do Direito possui uma independência em relação ao imperativo da Ética. Xxxxxxxxxx, um dos defensores desta posição, argumenta que o Direito é regulado por uma legislação externa e por isso a coerção é sempre externa, de modo que, do ponto de vista de quem obedece à lei, o móbil para o seu cumprimento poderá ter uma origem patológica, já que não exige que o dever seja a causa impulsionadora da ação. Embora os deveres jurídicos possam ser cumpridos com virtude (Ética), tal exigência não pode ser feita ao Direito, já que as leis jurídicas só exigem legalidade no seu cumprimento, isto é, uma conformação externa da ação com a lei (tese da externalidade). Por sua vez, a Ética é regulada por uma legislação interna, a qual exige que o cumprimento do dever seja motivado pela própria ideia do dever e isto por meio de uma exigência incondicional que nos faz o imperativo categórico. Segundo Xxxxxxxxxx, o caráter prescritivo de uma lei ética se dá sempre que há um conflito entre o que o imperativo afirma como objetivamente necessário e aquilo que é subjetivamente desejado, isto é, quando aquilo que o imperativo ordena realizar por dever está em dissonância com uma subjetividade patologicamente determinada por outros móbeis, o que deixa margem para o sujeito adequar sua disposição à lei ou não. Ora, na medida em que o imperativo categórico faz uma exigência de adesão incondicional à sua lei e, portanto, que se cumpra o que a lei determina motivado pelo dever, as leis jurídicas não podem ser derivadas dele, pois estas são reguladas por uma legislação externa, abstraindo-se de qualquer motivação interna e, por isso, não podem ser vistas como um imperativo incondicional. Também não poderiam ser vinculadas a um imperativo hipotético, pois tomando como exemplo a fórmula geral que diz: “se
queres evitar ser punido, deves fazer „x‟”, neste caso os destinatários da lei seriam somente aqueles que visam apenas evitar a punição e não todos os demais súditos que a cumpririam por outras razões. Disso, o autor conclui que os deveres jurídicos não podem ser considerados como imperativos derivados da Ética e que, portanto, a tese da externalidade parece entrar em conflito e até excluir a tese da prescriptividade136. O autor ainda entende que as leis jurídicas podem ser consideradas normativas de um ponto de vista teórico, no sentido de que são regras contra-factuais, porém não podem ser prescritivas no sentido prático e exigir que seus destinatários ajam de acordo com elas. Em outros termos, além da coerção externa pelo Estado, não há nada que possa obrigar alguém a cumprir uma lei jurídica, e assim, a ideia de obrigação (interna) que é própria da Ética, não faria sentido no âmbito jurídico.
Com isso, a conclusão a que chega Xxxxxxxxxx é de que não haveria a ideia de obrigação ou mesmo de prescrição no Direito, mas apenas uma autorização para coagir de acordo com uma lei universal de liberdade. O Direito seria uma instância coercitiva daqueles arbítrios que interferem na liberdade dos demais e colocam-se em conflito com um uso universal da liberdade. Por isso, ao Direito não cabe tanto a tarefa de determinar o que se deve ou não fazer, mas muito mais impedir e limitar um uso nocivo da própria liberdade em relação aos demais. Segundo o autor, esta visão não prescritiva do Direito Xxxx a teria demonstrado por uma analogia com terceira lei newtoniana do movimento dos corpos, segundo a qual, uma força que vise limitar um comportamento ilegal, deve ser proporcional à força que resiste a um uso universal da liberdade, nem maior, nem menor. Ou seja, a coerção deve ser proporcional ao obstáculo que se impõe a um uso correto da liberdade.
Portanto, para Willaschek somente de uma perspectiva ética as leis jurídicas poderiam ser tomadas como prescritivas (como deveres éticos indiretos), porém da perspectiva do Direito estrito seriam apenas leis descritivas que permitiriam, em nome de um uso universal da liberdade, uma autorização para xxxxxx000. Mesmo a Ética podendo assumir os deveres jurídicos indiretamente como seus, isso não faz com que o Direito esteja submetido a ela, afinal, as leis jurídicas são independentes do imperativo ético e o Direito pode ser compreendido, a partir da tese da externalidade, puramente como uma exigência
136 Cf. WILLASCHEK, 2002, 67-75.
137 Cf. WILLASCHEK, 2002, 77-87.
necessária à convivência, a qual deverá ser regulada pelas leis da liberdade externa.
Um segundo autor que trabalha com a tese da independência é Xxxxx Xxxx. Segundo ele, o princípio do Direito não é derivado do imperativo categórico, tratando-se antes de um postulado puramente explicativo do conceito de Direito, o qual pode ser identificado com o conceito de coação externa de acordo com leis universais. Neste caso, não precisaríamos ir além do conceito de Direito na busca por um fundamento para exercer a coação sobre alguém que esteja agindo em desconformidade com um uso universal da liberdade, afinal, devido à natureza coercitiva do Direito, tudo o que ele visa é justamente possibilitar um uso correto da liberdade externa de acordo com uma lei universal, permitindo assim a proteção da independência de cada um em relação aos demais. Assim, a autorização para coagir quem limita meu direito estaria contida analiticamente no conceito de uma ação legítima138. Desta forma, no entender de Xxxx a função do Direito é a proteção da liberdade externa, entendida esta como independência em relação uma possível coerção que ela possa sofrer por parte do arbítrio do outro. Na medida em que um uso indevido que alguém faz de seu arbítrio fere minha liberdade, eu estou autorizado a coagi-lo na mesma proporção em que fui afetado.
O princípio do Direito, assim como já assinalara Xxxxxxxxxx, nos diz apenas quais ações infringem a liberdade externa, porém não seria sua função nos obrigar a agir coagidos internamente, como faz o princípio moral. Diferente deste, o princípio do direito nos informa quais ações seriam corretas e quais infringem a liberdade externa. O critério da legalidade externa do Direito não menciona o que um ser racional poderia desejar que fosse uma lei universal. Aqui Wood está se referindo ao âmbito interno, no sentido de que a legislação jurídica não exige um vínculo com a lei que não o puramente externo. Portanto, o sistema do Direito estaria desvinculado da Ética, já que não precisaria dela para estabelecer um sistema de deveres139.
Xxxx chega a reconhecer que os deveres jurídicos poderiam ser tomados como deveres éticos indiretos, e, neste caso, na MS Ética e Direito pertenceriam à Filosofia prática (moral), podendo ser deduzidos do imperativo categórico. Contudo, no que tange ao Direito estrito esta formulação não poderia ser sustentada, sendo o Direito totalmente
138 Cf. XXXX, 0000, 6-7.
139 Cf. XXXX, 0000, 8-9.
independente do imperativo categórico. Em outro texto, Xxxx é bem claro a esse respeito afirmando que embora na esfera do Direito se possa derivar o conceito de dever do imperativo moral, disso não se segue que o suposto imperativo seja fundamento dos deveres jurídicos, afinal, o sistema jurídico é um sistema recursivamente fechado e, por isso, não precisaria de princípios morais externos para o seu funcionamento, embora Xxxx considere que ele poderia ser apoiado “de fora” por tais princípios140. Embora Xxxx admita que o discurso do Direito seja normativo, estipulando um conjunto de normas que deve adequar-se a certos padrões racionais, tais padrões não são morais ou éticos, mas padrões do Direito e por isso apropriados a um sistema social de coerção (por meio da lei civil e criminal)141. Por isso, então, que o Direito poderia endossar qualquer tipo de instituição que seja substancialmente justa, mesmo que os valores das pessoas que dela participam sejam distintos daqueles da Filosofia prática. E isso resulta numa grande vantagem para a teoria do Direito de Xxxx, pois ela poderia ser aplicada a uma sociedade em que as pessoas não subscrevem princípios morais kantianos142.
Passamos agora a um breve comentário dessas duas posições e concentraremos a atenção em dois dos problemas apontados pelos autores: a normatividade e a analiticidade do Direito. Ambos os autores corretamente afirmam que o Direito é analítico e deduzido da liberdade externa, afinal, como próprio Xxxx menciona na MS, no âmbito jurídico cada um pode escolher subjetivamente o fim para suas ações. Contudo, o conceito de liberdade externa resultante das análises desses autores desconecta o Direito da razão prática, embora eles afirmem que o Direito faça parte do sistema da razão prática (moral). A questão é que, na compreensão de razão prática desses autores, o Direito não seria um sistema normativo, porque para ser normativo precisaria ter como seu fundamento o imperativo categórico, que é próprio da Ética strito sensu. De nosso ponto de vista, o Direito não se trata apenas de uma „mera autorização‟ para coagir, mas é sim um sistema normativo, sendo a autorização uma decorrência de sua normatividade143, muito embora concordemos com eles que o Direito não está submetido ao imperativo categórico da Ética. Com isso, a regulação da liberdade externa (bem
140 Cf. WOOD, 2008, 205.
141 Cf. WOOD, 2008, 206.
142 Cf. XXXX, 0000, 10.
143 Daremos mais detalhes acerca da normatividade no Direito logo na sequência do texto, no segundo parágrafo.
como os deveres jurídicos que estariam na sua base) não poderia se dar por quaisquer leis de caráter pragmático, mas essencialmente por leis da razão prático-jurídica. Em outras palavras, o Direito, se regulado por quaisquer leis pragmáticas razoáveis (e não de caráter prático- normativo), nos legaria uma liberdade em descontinuidade com a razão prático-jurídica, já que essas leis não estariam fundadas na “autonomia” de nossa liberdade e assim poderiam ser facilmente manipuladas em função de interesses de grupos.
