Cláusulas Contratuais Gerais, Cláusulas
Cláusulas Contratuais Gerais, Cláusulas
Abusivas e o Novo Código Civil
Xxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxxx
Professor da Universidade de Lisboa
1. A génese do ”contrato de adesão”
A problemática que nos propomos versar só se apreende devida- mente se tivermos presente a viragem radical que no plano da funda- mentação da validade dos negócios ¡urídicos foi realizada no séc. XVIII. Anteriormente, a vinculatividade dos contratos estava dependen-
te de um controlo da sua Justiça intrínseca. De tal maneira que, na Idade Média, Justiça e Direito quase se confundiam.
Mas o voluntarismo germina e desenvolve-se, acabando por ser acolhido como a causa geral da vinculatividade do Direito. No plano dos contratos, trouxe a fundamentação destes na autonomia da vonta- de. O contrato vale porque foi querido – pacta sunt servanda.
O individualismo e o liberalismo, a seguir triunfantes, levaram ao extremo esta orientação. O conteúdo dos contratos torna-se irrelevante: a obrigatoriedade destes assenta no consentimento, pois se a parte con- sentiu, não se pode desvincular.
O relativismo, o positivismo e o formalismo, que se desenvolvem do séc. XIX e persistem até ho¡e, dão um bom caldo de cultura para esta visão. Só um vício do consentimento pode pôr em causa a validade do contrato. A Justiça é incognoscível: não é operacional como determinante da validade dos contratos.
Mas logo a partir do séc. XIX este paradigma começa a ser posto em causa, pelos resultados a que conduz.
Para o nosso tema, interessa-nos particularmente o que respeita ao que se chamou o contrato de adesão. A sociedade industrial trouxe as grandes concentrações urbanas e profundas desigualdades. Nasce a soci- edade de massas. E nesta, é impossível manter a negociação individualiza- da dos contratos. Grande número de contratos passa a ser predisposto
pela parte económico-socialmente mais forte, de modo que aos destinatá- rios só resta aderir ou abster-se. O diálogo particular desaparece.
Mas poderá ainda falar-se, nessas circunstâncias, em contrato?
A que fica reduzida a autonomia privada?
De facto, não há para o aderente liberdade de criação de tipos negociais, nem liberdade de estipulação. Nem sequer há na maior par- te dos casos liberdade económica de celebração, porque o aderente não pode prescindir de bens ou serviços essenciais.
Mas há a liberdade jurídica de celebração. Desde que o aderente consentiu, fica vinculado. Pacta sunt servanda.
A discussão desloca-se então, no séc. XIX e em todo o séc. XX, para a análise do consentimento do aderente. Pergunta-se se esse con- sentimento tem falhas que inquinem o contrato. Quer dizer, de início procura-se combater as grandes anomalias destes contratos, em que o predisponente se reserva sempre todas as vantagens, através do recur- so a princípios gerais do direito.
Mas apenas se conseguem tímidos retoques, porque as ordens ¡u- rídicas não ofereciam meios de combate directo a essas situações. Não há praticamente cláusulas gerais para controlo do conteúdo dos contra- tos. Só restam por isso os pressupostos comuns dos negócios ¡urídicos:
– a capacidade do aderente
– o ob¡ecto do consentimento e o conhecimento das cláusulas que este pressupõe
– o erro
– a interpretação negocial (e a integração).
1) No que respeita à capacidade, suscitam-se problemas em hi- póteses tão banais como a do menor que via¡a no ónibus. Como pode celebrar um contrato?
A questão não parece ter encontrado resposta no novo Código Civil brasileiro, ao contrário do que acontece em códigos europeus re- centes.
Porém, a dificuldade não é específica do contrato de adesão. Mani- festa-se em todos os actos da vida corrente que são praticados por meno- res. Por isso dispensamo-nos de o examinar especificamente neste lugar.
2) O desconhecimento do conteúdo do contrato representou o ponto principal do debate. Como dizer que o aderente consente quan- do as cláusulas lhe são comunicadas após a celebração do contrato?
Ou quando estão afixadas nas paredes da lo¡a? Ou quando se inserem em letra quase ilegível no verso do formulário?
Por outro lado, realisticamente, revela-se a impossibilidade práti- ca de o aderente conhecer todas as cláusulas, porque se não, não che- ga a contratar: passa o tempo a ler clausulados. Todos nós, ¡uristas ou não, celebramos afinal contratos sem tomar conhecimento das cláusu- las predispostas.
3 ) Poderia pensar-se em invocar o erro. Mas, ainda que fosse possível, não seria remédio adequado. O aderente teria de pedir a anu- lação de cada contrato quando estivesse em erro. O que não é obvia- mente uma solução praticável.
4) No domínio da interpretação, os melhores autores foram de- fendendo o princípio que a interpretação se deveria fazer contra o predisponente. Este tem a experiência que lhe permite formular as cláusu- las que o defendam: se uma cláusula é ambígua, só a ele é imputável.
2. A génese das “cláusulas contratuais gerais"
Tudo isto foi lento, penoso e insuficiente. A verdade é que os ins- trumentos gerais não eram adequados para resolver questões inteira- mente novas.
Para além disso, havia uma ambigüidade na colocação da ques- tão. Falando-se em "contrato de adesão", referia-se a uma modalidade de contrato, caracterizada por ser imposto em bloco sem possibilidade de discussão pelos destinatários. Mas a questão era mais vasta, e dife- rente. Não se tratava de um tipo de contrato, mas de uma categoria de cláusulas. Bastava que uma cláusula fosse imposta ne varietur, ainda que todas as outras fossem ob¡ecto de negociação, para que a questão da maior força negocial se suscitasse. Não haveria então contrato (todo) de adesão, mas haveria cláusula(s) unilateralmente imposta(s).
Só com o Código Civil italiano em 1942 se dá o grande passo neste sentido. Este prevê as chamadas condições gerais dos contratos. E determina que as cláusulas onerosas devem ser expressamente aceitas.
Se o avanço foi grande no que respeita à configuração do tema, não o foi na solução trazida. Esta é irrealista: é impossível que nos con- tratos de massa, nos serviços fundamentais como a água ou a electricidade, por exemplo, ha¡a uma aceitação individualizada de cláu- sulas predispostas.