Retomando agora a questão da analiticidade e da liberdade, Xxxx entende que esta última, quer interna, quer externamente, só pode ser pensada como uma ideia reguladora da ação, mas não conhecida diretamente. Ela só pode ser conhecida indiretamente por meio do conhecimento da lei moral, cuja consciência permanente nunca pode ser apagada, a qual é como se fosse um factum da razão. Portanto, também no Direito não se pode fundamentar diretamente os deveres jurídicos na liberdade, a qual permanece incognoscível e cuja demonstração depende de sua consequência. Além disso, Xxxx também não afirma que o princípio do Direito é o único princípio para se deduzir deveres jurídicos, mas insiste que estes provêm também da vontade unida do povo. Portanto, os dois princípios (princípio do Direito e a vontade unida) são necessários para fundamentar os deveres jurídicos, mas só a vontade unificada do povo prova que a posse meramente jurídica é um juízo sintético a priori, pois é esta vontade que produz a lei moral no âmbito jurídico. Por isso, mesmo considerando o princípio do Direito como analítico, ele é auxiliado por outro princípio (vontade unida do povo) na fundamentação dos deveres jurídicos. Em outros termos, dizer que o Direito deriva analiticamente da liberdade não basta para fundamentar um dever jurídico, afinal, a liberdade não se prova por si mesma. É por isso então que a vontade unida do povo (que é a minha e também de cada outro), a qual produz a lei moral no âmbito da liberdade externa, colabora com o princípio do Direito a fim de estabelecer o conceito de obrigação.
A partir desse esclarecimento, já podemos perceber que a autorização para coagir (todo aquele que põe um obstáculo a um uso universal da liberdade) não pode ser uma „mera autorização‟ desprovida de caráter prescritivo. Afinal, da liberdade externa e suas leis temos ciência por meio da consciência da lei moral derivada da vontade unida, vontade essa que é sempre geral e por isso não pode causar danos a ninguém. Sem esta consciência da lei que provém da vontade unida, não seria possível conhecer nossa liberdade e quais as leis que a regem. Neste sentido, devemos interpretar a expressão “lei universal de
liberdade”, a qual faz parte do princípio do Direito, como uma lei oriunda da razão prático-jurídica, isto é, como uma lei que só pode ser dada pela vontade de todo um povo. Só assim podemos falar que esta lei universal provém de nossa própria razão e expressa uma independência do arbítrio, isto é, expressa a autêntica liberdade externa. Perceba-se, então, que o arbítrio só pode ter sua independência garantida porque a lei que regula todos os demais arbítrios é uma lei que emana da razão prática legisladora. Se assim não fosse, certamente que esta independência estaria comprometida, pois a vontade da qual descenderia não seria geral. Poderia até ter uma camuflagem de universalidade, porém, dado que resultaria de acordos e negociações, sua base de sustentação seria frágil e facilmente sucumbiria, enquanto que aquela fundada na vontade geral resiste às vicissitudes, em virtude de seu fundamento a priori.
Ora, este caráter normativo da Filosofia prático-jurídica não pode ser negado. Ele é obtido por meio da lei que promana da vontade unida, tornando assim possível a liberdade externa. Neste sentido, o problema da interpretação de Xxxxxxxxxx é que ele compreende normatividade como coerção interna apenas e o que acabamos de mostrar é que mesmo as leis que provém da vontade geral (âmbito externo) estão carregadas de normatividade, pois descendem da razão prática. Ousaríamos dizer que se o Direito kantiano não fizesse tal exigência prática, Xxxx não precisaria ter-se dedicado a elaborar uma teoria do Direito, afinal, ele poderia ser obtido por meio de uma teoria com teor pragmático.
Um segundo grupo de pesquisadores defende a teoria da dependência do Direito em relação à Ética. Xxxxx, por exemplo, afirma que o princípio do Direito é analítico e derivado da liberdade externa, visto que este princípio apenas afirma as condições sob as quais a liberdade pode ser usada de acordo com uma lei universal. Contudo, para Guyer, ainda que certos princípios do Direito tenham a mesma estrutura lógica dos juízos analíticos, é improvável que Xxxx quisesse torná-los válidos apenas por uma análise de seu conceito, até porque, uma cadeia de inferências lógicas seria insuficiente para demonstrar que uma proposição poderia ser conhecida apenas por meio da lógica.144 Uma prova por contradição não poderia provar a necessidade do princípio. Conforme Guyer, “[...] Xxxx precisa explicar como o uso da coerção pode preservar a liberdade e por que apenas ele (o uso da
144 Cf. XXXXX, 2009b, 301-4.
coerção) pode fazê-lo”145. E certamente que este tipo de exigência não poderia ser sustentada apenas por um juízo analítico. Contudo, Xxxxx reconhece que Xxxx, entretido como estava com as relações lógicas do princípio jurídico, acabou não elaborando uma dedução direta da obrigação jurídica a partir do imperativo categórico. Não obstante, como nenhum juízo analítico sustenta-se por si só, ele precisa de algum ponto de ancoragem em alguma entidade sintética, de modo a se poder justificar a obrigação que ele veicula. Neste caso, mesmo sendo derivado da liberdade externa precisamos deduzir que sua normatividade só poderia advir do próprio imperativo categórico, o qual não tem outra função senão dar a conhecer a nossa liberdade. Nas suas palavras:
Para os princípios de direito, a única fundamentação não-arbitrária disponível é o conceito de liberdade, a prova da realidade objetiva que é, por sua vez, o tema fundamental da filosofia prática de Xxxx, resolvida em última instância pela validação de nossa assunção de nossa liberdade por meio de nossa consciência da força obrigatória do Imperativo Categórico146.
Portanto, é através do imperativo categórico que tomamos conhecimento de nossa liberdade externa e é ele o princípio por meio do qual esta seria limitada, de modo que, tomando-o por base, poderíamos determinar tanto os nossos direitos que são impostos legalmente, quanto nossos deveres éticos147. Com isso Xxxxx sugere que haveria uma dependência do Direito em relação à Ética, em relação ao princípio fundamental da moralidade e com isso os deveres jurídicos expressariam uma normatividade fundada no imperativo categórico da Ética.
A pergunta que surge agora seria: em que termos esta normatividade poderia ser pensada? Exigiria esta dependência normativa, além da conformação externa da lei ao dever ainda uma adesão motivada pelo dever? Xxxxxxxxx que, segundo Xxxxxxxxxx, a exigência motivacional feita pelo imperativo categórico foi um elemento que acabou afastando o Direito da Ética. Mas afinal, seria possível admitir o imperativo categórico como fundamento de leis que exigem apenas “legalidade”?
145 Cf. XXXXX, 2009b, 332.
146 GUYER, 2009b, 307.
147 Cf. XXXXX, 2009b, 296.
Um comentador que responde a esta questão é Xxxxx xx Xxxxxxx. Como Xxxxx, ele reconhece a dependência do Direito em relação à Ética, enfatizando que as leis jurídicas seriam um caso especial das leis éticas e, assim, os princípios do Direito148 seriam derivados do princípio moral. Dado que há em Kant um conceito moral de Direito, as leis jurídicas, em sendo uma espécie das leis morais, estariam legitimadas a coagir a quem a elas não se adequa, já que o Direito é uma faculdade moral de realizar o que é lícito e o que é obrigatório, assim como de não fazer o que é proibido e, por isso, poderia coagir pela força quem nos impede de realizá-lo149.
Neste sentido, as leis jurídicas não excluem a conformidade incondicional em relação ao imperativo categórico. Isto porque, a incondicionalidade estaria relacionada à obrigatoriedade da lei, quer esta deva ser cumprida por dever, quer conforme ao dever. É a lei e não a motivação aquilo que determina a prescritividade150. Neste caso, o que varia é apenas o modo de obrigação no intuito de transformar a prescrição da lei em uma ação concreta. Em outros termos, na interpretação de Xxxxxxx, uma lei jurídica não deixaria de ser obrigatória pelo fato de ser imposta coercitivamente, afinal, o âmbito da coerção, que na Ética é exclusivamente interno, no Direito pode ser também externo, toda vez que a lei não é cumprida por uma coação interna do dever.
Segundo Xxxxxxx, sua posição encontraria apoio em duas teses de Xxxx. A primeira seria a afirmação de que a todo dever corresponde um direito, no sentido de que haveria uma autorização ou uma faculdade moral de fazer não só o que é exigido, mas o que é lícito e também de não fazer o que é proibido; a segunda mostra-se no fato de Xxxx demonstrar que o Direito está conectado à faculdade moral de usar a coerção, do que se concluiria que a legislação jurídica é tornada possível
148 Xxxxx esclarece que o Princípio Universal do Direito seria um princípio de avaliação (“uma ação é conforme ao Direito quando permite ou quando sua máxima permite fazer coexistir a liberdade do arbítrio de cada um com a liberdade de todos segundo uma lei universal”), enquanto que a Lei Universal do Direito seria um princípio de execução (“age exteriormente de tal modo que o uso livre do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal”). Cf. XXXXXXX, 2009, 359.
149 Cf. XXXXXXX, 2009, 372.
150 Cf. XXXXXXX, 2009, 368.
pela própria moralidade, sendo o Direito fundamentalmente um direito moral de coagir pela força aquilo que é exigido pela lei moral151.
Portanto, esta resposta nos parece uma solução plausível a um problema visto como insolúvel por Xxxxxxxxxx, o qual concluíra ser impossível de aplicar-se a prescrição do imperativo categórico ao âmbito do Direito, o que contribuiu para a sua concepção não prescritiva do Direito. Não obstante, se nossa interpretação estiver correta, a questão da prescritividade é um falso problema, já que a liberdade externa, à qual o Direito está analiticamente ligado, não está vinculada ao imperativo categórico da Ética, mas ao imperativo do Direito e este à lei moral oriunda da vontade unida do povo. Afinal, no Direito a ideia de obrigação origina-se da vontade unida, sendo esta a fonte última de justificação para os deveres jurídicos.