A lei alemã de 1978, chamada AGBGesetz, dá outro passo. Faz uma regulação mais completa, que se tornou paradigmática. E entra na valoração do conteúdo, determinando quando estas cláusulas ge- rais são proibidas.
Há porém que observar que, mais ainda talvez que a proteger o aderente, a lei alemã se destina a assegurar o tráfego ¡urídico. A primei- ra preocupação é impor que estas cláusulas se integrem no conteúdo do contrato. O critério determinante é colocado na cognoscibilidade: as cláusulas compõem o contrato, desde que ao destinatário se¡a dada a possibilidade de tomar conhecimento delas.
Temos assim consolidada a categoria das "condições gerais dos con- tratos", como cláusulas predispostas unilateralmente para uma generali- dade de pessoas, que não têm possibilidade de discutir o seu conteúdo. As várias ordens ¡urídicas européias foram regulando esta matéria.
A lei portuguesa trouxe um progresso no ponto de vista da desig- nação, uma vez que passou a falar de "cláusulas contratuais gerais", em vez de "condições gerais dos contratos". Assim evita o termo condi- ção, que é ambíguo. Poderia ter avançado mais no saneamento terminológico, se tivesse adoptado a epígrafe "cláusulas negociais ge- rais". Com efeito, pode haver cláusulas inalteravelmente predispostas em negócios unilaterais: se¡a o caso de valores mobiliários, como os relativos a derivados (futuros e opções)1.
Ainda no domínio da terminologia, falamos em predisponente para designar aquele que dita inalteravelmente as cláusulas do negó- cio. Pouco interessa que, no rito negocial, ele apareça como o propo- nente ou o aceitante. Assim, nos contratos de seguros, a companhia surge formalmente como o aceitante de propostas que lhe são dirigidas. Mas é ela quem predispõe unilateralmente as cláusulas, e por isso é o predisponente.
Do outro lado está o aderente. A sua posição é sempre a de aderente às cláusulas contratuais gerais. A designação não implica qualquer retorno à figura do "contrato de adesão".
De todo o modo, a disciplina das cláusulas contratuais gerais evoluiu a partir daí no sentido de se concentrar sobretudo na determi- nação das cláusulas predispostas que deveriam ser proibidas. Ou atra-
1 Cfr. o nosso Derivados (no prelo).
vés do controlo por cláusulas gerais, como a boa-fé, ou através de elen- cos de cláusulas inadmissíveis, ou por formas mistas, entra-se directamente na apreciação do conteúdo.
A categoria das cláusulas contratuais gerais não teve praticamente acolhimento no Brasil. Não o teve na lei; e a doutrina e a ¡urisprudência continuaram a referir o contrato de adesão, e não a categoria mais escorreita das cláusulas contratuais gerais.
Foi o contrato de adesão que veio a ter consagração legal no Código de Protecção e Defesa do Consumidor; e é ele que surge agora referido nos arts. 423 e 424 do novo Código Civil (NCC)2.
Serão considerados nos lugares respectivos. Agora há que obser- var que, se bem que a técnica se¡a diferente, desde que ha¡a num con- trato uma ou mais cláusulas contratuais gerais o contrato é qualificado como contrato de adesão. Mas a correspondência não é biunívoca: aqueles artigos do Código Civil também abrangem os contratos que contenham cláusulas individuais, desde que do mesmo modo tenham sido predispostas, sem possibilidade de alteração pelos destinatários. Destas falaremos seguidamente, a propósito das cláusulas abusivas.
3. A génese do instituto das cláusulas abusivas
A partir da segunda metade do séc. XX surge novo instituto: o das cláusulas abusivas, por influência dominante do movimento de protecção do consumidor.
O consumidor é a parte negocialmente mais fraca. Há que protegê-lo contra cláusulas abusivas, porque emanação da maior for- ça do fornecedor.
Mas o carácter abusivo da cláusula não está dependente de esta ser geral ou singular. Mesmo em contratos individualmente pactuados surgem cláusulas abusivas: aqui se dá a separação da técnica das clá- usulas contratuais gerais. A questão estará então somente em determi- nar os critérios da abusividade das cláusulas.
Esta categoria foi irrompendo em numerosas leis de defesa do consumidor da Europa. É também aquela que acaba por receber con- sagração no Código de Protecção e Defesa do Consumidor brasileiro3.
2 O art. 423 é ob¡ecto da proposta de alteração de Xxxxxxx Xxxxx, que examinaremos mais tarde.
3 Lei n.º 8078, de 11 de Setembro de 1990.
A relação desta matéria com as categorias precedentes tornou- se difícil. O Código do Consumidor brasileiro a todas integra (embora as "cláusulas contratuais gerais" só mediatamente, através dos contra- tos de adesão). Torna-se por vezes difícil determinar o que pertence a umas e outras.
O problema não é específico do Brasil. A Comunidade Européia desenvolveu regras sobre as cláusulas abusivas nos contratos com con- sumidores. Essas regras vieram a ser transpostas para os ordenamentos internos, passando normalmente a figurar nos mesmos diplomas que regulavam ¡á as cláusulas contratuais gerais. A coexistência não foi pacífica, porque as cláusulas abusivas individuais não se prestam à dis- ciplina que foi estabelecida tendo em vista as cláusulas gerais4.
Mais especificamente dedicado à matéria das cláusulas abusivas,
temos no Código do Consumidor o Capítulo VI (Da Protecção Contratual), Secções I e II.
A Secção I é intitulada "Disposições gerais" e a II "Das cláusulas abusivas". Mas da primeira secção constam disposições que tradicio- nalmente haviam sido associadas à problemática das cláusulas contratuais gerais, mas agora aplicadas também às cláusulas individu- ais abusivas: como se¡am a necessidade de conhecimento das cláusu- las pelos consumidores (art. 46) e a interpretação destas da maneira mais favorável ao consumidor (art. 47)5.
Entra-se depois nas cláusulas abusivas, indicando-se as que são nulas de pleno direito (art. 51). Não se referem às cláusulas gerais, cu¡a problemática é até muito ultrapassada; mas estas estão também segu- ramente abrangidas, desde que tenham conteúdo abusivo.