Uma terceira posição acerca da relação entre Ética e Direito é defendida por Xxxxxxxxx Xxxx. Em sintonia com Xxxxxxxxxx, sua interpretação também vê como problemática a aceitação do imperativo categórico como fundamento do ordenamento jurídico. Assim como Willaschek, Xxxx também faz objeções à tese da dependência. Ele considera que se aceitarmos que o imperativo categórico tem seu traço principal na motivação moral, isso evidencia que ele não poderia ser a base para se pensar as leis jurídicas, já que o Direito se limita apenas à regulação externa dos arbítrios, deixando inteiramente de lado o aspecto da motivação moral. Para se pretender estabelecer um sistema jurídico a partir do imperativo ético, seria preciso dissociá-lo do aspecto motivacional (sua característica essencial), ou então, uma segunda
151 Cf. XXXXXXX, 2009, 369. Xxxxxxxx é outro comentador que também pactua com a tese da dependência e cuja solução ao problema em questão se aproxima desta defendida por Xxxxxxx. Segundo ele, além do seu aspecto externo, o Direito possui um lado interno de caráter obrigacional, de modo que a indiferença do Direito em relação à motivação não pode ser entendida como independência em relação à obrigatoriedade moral. Dado que nossa liberdade só pode ser conhecida através do imperativo moral, “sem a experiência do dever ser incondicional da lei moral em nós, explicitada na filosofia da moral, seria incompreensível o discurso da obrigatoriedade da lei jurídica” (KERSTING, 2009, 168). Por isso, a auto-obrigação, que no âmbito interno seria uma relação da pessoa consigo mesma (enquanto legisladora racional coagindo o próprio arbítrio enquanto fenômeno), é transformada, no âmbito jurídico, numa obrigação externa intersubjetiva, isto é, a legislação interna se transforma em externa e assim a coerção jurídica acaba sendo a contrapartida externa da autocoação moral. Ou ainda, a coerção jurídica legítima seria o equivalente patológico do poder de motivação ética. (Cf. XXXXXXXX, 0000, 169-70).
alternativa seria moralizar o sistema jurídico. Ocorre que, para Xxxx, ambas alternativas seriam inaceitáveis152.
Além desta objeção que consideramos central, Xxxx ainda sugere uma objeção secundária (entre outras) ligada ao conceito de liberdade. Segundo ele, o conceito de liberdade no âmbito jurídico- político seria um conceito totalmente distinto daquele exigido pelo imperativo categórico, o qual teria como base a liberdade transcendental enquanto liberdade inteligível. Por sua vez, a liberdade jurídica seria uma liberdade externa e estaria ligada à liberdade de escolha da própria felicidade, da forma de vida153.
Embora haja, por parte de Xxxx, uma rejeição da tese da dependência, ele também não compactua com a tese da independência, defendendo um ponto de vista alternativo em que procura situar Direito e Ética como partes da razão prática, mas cada um com sua especificidade. Neste sentido, o imperativo do Direito seria um postulado normativo, porém não com aquele peso moral ideal próprio da Ética. Haveria, sim, certas exigências feitas pela razão, porém a elas se responderia de forma análoga e comparativa ao teste feito pelo imperativo categórico (mas não nos mesmos termos), já que no Direito este procedimento é feito pelo teste da vontade unida do povo, a qual mostra que somente aquelas leis que poderiam ser consentidas por todo um povo seriam legítimas e, por isso, deveriam ser aceitas como provenientes da razão legisladora. Como este procedimento abdica de um elemento central da Ética, que é a motivação; além disso, o fato de que das leis jurídicas, mesmo sendo elaboradas apenas por uma pessoa devam contemplar qualitativamente a vontade de todo um povo, disso resulta que o procedimento para se chegar a uma lei em sintonia com a razão prática (seja ela moral ou jurídica) é muito distinto entre o âmbito da Ética e aquele do Direito. Consequentemente, como os procedimentos são diferentes, as leis também podem ser distintas, o que evidencia que submeter o Direito à Ética ou mesmo desconectá-lo da razão prática parece não fazer muito sentido. Daí que não seria correto simplesmente afirmar que as leis jurídicas dependem da Ética, já que o teste para a elaboração das suas leis não passa pelo crivo do imperativo categórico, mas pelo da vontade unificada do povo154.
152 Cf. HORN, 2009, 46.
153 Cf. HORN, 2009, 47. Há outras objeções que julgamos secundárias ligadas à recusa de um fundamento moral para o Estado, as quais fogem aos propósitos deste estudo e poderão ser consultadas no texto do autor.
154 Cf. HORN, 2009, 51.
De nossa parte endossamos a tese de Xxxx, embora devamos fazer um esclarecimento acerca de sua interpretação da liberdade externa. Certamente que ela tem a ver com a independência em relação a uma possível interferência do arbítrio alheio no meu arbítrio, porém esta independência é apenas metade da moeda. A outra metade está no aspecto positivo. Neste sentido, pode-se dizer que a independência só pode efetivar-se porque a lei que me permite ser livre descende da vontade geral (que é também a minha própria vontade). Eu, enquanto membro da vontade unida, estabeleço a lei de minha própria independência. Porém, como esta lei deve valer para todos indistintamente, ela só pode estar fundada num querer comum. Por isso, assim como a lei moral dá a conhecer nossa liberdade no âmbito interno, assim também as leis jurídicas, originadas da vontade unida, dão a conhecer nossa liberdade no âmbito externo. E assim a razão prática mostra-se sob os dois aspectos de sua legislação, bem como de suas leis. Partindo dessa tese de Xxxx como pano de fundo de nossa interpretação, vamos apresentar um detalhamento da relação entre Direito e Ética a partir do texto da MS, e, apesar de alguns problemas ligados especialmente à divisão dos deveres, a tese da complementariedade parece ser a que melhor expressa o pensamento de
Kant.
ii. Uma análise da relação entre Ética e Direito na MS
Grosso modo, pode-se dizer que na MS, Xxxx visa estabelecer um sistema dos deveres, de tal modo que fique completo o campo de ação da razão prática e esta não seja confundida com a mera natureza. Por isso, que já no preâmbulo desta obra ele menciona:
à crítica da razão prática deveria seguir-se o sistema, a metafísica dos costumes, que se divide em princípios metafísicos da doutrina do Direito e princípios metafísicos da doutrina da virtude (como contraponto aos princípios da ciência da natureza, já apresentados)155.
Logo a seguir, Xxxx confirma que o Direito é parte do sistema emanado da razão: “à doutrina do Direito, como primeira parte da
000 XX, XX 06: 205. Na introdução à MS Xxxx apresenta graficamente a moral como um “sistema de deveres em geral”. Xxx menciona que a doutrina elementar divide-se em deveres jurídicos e deveres de virtude. Cf. MS, AA 06: 242.
doutrina dos costumes, o que é pedido é um sistema emanado da razão, aquilo que se poderia chamar de metafísica do Direito”156.
O intuito de trazer estes excertos é mostrar que, em Kant, Ética e Direito compõem um grande sistema da razão prática, que podemos chamá-lo de sistema moral157. São duas partes de um grande corpo. Porém, há que se ter o cuidado para não se dirimir o Direito na Ética; ou ainda, evitar pensar o Direito totalmente desprovido de qualquer fundamento na razão prática, o que conduziria à heteronomia. Afinal, se Xxxx visa estabelecer um sistema com dois subsistemas, isso implica que as duas partes do sistema são diferentes entre si e possuem suas especificidades.
Considerando então que Ética e Direito são os dois componentes do sistema moral, pode-se dizer que a fonte de todo o dever é a própria razão prática, seja esta compreendida como Ética stricto sensu, seja como um sistema dos deveres jurídicos, de tal forma que ambos os sistemas compreendem o que Xxxx de nomina de “leis da liberdade”158. O intuito dessas leis é dar a conhecer nossa liberdade, seja do ponto de vista interno (Ética), seja do externo (Direito). Por isso, então, que nelas estão implicadas tanto as éticas quanto as jurídicas.
No tocante à Ética, a vontade produz a lei moral (razão prática no âmbito interno) e esta coage internamente o arbítrio para que este estabeleça máximas que conduzam a uma ação motivada pelo dever e o indivíduo possa assim ser livre internamente. Esta coação manifesta-se por meio do imperativo categórico que reza: “age segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”159. Aqui a lei moral está determinando internamente a máxima do agente para que este cumpra o dever motivado pelo próprio dever. Em outros termos, a lei moral, por meio da consciência do dever, exerce uma autocoação sobre o arbítrio, a fim de que este adote o dever como
156 MS, AA 06: 205.
157 Queremos esclarecer que „moral‟ ou „sistema moral‟ neste contexto não se refere à Ética stricto sensu, tal como fundamentada na GMS, mas trata-se da moral compreendida como um amplo sistema da razão prática, o qual compreende a Ética e o Direito.
158 “Estas leis da liberdade chamam-se morais, em contraposição às leis da natureza. Na medida em que estas leis morais se referem a ações meramente externas e à sua normatividade, denominam-se jurídicas; mas se exigem, além disso, que elas próprias (as leis) constituam o fundamento determinante das ações são leis éticas [...]”. MS, AA 06: 214.
159 MS, AA 06: 225.
matéria da máxima. Por isso, os deveres da liberdade interna determinam, além da forma, a matéria do arbítrio, isto é, um fim para a ação, fim este que na Ética será sempre um dever, já que se trata de um fim objetivamente necessário e a priori e por isso é independente das inclinações.160.