Por outro lado, não só se não exige que as cláusulas abusivas se¡am gerais, como se admite que tenham sido ob¡ecto de negociação individual. O que é decisivo é o próprio carácter abusivo das cláusulas.
Perante isto, qual a posição do Código Civil?
Falar de um código que não entrou ainda em vigor é sempre uma tarefa de alto risco. Mas podemos dizer que a categoria da cláusula abusiva
4 Cfr. sobre esta matéria o nosso "Cláusulas contratuais gerais, cláusulas abusivas e boa fé", in Revista da Ordem dos Advogados (Lisboa), ano 60, II, Abr/00, 573-595; e in separata à Revista Forense, v. 352, 103-114.
5 Trata-se depois também dos escritos que vinculam o fornecedor (art. 48), do direito de desistên- cia (art. 49) e da garantia contratual (art. 50).
não é nele acolhida como tal. O que o código regula, aliás brevemente, nos arts. 423 e 424, são os contratos de adesão. Portanto, a lei civil só a esses contratos se aplicaria. Daqui resultaria que as regras sobre cláusu- las abusivas continuariam a só beneficiar o consumidor.
Mas surge uma dificuldade de grau maior. O Código do Consu- midor, embora de modo tecnicamente incorrecto, generalizara ¡á a to- das as pessoas algumas regras que tinham sido inseridas visando apa- rentemente o consumidor só. O art. 29 do Código do Consumidor, que abre o Capítulo V (Das Práticas Comerciais) declara ¡á que se equipa- ram aos consumidores todas as pessoas, determinadas ou não, "ex- postas às práticas"6 previstas nesse capítulo e no seguinte. O capítulo seguinte é o VI, donde consta a disciplina das cláusulas abusivas, que ora examinamos.
Essa disciplina era pois ¡á genérica. Surge o Código Civil e omi- te-a, salvo no que respeita aos contratos de adesão. Devemos concluir que os restantes preceitos deixaram de se aplicar às pessoas que não forem consumidores?
Não houve revogação tácita, porque não há incompatibilidade. Também não houve revogação expressa, porque só o Código Civil e a 1ª parte do Código Comercial foram revogados (art. 2045 NCC). Po- deria pensar-se na revogação global, resultante de uma matéria ter sido complexivamente regulada de novo7. Mas as cláusulas abusivas e, mais genericamente, a valoração do conteúdo dos negócios não foram ge- nericamente disciplinadas pelo NCC: há apenas fragmentos, em parti- cular os relativos ao contrato de adesão.
Atrevemo-nos por isso a supor que as disposições gerais cons- tantes do Código do Consumidor continuam em vigor. Pelo menos, tudo indica que isso está conforme à intenção do legislador, pois não se vê que o NCC pretendesse alterar a situação que resultava ¡á do Código do Consumidor. Este fora aproveitado, na falta de aprovação do novo Código Civil, para actualizar alguns aspectos fundamentais da ordem
¡urídica brasileira.
6 A expressão traz dificuldades de interpretação, mas abrange sem dúvida a exposição às cláusu- las abusivas.
7 O Direito – lntrodução e Teoria Geral – Uma Perspectiva Luso-Brasileira, 2ª ed. bras. (12ª geral), Renovar (Rio de Janeiro), 2001, nº 174.
4. A integração no conteúdo do contrato e o mútuo consenso
Passamos a examinar o regime global destas cláusulas resultante do Código do Consumidor e do NCC. Comecemos pelo ponto prioritário, que consiste em saber quando se considera que as cláusulas se inte- gram no conteúdo do contrato.
Não se encontra regra que imponha que estas cláusulas se¡am ob¡ecto de estipulação específica8. A indagação passa então a centrar- se no requisito da aceitação do destinatário. Nomeadamente, quando está em causa um contrato, como se pode dizer que se formou o acor- do, ou mútuo consenso, das partes?
Este ponto é fundamental, mas o Código Civil nada diz. Pode por isso criar-se o cepticismo quanto à qualificação da relação assim forma- da como contratual. Mas por outro lado, se não há um contrato, como aplicar o regime contratual a estas situações, como toda a gente faz?
Verifica-se um recuo, consistente em exigir, em vez do conheci- mento (e portanto o consentimento) efectivo, a mera cognoscibilidade como pressuposto do mútuo consenso. Assim procedia ¡á o art. 1341 do Código Civil italiano.
O art. 46 do Código do Consumidor exige que se¡a dada ao des- tinatário a oportunidade de tomar conhecimento prévio do conteúdo. Os contratos também não obrigarão se os instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão. Ainda, o art. 54 § 3º exige que os contratos de adesão escritos se¡am redigidos em termos claros e legíveis; e o § 4º, que as cláusulas que implicarem limitações se¡am redigidas com destaque, permitindo a sua imediata e fácil compreensão.
Vemos assim que se fez ¡á o trânsito, do conhecimento efectivo para a cognoscibilidade e inteligibilidade fácil do conteúdo. Há muitas maneiras de ocultar uma informação; até serve para o efeito o excesso de informação, que disfarce no amontoado de dados a cláusula que é ¡uridi- camente relevante. O Direito reage contra estes processos ardilosos.
Mas surge o Código Civil e nada se encontra, a propósito do contrato de adesão. Como proceder então?
Pode-se apelar para cláusulas de cúpula, como a boa-fé, que fora proclamada com generalidade imediatamente antes (art. 422
8 Excetua-se o art. 18 § 2.º do Código do Consumidor, que determina que nos contratos de adesão a cláusula de alteração do prazo de sanação do vício do produto deverá ser convencionada em separado, por manifestação expressa do consumidor.
NCC). Mas o apoio em cláusulas tão gerais é inseguro, e por outro lado não é possível reconduzir todas as hipóteses em que não foi dado conhecimento prévio a condutas de má-fé.
Há que recordar que aqueles princípios do Código do Consumi- dor são ¡á ho¡e apresentados como genéricos (art. 29); e que concluíra- mos que a intenção do NCC não foi a de os revogar. São trechos da disciplina civil, mas permanecem infelizmente fora da codificação civil. Daqui resulta que estas cláusulas, se¡am genéricas se¡am indivi-
duais abusivas, devem ser apresentadas ao destinatário previamente à celebração do negócio, em condições de poder ser dele conhecidas. Se o não forem a conseqüência é radical: não se integram no conteúdo do contrato. Não são sequer inválidas, porque não chegam a ser conteú- do contratual.
Na mesma situação devemos considerar as überraschende Klauseln, por aparecerem em lugares surpreendentes do contrato. Isto vai contra a fácil apreensão da cláusula que a lei reclama. Em conse- qüência a cláusula de surpresa não é inválida: mais do que isso, não produz efeito algum. Diríamos que é uma cláusula inexistente.
Mas uma coisa é a cláusula ser cognoscível, outra ter sido ob¡ecto do mútuo consenso.
É impossível falar de uma presunção de conhecimento das cláu- sulas cognoscíveis. A presunção exprime id quod plerumque accidit. A experiência diz-nos pelo contrário que é uma fatalidade que a quase totalidade dos contratos, pelo menos dos que contêm cláusulas contratuais gerais, se¡am celebrados sem as pessoas tomarem conheci- mento dos seus termos.
Isto leva-nos para caminhos cada vez mais perigosos. O mútuo consenso é ob¡ecto de corrosão. Transita-se de um mútuo consenso sobre um conteúdo para um consenso na celebração do negócio, e não propriamente sobre as cláusulas constitutivas deste.
É um ponto que não podemos aprofundar. Pelo menos, have- rá que pôr limites a esta suficiência do consenso a ficar vinculado por um contrato. Nunca poderia bastar um acordo em branco de su¡eição a um contrato ou a cláusulas predispostas pela outra par- te. Deve haver um consenso sobre a celebração de um certo con- trato, sobre certo ob¡ecto. E para além disso, é essencial que no acordo se delimite um conteúdo económico determinado. Tudo o
8 O Revista da EMERJ, v. 7, n. 26, 2004
que se afastar do núcleo económico em que se acordou ¡á está fora do mútuo consenso.
Ainda, e no que respeita às cláusulas contratuais gerais / contra- tos de adesão, a lei só admite essa forma de vinculação porque pressu- põe que o predisponente estabelece o regime que está dentro da nor- malidade daquela relação. Essa é a contrapartida imposta pela ordem
¡urídica ao reconhecimento dum poder unilateral de regulação. Se as cláusulas saem da normalidade e o predisponente aproveita a sua mai- or força para sacrificar os destinatários, ¡á as cláusulas predispostas não podem valer, porque deixam de satisfazer a ratio da norma que as admite.
5. O erro
Suponhamos que se ultrapassa essa fase. As cláusulas integram- se no conteúdo do contrato. E se, não obstante, o destinatário (que não tem o conhecimento efectivo do conteúdo) está em erro sobre elas?
Passa-se à problemática do erro, que é como dissemos uma das clássicas neste domínio. O erro, se relevante, seria um vício na forma- ção de vontade. A ignorância duma dada cláusula equivaleria aqui ao erro, pois sempre haveria a falsa representação da realidade (mesmo que por incompleição).
Nos termos gerais, o erro terá de ser essencial para ser relevante. Que acontece pois, se o destinatário está em erro essencial quanto ao conteúdo do contrato?
Deverão concorrer ainda os demais pressupostos de relevância do erro. Será sobretudo importante saber se se deve exigir ou não a desculpabilidade do erro, que o NCC não refere expressamente (arts. 138 e segs.)9.
Se mesmo o erro indesculpável viciar o negócio, haverá que nos interrogarmos sobre as consequências da leviandade do errante. Have- rá então responsabilidade civil, nos termos da chamada culpa in contrahendo. Mas a responsabilidade tem efeito apenas sobre o dever
9 Cfr. o nosso Direito Civil – Teoria Geral – ll – Acções e Factos Jurídicos, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2003, n.º 72, em que concluímos que se o erro é censurável, o agente não pode prevalecer-se dele; mas se a contraparte for por sua vez censurável, por o erro ser reconhecível e ela não o ter reconhecido, a desculpabilidade do erro deixa de novo de ser exigida.
de indemnizar. Não cria obstáculo ao exercício da faculdade de anula- ção do contrato – e apenas esta é o nosso ob¡ecto.
Mas, como dissemos ¡á10, o recurso ao erro, mesmo a ser admissível, só dá uma defesa muito escassa, particularmente no domí- nio dos contratos de massa. A anulação exige a iniciativa do destinatá- rio da cláusula viciada: o art. 177 NCC dispõe que a anulabilidade não tem efeito antes de ¡ulgada por sentença. Fica pois a anulação depen- dente de acção ¡udicial. Na maior parte dos casos seria ruinoso intentá- lo, perante a exiguidade dos valores em ¡ogo.
Deverá haver outros meios de protecção do destinatário das cláusulas.
6. A interpretação
Mesmo antes de haver lei, criou-se a tradição da interpretatio contra stipulatorem.
O art. 47 do Código do Consumidor determinou que as cláusulas contratuais serão interpretadas da maneira mais favorável ao consumi- dor. Dissemos ¡á que esta é uma das disposições que foi generalizada, para aproveitar mesmo aos destinatários não consumidores (art. 29).
O NCC retoma esta matéria a propósito do contrato de adesão. O art. 423 dispõe que, havendo no contrato cláusulas ambíguas ou contraditórias, adoptar-se-á a interpretação mais favorável ao aderen- te. É uma regra de todo ¡ustificada, como dissemos11, porque toda a dificuldade de interpretação é imputável ao predisponente.
Mas ¡á há outro elemento a anotar. O Pro¡ecto Fiuza de alteração ao NCC atinge também este preceito. Para além da generalização, es- tabelece uma redacção mais favorável ao aderente; e elimina a restri- ção às cláusulas ambíguas ou contraditórias.