Já no tocante ao Direito, a vontade unificada do povo (minha vontade e de cada outro) produz a lei moral no âmbito jurídico (razão prática no âmbito externo), a qual coage apenas externamente o arbítrio através do imperativo do Direito (“age exteriormente de tal modo que o uso livre do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal”161), produzindo assim a liberdade externa. Aqui no âmbito jurídico, a razão prática manifesta-se como vontade unida do povo162, pois é dela que decorre todo Direito, já que é a única que pode legislar e não cometer injustiça contra ninguém (a vontade particular é facilmente parcial), pois expressa um acordo ideal em que cada um decide por todos e todos por um163. O Direito decorre dela já que ela é a fonte de toda lei, e assim a liberdade externa é produto desta lei que emana da vontade pública, já que ser livre significa seguir a lei da razão: no âmbito interno, a lei da própria vontade; no externo, a lei que emana da vontade geral. Então o Direito, em sendo o conjunto das condições que regula os arbítrios segundo uma lei universal de liberdade164, não é outra coisa senão a expressão, no âmbito externo, da própria razão prática legislando a forma dos arbítrios, exigindo assim apenas a conformação externa dos arbítrios à lei, de modo que o agente pode escolher qualquer móbil para sua ação, já que o Direito não impõe fins ao agente165. Não há aqui qualquer exigência de que também internamente os sujeitos sejam motivados pelo dever quando cumprem o que a lei determina. Por isso então que os deveres da legislação jurídica
160 Cf. MS, AA 06: 380.
161 MS, AA 06: 231.
162 Salientamos que a vontade unida do povo não é um conceito empírico, mas uma ideia reguladora prática a priori e expressa um consenso ideal, a ideia de um Estado fundado num contrato originário, em que a união das vontades decidiriam sempre de forma legal e justa. Assim, um Estado fundado no contrato originário teria no coração de seu legislativo promulgações que beneficiariam a todos indistintamente porque o conteúdo das leis visaria o bem comum. Cf. TP, AA 08: 297.
163 Cf. MS, AA 06: 314.
164 Cf. MS, AA 06: 230.
165 Cf. MS, AA 06: 230.
serão somente deveres externos, já que esta legislação não exige que a ideia do dever, que é interna, seja xxxxxxxxxx xx xxxxxxxxxxxx xx xxxxxx xx xxxxxxxx000.
Com isso podemos perceber que Ética e Direito possuem diferentes legislações, as quais se distinguem pelos móbeis de suas ações. A legislação ética é aquela que faz de uma ação um dever e desse dever um móbil, enquanto que a legislação jurídica admite um móbil diferente do próprio dever, visto que não está preocupada com a motivação do agente, mas apenas com o aspecto externo da ação167. Por isso então que a coação na Ética será sempre autocoação, isto é, a lei coage internamente o arbítrio do agente a fim de que sua ação seja motivada por uma máxima cujo fim é um dever, enquanto que no Direito a coação será externa. Daí que na Ética sempre deverá haver virtude no cumprimento do dever, elemento este não necessário no Direito.
Os deveres éticos (deveres de virtude) são chamados por Xxxx de deveres imperfeitos. Isso porque são deveres de obrigatoriedade ampla e assim não se pode determinar com precisão a intensidade e o grau com que se deve realizar uma ação com vistas ao fim que é simultaneamente um dever168. O sentido desta “imperfeição” pode ser melhor compreendido da seguinte maneira: quando Xxxx diz que a todo dever corresponde um direito por parte de outrem169, isso está claro no âmbito jurídico em que os deveres são perfeitos e determinam um comportamento preciso. Já com relação aos imperfeitos não há uma medida precisa do quanto devemos cuidar de nossa perfeição física, por exemplo, ou, ainda, até onde deve ir nossa beneficência em relação aos necessitados.
Xxxx classifica em duas categorias os deveres de virtude: deveres em relação à própria perfeição (a humanidade na minha pessoa) e deveres em relação à felicidade alheia (a humanidade na pessoa do outro), os quais são deveres que são fins (a priori)170. Consequentemente, se os deveres são imperfeitos, também a coerção será imperfeita, já que não dispõe da precisão do quanto coagir. Por isso então que na Ética o conceito de mérito é muito importante, já que
166 Cf. MS, AA 06: 219.
167 Cf. MS, AA 06: 219.
168 Cf. MS, AA 06: 390; 411.
169 Cf. MS, AA 06: 383.
170 Cf. MS, AA 06: 390.
permite pensar uma ação com mais ou menos virtude, isto é, com uma máxima mais ou menos motivada (e coagida) pelo dever, tendo em vista que a liberdade interna aumenta à medida que o arbítrio afasta a coerção dos impulsos da sensibilidade e se deixa coagir pela lei moral. Podemos denominar este sistema da Ética que produz os deveres de virtude (deveres éticos direitos) como Ética stricto sensu, já que trata especificamente dos deveres éticos. Neste aspecto, a Ética compreende apenas os deveres de virtude, não levando em consideração os deveres jurídicos enquanto deveres éticos indiretos. Da mesma forma que a Ética, há também o Direito estrito (stricto sensu), cujos deveres não possuem nenhuma mescla com a Ética, embora, como o Direito faz parte do sistema da moral (razão prática), Xxxx nos lembra que ele “[...] fundamenta-se, na verdade, na consciência da obrigação de cada um segundo a lei”171, embora não possa apelar a esta consciência como móbil, já que no Direito a coação é externa.
Mas é preciso não confundir a virtude no cumprimento do dever com os deveres de virtude. A primeira tem a ver com a Ética lato sensu (veremos na sequência), e pode ser aplicada tanto aos deveres de virtude quanto aos deveres jurídicos, tratando-se da força da máxima no cumprimento do dever. Assim, quando, por exemplo, alguém, além de obedecer à lei do Estado, o faz por amor ao dever, pode-se dizer que é uma pessoa virtuosa, pois possui motivação moral em sua máxima e não está agindo por motivos patológicos, mas o faz com civismo. Por outro lado os deveres de virtude são deveres exclusivos da liberdade interna, e não têm relação com os deveres jurídicos, já que determinam a máxima do agente.
Contudo, além de chamar de Ética ao conjunto dos deveres de virtude, Xxxx ressalta que “[...] todos os deveres, simplesmente porque são deveres, pertencem à Ética, o que, todavia, não quer dizer que a legislação de que procedem esteja por isso contida na Ética”172. Há aqui, por exclusão, uma clara referência aos deveres jurídicos, já que todos os deveres do sistema kantiano pertencem ou à Ética ou ao Direito. Por isso, o que Xxxx está dizendo é que todos os deveres jurídicos podem ser assumidos pela Ética como deveres éticos indiretos173, isto é, podem ser cumpridos com virtude. Portanto são
171 MS, AA 06: 232.
172 MS, AA 06: 219.
173 “Há, pois, decerto, muitos deveres éticos diretos, mas a legislação interior faz também de todos os restantes deveres, deveres éticos indiretos”. MS, AA 06: 221.
deveres que, além da conformação externa da ação, podem ser assumidos como fundamento da máxima do agente, pois são apropriados pela legislação interna. Esta forma de pensar a Ética pode ser de nominada de Ética lato sensu, já que se apropria de deveres que não são próprios do seu domínio e os torna seus deveres indiretos. Temos então aqui um conceito de Ética que extrapola o âmbito dos deveres de virtude e procura abarcar o domínio de todos os deveres.
Contudo, perceba-se que, o fato da Ética poder assumir os deveres jurídicos como deveres éticos indiretos não torna o sistema jurídico dependente do ético. Embora o Direito não exija que se leve em conta a motivação na elaboração das leis, não é menos verdade que a vontade unida jamais consentiria com leis injustas que disseminassem formas de discriminação, exclusão social, racial, etc. Uma lei, por exemplo, que admitisse a escravidão não poderia ser consentida pela vontade unida do povo, pois, embora de um ponto de vista pragmático e utilitário pudesse ser legitimada porque gera maiores lucros, estaria em total oposição com a razão prática. Por isso então que as leis jurídicas, embora não sendo originadas do imperativo categórico da Ética, poderiam ser assumidas por esta sem problemas. Ou seja, o que Xxxx parece afirmar é que, o fato da legislação ética poder assumir os deveres jurídicos como seus deveres indiretos se deve não a uma dependência do Direito em relação á Ética, mas ao fato de que ambos são subsistemas da razão prática e assim não poderiam entrar em conflito entre si. Se isso ocorresse, haveria um paradoxo e uma cisão no interior da própria razão.
Tomando agora a questão do ponto de vista do Direito, ainda que a única legislação exigida por este seja a externa, isso não quer dizer que internamente a ação não possa ser cumprida com virtude, de modo que, além de uma adequação à forma da lei, se leve em conta a materialidade. Xxxxxx, Xxxx diz apenas que a legislação jurídica “[...] admite um móbil diferente da ideia do próprio dever”174, mas não está excluindo que o dever seja também um móbil, confirmando assim, mais uma vez, que o âmbito do Direito não se importa com a motivação, não havendo nada que impeça que o indivíduo seja subjetivamente motivado pela liberdade interna. E quando assim procede, ele cumpre o dever jurídico com virtude, tornando-o um dever ético indireto, agindo não só com legalidade, mas também com autonomia. Contudo, há que se ter presente que em momento algum a doutrina do Direito afirma que deva haver autonomia no cumprimento do dever jurídico. Apenas deixa livre
174 MS, AA 06: 219.
para que o agente escolha o fundamento de sua máxima. Por isso então que Xxxx irá dizer que “a doutrina do Direito e a doutrina da virtude não se distinguem pois tanto pelos seus diferentes deveres como pela diferença da legislação [...]”175, pois os deveres jurídicos podem também ser assumidos pela Ética, porém o contrário jamais poderia ocorrer, já que a legislação ética é interna, e seus deveres são imperfeitos e por isso não definem ações e coerções precisas, enquanto que a jurídica é externa e perfeita, seja na definição do dever, seja na coerção. Além disso, há que se ter o cuidado de não submeter ou mesmo dissolver o Direito na Ética, pois há deveres que são exclusivos do Direito e não podem ser confundidos com deveres de virtude, já que estes últimos são deveres de obrigação ampla (imperfeitos), enquanto que os deveres jurídicos são deveres perfeitos. Por isso, o fato de um dever jurídico ser um dever ético indireto, não lhe pode retirar sua natureza jurídica, não sendo possível reivindicar qualquer forma de autocoação para ele, pelo menos no âmbito do Direito.