Pode suscitar-se também a problemática da integração12. Podem ter ficado pontos por regular no contrato, que todavia são necessários para a efectivação deste. Se os elementos verdadeiramente essenciais do contrato forem ¡á definitivos – portanto, se há o acordo económico e a estruturação ¡urídica mínima que lhe corresponde – o contrato pode
10 Supra, n.º 1.
11 Supra, n.º 1.
12 Não discutimos aqui se se trata de verdadeira integração, se da chamada interpretação complementadora do contrato.
ser integrado, dentro do espírito do aproveitamento ou conservação dos negócios ¡urídicos.
Mas o mesmo critério básico continua aqui aplicável. A cláusula integranda, na dúvida, será a favorável ao aderente. O predisponente teve todas as condições para prever uma solução diferente13.
7. O conteúdo
Chegamos ao ponto fundamental, que é o relativo ao próprio conteúdo destas cláusulas.
A situação que antecedeu o Código do Consumidor era difícil; só princípios gerais, sem concretização, permitiriam entrar na apreciação do conteúdo das cláusulas. Isto criava grande insegurança14.
O Código do Consumidor regula o contrato de adesão, mas é omisso quanto ao conteúdo das cláusulas. O preceito de maior interes- se era o do art. 6 V, que declara direito básico do consumidor a modifi- cação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações despro- porcionais ou a sua revisão em razão de factos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. Mas esta matéria é restrita ao Direito do Consumidor; escapa à generalização ex art. 29.
O NCC não acolheu nenhuma previsão da disciplina do contrato de
adesão do Código do Consumidor. Apenas o Pro¡ecto Fiuza generaliza o § 3.º, que originaria um novo § 1.º do art. 423. Mas mesmo este respeita à integração das cláusulas no conteúdo dos contratos, de maneira a serem compreensíveis pelos destinatários, e não ao conteúdo destas.
A novidade do NCC está no art. 424, que determina que são nulas no contrato de adesão as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.
13 Matéria ainda conexa à da interpretação é a constante dos arts. 30 e 35 do Código do Consumidor, sobre a relevância da publicidade: obriga o fornecedor e permite, em caso de recusa, a rescisão do contrato. Mas esta regra não parece admissível fora dos contratos com consumidores. Por seu lado, o NCC não contempla estes pontos, nem sequer esclarece se a proposta deve ser interpretada de acordo com a publicidade do proponente. Mas a questão ultrapassa ¡á a matéria das cláusulas que aqui nos ocupa.
14 Assim, Xxxxxxx Xxxxx alvitrou a hipótese da nulidade das cláusulas gerais (de contratos de adesão) que se afastassem de disposições supletivas. Não vemos nenhuma verossimilhança em semelhante entendimento, uma vez que se trata ¡ustamente de regras supletivas. O mesmo diremos da atribuição de um poder de revisão ao ¡uiz, que nem tem base positiva nem seria dese¡ável. Quanto ao recurso ao princípio geral da boa-fé, ve¡a-se a crítica que adiante fazemos.
O enunciado é difícil de interpretar. Os elementos que pertencem à natureza do negócio são típicos. Quererá dizer que se não pode re- nunciar antecipadamente a elementos do tipo?
Se¡a qual for a interpretação, o preceito deixa-nos perplexos. São dezenas as previsões de cláusulas proibidas que surgem nas leis moder- nas. Teremos de concluir que a lei brasileira só encontrou matéria de proibição nesta cláusula singular?
Do art. 424 resulta porém um aspecto positivo: a nulidade que atribui à cláusula. Ficamos a saber que a conseqüência do recurso a cláusulas proibidas (ou à cláusula proibida) é a nulidade.
Porém, se o NCC pouco nos orienta no controlo do conteúdo das cláusulas, ¡á nos parece ser muito importante a proximidade que existe no Código do Consumidor entre esta matéria e a das cláusulas abusivas15. Dissemos que esta disciplina foi generalizada pelo Código do Consumidor16. Dissemos também que entre as cláusulas abusivas se contam as cláusulas contratuais gerais abusivas. Como por outro lado
¡á sabemos que não há que entender o laconismo do Código Civil so- bre a matéria como significativo duma revogação, temos de concluir que o principal manancial a que recorrer para a determinação das clá- usulas proibidas são ho¡e os arts. 51 a 53 do Código do Consumidor.
Passamos então a examinar os critérios legais de determinação das cláusulas proibidas.
8. Critério de determinação das cláusulas proibidas
Procurando caracterizar fundamentalmente o esquema legal, ve- mos que a consequência estabelecida coincide com a do NCC. O art. 51 do Código do Consumidor abre com as palavras: "São nulas de pleno direito...".
A lista das cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de pro- dutos e serviços é exemplificativa. Logo no proémio se diz que são nulas, "entre outras, as cláusulas...".
15 Embora se trate de uma proximidade que não originou o lançamento de referências. O art. 54, sobre contrato de xxxxxx, segue imediatamente a disciplina das cláusulas abusivas, sem haver reciprocamente nenhuma remissão.
16 Salvo se razões particulares obstarem a essa generalização. Será o caso do art. 51 § 4.º, que faculta ao consumidor requerer ao Ministério que a¡uíze a competente acção... Trata-se de típica regra de protecção do consumidor, não generalizável. Nas relações que se não estabeleçam entre fornecedor e consumidor, aplicam-se as regras normais.
Isto está em sintonia com o que se passa noutras ordens ¡urídi- cas. Mas surpreende que não se dê um critério para determinação de essas outras cláusulas proibidas, contra o que estabelecem legislações em situação semelhante.
Afinal, esse critério surge de envolta com previsões singulares, no inciso IV do art. 51: são nulas as cláusulas que "estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvan- tagem exagerada, ou se¡am incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade".
De facto, não há uma especificidade típica, há o mero enunciado de critérios gerais. Basta pensar que entre estes critérios ou qualifica- ções se encontra a própria categoria que haveria que esclarecer – são abusivas as cláusulas que estabeleçam obrigações abusivas. Nada adi- anta como orientação neste domínio.
Tirando esta previsão inútil, resta ainda no preceito uma sobreposição de critérios. São nulas as cláusulas que estabeleçam obrigações:
– iníquas
– que importem desvantagem exagerada
– incompatíveis com a boa-fé
– incompatíveis com a eqüidade.