É importante fazermos ainda um esclarecimento quanto aos deveres internos e externos. De fato às vezes se confunde os deveres da liberdade interna com os deveres internos; bem como os deveres da liberdade externa com os deveres externos. Conforme Durão, os deveres da liberdade interna ou externa são definidos pela matéria e a forma do arbítrio respectivamente. Assim, os deveres jurídicos são deveres da liberdade externa, pois levam em conta apenas a forma do arbítrio, enquanto que os deveres da liberdade interna são os deveres éticos (de virtude), já que levam em conta também a matéria do arbítrio (fim). Por sua vez, deveres internos e externos se explicam pela ação do agente. Assim, tem-se um dever interno quando a obrigação que manda realizar uma ação se dirige ao próprio sujeito, como, por exemplo, quando se diz que há um dever de cuidar da própria saúde; Já o dever externo ocorre quando a ação se dirige aos outros, como é o caso do dever de cuidar dos mais pobres. Neste sentido, entre os deveres da liberdade interna (deveres de virtude), pode haver tanto deveres internos (como o dever de cuidar da própria perfeição), quanto deveres externos (como é o caso dos deveres ligados à felicidade alheia). Entre os deveres da liberdade externa só pode haver deveres externos, já que a legislação da liberdade externa é externa176. E como nos deveres de direito a obrigação da ação
175 MS, AA 06: 220.
176 Cf. XXXXX, 0000, 000.
sempre se dirige ao arbítrio do outro e não à própria pessoa, estes deveres serão todos externos.
Após esta breve exposição há algumas considerações a serem feitas em termos conclusivos. Primeiramente, Ética e Direito não podem ser confundidos, já que são diferentes tanto no conteúdo quanto na motivação. Do ponto de vista do conteúdo os deveres jurídicos, em sendo deveres da liberdade externa, são essencialmente diferentes dos éticos, pois nestes estão incluídos deveres internos, como, por exemplo, os deveres em relação à própria perfeição, enquanto que os jurídicos compreendem apenas deveres para com os outros (externos). Além disso, os deveres jurídicos não poderiam ser deveres da felicidade alheia, pois, conforme Xxxx, não cabe ao Estado legislar acerca da felicidade, pois, agindo assim, estaria sendo paternalista e o paternalismo constitui o pior dos despotismos, devendo, pois, apenas garantir a liberdade para que os próprios súditos escolham como querem ser felizes. Já do ponto de vista da motivação, os deveres jurídicos procedem da liberdade externa em que a vontade determina apenas a forma do arbítrio para a ação, enquanto que os deveres éticos procedem da liberdade interna, em que a lei moral determina também a matéria do arbítrio, isto é, o fim da ação, mas não a ação propriamente. Portanto, o Direito não pode ser dissolvido na Ética, mas também não se pode dizer que esteja desconectado do sistema moral.
Segundamente, é preciso considerar que a divisão dos deveres da MS não é isenta de problemas177. Mesmo tendo definido os deveres jurídicos como deveres externos e perfeitos em relação aos outros, o próprio Xxxx comete um deslize e admite um dever perfeito para consigo mesmo como um dever interno (honeste vive178, isto é, sê um homem honesto), introduzindo assim, no âmbito do Direito, um dever que seria próprio da Ética. Além disso, após ter definido os deveres de virtude como deveres imperfeitos e de latitude ampla, elenca, na Doutrina da Virtude, uma série de deveres perfeitos para consigo
177 Pode-se consultar uma crítica ao sistema kantiano dos deveres em WILLASCHEK, 2009, 257-292.
178 “Sê um homem honesto (honeste vive). A honestidade jurídica (honestas iuridica) consiste no seguinte: em afirmar o seu valor como homem na relação com os outros – dever que se exprime pela proposição: “não te convertas para os demais num simples meio, mas sê para eles, ao mesmo tempo, um fim”. Este dever será explicitado mais adiante como uma obrigação derivada do direito de humanidade na nossa própria pessoa (lex iusti). MS: AA 06: 236.
compreendidos enquanto deveres de virtude. Dentre estes constam o suicídio, a masturbação e a mentira179.
Ao que parece, a introdução de deveres perfeitos nos deveres de virtude não compromete sobremaneira a teoria de Xxxx, já que não toca na estrutura da relação entre Ética e Direito. Já a introdução de um dever interno para conosco (honeste vive) no âmbito do Direito acaba introduzindo uma inconsistência no Direito, pois se trata de um dever interno, e, como vimos anteriormente, os deveres jurídicos só podem ser deveres externos, pois envolvem apenas uma relação externa entre arbítrios. Além disso, possuem coação externa, o que não se verifica neste caso, pois eu não posso ser coagido externamente a não me converter num simples meio e ser ao mesmo tempo fim aos demais, pois aqui se está tratando de um estado interno de meu ânimo ao qual o Estado não tem acesso; além de que, não seria possível determinar uma ação específica para o direito de humanidade na minha pessoa, pois se trata de um dever imperfeito, sendo, portanto, um dever específico da liberdade interna (Ética) e não da externa (Direito)180.
179 Cf. MS, AA 06: 422-432.
180 Conforme Xxxxxxx, o honeste vive exige que primeiro o ser humano se reconheça enquanto fim em si, enquanto um sujeito de liberdade para então entrar numa relação jurídica com o outro. É em vista desta relação que eu devo reconhecer minha humanidade (senão seria apenas um dever ético interno). Do contrário, nenhum contrato teria validade. Por isso, a natureza desta obrigação é ambígua e assinala a passagem da dimensão ética do respeito pela dignidade humana em geral, àquela estritamente jurídica, que trata da afirmação da própria personalidade jurídica no confronto com os outros: constituiria um dever ético no que diz respeito à minha atitude em relação à humanidade em minha própria pessoa; ao mesmo tempo um dever jurídico em relação aos outros no que respeita à nossa relação jurídica com eles. Por seu caráter ambíguo, esta obrigação não pode satisfazer plenamente nenhuma das condições que denotariam um dever ético ou jurídico. Cf. XXXXXXX, 0000x, 102-4. O esclarecimento de Xxxxxxx é fundamental para captarmos a intenção de Xxxx, embora o impasse gerado no interior da teoria permaneça, já que não é possível desvencilhar completamente o teor ético do suposto dever, ficando nossa capacidade jurídica dependente de uma determinação ética. Poderíamos até mesmo alegar que Xxxx não precisaria lançar mão de tal dever, já que a consciência da lei moral em nós seria suficiente para se reconhecer que somos sujeitos suscetíveis de liberdade (e com isso, aptos às relações jurídicas), sem necessidade de termos ainda que afirmar nossa condição de homem honesto, nosso valor como humano. Não obstante, esta hipótese é descartada por Xxxx na própria MS quando ele afirma que podemos perder a dignidade em virtude de
Em terceiro lugar vamos analisar que conclusões podem ser tiradas acerca da autonomia e da heteronomia no Direito. Na introdução à MS, referindo-se às leis da liberdade Xxxx diz:
mas se exigem, além disso, que elas próprias (as leis) constituam o fundamento determinante das ações são leis éticas e então diz-se que a conformidade com as leis jurídicas é a legalidade da ação e a conformidade com as leis éticas a moralidade181.
O que este excerto nos mostra é que a legalidade seria própria do Direito, porque este não exige que a lei seja o fundamento determinante das máximas das ações. Porém, não há nada que impeça que tais leis se tornem o fundamento das ações e assim o agente possa agir com autonomia também no Direito. Mas poderíamos afirmar que o direito é heterônomo? Conforme a mesma introdução da MS, Xxxx diz que toda legislação, seja ela interna ou externa, possui um aspecto objetivo e um aspecto subjetivo. O elemento objetivo compreende a lei que representa objetivamente uma ação como necessária, convertendo assim tal ação em dever; o elemento subjetivo é o próprio móbil que liga o arbítrio à lei, que é fundamento da ação. Assim, por meio da lei a ação seria representada como um dever e por meio do móbil haveria a obrigação de agir em conformidade com o dever182. Segundo Xxxxx, para que haja autonomia é preciso que os dois requisitos sejam preenchidos. Quando consideramos a legislação ética, percebemos que ela cumpre tanto o critério objetivo quanto o subjetivo da autonomia, pois objetivamente os deveres éticos são produzidos pela determinação da matéria do arbítrio pela vontade, e, subjetivamente, em sendo fins, os deveres determinam a máxima da ação do agente. Por sua vez o Direito cumpre apenas o critério objetivo, pois a vontade determina a forma da relação externa entre os arbítrios, mas não pode exigir que também
nosso crime e assim ser convertidos em mero instrumento do arbítrio de outrem, e, consequentemente, inabilitados para qualquer relação jurídica (Cf. MS, AA 06: 329-30). Portanto, para Xxxx o criminoso não pode ser um sujeito jurídico e com isso uma eventual tese de que seríamos “naturalmente” aptos à condição de sujeitos jurídicos em virtude da lei moral em nós não poderia ser sustentada, do que podemos provisoriamente concluir que a inconsistência no interior da teoria permanece.
181 MS, AA 06: 215.
182 Cf. MS, AA 06: 218.
subjetivamente a ação seja motivada pelo dever183. Isso demonstra que o Direito não preenche os requisitos da autonomia, pois lhe falta o elemento subjetivo. Porém não podemos simplesmente concluir que ele seja heterônomo, uma vez que o conceito de heteronomia implica na sujeição da minha vontade à vontade de outro. Lembremos que no Direito a lei emana da vontade unificada de todo o povo, a qual, expressando a ideia de um bem comum público, é também expressão da vontade de cada um. Assim, quando o legislativo, representando a vontade geral em ato (como um sistema representativo do povo), elabora leis baseadas na ideia a priori desta vontade pública, demonstra que indiretamente cada súdito está sendo um colegislador, seja pela representatividade que ele possui na pessoa dos deputados, seja pela coerção que a ideia da vontade geral exerce sobre os legisladores na hora de elaborar a lei. Deste modo, a ausência do elemento subjetivo não impede que a lei provenha da vontade legisladora universal, não havendo assim sujeição da minha vontade à vontade alheia. Portanto, ainda que não haja autonomia no Direito, não seria correto afirmar que ele é heterônomo.