Esta complexidade pode porém ser reduzida.
Iníquo é o que contraria a Justiça.
A desvantagem exagerada caracteriza ¡ustamente a situação de in¡ustiça ob¡ectiva17.
A lesão da eqüidade é ainda lesão da Justiça. Mas caracteriza-se por ser a Justiça do caso concreto: permite a apreciação de todas as circunstâncias do caso, o que em geral não é permitido.
Há contradição no recurso simultâneo à Justiça e à eqüidade. No concurso de ambas, a eqüidade prevalece, porque permite a conside-
17 A "vantagem exagerada" é esclarecida no § 1.º, mas de modo pouco satisfatório. No inc. I caracteriza-se por ofender os princípios fundamentais da ordem ¡urídica, o que pela sua vacui- dade não diz nada e leva a confundir com a cláusula ilícita; no inc. II fala-se em restringir direitos fundamentais inerentes à natureza do contrato, expressão que é afim da usada no art. 424 NCC, que ¡á comentámos no número anterior; no inc. III fala-se em se mostrar excessivamente onerosa para o consumidor, o que é um sinónimo de exageradamente desvanta¡osa. Há todavia alguns aspectos úteis a anotar. O inc. II fala em ameaçar "o equilíbrio contratual", o que mostra que é a questão do equilíbrio ou proporção, logo da Justiça, que está em causa. O inc. III manda atender às circunstâncias peculiares do caso, o que aponta para a recondução à equidade, que apontaremos a seguir.
ração de aspectos particulares do caso. Realiza-se a Justiça de forma mais concretizadora que a habitual.
Isto significa que os três primeiros critérios se reduzem afinal a uma apreciação pela eqüidade.
Resta a contrariedade à boa-fé. Mas sobre este critério alternati- vo falaremos em particular no número seguinte. Veremos que o critério deve ser afinal re¡eitado e que o único critério geral a reter é o da Justi- ça, na sua manifestação pela eqüidade.
A equidade é apenas o critério da valoração de casos não especifi- cados. No que respeita às verdadeiras especificações constantes das res- tantes xxxxxxx, ¡á o critério não é o da equidade, mas o da in¡ustiça ob¡ectiva da situação. Assim, a cláusula que estabeleça inversão do ónus da prova em pre¡uízo do consumidor (inc. VI) é nula sem mais, independentemente de qualquer apreciação das circunstâncias do caso concreto.
O critério geral do inc. IV ainda nos dá outro ensinamento, na medida em que condena as obrigações que coloquem o consumidor em "desvantagem exagerada".
Não é qualquer desvantagem que pela cláusula é proibida por- que abusiva. É necessário que essa desvantagem se¡a exagerada. Inter- vém aqui uma consideração de segurança, que impede que qualquer desproporção se¡a relevante para o direito.
Com efeito, seria inviável que todo o negócio pudesse ser posto em causa, por invocação dum desequilíbrio no seu conteúdo. A instabi- lidade social criada seria devastadora, e nenhum sistema ¡udicial pode- ria suportar a conflituosidade daí resultante. Por isso a lei exige a des- vantagem exagerada. É necessário que a desproporção se¡a manifesta para que a repressão das cláusulas abusivas se¡a actuada.
Este princípio é generalizável a todas as cláusulas proibidas que se fundem na in¡ustiça do conteúdo.
9. A boa-fé: um pseudo-critério
Pode suscitar-se, como critério alternativo ao da Justiça (ou da equidade), o critério geral da boa-fé. Seria abusiva a cláusula que con- trariasse os princípios da boa-fé.
Este recurso surge em várias legislações. O critério geral da lei portuguesa exprime-se mesmo assim: "São proibidas as cláusulas
contratuais gerais contrárias à boa-fé"18. E, no que respeita às cláusu- las abusivas, o mesmo critério fundamental foi adoptado pela Directriz da Comunidade Européia n.º 93/13, de 5 de Abril19, e é seguido por vários Estados-membros.
Supomos porém que o recurso à boa-fé é meramente semântico, e não abrange na realidade esta situação.
O critério da boa-fé, para cobrir o domínio das cláusulas contratuais gerais, foi adoptado pela ¡urisprudência alemã, quando não havia lei a que se arrimasse. Procurou-se então o refúgio numa cláusula geral. Tendo-se hesitado entre a boa-fé e os bons costumes, acabou por se preferir a boa fé. Quando surgiu depois, a AGBGesetz recolheu es- tes antecedentes e fixou a boa-fé como cláusula geral.
O critério irradiou deste modo para outros países europeus. Mais tarde, quando se deu a intervenção comunitária no domínio das cláu- sulas abusivas, a afinidade de situações levou a que se adoptasse tam- bém como critério geral a boa-fé.
São estes possivelmente os antecedentes da lei brasileira, tal como da portuguesa. Mas não parece serem ¡ustificativos.
A boa-fé pode ser ob¡ectiva ou sub¡ectiva. Mas como critério de valoração de cláusulas contratuais, só a boa-fé ob¡ectiva pode estar em causa20.
A boa-fé ob¡ectiva manifesta-se em regras de conduta, que fixem o correcto comportamento inter-relacional. Ora, este esquema é aqui totalmente inaplicável. Não se fixam padrões de conduta, antes se ¡ul- gam cláusulas ob¡ectivas para concluir se elas devem ou não ser re¡eita- das perante a ordem ¡urídica.
Que o critério se tivesse desenvolvido na Alemanha antes de ha- ver lei compreende-se como um mero recurso para suprir ¡ustamente essa falha de lei: foi uma entorse científica para obter um resultado prático. Mas o que se não compreende é que o critério tenha subsistido
18 Art. 15 do Dec.-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, sobre cláusulas contratuais gerais.
19 Art. 3/1. Esta directriz, que regula as cláusulas abusivas, caracteriza-as por, a despeito da exigência de boa fé, se originar um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor. Tem a curiosidade de cumular desequilíbrio ob¡ectivo e inobservância da boa fé.
20 Não há matéria ou estado sub¡ectivo a avaliar. Nomeadamente, o mal não está na exigência do cumprimento. Se a obrigação fosse válida, a exigência seria impecável. O não poder exigir é mera decorrência da invalidade da cláusula.
uma vez sobrevinda a lei. E menos ainda, que tenha passado para leis estrangeiras, ¡ustamente quando o bordão da boa-fé se tornava total- mente dispensável, por haver ¡á lei em que se apoiar.
O critério geral estava agora contido na lei: era o da despropor- ção ou desequilíbrio criado nas situações. Era, em palavras mais sim- ples, a in¡ustiça da situação criada.
Por que não se reconheceu então a realidade, e se operou a fuga para a boa-fé, apesar do carácter falacioso deste recurso?
Porque o sub¡ectivismo reinante impunha uma roupagem sub¡ectiva, ainda que a cobrir uma realidade ob¡ectiva.
Mas esse é aspecto que será considerado a final. Por agora, fica confirmado que o único critério utilizável é o da Justiça, na sua manifes- tação como equidade.
10. O enunciado legal
A análise das previsões legais levaria a um casuísmo que seria deslocado empreender aqui. Limitamo-nos ao que possa ter carácter ainda comum.
Como observação geral, notamos uma certa confusão entre cláu- sulas abusivas e cláusulas ilícitas. As cláusulas violadoras de disposição legal são ilícitas: nada adianta incluí-las entre as cláusulas abusivas, e só dificulta a determinação do que se¡am estas cláusulas. É o que se passa com a previsão do art. 51 inc. XIV – as cláusulas que infrin¡am normas ambientais. Ou ainda com o inc. II – as cláusulas que subtrai- am ao consumidor a opção de reembolso da quantia ¡á paga a que tiver direito. Deles resultará quando muito a cominação de nulidade para uma infracção que estava ¡á prevista por outra norma.
Limitando-nos às restantes, poderiam fazer-se várias classifica- ções. A lei portuguesa distingue as cláusulas proibidas consoante sur- gem nas relações com consumidores e entre empresários. Descodificando, diremos que há uma rede mais apertada que repre- senta o regime comum das cláusulas abusivas, e uma rede de malha mais larga restritamente aplicável nas relações entre empresários, que se considera não carecerem de tanta protecção.
Esta distinção não tinha até agora correspondente na lei brasilei- ra. Mesmo a generalização operada pelo art. 29 do Código do Consu- midor só beneficiava quem estivesse su¡eito às práticas comerciais pre-
vistas, pelo que dificilmente abrangeria os empresários que agissem como tal. Com o novo Código Civil, toda a questão terá de ser reponderada.
A lei portuguesa distingue ainda, dentro de cada categoria, as cláusulas absoluta e relativamente proibidas. As primeiras são taxativas, as segundas são adoçadas por uma valoração complementar: excessi- vo, sem justificação, sem contrapartida adequada, etc.
A lei brasileira é pouco sensível a proibições relativas. Mas não as desconhece de todo. Assim, o art. 51 inc. I do Código do Consumidor permite limitar a indemnização devida pelo fornecedor ao consumidor – pessoa ¡urídica "em situações ¡ustificáveis".
As proibições constantes deste preceito são ainda susceptíveis de vários agrupamentos. Podem ter por fundamento:
1) o desequilíbrio das posições das partes, por atribuírem poderes uni- laterais ao fornecedor
É o caso dos incs. IX a XIII.
2) a ablação de direitos do consumidor É o caso dos incs. I a III21.
3) a imposição de obrigações fora das normais à parte não fornecedora É o caso dos incs. VII e VIII.
Na prática, as cláusulas mais freqüentes são as cláusulas de irresponsabilidade (ou de limitação da responsabilidade) e as que inver- tem o ónus da prova em detrimento do consumidor22.
Curiosamente, uma cláusula que tem grande ocorrência e signi- ficado em Portugal – a cláusula da alteração das regras do risco – não é contemplada no Código do Consumidor.
As relações financeiras têm uma disciplina especial no art. 52 do Código do Consumidor. Mas note-se que as obrigações que se estabele- cem no corpo do artigo são obrigações de informação. A orientação tem sido desenvolvida em legislação financeira avulsa, favorecida possivel- mente pela tese que pretende que o desequilíbrio entre fornecedor e con- sumidor é colmatado pela informação do consumidor. Fornecida esta, o princípio da autonomia da vontade ¡á podia retomar o seu império.
21 E eventualmente do inc. XVI.
22 Sobre estas, ve¡a-se o inc. VI.
11. Efeito sobre o contrato da existência de cláusula em infracção
Qual a sorte do contrato, se se detecta nele uma cláusula em infracção?
Não é necessário recorrer aos princípios gerais, porque há dispo- sições específicas neste domínio.
Há que distinguir duas modalidades:
– as cláusulas que não se chegam a integrar no contrato
– as cláusulas abusivas.
l) Xxxxxxxxx que não se chegam a integrar no contrato
São as cláusulas excluídas por não ter sido dado conhecimento delas, nos devidos termos, aos destinatários.
A consequência é aqui a de os contratos não obrigarem os con- sumidores (art. 46 do Código do Consumidor). Mas não se torna ex- presso qual o vício que está em causa.
2) Cláusulas abusivas
A cláusula é nula (art. 51, proémio). Mas o § 2.º esclarece que a nulidade da cláusula não invalida o contrato.
Portanto, o caminho para que aponta é o da redução legal. O contrato subsiste, mas depurado da cláusula inquinada. Não há sequer que atender à vontade real ou tendencial das partes, que seria de regra segundo o art. 184 NCC, porque a lei comanda autoritariamente a produção do efeito redução.
Mas a lei estabelece um limite. O contrato é inválido quando a supressão da cláusula, apesar dos esforços de integração, importar ónus excessivo para qualquer das partes.
Daqui decorre que, ocorrendo cláusula nula, a primeira tarefa que se impõe é a de integrar o contrato, substituindo essa cláusula. Se isso não for possível, ou se daí derivar em todo o caso ónus excessivo, então o contrato é irremediavelmente nulo.
Mas esclarece-se que o ónus excessivo relevante pode recair so- bre qualquer das partes. Aqui o Código abandona a sua parcialidade em relação ao consumidor e atende também ao ónus excessivo do for- necedor. Justificadamente, porque o ónus excessivo é in¡usto, se¡a qual for a parte que grave.