2.3. A insuficiência da analiticidade no Direito
Passamos agora à discussão de outro tema bastante polêmico que é a analiticidade no Direito, questão esta que, como acabamos de ver, tem a ver com a relação entre Ética e Direito, bem como com a possibilidade de situarmos o pensamento kantiano num enquadramento mais liberal ou republicano. Xxxx define o princípio do Direito da seguinte maneira: “uma ação é conforme ao Direito quando permite ou quando a sua máxima permite fazer coexistir a liberdade do arbítrio de cada um com a liberdade de todos segundo uma lei universal”184. Em outros termos, ao Direito cabe a conciliação dos arbítrios, o que deve ser feito através de uma lei universal de liberdade, isto é, uma lei prático- jurídica e não uma lei empírica. De fato, como Xxxx mesmo afirma, a faculdade de coerção é uma faculdade que está ligada analiticamente (pelo princípio de não contradição) ao próprio conceito de Direito. Então, aquilo que não é conforme ao Direito é um obstáculo à liberdade segundo as leis universais de liberdade. Isso implica que se o uso de minha liberdade se torna um obstáculo à liberdade segundo leis
183 Cf. DURÃO, 2006, 404.
184 MS, AA 06: 230.
universais, a coerção que se faz à minha liberdade é uma coerção conforme ao Direito, e, portanto, está de acordo com um uso universal da liberdade. Desse modo, ao Direito está analiticamente associada uma faculdade de coerção,185 já que, se não houvesse tal faculdade, a liberdade entraria em contradição com ela própria. Portanto, em sendo para Xxxx a coerção uma faculdade derivada analiticamente do Direito, e em sendo o princípio do Direito derivado analiticamente da liberdade externa, podemos concluir que à liberdade externa analiticamente estaria associada a faculdade de coerção, sendo o Direito a expressão dessa coerção.
Na Doutrina da virtude Xxxx é bem explícito a esse respeito quando afirma que o princípio do Direito é analítico, enquanto que o da doutrina da virtude é sintético. E isso se deve ao fato de que a doutrina da virtude vai além da liberdade externa, associando ao princípio ético um fim que se converte em dever, havendo assim, por meio do conceito de fim, uma ampliação do conceito de dever para além da liberdade186. Assim, na Ética a ideia de fim traria um elemento novo acrescentado “de fora” ao conceito de dever, o que não ocorreria no âmbito jurídico, em que haveria apenas uma concordância formal entre as liberdades.
Em geral os autores concordam com essa definição de que o Direito é derivado analiticamente da liberdade externa e sua função seria proteger a liberdade de uma coação indevida por parte do arbítrio de outrem. O problema surge quando se indaga se este tipo de justificação seria suficiente para poder-se estabelecer deveres jurídicos, isto é, indaga-se se a liberdade externa teria a força normativa necessária para gerar um sistema de obrigações vinculadas através do Direito. É na resposta desta questão que os comentadores se dividem.
Para autores como Xxxx, a analiticidade do Direito seria suficiente para se gerar um sistema de obrigações. Segundo ele, o Direito (e suas leis coercitivas externas) é um sistema recursivamente fechado, sistema este que pode ou não ser apoiado por princípios morais de fora, o que não impede nem gera prejuízo ao Direito o fato de que os seres racionais tenham também um dever ético de cumprir os deveres jurídicos. Porém, do ponto de vista do Direito estrito não há uma exigência de que o princípio do Direito deva ser apoiado pelo princípio moral187. Segundo ele, o princípio do Direito não somente não é
185 Cf. MS, AA 06: 231.
186 Cf. MS, AA 06: 396.
187 Cf. XXXX, 2008, 205; XXXX, 0000, 9.
derivado da lei moral, como também justifica que a ausência de qualquer dedução deste princípio na teoria de Xxxx se deve ao fato de ele ser um princípio analítico, e por isso não precisaria ser justificado188. Nesta mesma linha interpretativa, Xxxxxxxxxx também defende que o Direito não é um sistema prescritivo derivado do imperativo categórico, mas antes permite apenas uma autorização para coagir a quem impõe um obstáculo a um uso universal da liberdade, evidenciando assim que não se pode ir além da liberdade externa na busca de uma justificação para o direito de coagir189.
Em termos interpretativos, o ganho dessa posição é que permite ao Direito endossar outros sistemas e instituições distintos da Filosofia prática como base dos deveres jurídicos. Neste caso, um sistema pragmático de deveres, desde que pudesse ser universalizado, poderia ser justificado. Por outro lado, esta forma de pensar torna facultativa a necessidade de fundamentar os deveres jurídicos na razão prática, fazendo com que a ideia de obrigação jurídica esteja desprovida da normatividade da razão prático-legisladora.
Assim como esses autores, Xxxxx também defende que o Direito é analítico. Porém, diferente deles, argumenta que “[...] o próprio Xxxx não assume que o caráter lógico dos juízos analíticos nos libera de toda obrigação adicional de justificá-los”190. Desse modo, continua Guyer, ainda que certos princípios do Direito tenham a mesma estrutura lógica dos juízos analíticos, é improvável que Xxxx quisesse torná-los válidos apenas por uma análise lógica de seu conceito, até porque, uma cadeia de inferências lógicas seria insuficiente para demonstrar que a proposição possa ser conhecida apenas por meio lógica.191 Ou seja, para Guyer seria preciso algum tipo de “prova” objetiva a respeito dos sujeitos a quem os juízos analíticos se referem, do contrário tais juízos seriam infundados. Retomando um excerto já citado, segundo ele “[...] Xxxx precisa explicar como o uso da coerção pode preservar a liberdade e por que apenas ele (o uso da coerção) pode fazê-lo”192. Este tipo de exigência não poderia ser sustentada apenas por um juízo analítico. Neste caso, mesmo sendo derivada da liberdade externa, a normatividade do Direito deve ser deduzida, ainda que indiretamente, do
188 Cf. XXXX, 0000, 7.
189 Cf. WILLASCHEK, 2002, 67-75.
190 GUYER, 2009b, 299.
191 Cf. XXXXX, 2009b, 301-4.
192 Cf. XXXXX, 2009b, 332.
imperativo categórico, por meio do qual podemos conhecer a nossa liberdade. Xxxxx reconhece que Xxxx, entretido como estava com as relações lógicas do princípio jurídico, acabou não elaborando uma dedução direta da obrigação jurídica a partir do imperativo categórico, embora não há como negar que mesmo indiretamente é preciso assumir que o imperativo é a fonte dos deveres. Nas suas palavras:
Para os princípios de direito, a única fundamentação não-arbitrária disponível é o conceito de liberdade, a prova da realidade objetiva que é, por sua vez, o tema fundamental da filosofia prática de Xxxx, resolvida em última instância pela validação de nossa assunção de nossa liberdade por meio de nossa consciência da força obrigatória do Imperativo Categórico193.
Portanto, a força da obrigação está no imperativo categórico e é dele que se deve derivar tanto os nossos direitos que são impostos legalmente, quanto nossos deveres éticos194.
Ao se colocar em questão a analiticidade do Direito, ou ainda, a necessidade de se encontrar algum tipo de fundamento sintético para os deveres jurídicos, está-se trazendo à tona a discussão de se o Direito faz parte ou não da metafísica. Se não for possível encontrar tal fundamento, seria ele provavelmente relegado ao rol da Filosofia pré- crítica, ficando assim fora do sistema da metafísica dos costumes. Mas será que a Filosofia de Xxxx faz esse tipo de exigência?
Quando investigamos a Primeira Crítica, percebemos que uma das preocupações de Xxxx com a crítica interna à razão é justamente evitar que se formulem juízos analíticos num encadeamento lógico interminável, sem que se chegue a um ponto de sustentação, coisa que fizera a metafísica até o seu tempo a respeito do conhecimento de objetos transcendentes. Nas suas palavras,
[...] na Metafísica devem estar contidos conhecimentos sintéticos a priori, e de maneira alguma lhe cabe apenas desmembrar conceitos que nos fazemos a priori de coisas e por meio disso elucidá-los analiticamente, mas queremos ampliar o nosso conhecimento a priori195.
193 GUYER, 2009b, 307.
194 Cf. XXXXX, 2009b, 296.
195 XxX, X00.
Por isso então que a grande questão que a KrV procura responder é a questão da possibilidade dos juízos sintéticos a priori.
Portanto, todas as tentativas feitas até agora para realizar dogmaticamente uma metafísica podem e têm que ser encaradas como não ocorridas. Com efeito, o que numa ou noutra há de analítico, isto é, um simples desmembramento dos conceitos que residem a priori em nossa razão, não chega a constituir ainda o fim, mas apenas uma promoção com vistas à verdadeira Metafísica, isto é, a ampliar sinteticamente o seu conhecimento a priori196.
Portanto, para Xxxx a verdadeira metafísica deve estar fundada em juízos sintéticos a priori. Porém, na medida em que tais juízos se referem a um objeto, este objeto tem que ser dado de algum modo, isto é, deve ter realidade objetiva, do contrário nos deparamos com um conceito vazio197. Por isso então que na “arquitetônica da razão pura” Xxxx divide a metafísica em metafísica da natureza e metafísica dos costumes198 (a mesma divisão Xxxx repete na Primeira Introdução à Crítica do juízo), e esclarece no decorrer da KrV que na Metafísica da natureza os juízos sintéticos a priori são possíveis graças à nossa estrutura transcendental de conhecimento que fornece as formas puras da sensibilidade (espaço e tempo) e as categorias puras do entendimento. Através das formas da sensibilidade intuímos conteúdos sensíveis (Erscheinung) que são submetidos às categorias do entendimento, e, através da síntese da espontaneidade deste, os conteúdos são transformados em fenômenos (Phaenomena). Isso implica que “[...] o princípio supremo de todos os juízos sintéticos é que todo objeto está sob as condições necessárias da unidade sintética do múltiplo da intuição numa experiência possível”199. Portanto, na metafísica da natureza nossa estrutura transcendental fornece a forma a priori, enquanto que a matéria é fornecida pela experiência, estando a razão, no âmbito teórico, limitada à experiência possível.
Com a Metafísica dos costumes (não estamos fazendo referência à obra de Xxxx, mas à metafísica da moral) Xxxx pretende
196 KrV, B23.
197 Cf. KrV, B194.
198 Cf. KrV, B869.
199 XxX, X000.
lançar-se além da experiência possível e fazer juízos sintéticos a priori sobre a coisa em si no domínio prático (moral), empreendimento este que só consegue realizar com êxito na KpV, após duas tentativas de pouco sucesso200. Na Segunda Crítica, Xxxx estabelece a consciência da lei moral como se fosse um factum201 produzido pela razão que se impõe a criaturas como nós como um imperativo categórico, tendo em vista que somos seres racionais limitados, influenciados pelos impulsos sensíveis e por isso não cumprimos o dever naturalmente. Este factum é um elemento imediato a priori que expressa o mundo inteligível, sendo a própria lei moral quando manifestada à nossa consciência202. Ele é o fundamento de toda a moral. Conforme Xxxx,
pode-se denominar a consciência desta lei fundamental um factum da razão, porque não se pode sutilmente inferi-la de dados antecedentes da razão, por exemplo, da consciência da liberdade (pois esta consciência não nos é dada previamente), mas porque ela se impõe por si mesma a nós como uma proposição sintética a priori, que não é fundada sobre nenhuma intuição, seja pura ou empírica [...]203.
Xxxx ainda diz que a lei moral é a ratio cognoscendi da liberdade, ou seja, reconhecemos que somos livres à medida que temos consciência da lei, afinal, para Xxxx “[...] se a lei moral não fosse
200 Segundo Xxxxx xx Xxxxxxx, Xxxx somente deu uma “prova” do imperativo categórico, na sua fórmula universal, na Segunda crítica, após a sua terceira tentativa de fundamentá-lo, sendo as duas primeiras sem sucesso. A primeira teria ocorrido no Cânon. Xxx, Xxxx tentaria conciliar o conceito de liberdade com o de causa natural, supondo que este conceito empírico de liberdade daria conta de explicar, sejam as ações com base em regras prudenciais, sejam as com base em princípios morais. Uma segunda tentativa teria sido feita na GMS em que Xxxx toma como ponto de partida a ideia da espontaneidade da liberdade, como uma ideia que deve ser pressuposta para dela deduzirmos o imperativo categórico. Porém, ele mesmo se dá conta de que não é possível extrair de um juízo acerca da ideia da espontaneidade da liberdade nenhuma conclusão acerca da liberdade de nossas máximas e escolhas. Finalmente, uma terceira tentativa, e agora com mais sucesso, ocorreria na Segunda crítica, quando Xxxx inverte a ordem dos conceitos e funda a validade do imperativo categórico no factum da razão. Cf. XXXXXXX, 1997, pp.176-77.
201 Cf. KpV, AA 05: 6.
202 Cf. KpV, AA 05: 43.
203 KpV, AA 05:31.
pensada antes claramente em nossa razão, jamais nos consideraríamos autorizados a admitir algo como a liberdade”204. Por sua vez a liberdade é a ratio essendi205 da lei moral, isto é, a lei moral existe para dar a conhecer nossa liberdade, a qual se manifesta por meio da consciência do dever. Em outros termos, Xxxx está postulando que a lei moral manifesta-se à consciência como um factum primevo e fundamental, e isto nos possibilita reconhecer nossa liberdade, de modo que o conceito de liberdade está fundado na lei moral. Sem a consciência da lei moral206 poderíamos até suspeitar da liberdade, mas não teríamos uma “prova” de sua realidade. Ao mesmo tempo, a lei moral só faz sentido na medida em que existe a liberdade, afinal seguir a lei nos torna livres, seja a lei de nossa própria vontade (liberdade interna), seja a lei da vontade geral (liberdade externa). Assim, as leis da liberdade não são outra coisa que a expressão externa ou interna da razão prática, isto é, são a própria lei moral coagindo o arbítrio, mostrando assim que não há suposta liberdade sem a lei moral.
Precisamos, porém, esclarecer o sentido da sinteticidade207 da lei moral. Xxxxx, por exemplo, faz uma distinção entre imperativo categórico e lei moral. Define esta última como uma ideia da razão, a qual determina um principio aplicável a todos os seres racionais e razoáveis, sejam eles finitos ou não, valendo para Deus (se existir) ou para qualquer outro ser do universo. Por sua vez, nos diz Xxxxx, o imperativo categórico é um imperativo direcionado somente a seres razoáveis finitos e necessitados como nós, que experimentam a lei moral como constrição208. Em outros termos, a lei moral expressa a ideia de uma vontade santa, de modo que, seres racionais que não são afetados pelas inclinações da sensibilidade a seguem naturalmente e por isso são livres. Nós, enquanto possuindo um arbítrio afetado pelas inclinações,
204 KpV, AA 05:4 (nota 4).
205 Cf. KpV, AA 05:4
206 Queremos novamente esclarecer que a lei moral no âmbito jurídico é produzida pela vontade unificada do povo, e que, portanto, a consciência do dever é oriunda da minha vontade, mas também da vontade dos outros. Por isso, esta lei deve ser compreendida como uma lei jurídico-moral, ou ainda como uma lei jurídica oriunda da razão prática, a qual dá a conhecer nossa liberdade no âmbito externo.
207 O sentido da sinteticidade aqui apresentado fora desenvolvido primeiramente por Xxxxxxx Xxxxxxxx. Cf. XXXXX, 2016, 146.
208 Cf. RAWLS, 2005, 183-4.
somos coagidos pela lei, de forma que a observância desta não se dá de forma natural, mas por obrigação209.
Neste sentido, para seres que seguem naturalmente a lei moral sem que esta se converta em dever, portanto, para seres de uma vontade santa, a lei moral é puramente analítica, pois a afirmação de que um ser como Deus, por exemplo, possui vontade santa, ou que sua vontade expressa a lei moral, possui o mesmo sentido. Assim, se digo que a vontade santa de Deus é moral, não introduzo nenhum elemento novo ao juízo, já que o termo “vontade moral” é sinônimo de “vontade santa”. Por outro lado, quando pensamos no arbítrio humano (livre-arbítrio), totalmente influenciado pela sensibilidade, o qual não segue a lei naturalmente, devendo antes ser coagido por ela, a lei moral torna-se sintética, já que o seu cumprimento ocorre por esforço, exige virtude210. Por isso, nos seres finitos como nós, há sempre o poder de escolha se queremos seguir o que a lei determina ou não. Assim, o arbítrio é constantemente coagido a afastar-se dos estímulos que vem da sensibilidade e a seguir a lei, de tal forma que a ideia de uma vontade em consonância com a razão prática (seja sob o aspecto ético ou jurídico) deva ser efetivada em cada ação que realizamos. Mas a consciência da lei moral não implica ainda que sejamos livres, apenas que temos a consciência da liberdade, a qual pode ser alcançada internamente quando agimos motivados pelo dever e externamente quando agimos em conformidade com ele, isto é, quando nos adequamos ao imperativo da Ética ou do Direito. Portanto, “tornar a vontade moral”, ou ainda tornar as leis do Estado adequadas à vontade unificada é um processo infindável, pois depende sempre, em cada situação, das escolhas de nosso arbítrio, processo este que nos desafiará enquanto dure nossa condição humana dual.
Este sentido da sinteticidade precisa agora ser compreendido em conexão com a doutrina do Direito, afinal, se consideramos que Xxxx pensou o sistema jurídico como parte da metafísica, é preciso que ele possa ser apoiado por algum princípio sintético do qual possa auferir sua normatividade. Do contrário, o Direito poderá ser relegado às fileiras da Filosofia pré-crítica.
Xxxxxxx Xxxx é um dos autores que faz esta tentativa. Assim como Xxxxx, reconhece que, embora analiticamente o Direito derive da
209 Cf. MS, AA 06: 222.
210 “Portanto, a lei moral inevitavelmente humilha todo homem na medida em que ele compara com ela a propensão sensível de sua natureza”. KpV, AA 05: 74.
liberdade externa, neste nível analítico não é possível considerá-lo como um sistema normativo, assim como a passagem necessária da dimensão analítica à sintética não está muito clara nos escritos de Xxxx. Mesmo assim, é preciso encontrar um fundamento sintético, a fim de que o sistema do Direito (como um sistema de compatibilidade das liberdades) possa passar de uma teoria conceitual a uma teoria normativa, em que a lei universal ordena categoricamente respeitar a ordem.
Xxxx tenta então a dedução do Direito por uma via indireta, através de sua expressão particular, que é o conceito de posse. Neste sentido, ele reconstrói a argumentação kantiana acerca do fundamento da posse no estado de natureza dizendo que o direito de posse seria um direito adquirido e não consequência do caráter inato de nossa liberdade como homem. Assim, a dimensão analítica seria dada pela liberdade, porém, a sintética, por meio da posse inteligível, posse esta que Xxxx torna possível por meio do postulado jurídico da razão prática211, o qual estabelece uma conexão a priori entre a faculdade física para se ter algo sob o próprio poder e a legitimidade jurídica de se poder excluir de seu uso quem quer que seja, quando não haja mais detenção física. Tal postulado estaria em consonância com a ideia de uma vontade coletiva a priori, já que afirma que é um dever jurídico agir diante dos outros de modo que os objetos externos possam tornar-se propriedade de alguém e assim define um sistema de obrigações recíprocas em que cada um deve respeitar a tomada de posse dos outros.