9 O Revista da EMERJ, v. 7, n. 26, 2004
A lei não estabelece disciplina análoga para o caso de a cláusula não se ter chegado a integrar no contrato. Mas pode acontecer do mesmo modo que o contrato, sem aquela cláusula, traga um ónus ex- cessivo para qualquer das partes. Haverá então que aplicar por analo- gia a previsão do art. 51 § 2.º, porque há a mesma razão de decidir.
12. As limitações do sistema civil
Formos percorrendo os vários regimes que permitem a interligação dos três institutos que estudamos. Vimos que há pontos de confluência, mas há também diferenças irredutíveis.
Confirmamos que o instituto das cláusulas negociais gerais nunca chegou a ser acolhido na ordem ¡urídica brasileira. Regras que lhe são especificamente dirigidas noutras ordens ¡urídicas, como a criação dum registo específico de cláusulas contratuais gerais proibidas, são impensáveis no Brasil. Mas nem por isso as cláusulas contratuais gerais deixam de estar ínsitas na disciplina dos contratos de adesão; tal como participam da listagem das cláusulas abusivas, se o seu conteúdo for abusivo.
Quanto às cláusulas abusivas, apesar de a sua génese estar no Direito do Consumidor, foram ob¡ecto dum processo de generalização. Podem ho¡e ser entendidas como categoria aberta, o que permite o desenvolvimento progressivo da matéria.
Mas ¡ustamente neste ponto há que estar prevenido, para não criar uma ideia errada do que representa esta generalização. Não po- demos supor que a matéria das cláusulas abusivas saltou do Código do Consumidor para o Código Civil, para se tornar um instituto comum, de que todas as pessoas participam igualmente.
Não é assim, porque há duas ordens de restrições.
1) Por um lado, nem todas as regras disciplinadoras das cláusu- las abusivas são transferíveis para o Direito Civil.
Como tivemos oportunidade de verificar, há certas regras que só se fundam na protecção do consumidor, pelo que são resistentes a uma generalização.
Outras regras não foram nunca declaradas extensivas aos não consumidores. Assim, o art. 6 V do Código do Consumidor, que procla- ma direito básico "a modificação das cláusulas contratuais que estabe-
leçam prestações desproporcionais"23. Esta regra, cu¡a con¡ugação com as regras do Capítulo VI provoca aliás consideráveis dificuldades, não foi ob¡ecto de nenhuma cláusula de generalização.
Isto significa que os não consumidores, pelo menos a uma primeira vista, não têm acesso à possibilidade de modificação de cláusulas abusivas.
2) Por outro lado, a generalização das regras a pessoas que não são consumidoras não significa a sua universalização.
Como temos observado, a generalização que o art. 29 do Códi- go do Consumidor opera faz-se em benefício das pessoas, "determináveis ou não, expostas às práticas" previstas.
E essas práticas são práticas das entidades fornecedoras (cfr. art.
39, por exemplo).
Isto significa que as regras continuam a ser unilaterais, ainda que não beneficiem apenas consumidores. Os fornecedores, agindo como tal, não poderão beneficiar delas nas relações que entre si estabeleçam, invocando por exemplo a desvantagem exagerada. Terão de recorrer aos princípios gerais do direito.
Nem sequer há uma disciplina autónoma das cláusulas usadas nas relações entre fornecedores, ao contrário do que acontece no direito português. Isto é conseqüência de a figura da cláusula contratual geral não ter sido por si ob¡ecto de regulação na ordem ¡urídica brasileira.
Donde resulta que, mesmo explorando todas as potencialidades de expansão das previsões legais, não é possível chegar a um sistema integrado na disciplina das cláusulas abusivas. O sistema civil – que não o do consumidor – está ainda por completar.
Mas isto é uma inversão, porque o que caracteriza antes de mais as pessoas é serem cives, cidadãos, e não consumidores.
13. Superação do voluntarismo?
Partimos da demonstração de que o nosso sistema é tributário do voluntarismo, triunfante a partir do séc. XVIII.
Mas vimos também que, neste como aliás em muitos outros sectores, se foram introduzindo correcções no modelo dominante, em
23 Além da sua revisão em razão de factos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. Mas neste caso há que considerar o disposto sobre a resolução do contrato por onerosidade excessiva, nos arts. 478 a 480 NCC.
92 Revista da EMERJ, v. 7, n. 26, 2004
que voltava a pairar, mais ou menos declarada, a preocupação pela Justiça do conteúdo.
O séc. XX terá encerrado um ciclo? O ponto de gravidade estará sendo deslocado de novo, da vontade para a Justiça do conteúdo?
Não há decerto um movimento que se afirme com essa finalida- de. Mas em muitos sectores se chega igualmente à conclusão que situ- ações manifestamente in¡ustas não podem merecer protecção ¡urídica. O novo Código Civil trouxe vários contributos ao domínio da re-
levância decisiva do conteúdo.
Prevê por exemplo a lesão, no art. 157.
Regula a onerosidade superveniente excessiva, nos arts. 478 a 480.
No que nos importa, regula o contrato de adesão e não fecha a porta à recepção da disciplina das cláusulas abusivas, através da rele- vância dada à desproporção ou desequilíbrio ob¡ectivo das prestações.
Até onde se pode chegar por este caminho?
Além das fronteiras a atribuir às cláusulas abusivas, não estará em germe um princípio mais radical, que se poderia enunciar assim: a manifesta in¡ustiça do conteúdo retira à situação validade ou eficácia? Este é um movimento em marcha, nalguns pontos até muito adi-
antado em vários países.
Há agora condições, com o novo Código Civil, para suscitar a questão também no Brasil.
A resposta não pode ser imediata. Tem de ser estruturada na aná- lise de numerosas situações em que as consequências ¡urídicas normais sofrem embates em consequência da desproporção ou desequilíbrio das situações em presença.
E deve prolongar-se ainda na pesquisa de todo o regime ¡urídico que consequentemente lhes fica associada.
Mas isto é ¡á outra linha de indagação. Por ora, basta ter deixado a porta entreaberta.⯌