Portanto, no entender de Xxxx o postulado jurídico resolve não só o fundamento da propriedade, mas do Direito em geral. O postulado liga sinteticamente o sujeito à propriedade e impõe a dimensão do respeito universal ao uso legítimo dos objetos, uso este que deve regular-se pela ideia de uma vontade geral, de modo que a dimensão normativo-sintética é criada no ato constitutivo da posse. Portanto, a ideia de liberdade é essencialmente prática, cujo conceito não é passível de nenhuma dedução teórica e só pode ser derivado própria razão como um factum. Contudo, há dois problemas na argumentação de Xxxx. O primeiro deles é constatado por ele próprio, pois, como a fundamentação da posse é usada para fundamentar a sinteticidade no Direito, acaba havendo uma prevalência dela sobre a liberdade, de tal modo que o sujeito jurídico acaba sendo identificado com o proprietário em vez do
211 “É possível ter como meu um qualquer objeto exterior do meu arbítrio; quer dizer, é contrário ao Direito uma máxima segundo a qual, se esta se convertesse em lei, um objeto do arbítrio devesse tornar-se em si (objetivamente) sem possuidor (res nullius). MS, AA 06: 246.
homem livre212. Um segundo problema é que o postulado jurídico da razão prática é uma lei permissiva e por isso não poderá ter validade permanente, mas apenas provisória, não tendo qualquer significado sem a realização do Estado civil, o único capaz de tornar a posse privada peremptória. Por isso, em sendo provisório, não é possível fundar efetivamente o Direito em tal postulado, já que não existe ainda a coerção externa. Neste sentido, o Direito no estado de natureza tem apenas a pretensão de juridicidade, na medida em que a vontade geral orienta as relações jurídicas para que ocorram em conformidade com a ideia de uma vontade omnilateral, porém não há ainda deveres e direitos produzidos por uma vontade efetiva. Sendo assim, este elemento de sinteticidade necessário à normatividade jurídica, só se dará com a entrada no Estado civil, quando passa a existir uma vontade pública efetiva. Portanto, no estado de natureza o Direito permanece analítico (já que somente a posse empírica é possível), embora haja já a ideia de que as relações jurídicas devam ser reguladas pelo princípio sintético da vontade unificada. Ou seja, há no estado de natureza apenas uma pretensão de sinteticidade e o Direito deve ser afirmado por comparação ao Direito no Estado, em que a vontade será respaldada pelo legislativo e pela força correspondente encarregada de fazer valer a normatividade da lei.
De nosso ponto de vista, e já nos encaminhando para a solução da questão, como ficou demonstrado pelos textos de Xxxx, a sinteticidade (tal como sugerida por Xxxxx e Xxxx) é uma exigência fundamental que nos faz a metafísica. No caso do Direito, para que ele faça parte da metafísica dos costumes, precisamos de alguma forma poder afirmar que o sistema dos deveres pode ser ancorado em algum princípio sintético. Por isso, como solução defendemos que o princípio do Direito (que é analítico), deverá ser complementado e apoiado por um princípio sintético, de tal forma que a dedução dos deveres jurídicos se dê por uma ação conjunta desses dois princípios. Porém, diferente de Guyer (que pensa o Direito como dependente da Ética, fundamentando assim os deveres jurídicos no imperativo categórico), defendemos a tese de que o princípio do Direito deve ser complementado pela vontade unida do povo, já que, em nossa interpretação, Direito e Ética são complementares e por isso os deveres jurídicos não se originam do imperativo categórico, mas da vontade unificada, que é a face jurídica da razão prática. Ou seja, o princípio da vontade unificada e o princípio
212 Cf. XXXX, 2012, 59-84.
do Direito, juntos xxxxxx conta de explicar que um sistema coercitivo poderia ser justificado, cabendo ao Direito a função de coagir um uso indevido da liberdade e à vontade unificada fornecer a normatividade dos deveres, pois só uma vontade que é comum a todos teria o poder de gerar uma obrigação que não onere mais a uns do que a outros através de leis universais. Esta vontade, no estado de natureza é apenas uma ideia a priori, porém no Estado civil manifesta-se através do legislativo, o qual representa todo um povo, assim como é dele que decorre todo o Direito: “o poder legislativo só pode caber à vontade unida do povo. Uma vez que dele deve decorrer todo o Direito, não pode ele causar com a sua lei injustiça absolutamente a ninguém”213.
Portanto, detalhando melhor a questão, o princípio do Direito é analítico, como Xxxx afirma e isso não pode ser negado obviamente, pois no Direito, o fim, do ponto de vista subjetivo, mas não objetivo, pode ser qualquer um, enquanto os deveres de virtude da Ética exigem que os fins sejam objetiva e subjetivamente deveres. Portanto, o princípio do Direito pode ser deduzido analiticamente da liberdade externa. Mas, deve-se recordar duas coisas: (1) a liberdade, inclusive a externa, é incognoscível, ela pode ser pensada, como uma ideia reguladora da razão, mas não pode ser conhecida. A sua validade objetiva é demonstrada indiretamente, porque ela é uma condição de possibilidade da lei moral, ou seja, é o conhecimento da lei moral, cuja consciência permanente nunca pode ser apagada que é, como se fosse, um factum da razão. Portanto, também no Direito não se pode fundamentar diretamente os deveres jurídicos na liberdade, a qual permanece incognoscível e cuja demonstração depende de sua consequência. Não há demonstração direta da liberdade para as suas consequências. (2) Xxxx nunca afirmou que o princípio do Direito é o único princípio que determina os deveres jurídicos, ao contrário, além do princípio do Direito ele insiste tanto em Teoria e práxis214, como
213 MS, AA 06: 313.
214 “Com efeito, todo o Direito depende das leis. Mas uma lei pública que determina para todos o que lhes deve ser juridicamente permitido ou interdito é o ato de um querer público, do qual promana todo o Direito e que, por conseguinte, não deve por si mesmo cometer injustiças contra ninguém. Ora, a este respeito, nenhuma outra vontade é possível a não ser a de todo o povo (já que todos decidem sobre todos e, por conseguinte, cada um sobre si mesmo): pois só a si mesmo é que ninguém pode causar dano [...], por conseguinte, nenhuma vontade particular pode ser legisladora para um corpo comum”. TP, AA 08: 294-5.
na Introdução à doutrina da virtude215 que os deves jurídicos provém da vontade unificada do povo. Além disso, quando do tratamento do Direito privado na MS, Xxxx mostra que o princípio do Direito (que é analítico) fundamenta a posse empírica com a detenção física do objeto, pois quem me retira de um lugar pela força ou toma de minhas mãos um objeto que detenho fisicamente, age contra o meu interior, contra a minha liberdade inata, mas só a vontade unificada do povo fundamenta a posse meramente jurídica sem a detenção física do objeto, pois só a vontade omnilateral pode determinar que os demais se abstenham de usar um objeto externo de meu arbítrio216. Portanto, os dois princípios (o princípio do direito e a vontade unificada) são necessários para fundamentar os deveres jurídicos, mas só a vontade unificada do povo prova que a posse meramente jurídica é um juízo sintético a priori. Logo, a conclusão mais correta é que o princípio do Direito é analítico. Assim, para que os deveres jurídicos sejam sintéticos, como ele demostrou no caso da “dedução da posse meramente inteligível” é necessário pressupor que há um outro princípio que colabora com o princípio do Direito na fundamentação dos deveres jurídicos, que é a vontade unificada do povo.
215 “Só que na Ética esta lei (o imperativo categórico) é pensada como a lei da própria vontade, não da vontade geral, que também poderia ser a vontade dos outros, caso em que daria origem a um dever jurídico, que não pertence ao domínio da Ética”. MS, AA 06: 389 (parênteses acrescentados).
216 Cf. MS, AA 06: 263.
3. DO ESTADO DE NATUREZA AO ESTADO CIVIL
Após termos esclarecido que o contrato, enquanto uma ideia reguladora prática, precisa ser pensado no contexto da filosofia prática kantiana (da qual aufere sua normatividade); bem como que o Direito (que é analítico), em sendo um produto desta mesma razão prática, deve ser complementado por um princípio sintético, passamos agora à abordagem do estado de natureza, bem como da passagem deste ao Civil. Veremos que Xxxx não pensa a criação do Estado por meio de um consenso efetivo. Antes, que a violência é a causa de sua existência no âmbito histórico-antropológico e no âmbito racional a sua criação é um dever.
O primeiro conceito que analisaremos é o estado de natureza217. Porém, antes de tudo é preciso fazer um esclarecimento acerca do modelo de abordagem deste estado. Seguindo os demais contratualistas, Xxxx também parte do estado de natureza, embora se aproxime bastante de Xxxxxxxx ao fazer, por um lado, uma descrição genético-evolutiva (histórico-antropológica) a seu respeito, e, por outro, uma descrição racional. Esclarecemos que a descrição histórico-antropológica não se trata de uma abordagem empírica do estado natural, como se Xxxx estivesse reconstruindo a história empírica do desenvolvimento da humanidade, ainda que de forma conjectural, como ele mesmo expressa218. Contudo, num olhar atento à sua teoria, constata-se que em Xxxx existem dois planos219 de abordagem. Um primeiro plano (plano A) seria aquele do dever (plano racional), em que a história deveria ser
217 Existem em Kant quatro situações que se configuram como estado de natureza: a primeira seria o estado primitivo (de inocência) da humanidade; a segunda situação remonta àqueles locais em que não haveria regulação jurídica, como é o caso, por exemplo, de uma ilha, em que eu poderia pescar sem que isso cause dano ao direito dos outros; a situação terceira seria aquela em que ocorre uma revolução e, consequentemente, a destituição do soberano, ficando assim o Estado destituído de um poder legal; finalmente, em quarto lugar estaria numa condição de estado de natureza a relação entre os Estados, enquanto não constituam uma liga de nações no intuito de evitar a guerra e buscar a paz perpétua. Visando não nos estender demais nesta questão, seguiremos o modelo de abordagem bipartida comumente usado pelos comentadores, tratando o estado natural a partir de uma perspectiva histórico-antropológica, bem como de uma perspectiva racional.
218 Cf. MAM, AA 08: 109.
219 Sou grato ao professor Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx por me ajudar a perceber esta nuance no pensamento de Xxxx.